Série II, n. 0 8/9 (2011) 1. o e 2. o Semestre
Direito Universidade Lusíada • Lisboa
Universidade Lusíada Editora Lisboa " 2011
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LUSÍADA. Direito. Lisboa, 2003 Lusíada. Direito I propr. Fundação Minerva - Cultura - Ensino e Investigação Científica ; dir. José Duarte Nogueira. - S. 2, n. 1 (2003)- . - Lisboa : Universidade Lusíada, 2003- . · 24 cm. · Anual Continuação de: Lusíada: revista de ciência e cu ltura. Série de direito ISSN 0872·2498 1. Direito · Periódicos CBC CDU ECLAS
K12.U7 340(05) 04.01.00
Ficha Técnica Titulo Proprietário Director Secretário Conse lho Redactorial
Lusíada. Direito
Fundação Minerva - Cultura - Ensino e Investi gação Cientifica
José Alberto Rodriguez Lorenzo Gonzalez Eduardo Vera-Cruz Pinto (Universidade de Lisboa/Universidade Lusíada de Lisboa); Manuel Lopes Porto (Univ< sidade de Coimbra); Mortimer Sellers (Universidade de Maryland/Universidade de Baltimore); Pierre Beltrar (Universidade Paul Cézanne. Aix·Marseille III); Pedro Ortego Gil (Universidade de Santiago de Compostela) 162249/01
ISBN
0872·2498
Ano Periodicidade Editora
Distribuidora
Fotocomposição Capa Impressão e Acabamentos
Tiragem
N. 0 8 I 9 (1. 0 e 2. 0 Semestre)
José Artur Anes Duarte Nogueira
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Local
Série 11
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FCT Fundação para a Ciência e aTecnologia MINISTÉRIO DA CIÊNCIA, TECNOLOGIA EENSINO SUPERIOR Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT· Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projecto «PEst-OE/CJP/UI4053/2011 ..
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Centro de Estudos Jurídicos Econômicos e Ambientais
SUMÁRIO §1 DOUTRINA Para a legitimação e a subordinação aos Direitos Fundamentais António Francisco de Sousa....................................................................................
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A racionalidade judiciária para além da legitimação estatal: um outro tempo e um outro rito para o tratamento do conflito Fabiana Marion Spengle- Eduardo Henrique Wartschow ....................................
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O princípio do contraditório na restituição provisória da posse: breve linha evolutiva histórica e regime actual José Lourenzo González ..........................................................................................
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O Direito da Internete em Portugal e no Brasil José de Oliveira Ascensão .......................................................................................
83
A natureza institucional da Universidade Lusíada José João Gonçalves de Proença...............................................................................
103
A proibição das organizações fascistas enquanto auto-ruptura constitucional desconforme com o Direito Internacional L. Barbosa Rodrigues ..............................................................................................
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O regime fiscal internacional de negógios da Madeira (Sinopse) Maria Eduarda Azevedo .........................................................................................
143
As reformas fiscais portuguesas do século XX - Um enfoque analítico Maria Eduarda Azevedo .........................................................................................
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Inabilitação do insolvente culposo Miguel J. Pupo Correia ...........................................................................................
237
Âmbito das obrigações fiscais do administrador da insolvência Raul Gonzalez .. .. .. .. .. .. .. .. .. ... .. .. .. ... .. .. .. ... .. ... . ... .. ... ... ....... .. .. ... .. ..... .. .. ..... .. .... ....... .. .. ..
247
Resolução em benefício da massa insolvente Nuno Lu1nbrales ..... .. .. .. ... .. .. .. .. ... .. .. .. ... .. .. ... . ... .. ... .... .... .. .. ... .. ..... .. .. ..... .. .. ....... .. .. .. .. .
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§2
TRABALHOS ACADÉMICOS
O traçado das linhas de base. O caso particular das linhas de fecho e de base recta poruguesas Paulo Neves Coelho ................................................................................................. 259
ยง1 Doutrina
PARA A LEGITIMAÇÃO E A SUBORDINAÇÃO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
António Francisco de Sousa1
Na perspectiva subjectiva, os direitos fundamentais conferem ao seu titular um poder jurídico de exigir uma acção, tolerância ou omissão da parte que por eles é obrigada. É, pois, importante saber quem é titular de direitos fundamentais (sujeito activo - autorização ou legitimação jurídico-fundamental) e quem está por eles obrigado (sujeito passivo - ou vinculação jurídico-fundamental). Para o sujeito activo está em causa o âmbito da sua protecção pessoal (que não se confunde com a protecção objectiva). Os sujeitos activo e passivo dos direitos fundamentais são bem visíveis no recurso constitucional: legitimação (lado activo) e vinculação (lado passivo).
1. Titularidade dos direitos fundamentais
a) Para a compreensão cabal da questão da titularidade dos direitos fundamentais, isto é, da questão da autorização (legitimação ou atribuição) jurídico-fundamental, devemos começar por distinguir o ser humano em geral e os cidadãos portugueses em especial. A Constituição reconhece certos direitos fundamentais a todo e qualquer ser humano, independentemente da nacionalidade, e certos direitos fundamentais apenas aos cidadãos portugueses. Os primeiros são direitos do ser humano (direitos humanos). A sua titularidade não conhece restrições de carácter pessoal. Geralmente, a titularidade é reconhecida pela Constituição através de expressões como "todos os cidadãos" ou expressões equivalentes: art. 0 12. 0 , n. 0 1: "Todos os cidadãos ... "; art. 0 13. 0 , n. 0 1: "Todos os 1
Doutor pelas Faculdades de Direito e de Letras da Universidade do Porto. Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.
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cidadãos têm ... "; art. 0 13. 0 , n. 0 1: "Ninguém pode ser privilegiado ... "; art. 0 20. 0 , n. 0 1: "A todos é assegurado o acesso ao direito ... ."; art. 0 20. 0 , n .0 2: "Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas ... "; art. 0 21. 0 : "Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem ... "; art. 0 23. 0 , n. 0 1: "Os cidadãos podem apresentar queixas por acções ou omissões ..."; art. 0 26. 0 , n. 0 1:" A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal..."; art. 0 27. 0 , n. 0 1: "Todos têm direito à liberdade e à segurança ... "; art. 0 29. 0 , n. 0 1: "Ninguém pode ser sentenciado criminalmente ... "; art. 0 36.0 , n. 0 1: "Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento .... "; etc.). Diferentemente, a Constituição também garante certos direitos fundamentais apenas aos cidadãos portugueses: Art. 0 14.0 : ,Os cidadãos portugueses que ... "; art. 0 121.0 , n .0 1: "O Presidente da República é eleito por sufrágio universal, directo e secreto dos cidadãos portugueses eleitores ... "; art. 0 122.0 : "São elegíveis os cidadãos eleitores, portugueses de origem .... "; art. 0 150.0 : "São elegíveis os cidadãos portugueses eleitores ... "; art. 0 275. 0 , n .0 2: "As Forças Armadas compõem-se exclusivamente de cidadãos portugueses .... " (se partirmos do princípio, sem dúvida controverso, de que este é um direito fundamental). Porém, inversamente, a Constituição também se refere exclusivamente a não portugueses: art. 0 15. 0 , n .0 1: "Os estrangeiros e os apátridas ... "; art. 0 15. 0 , n .0 4: "A lei pode atribuir a estrangeiros residentes no território nacional, em condições de reciprocidade, capacidade eleitoral activa e passiva para a eleição dos titulares de órgãos de autarquias locais". Por outro lado, a Constituição reconhece um estatuto especial aos cidadãos dos Estados de língua oficial portuguesa (art. 0 15.0 , n. 0 3- "Aos cidadãos dos Estados de língua portuguesa ... .") e aos cidadãos dos Estados-membros da União Europeia, no que respeita às eleições autárquicas, os quais têm direito de sufrágio activo e passivo (o art. 0 15.0 , n. 0 5, da CRP, determina: "A lei pode ainda atribuil~ em condições de reciprocidade, aos cidadãos dos Estados-membros da União Europeia residentes em Portugal o direito de elegerem e serem eleitos Deputados ao Parlamento Europeu"). Do que ficou dito resulta a importância de saber quem é cidadão português. Nos termos do artigo 4. 0 da CRP, sob a epígrafe "cidadania portuguesa", "são cidadãos portugueses todos aqueles que corno tal sejam considerados pela lei ou por convenção internacional". Também a Lei n. 0 37/81, de 3 de Outubro ("Lei da Nacionalidade"), na versão da última alteração feita pela Lei Orgânica n. 0 2/2006, de 17 de Abril, determina quem é cidadão português, distinguindo a nacionalidade de origem, da nacionalidade adquirida. Esta pode ter lugar por efeito da vontade (p. ex. pelo casamento ou por adopção). Outro aspecto importante em sede de legitimação jurídico-fundamental consiste no facto de a Constituição portuguesa subordinar o poder público aos direitos fundamentais (cfr. espec. os art. 0 S 1. 0 , 2. 0 e 3. 0 , n. 0 2, 12.0 e 15. 0 , n. 0 1, da CRP). Assim, um estrangeiro que se situe no âmbito territorial de aplicação do poder público português (por exemplo, numa embaixada portuguesa no estrangeiro) pode invocar a protecção de direitos fundamentais garantidos pela Consti-
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tuição portuguesa a qualquer ser humano, isto é, enquanto direitos de ser humano. No entanto, esta possibilidade geral garantida aos estrangeiros e apátridas de poderem invocar os seus direitos de ser humano não implica um direito a entrar e a residir em Portugal. Para tal, o estrangeiro terá de poder invocar outro direito, como por exemplo o direito de asilo (mas neste caso já deixamos o terreno dos direitos fundamentais e entramos no direito ordinário de estrangeiros) 2• Por outro lado, os direitos fundamentais garantidos a qualquer ser humano são alvo de delimitação pela lei ordinária. Por exemplo, o art. 12. da CRP consagra o princípio da universalidade ao determinar que "todos os cidadãos gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição". Daqui resulta, nomeadamente, que também os estrangeiros têm liberdade de reunião e de associação 3 . No entanto, a lei ordinária pode estabelecer fundamentos de proibição, por exemplo de associações de estrangeiros, limites que não estão especificados na CRP. Por outro lado, ainda que a CRP reconheça o direito de reunião e de manifestação a todos os cidadãos, este direito pode ser, em certos casos, restringido para estrangeiros que não satisfaçam determinados requisitos. Tem sido muito discutida na doutrina e na jurisprudência a questão de saber até que ponto um Estado pode reservar para os seus nacionais certos direitos de cidadão. Podemos argumentar que é inerente a todo o direito fundamental um conteúdo de dignidade humana que deveria ser garantido a todo o ser humano, independentemente de ser nacional ou estrangeiro. A Constituição portuguesa protege a dignidade da pessoa humana (art. 1. desde logo no seu núcleo essencial (art. 0 18. 0 , n." 3) 4, e esta garantia deve ser assegurada a todo o ser humano, independentemente da sua nacionalidade, que se encontre em território português ou em local sob a jurisdição portuguesa (embaixadas de Portugal no estrangeiro, a bordo de aeronaves ou de navios). Do ponto de vista dos direitos humanos que Portugal aceita proteger, quer por força da sua Constituição quer por força de diplomas internacionais que tem subscrito, não são aceitáveis discriminações entre nacionais e estrangeiros ou apátridas. Porém, isto não impede que a Constituição portuguesa reserve a protecção de certos direitos aos seus nacionais ou restrinja a sua protecção aos estrangeiros e apátridas. É, pois, importante ter em vista que certos direitos são garantidos a todo o ser humano, garantindo-se uma liberdade em geral. Estes direitos protegem sempre que não são aplicáveis direitos especiais, com os seus âmbitos de protecção específicos. Assim, por exemplo a liberdade de circulação é garantida também aos estrangeiros sempre que não haja limitações da lei ordinária. Outro aspecto importante a assinalar consiste no facto de os estrangeiros e 0
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A Lei n". 15/98, de 26 de Março, estabeleceu um novo regime jurídico-legal em matéria de asilo e de refugiados. 3 Cfr. também o art.o 11." da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. 4 Em geral, sobre a garantia do núcleo essencial de direitos fundamentais, espec. DREWS, C.: Die Wesensgehaltsgarantie des Art. 19 II GG, 2005. 2
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apátridas que se encontram em Portugal terem um direito (fundamental) ao respeito pelas normas do direito constitucional objectivo português. Nomeadamente têm direito a que as autoridades portuguesas observem, face a eles, princípios jurídico-fundamentais como a legalidade, a proporcionalidade, a imparcialidade, a justiça, a igualdade, a protecção das legítimas expectativas, etc .. Por exemplo, uma prática reiterada das autoridades portuguesas no tratamento de estrangeiros pode criar neles legítimas expectativas dignas de protecção jurídico-constitucional (v.g. em matéria de residência). No caso específico de certos estrangeiros, a Constituição portuguesa prevê uma ampla protecção jurídico-fundamental. É o que acontece com os estrangeiros provenientes de países de língua oficial portuguesa. Regime especial é também reconhecido pela Constituição aos estrangeiros provenientes de outros Estados-membros da União Europeia. Desde logo, ao nível da União Europeia vigora uma proibição geral de discriminação entre os seus cidadãos, bem como proibições especiais de discriminação das liberdades fundamentais da UE. Por força do primado de aplicação do direito da União Europeia é exigida uma equiparação de princípio dos cidadãos da UE aos cidadãos portugueses, pelo que todos os direitos dos cidadãos portugueses são, em geral, reconhecidos aos estrangeiros oriundos da UE. Isto implica também que o Estado português (e as suas instituições) deve(m) assegurar aos estrangeiros oriundos da UE uma protecção idêntica à que é garantida aos cidadãos portugueses. b) Aspectos importantes que merecem uma atenção especial dizem também respeito à titularidade de direitos fundamentais por parte de nascituros e à protecção jurídico-fundamental pós-morte. Em termos gerais, podemos afirmar que os direitos fundamentais garantidos na Constituição foram concebidos para serem aplicados aos vivos, uma vez que só estes são cidadãos titulares de direitos e obrigações. O próprio Código Civil determina que a personalidade jurídica (isto é, a aptidão genérica para se adquirir direitos e se ser titular de obrigações) se adquire no momento do nascimento completo e com vida (art. 0 66. 0 , n. 0 1, do Código Civil). Só com a consumação do nascimento temos um sujeito jurídico titular de direitos e obrigações5 . Por outro lado, a personalidade jurídica termina com a morte, mais concretamente com a morte cerebral, que se verifica - assim é reconhecido pela ciência médica e pela lei - quando o cérebro deixa de poder funcionar, de forma irreversível. Por natureza, os direitos fundamentais não são sequer susceptíveis de serem exercidos por nascituros ou por pessoas falecidas. O pensamento, a expressão de opinião, o reunir-se e, em geral, o exercício de direitos e liberdades é apanágio de 5
É evidente que na origem da atribuição ou reconhecimento da personalidade jurídica está a necessidade de protecção jurídica do ser humano. O ser humano não surge com o reconhecimento da personalidade jurídica, mas é-lhe anterior. É a sua existência que exige o reconhecimento da personalidade jurídica.
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seres vivos pensantes e dotados de vontade própria. Não se coloca, pois, a questão do gozo e do exercício dos direitos fundamentais por parte de nascituros e de pessoas já falecidas. No entanto, o conteúdo material dos diferentes direitos fundamentais pode projectar-se tanto para o nascituro como para o falecido. Desde logo, a protecção da dignidade humana é assegurada ao nascituro e ao defunto. Esta garantia não é assegurada enquanto direito fundamental de um ser humano, mas enquanto protecção de um ser humano que está para nascer ou que já existiu. Por exemplo, a recolha de órgãos num cadáver só necessita de uma regulação legislativa prévia devido à dignidade da pessoa humana projectada no cadáver. Por isso, surge a necessidade de se respeitar quanto possível a vontade conhecida da pessoa antes de morrer. Neste sentido, a lei tem procurado atender à decisão da própria pessoa ainda em vida ou, na falta dela, à decisão de familiares próximos, como os que melhor representam a vontade do falecido. No que respeita especificamente ao nascituro, coloca-se antes de mais a questão de saber a partir de que momento começa a haver uma vida humana: se a partir da união do óvulo com o espermatozóide (concepção= fecundação do óvulo pelo espermatozóide), se com a nidação (fixação do óvulo no útero materno), se com a individuação. A antropognosia médica ainda não encontrou uma resposta definitiva para esta questão. O embrião não tem capacidade jurídica em geral, nem capacidade jurídico-fundamental6 • Porém, a Constituição protege-o objectivamente, no mínimo, pela protecção da vida do nasciturd. Mas também podemos questionar se, para além desta protecção objectiva da Constituição, o nascituro já não será titular de um direito fundamental à vida e à dignidade humana. c) Outro aspecto que não pode ser esquecido tem a ver com o gozo e com o exercício dos direitos fundamentais. O gozo e o exercício de direitos fundamentais são garantidos, em geral, a todos os cidadãos, independentemente da idade. Só a título excepcional a Constituição portuguesa faz depender o gozo e o exercício de direitos fundamentais de limites de idade. Assim, sem contrariar a Constituição, a lei ordinária prevê diversos limites de idade, por exemplo para a 6
Se entendermos que a vida humana surge com a nidação, isso significa que os óvulos fecundados em laboratório (fecundação in vitro) podem ser livremente destruídos ao fim de três anos, por já não possuírem vida humana. Se entendermos que a vida surge com a fecundação, a destruição de embriões será homicídio. Além das teorias da nidação e da fecundação, existem outras teorias para a determinação do momento exacto do início da vida humana. Uma delas radica na formação do sistema nervoso central, que ocorre por voltado 14" dia após a concepção. Esta teoria é, em geral, seguida na Alemanha pelo Tribunal Constitucional Federal. Outra teoria sustenta que a vida humana se forma a partir da 26a semana, isto é, quando o feto atinge condições de sobrevivência independente da mãe. 7 O reconhecimento constitucional da inviolabilidade da vida humana encerra uma declarada opção pela vida, alargada a todas as circunstâncias da existência humana, que está associada à própria dignidade humana.
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capacidade negocial ou para o exercício da liberdade religiosa. Suscita-se, por exemplo, a questão de saber se e quando os menores estão limitados no exercício de direitos fundamentais. A resposta a esta questão pode ser dada com base em dois critérios: -o critério da capacidade de entendimento (ou discernimento) e de decisão individual da pessoa em concreto (maturidade do indivíduo para a titulm·idade de direitos fundamentais, o que pressupõe o reconhecimento de um limite variável de idade); -o critério dos limites fixos de idade estabelecidos na lei em geral8 • O primeiro critério seria teoricamente preferível, mas é, na prática, inexequível. Resta-nos, portanto, apenas o segundo critério. Porém, este exige que se façam distinções: a) quando se trate de direitos fundamentais referentes à existência humana, aceita-se o pleno gozo dos direitos fundamentais (p. ex. art. 0 s 24. 0 da CRP -direito à via; e art. 0 25. 0 da CRP- direito à integridade pessoal); b) quando se trate de direitos fundamentais de exercício associado a negócios jurídicos de direito privado, o seu pleno gozo inicia-se em termos correspondentes aos limites de idade para a capacidade jurídica negocial estabelecida no Código Civil; c) quando se trate de direitos fundamentais decorrentes da liberdade religiosa (art.o 41. da CRP), aplicam-se os limites de idade previstos na respectiva legislação especial; e d) finalmente, quando se trate de direitos fundamentais que só são relevantes numa determinada idade (por exemplo, objecção de consciência para o não cumprimento do serviço militar, casamento, etc.), o seu pleno gozo inicia-se quando o indivíduo atinge o respectivo limite de idade. Mas a questão do pleno gozo dos direitos fundamentais suscita ainda outras questões: a) a questão da relação dos menores com o poder público; b) a questão do concurso dos direitos fundamentais dos menores com o direito dos pais à educação dos filhos; c) a questão da defesa dos direitos fundamentais por parte dos menores. 0
Quanto à primeira questão, isto é, à questão da relação de um menor com o poder público, podem ocorrer ingerências nos termos dos critérios gerais. É o que acontece, por exemplo, na relação do menor com a sua escola pública. Os menores têm direito ao exercício dos direitos fundamentais e estão protegidos contra ingerências injustificadas, como qualquer cidadão9 . Mas há também diversa
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Saliente-se o facto de o legislador fixar estes limites também atendendo à maturidade presumível dos indivíduos. Em geral, sobre o conceito de ingerência nos direitos fundamentias, Cfr. ECKHOFF, R.: Der Grundrechtseingriff, 1992.
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legislação especial que protege de forma particular a juventude, como acontece com a proibição de venda de tabaco 10 ou bebidas alcoólicas 11 nos estabelecimentos de ensino público (e até uma certa distância deles) ou no caso de venda de revistas pornográficas 12 ou de jogos violentos, que está sujeita a um regime especial bastante apertado 13 . Quanto à segunda questão, isto é, ao concurso dos direitos fundamentais dos menores com o direito dos pais à educação dos filhos (art. 0 36. 0 , n. 0 5, da CRP), verifica-se muitas vezes uma colisão de direitos com a crescente autonomia do menor 14 • A Constituição portuguesa não autoriza a ingerência dos pais nos direitos fundamentais dos filhos. Face à Constituição, os pais não são detentores de um poder público face aos filhos. Mas porque podem surgir conflitos entre os poderes dos pais e os direitos dos filhos, a lei estabelece regras para a sua resolução. Conflitos podem surgir, por exemplo, se o menor decidir mudar de credo religioso. Perante uma situação de conflito, será necessário respeitar, quanto possível, tanto os direitos do menor, como o poder dos pais à educação dos filhos. Importa ter presente que o poder dos pais é um direito/poder subjectivo no interesse dos filhos. Trata-se de um poder que está limitado tanto quanto aos meios úteis do ponto de vista da educação, como quanto ao tempo (até à autodeterminação do menor relativamente à questão material em causa). Por exemplo, com base no seu direito/poder, os pais podem proibir ao filho a mudança de religião antes de este atingir os 16 anos de idade 15 • O mesmo se diga no caso de o menor pretender ingressar num clube de futebol ou ser membro de uma associação, de acordo com 10
D.L. n." 76/2005, de 4 de Abril, art. 9. n." 1, al. b) (neste caso, menores de 16 anos). Cfr. também o Decreto-Lei no 25/2003, de 4 de Fevereiro de 2003, que transpôs para a ordem interna portuguesa a Directiva n. 2001/37 /CE, procedendo à harmonização ao nível comunitário da fixação de teores máximos de alcatrão, nicotina e monóxido de carbono nos cigarros, das advertências relativas à saúde e de outras indicações que devem constar das unidades de embalagem dos produtos do tabaco. 11 D.L. n" 9/2002, de 24 de Janeiro de 2002, cujo art." 2. relativamente às restrições à venda e ao consumo de bebidas alcoólicas, determina que é proibido "vender ou, com objectivos comerciais, colocar à disposição bebidas alcoólicas em locais públicos e em locais abertos ao público" a menores de 16 anos. 12 Cfr. art.o 2. do Decreto-Lei n" 254/76, de 7 de Abril, de 1976 (neste caso, menores de 18 anos). 13 Neste domínio há importante legislação da UE que é aplicável directamente no nosso país. 14 Em geral, sobre a problemática da colisão de direitos fundamentais, cfr. espec. WINKLER, M.: Kollisionen verfassungsrechtlicher Schutznormen, 2000. 15 Nos termos do Artigo 11. 0 da Lei n. 0 16/2001, de 22 de Junho, que tem por epígrafe "educação religiosa dos menores", "1- Os pais têm o direito de educação dos filhos em coerência com as próprias convicções em matéria religiosa, no respeito da integridade moral e física dos filhos e sem prejuízo da saúde destes. 2 - Os menores, a partir dos 16 anos de idade, têm o direito de realizar por si as escolhas relativas a liberdade de consciência, de religião e de culto". 0
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a respectiva legislação aplicável. Finalmente, quanto à questão da defesa dos direitos dos menores, esta já não é uma questão jurídico-material, mas uma questão jurídico-processual, com vista à defesa de direitos fundamentais por parte de menores. Todo o processo jurisdicional está dependente da verificação dos respectivos pressupostos legais (capacidade processual, etc.). Neste domínio, a lei portuguesa prevê limites de idade, como forma de assegurar uma adequada realização da justiça. Por outro lado, o tribunal de menores pode reapreciar decisões dos pais que ponham em causa os direitos do filho 16 . d) Uma importante questão jurídico-fundamental, já antiga, tem a ver com a possibilidade de o cidadão renunciar validamente aos seus direitos fundamentais17. Esta questão tem sido colocada, por exemplo, no caso da eutanásia, perguntando-se até que ponto será válido o consentimento do titular do direito fundamental à vida enquanto autorização juridicamente válida para uma actuação do Estado (através do pessoal médico ou para-médico) no âmbito de protecção do seu direito fundamental. Esta questão pode também colocar-se noutros domínios, como o consentimento para a privação da liberdade, o consentimento para buscas domiciliárias sem autorização judicial prévia, o preenchimento pelo eleitor do boletim de voto em público (renúncia ao sigilo), a autorização para ensaios clínicos no seu corpo por parte do prisioneiro, etc .. Antes de analisarmos a questão da renúncia aos direitos fundamentais, importa salientar que o não exercício concreto de um direito fundamental (por exemplo, a decisão de não participar em manifestações públicas- art. 0 45. 0 , n. 0 2, da CRP- ou a decisão de não se sindicalizar- art. 0 55. 0 da CRP), não representa, por si só, uma renúncia a esse direito. Por outro lado, só se suscita a questão da possibilidade de renúncia a direitos fundamentais nos casos em que haja uma declaração formal de renúncia (à participação em reuniões, à sindicalização, ao recurso aos tribunais). A questão da renúncia aos direitos fundamentais tem de partir de um duplo princípio: por um lado, a simples renúncia nem sempre torna constitucional a medida estadual; por outro lado, a renúncia do cidadão (na forma de declaração de consentimento) não é inteiramente irrelevante. É também importante salientar o facto de serem contrários à Constituição os acordos que impossibilitem o exercício do direito fundamental. A Constituição portuguesa não se pronuncia expressamente sobre a possibilidade de renúncia aos direitos fundamentais. Assim, a resposta a esta importante questão tem de ser encontrada à luz da função dos direitos fundamentais. É importante salientar que tradicionalmente os direitos fundamentais foram en16 17
Cfr. também a Lei Tutelar Educativa, aprovada pela Lei n. 0 166/99, de 14 de Setembro. Sobre esta questão, cfr. o nosso estudo <<Renúncia às normas de protecção da vizinhança>>, in: Revista de Direito Público (S. Paulo-Brasil), n. 0 76 (1985), p. 28 ss.
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tendidos como direitos subjectivos do cidadão contra o Estado, sendo a suarenúncia uma forma de exercício da liberdade. Porém, nas últimas décadas tem-se fortalecido a função objectiva dos direitos fundamentais, pelo que a sua renúncia deixou de estar na livre vontade do respectivo titular. Face ao entendimento actual, os direitos fundamentais são, pois, por princípio, indisponíveis e irrenunciáveis 18 . Este princípio resulta da própria função dos direitos fundamentais. Em qualquer caso, uma eventual admissibilidade de renúncia a um direito fundamental só se poderá suscitar se ela for livre, esclarecida (voluntária e sem qualquer tipo de coacção ou engano), clara e inequívoca. Será possível admitir uma renúncia se o direito fundamental em concreto servir à liberdade de desenvolvimento pessoal. Mas se, inversamente, o direito fundamental for importante para a formação da vontade do Estado, deverá ser, em princípio, recusada a admissibilidade de renúncia. Por outro lado, a dignidade humana é irrenunciável, tal como o é o conteúdo de dignidade humana de quaisquer direitos fundamentais. Por exemplo, o cidadão pode renunciar validamente à propriedade privada, à inviolabilidade do domicílio, da correspondência, das telecomunicações. Estes são direitos fundamentais relativos à pessoa (liberdade de desenvolvimento da pessoa). Mas o cidadão já não pode renunciar ao direito de voto e ao seu exercício de forma secreta, uma vez que estes direitos fundamentais são importantes para a formação da vontade do Estado. Na apreciação da possibilidade de renúncia a um direito fundamental por parte de um cidadão podem ser tomados em consideração aspectos como a gravidade e a duração da ingerência, o perigo de abuso da renúncia ou ainda a existência de uma eventual coacção ou engano do renunciante. Por outro lado, será necessário ter em consideração o facto de haver ou não possibilidade de livre revogação da renúncia (carácter provisório da renúncia) ou se a renúncia tem lugar de forma irreversível. Por exemplo, será admissível uma renúncia temporária e específica de recurso aos tribunais, mas já não em termos absolutos e definitivos. De igual modo, é admissível a detenção provisória (dita "de protecção" -por exemplo de um árbitro de futebol que é gravemente ameaçado). Também o paciente que se submete a um tratamento num hospital faz uma renúncia à sua integridade física, provisória, compreensível e fundada. Mas estes dois últimos pressupostos já não se verificam no caso do prisioneiro que aceita submeter-se a testes médicos sem estar enfermo. 18
Referindo-se à personalidade, ASCENSÃO, José de Oliveira, conclui que esta é irrenunciável, podendo apenas ser renunciado o exercício em concreto do direito de personalidade (in: Direito Civil. Teoria Geral. V. I. Introdução, as Pessoas, os Bens, Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p.79). Cfr. também CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Civilização do direito constitucional ou constitucionalização do direito civil? A eficácia dos direitos fundamentais na ordem jurídico-civil no contexto do direito pós-moderno. In: GRAU, Eros Roberto; GUERRA FILHO, Willis Santiago (Org.) Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 108-115.
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e) Finalmente, suscita-se a questão da titularidade de direitos fundamentais por parte de grupos de pessoas e de pessoas colectivas. Antes de mais, são titulares de direitos fundamentais, as pessoas físicas (a Constituição emprega expressões como: "qualquer pessoa", "todas as pessoas", "os cidadãos portugueses", "os homens e as mulheres", etc.). A questão que agora analisaremos consiste em saber até que ponto as pessoas singulares ou físicas continuam a ser titulares de direitos fundamentais quando integram grupos e organizações. Se as pessoas estão a exercer os seus direitos fundamentais em grupo (por exemplo, numa reunião ou manifestação pública) e forem atingidas por uma medida da autoridade (por exemplo, uma ordem de dispersão), podem, insurgir-se individualmente contra a decisão da autoridade. Neste caso suscita-se a questão de saber se o grupo, enquanto tat poderá impugnar a decisão, para o que será importante saber se foi violado um direito fundamental do grupo enquanto tal. A resposta a esta questão deve ser dada face ao caso concreto. Sempre que a natureza do direito não o impeça (quando o direito fundamental se ajuste, pela sua função, à pessoa colectiva em causa) também as pessoas colectivas ou os grupos de pessoas podem ser titulares de direitos fundamentais 19 • A questão da titularidade de direitos fundamentais pelas pessoas colectivas exige uma clarificação prévia do conceito de pessoa colectiva. A pessoa colectiva pode ser definida como o agrupamento de pessoas e/ ou de complexos patrimoniais aos quais a lei confere a possibilidade de serem titulares de direitos e obrigações. As pessoas colectivas são, pois, constituídas por grupos de pessoas e/ ou de complexos patrimoniais aos quais o direito (privado ou público - pessoas colectivas de direito privado ou de direito público) atribui personalidade e capacidade jurídicas. As pessoas colectivas também têm capacidade processual activa e passiva. São pessoas colectivas de direito privado, por exemplo, as associações de direito privado, as sociedades comerciais em gerat as fundações de direito privado. Por sua vez, são pessoas colectivas de direito público entes jurídicos como o Estado português, as regiões autónomas, as autarquias locais, as ordens profissionais (ordem dos médicos, ordem dos advogados, etc.), as universidades públicas, os hospitais públicos, etc .. Uma importante questão que se coloca em sede de titularidade de direitos fundamentais pelas pessoas colectivas (de direito privado) consiste em saber se elas são nacionais ou estrangeiras. À luz do direito actuat a resposta deve ser dada, em gerat com base no seu centro de actividade material (geralmente o lugar da "sede"), o qual não tem de coincidir com a sede estatutária da sua administração geral. Por força do direito da União Europeia, as pessoas colectivas que tenham sede noutro Estado-membro da UE são equiparadas às pessoas colectivas nacionais, sendo irrelevante para este efeito a nacionalidade dos seus membros associados. Por outro lado, os direitos fundamentais são aplicáveis tendo em considera19 Cfr.
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art. 0 12. 0 , n. 0 2, da CRP.
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ção a "natureza" 20 da pessoa colectiva. Esta exigência constitucional suscita algumas questões importantes. Em primeiro lugar, o direito fundamental pode assentar em características naturais do ser humano, que as pessoas colectivas não possuem. Mas, em contrapartida, o direito fundamental pode também assentar em características específicas de certas pessoas colectivas, sendo apenas aplicável a essas mesmas pessoas colectivas. Por exemplo, as pessoas colectivas não têm "dignidade humana", que é típica das pessoas singulares. Também não faz sentido falar em direito à saúde, à integridade física, à vida, etc. de pessoas colectivas. No entanto, as pessoas colectivas podem ser proprietárias e exercer actividades económicas. As pessoas colectivas também têm um direito geral à personalidade. Dentro de certos limites, os direitos ao nome, ao "bom-nome e reputação", à autodeterminação informacionat à livre expressão, etc. podem ser invocados pelas pessoas colectivas, sempre que a sua natureza a tal não se oponha 21 . Em segundo lugar, como regra geral, os direitos fundamentais não se aplicam a pessoas colectivas de direito público. Tem-se entendido que por detrás destas pessoas não estão pessoas físicas, mas o Estado. Os entes dotados de funções públicas (ou funções estaduais) podem ser entendidos como manifestações específicas do poder do Estado, que é único (art. 0 6. 0 da CRP- Estado unitário). Por isso, como regra gerat os entes públicos não podem ser simultaneamente obrigados e legitimados, isto é, a legitimação e a vinculação jurídico-fundamental não se devem confundir na mesma pessoa. Em qualquer caso, deve ser reconhecido um substrato pessoal nas pessoas colectivas de direito público quando defendem direitos fundamentais num domínio em que são autónomas em relação ao Estado. É o que ocorre, por exemplo, nas universidades públicas e respectivas Faculdades, as quais se podem apoiar na liberdade de investigação científica. O mesmo se diga dos entes públicos de rádio e televisão, que se podem apoiar na liberdade de informação e no sigilo das telecomunicações que a elas está funcionalmente associado. Também as comunidades religiosas são titulares de direitos fundamentais, dadas as suas características especiais face aos demais entes de direito público 22 • Por conseguinte, em princípio, deve ser recusada a titularidade de direitos fundamentais às pessoas colectivas de direito público, dado nelas faltar geralmente um substrato pessoal. No entanto, há excepções. Em certos casos, as pes20
Nos termos do 11. 0 2 do art.o 12. 0 da CRP, "as pessoas colectivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza". 21 A Constituição assegura, no seu art. 0 37. 0 , n. 0 4, a todas as pessoas, singulares ou colectivas, "em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de rectificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos." Cfr. também os art. s 38. e 39. daCRP. 22 Nos termos do n. 4, do art. 41. da CRP, "as igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto." 0
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soas colectivas de direito público não se confinam ao "poder público unitário" do Estado. Por exemplo, as empresas públicas de radiodifusão são, por um lado, titulares de direitos fundamentais e, por outro lado, estão vinculadas a deveres fundamentais face aos cidadãos. Na apreciação da capacidade jurídico-fundamental das pessoas colectivas de direito público, importa ter presente que, enquanto as pessoas colectivas de direito civil se constituem, subsistem e se extinguem livremente, isto é, por decisão própria das pessoas singulares integrantes da pessoa colectiva, já as pessoas colectivas de direito público dependem, para a sua existência, de decisões do Estado (em sentido amplo). Um ente público estadual (com excepção do próprio Estado) surge, pois, por acto do Estado (poder público), existe por vontade doEstado, actua no âmbito das funções conferidas pelo Estado e pode ser a qualquer momento modificado ou extinto pelo Estado. O âmbito jurídico-fundamental das pessoas colectivas públicas tem de se reportar às funções que lhes foram confiadas. Assim, a actuação das pessoas colectivas públicas tem de se situar no âmbito de protecção do direito fundamental que esteja em causa (por exemplo, liberdade de informação). Essa actuação deve integrar as relações jurídicas externas darespectiva pessoa colectiva. Por outro lado, a pessoa colectiva pública apresenta-se face ao Estado como um ente dotado de autonomia jurídica, portanto fora da organização (em sentido restrito) do Estado. Por exemplo, uma associação de estudantes é um ente autónomo face ao Estado, sendo titular de direitos fundamentais inerentes à actividade para que foi constituída. O mesmo se diga das tomadas de posição das ordens profissionais e dos municípios sobre assuntos da sua administração autónoma. Também uma autarquia pode invocar o seu direito fundamental à propriedade para efeitos da protecção desta.
2. A questão da subordinação aos direitos fundamentais a) Os direitos fundamentais são directamente aplicáveis e vinculam "as entidades públicas e privadas" 23 , isto é, antes de mais o legislador, o executivo e os tribunais. No passado, chegou-se a sustentar que os direitos fundamentais apenas vinculavam a Administração Pública e os tribunais, mas não o legislador 24 • 23
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Nos termos do n. 0 1, do art. 0 18.0 da CRP, "os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas." Foi este, por exemplo, o regime da Constituição Imperial de Weimar. Este regime jurídico-constitucional alemão caracterizou-se também pelo facto de considerar diversos direitos fundamentais como meros princípios programáticos, portanto não vinculativos, cuja violação não era sancionada jurídica ou jurisdicionalmente. À luz do moderno Estado de direito democrático e social, consagrado na CRP, os direitos fundamentais, qualquer deles, não podem ser reduzido, a mero princípio programático e a sua violação pode e deve ser sancionada.
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Porém, este entendimento está hoje ultrapassado. b) O princípio da aplicabilidade directa dos direitos fundamentais vincula o Estado, nos seus poderes legislativo, executivo e judicial. A subordinação dos poderes legislativo e judicial aos direitos fundamentais e ao princípio da aplicabilidade directa não suscita problemas de maior. Mas o mesmo já não se pode dizer da vinculação do poder executivo aos direitos fundamentais. A questão suscita-se essencialmente no plano da delimitação no caso concreto, dado o facto de o poder executivo se caracterizar por uma grande variedade de funções e de formas de organização e de actuação. Estes problemas suscitam-se, por exemplo, a propósito de certos actos que interferem claramente no direito fundamental do cidadão (como por exemplo a recusa de emissão de um certificado de habilitações) quando praticados por órgãos da Administração pública (universidades, hospitais e escolas públicas, serviços municipalizados, etc.). O problema coloca-se de forma especial relativamente a actos idênticos provenientes de entes privados, como empresas privadas de recolha de resíduos sólidos urbanos, hospitais privados, escolas e universidades privadas. O mesmo problema suscita-se também quanto à questão de saber se o ente público se mantém vinculado aos direitos fundamentais naqueles casos em que, se estivesse no seu lugar um ente privado, essa vinculação não se verificaria. Será o caso, por exemplo, de empresas públicas (ou de capitais públicos) que desenvolvem actividades empresariais (TAP, CP, etc.), questionando-se também se essa vinculação se mantém no contrato de adjudicação de obras públicas a empresas privadas. Para responder a estas questões, importa ter presente que da Administração pública também fazem parte as empresas concessionárias (cfr. art. 0 2. 0 do CPA). Se a Administração está vinculada aos direitos fundamentais quando prossegue as suas funções directamente, também o deverá estar quando as funções são prosseguidas de forma indirecta, portanto através dos concessionários, pois estes exercem poderes de autoridade no exercício da sua concessão. Isto aplica-se também a situações que não são formalmente de concessão, mas em que o ente privado exerce estatutariamente certos poderes de autoridade, como é o caso de hospitais privados ou de escolas e universidades privadas (por exemplo, emissão de certificados e diplomas). Por outro lado, para responder às questões acima suscitadas não é decisivo atender às formas de organização e de actuação da Administração, uma vez que esta está vinculada aos direitos fundamentais em termos amplos e incondicionais. Mas devem ser adoptadas determinadas cautelas no caso de a Administração actuar sob formas de direito privado ("Administração pública actuando segundo o direito privado"). Isto pode ocorrer em três situações: a) quando são prosseguidas, através de contratos de direito privado, funções auxiliares da Administração, tais como o aprovisionamento dos bens materiais necessários ao bom funcionamento da Administração (por exemplo, material informático e de escritório em geral, compra e manutenção de viaturas e de edifícios da Adminis-
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tração); b) quando são prosseguidas actividades económicas da Administração, como por exemplo actividades empresariais, no todo ou em parte (por exemplo, participação em empresas privadas); c) quando são prosseguidas funções tipicamente administrativas 25 • Em geral, não se põe em causa que os direitos fundamentais devem ser respeitados quando são prosseguidas funções tipicamente administrativas no âmbito do direito privado da Administração (al. c)). Mais questionável é a vinculação aos direitos fundamentais no caso das al.s a) e b). No caso da al. b), a vinculação aos direitos fundamentais é frequentemente negada, sustentando-se que a Administração pública deve poder celebrar contratos com privados sem estar vinculada aos direitos fundamentais. No entanto, este entendimento não deixa de ser altamente questionável, sobretudo se a empresa de direito privado for possuída na sua totalidade por um ente de poder público. Se a participação for meramente parcial, o ente público está vinculado a exercer a sua influência jurídica de modo a não serem violados direitos fundamentais pela empresa de direito privado. Por outro lado, no caso da al. a), se um ente público adquirir, no domínio das suas funções auxiliares privadas, material de escritório dando preferência, sem uma razão objectiva justificativa, a determinados fornecedores, violará a sua vinculação aos direitos fundamentais. c) Segundo o entendimento clássico, a vinculação aos direitos fundamentais verifica-se tipicamente na relação Estado-particular, com excepção (parcial) do caso pontual da relação concessionário-particular. Por outro lado, como já foi salientado, os direitos fundamentais tanto vinculam as entidades públicas como as entidades privadas (art. 0 18.0 , n. 0 1, da CRP). Daqui resulta que a vinculação aos direitos fundamentais também se pode aplicar na relação particular-particular, verificando-se, pois, um "efeito imediato para terceiros" dos direitos fundamentais. Na verdade, alguns direitos fundamentais não se limitam a garantir uma liberdade contra o Estado, mas são verdadeiros princípios de ordenação da vida em sociedade, com relevância directa para as relações jurídicas privadas dos cidadãos entre si. Neste sentido aponta, aliás, também a declaração formal da Constituição portuguesa a favor do Estado de direito democrático e social (art. 0 2. 0 da CRP). Esta declaração solene da Constituição não pode deixar de ser tomada em consideração na interpretação e aplicação dos direitos fundamentais. No entanto, podem ser feitas algumas objecções ao efeito directo para terceiros dos direitos fundamentais. Como já foi referido, a teoria clássica confinou os direitos fundamentais à relação Estado-particular. Os direitos fundamentais funcionavam então como 25
O chamado direito privado da Administração, como por exemplo prestações de assistência, de subvenção, etc., em que a Administração pública pode escolher - no que respeita à forma de organização da instituição e à conformação das relações de prestação e de utilização- entre actuar segundo o direito público ou segundo o direito privado
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meros limites ao poder do Estado. Era o sistema de direitos fundamentais como direitos de defesa do particular contra o Estado (na sequência de uma conquista dos cidadãos face ao Estado). Nos nossos dias, porém, alguns direitos fundamentais (ou direitos equiparados aos direitos fundamentais) aplicam-se expressamente a privados ou a relações de direito privado (em certos casos a CRP refere-se a acordos privados, direito de resistência contra privados, direito de voto dos cidadãos). Mas também não podemos sustentar nos nossos dias uma vinculação aos direitos fundamentais de todos os cidadãos contra todos os cidadãos. Um tal entendimento inverteria o sentido e o fim dos direitos fundamentais e teria por consequência que os direitos fundamentais contra o poder público (o Estado) se transformariam automaticamente em obrigações face a todos os cidadãos. Daqui resultaria inevitavelmente uma ampla limitação da liberdade individual. São dois os principais argumentos a favor de um efeito directo para terceiros dos direitos fundamentais: a) a sociedade humana assenta em direitos humanos, tendo o Estado evoluído de liberal para social; b) as ameaças às liberdades não provêm apenas do Estado (em sentido amplo), mas também de forças sociais, de empresas, de ordens profissionais, de sindicatos, de associações patronais, etc .. Estes argumentos revelam sobretudo que os direitos fundamentais são importantes na relação dos cidadãos entre si. Por isso, os direitos fundamentais devem ser devidamente tomados em consideração na apreciação jurídica das relações entre cidadãos. Mas isto não é ainda suficiente para se reconhecer aos direitos fundamentais um efeito directo para terceiros. Na verdade, os conflitos entre entes de direito privado são dirimidos pelos tribunais ordinários. Estes são órgãos do Estado e como tal estão directamente subordinados aos direitos fundamentais. Os tribunais integram o Estado e, assim, o poder público. Deste modo, em caso de recurso para os tribunais ordinários, as partes podem invocar a aplicação dos direitos fundamentais pertinentes. Nas suas sentenças, os tribunais exercem poder público. No fundo, toda a obrigação de direito privado baseia-se, em última instância, no poder jurídico-público do Estado. No entanto, a apreciação destas questões exige alguns esclarecimentos prévios: Antes de mais, todas as leis, de direito privado ou de direito público, têm de ser compatíveis com os direitos fundamentais. As normas dispositivas (aquelas que deixam aos destinatários a liberdade de disporem de maneira diversa da prevista pela norma), não constituem ingerência na liberdade jurídico-fundamentaF6. Mas o mesmo já não acontece com as normas preceptivas (que obrigam a uma determinada conduta), em que se verifica ingerência. Por exemplo, uma norma da lei de adopção pode violar o direito dos pais biológicos. Em segundo lugar, o juiz exerce, na sua actividade jurisdicionat o poder de autoridade do Estado face às partes. Por isso, o juiz está vinculado aos direitos 26
Em geral, sobre os conceito de ingerência nos direitos fundamentais, cfr. BETHGE, H.: <<Der Grundrechtseingriff>>, in: VVDStRL 57, 1998, 7; ECKHOFF, R.: Der Grundrechtseingriff 1992
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fundamentais. Ele deve conformar o processo no respeito pelas exigências do Estado de direito. Neste âmbito, o juiz está desde logo vinculado aos direitos fundamentais processuais (acesso à justiça, etc.). Esta vinculação verifica-se em todas as jurisdições e não apenas na jurisdição ordinária. Porém, nas jurisdições de direito público (jurisdição penal, jurisdição administrativa, jurisdição tributária) não se coloca a questão da delimitação entre exigências processuais e critérios de decisão material, uma vez que nestas jurisdições a decisão do tribunal assenta em critérios de direito público. Nestes casos, a vinculação aos direitos fundamentais é inequívoca. Por outro lado, relativamente às leis de direito privado que regulam as relações entre privados, devemos fazer uma distinção entre normas especiais e certas cláusulas gerais (como: "legal", "ilegal", "contrário aos bons costumes"). Se estiverem em causa normas especiais, apenas se suscita, geralmente, a questão da sua constitucionalidade ou inconstitucionalidade. Mas se estiverem em causa cláusulas gerais será muitas vezes relevante a questão da interpretação conforme ou não conforme aos direitos fundamentais. Do exposto extraímos as seguintes conclusões: l.a- O direito privado é fortemente marcado pelos direitos fundamentais. Formulado de outro modo: os direitos fundamentais contêm um sistema de valores que influencia decisivamente o direito privado. Desde logo, as normas do direito privado não podem ir contra o sistema de valores dos direitos fundamentais. Antes, devem ser interpretadas de acordo com o sistema de valores dos direitos fundamentais. Assim, o facto de os direitos fundamentais não dirimirem litígios concretos de direito privado não impede que eles influenciem de forma marcante, mesmo decisiva, as normas do direito privado. É sobretudo através das cláusulas gerais que os direitos fundamentais projectam os seus efeitos sobre o direito privado. Por isso, podemos dizer que as cláusulas gerais são vias de penetração dos direitos fundamentais no direito privado. Por exemplo, um trabalhador que possui uma relação laboral de direito privado pode invocar a objecção de consciência para se recusar a realizar uma tarefa que violaria, no seu espírito, um seu direito fundamental (por exemplo, colaborar no fabrico de uma bomba nuclear ou de uma arma química). 2." - A segunda conclusão a extrair é a de que o efeito directo dos direitos fundamentais para terceiros é muito importante, uma vez que contribui para a salvaguarda da igualdade e da liberdade dos cidadãos. O Estado de direito não se satisfaz com meras declarações formais. Antes, exige a efectividade dos direitos fundamentais, desde logo no plano da igualdade de oportunidades para o exercício dos direitos e liberdades. O Estado é o garante desta efectividade, o que é particularmente importante numa sociedade em que uma minoria detém o poder (económico e político). Os direitos fundamentais asseguram o exercício dos direitos e liberdades. Isto não obsta a que o legislador possa conformar diferenciadamente as relações sociais, nos limites da Constituição, com vista a assegurar uma igualdade efectiva de oportunidades para o exercício dos direitos e liberda-
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des. O legislador pode ponderar de modo diverso os interesses de agricultores, comerciantes, polícias, professores, etc., tendo em consideração as especificidades de cada grupo profissional. Esta ponderação diversificada do legislador deve ser respeitada pelo intérprete e aplicador da lei, portanto pela Administração e pelos tribunais. Na falta de regime diversificado da lei, a igualdade efectiva ou material deve ser igualmente assegurada por força da exigência da igualdade de oportunidades decorrente dos direitos fundamentais. Por exemplo, uma grande empresa não pode aproveitar-se do seu poder económico para impor restrições à liberdade de uma pequena empresa concorrente, nomeadamente exercendo qualquer tipo de pressão nos clientes para que não consumam os produtos da pequena empresa. Da dimensão jurídico-objectiva dos direitos fundamentais resulta, pois, um efeito indirecto para terceiros, que lhes assegura uma igualdade de oportunidades. Por conseguinte, os direitos fundamentais exercem influência sobre as normas do direito privado, a qual não pode deixar de ser tomada em devida conta por parte de quem interpreta e aplica a lei. Por um lado, quando aplica as normas de direito privado o tribunal ordinário não pode violar o direito constitucional objectivo, desrespeitando o conteúdo da norma jurídico-fundamental enquanto norma objectiva. Por outro lado, enquanto ente do poder público, o tribunal também não pode violar o direito fundamentat desde logo porque o cidadão tem direito a que também o tribunal respeite o direito fundamental. d) A subordinação aos direitos fundamentais não é uma questão meramente nacionat mas projecta-se no plano internacional. Antes de mais, a Constituição da República Portuguesa declara a adesão do Estado português aos direitos fundamentais (art. 2. Por outro lado, os direitos fundamentais consagrados na Constituição "não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional". Também podemos afirmar que os tribunais portugueses não podem aplicar na ordem interna portuguesa normas de direito internacional público que violem os direitos fundamentais consagrados na Constituição. Em segundo lugar, Portugal está vinculado aos direitos fundamentais consagrados na Constituição portuguesa, não só em todo o território nacionat como em toda a parte onde o poder público português é exercido (por exemplo nas embaixadas de Portugal no estrangeiro). E, enquanto membro da comunidade internacionat Portugal vinculou-se a direitos fundamentais constantes de convenções internacionais, que tem de respeitar, e aos quais é reconhecida categoria constitucional (dr. art. 0 16. 0 da CRP). Por exemplo, as embaixadas portuguesas no estrangeiro devem respeitar não só os direitos fundamentais tal como estão consagrados na CRP, como também, por força da vinculação internacional de Portugat os direitos humanos em gerat nos termos em que são reconhecidos pelo direito internacional público que vincula o Estado português. Esta vinculação verifica-se também aquando do exercício do poder público no interior de 0
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navios e aeronaves que arvoram pavilhão português. Em terceiro lugar, no caso específico da UE, temos que distinguir dois aspectos importantes: Por um lado, o direito da União Europeia prima face ao direito português, mesmo em matéria de direitos fundamentais. Os representantes portugueses devem respeitar os direitos fundamentais quando participam na criação e alteração dos tratados fundamentais da União Europeia (o chamado direito comunitário primário). Por outro lado, o representante de Portugal no Conselho de Ministros da UE, que é simultaneamente titular do poder público português e titular de um órgão da UE, está vinculado aos direitos fundamentais, tal como são reconhecidos na União, quando participa na criação de direito comunitário secundário. Não se registam entre a ordem jurídica da União Europeia e a ordem jurídica portuguesa diferenças significativas quanto à concepção, ao conteúdo e aos efeitos dos direitos fundamentais. Assim, o Tribunal Constitucional português não tem de se preocupar em controlar o direito comunitário secundário, que está a cargo do Tribunal da União. A relação entre o Tribunal Constitucional português e o Tribunal da União Europeia em matéria de controlo jurisdicional dos direitos fundamentais é sobretudo uma relação de cooperação e não de concurso. Em última análise, a protecção dos direitos fundamentais na UE está a cargo do TUE. O Tribunal Constitucional português restringe-se ao controlo do standard jurídico-fundamental inalienável constante da Constituição portuguesa (que coincide, em geral, com o standard jurídico-fundamental vigente na UE). Por outro lado, na transposição para a ordem interna portuguesa de actos normativos comunitários e na sua execução concreta é exercido o poder público português. O Estado português deve cumprir a sua obrigação jurídico-comunitária de transpor para a sua ordem jurídica interna portuguesa certos diplomas e proceder à respectiva execução. Esta obrigação de transposição e de execução não pode ser, directa ou indirectamente, iludida, devendo-se respeitar neste processo os padrões jurídico-fundamentais comunitários. Nesta operação, o direito da União Europeia determina a actuação do Estado português. Tratando-se da transposição de directivas, esta determinação pode não existir ou ser flexível, com maior margem de manobra para as autoridades portuguesas. A flexibilidade na transposição e aplicação de normas comunitárias pode também ser expressamente atribuída pelo direito comunitário aos Estados-membros. Neste caso, a vinculação aos direitos fundamentais da Constituição portuguesa não sofre quaisquer limitações. e) Suscita-se agora a questão de saber se fará algum sentido falar de deveres fundamentais, por oposição aos direitos ftmdamentais. Esta pergunta é sugerida pelo facto de, geralmente, a um direito de alguém corresponder um dever de outrem. Coloca-se então a questão de saber se aos direitos fundamentais de um cidadão correspondem deveres fundamentais do Estado e, verificando-se efeito para terceiro(s), deste(s). Esta questão pode colocar-se no plano teórico, mas a verdade
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é que ela não traz nada de novo na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais. Por esta razão, não insistiremos nesta abordagem. Outro aspecto, mais relevante, é constituído pelo facto de a Constituição fazer acompanhar, em diferentes situações, os direitos fundamentais de determinados deveres. É o caso, por exemplo, do direito e dever dos pais à assistência e educação dos filhos. Na verdade, o poder paternal pode ser limitado pelo Estado, que regula o poder paternal e controla o seu exercício. O mesmo se diga dos direitos-deveres do professor, do médico, do jornalista, do funcionário público em geral, do proprietário, do industrial, do comerciante, etc .. Outros deveres fundamentais são, por exemplo, os de pagar impostos, de efectuar serviço militar e de frequentar a escolaridade obrigatória. Estes direitos e deveres estão sujeitos a uma conformação do legislador, sem a qual não produzem, muitas vezes, efeitos jurídicos no caso concreto. No entanto, cumpre assinalar que estes deveres, ainda que deveres fundamentais, não se situam ao mesmo nível dos direitos fundamentais. Antes, constituem os seus limites. Nesta medida, os deveres fundamentais assemelham-se a quaisquer outros deveres impostos por lei. Questão diferente é a de saber se existirá um dever jurídico-fundamental imposto em geral às autoridades e aos cidadãos de cumprimento dos seus deveres. Teoricamente esta duplicação dos deveres pode ser admitida, mas na prática ela não contribui significativamente para o aperfeiçoamento do regime dos deveres fundamentais.
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A RACIONALIDADE JUDICIÁRIA PARA ALÉM DA LEGITIMAÇÃO ESTATAL: UM OUTRO TEMPO E UM OUTRO RITO PARA O TRATAMENTO DO CONFLIT01 Fabiana Marion Spengler2 Eduardo Henrique Wartschow3
O presente texto é resultado do trabalho de pesquisa e extensão no projeto intitulado "A crise da jurisdição e a cultura da paz: a mediação como meio democrático, autónomo e consensuado de tratar dos conflitos", cuja coordenação é da primeira autora. 2 Doutora em Direito pelo programa de Pós-Graduação strícto sensu da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS - RS, mestre em Desenvolvimento Regional, com concentração na área Político Institucional da Universidade de Santa Cruz do Sul UNISC - RS, docente dos cursos de Graduação e Pós Graduação lato e strícto sensu da última instituição, advogada. Coordenadora do Grupo de Pesquisas "Políticas Públicas no tratamento dos conflitos", vinculado ao CNPq, do projeto de pesquisa "Mediação para uma justiça rápida e eficaz" financiado pelo CNPQ e pela FAPERGS e do projeto de extensão supra referido. Endereço eletrónico: fabianaspengler@viavale.com.br ou fabiana@unisc.br 3 Acadêmico do 10° semestre do Curso de Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC - RS. Integrante do Grupo de Pesquisas "Políticas Públicas no tratamento dos conflitos", vinculado ao CNPq e bolsista no Projeto de Extensão intitulado "A crise da jurisdição e a cultura da paz: a mediação como meio democrático, autónomo e consensuado de tratar dos conflitos", ambos sob a coordenação da Prof. a Doutora Fabiana Marion Spengler. Endereço eletrónico: eduardo_war@yahoo.com.br 1
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Resumo: O presente artigo apresenta como escopo principal arrazoar, no primeiro momento, acerca do papel do sistema Judiciário como meio validado na punição de condutas racionalizando, desta forma, a violência. Tal análise ocorrerá por meio das intersecções entre direito e literatura, abordando o texto "As Vespas" de Aristófanes, diferenciando-se a temporalidade da mediação e a temporalidade processual bem como a investigação de seus "ritos" na busca por respostas para as dificuldades atuais de aceitabilidade de um outro paradigma no tratamento dos conflitos baseado na autonomia e o consenso. Palavras-chave: jurisdição, literatura, alternativa, mediação, consenso. Title: The Rational Judicary Process beyond the State's Legitimate System: another "Time" and another "Ritual" to the Treatment of the Conftict Abstract: This article presents initially as its main target an explanation of the role of the judiciary system as a valid way of punishing violent behavior, hence rationalizing violence. The analysis occurs through the intersection of law and literature, broaching the text "As Vespas" by Aristófanes, differentiating the timing of mediation and the procedural timing as the investigation of its "rituais" in the search for answers to the actual difficulties of accepting another paradigm in the treatment of conflicts based in the autonomy and the consensus. Keywords: jurisdiction, literature, alternative, mediation, consensus.
Sumário 1. Notas introdutórias; 2. O monopólio estatal da força e a "vingança racionali-
zada": o Judiciário como instância legitimada a tratar conflitos; 3. A legitimidade atribuída ao Juiz no tratamento de conflitos e a difícil mudança de paradigmas; 4. Mediação e jurisdição: um outro "tempo" e um outro "rito" para o conflito; 5. Referências.
1. Notas introdutórias
Nunca se discutiu tanto acerca das crises da jurisdição como hodiernamente. Embora haja consenso de que as instituições monopolizadoras da prestação jurisdicional encontram-se incapazes de lidar e oferecer respostas quantitativas e, principalmente, qualitativamente satisfatórias aos anseios dos jurisdicionais, não há consenso no que concernem as causas e soluções que resultam na ineficiência estatal em um dos seus papéis mais importantes: jurisdicionar. Vivenciando a cada dia uma sociedade mais pluralista em suas concepções,
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em seus ideais e valores, é impossível imaginarmos a estagnação e a inocorrência de conflitos na esfera sociat profissional ou familiar. Contudo, a vida em comunidade exige, normalmente, a harmonia e a ordenação dos a tos dos indivíduos que a compõe, a fim de que se respeitem as liberdades individuais. Nesse sentido, reconhecendo as dificuldades do Judiciário de responder de forma adequada a todos os conflitos sociais percebe-se o fomento de outras estratégias para tratá-los tais como a conciliação, a mediação e a arbitragem. Porém, essas outras possibilidades são alvo de preconceito e muitas vezes até mesmo de descrença por parte dos juristas cuja concepção de justiça ainda encontra-se atrelada à figura do magistrado como ser legitimado a dizer a quem pertence o direito, quem ganha e quem perde o processo, quem tem razão. Assim, o presente texto tem por objetivos: a) primeiramente discutir o papel do sistema Judiciário como meio legitimado a punir condutas racionalizando a violência; b) posteriormente os contornos da função de decidir atribuída aos magistrados será investigada. Tal ocorrerá utilizando-se das intersecções entre direito e literatura\ abordando o texto "As Vespas 5 n de Aristófanes; c) por fim, a diferenciação entre a temporalidade da mediação e a temporalidade processual bem como seus "ritosn serão investigados na busca por respostas para as dificuldades atuais de aceitabilidade de um outro paradigma no tratamento dos conflitos baseado na autonomia e o consenso. É esse, pois, o texto que se apresenta.
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As relações entre direito e literatura têm sido alvo de inúmeras (e férteis!) discussões. Isso se dá pelo fato de que o direito, tal como toda e qualquer experiência humana, também é "contado/narrado". A narrativa literária pode ser a mola propulsora de proveitosos debates para fins de questionar e afirmar (ou não!) os fundamentos da justiça, do direito, dos princípios jurídicos, do processo, de seu tempo e de seus ritos. Nessa perspectiva, inumeráveis obras podem ser (re)lidas com olhos transdisciplinares que busquem fundamentos na psicanálise, no direito e na literatura para fins ampliar sua compreensão sobre os homens e a justiça humana. Sobre o assunto é importante a leitura de OST, François. Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico. Tradução de Paulo Neves. São Leopoldo: UNISINOS, 2004; BRUNER, Jerome. La fabbrica delle storie. Diritto, letteratura, vita. Roma-Bari: Laterza & Figli Spa, 2002; RESTA, Eligio. Códigos narrativos. In: TRINDADE, André Karan. GUBERT, Roberta magalhães. COPETTI NETO, Alfredo. (org.) Direito e Literatura. Ensaios Críticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008; RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Campinas: Papirus, 1997. t. 3; SANSONE, Arianna. Diritto e letteratura. Un'introduzione generale. Milano: Giuffre, 2001. 5 Aristófanes. C. 455-c.375 a.C. As vespas, as aves, as rãs; tradução do grego, introdução do grego e notas de Mário da Gama Kury. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p. 07-08.
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2. O monopólio estatal da força e a "vingança racionalizada": o Judiciário como instância legitimada a tratar conflitos
Com o intuito de manter a pacificação social, o Estado toma para si o monopólio da violência legítima, alçando-se no direito de decidir litígios e chamando à possibilidade de aplacar a violência através de um sistema diverso do religioso e do sacrificial 6, denominado Sistema Judiciário. Este último se diferencia dos primeiros porque não é ao culpado que se voltam os olhos, mas à vítima não vingada, sendo preciso dar a ela uma satisfação meticulosamente calculada, que apagará os seus desejos de vingança sem acendê-los novamente. Não se trata de legislar a propósito do bem ou do mal, não se trata de fazer respeitar uma justiça abstrata, se trata de preservar a segurança do grupo afastando a vingança, de preferência com uma reconciliação baseada na composição ou em qualquer outra que resulte possível, mediante um encontro predisposto de modo tal que a violência não volte a ocorrer. Tal encontro se desenvolverá em campo fechado, de forma regulada entre adversários bem determinados 7 • Para que se entenda melhor esse processo, é importante distinguir entre situação polémica e estado agonal. A primeira é refletida na violência aberta e direta. É uma situação conflitiva ou que corre o risco de chegar a sê-lo, pouco importando o grau de violência. A característica essencial da situação polémica é que os opositores se enfrentam como inimigos8, o que quer dizer que se dão, mutuamente, o direito de se suprimir fisicamente. Já o estado agonal consiste naquela situação que logrou desativar os conflitos e substituí-los por outra forma de rivalidade, conhecida pelo nome de competição, de competência ou de concurso. Nestes termos, se assimila ao jogo. A característica essencial é que os rivais
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Sobre o assunto, é de grande importância a obra de Rene Girard, na qual ele demonstra como o sacrifício possibilitava o distanciamento da violência, interpretando-o como violência substitutiva, reconhecendo em seu âmago uma verdadeira operação de transferência coletiva que se efetua às expensas da vítima e que investe as tensões internas, os rancores, a rivalidade, todas as agressões no seio da comunidade (GIRARD, Rene. La violenza e il sacro. Traduzione di Ottavio Fatica e Eva Czerkl. Milano: Adelphi, 2005). 7 GIRARD, Rene. La violenza e il sacro. Traduzione di Ottavio Fatica e Eva Czerkl. Milano: Adelphi, 2005. p. 39. 8 Eligio Resta define "inimigo" como aquele "che indica uno stato di inimicizia, diversa dal non essere amico, che si colloca, o e collocato fuori non si sa da cosa, ma sempre all' esterno di un interno: da un gruppo, da una comunità, da uno Stato, da una nazione. Egli e sempre fuori da qualcosa che blinda i suoi confini piu o meno immaginari giustificandoli con qualche cogente necessità imposta da una geografia, da una politica o da una cultura, se non da un semplice stato d'animo. Il nernico quando viene identificato, serve persino a rafforzare i confini di un inside, di un territorio qualsiasi e di qualsiasi natura che conserverà sempre la caratteristica di un Nomos der Erde segnato dall'appropriazione di una terra (RESTA, Eligio. Il diritto fraterno. Roma-Bari: Laterza, 2005. p . 97).
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não se comportam como inimigos, e sim como adversários 9, o que quer dizer que de antemão a violência e a intenção hostil estão excluídas, ainda que permaneça a possibilidade de vencer ou de cair frente ao outro competidor 10 • No estado agonat os meios de jogar são definidos de antemão, sendo que ambos os competidores renunciam ao ataque da integridade física recíproca. Os meios de definir tais regras circulam desde o estabelecimento de instituições até a criação do Direito. Tais regras servem para impor condutas e proibições aos rivais, bem como determinar as condições de vitória. Em resumo, o estado agonal é o fundador de uma ordem reconhecida por todos, que não está na vontade discricionária do vencedor, como ocorre ao acabar um conflito violento. No entanto, a estabilidade do estado agonal é precária, podendo sofrer abalos. Na tentativa de manter a ordem a qualquer custo, muitas vezes se lança mão do uso abusivo da coerção, fazendo da mesma um instrumento de opressão. Nestes termos, o estado agonal objetiva a submissão da vida à regulamentação e ao Direito 11 • É conhecido como o "estado dos juízes", pois busca no procedimento judicial a solução de rivalidades e de divergências políticas. Contudo, as dúvidas nascem da incerteza de que a instauração do estado agonal seja sempre desejávet temendo que ele possa determinar um conservadorismo social ao impor regras de flexibilidade e plasticidade rígidas que não atendam à complexidade social na qual estão inseridas 12 • No momento em que o Sistema Judiciário (ou estado agonat como quer Freund) passa a reinar absoluto como único meio de impor regras de tratamento de conflitos, dissimula - e ao mesmo tempo revela - a mesma vingança avistada nos sacrifícios religiosos, diferenciando-se somente pelo fato de que a vingança judicial não será seguida de outra, rompendo, assim, a cadeia vingativa13 . Desse Giovanni Cosi diferencia adversário de inimigo salientando: L'avversario e infatti colui senza il quale, nel conflitto, io non esisto: solo dove lui e, anch'io posso veramente essere. Con lui ci si confronta. L' avversario mi permette infatti non solo di misurarmi con lui, ma anche con me stesso: mi fa scoprire i miei limiti le mie possibilità. L'avversario e come me: ha i miei stessi timore e le mie stesse speranze; imparando a conoscerlo, scoprendo la sua forza e le sue ragioni, i suoi punti deboli e le sue incongruenze, imparo a conoscere anche i miei. Percià gli devo rispetto. Il nemico e invece colui che mi impedisce di esistere: dove lui e, io non posso essere. Con lui si combatte; fino alla resa, o all'annientamento (COSI, Giovanni. Interessi, diritti, potere. Gestione dei conflitti e mediazione. ln: Ars Interpretandi. Padova: CEDAM, 2004. n. 9. p. 23). 1 °FREUND, Julien. Sociología dei confiicto. Traducción de Juan Guerrero Roiz de la Parra. Madrid: Ministerio de Defensa, Secretaría General Técnica. D. L., 1995. p. 66-76. 11 Il domínio, la repressione dei conflitti con la forza o con la minaccia del ricorso alla forza, e un grande male politico che ogni cittadino dovrebbe sentire come tale, anche se non condivide la posizione di altri cittadini che riconoscono a esso una particolare priorità rispetto ai grandi mali (HAMPSHIRE, Stuart. Non c'e giustizia senza conflitto. Democrazia come confronto di idee. Traduzione di Giovanna Bettini. Milano: Feltrinelli, 2000. p. 64). 12 Ibidem, p. 75-76. 13 Por isso, segundo Eligio Resta, é confiado ao mecanismo judiciário não o exercício da
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modo, o Poder Judiciário racionaliza a vingança, a subdivide e limita como melhor lhe parece e a manipula sem perigo; buscando uma técnica eficaz de prevenção da violência. Essa racionalização da vingança se apóia sobre a independência da autoridade judiciária que recebeu tal encargo, atribuição que ninguém discute. Assim, o Judiciário não depende de ninguém em particular, é um serviço de todos e todos se inclinam diante de suas decisões 14 . Somente ao Poder Judiciário se atribui o direito de punir a violência porque possui sobre ela um monopólio absoluto. Graças a esse monopólio, consegue sufocar a vingança, assim como exasperá-la, estendê-la, multiplicá-la. Nestes termos, o sistema sacrifical e o Judiciário possuem a mesma função, porém o segundo se mostra mais eficaz, desde que associado a um poder político forte. Todavia, ao delegar a tarefa de tratamento dos conflitos ao Poder Judiciário- num perfeito modelo hobbesiano de transferência de direitos e de prerrogativas - o cidadão ganha, de um lado, a tranqüilidade de deter a vingança e a violência privada/ ilegítima para se submeter à vingança e à violência legítima/ estatal, mas perde, por outro, a possibilidade de tratar seus conflitos de modo mais autónomo e não violento, através de outras estratégias. Por conseguinte, a sociedade atual permanece inerte enquanto suas contendas são decididas pelo juiz15• Da mesma forma, como o cidadão de outrora que esperava pelo Leviatã para que ele fizesse a guerra em busca da paz, resolvesse os litígios e trouxesse segurança ao encerrar a luta de todos contra todos, atualmente vemos o tratamento e a regulação dos litígios serem transferidos ao Judiciário, esquecidos de que o conflito é um mecanismo complexo que deriva da multiplicidade dos fatores, que nem sempre estão definidos na sua regulamentação; portanto, não é só normatividade e decisão16 . Unidos pelo conflito, os litigantes esperam por um terceiro que o "solucione". Espera-se pelo Judiciário para que diga quem tem mais direitos, mais razão ou quem é o vencedor da contenda. Trata-se de uma transferência de prerrogavirtude, mas a difícil tarefa de dizer a última palavra sobre os conflitos e, graças a isso, minimizar a violência, evitando o seu perpetuar. Depurada da retórica mais ou menos justificada, esta é a função que o sistema legal atribui ao juiz: interromper o conflito e decidir (RESTA, Eligio. Il diritto fraterno. Roma-Bari: Laterza, 2005. p. 38). 14 GIRARD, Rene. La violenza e il sacro. Traduzione di Ottavio Fatica e Eva Czerkl. Milano: Adelphi, 2005. p. 40-41. 15 La nostra cultura appartiene da tempo al gruppo di quelle che hanno deciso di delegare prevalentemente al diritto statale e ai suoi strumenti formali di decisione delle controversie la gestione dei conflitti sociali. Non importa se di civil o di common law, se accusatori o inquisitori, i nostri sistemi giuridici ci sembrano i soli capaci di garantire un livello accettabile di ordine e sicurezza, scongiurando al tempo stesso la necessità di ricorrere a interventi di controllo eccessivamente repressivi, se non addirittura totalitari (COSI, Giovanni. Interessi, diritti, potere. Gestione dei conflitti e mediazione. ln: Ars Interpretandi. Padova: Cedam, 2004. n . 9. p. 21). 16 RESTA, Eligio. Il diritto fraterno. Roma-Bari: Laterza, 2005. p. 74-75.
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tivas que, ao criar "muros normativos", engessa a solução da lide em prol da segurança, ignorando que a reinvenção cotidiana e a abertura de novos caminhos são inerentes a um tratamento democrático. Isso acontece porque se criou verdadeiro mito 17 em torno da figura do juiz18, sendo este a expressão e representação suprema da soberania estatal. Nalinil 9 observa com extrema propriedade o mito que se firmou em torno da carreira da judicatura e da figura do juiz asseverando ser impossível a humanidade viver sem mitos. Aduz que "o mito reflete uma conotação heróica. Auxilia na fantasia de superação das adversidades. Nítida a sua intimidade com a esperança". E conclui que "no mundo das incertezas e das vicissitudes, a figura do juiz representaria a última trincheira. Quando tudo o mais falhasse, haveria um juiz para permitir ao injustiçado repetir- Ainda há juízes em Be1·lim ... ". Efetivamente o desenvolvimento cultural da nossa sociedade nos levou a uma quase inércia em resolver nossos próprios problemas. Litigar passou a ser associado ao pleno exercício de cidadania de um povo, que se encontra acobertado e seguro pelo manto do Estado-juiz. Em razão disso, nasceu a idéia (o mito) de que o juiz dá conta de todos os problemas, que o Poder Judiciário encontra-se de portas abertas para o litígio de sorte que todos que demandarem encontrarão nele a resposta de seus anseios de justiça. 17
Sobre os mitos construídos em torno do mundo do direito e de seu "senso comum teórico" é importante a leitura de Luis Alberto Warat que assume a postura de "caçador de mitos" salientando que "o que sempre me motivou a caça é poder descobrir se havia entre os juristas a possibilidade de outra linguagem possível, que recuperasse a sexualidade perdida, que está na origem de toda linguagem; que pode regular as relações entre os homens fundamentadas no amor e não na coerção, recordando que a lei do desejo não está motivada pela coerção; que pode servir para recorrer aos caminhos da emancipação; que pode ser o habitatde uma intimidade não invadida. WARAT, Luiz Alberto. A tua grita Dionísio! Direitos Humanos da Alteridade, Surrealismo e cartografia. Tradução de Vivian Alves de Assis, Júlio César Marcelino e Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010, p. 67. 18 Egresso de uma formação jurídica tradicional, dogmática e arcaica, o bacharel conviveu com proclamações do tipo "o juiz é expressão da soberania estatal", "ordem judicial é para ser cumprida, não discutida", "o juiz pode tudo, até fazer preto do branco ou do quadrado, redondo" e outras semelhantes. Enunciados tais fazem da carreira de juiz um verdadeiro mito. Por que mito? "Entre todos os fenômenos da cultura humana, o mito é um dos mais refratários a uma análise meramente lógica". Explica-se: o mito sugere um puro caos, massa informe de idéias incoerentes e desafia as categorias fundamentais do pensamento. Mas na verdade: a humanidade vive sobre mitos. [... ]Numa palavra: o mito está profundamente arraigado na natureza humana e se baseia num instinto fundamental e irresistível, pois também sempre tem um fundamentum in re, sempre se refere a uma certa 'realidade'. (NALINI, José Renato. A rebelião da toga. Campinas: Millennium Editora, 2008. p. 97 e 98). 19 NALINI, José Renato. A rebelião da toga. Campinas: Millennium Editora, 2008. p 99.
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O fortalecimento desse mito encontra respaldo nos próprios cursos de Direito de todo o País que abordam como única forma (ou, pelo menos, como a forma mais legítima) de resolução de conflitos o processo judicial. Poucos se dedicam a estudar as formas ditas alternativas, evitando sempre enaltecer a composição e a pacificação do conflito. Nalíní explica que "a cada vez que alguém pretenda fazer valer um interesse, precisará recorrer ao Judiciário.( ... ) O profissional encarregado de reconstituir a ordem e afastar o dano é o juiz. Em torno disso produziu-se densa tonelagem de tratados" 20 • Essa transferência de responsabilidades quanto à gestão do conflito se direciona ao juiz que o traduz na linguagem dele 21 . Desse modo, partindo do processo de racionalização weberiana, o Estado, ao deter a forma de poder legal, detém, também, o monopólio legítimo da decisão vinculante. Assim, as atenções continuam centradas na figura do juiz, do qual se espera a última palavra, "não importa qual, mas a última". O lugar do juiz entre os conflitantes é uma questão complicada, uma vez que ele não se deixa encerrar na fácil fórmula da lei que assegura "distância de segurança" das razões de um e do outro. Ele vive no conflito e do conflito que ele decide, pronunciando a última palavra. Entretanto, um Sistema Judiciário chamado a decidir sobre tudo e com poderes muitas vezes discricionários e pouco controláveis, é o lugar que oculta quotas fortes de irresponsabilidade: consente álibis e cobre a aguda diferença entre aquilo que o sistema da jurisdição diz que é, e o que faz, e aquilo que na realidade é e faz 22 . Assim, observa-se uma oferta monopolista de justiça incorporada ao sistema da jurisdição, delegado a receber e a regular uma conflitualidade crescente. Atualmente, chamamos essa conflitualidade crescente de explosão da litigiosidade, que tem muitas causas, mas que nunca foi analisada de forma mais profunda. É notório como a estrutura jurídico-política foi sempre muito atenta aos "remédios" e quase nunca às causas, deixando de lado análises mais profundas sobre a litigiosidade crescente, que é constantemente "traduzida" na linguagem jurídica e que se dirige à jurisdição sob a forma irrefreável de procedimentos judiciáríos23 • 20
Idem, ibidem. p 99 Isso se dá, segundo Maurice Blanchot, porque o juiz tem o direito de ser único maítre du language. A expressão maítre du language é decisiva e densa, como pode ser aquela de um pensador como Maurice Blanchot, que trabalhou de maneira muito convincente sobre o poder da escrita e sobre a idéia de comunidade. A conexão entre linguagem e comunidade não é, obviamente, imprevista, mas encontrar ligações e mediações através do juiz abre caminhos insuspeitos por meio dos quais se descobre que a linguagem da comunidade não corresponde nunca à comunidade de linguagem (BLANCHOT, Maurice. Pour l'amitié. Paris: Fourbis, 1996). 22 RESTA, Eligio. Il diritto fraterno. Roma-Bari: Laterza, 2005. p. 65-66. 23 Dunque il compito del giudice, fuori da ogni retorica, e quello di assumere decisioni sulla base di decisioni e di permettere decisioni sulla base delle stesse decisioni. Paradossalmente, pero, in un sistema ad altíssima complessità, piu si decide e piu aumenta 21
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A explosão de litigiosidade se dá quanto à quantidade e à qualidade das lides que batem às portas do Poder Judiciário, especialmente observando a existência de uma cultura do conflito. Em face de tal fato, a direção da política do Direito deve ser no sentido de uma "jurisdição mínima", contra uma jurisdição ineficaz. Quando se litiga judicialmente, ao juiz pede-se que "decida", que diga a última palavra com base na lei, e não que desenvolva a tarefa de cimento social que compete a outros mais preparados fazer. Mas o resultado, sabe-se, é paradoxal: incorpora-se no interior das competências judiciárias cada gênero de linguagem "funcional", embocando, obviamente, em uma estrada errada. Os sintomas da inadequação de tais condições são percebidos de modo incisivo 24 • No entanto, por que não cabe ao Poder Judiciário "eliminar" e sim "decidir" conflitos sociais? O fato de que o Judiciário tem como "função fundamental" a decisão de conflitos não quer dizer que a sua função seja a eliminação de conflitos. Assim, o conflito social representa um antagonismo estrutural entre elementos de uma relação social que, embora antagónicos, são estruturalmente vinculados- aliás, o "vínculo" é condição sine qua non do conflito. Portanto, se os elementos não são estruturalmente ligados, também não podem ser conflituosos ou divergentes. Nesse contexto, as funções (competências) do Poder Judiciário fixam-se nos limites de sua capacidade para absorver e decidir conflitos, ultrapassando os próprios limites estruturais das relações sociais. Não compete ao Poder Judiciário eliminar vínculos existentes entre os elementos- ou unidades - da relação social, a ele caberá, mediante suas decisões, interpretar diversificadamente este vínculo; podendo, inclusive, dar-lhe uma nova dimensão jurídica (no sentido jurisprudencial), mas não lhe "compete" dissolvê-lo (no sentido de eliminá-lo), isto porque estaria suprimindo a sua própria fonte ou impedindo o seu meio ambiente de fornecer-lhe determinados inputs (demandas) 25 • Pormenorizando, é possível afirmar que a vida social gera as suas próprias relações. Se em qualquer uma destas relações sociais nascer um conflito e uma decisão sobre o mesmo for demandada ao Judiciário, este poderá dar uma sentença sobre aquele tipo especial de relação social. Por conseguinte, não é pelo fato do Judiciário decidir a respeito de divórcio ou separação, de uma ação de despejo ou homologar um dissídio coletivo entre patrões e empregados, que deixarão de existir vínculos familiares ou trabalhistas, convergentes ou divergentes 26 • il bisogno di decisione dato il carattere di rete interrelata dei sistemi di comunicazione (Ibidem, p. 40). 24 RESTA, Eligio. Il diritto fraterno. Roma-Bari: Laterza, 2005. p. 69. 25 BASTOS, Marco Aurélio Wander. Conflitos Sociais e Limites do Poder Judiciário. 2. ed. ver. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 103. 26 La pace assicurata dal diritto si dimostra spesso carente sia sul piano etico che su quello pratico dell'effetiva risoluzione del conflitto perché, come già si diceva, essa segue a una procedura che di fatto tende ad assimilare i contendenti piu alla figura del nemico che nona quella dell'avversario. La pacificazione giuridica non farebbe del resto che
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Conseqüentemente, o Judiciário funcionaliza (no sentido de que institucionaliza) ou processa conflitos sociais, mas suas decisões não eliminam relações sociais. Na verdade, ele decide sobre aquela relação social especificamente demandada, o que não impede, todavia, que outras tantas, com novas características, se manifestem ou que continue existindo a própria relação social enquanto relação social. O ato do Poder Judiciário interrompe apenas aquela relação conflitiva, mas não impede o desenvolvimento de outras tantas. Não cabe ao Judiciário eliminar o próprio manancial de conflitos sociais, mas sobre eles decidir, se lhe for demandado. Assim, ele funcionaliza os conflitos sociais, mas não a própria vida. O que se espera é que decida os conflitos que absorve, dados os graves riscos para a sua funcionalidade e para a própria sociedade27 •
3. A legitimidade atribuída ao Juiz no tratamento de conflitos e a difícil mudança de paradigmas Como destinatário e membro representativo desse Poder Judiciário, a quem todos os conflitos são transferidos no anseio e na espera de uma solução dada e imposta, encontra-se o juiz. Figura que recebe a legitimidade de uma sociedade - e do Estado- como representante dessa soberania jurisdicional, no qual recaem inúmeras proclamações e mitos culturais, sendo "transfigurado como ser diferenciado, autoridade incontrastável provida de todos os poderes, poupado ao risco de errar e revestido de tonalidade demiúrgicas" 28 • A figura juiz, envolto em todos esses mitos, já foi objeto de análise em uma obra intitulada As Vespas, peça teatral de autoria do grego Aristófanes estreada em 422 a.C. A obra é uma sátira produzida em volta do sistema judiciário grego da época e que identifica o desencanto com o modelo judiciário ateniense. Mário da Gama Kury, que traduziu a comédia para o português, resume o enredo da seguinte forma: "Filoclêon (que significa 'amigo de Clêon', orador, general, político controvertido, demagogo corrupto) é fanático pelas sessões do tribunal. Seu filho Bdeliclêon ('inimigo de Cléon') tenta curá-lo de sua mania judicatória e, como último recurso, segrega-o em sua própria casa. Os componentes do coro (velhos jurados como Filoclêon) chegam em frente à sua casa, fantasiados de vespas, antes do amanhecer para levá-lo com eles ao Tribunal, e o riflettere, nei metodi utilizzati e nei risultati persegui ti, il modo tipicamente competitivo d'intendere le relazioni sociali diffuso nelle moderne società tecnologicamente avanzate: no esistono altri esiti possibili di una disputa, oltre la vittoria/sconfitta e il compromesso (COSI, Giovanni. Interessi, diritti, potere. Gestione dei conflitti e mediazione. ln: Ars Interpretandi. Padova: CEDAM, n. 9. 2004. p. 26). 27 BASTOS, Marco Aurélio Wander. Conflitos Sociais e Limites do Poder Judiciário . 2. ed. ver. e atual. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2001. p. 104. 28 NALINI, José Renato. A rebelião da toga. Campinas: Millennium Editora, 2008. p 99.
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ajudam como podem em sua tentativa de escapar da 'prisão domiciliar' a que o filho o sujeita. Há uma escaramuça entre os jurados e os escravos de Bdeliclêon, seguindo-se uma discussão entre Filoclêon e Bdeliclêon quanto aos méritos e defeitos da instituição do júri, na qual Filoclêon a defende alegando os benefícios que obtém pessoalmente graças ao sistema. Rebatendo, Bdeliclêon demonstra que na realidade os jurados são meros instrumentos dos governantes, que desviam em benefício próprio o grosso da arrecadação destinada a alimentar o povo necessitado. O coro se deixa convencer e persuade Filoclêon a julgar somente os casos ocorrentes em seu próprio lar, começando pelo de Labes, o cão de guarda da casa, que furtou um queijo na despensa. Graças a um ardil do filho, Filoclêon é induzido sem perceber a absolver o criminoso, o primeiro réu que ele deixava em liberdade em toda sua longa vida de jurado. Bdeliclêon então resolve reeducar o pai para a vida social, e melhorar suas roupas e maneiras, passando a levá-lo a jantares. Os resultados são desastrosos, pois Filoclêon embriaga-se, insultando os demais convidados, pondo-se afinal à frente dos componentes do coro para dançar indecentemente"29 • Logo no início da comédia, em um diálogo entre dois personagens da peça, Sosias e Xantias, escravos de Filoclêon, há uma explicação sobre a "doença" que ataca Filoclêon. Diz Xantias:" (... ).Se vocês estão curiosos por saber, façam silêncio: vou dizer qual é mesmo a doença de meu senhor: é a paixão pelos tribunais. A paixão dele é julgar; ele fica desesperado se não consegue ocupar o primeiro banco dos juízes. A noite ele não goza um instante de sono. Se por acaso fecha os olhos, o próprio espírito fica olhando para a clepsidra. A paixão dele pelo voto no tribunal é tão grande que faz ele acordar apertando três de seus dedos, como se oferecesse incenso aos deuses, em dia de lua nova.( ... ) Logo depois do jantar ele pedia as sandálias, corria para o tribunal em plena noite e adormecia lá, colado a uma coluna como uma ostra à concha.( ... ) Com receio de não ter a pedrinha para o voto, ele tinha no jardim de sua casa um canteiro de pedrinhas, que renovava sem parar. Esta era a sua loucura." 30 A obra faz crítica aos juízes da época e a necessidade que tinham em querer julgar a qualquer preço. A ânsia era fruto do preço que recebiam pelo encargo, comprovando ser um rentável meio de vida para a época31 • Assim, o texto dá a 29
Aristófanes. C. 455-c.375 a.C. As vespas, as aves, as rãs; tradução do grego, introdução do grego e notas de Mário da Gama Kury. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p. 07-08. 30 Idem, ibidem, p. 17-18. 31 Várias passagens do livro contribuem para o enriquecimento da idéia satirizada por Aristófanes. A necessidade de julgar de Filoclêon é exteriorizada em várias passagens, dentre as quais se podem destacar: "Você bem merece; por mim, prefiro a vida que você quer que eu abandone, em vez da maior prosperidade. Um processinho recheado é um prato que me agradaria muito mais" (p. 36). "Que criatura é mais feliz, mais afortunada do que um juiz? Que vida é mais gostosa do que a dele? Que animal é mais temível, principalmente na velhice?" (p. 38).
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entender que julgar além de uma fonte de poder e de projeção social também era um meio de subsistência do qual os juízes da época tiravam o sustento. Com efeito, a sátira referia-se à um caso de juiz que não julgava, apenas condenava, independente da justiça que havia na condenação. Evidencia assim o julgar de modo mecânico, possuindo como resultado sempre a condenação, sem que houvesse análise de provas e fundamentação para as sentenças. Por conseguinte, julgar era a função e condenar a regra/resultado, sem que pudessem ocorrer variantes. Em várias passagens da peça é possível extrair o prazer pessoal de Filoclêon na condenação e sua obsessão com o tribunal e com o poder que lhe é legitimado na arte de julgar. Tais conclusões são facilmente perceptíveis em diálogos como: "Que é que vocês estão querendo fazer? Vocês não vão mesmo me deixar julgar? Dracontidas vai ser absolvido!" 32, "( . .. )O deus de Delfos me respondeu um dia que eu morreria no momento em que um acusado escapasse de minhas mãos." 33 e"( ... ) Sou mesmo um infeliz! Se eu pudesse matar você! ... Mas, com quê? Depressa! Uma espada ou uma sentença condenatória!" 34 e, ainda, "Meus amigos! Estou secando de impaciência depois de ouvir vocês dessa janela, mas não posso ir cantar com vocês. Que é que vou fazer? A minha gente toma conta de mim porque estou pegando fogo para ir com vocês, juntar nossas urnas e pronunciar alguma sentença condenatória." 35 Da simples leitura da obra, fica fácil observar que existia forte tendência à condenação, sem mesmo prévio conhecimento da causa e sem nenhuma fundamentação da sentença. Nestes termos, e comparando a realidade evidenciada na peça teatral e aquela com a qual nos deparamos nos dias de hoje, sabemos que "nem sempre se interpreta uma lei para fundamentar racionalmente uma decisão. E nem sempre a fundamentação e a interpretação das leis são anteriores à decisão. O que se verifica é que muitas vezes primeiro se decide e depois se ocorre a fundamentação e a interpretação36 " . Assim, para que o texto possa realmente basear uma reflexão sobre os contornos atuais da atividade jurisdicional é necessário, sabidamente, redimensionar o enredo e a crítica para um cenário mais contemporâneo, de modo que "As Vespas", enquanto sátira, retrata um período demasiado antigo e outra realidade social. Pretendeu debater e refletir a ânsia de um grupo de juízes que não podia se distanciar do ato de julgar. Atualmente, a necessidade/ânsia de julgar encontra lugar também dentre os próprios jurisdicionados que confiam e legitimam apenas o Poder Judiciário 32
Idem, ibidem, p. 19. Idem, ibidem, p. 19. 34 Idem, ibidem, p. 20. 35 Idem, ibidem, p. 27. 36 WARAT, Luiz Alberto. A tua grita Dionísio! Direitos Humanos da Alteridade, Surrealismo e cartografia. Tradução de Vivian Alves de Assis, Júlio César Marcelino e Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010, p. 54. 33
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como poder soberano, o dono da verdade suprema. É correto afirmar que a judicatura continua representando, para a maioria, uma posição privilegiada, significado de poder e representação de uma elite, pois o juiz é um dos agentes políticos melhor remunerado pelo Estado. Nesse sentido, é possível observar que existem magistrados que cada vez mais se socorrem dos meios alternativos para solucionar os conflitos judiciais (mediação, conciliação) dada ao acúmulo e a carga sobre-humana de trabalho e de processos. Por outro lado, existem aqueles que, imbuídos e submersos na doença de Filoclêon, tão bem retratada nas "Vespas', resistem a todas essas estratégias imaginando que ninguém, nenhum outro "ser mortal" poderá alcançar aquilo que somente eles, juízes, sabem fazer: tratar os conflitos sociais. De uma certa maneira, tal posicionamento reflete o medo de perder a prerrogativa de "decidir" os conflitos, a insegurança pela possível transferência de "legitimação" do seu tratamento aos próprios conflitantes e mais, a angústia pela perda de um espaço e de um poder que até então era somente deles (magistrados). Acontece que vivenciamos (magistrados e jurisdicionados) uma forte cultura nacional de apego às regras jurisdicionais e a crença de que a justiça apenas se alcança com a prolação da sentença, imposta pelo juiz togado, invertendo-se, de certo modo, a sátira. Igual Ficloclêon, cuja necessidade de julgar era característica marcante, a maioria dos jurisdicionados apenas vêem no judiciário a concretude de seus ideais. Da mesma forma que o juiz da obra ansiava em julgar e condenar, os jurisdicionados buscam apenas a justiça advinda do juiz, baseada na sentença e na aplicação da lei, ignorando, a grande maioria, outras formas de resolução de conflitos. Como salienta Nalini3 7, "hoje, o brasileiro padece de demandismo". Efetivamente, um dos maiores obstáculos vivenciados no Brasil, especialmente no que concernem à adoção de técnicas alternativas de jurisdição (conciliação, mediação, arbitragem) está-se na mentalidade urdida nas faculdades de Direito e arraigadas nas praxes forenses, cuja solução do problema advém do contencioso e da adjudicação dos conflitos de interesses. Alguns juízes optam pela prolação da sentença, estabelecendo "a paz do direito", ao invés de tentar conciliar as partes e alcançar a verdadeira "pacificação social". Sentenciar, não raras vezes, é mais cómodo e fácil. Desta forma, igual Filoclêon que ansiava condenar os acusados, sem prévio conhecimento, existe, hodiernamente, tendência a "condenar" a adoção de outras formas de resolução de conflitos, sem conhecê-las, julgando-as ineficazes à prestação jurisdicional e incapazes de satisfazer o anseio de justiça de quem sofre turbação de seus direitos. Contudo, apesar da crença uniforme da "cultura da sentença", é visível a crise pela qual passa a jurisdição atualmente, uma crise de eficiência e de identidade. Crise que ultrapassa a falta de estrutura e alcança a qualidade e a eficácia das decisões que, impostas pelo magistrado - terceiro que diz o direito -, nem 37 NALINI, José Renato. A rebelião da toga. Campinas: Millennium Editora, 2008. p. 107.
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sempre são exeqüíveis e em outras oportunidades não tratam o conflito de forma adequada produzindo "a paz do direito" mas não a afetiva "pacificação social". Deste modo, se torna necessária a busca por mecanismos alternativos de resposta aos conflitos sociais que possam tratá-los de forma adequada qualitativa e quantitativamente. Esses mecanismos consensuais de tratamento de conflitos, entre eles - e principalmente- a mediação, precisam ter como escopo (além da celeridade processual, da proximidade entre o cidadão e a justiça, da informalidade e da diminuição de custos) principalmente o rompimento da barreira de caráter triádico da jurisdição tradicional (partes mediadas por um terceiro que impõe a decisão) para assumir uma postura dicotômica, na qual a resposta à demanda seja construída pelos próprios litigantes.
4. Mediação e jurisdição: um outro "tempo" e um outro "rito" para o conflito
Parece dispiciendo apontar as diferenças entre a sistemática processual proposta pelo modelo tradicional de jurisdição e aquela das práticas de ADR, especialmente observadas na mediação. No entanto, algumas devem ser analisadas com especial atenção. Essas características diferenciadoras dizem respeito, dentre outras, à linguagem utilizada pelo mediador, à busca pela verdade e à discussão do tempo enquanto recurso de satisfação da tutela jurisdicional (processualmente falando) e de busca da paz social (quando sua utilização se dá através da mediação). Sobre a mediação e o seu "tempo", o seu "prazo" Elígio Resta, salienta que se alcança a verdade processual - objetivo principal de muitos feitos que tramitam junto ao Judiciário - "per stanchezza38 ". Explica sua afirmação dizendo que, com a passagem dos dias (muitas vezes vãos) e em função da pressa com a qual estamos habituados a viver, o tempo se torna um recurso escasso se comparado com a exigência necessária para a pesquisa que a verdade demandaria. Nestes termos, não é a verdade que define e condiciona o tempo, mas o tempo que define a verdade. Alcançamos, assim, a verdade por inflação de tempo ou, ao contrário, por uma irredutível escassez. As questões de maior longevidade são seguidamente resolvidas não porque se junte as provas e as demonstrações definitivas, mas porque, simplesmente, não existe mais tempo: "non abbiamo tempo!" 39 • Diverso do processo e do seu tempo4° (cuja expectativa é alcançar a verda38 39
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"Por cansaço". RESTA, Eligio. Le verità e il processo. ln: MARINI, Alarico Mariani. Processo e verità. Pisa: Plus, 2004. p. 33. Nesses termos, Garapon diferencia o tempo processual e o tempo da arbitragem "pelo facto de pressupor a intervenção soberana da cidade. Essa soberania manifesta-se mediante a criação, graças à intercessão do símbolo, de um tempo não linear, de um tempo extraordinário próximo da criação, oposto ao tempo ordinário, que aproxima impla-
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de), a mediação é um procedimento de sensibilidade que institui um novo tipo de temporalidade. "O tempo instituído como tempo da significação, da alteridade, que me reconstitui como singularidade em devir". Do tempo "do devir fazer da singularidade, do tempo que aproxima os conflitantes do que realmente sentem, conduzindo-os rumo ao centro recalcado dos próprios afetos" 41 . No espaço informal da mediação, a memória e os sentimentos dos conflitantes não se encontram bloqueados. O espaço mediativo não tem por objetivo reconstruir uma verdade, pois se reconstituem várias verdades possíveis. Assim, elas se modificam à medida que os atares se exprimem: as verdades se acomodam, se ajustam. De fato, na mediação, o objetivo não pode ser a verdade, uma vez que as verdades podem ser diversas. Uma mediação alcançada não traduz um acordo sobre a verdade efetivamente correspondente à exata dinâmica dos fatos. Em outros termos, o importante é que as partes concentrem-se sobre uma reconstrução dos fatos que as satisfaça. Este é o ponto central: não está dito que devam reconstruir exatamente a verdade, o importante é que tenham reconstruído a verdade que as contente, momentaneamente, provisoriamente, no tempo de um aperto de mão. Não se reconstroem amizades em uma sala de mediação, os mediadores não são os dramaturgos do conflito. Porém, podem oferecer uma contribuição importante para uma comunicação temporal melhorada 42 • Aqui se pode entabular as diferenças entre o "tempo da jurisdição" e o "tempo da mediação". O primeiro é um tempo dilatado, que se detém na espera sempre de um outro juiz, que faz parte da lógica paradoxal da dupla ligação que deseja sempre a palavra definitiva, mas que permanece na espera de controles posteriores 43 • É o tempo da necessidade, uma vez que, na realidade, já aconteceu tudo, tornando-se prioridade, nesse momento, evitar o pior. Já na mediação se trabalha com a necessidade de encontrar um outro tempo, já que a temporalidade conflitiva precisa do exercício de prudência e de paciência nos quais não se decide o tempo do alto, mas da possibilidade de dois conflitantes de encontrar um tempo diferenciado. Nesse sentido, o primeiro pressuposto que se deve levar em consideração é o fato de que o campo da mediação coexiste em separado ao campo do juízo44 , cavelmente os homens da sua morte. Tal como qualquer ritual, o processo inverte o curso do tempo. Luta assim contra a finitude devido à sua capacidade para produzir um tempo original, isto é, um tempo que ainda não foi esbatido pelos anos, um tempo indeterminado. O tempo original é o tempo da criação". (GARAPON, Antoine. Bem julgar. Ensaio sobre o ritual do Judiciário. Tradução de Pedro Filipe Henriques. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p. 63). 41 WARAT, Luis Alberto. Epistemologia e ensino do direito. O sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. v. 2. p. 30-31. 42 BOUCHARD, Marco; MIEROLO, Giovanni. Offesa e riparazione. Per una nuova giustizia attraverso la mediazione. Milano: Bruno Mondadori, 2005. p. 226. 43 Nesse sentido, ver ALPA, Cuido. L'arte di giudicare. Roma-Bari: Laterza, 1996. 44 O campo do juízo ou" campo judicial", segundo Pierre Bourdie, é o espaço social organi-
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objetivando que entre ambos haja autonomia 45 . Porém, essa autonomia é relativa e não absoluta: de fato, por um lado é necessário que os sistemas de justiça e de mediação "conversem", tendo em vista que não são mundos completamente desconexos entre si, mas, por outro lado, é importante que cada um fale a sua linguagem46. Falar a sua linguagem significa ter em mente que ao juiz cabe exercitar o poder de "decidir" 47 . De fato, transformar conflitos inconciliáveis de interesses em permutas reguladas de argumentos racionais entre conflitantes iguais está inscrito na própria existência de um grupo juridicamente "especializado", dentre os quais se pode citar o juiz, o perito, o advogado e o promotor. Este grupo especializado se encarrega de organizar, segundo formas codificadas, a manifestação pública dos conflitos, substituindo a visão vulgar dos fatos por uma visão científica48 e dando-lhes tratamento socialmente reconhecido como imparcial e legítimo, uma , vez definido segundo regras formais e coerentes. Assim, a representação quedescreve um tribunal como um espaço separado e delimitado em que o conflito se converte em diálogo de peritos e o processo, como um procedimento ordenado com vistas à verdade, é uma boa evocação de uma das dimensões do efeito simbólico49 do ato jurídico como aplicação prática, livre e racional de uma norma zado no qual e pelo qual se opera a transmutação de um conflito direto entre partes diretamente interessadas no debate judicialmente regulado entre profissionais que atuam por procuração e que têm em comum o conhecer e reconhecer as regras do jogo jurídico, ou seja, as leis escritas e não escritas (BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 9. ed. Tradução de Fernando Ferraz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. p. 229). 45 "Questo vale, innanzitutto, fisicamente, in quanto il servizio di mediazione deve essere collocato in un luogo separata dalla sede del Tribunale; ma vale, piu in generale, nel senso che tra giustizia e mediazione bisogna che ci sia autonomia." (RESTA, Eligio. Il linguaggio del mediatore e illinguaggio del giudice. ln: Rivista Mediarres. Semestrale sulla mediazione. Bari: Dédalo, 1/2003, gennaio-giugno, p. 96). 46 Reside aqui, segundo Marco Bouchard e Giovanni Mierolo, a chamada "ambivalência da mediação" que resulta da exigência do Sistema Judiciário se tornar mais flexível, recuperando um contexto colateral de informalidade das relações humanas e da sua real consistência emotiva. Nessa perspectiva, o Sistema Judiciário propõe a recuperação do consenso dos interessados ao estabelecer o seu destino processual (BOUCHARD, Marco; MIEROLO, Giovanni. Offesa e riparazione. Per una nuova giustizia attraverso la mediazione. Milano: Bruno Mondadori, 2005. p. 197). 47 Por isso, adverte Eligio Resta, é necessário que o juiz seja menos arrogante e decida os conflitos com uma certa prudência (RESTA, op. cit., p. 98). 48 "O desvio entre a visão vulgar daquele que se vai tornar um 'justiciável', quer dizer, um cliente, e a visão científica do perito, juiz, advogado, conselheiro jurídico, etc, nada tem de acidental; ele é constitutivo de uma relação de poder, que fundamenta dois sistemas diferentes de pressupostos, de intenções expressivas, numa palavra, duas visões de mundo" (BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 9. ed. Tradução de Fernando Ferraz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. p. 226). 49 Sobre o simbolismo do Direito, meio através do qual ele transmite o seu poder, Norbert
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universal e cientificamente fundamentada. Enquanto procedimento que busca a verdade dos fatos, o processo não oferece uma comunicação bilateral uma vez que as relações processuais são todas indiretas, veiculadas à representação dos profissionais e endereçadas a um terceiro dotado de poder de decisão. O processo pesquisa, sempre com detalhamento, as formas mais neutras na aquisição da consciência do fato, desconfiando, de modo muito acentuado, da potencial parcialidade de todos os sujeitos que participam de sua reconstrução histórica. O juiz deve garantir a absoluta serenidade valorativa que coincide com a inexistência de pré-juízos, de modo que qualquer valoração que tenha expresso antes de assumir as vestes de julgador o expõe a uma contaminação irremediável. Conseqüentemente, o processo tende a perder a conotação participativa, assumindo um procedimento de elevado conteúdo técnico, burocrático, e formalista 50 • Porém, a linguagem do juiz, traduzida no processo, é aquela de quem deve decidir quando o conflito não pode ser sanado de outro modo. Isso se dá porque nem todas as relações são mediáveis 51 • Onde os termos pertencem a planos diversos e falta um espaço físico e geométrico comum, faltará, também, a possibilidade de relação: conseqüentemente, é impossível alcançar a mediação 52 . As relações nascidas nesse/ desse espaço comum entre os conflitantes é a diferença característica entre o procedimento de mediação e o processo judiciário uma vez que "lo scambio (il contraddittorio) non si sviluppa tra le 'parti del processo' ma tra le 'parti del fatto' 53 ". Significa que, enquanto no processo as partes reagem conforme o papel que lhes foi determinado pelo código ritual do Rouland escreve: "o Direito não chega até a solicitar as cores para tornar-se mais imperativo? Preta é a roupa dos magistrados e dos auxiliares de justiça, escura a das forças de polícia. Cores que fazem eco ao uniforme do árbitro e à batina do padre. Todas essas personagens estão aí para lembrar a regra e, se preciso, forçar a sua observação. O fúnebre não está longe. Mas também o vermelho, a cor de que gosta o poder (pensemos nos púpuras imperial e cardinalício, nos diversos tapetes vermelhos): os magistrados das altas jurisdições se revestem dele; ele colore a capa da maior parte dos códigos franceses; deu seu nome aos sinais de trânsito que prescrevem parar. Ora, a história das cores mostra que o vermelho foi a cor utilizada mais antigamente pelos homens.[ ... ] Cor suprema, em geral símbolo do combate, evoca também a ameaça da pena, que pode suprimir a vida. O direito se impõe até à nossa rotina (ROULAND, Norbert. Nos confins do direito. Antropologia Jurídica da modernidade. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martim Fontes, 2003. p. 6-7). 50 BOUCHARD, Marco; MIEROLO, Giovanni. Offesa e riparazione. Per una nuova giustizia attraverso la mediazione. Milano: Bruno Mondadori, 2005. p. 196-197. 51 Nesse sentido já argumentava Eligio Resta: "puà mediare chi puà mediare e si puà mediare tutto quello che si puà mediare". (RESTA, Eligio. II dil·itto Fraterno. Roma-Bari: Laterza, 2005. p. 91). 52 MASSA, T. Il colore della fratellanza. Riflessioni a margine di una proposta di riforma. ln: Questione giustizia, 1999. n. 4. p. 708. 53 BOUCHARD; MIEROLO, op. cit., p. 196.
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judiciário54, no curso da mediação elas participam de uma experiência relacional que as toma como protagonistas diretos e não representados por um advogado. Essa postura proposta pela mediação oferece aos indivíduos um espaço para diferenciar-se através do procedimento de construção e reconstrução de regras e de contextos, sobretudo através de procedimentos de responsabilização 55 • De fato, o espaço da mediação está, antes de tudo, no meio, entre dois extremos. Coincide com sua relação e com sua existência. Compartilham as distâncias e os avizinhamentos. Antes de ser "meio" era, no mundo antigo, mesotes: espaço e virtude ao mesmo tempo. Era um estar no meio e, então, um assumir o problema, não distante de recusar o idios (do qual idiota), que fecha os indivíduos no egoísmo vulgar do seu ponto de vista privado; privado justamente no sentido de carente de alguma coisa. Indica, sobretudo, um espaço comum, participativo, que pertence também aos extremos entre os quais se define, mesmo os mais antagônicos e conflitantes; virtude distante da abstração de um terzieta56 e de uma imparcialidade somente imaginárias57 • A tão aclamada imparcialidade do mediador deve ser revista levando em consideração que o conflito é, normalmente, a conseqüência de um desequilíbrio, de uma desigualdade. Nesses termos, o mediador tem como função principal o reforço da parte frágil do conflito, reequilibrando, de forma ecológica, a posição dos conflitantes. Assim, se o mediador se arroga poderes de reequilibrar as desigualdades, de reforçar as posições mais frágeis, de conter e redimensionar as pretensões do mais forte, "o requisito da imparcialidade se dissolve no reconhecimento de uma autoridade discricional, se non di un vero e proprio arbitrio" 58 • O risco talvez seja a degeneração da função de mediador quando exercida por pessoa pouco capacitada que desenvolva sua função com prevaricação. No entanto, o verdadeiro antídoto reside no princípio do consenso que liga o mediador às partes e, na falta de atributos jurídicos, se legitima por aqueles que lhes vêm reconhecidos pelas próprias partes. Essa imparcialidade imaginária acontece quando se esquece que o mediador possui um papel que é estar no meio, compartilhar, e até mesmo "sporcarsi le mani59 ". São muito comuns as repetições de que o mediador é imparcial na 54 Vide GARAPON, Antoine. Bem julgar. Ensaio sobre o ritual do Judiciário. Tradução de Pedro Filipe Henriques. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. 55 CERETTI, Adolfo. Progetto per un ufficio di mediazione penale. ln: GIANVITTORIO, P.; ANTONUCCI, D. La sfida della mediazione. Padova: CEDAM, 1997. p. 95. 56 Em italiano, "terzietà" significa a qualidade de ser o terceiro, isto é, imparcial. 57 RESTA, Eligio. II diritto Fraterno. Roma-Bari: Laterza, 2005. p. 88-89. 58 BOUCHARD, Marco; MIEROLO, Giovanni. Offesa e riparazione. Per una nuova giustizia attraverso la mediazione. Milano: Bruno Mondadori, 2005. p. 213. 59 Em português, "sujar as mãos". Eligio Resta não admite a atribuição de uma postura neutra e imparcial ao mediador que o coloque na mesma posição do magistrado, reiterando que, para mediar é preciso estar no "meio do conflito" e não "sobre ele", "sujando as mãos" (RESTA, op. cit., p. 89 et seq.).
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relação com as partes e é neutro no desenvolvimento da mediação. Com isso, ele se confunde com o juiz, mas sem os seus poderes e as suas prerrogativas; tornando-se um mínimo e, ainda mais, de formato reduzido. É um erro freqüente e quase ritual que faz perder o sentido real da mediação, que é totalmente oposta a esta invocação da qualidade de ser terceiro: o mediador que se coloca como tal deixa de ser mediador e assume uma posição estranha, super partes60, incapaz de assumir o litígio como o elemento comum, que é também o meio simbólico a ser transformado e reutilizado para reativar a capacidade comunicativa. Um mediador que faz os interesses de um ou de outro promove a falência da mediação e perde a sua identidade. A mediação é outra; é um ficar inserido entre as partes 61 e não encontrar um espaço neutro e eqüidistante62 no qual resida a grande utopia do moderno, que é ter a qualidade de terceiro 63 . Assim, enquanto o juiz é pensado, nos sistemas modernos, como o "nec utrum, nem um, nem outro, nem isto nem aquilo", justamente neutro, o mediador deve ser "isto e aquilo", deve perder a neutralidade e perdê-la até o fim 64 • Enquanto as partes litigam e só vêem seu próprio ponto de vista, o mediador pode ver as diferenças comuns aos conflitantes e recomeçar daqui, atuando com o objetivo das partes retomarem a comunicação 65 , exatamente o múnus comum a ambas. O 60
Nesse sentido Warat salienta: "dentro não é o mesmo que sobre". WARAT, Luiz Alberto. A tua grita Dionísio! Direitos Humanos da Alteridade, Surrealismo e cartografia. Tradução de Vivian Alves de Assis, Júlio César Marcelino e Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010, p. 11. 61 [ ... ] a partir de um devir individuação onde cada um se encontre com os outros num espaço entre-nós, que não os uniformiza, nem os torna divergentes. WARAT, Luiz Alberto. A tua grita Dionísio! Direitos Humanos da Alteridade, Surrealismo e cartografia. Tradução de Vivian Alves de Assis, Júlio César Marcelino e Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010, p. 11. 62 Por isso, a "eqüidistância" atribuída à figura do mediador deve ser vista como uma características que envolve imparcialidade, neutralidade e inexistência de pode1~ levando em consideração, porém, que "il mediatore non puo essere assolutamente asettico, in quanto la sua presenza non e passiva, ma egli svolge um ruolo attivo dando il proprio aiuto affinché le parti giungano al riconoscimento di obiettivi comuni" (PELLEGRINI, Stefania. II processo civile e la civile giustizia. Padova: CEDAM, 2005. p. 93). 63 RESTA, Eligio. II diritto Fraterno. Roma-Bari: Laterza, 2005. p. 89. 64 "Ancora una volta la distanza tra il media tore e il giudice sta tutta nella differenza che intercorre tra la separazione e illegame. Il giudice separa mentre il mediatore fallisce il giudice ricupera appieno - di fronte alla persistenza del conflitto - la sua funzione di risolutore delle controversie. I questa prospettiva, il giudice no pregiudica i diritti e gli interessi con una preposizione ma e destinato a pregiudicare almeno quelli accampati da una delle parti. Il mediatore soccorre il legame, riequilibra il rapporto che vive sullo sfondo del conflitto ma non pregiudica né pregiudica, né interessi né diritti" (BOUCHARD, Marco; MIEROLO, Giovanni. Offesa e riparazione. Per una nuova giustizia attraverso la mediazione. Milano: Bruno Mondadori, 2005. p. 214). 65 Na verdade, o que se percebe é a completa falta/ dificuldade de comunicação pela qual Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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mediador torna-se meio para a pacificação, remédio para o conflito, graças ao estar entre os conflitantes, nem mais acima, nem mais abaixo, mas no seu meio 66 • Todavia, não obstante o mediador e o juiz possuírem papéis diferenciados, não obstante o processo judicial e o procedimento de mediação portarem características e rituais diversos e autónomos, não se pode ignorar que processo e mediação se combinam em uma relação complexa de formalidade/informalidade que não permite apresentar a mediação como uma simples alternativa à justiça tradicional, nem também como um procedimento que reivindica uma total autonomia, mas como um lugar de exercício da interdisciplinaridade e da interpenetração de diferentes modalidades de regulação social. Assim, a mediação, longe de fazer concorrência ao processo judiciário, contribui para salvar o Direito67 • A ritualidade diferenciada entre a mediação e o processo se dá principalmente em duas linhas: a primeira diz respeito ao fato de que o processo sempre trabalha com a lógica de ganhador/perdedor. Num segundo momento, a ritualidade do processo tem por objetivo (além de dizer quem ganha e quem perde a demanda) investigar a "verdade real dos fatos", enquanto que a mediação pretende restabelecer a comunicação entre os conflitantes, trabalhando com a lógica ganhador I ganhador. Nesse sentido, o processo, enquanto busca da verdade, produz/reproduz a violência68 • A verdade não pode ser imposta por uma decisão, tampouco pode ser descoberta pela violência 69 • A procura da verdade, nos termos que a ciência mecapassa o processo hoje. Seus protagonistas não se falam, o diálogo é substituído por papel e números. Assirh, "a rua grita e não é escutada pelos juízes, advogados, teóricos do Direito, professores, médicos, políticos, etc. instituições onde o clamor da rua não chega bloqueada pela razão técnico instrumental." WARAT, Luiz Alberto. A tua grita Dionísio! Direitos Humanos da Alteridade, Surrealismo e cartografia. Tradução de Vivian Alves de Assis, Júlio César Marcelino e Alexandre Morais da Rosa. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010, p . 53. 66 RESTA, op. cit., p . 90. 67 GARAPON, Antoine. Droit, mediation et service public. ln: Informations sociales, n. 22. 1992. p . 47. 68 Nestes termos, Clastres afirma que o Estado impede a guerra, mas, paradoxalmente, a guerra impede o Estado. Como? A guerra permite a cada comunidade continuar unida em torno de seus valores e prevenir o processo fatal de divisão social. O Estado, ao contrário é o produtor dessa divisão social que conduz à especialização do poder político que ele maximiza. Assim, é lógico que o Estado seja contra a guerra, tornando-se um falso pacificador: extingue uma violência dirigida para o exterior pela guerra em proveito de uma outra, interna, que põe em movimento as engrenagens da dominação e da exploração no interior das sociedades (CLASTRES, P. Recherches d'anthropologie politique. Paris: Le Seuil, 1980. p . 171-207, passim). 69 Aqui se faz menção ao monopólio da coerção assumido pelo Estado que, na tentativa de extirpar a vingança através da institucionalização do poder, disciplina a violência mediante a sua racionalização, conforme definição de Max Weber referida no quinto capítulo.
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A racionalidade judiciária para além da legitimação estatal: um outro "tempo" e ... Pág 29-50
nicista coloca, é por si mesma violenta, tornando-se uma forma de manipulação do mundo e dos outros. E não importa que tentemos distinguir entre verdade como correspondência fática e verdade como interpretação, ambas são manipuladas. Ninguém sabe o que vai acontecer. Ninguém pode predizer o real, ele é imprevisível. As verdades, como momentos predizíveis do saber da ciência, são uma ficção, mito destinado a satisfazer nossa criança insatisfeita e os lugares de medo; e com as quais pretendemos dotar de sentido o sem sentido da existência70 •
5. Referências ALPA, Cuido. L'arte di giudicare. Roma-Bari: Laterza, 1996. ARISTÓFANES. C. 455-c.375 a.C. As vespas, as aves, as rãs; tradução do grego, introdução do grego e notas de Mário da Gama Kury. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. BASTOS, Marco Aurélio Wander. Conflitos Sociais e Limites do Poder Judiciário. 2. ed. ver. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. BLANCHOT, Maurice. Pour l'amitié. Paris: Fourbis, 1996. BOUCHARD, Marco; MIEROLO, Giovanni. Offesa e riparazione. Per una nuova giustizia attraverso la mediazione. Milano: Bruno Mondadori, 2005. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 9. ed. Tradução de Fernando Ferraz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. BRUNER, Jerome. La fabbrica delle storie. Diritto, letteratura, vi ta. Roma-Bari: Laterza & Figli Spa, 2002. CERETTI, Adolfo. Progetto per un ufficio di mediazione penale. ln: GIANVITTORIO, P.; ANTONUCCI, D. La sfida della mediazione. Padova: CEDAM, 1997. CLASTRES, P. Recherches d'anthropologie politique. Paris: Le Seuil, 1980. COSI, Giovanni. Interessi, diritti, potere. Gestione dei conflitti e mediazione. ln: Ars Interpretandi. Padova: CEDAM, 2004. n. 9. FREUND, Julien. Sociología dei conflicto. Traducción de Juan Guerrero Roiz de la Parra. Madrid: Ministerio de Defensa, Secretaría General Técnica. D. L., 1995. GARAPON, Antoine. Droit, mediation et service public. ln: Informations sociales, n. 22. 1992. _ _ _ _ ,Antoine. Bem julgar. Ensaio sobre o ritual do Judiciário. Tradução de Pedro Filipe Henriques. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. GIRARD, Rene. La violenza e il sacro. Traduzione di Ottavio Fatica e Eva Czerkl. Milano: Adelphi, 2005. HAMPSHIRE, Stuart. Non c'egiustizia senza conflitto. Democrazia come confronto di idee. Traduzione di Giovanna Bettini. Milano: Feltrinelli, 2000. MASSA, T. Il colore della fratellanza. Riflessioni a margine di una proposta di 70
WARAT, Luis Alberto. Epistemologia e ensino do direito. O sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. v. 2. p. 17-18.
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O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO NA RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DA POSSE: BREVE LINHA EVOLUTIVA HISTÓRICA E REGIME ACTUAL José A. R. L. González 1
1. Nota introdutória
I) Surge o presente estudo motivado pela questão suscitada no acórdão do Tribunal Constitucional n. 0 598/99 de 2 de Novembro de 1999 (Processo n. 0 804/97), cujo sumário se transcreve seguidamente: I - Não violam o direito de habitação, constitucionalmente protegido pelo artigo 65. 0 da Constituição, as normas constantes dos artigos 393. 0 e 394. 0 do Código de Processo Civil, na versão anterior à da reforma introduzida pelo Decreto-Lei n. o 329-A/95, de 12 de Dezembro, quando permitem que a restituição provisória da posse incida sobre a casa de morada de família. II -A tutela constitucional do contraditório não impede que este princípio tenha por vezes que ceder perante a necessidade de eficácia de certas medidas judiciais. III- No domínio da justiça cautelar, é admissível o sacrifício desse princípio, desde que não seja manifestamente desproporcionado. IV - Não é o que sucede com as normas que prevêem a providência da restituição provisória da posse, pois que só a admitem se o tribunal concluir pela existência de esbulho violento. II) Convém sublinhar, antes de mais, que embora o aresto em causa se reporte a uma anterior redacção dos artigos 393° e 394° do Código de Processo Civil, a versão actual dela não difere grandemente, como se pode comprovar através da cópia a que, por facilidade de consulta, se procede de seguida: (artigo 393°) -No caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja resti1
Doutor em Direito. Professor associado da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa.
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tuído provisoriamente à sua posse, alegando os Jactos que constituem a posse, o esbulho e a violência. (artigo 394°)- Se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordenará a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador.
2. Acções reais e acções pessoais
I) A distinção entre acções reais e acções pessoais é-nos imposta pela tradição jurídica romana 2 . Superest, ut de actionibus loquamur, et si quaeramus, quot genera actionum sint, uerius uidetur duo esse, in rem et in personam, nam qui IIII esse dixerunt ex sponsionum generibuss, non animaduerterunt quasdam species actionum inter genera se rettulisse. ln personam actio est, qua agimus, quotiens litigamus cum aliquo, qui nobis uel ex contractu uel ex delicto obligatus est, id est, cum intendimus DARE FACERE PRAESTARE OPORTERE. ln rem actio est, cum aut corporalem rem intendimus nostram esse aut ius aliquoad nobis competere, uelut utendi aut utendi fruendi, eundi, agendi aquamue ducendi uel altius tollendi prospiciendiue, aut cum actio ex diuerso aduersario est negatiua 3 4 .
II) Uma acção é pessoal quando (traduzindo livremente a passagem de Gaio) se reclama a realização de uma conduta contra aquele que à mesma está obrigado por causa de um contrato ou de um delito- ou, em resumo mas noutra fórmula, quando se pretende que este dê, faça ou não faça. Diversamente, as acções reais são todas aquelas que se destinam especialmente à tutela de um direito real 5 • O traço comum de união está na respectiva causa de pedir 6: em todas o fundamento da acção consiste na titularidade de um 2
"Hay unas acciones que son reales, las cuales tambien se llaman vindicaciones; y otras personales que tambien se llaman condiciones( ... ). Tanto las acciones reales como las personales se subdividen en civiles y pretorias" (J. Heineccio, Elementos de Derecho Romano, trad. esp., pág. 291, Madrid, 1829). 3 Gaio, Inst., 4.1. a 4.3. 4 Artigo 2° do Código do Processo Civil de 1876: §1° "as acções reais têm por objecto arestituição de coisas mobiliárias ou imobiliárias"; §2° "as acções pessoais têm por objecto o cumprimento de obrigações". 5 Ainda houve quem (por exemplo, José Ignácio da Rocha Peniz, Elementos da Prática Formulária ou Breves Ensaios sobre a Praxe do Foro Portuguez escriptos no anno lectivo de 1807 para 1808, 1808, Regya Typografia Silviana, Lisboa, 1816, pág. 17) acrescentasse a acção mista: aquela em "que se pede o domínio por virtude do contrato". 6 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/01/2004: 1. Nas acções reais- de que é exemplo a acção de reivindicação- a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real (artigo 498°/4); é o título invocado como aquisitivo da propriedade ou do direito real limitado que o autor
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determinado direito real (artigo 498° /n. 4, Código de Processo Civil 7). O que pressupõe, portanto, a demonstração de que essa titularidade radica no demandante 8 • Como essa prova pode, em certos casos (particularmente tratando-se de 0
pretende ver reconhecido. 2. Julgada improcedente uma acção de reivindicação de um imóvel intentada com fundamento num certo título (compra, doação, sucessão testamentária), não fica precludida a possibilidade de o autor intentar nova acção, desde que fundada em título diferente. 3. Uma sentença pode servir como fundamento da excepção de caso julgado quando o objecto da nova acção já foi, total ou parcialmente, por aquela definido, i. e., quando o autor pretenda ver reconhecido, na nova acção, o mesmo direito que já lhe foi negado por sentença proferida noutra acção- identificado esse direito não só através do seu conteúdo e objecto, mas também através da sua causa ou fonte. 4. É que, nos termos do artigo 663° do CP C, a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga. 7 Apesar da letra desta disposição identificar a causa de pedir nas acções reais como "o facto jurídico de que deriva o direito real", isso só pode bastar quando não estiver em litígio a titularidade respectiva, que é justamente o que está em discussão, por exemplo, na acção de reivindicação (artigo 1311°, Código Civil). Num caso como este, é necessário provar, acima de tudo, a validade do aludido facto jurídico, o que pode facilmente implicar que "o facto jurídico de que deriva o direito real" seja constituído, não por um, mas por uma sucessão de factos. De resto, mesmo quando não é a titularidade do direito real que está em discussão, continua a ser ela que constitui a causa de pedir nas acções reais; a prova da mesma é que não necessita ser tão exigente, bastando então a simples demonstração da provável existência da titularidade em causa, avaliada por regras de normalidade. Assim, por exemplo, aquele que intenta acção de demarcação fá-lo por ser proprietário de certo prédio e não por o ter comprado, recebido em doação ou por sucessão, etc.; sendo certo que, precisamente por não estar em litígio a titularidade dessa propriedade, se pode partir do princípio que, pela normalidade, aquele que demonstra beneficiar de uma venda ou de uma doação é titular de um direito sobre a coisa objecto de um destes actos. Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/12/1995: I. Em acção real fundada na aquisição derivada, o autor tem de alegar factos tendentes a mostrar que adquiriu a coisa por um título e que o direito de propriedade já existia na pessoa do transmitente. II. A simples invocação de um negócio translativo de propriedade não basta para caracterizar a causa de pedir nas acções reais, pelo que o autor, quando não for beneficiado por qualquer presunção legal de propriedade, terá de invocar factos dos quais resulte a aquisição originária por usucapião, por parte dele ou de um transmitente anterior. III. Carecendo a petição inicial da alegação de factos destinados a demonstrar que o direito de propriedade já existia na pessoa do transmitente ou de que o autor tem a seu favor a usucapião, torna-se evidente que a acção não pode proceder, devendo a petição ser liminarmente indeferida. 8 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/11/1999: I. Na acção pessoal de restituição ex contractu a propriedade da coisa é estranha ao processo, enquanto que na acção real de reivindicação o autor prescinde da invocação de qualquer relação obrigacional com o réu. II. A sentença proferida nos termos do artigo 830 do C. Civil produz efeitos ex nunc, que decorrem a partir do seu trânsito em julgado. III. Não produz efeitos quanto ao arrendatário da coisa, terceiro na acção, para afastar a aplicação da norma imperativa que é o artigo 1057 do C. Civil. Lusíada. Direito. Lisboa, n." 8 I 9 (2011)
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coisas móveis), revelar-se extremamente difícil, já no Direito Romano se tinha engendrado a chamada actio Publiciana: "Q. Publicio pretor inventá una nueva acción real derivada del domínio fingido . ( ... ) Esta acción se da al que pierde una cosa que recibió com buena fé y justo titulo de uno que no era su dueno, para que el poseedor de ella (a no ser que sea su verdadero dueno) se la restituya com toda su causa, accesiones y frutos. (Semejante domínio es enteramente pretoria, porque el pretor finge que el actor ha usucapido la cosa que realmente no ha usucapido. El fundamento de esta ficcion consiste en que el poseedor de buena fé se considera como dueno cuando se compara con otro que no tiene igual derecho, y por lo mismo sele concede accion real)" 9 . A actio Publiciana era assim, no fundo, uma acção de reivindicação, mas na qual o respectivo autor estava isento da prova da propriedade na medida em que esta se presumia na sua titularidade: si quis id, quod traditur ex justa causa non a domino, et nondum usucaptum petet, iudicium dabo (Ulpianus 16 ad Ed.; Dig. 6.2.1.). III) Na acção real está em litígio a própria titularidade do direito que demandante e demandado invocam, pelo que "in rem actio non contra venditorem, sed contra possidentem competit" (C. III, XIX, 1). Isto, porém, apenas quadra verdadeiramente à acção de reivindicação. Nas acções possessórias e nas demais acções petitórias, contudo, o problema não se pode colocar, ou de todo não se coloca, exactamente nestes termos. IV) Distinguem-se as acções reais, numa nomenclatura clássica, em acções possessórias e acções petitórias. Isto partindo do princípio, naturalmente, que a posse é uma situação jurídica, ainda que sui generis. Embora não se possa deixar de sublinhar, de imediato, que tendo a posse efeitos jurídicos a ela associados (não só, mas fundamentalmente, os que estão descritos entre os artigos 1268° a 1299° do Código Civil), isso seja incompatível com a sua qualificação como uma pura situação factual. Destinam-se as primeiras especificamente à defesa da posse. Pressupõem, portanto, a prova do domínio de facto, do senhorio, sobre uma coisa. Destinam-se as segundas, de acordo com a visão tradicional, à defesa da propriedade, embora, por força do disposto no artigo 1315° do Código Civil, se devam considerar hoje extensíveis à defesa da generalidade dos direitos reais de gozo, ou, pelo menos no que toca à acção de reivindicação, extensíveis à defesa de todos os direitos reais 10 cujo exercício suponha a apreensão material da coisa seu objecto. Pressupõem, portanto, a prova da titularidade de um destes direitos.
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J. Heineccio, Elementos de Derecho Romano, trad. esp., págs. 292/293.
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Razão pela qual, ainda que por mera exclusão de partes a partir do disposto nos artigos 1o e 2° do Código do Registo Predial, "as acções possessórias não estão sujeitas a registo" (Acórdão da Relação do Porto de 17/02/1998, R. 9820033).
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VIII) Dentro das acções possessórias, separa a lei as acções de prevenção (artigo 1276°), manutenção (artigos 1278° e segs.), de restituição (artigos 1278° e segs.), de restituição provisória (artigo 1279°) e os embargos de terceiro (artigo 1285°). Dentro das acções petitórias, diferenciam-se a acção de reivindicação (artigos 1311° e segs.), a acção de demarcação (artigos 1353° e segs.) e, de novo e seguramente, os embargos de terceiro (artigo 351°, Código de Processo Civil). Acrescenta-se a acção negatória, apesar desta não estar legalmente prevista ou sequer nominada. Umas e outras são fruto de uma profunda e remotíssima evolução histórica de que em seguida, para as primeiras, se traçam brevemente as principais linhas.
2.1. As acções de lei (legis actiones), o processo formulário e a cognitio extra ordinem LI) As acções de lei eram, no Direito Romano mais antigo, "os meios de perseguir um direito qualquer em juízo" 11 • Actiones, quas in usu ueteres habuerunt, legis actiones appellabantur uel ideo, quos legibus proditae erant, quippe tunc edieta praetoris, quibus conplures actiones introductae sunt, nondum in usu habebantur, uel ideo, quia ipsarum legum uerbis accommodatae erant et ideo immutabiles proinde atque leges obseruabantur. unde eum, qui de uitibus succisis ita egisset, ut in actione uites nominaret, responsum est rem perdidisse, quia debuisset arbores nominare, eo quod lex XII tabularum, ex qua de uitibus succisis actio conpeteret, generaliter de arboribus succisis loqueretur (As acções que estavam em uso entre os antigos chamavam-se acções de lei, seja por terem nascido a partir da lei uma vez que não existiam ainda os éditos do pretor, dos quais saíram depois tantas acções, seja por se moldarem aos dizeres legais pelo que se cumpriam com o mesmo imutável rigor com que se cumpriam as próprias leis. Daí que se alguém, ao reclamar umas cepas cortadas, mencionava a palavra «cepa» na sua acção, perdia o pleito, diziam os jurisconsultos, já que devia dizer «árvores», pois a lei da XII tábuas falava genericamente em «árvores» a propósito da acção competente para as cepas cortadas- Gaio 4.11). "Ao dizer de Gaius podemos obrar em juízo (lege agere) 1o Sacramento, 2° Per judieis postulationem, 3° Per condictionem, 4° Per manus injectionem, 5° Per pignoris capíonem" 12 . Não havia mais espécies; tratava-se, portanto, de uma taxatividade de modelos de actiones. "A primeira destas acções, isto é, deposito ou consignação judicial (sacramentum )". ( ... ) Consistia ella em certa soma ... que cada uma das partes era obrigada a depositar nas maõs do pontífice, e que perdia o vencido em favor das despesas 11 12
António Secco, Manual Histórico de Direito Romano, pág. 72. António Secco, Manual Histórico de Direito Romano, pág. 75. Confiram-se as Institutas de Gaio (4.12).
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do culto publico" e que se aplicava "quer tivessem por objecto obrigações pessoaes, quer direitos reaes" 13 • Sacramenti actio generalis erat. de quibus enim rebus ut aliter ageretur, lege cautum non erat, de his sacramento agebatur (a acção de aposta sacramental era a geral, de modo que quando a lei não dispunha que se demandasse de outra forma acudia-se a esta acção- Gaio 4.13). Per iudicis postulationem agebatur, si qua de re ut ita ageretur lex iussisset sicuti lex XII tabularum de engavetar eo ex stipulatione petitur. eaque res talis fere erat. qui agebat sic dicebat: EX SPONSIONE TE MIII X MILIA SESTERTIOR VM DARE OPOR TERE AIO: ID POSTVLO AIAS UMA NEGES. aduersarius dicebat não oportere. atar dicebat: QVANDO TV NEGAS, TE pretor IVDICEM SIVE ARBITRVM POSTVLO VTI DES. (Instaurava-se a acção de lei por petição de juiz quando a lei
mandava que se podia empregar essa foram como faz a lei -das XI1Tá6uas, para pedir o que se deve por estipulação. Fazia-se desta forma. O demandante dizia: AFIRMO QUE ME DEVES DAR DEZ MIL SESTÉRCIOS POR CAUSA DE UMA ESTIPULAÇÃO: PEÇO-TE QUE DIGAS SE É VERDADE OU NÃO. O adversário dizia que não era verdade e o demandante dizia: DIZES QUE NÃO, E, POR ISSO, A TI, PRETOR, PEÇO-TE QUE NOMEIES UM JUÍZ OU UM ÁRBITRO - Gaio 4.17a). Per condictionem ita agebatur: AIO TE mihi SESTERTIORVM X MILIA DARE OPOR TERE: ID POSTVLO, AIAS A VT NEGES. aduersarius dicebat não oportere. atar dicebat: QVANDO TV NEGAS, IN DIEM TRICENSIMVM Tibi IVDICIS CAPIENDI CA VSA CONDICO. deinde morrer tricensimo anúncio iudicem capiendum Prcesto esse debebant (Na acção de lei por «condição» dizia-se assim: AFIRMO
QUE ME DEVES DAR DEZ MIL SESTÉRCIOS: PEÇO-TE QUE DIGAS SE É VERDADE OU NÃO. O adversário dizia que não era verdade e o demandante dizia: DIZES QUE NÃO E POR ISSO DOU-TE UM PRAZO DE TRINTA DIAS PARA ESCOLHER JUÍZ. Aos trinta dias deviam apresentar-se para elegerem juiz - Gaio 4.17b). Per manus iniectionem aeque de sua agebatur rebus, de quibus ut i ta ageretur, lege aliqua cautum est, uelut iudicati lege XII tabularum. quae actio talis erat: qui agebat, sic dicebat: QVOD TVmihiiVDICATVS siue DAMNATVS ES SESTERTIVMXMILIA, QVANDOC NÃO SOL VISTI, OB EAM REM EGO Tibi SESTERTIVM X MILIVM IVDICATI MANVM INICIO, et simul aliquam partem corporis eius prendebat; ne licebat iudicato manum sibi depellere et pro se lege Agere, sed uindicem dabat, qui pro si causam Agere solebat. qui uindicem não dabat, domum ducebatur ab actore et uinciebatur (A apreensão corporal era para certos casos determinados nalguma lei, por
exemplo, para a execução de sentença em virtude da lei das XII tábuas. Esta acção fazia-se deste modo: o demandante dizia: TENHO UMA SENTENÇA OU CONDENAÇÃO CONTRA TI PELO VALOR DE DEZ MIL SESTÉRCIOS E UMA VEZ QUE NÃO PAGASTE, POR ESTA RAZÃO, APODERO-ME DE TI POR CAUSA DA SENTENÇA DE DEZ MIL SESTÉRCIOS, e dizendo isto agarrava-o com a 13
António Secco, Manual Histórico de Direito Romano, pág. 76.
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mão. O que tivesse sido condenado por sentença não podia desprender-se nem defender-se por acção de lei, mas tinha antes que apresentar um defensor que devia instaurar a acção em seu nome. Se não apresentasse um defensor, o demandante levava-o para sua casa e prendia-o com correntes- Gaio 4.21). Per pignoris capionem lege agebatur de quibusdam rebus moribus, de quibusdam rebus lege (A acção por tomada de penhor estava estabelecida para certos casos pelos costumes e para outros pela lei- Gaio 4.26). Lege autem introducta é pignoris Capio uelut lege XII tabularum aduersus eum, qui ne hostiam emisset pretium redderet; item aduersus eum, qui mercedemnão redderet pró eo iumento, quod quis ideo locasset, ut inde pecuniam acceptam em dapem, isto é, em sacrificium, inpenderet; item lege censoria dados est pignoris Capio publicanis uectigalium publicorum populi Romani aduersus EOS, qui aliqua lege uectigalia deberent (Por lei, estabeleceu-se a tomada de penhor,
por exemplo, em virtude da lei das XII tábuas, contra aquele que tendo comprado uma rês para a sacrificar aos deuses não pagou o preço; ou contra aquele que não paga a renda de uma cavalariça, sempre que o arrendamento estivesse destinado a um sacrifício aos deuses. Também se deu a tomada de penhor em virtude da lei censória a favor dos publicanos ou cobradores de impostos do povo Romano contra aqueles que devem algum imposto legítimo- Gaio 4.28). I.II) Dadas as definições: A legis actio per sacramentum in rem utilizava-se para fazer valer os poderes do pater famílias sobre coisas ou pessoas a ele submetidas. A legis actio per sacramentum in personam servia para reclamar créditos provenientes de obrigações delituais. A legis actio per iudicis arbitrive postulationem permitia reivindicar dívidas emergentes de promessa solene (sponsio) para dividir património familiar ou, por fim, para dividir qualquer bem comum. A legis actio per condictionem usava-se para reclamar o cumprimento de obrigações pecuniárias líquidas. As legis actiones executivas eram a per manus iniectionem e a per pignoris capionem.
I.III) As legis actiones declarativas (legis actio per sacramentum, legis actio per iudicis arbitrive postulationem e a legis actio per condictionem) começavam com a in ius vocatio (citação oral) que o demandante fazia ao demandado para que o acompanhasse ao lugar onde o magistrado exercia a jurisdição. Se o vocatus resistisse, o autor podia, mediante testemunhas, conduzi-lo pela força (manus iniectio extrajudicial). Perante o magistrado, o autor afirmava solenemente o seu direito; quando o demandado, como é caso típico, se opusesse, deveria nomear-se então um juiz (procedimento no qual as partes tinham intervenção) 14 . 14
A. Fernández Barreiro- Javier Paricio, Fundamentos de Derecho Patrimonial Romano, Editoral Ramón Areces, Madrid, 1991, pág. 7.
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II) A necessidade de adaptar o Direito escrito ou consuetudinário às necessidades e variedades da vida quotidiana (e, portanto, do caso concreto) conduziu ao aparecimento dos Éditos do Pretor 15 . Estes são a expressão do modo como o Pretor administraria a justiça ou exerceria as suas atribuições dentro do tempo de duração da sua magistratura (um ano geralmente) 16 • O interdito nasceu precisamente a partir da actuação do Pretor: começou por ser um Édito através do qual este declarava o direito ou ordenava ou proibia alguma coisa entre duas partes 17 • Através dos Éditos o Pretor decretava ou prescrevia algo. Precisamente por isso "los decretos del Pretor en asuntos de posesion se llamaban interdictos, ora porque prohibia (interdicebat) algun hecho, ora porque sus providencias tenian un carácter interino hasta la decision principal de la contienda. Su utilidad era tan grande como la paz, breve y sumariamente restablecida entre personas que empleaban medios de fuerza, fijándose además una base de controversia por la declaracion del poseedor" 18 • Certis igitur ex causis praetor aut proconsul principaliter auctoritatem suam finiendis controuersiis interponit. quod tum maxime facit, cum de possessione aut quasi possessione inter aliquos contenditur; et in summa aut iubet aliquid fieri aut fieri prohibet. formulae autem et uerborum conceptiones, quibus in ea re utitur, interdicta decretaue uocantur (Gaio 4.139). Vocantur autem decreta, cum fieri aliquid iubet, uelut cum praecipit, ut aliquid exhibeatur aut restituatur, interdicta uero, cum prohibet fieri, uelut cum praecipit, ne sine ui tio possiden ti uis fiat, neue in loco sacro aliquid fiat. unde omnia interdicta aut restitutoria aut exhibitoria aut prohibitoria uocantur (Gaio 4.140). Como adiante se verá, há dois pontos que merecem ser acentuados na caracterização dos interditos tal como eram na origem e como se mantiveram ao longo da história do Direito Romano e dos Direitos nacionais que sobre este se alicerçaram: os interditos tinham carácter interino e processo sumário 19 • 15
Por comodidade de linguagem não se identificam outros magistrados, como os Edis ou os Proconsules, que participaram igualmente na promulgação de Éditos. 16 Por exemplo, um Édito do Pretor sobre coisas arrojadas ou vertidas: Darei uma acção pelo dobro do valor do dano que se tenha causado ou produzido contra aquele que habitar ali onde se haja arrojado ou vertido algo num lugar pelo qual habitualmente se transita ou se está. Alegando-se que por tal razão morreu um homem livre, darei uma acção pelo valor de cinquenta áureos. Se sobreviver e alegar que sofreu lesões darei uma acção pelo valor que por tal causa parecer equitativo ao juíz (D.9.3.1) . 17 António Secco, Manual Histórico de Direito Romano, pág. 100. 18 TABLAS CRONOLOGICAS ó Ilu stracion sinóptica de la historia dei Derecho Romano, CONCORDANCIA, G. Haubold, tradução de Antonio Maria Valderrama, Madrid, 1848, Establecimiento Tipografico-Literario de D. Nicolás de Castro Palomino y Compafí.ia, pág. 426. 19
"Los interdictos se usaban en los negocias urgentes que podian producir entre las partes recursos de hecho: de este número eran los relativos á la posesion y á la cuasi posesion" (Explicación Histórica de las Instituciones dei Emperador Justiniano, M. Ortolan, tradução espanhola de Pérez
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III) No Direito Romano todas as acções, fossem de que espécie fossem, seguiam ritos, sinais, simbologia específica e própria. Estes rituais apenas foram abandonados a partir de 343 e 428 por determinação dos Imperadores Constâncio, Teodósio e Valentiniano 20 (ainda que, como antes se disse, a prática os tenha mantido muito acentuadamente), através das legem Aebutiam et duas Iulias 21 • A necessidade de rituais justificava-se muito simplesmente pela forte ligação existente entre Direito, Religião e Mitologia que caracterizava a Lei de todos os povos da Antiguidade 22 . IV) O excessivo formalismo das legis actiones acabou por as fazer cair em desuso dado que o mínimo erro, inclusivamente na utilização das próprias palavras, podia conduzir à perda do litígio. Ainda assim o recurso a elas manteve-se, dado o seu enraizamento, embora através da criação de inúmeras ficções (Gaio, Inst. 4.32 a 4.38). Por exemplo, uma destas estava subjacente à já mencionada actio Publiciana: I ter usucapio fingitur in ea actione, quae Publiciana uocatur. datur actio autem haec ei, qui ex iusta causa traditam rem sibi nondum USU cepit eamque amissa possessione petit; nam quia non potest EAM ex iure Quiritium Suam esse intendere, fingitur reais USU cepisse, et ita, quase ex iure Quiritium Dominus factus esset, intendit uelut hoc modo: IVDEX ESTO. SI QVEM hominem A VL VS AGERIVS EMIT ET IS EI TRADITVS EST, ANNO POSSEDISSET, TVM SI EVM hominem, DE QVO AGITVR, EIVS EX IVRE QVIRITIVM ESSE OPORTERET et reliqua (Gaio 4.36).
V.I) O abandono das legis actiones não implicou verdadeiramente a renúncia às formalidades. Estas mantiveram-se, ainda que de modo muito menos acentuado, através do emprego de fórmulas ou formulários: per concepta uerba, id est per formulas, litigaremus- Gaio, Inst. 4.30. Por isso, para o que agora interessa, se distinguia a fórmula petitória 23 das de Anaya e Pérez Rivas, Tomo I, Madrid, Libreria de Leocadio López, 1884, pág. 363). José Ignácio da Rocha Peniz, Elementos da Prática Formulária ou Breves Ensaios sobre a Praxe do Foro Portuguez escriptos no anno lectivo de 1807 para 1808, pág. 16. 21 Gaio, 4.30. Parece, no entanto, que verdadeiramente terá sido com a lex Iulia iudiciorum privatorum (17 a.C.) que principiou a derrogação definitiva das legis actiones e a consequente generalização do procedimento formulário (A. Fernández Barreiro- Javier Paricio, Fundamentos de Derecho Patrimonial Romano, pág. 57). 22 "As adopsões, nupsias, funeraes, testamentos, votos, juramentos, consagrações, e especialmente a redacção dos annaes, indicação dos dias fastos e nefastos, e ultimamente a disposição do calendário, eram tudo matérias da sua particular superintendencia (dos pontificies)" (José Ignácio da Rocha Peniz, Elementos da Prática Formulária ou Breves Ensaios sobre a Praxe do Foro Portuguez escriptos no anno lectivo de .1807 para 1808, pág. 142). 23 Petitoria autem formula haec est, qua actor intendit rem suam esse (Gaio, Inst. 4.92). Por exemplo: Sendo juiz Tício. Se resulta que a coisa litigiosa é propriedade civil de Aula Agerio e não lhe é restituída segundo o teu arbítrio, condena juiz o Numerio Negidio a pagar a Aula Agerio 20
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fórmulas dos interditos possessórios 24 • Uma fórmula tinha as seguintes partes essenciais: demonstratio, intentio (pretensão), adiudicatio (adjudicação) e condemnatio (condenação) 25 • Não havia razão para que todas estas partes aparecessem em todas as acções 26 , ainda que demonstratio autem et adiudicatio et condemnatio nunquam solae inueniuntur (Gaio 4.44). E os interditos possessórios representavam certamente uma concretização desta ideia 27 • Entre as antigas legis actiones e o processo formulário a diferença marcante residia nisto: enquanto naquelas, para fixar a controvérsia, se pronunciavam certas palavras solenes perante o magistrado, no processo formulário os litigantes redigiam um documento escrito (fórmula) pelo qual identificavam as particularidades do caso e forneciam ao juiz a informação precisa sobre o objecto e os limites do litígio 28 • V.II) Aparentemente, o procedimento formulário terá tido a sua origem na actuação do Pretor peregrino uma vez que, na medida em que implicavam a presença dos litigantes perante o magistrado, as legis actiones se tornavam inacessíveis aos estrangeiros. Dentro das acções formulárias distinguiam-se as actiones civiles das actiones praetoriae. Eram as primeiras aquelas que se fundavam no ius civile e que derivavam das legis actiones. Por isso, indicavam na intentio o respectivo fundamento legal. As segundas não, por definição. As actiones praetoriae comportavam as seguintes espécies: - actiones ficticiae: quando, por razões de justiça, o Pretor ordenava ao juiz que considerasse como inexistente um facto existente ou vice-versa; - acções com transposição de pessoas: quando se procedia de maneira a que a condemnatio incidisse sobre pessoa diferente daquela que constava da fórmula; - actiones in factum : quando o seu conteúdo era improvisado caso a caso em virtude de não conterem nenhuma referência ao ius civile (o exemplo paradigmático era constituído pelas actiones in aequum conceptae) 29 • o valor da coisa. Gaio, Inst. 4.139 e 4.161 a 4.170. 25 Gaio, Inst. 4.39. 26 Essenciais, por isso, na medida em que pelo menos uma delas deveria estar presente para a redacção da fórmula (A. Fernández Barreiro- Javier Parido, Fundamentos de Derecho Patrimonial Romano, pág. 103). 27 Para uma descrição da sequência processual da generalidade dos interditos veja-se Arnaldo Biscardi, La tutela interdittale edil relativo processo, Rivista di Diritto Romano, http:/1 www.ledonline.it/rivistadirittoromano, págs. 27 a 31. 28 A. Fernández Barreiro- Javier Paricio, Fundamentos de Derecho Patrimonial Romano, pág. 56. 29 A. Fernández Barreiro- Javier Parido, Fundamentos de Derecho Patrimonial Romano, págs. 24
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V.III) A tramitação das acções forrnulárias tinha urna primeira fase que decorria perante o magistrado (e que se designava in iure - "fase do Direito"), e que, tal qual corno as acções de lei, começava com a ius vocatio (citação). Todavia, ao contrário de antes, o Direito pretório já regulava quer o modo pelo qual ela se devia fazer, quer as consequências da não comparência do demandado 30 31 • A fase in iure terminava com o decreto do magistrado (o Pretor) concedendo ou negando a acção solicitada: datio ou denegatio actionis. Com fundamento na datio actionis dever-se-ia constituir, em seguida, a relação jurídica processual através da chamada litis contestatio. Esta era um negócio jurídico processual especial mediante o qual o demandante propunha ao demandado urna determinada fórmula admitida pelo Pretor (em algum dos seus éditos) e este a aceitava; assim se submetiam ambos à futura decisão do juiz 32 . Era a litis contestatio que fixava, assim, o objecto do litígio. Se o demandado não aceitasse a fórmula, a consequente falta de defesa podia conduzir ao embargo dos seus bens (missio in bana). Obtida a fórmula 33, passava-se para a fase in iudicem (julgamento) perante o iudex (juíz). V.IV) Do ponto de vista processual, a obtenção da tutela interditai operava aproximadamente em termos similares. Assim, o procedimento começava, de novo, com a ius vocatio; a falta de defesa do demandado gerava, igualmente, a possibilidade da missio in bana; e, por fim, o magistrado podia conceder o interdito (interdictum reddere) ou não (denegatio interdicti). Mas, a partir daqui urna diferença se manifestava rnarcadarnente. Tratando-se de interdito, o Pretor pronunciava Restituas, Exhibeas ou Vim fieri veto; emitia, portanto (corno já se disse), urna ordem. Ao invés, na actio, o Pretor não decretava nada; ele apenas pronunciava Judiei um dabo ("darei acção") para que, posteriormente, o Judex proferisse sentença. A tutela interditai era atribuída de modo condicional: subordinava-se à veracidade dos factos alegados perante o magistrado, deixando aberta, por isso, a susceptibilidade de urna ulterior discussão judicial. Daí que, se o demandado não acatasse a ordem ínsita no interdito, a sua eficácia acabasse por consistir em 61/62. A. Fernández Barreiro- Javier Parido, Fundamentos de Derecho Patrimonial Romano, pág. 83. 31 De todo o modo, encontra-se aqui o embrião dos princípios da instância e do contraditório que caracterizam o moderno direito processual civil. 32 A. Fernández Barreiro- Javier Parido, Fundamentos de Derecho Patrimonial Romano, pág. 99. 33 Por exemplo: Iudex Numerium Negidium Aula Agerio sestercium X milia condemna; Si non paret, absolve (Juiz condena Numerium Negidium a pagar cem mil sestércios a Aulo Agerio; se não parecer que Numerium Negidium deve pagar, absolve- Gaio 4.43). 30
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fundamentar uma actio ex interdicto destinada a discutir a legitimidade da desobediência do demandado 34 .
V. V) Tinha surgido algures no tempo o costume de os imperadores romanos julgarem pessoalmente certos litígios relativos a direitos derivados de constituições imperiais que envolvessem, directa ou indirectamente, questões vinculadas com a administração ou a actividade de polícia. A este procedimento convencionou-se atribuir a designação cognitio extra ordinem 35 . Como este processo era mais simples e mais rápido que o formulário, as próprias partes passaram a preferi-lo, fazendo aquele outro cair em desuso. Por outro lado, com o absolutismo subjacente à reorganização do (chamado) Baixo Império, as constituições imperiais (leges) converteram-se na única fonte inovadora de Direito. Não admira, por isso, que tivesse sido possível, a partir de carta altura, promover a abolição do processo formulário. O que sucedeu algures por volta de 342 d.C. através de um Édito dos Imperadores Constante e Constâncio II 36 . Do ponto de vista da sua natureza jurídica, a diferença marcante entre o processo formulário e a cognitio extra ordinem situava-se no seguinte aspecto: enquanto o primeiro é, ainda, um procedimento dominado pelos litigantes (por muito discutível que seja a qualidade que nele tem a intervenção do Pretor), o segundo é já um processo administrado por um oficial público actuando como representante ou delegado do Imperador. Põe em marcha, pois, a visão moderna da Justiça como uma função do Estado, permitindo ultrapassar definitivamente a fase da "vingança privada".
2.2. Os interditos possessórios
I) No Codicis Repetitae Praelectionis, no seu Livro VIII, surge um vastíssimo número de interditos, ainda que alguns não se apresentem identificados com tal nome. Enumeram-se, de seguida, os principais (ou seja, aqueles que para a evolução histórica subsequente foram de importância determinante). O interdito quorum bonorum (Título II) destinava-se a constituir o herdeiro como possuidor desde que provasse ser filho do defunto e que tinha sido admitido à herança. Tinha legitimidade passiva quem quer que possuísse indevi-
34
A. Fernández Barreiro- Javier Paricio, Fundamentos de Derecho Patrimonial Romano, pág. 125. 35 Extra ordinem na medida em que inicialmente concorria com o procedimento formulário. 36 George Mousourakis, The Historical and Institutional context of Roman Law, Ashgate Publishing, Laws of Nations Series, Auckland, 2003, págs. 367 a 371; Ignazio Buti, La cognitio extra ordinem da Augusto a Diocleziano, in Aufstieg und Niedergang der Romischen Welt, Hildegard Temporini/Wolfgang Haase/Joseph Vogt, de Gruyter, 1982, págs. 34 a 42.
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damente os bens em causa como pro herede ou como pro possessore 37 38 • Quorum bonorum ex edicto meo illi possessio data est, quod de his banis pro herede aut pro possessore possides possideresve, si nihil usucaptum esset, quod quidem dolo mala fecisti, uti desineres possidere, id illi restituas (Ulpianus 67 ad Ed.; Dig. 43.2.1pr.). O interdito unde vi (Título IV) servia para obter a restituição daquele que tivesse sido expulso (da posse de um bem) pela força, se ainda não tivesse transcorrido o prazo de um ano útil. Tinha legitimidade passiva, obviamente, quem tivesse usado de tal força 39 para conquistar a posse. Unde tu illum vi deiecisti aut família tua deiecit, de eo quaeque ille tunc ibi habuit tantummodo intra annum, post annum de eo, quod ad eum qui vi deiecit pervenerit, iudicium dabo (Ulpianus 69 ad Ed.; Dig. 43.16.1pr.). O interdito absentis perturbata sit possessio (Título V) aplicava-se para actuar contra a privação da posse sofrida pelo ausente (situação em que, portanto, o problema do eventual uso da força não se colocava). Enquanto a ausência se verificasse, o prazo do ano útil não corria. O interdito uti possidetis era concedido àquele que possuísse em nome próprio coisa imóvel sem violência e sem clandestinidade para que continuasse a possuir e impedir que sofresse violência 40; permitia pois ao respectivo autor continuar possuindo imperturbado (impondo até, ao autor da perturbação, a prestação de caução como garantia de não turbação futura). O interdito utrubi perseguia exactamente a mesma finalidade mas para a posse de coisas móveis. Uti eas aedes, quibus de agitur, nec vi nec clam nec precario alter ab altero possidetis, quo minus i ta possideatis, vún fieri veto. de cloacis hoc interdictum non dabo. neque pluris, quam quanti res erit: intra annum, quo primum experiundi potestas fueril~ agere pennittam (Ulpianus 69 ad ed.; Dig. 43.17.1 pr.). Utrubi hic lzorno, quo de agitur, maiore parte huiusce anni fuit, quo minus is eum ducat, vim fieri veto (Ulpianus 72 ad Ed.; Dig. 43.31.1pr.). O interdito de precario (Título IX) servia para exigir dos herdeiros daquele 37
J. Heineccio, Elementos de Derecho Romano, trad. esp., pág. 330.
38
"Cualquiera persona á quien en virtud de mi edicto se haya conferido la posesion de los bienes, tiene derecho á la restitucion de los que otro le detenga en concepto de heredero ó de simple poseedor, ó los haya abandonado con dolo, con tal que no hayan llegado á prescribirse" (TABLAS CRONOLOGICAS ó Ilustracion sinóptica de la historia deZ Derecho Romano, SENTENCIAS DEL EDICTO PRETO RIO e EDIL!CIO, G. Haubold, tradução de Antonio Maria Valderrama, Fragmento 55, Madrid, 1848, Establecimiento Tipografico-Literario de D. Nicolás de Castro Palomino y Compafiia, pág. 399). 39 Como adiante se destacará,força não constituía necessariamente sinónimo de violência. 40 "Defenderé la posesion que se tenga en un edifício ó en el suelo, siempre que no adolezca de violencia, ocultacion ó precario. Respecto de las cloacas no tendrá lugar este interdicto, ni otra accion que la de perjuicios dentro de un afio útil" (TABLAS CRONOLOGICAS ó Ilustracion sinóptica de la historia del Derecho Romano, SENTENCIAS DEL EDICTO PRETO RIO e EDILICIO, G. Haubold, tradução de Antonio Maria Valderrama, Fragmento 73, pág. 401).
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que habitava como precarista a restituição da habitação. Precarium est, quod precibus petenti utendum conceditur tamdiu, quamdiu is qui concessit patitur (Ulpianus 1 Inst.; Dig. 43.26.1pr.). O interdito Salviano (Título IX), por seu turno, era utilizado para exigir do arrendatário a entrega dos utensílios sobre os quais este tinha constituído penhor como garantia de pagamento da renda. Si colonus ancillam infundo pignoris nomine duxerit et eam vendiderit, quod apud emptorem ex ea natum est, eius adprehendendi gratia utile interdictum reddi oportet (Iulianus 49 Dig.; Dig. 43.33.1pr. ). O interdito de novis operis nuntiatione (Título XI) consistia na apresentação de uma denúncia para impedir a realização de uma (nova) obra 41 . Para prevenir denúncias vãs devia o interdito ser apreciado no prazo de três meses. II) Nas Institutas de Gaio os interditos possessórios surgem configurados como acções com processo formulário destinadas a pôr fim a controvérsias sobre a posse ou a quase-posse, proibindo que se praticasse certa acção. Ao invés, quando se pretendia mandar Jazer algo usava-se um decreto (Inst.4.140) 42 • Em sentido amplo, porém, o termo interdito vulgarizou-se e acabou por abranger ambas as hipóteses. Segundo Gaio (lnst. 4.143), os interditos distinguiam-se consoante a sua finalidade. Por isso, teríamos interditos para adquirir a posse, para a manter e para a recuperar 43 • Analogamente existia o interdito de danno infecto (ou de obra ruinosa, como às vezes se diz) destinado a reagir contra a probabilidade de derrocada ou desmoronamento de construção alheia capaz de causar danos a quem demandava. Sucede que, no Direito Romano, a pessoa ameaçada obtinha antes de mais, através de tal interdito, a cautio damni infecti, pelo que, sendo esta prestada, não se produziam consequências possessórias (" tendrá lugar la promesa y fianza de responder dei dafío aun no causado, en cualquier tiempo que jure el que le teme que no la pide maliciosamente, ni tampoco la persona en cuyo nombre gestiona, hasta el dia que se fijará con conocimiento de causa. ( ... ). No dando caucion, mandaré poner en posesion, y, llegado el caso, poseerá en ejecto el actor. Pera si el requerido se resistiese á dar caucion, ó á permitir la mision y la posesion, será condenado en lo mismo que deberia pagar, si hubiera afianzado en virtud de un decreto mio ó dei juez competente. Y si aun habiendo encomendado la posesion al actor, no quiere afianzar el demandado, acordaré que ambos posean juntamente"- TABLAS CRONOLOGICAS ó Ilustracion sinóptica de la historia dei Derecho Romano, SENTENCIAS DEL EDICTO PRETORIO e EDILICIO, G. Haubold, tradução de Antonio Maria Valderrama, Fragmento 39, pág. 96). 42 Assim, por exemplo e no rigor dos termos, no interdito chamado unde vi haveria verdadeiramente um decreto, e só no uti possidetis ou no utrubi existiria um interdito em sentido estrito. 43 Os interditos "se dividían en cuatro clases. 1. 0 Interdictos para adquirir la posesion que todavía no se había alcanzado (adipiscenciae possessionis causa). 2. 0 Para conservar la posesion que se tenia y que alguno nos disputaba (retinendae possessionis). 3. 0 Para hacerse restituir la posesion que nos habia sido arrebatada (recuperandae possessionis) ; y 4. 0 , en fin, interdictos dobles, tanto para adquirir, cuanto para recobrar la posesion" (Explicación Histórica de las Instituciones del 41
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Interditos para adquirir a posse eram, por exemplo, o quorum bonorum ou o Salviano
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Interditos para manter a posse eram, por exemplo, o uti possidetis e o utrubi. Em ambos, como resultava do Codicis Repetitae Praelectionis, o Pretor dava preferência, através do interdito, a quem possuísse um imóvel ou um móvel, respectivamente, sem vício de violência, clandestinidade ou precariedade (nec vi nec clam nec precario ad adversaria possideat- Gaio, Inst. 4.150 45 ). Em qualquer caso, dava-se primazia ao litigante que maior tempo de posse demonstrasse ter sobre a sobre coisa, sendo certo que, para o efeito, se podia somar o tempo de posse daquele de quem esta se tivesse adquirido derivadamente (acessão da posse- Gaio, Inst. 4.151). Para recuperar a posse existia o interdito unde tu illum vi deiecisti, por via do qual aquele que expulsou outrem da sua posse estava obrigado a restitui-lo à mesma, a menos que o expulso estivesse a possuir com vício de violência, clandestinidade ou precariedade (Gaio, Inst. 4.154). III) Os interditos uti possidetis e utrubi, ainda segundo Gaio (lnst. 4.160), eram duplicia (duplos) na medida em que neles a posição de ambos os litigantes era idêntica sem que se pudesse dizer quem era o demandado e quem era o demandante. O Pretor dirigia-se ambos os litigantes com idênticas palavras e, assim, para o uti possidetis, a redacção do interdito era: uti nunc possidetis, quo minus ita possideatis, vim fieri veto. E, para o utrubi, a redacção era: utrubi ic homo, de quo agi tu r, [apud quem] maiore parte huius anni fuit, quo mi nus is eum ducat, vim fieri veto. IV) Também de acordo com Gaio (Inst. 4.142) os interditos podiam distinguir-se, numa outra classificação, em prohibitoria, restitutoria e exhibitoria. Nos primeiros integravam-se o utrubi, o uti possidetis ou o de glande legenda46 • Nos segundos, cabiam o quod precario 47, o unde vi, o quorum bonorum ou o Emperador Justiniano, M. Ortolan, pág. 363). Havia também o interdito sectorium para aquele que tivesse adquirido bens em hasta pública (Gaio, Inst. 146). 45 Quod vi aut clam factum est, qua de re agitur, id cum experiendi potestas est, restituas (Ulpianus 71 ad Ed.; Dig. 43.24.1pr.). 46 Este era aquele através do qual se proibia a utilização de violência para impedir o proprietário de bolota caída em terreno alheio de a recolher em dias alternados (D.43.28.1pr.). "El duefio del fruto caído dentro del campo vecino, tiene tres dias para recogerlo , en los cuales no es dado ponerle impedimento" (TABLAS CRONOLOGICAS ó Ilustracion sinóptica de la historia dei Derecho Romano, SENTENCIAS DEL EDICTO PRETO RIO e EDILICIO, G. Haubold, tradução de Antonio Maria Valderrama, Fragmento 92, pág. 403). 47 Servia para obter a restituição da coisa que estivesse em poder do demandado a título de precarista ou que este tivesse dolosamente deixado de ter em seu poder (D.43.26.2pr.). O precarium era o empréstimo ou concessão livremente revogável. O precarista tinha a 44
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demolitorium 48 • Nos últimos entravam os interditos de tabulis exhibendis exhibendo 50 .
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e de homine libero
V) Os historicamente mais significativos interditos possessórios tinham as seguintes fórmulas: - O interdito utrubi: Proíbo o uso de violência para impedir que continue a ter o escravo acerca do qual se discute aquele de vós os dois que o tenha tido durante a maior parte do ano; - O interdito uti possidetis: Proíbo que se impeça pela violência que continueis possuindo a casa de que se trata, tal e como agora a possuis sem violência nem clandestinidade nem em precário um perante o outro; - O interdito de glande legenda: Se cai a bolota de um terreno no teu, proíbo a violência para impedir que, em dias alternados, possa passar para a recolher e levar; - O interdito quod precario: Aquela coisa, objecto da reclamação, que tenhas recebido de aquele em precário, ou que tenhas deixado dolosamente de ter em teu poder, deverás restituir; - O interdito unde vi: De onde tu expulsaste ou de onde os teus escravos expulsaram aquele que estava possuindo sem violência, clandestinidade ou precário em relação a ti, restitui-o, no prazo de um ano, juntamente com as coisas que então ele ali tinha; coisa em seu poder exclusivamente por tolerância do seu possuidor, como se diria hoje [artigo 1253° /b), Código Civil], uma vez que a respectiva entrega se fundava numa prece (dirigida a este último). Por isso, "se restituirá inmediatamente á su duefto lo que otro tenga en precario, ó haya dejado de tener com dolo" (TABLAS CRONOLOGICAS ó Ilustracion sinóptica de la historia dei Derecho Romano, SENTENCIAS DEL EDICTO PRETORIO e EDIL! CIO, G. Haubold, tradução de Antonio Maria Valderrama, Fragmento 89,
pág. 403). É de assinalar, todavia, que para Rudolf von Jhering, o interdito de precario não tinha natureza possessória (Über den Grund des Besitzesschutzes, tradução portuguesa de José González, Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2007, págs. 85 a 87). 48 Este utilizava-se para obter a restituição de um lugar ao seu estado originário quando se tivesse construído antes da denúncia de obra nova ter expirado ou de ter sido remitida (D.39.1.20pr.). 49 Para ordenar que se exibam as tábuas correspondentes ao testamento (de Lucia Ticio) se estão em poder do demandado ou se este actuou dolosamente para deixar de as ter (D.43.5 .lpr.). "Tienes obligacion de exhibir las tablas del testamento que Lucio Ticio asegura haber dejado en tu pode1~ si efectivamente las posees ó has cesado maliciosamente de poseerlas. En este decreto se comprende tambien el libelo ú. otro cualquier documento" (TABLAS CRONOLOGICAS ó Ilustracion sinóptica de la historia dei Derecho Romano, SENTENCIA S DEL EDICTO PRETORIO e EDILICIO, G. Haubold, tradução de Antonio Maria Valderrama, Fragmento 56, pág. 99). 50 Destinado a mandar exibir a pessoa livre que o demandado retivesse dolosamente (D.43.29.1pr).
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-O interdito quorum bonorum: (Aquele) sobre cujos bens lhe foi dada posse através do meu édito, restituir-lhe-ás o que possuis como herdeiro ou como possuidor ou
que possuirias se nada houvesse sido usucapido e se actuastes dolosamente para deixares de os possuir; - O interdito demolitorium: No lugar em que se anunciou que não se pode construir a obra nova de que se trata, o que nesse lugar tenha sido construído antes de a denúncia ter sido deferida ou devesse ter sido deferida, restitui-o. VI) O Código Visigótico 51 estatuía no seu Livro VIII, Título I, II (em tradução adaptada e com linguagem actualizada): "Quem quer que tome à força a posse de outrem antes de a respectiva propriedade estar judicialmente demonstrada deve perder o
litígio ainda que tenha uma pretensão de maior valor. Àquele que foi vítima da violência deve a coisa ser restituída na exacta condição em que então estava, tendo o direito a prosseguir pacificamente o seu gozo. Se, no entanto, alguém se apropriar à força de coisa que não poderia obter por decisão judicial, deve perder não só aquilo de que se apoderou como deve também dar reparação de valor igual àquele de que privou o lesado". A acção estava marcada, pois, como de resto permaneceria de aqui em diante (e como se verá de seguida), pela privação da posse à força. No Direito Romano, o interdito unde vi distinguia-se do unde vi annata. Pelo que o conceito "privação da posse à força" (vi) seria sinónimo (só) de subtracção contra a vontade do possuidor e não de obtenção com violência (vi armata). Daí que no âmbito daquele primeiro interdito o despojado dispusesse do prazo de um ano para o intentar, ao passo que no segundo, por causa do recurso à força armada para arrebatar o domínio de facto, o demandante tivesse sempre direito à restituição da coisa (ou seja, não estivesse sujeito a qualquer prazo para demandar o esbulhador). Algures historicamente, entre a vi armata e a vi ocorreu uma simbiose que tornou o interdito unde vi o apropriado para reagir contra a privação do senhorio sobre a coisa contrária à vontade do possuidor, independentemente de, para o efeito, ter havido recurso à força armada. Daí a razão para o que se dispõe neste fragmento do Código Visigótico: o que toma "à força ... deve perder o litígio ainda que tenha uma pretensão de maior valor" (qualquer que seja o modo como tenha tomado "à força"). Esta mesma ideia irá perpassar, por exemplo, pelo Fuero Juzgo e pelas nossas diversas Ordenações. VII) No Fuero Juzgo 52 (Libra X, III Titol- De los términos et de los fitos- Ley IV) estabelece-se que "si algun omne toma heredad de algun vecino allende de los fitos 53,
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Também conhecido como Lex Visigothorum, Código de Recesvindo, Livro dos Juízos, Liber Iudicum, Liber Gothorum, Fori Iudicum, Forum Iudicum ou Forum Iudiciorum. 52 Que é, na verdade, uma tradução e adaptação do Código Visigótico para vigorar em Castela, operada por ordem do Rei Fernando III. 53 Ou seja, para além dos respectivos marcos.
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non seyendo el vecino en la tierra, á no lo sabiendo, assi que la tenga por mucho tiempo por L annos, á mas; mantinientre que los vecinos cataren los fitos, é los fallaren, deve perder luego lá que tomá demas, é non le deve prestar aquello que tovo luengo tiempo, alende de los fitos. Mas esta deve ser entendudo, si aquello puede ser sabido, si aquella tierra era suya, á de sus antecessores. Mas si tantos tiempos fueren pasados, que non pueda ser sabido qual tovo primero, á cuya era, ne lo dicen testigos, nin escripto, por que es cosa dubdosa, quien lo tovo á primas, cada uno tenga por todavia lo que tiene. Mas si lo puede el otro mostrar que lo tovo á primas por fitos, á por otra cosa, non semeia de razon, que por que la tovo estotro luengo tiempo, que la deve el otro perder. Onde aquel que la tomá por fuerza, á por enganno, non deve nada empecer al otro. Mas si alguno dellos lo que quisiere aver no lo deve tomar por fuerza, mas demandaria por iudicio. E si lo tomare por fuerza, el otro lo deve acusar por la fuerza, é vencerlo por forzador" 54 . VIII) Nas nossas Ordenações aparece muito particularmente evidenciada uma acção de contornos próximos, na sua forma, aos do interdito unde vi. Assim, nas Manuelinas (Livro IV, Titulo L: Dos que tomam forçosamente a posse da cousa que outra possue) diz-se: Se alguma pessoa forçar e esbulhar a outrem da posse d'algua cousa, ou herdade(.. .) non tendo primeiramente citado e ouvido com seu direito como se per Direito se deve fazer, o forçador perca o direito que na cousa forçada tiver de que esbulhou o que possuía, o qual será adquirido e apricado ao esbulhado, ao qual seja loguo tomada e restituída a posse da cousa de que foi esbulhado. Nas Afonsinas (Livro IV, Título LXV: Dos que forçozamente filham posse da cousa, que outrem possue) dispõe-se praticamente o mesmo, pelo que se pode dizer que esta é fonte daquela, mas esclarecendo-se as razões que conduziram a semelhante solução. Diz-se, de facto, que Dom Doniz ... veendo como se faziam muitos males, e grandes contendas ... per razom ... das heranças, que alguus teem, e que outros per suas forças os vaão esbulhar das posses que teem, non seendo ante hy chamados, nem ouvidos com seu direito: honde veendo e esguardando os males se ende seguiam, e seguiram ao diante, e per esquivar os feitos das forças, porque das forças nacem grandes sobervas, e cobiças, por isso fez a Lei em causa 55 . Por fim, nas Ordenações Filipinas (Livro IV, Titulo LVIII: Dos que tomam forçosamente a posse da coisa, que outrém possui) diz-se essencialmente o mesmo que nas Manuelinas, quase ipsis verbis, com a devida actualização linguística. Tendo em conta, porém, a explicação contida nas Afonsinas acerca da Lei instituída por D. Dinis, parece poder concluir-se que, pelo menos, já se teria procedido à conjugação na mesma acção das pretensões tipicamente contidas nos
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Fuero ]uzgo en Latin y Castellano, Real Academia Espafiola, Ibarra- Impresor de Cámara
de S.M., 1815, págs. 170/171. Nas Ordenações Afonsinas existem, em rigor, duas Leis sobre este assunto: uma de D. Afonso III e outra, sim, de D. Dinis, embora esta indubitavelmente mais extensa e minuciosa.
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interditos unde vi e quorum bonorum 56 • Embora com uma grande diferença: é que as consequências da condenação eram particularmente gravosas para o esbulhador- E posto que allegue, que he senhor da cousa, ou lhe pertence ter nella algum direito,
não lhe seja recebida tal razão, mas sem embargo della seja logo constrangido restituil-a ao que a possuía, e perca todo o direito que nella tinha, pelo fazer por sua propria força, e sem auctoridade de Justiça (Ordenações Filipinas, Livro e Título cit.). Na verdade, dando sequência ao que se dispunha no Código Visigótico e no Fuero Juzgo e numa afirmação da soberania do Estado, pretendia-se que o recurso à tutela privada ficasse de tal modo proibido que a simples ocorrência de esbulho implicasse a perda de qualquer eventual direito de que o esbulhador dispusesse. Algo que os referidos interditos não envolviam na época romana. O Direito Civil assumia então (também) um carácter sancionador. IX) Da linha evolutiva que aqui fica perfunctoriamente traçada parece legítimo inferir, de imediato, duas conclusões: A primeira, mais óbvia, segundo a qual os diversos tipos de interditos se foram fundindo entre si, na medida da sua analogia, conforme o processo formulário se foi gradualmente diluindo num procedimento judicial de carácter mais geral e abstracto, em que a pretensão deduzida não implicava, em regra, formas de actuação em juízo especiais e próprias. Aliás, por exemplo, a distinção entre os interditos utrubi e uti possidetis era claramente artificial uma vez que ambos se destinavam ao mesmo fim e a diferença (se assim se pode dizer) entre eles resultava tão-somente da distinta natureza da coisa cuja posse se pretendia proteger. A segunda, no sentido de pretender a todo o custo impedir o recurso à força para obtenção da posse sobre uma coisa, ainda e mesmo quando o "forçador" fosse o legítimo titular do direito que lhe deveria conceder a posse sobre tal coisa. X) Não obstante o regime que resultava das Ordenações, a possibilidade de tutela privada da posse não ficava (como é óbvio) inteiramente excluída. Ainda antes da entrada em vigor do Código Civil de Seabra e, portanto, numa altura em que aquelas eram ainda o principal corpo legislativo do Reino de Portugal, admitia-se serenamente, e dando sequência, aliás, a soluções reconhecidas pelo próprio Direito Romano, que a defesa da posse pudesse operar também por via extrajudicial. Pelo menos, através do desforçamento, em caso de posse espoliada. E este podia até assumir dois modos 57 : por "hum delles o mais seguro e prudente,
he requerer ao Magistrado assistência de Officiaes de Justiça para o Desforçamento na forma da boa praxe"; pelo outro, o possuidor "pode recuperar a posse desforçando-se, 56
Nesta sequência o Alvará de 9 de Novembro de 1754 "determina que por morte do fallecido a posse dos seus bens passe logo, a quem pertencer". 57 Manoel d' Almeida e Souza (de Lobão), Tractado encyclopedico, compendiario, pratico, systematico, dos interdictos possessorios, geraes e especiaes, Lisboa, Impressão Regya, 1829, págs. 16/17. Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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ainda que com ajuntamento de gente, quanta lha for necessária conforme a prepotencia do Adversaria: Com tanto que assim o execute incontinenti ( ... )E com tanto que assim seja preciso, e se tracte de recuperar huma posse justa, e legitima". Por isso, não é de estranhar que, não obstante as previsões gerais contidas nos artigos 336° e 337° do Código Civil relativas, respectivamente, à acção directa e à legítima defesa, a susceptibilidade de recurso à auto-tutela apareça reiterada no artigo 1277° do mesmo diploma justamente a propósito da defesa da posse. É talvez esta uma das hipóteses onde, especialmente no caso da acção directa, é maior o seu potencial âmbito de aplicação.
2.3. Acções possessórias 2.3.1. Legislação comparada LI) A legislação espanhola, especialmente através da Ley de Enjuiciamento Civil (LEC), é aquela que mais aprofundadamente mantém a tradição romana. De acordo com o artigo 446 do Código Civil Espanhol "todo poseedor tiene derecho a ser respetado en su posesión; y, si fuere inquietado en ella, deberá ser amparado o restituído en dicha posesión por los medias que las leyes de procedimientos establecen". A LEC de 1881 regulava os interditos no Titulo XX do Libro II dedicado à Jurisdicción Contenciosa (artigos 1631 a 1685) afirmando-se no primeiro deles que: "Los interdictos sólo podrán intentarse: 1. Para adquirir la posesión. 2 . Para retenerla o recobraria. 3 . Para impedir una nueva obra. 4. Para impedir que cause dano una obra ruinosa".
I.II) Os interditos para manter a posse actual e para a recuperar, literalmente expressos em formas similares, respectivamente, ao uti possidetis e ao unde vi, aparecem previstos nos termos do art. 250.1.3.41 da LEC: "se decidirán en juicio verbal, cualquiera que sea su cuantía, las demandas siguientes: ... Las que pretendan la tutela sumaria de la tenencia o de la posesión de una cosa o derecho por quien haya sido despojado de ellas o perturbado en su disfrute". Como se retira da própria letra da disposição citada, "el llamado interdicto de recobrar o retener la posesión es un procedimiento sumario destinado a proteger la posesión como hecho, o el hecho de la posesión contra las perturbaciones que la dafían, correspondiendo al antiguo interdictum recuperandae possessionis deZ Derecho romano, aunque con la importante diferencia de que en nuestro Derecho se ampara no sólo la posesión, sino también la mera tenencia, como determinan los arts. 430, 444 y 446 deZ Código Civil, que establecen que "todo poseedor tiene derecho a ser respetado en su posesión y si fuera inquietado en ella, deberá ser restituído o amparado por los medias que las Leyes de procedimiento establecen ", siendo nuestro sistema jurídico en esa materia, sumamente
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respetuoso, como lo expresa el art. 441, al decir que "en ningún caso puede adquirirse violentamente la posesión, mientras exista un poseedor que se oponga a ello". "El que se crea con acción o derecho para privar a otro de la tenencia de una cosa, siempre que el tenedor resista la entrega, deberá solicitar el auxilio de la autoridad competente", bastando la mera tenencia o posesión como hecho, pues en el juicio de interdicto no se ventila el mejor derecho, sino la preexistencia o no de una situación" (sentença do Tribunal Supremo de 15 de Janeiro de 1968). II) No Código Civil Francês a matéria é essencialmente regulada pelos artigos 2278 ("1. la possession est protégée, sans avoir égard au fond du droit, contre le trouble qui l'affecte ou la menace; 2. la protection possessoire est pareillement accordée au détenteur contre tout autre que celui de qui il tient ses droits") e 2279 ("les actions possessoires sont ouvertes dans les conditions prévues par le code de procédure civile à ceux qui possedent ou détiennent paisiblement"). No artigo 1264 do Código de Processo Civil Francês diz-se que "les actions possessoires sont ouvertes dans l'année du trouble à ceux qui, paisiblement, possedent ou détiennent depuis au moins un an; toutefois, l'action en réintégration contre l'auteur d'une vaie de fait peut être exercée alors même que la victime de la dépossession possédait ou détenait depuis moins d'un an". E no artigo seguinte que "la protection possessoire et le fond du droit ne sont jamais cumulés". Da conjugação destas disposições legais, três ilações são imediatamente possíveis: - as acções possessórias são concedidas indiferentemente ao possuidor e ao detentor; - o recurso à protecção que elas concedem supõe posse ou detenção pacífica; - o petitório e o possessório excluem-se reciprocamente, pelo que a discussão relativa ao "direito de fundo" não pode surgir no procedimento possessório 58 . III) No artigo 1168 do Código Civil Italiano está prevista a chamada azione di reintegrazione: "Chi estato violentemente od occultamente spogliato del possesso puà, entro l'anno dal sofferto spoglio, chiedere contra l'autore di essa la reintegrazione deZ possesso medesimo. L'azione e concessa altresi a chi ha la detenzione della cosa tranne il caso che l'abbia per ragioni di servizio o di ospitalità. Se lo spoglio eclandestino, il termine per chiedere la reintegrazione decorre dal giorno della scoperta dello spoglio. La reintegrazione deve ordinarsi dal giudice sulla semplice notorietà deZ fatto". E no artigo 1170 surge a azione di manutenzione: "Chi estato molestato nel possesso di un immobile, di un diritto reale sopra un immobile o di un'universalità di mobili puà, entro l'anno dalla turbativa, chiedere la manutenzione deZ possesso medesimo. L'azione e data se il possesso dura da oltre un anno, continuo e non interrotto, e non e 58
"Celui qui agit au fond n'est plus recevable à agir au possessoire" (artigo 1266) e "le défendeur au possessoire ne peut agir au fond qu'apres avoir mis finau trouble" (artigo 1267).
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stato acquistato violentemente o clandestinamente. Qualora il possesso sia stato acquistato in modo violento o clandestino, l'azione puà nondimeno esercitarsi, decorso un anno dai giorno in cui la violenza o la clandestinità e cessata. Anche colui che ha subito uno spoglio non violento o clandestino puà chiedere di essere rimesso nel possesso, se ricorrono le condizioni indicate dai comma precedente". Duas ilações se podem tirar instantaneamente: - de modo análogo ao Código Civil Francês, ambas as acções são concedidas tanto ao possuidor como, em geral, ao detentor; - numa nova conjugação entre os interditos uti possidetis e utrubi, a tutela possessória (mas agora só a de manutenção) pressupõe que a posse do demandante seja pública e pacífica (ao menos durante o ano anterior à propositura da acção). IV) No Código Civil Suíço estabelece-se no seu artigo 927 que: "1. Quiconque usurpe une chose en la possession d'autrui est tenu de la rendre, même s'il y prétend un droit préférable. 2. Cette restitution n'aura pas lieu, si le défendeur établit aussitôt un droit préférable qui l'autoriserait à reprendre la chose au demandeur. 3. L'action tend à la restitution de la chose et à la réparation du dommage". E no artigo 928 que: "1. Le possesseur troublé dans sa possession peut actionner l'auteur du trouble, même si ce dernier prétend à quelque droit sur la chose. 2. L'action tend à faire cesser le trouble, à la défense de le causer et à la réparation du dommage". Por conseguinte, temos, respectivamente, a acção de restituição e a acção de manutenção. Diferentemente, porém, do que se dispõe no Código Civil Francês: - admite-se que tanto na acção de restituição como na de manutenção se discuta a questão relativa ao "direito de fundo"; - admite-se, também em ambas, que se cumulem os pedidos de restituição ou cessação da perturbação com o de "réparation du dommage". V) Por fim, no Código Civil Alemão, no seu§ 861 (1), diz-se que "se o possuidor for esbulhado da sua posse através de interferência ilícita, pode requerer que a posse seja restabelecida pela pessoa que, em relação a ele, tenha uma posse viciada". Mas, (2) "a pretensão será excluída caso a posse que tiver sido esbulhada for viciada em relação ao presente possuidor ou ao seu causante desde que tenha sido obtida durante o ano anterior ao esbulho". Quer dizer que se a posse do esbulhado for viciada este não dispõe de tutela judicial para a sua situação. O mesmo se diga para a hipótese de turbação. De facto, no§ 862, por seu turno, estabelece-se que (1) "Se o possuidor for perturbado na sua posse através de interferência ilícita, pode requerer que o perturbador cesse a perturbação. Sendo de temer novas perturbações, o possuidor pode obter uma ordem de proibição". Mas, de novo, (2) "a pretensão será excluída caso a posse que tiver sido perturbada for viciada em relação ao presente possuidor ou ao seu causante desde que tenha sido obtida durante o ano anterior ao esbulho". No§ 863 determina-se que "em resposta às pretensões estabelecidas nos§§ 861 e
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862, o direito de possuir ou o de produzir a perturbação podem ser afirmados apenas para fundamentar a pretensão de que o esbulho ou a perturbação não constituem interferência ilícita". Por fim, no § 864 estatui-se que (1) "a pretensão baseada nos §§ 861 ou 862 extingue-se um após ter ocorrido o acto de interferência ilícita, a menos que antes disso ela seja afirmada através da competente acção". E (2) a "extinção sucede igualmente se for determinado por decisão final e sem apelo, após ter ocorrido o acto de interferência ilícita, que o seu autor tem um direito à propriedade em virtude do qual ele pode pretender um estatuto possessório correspondente ao seu modo de actuação".
2.3.2. Os interditos possessórios nas codificações nacionais I) No Código Civil de 1867 a defesa da posse estava nuclearmente disciplinada nos artigos 487° a 489°. No artigo 487° estava previsto, no fundo, o produto da síntese entre os interditos uti possidetis e unde vi, prolongando a tradição que já vinha das Ordenações: se o possuidor foi esbulhado violentamente, tem direito a ser restituído, sempre que o requeira, dentro do praso de um anno; nem o esbulhador será ouvido em juízo, sem que a dieta restituição se tenha effectuado. Ultrapassou-se a necessidade de impor a sanção que se estabelecia nas Ordenações ("perca todo o direito que nella tinha"), provavelmente por se ter entendido que a matéria deveria ser deixada ao alcance do diploma apropriado para o efeito (ou seja, o Código Penal), prescrevendo antes a impossibilidade de o "forçador" ser "ouvido em juizo" até que a restituição se produzisse. Nos artigos 488" e 489° compunha-se uma regulamentação que reflectia uma distinção que já no Codicis Repetitae Praelectionis se fazia a propósito do interdito unde vi: entre o esbulhado com posse há menos de um ano e o esbulhado com posse há mais de um ano 59 • Assim, "se a posse é de menos de um anno, ninguém pôde ser mantido ou restituído judicialmente, senão contra aquelles que não tenham melhor posse. § único: É melhor posse, que se abone com título legitimo; na falta de título ou na presença de títulos eguaes, é melhor posse a mais antiga; se ambas as posses forem duvidosas, será a cousa posta em deposito, em quanto se não decidir a quem pertence" (artigo 488°). E "se a posse tiver durado por mais de um anno, será o possuidor summariamente mantido ou restituído, em quanto não for convencido na questão da propriedade" (artigo 489°). II) Da oposição entre, por um lado, o disposto no artigo 487° e, por outro, o que se determinava nos artigos 488° e 489", podia deduzir-se que estas duas últimas aplicar-se-iam quer na suposição de existir violência quer na suposição 59
Daí a justificação para o aparecimento da antiga e venerável expressão "posse de ano e dia" como sinónimo de posse mais valiosa.
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inversa. A defesa concedida pela disposição contida no artigo 487° tinha natureza precária: pressupunha a continuação da discussão sobre o fundo da questão (o estabelecimento da "melhor posse" ou o "convencimento na questão da propriedade"), dado que o simples facto de o esbulhador ter recorrido à violência (já) não implicava a extinção das suas eventuais pretensões. Daí a razão, pode adiantar-se desde já, para que no actual Código Civil o esbulho violento não viesse a dar origem a qualquer tipo particular de interdito possessório (dando continuidade, assim, à tradição iniciada entre nós pelas Ordenações, e mantendo a integração entre os interditos unde vi e unde vi armata). O recurso à violência para efectivar o esbulho tornou-se (apenas) fundamento de uma providência cautelar especificada prevista no artigo 1279° do Código Civil: o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador 60 • Razão pela qual, "no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência" (artigo 393°, Código de Processo Civil) e "se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordenará a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador" (artigo 394° do mesmo diploma). 60
"Nesta figura peculiar, que escapa ao perfil das providências cautelares, apesar de se misturar com elas, e cuja origem data do direito romano, a definição do conceito de violência tem suscitado ao longo dos tempos, repetidas dificuldades e constantes controvérsias, nomeadamente a questão de saber se essa violência, também abrange os actos sobre coisas (.. .). À criação e permanência desta figura, de rápida intervenção, no elenco dos meios de defesa duma situação possessória, preside uma ideia de desencorajamento de acções violentas, pela forte ameaça que elas representam ao valor da liberdade de determinação do homem. Sendo este procedimento um meio de defesa da posse deve atender-se ao conceito de violência consagrado na lei, para efeitos de caracterização da aquisição da posse, actualmente constante do art 1261", n° 2, do C.C.: «Considera-se violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coacção física, ou de coacção moral nos termos do art0 255°». Quer a coacção física, quer a coacção moral (art 0 255°, n° 1, do C. C.), exigem uma acção física ou psicológica sobre o declarante que, ao constrangê-lo, lhe retira a capacidade para se determinar livremente. No caso de esbulho, para que o mesmo seja considerado violento, deve ser levado a cabo através duma acção que, constrangendo o esbulhado, o coloque numa situação de incapacidade de reagir perante o acto de desapossamento, permitindo-o. Assim, se essa acção recair sobre coisas e não directamente sobre pessoas, a mesma só poderá ser considerada violenta se, indirectamente, coagir o possuidor a permitir o desapossamento, pois só assim estará em causa a liberdade de determinação humana" (Acórdão da Relação do Porto de 16/10/2006, P. 0655160). Na verdade, se a 0
posse, para ser violenta, pressupõe que a sua aquisição se tenha fundado no exercício de alguma espécie de coacção (absoluta ou relativa), a utilização de força sobre uma coisa não a pode caracterizar como violenta dado que, exceptuando as pessoas, nada mais é susceptível de coacção pois nada mais há que tenha uma vontade juridicamente atendível.
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III) Porém, uma reflexão mais atenta sobre a natureza desta providência cautelar permite assinalar, desde logo, uma especificidade: é que enquanto o fundamento normal e natural destes meios processuais reside no periculum in mora 61 62 , tal não ocorre com a providência descrita no referido artigo 1279° do Código Civil. De facto, ocorrida a privação do domínio de facto, o fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito independe de o esbulho ter sido violento, uma vez que esse periculum está no esbulho, não na violência. Justamente por isso, a distinção entre os interditos unde vi e unde vi armata perdeu significado com o decurso do tempo: havendo privação da posse, o esbulhado pode demandar o "forçador" pedindo a restituição da coisa, tenha ou não existido violência. Mas o esbulho com recurso a vi armata não é desprovido de implicações possessórias: em tal caso, o esbulhador é punido 63 com a obrigação de fazer a restituição imediata, ainda que provisória, mesmo podendo ter fundamentos que sustentem a sua pretensão. Assim sendo, deve concluir-se que, no fim de contas, a vi armata ainda tem alguma particularidade de regime e, mais significativo, que se conserva uma penalização para o seu autor: a imposição da obrigação de restituir sem citação nem audiência do esbulhador. Do ponto de vista processual é um pesado castigo, dado o princípio contido no artigo 3°-A do Código do Processo Civil 64 e dada, portanto, a óbvia possibilidade de a violência não ter efectivamente sucedido 65 • IV) Do artigo 393° do Código de Processo Civil retira-se "que os requisitos de que depende a procedência do pedido de restituição provisória da posse são 61
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Artigo 381 o /n. 1 do Código do Processo Civil: "sempre que alguénz mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado". 62 Fundamento que se mantém qualquer que seja a fase do processo em que os litigantes se encontrem. Daí que pelo Acórdão Uniformizador n." 9/2009 o Supremo Tribunal de Justiça tenha estabelecido que" os procedimentos cautelares revestem sempre carácter urgente mesmo na fase de recurso". 63 Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, Almedina, Coimbra, 1981, pág. 134. Cf. igualmente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/11/1984, Proc. n. 72.245. 64 "O tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade subsfancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de comi nações ou de sanções processuais". 65 Ainda que "se a providência for considerada injustificada ou vier a caducar por facto imputável ao requerente, responde este pelos danos culposamente causados ao requerido, quando não tenha agido com a prudência normal" e "sempre que o julgue conveniente em face das circunstâncias, pode o juiz, mesmo sem audiência do requerido, tornar a concessão da providência dependente da prestação de caução adequada pelo requerente" (respectivamente, n. 0 1 e n."2 do artigo 390° do Código de Processo Civil). 0
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três: a posse, o esbulho e a violência" 66 • Como para qualquer acção possessória, uma vez que nela está em causa a defesa da posse, deve o respectivo autor provar que é possuidor 67 • Deve, em segundo lugar, provar que foi privado do inerente domínio de facto contra a sua vontade. No fundo, importa que não tenha havido "cedência" da posse [artigo 1267°, n. 0 1, alínea c), Código Civil]. V) A definição do que se considera violência para este efeito não pode deixar de se fazer em função do disposto no artigo 1261 o do Código Civil. A posse é violenta quando tenha sido adquirida mediante coacção física (artigo 246°, Código Civil) ou moral (artigo 255°, Código Civil). Só uma pessoa pode ser coagida. Pelo que, por conseguinte, a utilização de força sobre uma coisa (arrombamento, por exemplo) para obter a respectiva posse não pode constituir violência para este efeito. Aliás, a própria ideia de violência sobre uma coisa é inconcebível uma coisa não pode ser violentada! A violência só pode ser exercida sobre uma pessoa. Razão pela qual "a violência contra as coisas só releva, para qualificar o esbulho
como violento, se tiver por fim intimidar o possuidor" 68 • Assim, a razão por via da qual se penaliza o esbulho violento está ligada à proibição geral de autodefesa e, em particular, à proibição do recurso à violência 69 • Castiga-se o seu uso porque a acção violenta constitui, em qualquer caso, uma conduta reprovável 70, ainda que quem a ela recorra possa ter alguma pretensão válida subjacente (v.g. o proprietário que se apodera da coisa cujo senhorio lhe foi subtraído mediante coacção por não estar, por exemplo, disposto a recorrer a tribunal). VI) Há uma conclusão que após a breve análise e a sumária comparação
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Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, pág. 134. Não se pode entrar aqui nos pormenores subjacentes, mas a verdade é que a lei concedeu a tutela possessória a situações que, segundo a concepção tradicional, têm sido qualificadas como detenção (artigo 1253°, Código Civil) e não como posse (cf., por exemplo, o disposto no artigo 1133°, n . 2, Código Civil). Perante isto, o mais acertado será considerar que o âmbito da posse sofre um alargamento para efeitos da susceptibilidade de recurso aos meios de defesa previstos nos artigos 1276° a 1285° do Código Civil. 68 Acórdão da Relação do Porto de 30/10/2007, Proc. n° 0725016. 69 Todavia, "I- A providência cautelar de restituição provisória de posse, judicialmente decretada, pode ser substituída por caução, desde que esta medida se mostre adequada, bastante e suficiente para prevenir, evitar e reparar o dano. II- É de aceitar, como critério orientador do juiz na decisão sobre a substituição por caução duma restituição provisória de posse, que esta só deve ocorrer nos casos em que se verifiquem ponderosos e aceitáveis interesses e razões do esbulhador, que possam superar o interesse típico da lei de reprimir a violência do esbulhador" (Acórdão da Relação de Guimarães de 12/06/2007, Proc. n. 1446/2007- Col. de Jur., 2007, III , 287). 70 Salvo os casos de violência excepcionalmente lícita (como os integráveis na acção directa ou na legítima defesa). 67
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retirada a partir da legislação estrangeira de referência se pode obter: tirando o disposto no Código Civil Suíço e, em parte, no Código Civil Alemão, nos demais Códigos (e muito particularmente na LEC) os procedimentos possessórios são caracterizados pela celeridade, pela aspiração de eficiência. Característica que, aliás, é herdada do Direito Romano no âmbito do qual "gli interdetti sono infatti formule omli"
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•
Aquele que para Jhering 72 servia como fundamento geral da protecção possessória, adquire aqui a plenitude do seu valor: a posse é a "guarda avançada" do direito de propriedade (ou de outro "direito de fundo" sobre a coisa) e, por isso, a sua defesa não pode estar dependente da prova da existência deste direito na titularidade do demandante. Na verdade, por essa ser a normalidade, o possuidor presume-se proprietário, dado que esse é o caso paradigmático (ainda mesmo correndo o risco, deste modo, de conferir protecção a quem aparenta ser titular do "direito de fundo" não o sendo). Logo, na normalidade, repete-se, protegendo-se o possuidor, tutela-se o proprietário. A protecção da aparência não se confunde assim, nem se pode confundir, com a protecção da realidade (o fundo da questão). A tutela da posse tem, por conseguinte, carácter precário, transitório ou provisório- protege-se a posse enquanto o litígio não se centrar e, portanto, enquanto prova não for feita sobre o" direito de fundo". Ou, como se dizia no artigo 489° do Código Civil de 1867, "em quanto (o possuidor) não for convencido na questão da propriedade". VII) Na legislação estrangeira cujo esboço brevemente se delineou, a prova nas acções possessórias circunscreve-se à demonstração da existência de posse (no Código Italiano basta a notorietà dei fatto) e o contraditório limita-se também a esse aspecto (e no Código Francês nem sequer se admite o demandado a agir au fond qu'apres avoir mis fin au trouble 73 ). Na LEC (numa aplicação quase exacta da tradição romana) o processo chega a decidir-se até em juicio verbal. Todavia, estes caracteres, típicos dos interditos possessórios tal como eles foram delineados pelo Direito Romano, não se manifestam tão acentuadamente na actual lei portuguesa. Aliás, já desde o Código Civil de 1867 uma clara separação entre o âmbito petitório e o possessório não era tão absolutamente respeitada (recorda-se, de novo o disposto no seu artigo 489°). VIII) De facto, na versão originária do nosso Código do Processo Civil, o 71
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Arnaldo Biscardi, La tutela interdittale ed il relativo processo, Rivista di Diritto Romano, http://www.ledonline.it/rivistadirittoromano, pág. 18. Über den Grund des Besitzesschutzes, tradução portuguesa, pág. 62. Dando seguimento à regra de Direito romano segundo a qual "el posesorio se opone al petitorio, pero no se puede establecer sino despues de concluído aquél, l.18.§1.De vi, cap. Significaverunt 36.X. de test.et attesttat." (J. Heineccio, Elementos de Derecho Romano, trad. esp., pág. 333).
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réu podia na contestação alegar, em reconvenção, a propriedade sobre a coisa objecto do litigio e pedir o respectivo reconhecimento (artigo 1034°/n. 0 1) 74 • Se o autor não impugnasse o direito de propriedade invocado pelo réu, seria "logo declarado improcedente o pedido do autor e procedente o do réu, ainda que este não" tivesse contestado a posse daquele (artigo 1035° /n. 0 1). Se o autor impugnasse o direito de propriedade invocado pelo réu e este não tivesse contestado a posse daquele, "não podendo a questão de propriedade ser decidida no despacho saneador", o réu seria logo condenado no pedido formulado pelo autor, sem prejuízo do que viesse "a resolver-se a final quanto à questão do domínio" (artigo 1036° /n. 0 1). Com a extinção dos processos especiais destinados às acções possessórias, estas passaram a seguir processo comum de condenação (salvo o embargo de terceiro), ainda que uma particularidade do regime anterior contida no artigo 1036° /n. 0 1 se tivesse mantido através da actual redacção conferida ao n. 0 5 do artigo 510° do Código de Processo Civil. Uma coisa, portanto, é certa: entre nós, não é uso excluir totalmente o petitório do âmbito do possessório, pois ambas as questões se podem colocar, em simultâneo, no âmbito da tutela possessória. Solução que é inculcada pelo disposto na parte final do n. 0 1 do artigo 1278° do Código Civil (e que, de resto, já resultava igualmente do que se estabelecia no artigo 489° do Código Civil anterior). IX) Questão diversa é a que diz respeito à observância do princípio do contraditório. Este não pode deixar de subjazer a qualquer espécie de procedimento, qualquer que seja a respectiva natureza. É o que decorre do disposto no n. 0 4/ in fine do artigo 20° da Constituição 75 ) já que se trata de "uma exigência clara do
princípio da igualdade das partes, por sua vez manifestação do princípio da igualdade perante a lei e do próprio Estado de Direito" (Acórdão do Tribunal Constitucional n .0
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Na jurisprudência dizia-se, todavia, que: "I - Nas acções possessórias não é normalmente admissível a reconvenção a pedir indemnização ou reconhecimento do direito de propriedade, sendo-o, porém, quando por esse meio se pretender a restituição ou a manutenção da posse do Réu que alegue ter sido turbado ou esbulhado dessa posse" (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/06/1992, Proc. n .0 082266). Cf., por exemplo, os Acórdãos do Tribtmal Constitucional n .0 S 346/09 de 08 / 07/2009, 330/01 de 10/07/2001, ou, talvez ainda mais incisivamente, o n. 0 259/00 de 02/05/2000 (Proc. n. 0 103/00): "o processo de um Estado de Direito (processo civil incluído) tem de ser um processo equitativo e leal. E, por isso, nele, cada uma das partes tem de poder expor as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa, essencialmente, o princípio do con traditório, que vai ínsito no direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20°, n.0 1, da Constituição, que prescreve que "a todos é assegurado o acesso[.. .] aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos".
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598/99) 76 • Todavia, o princípio do contraditório "não é absoluto, antes comporta excepções". Justamente na restituição provisória da posse, "exclui-se o contraditório (possibilidade de discussão) como sanção pelo esbulho - «spoliatus ante omnia restituendus esb>" 77 • De facto, como se diz no Acórdão em consideração, a necessidade de observância do contraditório "não significa, porém, que não existam situações em que ele tem de ceder face à necessidade de eficácia de determinadas medidas judiciais, inoperantes se precedidas de audiência da parte contra quem são requeridas. É o que em geral, sucede com a justiça cautelar (cf, nomeadamente, o acórdão n° 739/98, publicado no Diário da República, II Série, de 8 de Março de 1998), onde se integra a providência da restituição provisória da posse, cuja constitucionalidade não se vê que possa ser posta em crise, salvo se for manifestamente desproporcionado o sacrifício do contraditório. Não é, porém, o caso, pois que a restituição da posse só é ordenada se o tribunal, julgada a prova admissível (oferecida pelo requerente ou ordenada pelo juiz, oficiosamente), concluir pela existência de esbulho violento". X) Acrescem, ademais, os argumentos aduzidos pelo Acórdão n. 0 739/98 deste Tribunal: «um procedimento cautelar é um meio processual de natureza transitória, sempre dependente da "causa que tenha por fundamento o direito acautelado" (artigo 384°, n° 1, correspondendo ao artigo 383°, n° 1, após as revisões de 1995 e 1996 do Código de Processo Civil) e caducando se ela não for proposta, com carácter urgente (e envolve apenas uma prova sumária, não chegando sequer a ter influência no julgamento da acção -artigo 386°, correspondendo ao artigo 383°, n° 4, após aquelas revisões). Daqui ressalta que é na acção que a causa é discutida e apreciada na sua plenitude e aí efectivamente assegurada a contraditoriedade entre as partes. É nessa sede que a matéria questionada pelas partes, tanto de direito como de facto, assume dignidade de debate entre elas e não em sede de procedimento cautelar com todas as reservas e limitações decorrentes da regulação prevista no Código (e mesmo considerando todas as melhorias introduzidas pelas citadas reformas, incluindo agora o contraditório subsequente ao decretamento da providência cautelar- artigo 388°)». XI) Sintetizando. a anterior argumentação, diz-se no Acórdão n. 0 303/03 do Tribunal Constitucional de 18/06/2003: "O sentido do princípio é o de reconhecer àquele contra quem é feita uma pretensão o direito de se defender antes de o Cf. igualmente, por exemplo, Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1o vol., AAFDL, Lisboa, 1986, págs. 194/195. 77 Continua o autor: "o contraditório só pode, porém, ser afastado pela lei (art. 3°, n. 2: "só nos casos excepcionais previstos na lei"), não pela vontade das partes. É nulo o pacto pelo qual certa pessoa se comprometa a não se defender numa acção futura" (Castro Mendes, Direito Processual Civil, págs. 196/197. Sublinhe-se apenas que a sanção ínsita na restituição da posse "sem citação nem audiência do esbulhador" é determinada pela violência e não exactamente pelo esbulho. 76
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tribunal a apreciar - audiatur et altera pars. A decisão há-de resultar da ponderação pelo tribunal dos elementos trazidos ao debate por cada uma das partes: nisto se afirma a estrutura dialéctica e polémica do processo. Sendo assim, o contraditório deve funcionalmente, por regra, anteceder a decisão. Mas há casos em que o contraditório pode não anteceder a decisão e se deve admiti-lo apenas diferidamente. Referimo-nos aos casos em que a tutela efectiva e eficaz que o processo deve propiciar tem sério risco de ficar inviabilizada no caso de ser ouvida a parte contra quem essa pretensão é formulada. Desenha-se aqui um conflito de interesses materiais e constitucionais: de um lado, o direito à audição antecipada do requerido; do outro, o direito a uma efectiva e eficaz tutela da pretensão do demandante só assegurável, em termos de razoabilidade, se o requerido não for antes ouvido. A solução tem de ser conseguida mediante a aplicação do princípio da proporcionalidade, nos termos do art. 0 18. 0 , n. 0 2 da CRP. Nestes casos, dentro dos quais figura sem reserva de dúvida o preceito de cuja constitucionalidade se cogita, há que dar preferência à possibilidade de realização material do direito que o requerente visiona com o seu recurso ao tribunal. Ora a opção por esse objectivo implica que, no caso do arresto, se actue com celeridade e eficácia, de modo a que, a ser concedida a providência, o requerido não disponha de tempo para alienar ou dissipar os bens. O contraditório não é, porém, abolido, sendo apenas diferido para depois da decisão, dando-se então ao requerido a oportunidade de contraditar não só a alegação dos fundamentos feita pelo requerente, mas igualmente a prova feita sobre eles". XII) Levando em conta, em acréscimo, a linha histórica evolutiva que acima se traçou, particularmente para o Direito pátrio, não se descortina razão que infirme o julgamento de constitucionalidade realizado pelo Acórdão n. 0 598/99. A solução legislativa intra-constitucional não afronta intoleravelmente princípios constitucionais e, designadamente, o princípio da igualdade. Chegou a estar em vigor, é verdade, uma disposição legal (a que, porventura, a autora do recurso que deu origem à prolação do referido Acórdão pretendia aludir) segundo a qual "de futuro a restituição provisória da posse de prédio urbano destinado a habitação não poderá ser ordenada sem citação prévia do esbulhador" (artigo 25° do Decreto-Lei n. 0 293/77 de 20 de Julho que introduziu alterações no regime da acção de despejo). Todavia, ela foi revogada pelo artigo 3°, n .0 1, alínea c), do Decreto-Lei n .0 321-B/90 de 15 de Outubro 78 • Pelo que não
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E o Tribunal Constitucional também já se pronunciou sobre esta cessação de vigência decidindo n ão julgar "inconstitucional a norma do artigo 3. 0 , n. 0 1, alínea c), do diploma preambular do Regime do Arrendamento Urbano (Decreto-Lei n. 0 321-B/90, de 15 de Outubro), que revogou genericamente o Decreto-Lei n. o 293/77, de 20 de Julho, em cujos artigos 1. 0 e 22. 0 se pre-
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se conhece hoje, assim, qualquer excepção ao funcionamento do disposto nos artigos 394° do Código de Processo Civil e 1279° do Código Civil. Aliás, de resto, como se diz no citado Acórdão n. 598/99: "O artigo 65°, como já por diversas vezes foi afirmado por este Tribunal (v., a título de exemplo, os Acórdãos n. 0 s 101/92 e 346/93, publicados no Diário da República, 2." série, respectivamente de 18 de Agosto de 1992 e de 19 de Maio de 1994), tem por objectivo incumbir o Estado de uma série de tarefas destinadas a garantir que todos disponham, efectivamente, de uma habitação condigna e adequada. Do seu conteúdo obviamente programático não decorre - nem poderia decorrer, sob pena de impor um regime absurdo - que não possa ser aplicável à casa de morada de família a providência da restituição provisória da posse". 0
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via o diferimento da desocupação de casa para habitação, nomeadamente nas acções em que se pedisse a entrega judicial do imóvel" (Acórdão n. 0 465/2001 de 24/10/2001, Proc. n. 0 77 /00). Lusíada. Direito. Lisboa, n." 8 I 9 (2011)
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O DIREITO DA INTERNETE EM PORTUGAL E NO BRASIL José de Oliveira Ascensão 1
SUMÁRIO: 1. A situação de base em Portugal e no Brasil; 2. Os limites ao exclusivo do autor: liberdades ou direitos subjectivos?; 3. Direito de autor edispositivos tecnológicos de protecção; 4. O ilícito em rede; 5. Incidência da questão do acesso sobre as limitações ao direito autoral; 6. A digitalização do acervo cultural imaterial; 7. O Acordo Google; 8. A Iniciativa Europeia das Bibliotecas Digitais; 9. A era digital.
1. A situação de base em Portugal e no Brasil Propomos um exame conjunto da problemática da Internet em Portugal e no Brasil. Os dois países têm grandes diversidades mas têm também grandes semelhanças. A começar pela língua e prolongando-se na índole dos povosf que apresenta muitos traços comuns. O Direito participa dessas semelhanças. A matriz foi comum. Mesmo após a independência do Brasil e a consequente cisão legislativaf as coincidências continuaram a verificar-se 2• Afinidades semelhantes atingem também o Direito Autoral. A Lei brasileira n. 0 5988f de 14 de Dezembro de 1973f que regulou autonomamente os direitos 1 2
Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Portugal e Brasil foram dos primeiros países do mundo a abolir a pena de morte, em pleno séc. XIX. As "Ordenações do Reino" vigoraram no Brasil até 1917- muito além da cessação da vigência em Portugal. São frequentes também as influências recíprocas nas soluções legislativas. Por vezes, a similitude foi favorecida por eventos casuais. Assim, o actual Código Civil brasileiro baseia-se em Projecto que remonta aos inícios dos anos 70 do século passado. Nessa altura, o Código Civil mais recente em todo o mundo era o Código Civil português de 1966. Reciprocamente, o Código de Defesa do Consumidor brasileiro de 1990 influenciou vários aspectos das leis de defesa do consumidor em Portugal.
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autorais, foi preparada quando entrara há pouco em vigor o Código do Direito de Autor português de 1966, que inspirou vários preceitos. A proximidade estende-se mesmo a hipóteses em que não há indícios de um aproveitamento directo de fontes do outro país. Assim se passa no que respeita aos programas de computador. Ambos os países tiveram de acatar a protecção como obras literárias; mas nenhum declara que os programas são obras literárias. Em Portugal, o Dec.-Lei n . 252/94, de 20 de Outubro, no art. 1/2, dispõe que aos programas "que tiverem carácter criativo, é atribuída protecção análoga à conferida às obras literárias". No Brasil, a Lei n .0 9609, de 19 de Fevereiro de 1998, no art. 2, dispõe que o regime "é o conferido às obras literárias pela legislação de direitos autorais e conexos vigente no país, observado o disposto nesta Lei". Quer dizer, nenhum deles aceita a ficção de considerar o programa uma obra literária; e desta maneira reserva-se a possibilidade de não importar na sua totalidade para uma realidade meramente técnico-funcional - o programa - o regime que foi gizado para premiar a criatividade da expressão. A começar pelos direitos "morais". Não obstante, os dois países estão submetidos a pólos de atracção diferentes. O Brasil é sensível à influência dos Estados Unidos da América; Portugal está integrado na União Europeia. Em consequência, Portugal foi regulando os temas relevantes do Direito da Informática na cola da grande armadura proteccionista que a União Europeia criou através de directrizes 3 • Isto fez com que ficasse subordinado a um calendário e uma avaliação de necessidades que não eram as próprias. Ainda por cima, a transposição feita, em grande parte em consequência dos prazos exíguos impostos para tal, foi pouco criativa. Há todavia excepções, como anotaremos. O Brasil, que tem por base um sistema romanístico mas está sujeito à influência norte-americana, não sofreu os mesmos constrangimentos. Mas isso levou-o por outro lado a atrasar a disciplina da informática. De certo modo, ainda se está na l.a fase, que é a da regulação dos bens informáticos: programas de computador, bases de dados, topografias dos produtos semicondutores ... Mas é preocupante o desarmamento em que o país se encontra hoje perante a internete. A Lei n.0 9610, de 19 de Fevereiro de 1998, que regula actualmente os direitos autorais, quase desconhece a internete. Mesmo a disciplina dos programas de computador, embora seja da mesma data, consta de lei à parte. É crucial o que respeita ao comércio electrónico: não obstante a sua enorme importância, é praticamente ignorado pela legislação. Procura-se agora recuperar, ao menos parcialmente, o atraso. Por iniciativa do Ministério da Justiça, discute-se um projecto intitulado "marco civil da internete". Propõe-se dar resposta a alguns aspectos básicos em matéria de acesso e uso. Contém nomeadamente princípios sobre a disciplina dos provedores intermediários de serviços, como os de acesso, de transporte e de armazenagem na 0
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Foi-as transpondo, frequentemente com atraso.
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internete. Mas não é seu objectivo abordar o comércio electrónico por si. O que significa que o vazio se vai manter ainda por mais tempo, com toda a nocividade inerente. Simultaneamente é lançada outra iniciativa oficial, desta vez proveniente do Ministério da Cultura, a quem cabe a supervisão dos direitos autorais. Trata-se da reforma, sem dúvida urgente, da Lei n. 0 9610 de 1998, dos Direitos Autorais-a LDA. Esta lei caracterizou-se por uma grande unilateralidade na defesa do que seriam os interesses dos autores, e consequentemente por grande rigidez e insensibilidade ao interesse público e aos interesses do público. A reforma procura adoçar, cirando um maior equilíbrio. Faz uma afirmação solene dos princípios, que aliás constam da Constituição de 1988 e que a reforma da LDA de 1998 ignorou, cria estruturas efectivas de intervenção pública neste sector (que eram praticamente inexistentes) e revê em grande medida as soluções vigentes. Infelizmente, não se propõe preencher o vazio da disciplina da internete. Será uma opção pragmática, uma vez que a disciplina da internete impõe um trabalho de fundo que levaria a adiar gravemente a reforma (urgente) da LDA. Em todo o caso, mesmo não regulando a internete por si, já pretende estabelecer algumas pontes mais com este domínio. Abandona-se a falaciosa pretensão que o direito autoral clássico bastaria para regular as relações na internete. Entra-se pelo caminho da especificação de soluções. Mas esta entrada é ainda tímida. Muito mais seria necessário. Acaba de ser apresentado 4 um Projecto oficial desta alteração. Que eventualmente permitirá que ainda outras propostas sejam incorporadas, de maneira a servir melhor a urgência de uma regulação mínima do direito autoral na internete.
2. Os limites ao exclusivo do autor: liberdades ou direitos subjectivos?
Um dos capítulos vitais da disciplina dos direitos autorais está nas restrições ao exclusivo concedido. As fontes internacionais passaram a mencioná-las como os "limites e excepções". Com isto fogem a uma qualificação das regras restritivas, deixando-a à doutrina e à prática. Se é bom no aspecto negativo, enquanto abandona uma referência muito generalizada às "excepções" apenas, é mau enquanto mantém a ambiguidade. Toda a disciplina jurídica se faz por recurso a regras positivas e negativas: umas atribuem poderes, outras recortam-nos. Tão normais são umas como outras: a atribuição final resulta do jogo dessas regras, positivas e negativas. Não há motivo para considerar excepções as regras limitativas, como se o direito autoral fosse um absoluto do qual só por excepção se pudesse subtrair alguma faculda4
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de; com a consequente aplicação aos limites do regime muito restritivo das regras excepcionais. O Direito Autoral é um ramo do Direito como qualquer outro, no qual portanto se requer em igual medida o recurso a regras positivas como às negativas, para conciliar os interesses em presença numa unidade que sirva coerente e simultaneamente os interesses gerais, os dos titulares e os do público. Nem a lei portuguesa nem a brasileira qualificam os limites como excepções. O CDADC português, numa posição clara, qualifica como de "utilização livre" as zonas subtraídas ao exclusivo do autor (arts. 75 e segs.). Também a LDA brasileira refere as "Limitações aos Direitos Autorais" (arts. 46 a 48), embora noutros preceitos tome posições mais contestáveis. Ambas partem da posição própria dos sistemas romanísticas de Direito: elencam as limitações admissíveis. A lei portuguesa fá-lo no seguimento da sua tradição; mas foi a isso adicionalmente obrigada pela Directriz n. 0 01/29/CE, de 22 de Maio, sobre "Aspectos do Direito de Autor e dos Direitos Conexos na Sociedade da Informação". Esta estabelece uma lista longa, e não obstante mínima (porque contém apenas as limitações que não puderam deixar de ser contempladas) dos limites. Sobrepõe-lhes no final um "limite dos limites", pela inclusão da regra ou teste dos três passos. É muito anómalo, mas não é matéria que possamos examinar aqui. A lei portuguesa teve de se sujeitar, só contemplando os limites que a directriz previa. Mas teve uma reacção defensiva: passou a prever todos os limites da directriz, acrescentando com isso alguns novos aos limites que já antes contemplava. Nesse aspecto, a directriz provocou afinal, em Portugal como noutros países, efeito ampliativo dos limites. Além disso, ao inserir como limitação genérica o teste dos três passos, a lei portuguesa eliminou deste a restrição a "certos casos especiais". Considerou que era redundante esta especificação, porque a directriz já só admitia os limites nos casos elencados, que eram pois por natureza casos especiais. O Brasil não estava sujeito a estas limitações. Poderia pois moldar a lista dos limites na observância apenas da Convenção de Berna e do ADPIC I TRIPS. A questão que se põe actualmente é diferente. Pondera-se a regra norte-americana do Jair use, que aí funciona satisfatoriamente: permite a adaptação à variação das circunstâncias, nomeadamente à internete, o que na ordem romanística não é possível. Perguntou-se então se a lista taxativa não poderia passar a ser complementada pela regra dos três passos- mas com carácter expansivo, e não com a função restritiva que lhe deu a directriz europeia. Quer dizer: além dos limites legais expressos poderão admitir-se outros, desde que respeitem a casos especiais, que não impeçam a exploração normal das obras nem prejudiquem de maneira injustificada os interesses legítimos dos autores? As pronúncias sobre este entendimento têm sido dominantemente favoráveis. Pelo que é possível que, dentro de algum tempo, a lei brasileira venha a revestir uma feição mista, de um elenco de limites expressos complementado por uma cláusula geral de efeito ampliativo. Além disso, a reforma da lei brasileira iria sacudir o colete de forças que a
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actual rigidez da lei representa, na sua unilateralidade. Por exemplo: hoje, em obra didáctica, apenas se podem reproduzir "pequenos trechos de obras preexistentes" (art. 46 VIII). É inconcebível: não se pode reproduzir um soneto? Nem sequer uma quadra, numa antologia de literatura? Estes absurdos poderiam vir a ser eliminados. Outra posição importante, no que respeita aos limites, é assumida pela lei portuguesa. O art. 75/5 CDADC declara nula qualquer cláusula negocial que vise eliminar ou impedir o exercício normal pelos beneficiários das utilizações livres estabelecidas. Daqui resulta pois que esses limites passam a ser considerados injuntivos. É uma posição que não é comum. Reforça seguramente a posição do público. Até onde vai esse reforço? Pode ser elucidativo colocar a questão nestes termos: os limites são meras liberdades? Ou passam a ser considerados verdadeiros direitos subjectivos? A diferença estaria no seguinte: a liberdade pode restringir-se ao mero aproveitamento dos espaços livres. Pensemos na liberdade de locomoção: todos a temos, mas isso não significa que possamos penetrar em todos os espaços. Se encontramos um terreno cercado por um muro, não o podemos ultrapassar. Pelo contrário, quando há um direito subjectivo podemos exigir que seja dada entrada. Analogamente se passa no que respeita aos limites ao direito de autor. Se são meras liberdades, só se aplicam enquanto não forem levantados impedimentos pelo titular. Pelo contrário, se forem direitos pode-se exigir juridicamente que a utilização da obra em causa seja facultada. Isto tem muita importância justamente no que respeita à utilização de obras nos sítios (ou sites) da internete. Dá-nos até a chave do regime dos sítios abertos. Se os limites são meras liberdades, podem-se usar as zonas deixadas livres pelo titular do sítio, mas tudo termina quando este levantar barreiras, desde logo através de dispositivos tecnológicos de protecção. Se forem porém direitos subjectivos, pode o beneficiário exigir o acesso necessário ao gozo dos limites. A lei portuguesa, determinando o carácter injuntivo de todos os limites, implica a atribuição de direitos aos beneficiários desses limites: à obrigação de respeitar o limite do titular do sítio corresponde a pretensão do beneficiário de exigir que o uso seja facultado. Veremos depois em que medida essa pretensão poderá ser exercida efectivamente.
3. Direito de autor e dispositivos tecnológicos de protecção
A esta luz, compreende-se como é vital a questão do direito de acesso na internete. O direito de acesso pode ser entendido de duas maneiras contrapostas: - ou como direito do autor de vedar o acesso de terceiros aos sítios da inter-
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nete que contenham a obra - ou como direito do público de aceder à obra na internete, no exercício dos direitos constitucionalmente assegurados de acesso à informação, acesso à cultura, acesso ao conhecimento; ou até, simplesmente, no exercício do uso privado. A questão tem sido debatida a nível muito elevado, contrapondo-se à posição de Jane Ginsburg, que acrescenta ao direito de reprodução o direito de acesso como conteúdo do copyright, a de Thomas Hoeren, que nega esse direito. A diversidade dos sistemas jurídicos respectivos poderá explicar parcialmente esta divergência. Mas está subjacente uma grande questão substancial, que é a relativa ao regime autoral dos dispositivos tecnológicos de protecção dos sítios na internete. O art. 11 do Tratado da OMPI de 1996 sobre o Direito de Autor e o art. 18 do Tratado da OMPI sobre Interpretações ou Execuções e Fonogramas, da mesma data, prevêem o que chamam "Obrigações relativas a dispositivos tecnológicos". As Partes devem estabelecer uma protecção jurídica adequada contra a neutralização de dispositivos tecnológicos efectivos que sejam usados por autores ou artistas intérpretes ou executantes e produtores de fonogramas no exercício dos direitos previstos nos Tratados. A Directriz n. 0 2001/29 /CE, de 22 de Maio, estende esta protecção ao direito sui generis sobre bases de dados, para esconjurar o perigo de se desenvolverem actividades ilícitas de neutralização destes dispositivos (cons. 47). O art. 6 regula largamente a matéria. A protecção é conferida contra a neutralização (n.0 1) ou em benefício das medidas (n. 0 4). Nunca se esclarece se o recurso a essas medidas constitui ou não conteúdo de um direito intelectual, portanto, se há uma faculdade de direito de autor que as abranja. A lei brasileira, no art. 107 I, impõe o pagamento de uma indemnização, para a qual estabelece um montante mínimo por remissão para o art. 103, a quem alterar, suprimir, modificar ou inutilizar, de qualquer maneira, dispositivos técnicos introduzidos nos exemplares "das obras e produções protegidas para evitar e restringir sua cópia". Prevê ainda outras aplicações, mas a formulação não parece adequada à situação própria dos sítios na internete 5 . O CDADC português, nos arts. 217 e segs., refere a protecção às "medidas de carácter tecnológico", contra a neutralização. Institui a tutela penal, com prisão e multa (art. 218). Mas vai muito mais longe que a lei brasileira: são também punidos o que se designa os "Actos preparatórios": abrange-se todo o acto que se dirija à produção ou comercialização de tais dispositivos, incluindo a mera posse para fins comerciais (art. 219). Isto implica pois que o público fica inibido de deter estes equipamentos, pelo menos indirectamente, visto não ter onde os adquirir; e quem os detiver e utilizar para neutralizar dispositivos tecnológicos cairia aparentemente na previsão do art. 217, que protege contra a neutralização - ainda 5
Veja-se também o art. 107 II.
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que o fizesse para o exercício de faculdades que a lei lhe reconhece. Isto cria dificuldades várias. Primeiro, porque se fica sem saber que relação tem esta protecção com a tutela dos serviços de acesso condicionado em rede. Já era regulado em Portugal o acesso condicional aos serviços de televisão, de radiodifusão e da sociedade da informação. Fê-lo o Dec.-Lei n .0 287/01, de 8 de Novembro, que transpôs as Directrizes n. 95/47 /CE, de 24 de Outubro, para a transmissão dos sinais de televisão e n. 0 98/84/CE, de 20 de Novembro, sobre a protecção jurídica dos serviços que se baseiem ou consistam num acesso condicional. Aquele decreto-lei não foi revogado. Mas como se conjuga então com a protecção das medidas tecnológicas agora introduzidas, que passou a constar do próprio CDADC (arts. 217 e segs.)? 6 Há uma diferença evidente. As disposições sobre acesso condicional protegem os serviços. As referentes a dispositivos tecnológicos visam tutelar bens intelectuais protegidos: os dispositivos tecnológicos não são protegidos por si, mas por se destinarem "a impedir ou restringir actos relativos a obras, prestações e produções protegidas". O objecto é pois diferente. Mas, embora o objecto seja diferente, não deixa de haver uma cumulação nos resultados, pelo menos quando estão em causa sítios na internete. O titular do sítio está já protegido pela repressão da fraude ao acesso condicional. O que traz de novo esta protecção, em caso de o conteúdo ser um direito intelectual? Traz pelo menos a mudança de plano. Passou a respeitar ao Direito Intelectual, logo a ser englobado nos meios vigorosos de tutela de que este desfruta. Isto em teoria. Na prática, será mesmo assim? É que o empolamento dos direitos intelectuais foi tão grande, acompanhado da banalização do conteúdo, que dificilmente, ou nunca, podemos encontrar um sítio na internete que não tenha um qualquer conteúdo abrangido pelo Direito Intelectual. A locução poderá ser considerada obra literária e assim por diante. Ainda que se transmita um jogo de futebol, dir-se-á que a obra é a realização (ou direcção) da peça audiovisual. Se nem isso houver, sempre se encontrará obra nos programas de computador implicados. E se nada disso existisse, ainda haveria obra na própria apresentação do sítio, como obra de arte aplicada. Diremos assim que a não coincidência dos dois direitos, de defesa pelo acesso condicional e de protecção dos conteúdos pela tutela dos dispositivos tecnológicos, sendo teoricamente concebível, não parece ter consistência prática. E se o titular do sítio não for o titular do direito de autor? Analisemos esta possibilidade. 0
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Com a transposição da Directriz n. 0 29/2001, de 22 de Maio, sobre aspectos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação.
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Dificilmente o próprio autor é o titular do sítio. Se este for comercial, é um facto que o autor só muito raramente é um investidor que possa ter a titularidade; e, mais raramente ainda, terá o sentido comercial para fazer ele próprio a exploração. Por isso concede a empresários essa exploração, mediante transmissão ou, nos casos mais frequentes, licenciamento da obra. Havendo licenciamento da obra, a faculdade de restringir o acesso é também outorgada? A resposta depende da que for dada à questão prejudicial a que atrás acenámos: a faculdade de vedar o acesso é uma faculdade que pertence ao conteúdo do direito de autor 7 ou é uma faculdade à parte, distinta do conteúdo de atribuição deste? É uma liberdade, decerto: o autor tem a liberdade de vedar ou não, se for ele simultaneamente o titular ou empresário do sítio na internete. Mas será ainda faculdade de direito autoral, no sentido que se transmitirá com este, ou é uma realidade de natureza diferente? A solução é aqui influenciada por uma posição particular adoptada pela lei portuguesa. O art. 217 I 4 CDADC dispõe que "a aplicação de medidas tecnológicas de controlo de acesso é definida de forma voluntária e opcional pelo detentor dos direitos de reprodução da obra, enquanto tal for expressamente autorizado pelo seu criador intelectual" (sublinhado nosso). Quer dize1~ o direito de vedação do acesso não segue a faculdade de reprodução 8; é autonomizado, mantendo-se na titularidade do criador intelectual e exigindo-se uma autorização expressa deste para que beneficie também o transmissário dos direitos ou o licenciado. A lei impõe pois aqui a distinção da faculdade de vedação do direito de autor, que passa a ser objecto de vicissitudes separadas das do direito de autor em si. É uma previsão que traz problemas particulares, que se não justifica que sejam examinados neste lugar.
4. O ilícito em rede Uma questão particularmente sensível é a dos conteúdos ilícitos em rede. Que reacções são facultadas a quem se sentir atingido por eles? Nesta matéria avulta o contraste entre a universalidade da internete e a territorialidade dos exclusivos intelectuais. Cada país procurará reagir com os meios actuáveis, dentro das suas fronteiras. Recordamos todavia que a questão não é apenas autoral nem sequer apenas de direitos intelectuais, uma vez que pela internete podem ser infringidos direitos de toda a espécie, como a honra. As violações a ter em conta podem recair sobre bens colectivos ou bens primacialmente privados. No primeiro sector estão os grandes interesses de comu7 8
Ou do direito intelectual, num prisma mais amplo. Única referida na lei portuguesa.
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nidade: é o que acontece em caso de práticas como a pedofilia, o incitamento ao terrorismo e semelhantes, cuja difusão a internete potencia. Dissemos porém que deixamos esta matéria, para atender particularmente às situações em que está em primeiro plano uma pessoa privada cujos direitos terão sido lesados por um conteúdo constante de um sítio na internete. A questão é apontada no Brasil na referida proposta sobre o "marco civil da internete". Na primeira versão, previu-se um sistema inspirado pelo norte-americano, conhecido como notice and take down. O ofendido ou pretenso ofendido notifica o provedor de serviço do conteúdo gerado por terceiros, pedindo que o acesso seja tornado indisponível. O provedor procede assim e notifica o usuário responsável pela publicação. Este pode contranotificar o provedor de serviços, requerendo a manutenção do conteúdo e assumindo responsabilidade exclusiva pelos danos causados a terceiros. O provedor restabelece então o acesso e informa o notificante desse restabelecimento. O sistema não foi bem acolhido e os arts. 20 a 25 da Proposta foram alterados. Agora propõe-se que o provedor de serviços apenas por ordem judicial seja obrigado a tornar indisponível o acesso ao conteúdo. Deverá da mesma forma notificar de seguida o usuário responsável pela publicação, comunicando-lhe o teor da intimação. O sistema português, no regime da responsabilidade do provedor, reflecte a Directriz n. 2000/31, sobre o comércio electrónico. Isto traz logo uma diferença de relevo. Nos termos deste sistema, o provedor intermediário de serviços está obrigado a retirar ou impossibilitar o acesso à actividade ou informação cuja ilicitude for manifesta 9• Esta previsão, não obstante a sua relevância, não consta da Proposta brasileira. A lei portuguesa vai ainda mais longe. Procura concretizar a previsão do art. 6/4 da Directriz n. 0 2001/29/CE, de 22 de Maio, sobre alguns aspectos do direito de autor e direitos conexos na sociedade da informação, de que os Estados tomarão as medidas adequadas para assegurar que os titulares dos direitos coloquem à disposição dos beneficiários das excepções ou limites previstos pela lei nacional os meios que lhes permitam beneficiar efectivamente dessas limitações, sempre que esses beneficiários tenham legalmente acesso à obra ou outro material protegido. O art. 221/1 CDADC prevê que, para esse efeito, os titulares dos direitos depositem junto da Inspecção-Geral das Actividades Culturais as chaves ou outros meios que permitam aos usuários o acesso à obra. Realizado esse depósito, os lesados 10 poderiam solicitar na Inspecção o acesso aos sítios correspondentes (art. 221/3). 0
Art. 16/1 do Dec.-Lei n. 0 7/04, de 7 de Janeiro, que transpôs a directriz sobre comércio electrónico. 1 °Chama-se a atenção para o termo lesados, que confirma quer há realmente um direito a essa utilização. 9
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Há aqui efectivamente uma concretização e um progresso, que vai além do que se passa em outras ordens jurídicas europeias. Mas o sistema acaba por ficar frustrado, por duas razões principais: 1. Sendo a internete um sistema universal, não se vê como se pode exigir que todos os provedores de conteúdos do mundo depositem numa instância administrativa portuguesa as chaves de acesso aos seus conteúdos 2.Mesmo em relação às chaves que sejam depositadas, era necessário que o exercício dos direitos ficasse assegurado. Mas logo no mesmo art. 221 CDADC se prevê que os litígios que surjam sejam resolvidos por uma Comissão de Arbitragem e que das decisões desta caiba recurso para juízo (n. 0 4). Isto mata toda a eficácia do sistema, porque os usuários não estão normalmente em condições de suportar um processo judicial; e não tem sequer sentido prevê-lo, quando as necessidades de utilização são, não só normalmente temporalmente condicionadas no tempo, como em si destituídas de valor económico, ou quase. O sistema só funciona se houver uma entidade administrativa que tiver a competência para determinar prima Jacie e em prazo muito curto se o acesso é admitido ou não e logo o facultar no caso afirmativo. Toda a discussão posterior se faria em juízo. Curiosamente, sistema análogo constava já da lei portuguesa no respeitante ao comércio electrónico. O Dec.-Lei n. 0 7/04, de 7 de Janeiro, estabelece no art. 18 que havendo um litígio sobre um conteúdo na internete as partes podem recorrer a uma entidade administrativa que decide em 48h00 se o conteúdo é disponibilizado ou não. A decisão administrativa pode ser sempre alterada e as partes podem recorrer sempre a juízo. Só com a decisão judicial a solução se torna definitiva. É conveniente não esquece também os riscos do sistema. Um deles consiste no que se chama a captura do regulador. Pode acontecer que o regulador, de garante do interesse público, se transforme numa longa manus de interesses privados. Sabendo como estes são poderosos neste domínio, das grandes empresas de informática aos grandes provedores de conteúdos em rede, o perigo é de tomar a sério. Mas é uma ameaça geral e não sectorial. Não a podemos suprimir sem suprimir simultaneamente a intervenção em nome do interesse público - quer dizer, sem nos afundarmos na lei da selva nas relações sociais. Tudo isto revela uma grave lacuna. É particularmente reprovável na União Europeia: a directriz atira as dificuldades para cima dos Estados, o que traduz também falta de interesse pelo acesso ao conhecimento e à informação por parte do público. Perante o mau funcionamento generalizado do sistema não tomou iniciativa nenhuma: isto apesar de o art. 12/1 da Directriz n. 0 01/29 determinar que a Comissão apresente relatórios ao Parlamento Europeu e outros órgãos comunitários, em especial sobre o art. 6, verificando "se os actos permitidos por lei estão a ser afectados negativamente pela utilização de medidas efectivas de carácter tecnológico". Nada aconteceu. O público continua a ser o grande esquecido, afinal.
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5. Incidência da questão do acesso sobre as limitações ao direito autoral Da análise anterior resultaram já três aspectos muito relevantes: 1. As limitações admitidas foram ainda por sua vez restringidas no que respeita ao uso na internete (art. 6 CDADC) 2.As limitações não são, tecnicamente, excepções 3.0s limites previstos por lei são injuntivos (art. 75/5 CDADC) 4. A lei não garante eficazmente o acesso aos conteúdos em rede. Que incidência têm estas características sobre as limitações ao direito de autor na internete? O sistema tem o efeito prático de anular as utilizações livres que tão restritamente são admitidas. Os "beneficiários" não podem afinal utilizá-las, porque o acesso lhes é negado. O "público" é mais uma vez desprezado para benefício daqueles que para si mesmos granjearam um exclusivo; porque o direito que enfaticamente é atribuído aos usuários não encontra afinal modo de realização efectiva. Haverá alguma maneira de minorar por interpretação este resultado desolador? Comecemos pela hipótese de alguém, para o exercício de limite previsto por lei para uso na internete, neutraliza um dispositivo de protecção, por ter equipamento que lho permita ou porque conseguiu de outro modo vencer a barreira do dispositivo tecnológico. Cometeu um crime? Não o cometeu pelo facto de ter na sua posse o equipamento de neutralização. O art. 219 CDADC só pune quem tiver a posse desses equipamentos "para fins comerciais" . Também não comete o crime previsto no art. 218 CDADC- a neutralização de dispositivo eficaz. O preceito protege teleologicamente o conteúdo contra utilizações ilícitas. Mas a utilização não é neste caso ilícita, porque o agente tem o direito, como vimos atrás, de exercer aquela limitação do direito de autor. Beneficia tecnicamente da causa de justificação consistente no exercício dum direito. Como tal, a conduta é lícita. E se actuar assim para o exercício de limites previstos no art. 5 da directriz (art. 75 CDADC), mas não no art. 6 da directriz (art. 221 CDADC)? Vamos limitar-nos ao caso paradigmático do direito de citação, que dissemos já que é surpreendentemente omitido como limite utilizável na internete. Esta supressão é inadmissível. A citação representa o mais importante dos limites. É a base do diálogo intelectual. É manifestação de vários princípios constitucionalmente consagrados, como o do acesso a informação e à cultura, além de condicionar a própria liberdade de expressão. Há que ter consciência de que o direito de autor, digam as leis sectoriais o que disserem, não tem apenas os limites enunciados nessas leis. Além destes limites intrínsecos há também limites extrínsecos, que são os que resultam doutros sectores da ordem jurídica e são impostos pela coerência global do sistema. E entre esses limites estão antes de mais os limites consagrados na própria Constitui-
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ção, como são os constantes dos direitos fundamentais. Ora, todos os que acima referimos são direitos fundamentais, assegurados pela Constituição. Mesmo sendo o direito de autor também um direito fundamental, aqueles grandes direitos e liberdades são-lhe hierarquicamente superiores, porque traduzem aspectos verdadeiramente básicos do Estado moderno, como Estado Social de Direito. Mas a questão não está no esmagamento de uns direitos pelos outros, mas na sua conciliação. Se o direito de citação emana das grandes orientações personalistas do Estado, ele não pode deixar de ser acolhido, na medida necessária para os fins a atingir. Por isso, com base na limitação extrínseca, concluímos que outros direitos, que traduzem as grandes orientações fundamentais de valor da sociedade em que vivemos, são ainda limites da protecção autoral na internete. O seu exercício, mesmo que não previsto pela lei positiva, representa exercício de um direito. Portanto, a neutralização eventualmente operada para tornar esse exercício efectivo é abrangida igualmente por uma causa de justificação. Por um outro prisma, o exercício destes limites, extrínsecos ou intrínsecos, representa um direito. Como tal, pode ser imposto: não se limita aos sítios abertos, pode-se exigir o acesso a todos. Pode para a sua concretização utilizar-se o esquema constante do art. 221 CDADC. Do mesmo modo e com a mesma justificação, se o titular do sítio recusar o acesso, para efeito do exercício dos direitos assegurados como limites, comete ele próprio um ilícito. Fica assim sujeito às consequências do ilícito, nomeadamente à responsabilidade pelos danos eventualmente derivados. Há que tirar todas as consequências do carácter injuntivo dos limites estabelecido por lei.
6. A digitalização do acervo cultural imaterial
A informática permite colocar a uma nova luz a questão da preservação do acervo cultural imaterial. A Europa tem o maior acervo cultural do mundo. Esse acervo, no entanto, está em grande parte (mesmo na sua maior parte) ameaçado de se perder, particularmente pela acção do tempo, porque o património cultural imaterial repousa predominantemente em suportes materiais. Por outro lado, também na generalidade esse acervo é susceptível de digitalização; e a digitalização permite preservar a obra, e em qualquer caso a memória da obra. Isso acontece nomeadamente no que respeita às bibliotecas, que reúnem grande parte desse acervo. Os progressos da informática tornaram possível a digitalização em larga escala. A Google, particularmente, criou gigantescos programas que permitem a digitalização célere de bibliotecas inteiras. Esses programas estão já actuantes em várias partes do mundo. Avançam sem obstáculos enquanto se aplicam a suportes de obras que estão no domínio
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público. Mas defrontam oposições no que respeita a obras actualmente protegidas pelo direito de autor. Se esses obstáculos não forem vencidos, as bibliotecas digitais serão sempre colecções desactualizadas, porque lhes falta o elemento de actualidade que é dado pelas obras protegidas. Os aumentos cumulativos da duração da vida humana média e da do direito de autor podem levar a que uma obra seja protegida um século e meio: se um autor publica antes de atingir 20 anos e morre após os 90, a obra estará em exclusivo durante cerca de 150 anos, possivelmente então em benefício de pentanetos - ou dos cessionários da obra, o que é muito mais provável se a obra tiver interesse comercial. No Brasil, o Governo Federal empreende a instituição do que chamou a Brasiliana - uma biblioteca digital, tendencialmente completa, que encerraria a memória histórica da produção brasileira escrita. A tarefa foi confiada à Universidade de São Paulo, que dedicou vultuosos meios técnicos, materiais e humanos a esse fim. O programa avança velozmente, mas isso porque se limita ainda a obras no domínio público ou obras cujos autores consentiram graciosamente na digitalização. Mas quando esse material estiver digitalizado, como prosseguir? Porque se houver que pagar direitos de autor, não há como assegurar os meios financeiros que seriam necessários para semelhante empreendimento; ou então, só a um custo tal para o utilizador que nenhuma recuperação do investimento seria possível. O público não estaria em condições de pagar os preços correspondentes para acesso a semelhante biblioteca. Poderia invocar-se o uso privado. Isso seria útil enquanto respeitasse à utilização privada de obras, mas não à disponibilização pública, a que essas obras se destinam. Também excluiria bibliotecas com fins comerciais. Em todo o caso, os grandes acervos culturais são públicos, e é nesses que o problema surge com aquidade. Em qualquer caso, a digitalização implica uma reprodução. Será admissível esta, perante a disciplina rígida do direito de reprodução adoptada na União Europeia? Podemos todavia distinguir vários aspectos que condicionam as conclusões a tirar, em relação às obras protegidas.
I- A digitalização para preservação Pode a digitalização realizar-se com o fim de preservar obras, mesmo protegidas, que o tempo vai deteriorando. Será admissível fazê-lo, sem consentimento do autor? Respondemos sem hesitação que sim. No conflito que eventualmente se estabelecesse entre o interesse do autor e o interesse público na preservação do bem cultural, este prevaleceria sempre. Em nada traria prejuízo à eventual exploração comercial da obra e toda a conciliação possível levaria a considerar o exclusivo autoral limitado pelo fim
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cultural de preservação do acervo em risco de perda.
II - A colocação da obra digitalizada à disposição do público Poderá a biblioteca colocar a obra digitalizada à disposição do seu público, para consulta nas suas instalações? Por exemplo, numa universidade, deixar a obra em condições de ser acedida pelos alunos? Na Europa temos um texto expresso da Directriz n. 0 01/ 29, sobre aspectos do direito de autor e direitos conexos na sociedade da informação, a regular a matéria. o art. 5/3 n inclui na lista dos limites: uutilização por comunicação ou colocação à disposição, para efeitos de investigação ou estudos privados, a membros individuais do público por terminais destinados para o efeito nas instalações dos estabelecimentos referidos na alínea c) do n. 0 2, de obras e outros materiais não sujeitos a condições de compra ou licenciamento que fazem parte das suas colecções a . Não obstante algumas dificuldades de interpretação, este trecho, que respeita directamente a esta matéria, estabelece o princípio da liberdade desta utilização. Não devemos aliás esquecer que, de forma embora ainda não totalmente consumada, se tende para a formulação do princípio da equivalência do suporte digital a qualquer outro suporte. Se a biblioteca pode livremente colocar obras em papel à disposição do público, o que é prática universat pode também colocar essas obras digitalizadas à disposição desse mesmo público.
III - O intercâmbio com outras bibliotecas Poderá uma biblioteca, por intercâmbio com outra, permitir a utilização de um exemplar digitalizado por usuários individuais de outras instituições? A questão põe-se por ser hoje prática corrente, ao que saibamos não contestada, o intercâmbio de livros entre bibliotecas, para satisfazer pedidos de investigadores doutra instituição. Pensamos que o princípio da equiparação tendencial do digital ao comum, aqui ao suporte papel, nos deve levar a resposta afirmativa. Substancialmente, o objecto é exactamente o mesmo. Os efeitos em relação ao autor são os mesmos também. O teste dos três passos não conduz a resultado diverso, dado o carácter individual da utilização. Pelo que o benefício da cultura nos inclina decididamente para uma resposta positiva.
IV - As obras órfãs Outro caso particular é representado por estas obras. São aquelas cujo autor é desconhecido, ou não se consegue contactar, ou cuja localização se apresenta tão onerosa que anularia as vantagens que da utilização daquela obra se pudessem retirar.
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Assim, estas obras ficariam sem utilização. E o prejuízo não seria apenas para a instituição ou o utilizador eventual, seria para todos, incluindo o próprio autor. Este perderia o benefício eventual que resultaria desta utilização da obra. Por isso, entende-se genericamente que a utilização das obras órfãs deve ser permitida. A Comissão Europeia, através dos serviços do direito de autor, já se pronunciou expressamente sobre a necessidade de regular esta matéria. Não obstante, nada se fez, o que torna muito clara a inoperância das boas intenções da Comissão. Na realidade, o que se opõe a que a utilização da obra seja admitida, por exemplo, se houver a garantia dada pelo utilizador da remuneração do autor quando este se vier a conhecer ou se lograr o contacto com ele? Simplesmente, o dogma da autorização prévia do autor para se fazer uma utilização de obra que está ainda em exclusivo. É um dogma cego, porque visa apenas reforçar uma soberania, mesmo quando o próprio autor é o prejudicado. Haveria que o ultrapassar, estabelecendo com equilíbrio a conjugação dos interesses em presença. V- Outras necessidades: problemas
Dando sempre novos passos, põe-se a hipótese de o acesso de membros duma instituição a material digitalizado, mas de fora do recinto dessa instituição. Assim, seria muito útil que professores e alunos duma universidade lhe pudessem aceder do exterior. Será possível chegar até lá? Por mais justificadas, estas hipóteses encontram o obstáculo do direito legislado. É pois a altura de abandonar o exame casuística e perguntar se há uma linha geral que possa ser utilizada para fazer reverter a situação.
7. O Acordo Google O art. 5/2 c da Directriz n. 0 2001/29, sobre o direito de autor e direitos conexos na sociedade da informação, permite actos específicos de reprodução praticados por bibliotecas, estabelecimentos de ensino ou museus acessíveis ao público, ou por arquivos, que não tenham por objectivo a obtenção duma vantagem económica ou comercial, directa ou indirecta. Observada a restrição e sabendo que a digitalização implicaria a reprodução genérica e não específica de actos para atingir os seus fins, que razão poderá haver para contestar a digitalização do acervo cultural em globo? Substancialmente, há o receio da utilização que a esse material poderia ser dada: a digitalização potencia o risco da abertura do acervo ao público em geral. Mas proibir a digitalização é vibrar um rude golpe nas virtualidades da internete, de se tornar no meio privilegiado de colocar o conhecimento ao alcance de todos. Tem vocação para tal, mas o direito de autor vem frustrá-lo.
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Contrariando a justificação que lhe é dada, o direito de autor surge aqui mais como obstáculo que como instrumento para a cultura; porque, se não há cultura sem criação, também não há cultura sem a disponibilização do acesso aos bens culturais. Neste ponto, é essencial a questão Google, surgida nos Estados Unidos da América e acompanhada em todo o mundo com o maior interesse. A própria Google lançou-se à constituição de bibliotecas digitais. Fê-lo de maneiras diferentes: interessa-nos aquela em que o usuário indica quais os termos ou temas em que está interessado e são-lhe revelados excertos do livro a estes referentes. Aí os livros são digitalizados sem a autorização do autor e a Google procede à exploração comercial da biblioteca digital assim formada . Neste caso, a Google foi alvo de uma acção intentada por duas entidades representativas, a "The Author's Guild" e a "The Association of American Publishers". Aproveitando a doutrina do Jair use e as particularidades da lei processual norte-americana foi rapidamente delineado em 2008 um Acordo, o Acordo Google, que estabelece uma remuneração em benefício dos autores e dos editores. Este Acordo, no que saibamos, não foi ainda definitivamente concluído. Conheceu novas formas em 2009, que reduziram o seu âmbito: já se não aplica aos autores de todo o mundo mas apenas aos do Canadá, Reino Unido e Austrália, além dos americanos. Por outro lado, foram ultrapassadas objecções de empresas concorrentes, como a Amazon e a Microsoft, que temiam que a Google se tornasse monopolista no sector. Desde então o Acordo continua a ser discutido, esperando-se sempre a aprovação iminente. O Acordo Google é paradigmático, por isso é seguido com tanta atenção. No centro, está a circunstância de ele mudar a base do direito de autor. Até hoje, o direito de autor tinha por núcleo uma espécie de soberania do autor sobre a obra: fora dos limites legais, o autor só autorizava quando quisesse, a quem quisesse e nas condições que quisesse. Por este Acordo, os representantes autorizam contra uma "compensação equitativa" aos autores. A fórmula quer dizer que não é tanto como os autores desejariam mas também não é tão-pouco como a Google desejaria pagar. A soberania dilui-se: caminha-se para uma base nova. Como é que os representantes dos autores aceitam esta alteração de posição? Seguramente, porque encontram um interesse para eles na situação criada. É que as bibliotecas digitais, com esta comercialização, permitem novas formas de exploração da obra, logo um novo benefício aos autores. A maior parte dos livros está hoje morta, porque não é compensatória uma reedição. Mas uma digitalização universal traz de novo à actualidade muita obra que estava acabada, e portanto renova as potencialidade de exploração. Assim ganha a Google, ganha o autor e ganha a Cultura, porque se amplia o património cultural disponível e o âmbito de acesso do público. Isto não quer dizer que não surjam múltiplos obstáculos a esta mudança de planos. Um deles está na representatividade das entidades que fizeram o acordo com a Google. Elas não podem pretender representar todo os autores do mun-
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do. É certo que se ressalvam os direitos dos autores dos restantes países, mas a Google vai ser autorizada a avançar mesmo sem consentimento deles. Sabendo como são ricas as bibliotecas norte-americanas em obras estrangeiras, este ponto dá que pensar. Um elemento importante que nos chega quando este artigo estava já redigido, é o estudo do ilustre jurista alemão Katzenberger, do Instituto Max. Planck de Munique, sobre os Acordos Google 11 . O A. mostra que as críticas (oficiais) alemãs e francesas aos Acordos estão desfocadas, nomeadamente pelo confronto com a regra de direito transitório do§ 137 I da lei de Direito de Autor alemã; e defende que a legalidade dos Acordos só poderá ser avaliada à luz do Direito dos Estados Unidos e das convenções internacionais que o vinculam e não do Direito dos países europeus.
8. A Iniciativa Europeia das Bibliotecas Digitais Na sequência, acrescentamos algumas breves palavras sobre os projectos europeus neste domínio. A Europa não quer ficar atrás dos Estados Unidos da América nesta corrida. Por isso, desenvolveu um ambicioso programa, que designou a Iniciativa Europeia das Bibliotecas Digitais. Levaria à criação da Europeana, que conservaria e compilaria o precioso acervo cultural europeu, em grande parte em risco de perder-se. O projecto é ambicioso e altissonante, mas as circunstâncias não são favoráveis. A Europa construiu um Direito de Autor muito mais rígido que o de common law. Os esforços de harmonização internacional, que mais parecem de uniformização internacional, não eliminaram o fosso entre os dois sistemas. Por exemplo, uma cláusula como a do Jair use , que dá tanta maleabilidade ao sistema norte-americano, não encontra qualquer abertura no modelo europeu. Por isso, apesar de todo o acento dado ao programa, não foi acompanhado de nenhum avanço no que respeita à utilização de obras protegidas pelo direito de autor. A mera digitalização é considerada reprodução, como tal sujeita ao consentimento do (leia-se pagamento ao) autor. Nenhum programa é viável financeiramente se para cada obra protegida for necessário pagar o que os autores (ou as entidades de gestão colectiva, o que leva a exigências muito superiores) reclamarem. Nem mesmo os aspectos mais simples, todavia os prioritários na busca de uma solução, como o regime das obras órfãs ou das obras esgotadas que o autor não deixa reeditar, foram sequer objecto de propostas credíveis. Aliás, a impotência actual da União Europeia, perante os interesses instalados na defesa das posições desenvolvidas para o mundo analógico, está bem patente na territorialidade e exclusividade das entidades de gestão colectiva. Estas 11
Paul Katzenberger, Zwangsdígítalísíerung urheberrechtlich geschützer Werke in den USA und in Deutschland: das Projekt Google Book Search und § 1371 UrhG, in GRUR Int., 7/2010,563.
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são nacionais, portanto as suas licenças morrem nas fronteiras. A hipótese de se admitirem licenças com validade para todo o espaço da União Europeia (que seria a consequência lógica da integração económica realizada) tem sido sempre adiada. Recentemente, foi emitida uma Comunicação generalista intitulada "Agenda Digital". Marca ambiciosamente metas e prazos. Mas o que se diz sobre as bibliotecas digitais mostra bem o atraso na matéria: não há sequer propostas, há estudos e propósitos. A Europa está mais uma vez na dependência do que se decidir do outro lado do Atlântico. A doutrina move-se todavia, procurando orientações por entre a armadura pesada do Direito em vigor. Em 24 de Março de 2010 realizou-se em Bruxelas um Encontro sobre Cultural Jlat rate, digitallibraries, Creative Commons - What role for colecting societies in the 21 .st century? Foram tratados temas fundamentais para este objectivo.
9. A era digital
Permitam-nos um pouco de futurologia. Pensamos que esta questão é crucial, porque dela depende a passagem da cultura do suporte material para a cultura digital. A cultura que se amontoa em livros e papéis, que cada um possui mas são sempre insuficientes, pode ser substituída por uma cultura que se apoia em material digitalizado, de acesso fácil, ubíquo, instantâneo e barato. As bibliotecas digitais podem ser um passo, inicial mas indispensável, para se chegar a esse objectivo. Porque só por meio delas, e através do abandono do princípio da soberania do autor pelo da compensação equitativa, se abre o caminho para uma mudança de paradigma. Esta mudança supõe cedências quer dos autores quer do público, para se chegar a um patamar mais alto em que a Cultura sairia beneficiada. Todos ficariam a lucrar afinal e as potencialidade de difusão do conhecimento pela internete seriam realmente aproveitadas e não reprimidas. O que teriam as partes de ceder? Os autores ou seus representantes, a soberania, que lhes permite exigir quanto desejam e agir anticoncorrencialmente. As obras publicadas em papel poderiam ser digitalizadas, mediante uma compensação equitativa. Mas isto não poderá consumar-se sem um sacrifício por parte do público. Este sacrifício consistiria em tornar oneroso o acesso às obras em linha, em benefício dos autores- e também do empresário da biblioteca digital, mas isso resulta do mercado e não é o que nos ocupa. Hoje a leitura dum livro numa biblioteca pública- uma biblioteca universitária, por exemplo- é gratuita. Nada se paga, directa ou indirectamente, por isso. Há que mudar o sistema. Desde logo, há um empresário da Biblioteca- a Google ou outro - que exigirá o pagamento em contrapartida do acesso. Havendo pagamento, uma parte pode reverter para o autor. Podendo até acontecer que
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todo o pagamento do autor seja realizado através da remuneração dos acessos. Isso supõe a compatibilização dos sistemas que medem os acessos à rede os chamados sistemas de informação sobre os direitos- para conseguir completa justiça na remuneração de cada um. Os sistemas de cálculo actualmente utilizados, que põem os autores nas mãos dos entes de gestão colectiva e se revelam profundamente injustos, poderão ser dispensados, restituindo-se ao autor o protagonismo que perdeu. Mas com que base é defensável esta nova oneração do público, quando reconhecemos que é ele o eterno sacrificado e que é à custa dele que se fazem sempre os acordos entre os entes de gestão colectiva e os empresários das chamadas indústrias de copyright? Defendemo-lo porque cremos ser uma fatalidade, mas sobretudo porque é previsível a generalização do sistema. Se tudo estiver disponível em linha, todos terão de pagar para aceder. Poderá ser um sistema de assinatura ou outro: em qualquer caso, todos pagam. Se todos pagam, ainda que uma quantia pequena, o resultado será o amontoar de somas muito vultuosas. Mas reciprocamente, para reunir somas muito altas, basta que cada utilizador pague muito pouco por cada acesso. Este pode ser tão barato que o utilizador nem o sinta. Podemos comparar ao envio dum e-mail. Ninguém deixa de o fazer hoje com a preocupação do custo. É dispiciendo: manda-se sempre. Pouco a pouco, à medida que o sistema avança, as pessoas vão-se desabituar do livro em papel. Os livros estão em linha. Se é preciso consultar, acede-se. Não se imprime, mesmo que seja possível; a todo o momento é renovável o acesso ao livro, no tempo e em lugar que cada pessoa quiser. Por isso é preferível tê-lo na rede a amontoá-lo em papel. Esta é realmente a nova via que se nos abre. É, pelo menos neste sector, a consumação da era digital. É-nos difícil imaginá-lo agora, porque ainda somos presa da era do papel. Mas a transição está à vista. E com ela, a superação do direito de autor actual e do impasse instalado. É possível aceder a um paradigma muito superior e conforme com a realidade que a técnica tornou possível. Aditamento: Já este escrito estava completo quando foi publicada uma entrevista de William W. Fisher III na revista "Getúlio" da FGV- Direito (São Paulo), n. 0 23, Setembro 2010, 48 e segs. O A. defende a liberdade de acesso à internete, tendo uma contrapartida por parte dos usuários. Esta conseguir-se-ia ou através de um imposto sobre a banda larga, importando em algo como US$2 por mês, ou por um acordo entre os provedores de acesso à internete e os entes de gestão colectiva- o que seria mais difícil porque os provedores não têm incentivo para o fazer. As quantias arrecadadas seriam distribuídas aos autores em função da "popularidade" de que desfrutassem. Sem desconhecer as dificuldades e diversidades da proposta, não podemos deixar de observar uma concordância no núcleo fundamentat a par de linhas que necessitam de compatibilização.
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A NATUREZA INSTITUCIONAL DA UNIVERSIDADE LUSIADA José João Gonçalves de Proença 1
A Universidsde Lusiada não nasceu por acaso,nem foi o produto da decisão unilateral de um orgão superior. O seu processo de criação foi simultaneamente mais simples e complexo. Mais simples, porque isento das intervenções multiplas que em geral ocorrem em casos semelhantes. Mais complexo pela peculiaridade das suas funções e abrangencia de resposabilidades assumidas por agentes muito demarcadas entre si. Trata-se do chamado processo institucional que geralmente acontece quando um determinado grupo social é chamado a satisfazer necessidades colectivas através da criação de organismos adequados e correspondentes normas indispensáveis à sua génese e funcionamento. Ao organismo dá-se em geral a designação de instituição e às respectivas normas, a de regras institucionais,que têm como caracteristica fundamental, a de serem de geração espontânea, sem intervenção superior e, como tais, se imporem à aceitação dos próprios poderes constituidos. E foi isso que precisamente aconteceu com a Universidade Lusiada e havia sucedido já, seis séculos antes, com a criação da primeira universidade portuguesa nascida sob a designação de Estudos Gerais.'mais tarde sediados definitivamente em Coimbra. Num e noutro caso, a iniciativa partiu de um grupo limitado de intelectuais que após ter chamado a si a responsabilidade de criação de um novo estabelecimento de ensino, solicitou e obteve a aceitação e beneplácito do poder público, repectivamente em 28 de Junho de 1986, e 1 de Março de1290 Pela sua especificidade, o processo de criação geracional em causa justifica um pouco mais de esclarecimento, pondo em destaque algumas das suas caracteristicas essenciais. Acentua-se antes de mais a sua caracteristica institucional,mercê da qual o 1
Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Lusiada de Lisboa.
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organismo assim gerado passa a assumir poderes autónomos de orientação, confiados naturalmente aos respectivos membros instituidores. O mesmo acontecendo com as regras assim estabelecidas e aceites pelo próprio Estado,que desse modo assume o dever de as respeitar e garantir na sua aplicação. São exemplos paradigmáticos destas instituçiões, os organismos criados em dois dominios que aqui especialmente nos interessam, pelo relacionamento que mantêm entre si: o dominio das relações de família e o da transmissão geracional de conhecimentos. Começando pelas primeiras, ninguém duvída certamente de que independentemente da sua origem natural ou convencional (filiação ou casamento) as instituiões familiares, antes mesmo da intervenção regulamenter do direito, souberam criar as suas próprias regras de convivência que o Estado depois se limitou a consagrar e eventualmente aperfeiçoar em aspectos de maior exigência. Não foi com efeito o Estado que ensinou aos pais e filhos como constituir a relação parental, nem os direitos e deveres que por força dela os vincula reciprocamente, ou aos conjuges as obrigações que a relação conjugal lhes impõe. E dai também as limitações a que o próprio Estado fica obrigado nas suas intervenções, impondo-se, da sua parte,contenção e respeito pela natureza institucional das relações familiares, o que nem sempre acontece por razões meramente politicas ou de conotação ideológica, como.por exemplo, quando se equipara à instiuição conjugal. situações que, embora similares, dela se distanciam quanto ao seu objectivo natural de manutenção da espécie humana. Haja em vista o caso dos casamentos homossexuais e das uniões de facto para finalidades meramente anímicas ou de natureza económica .. O que sucede com as instituições familiares, pode afirmar-se, em certa medida, para as intituições com o propósito essencial da transmissão de conhecimentos,normalmente designadas como instituições de ensino. Tal como as familiares, estas instituições devem a sua origem não à mera vontade dos homens, mas à necessidade de transmissão geracional dos conhecimentos, indispensáveis não só ao cumprimento normal das suas funções, como à própria sobrevivência da colectividade. E como nas familiares, não foi o Estado que ensinou como devem ser transnitidos os conhecimentos, criando, para o efeito, as primeiras intituições educacionais, que espontâneamente surgiram no seio da família ou de organizações privadas naturalmente vocacionadas para esse efeito. O Estado só interveio muito mais tarde, quando por razões relacionadas com a reorganização da sociedade, se sentiu no dever de colaborar no desempenho dessas funções ou decidiu chamar a si essa missâo para melhor a poder controlar e orientar em conformidade com a sua programação politica. De um e outro caso podemos citar exemplos extraídos da nossa própria história. A natural aptidão da sociedade civil para o desempenho das funções educativas é claramente comprovada pelo simples facto de tais funções terem sido
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exercidas entre nós, até práticamente ao século XIX, por instituições privadas, tanto a nivel primário e secundário como superior, situação que só se alterou, quanto ao primeiro nivel, por razões essencialmente religiosas, e quanto ao nivel superior, pela mera razão politica relacionada com a decisão do Marquês de Pombal de, à semelhança do sucedido em França, com Napoleão, ter chamado a si toda a responsabilidade pela estruturação e orientação da Universidsde de Coimbra, a única instituição de ensino superior então existente entre nós. Situação que se manteve práticamente até aos nossos dias, melhor dizendo, até ao dia 28 de Junho de 1986, data em que foi definitivamente restabelecido em Portugal, em toda a sua plenitude, o ensino universitário privado, mercê da criação da Universida Lusiada .. Justificação bastante para a afimação de que com essa criação não surgiu apenas uma nova institução universitária, mas sim um novo ciclo no ensino superior português, restituindo à sociedade civil a sua natural competência e aptidão em tal dominio .. De novo a simples invocação da realidade nos ajuda à conclusão. Enquanto no ensino primário e secundário a docência assenta fundamentalmente na transmissão de conhecimentos mais ou menos estabelecidos, utilizando para o efeito metodos comprovados e tanto quanto possivel uniformes., no ensino superior tais exigências de uniformidade e comprovação perdem rigidês para, quando muito, assumirem apenas a feição de tendências que assegurem indices de aceitação mais ou menos generalizada sem prejuizo da capacidade de inovação que todo o ensino universiário deve possuir. Na sua essência, o ensino superior é dominado pelo principio da "libertas docentia" susceptivel de garantir a permanente preocupação de comprovação das conclusões cientificas e sua justificação, pouco conciliáveis com métodos ou poderes que cerceiem a iniciativa individual de contestação do saber estabelecido ou seu aperfeiçoamento. E dai a importância que as universidades têm e sempre tiveram para o progresso e desenvolvimento das sociedades, marcando de forma indelével a sua estrutura cultural a todos os niveis, do social ao económico, e em termos tais que não raramente podem ser responsabilizadas pelo respectivo regime socio politico. O que, se por um lado enfatisa a sua missão, agrava por outro as suas resposabilidades, tanto maiores quanto maior for a sua capacidade de intervenção Isto se diz para pôr em destaque as especiais exigências da função universitária, nâo sendo dificil aferir a relação entre o seu grau de autenticidade e a sua maior ou menor independêcia da estrutura social em que esteja inserida, tanto em termos cientificas como funcionais. Aspectos que naturalmente privilegiam o ensino superior privado, não só pela sua natural autonomia relativamente a qualquer enquadramento que não seja determinado pelos seus próprios objectivos, mas também pelos metodos que normalmente adopta para o seu desempenho, em geral relacionados com estruturas associativas, cooperativas ou fundacionais, essencialmente caracterizadas
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pela preocupação de autogestão, como acontece com a Universidade Lusiada, que tendo começado por ser uma cooperativa se transformou mais tarde numa fundação. Orientação que pelas suas vitualidades autonómicas começa a seduzir as próprias instituições de ensino público, como está a suceder com algumas das nossas Universidade estatais já transformadas em fundações com regime idêntico ao das Universidades institucionais. O que por si só representa o melhor elogio que a se pode fazer ao metodo pedagógico, adoptado pelas universidades privadas .. O que permite ainda, talvez, acrescentar algo sobre o processo de recrutamento e formação do corpo docente no ensino superior, que durante algum tempo se supôs na inteira e perene dependência do ensino público, como aconteceu quando as instituições privadas começaram a dar os primeiros passos. Colaboração que não se pode deixar de reconhecer e agradecer, mas que se foi devanecendo, com o chamamento à função docente dos mais qualificados diplomados, tal como no ensino público, muitos dos quais integram já com exito os respectivos quadros, beneficiando, para o efeito, da maior liberdade de actuação das estruturas privadas de ensino, quer no recrutamento própriamente dito, quer na implantação de meios complementares de acesso aos graus académicos mais elevados. Aspecto, este último, em que a Universidade Lusiada se tem rvelado muito empenhada, criando para o efeito cursos e outros meios especializados de graduação académica. A exposição que nos popomos fazer sobre as características e virtualidades do ensino superior privado, reintroduzido em Porugal pela criação da Universidade Lusíada, em 1986, não ficaria todavia completa se não acrecentassemos, a finalizar uma referência a um aspecto em que tais virtualidades eventualmente mais se evidenciam: A sua capacidade de acompanhamento da evolução das condições económico-sociais da sociedade, procurando por elas fazer o ajustamento imediato do respectivo ensino, sem descurar a critica que essa mesma evolução possa merecer. Se isto é exacto em relação a qualquer ramo de ensino das activadades económicas, pelo carácter mais inóquo da estrutura cientifica dos respectivos programas curriculares, a maior capacidade de adaptação do ensino livre à realidade revela-se sobretudo no dominio das ciências sociais, por sua natureza mais dependentes e condicionadas pela evolução sociológica. Pocurando exemplificar, é o que passa designadamente no sector das instituções familiares, quando o Estado decide introduzir na sua estrutura inovações ou desvios que as possam afectar nos seus fundamentos ou objectivos essenciais. Não se ignora, como é evidente, que ao Estado, através do direito, compete acompanhar a evolução natural das concepções sociais,procurando ajustar por ela a respectiva regulamentação juridica. Uma coisa, porém, é esse acompanhamento, em regime de permanente interacção, entre o direito e a evolução social, e outra, muito diferente, sucede
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quando o Estado exorbita de tal função e se serve da sua competência regulamentar para forçar a própria evolução social, de modo a obter objectivos politicas, nem sempre desejados ou conformes com a sua natureza. Sujeitos embora a criticas, não hesitamos em trazer à colação, como exemplos do que acabamos de afirmar, os atropêlos que nos ultimas tempos se tem verificado entre nós, precisamente no domínio das relações familiares, em aspectos que pôem claramente em causa a sua estabilidade, indispensável ao equilibrio e sustentação da espécie humana. E nem sequer vale a pena trazer para aqui os argumentos de ordem ética e sociológica que se opõem a tais agravos, facilitando a dissolução, sem justificação e compensação adequadas, da instituição conjugal, ou impondo-lhe estatutos que não se ajustam à sua finalidade essencial. Em lugar de todos esse argumentos, basta citar um simples dado estatístico de ordem demográfca que aponta, para a população portuguesa, um decréscimo de 50% até ao fim do século.Decréscimo em grande parte devido à desvalorização da instituição familiar, em nome de interesses individuais ou politicas nem sempre legítimos e de valia claramente inferior aos interesses que por tal modo são sacrificados, pondo em causa a subsistência da própria comunidade humana. Não é aqui o lugar adequado para comentar todos estes factos, que apenas citamos para demonstrar as virtualidades do ensino superior privado, evidenciando a sua maior capacidade para intervir, na análise sociológica da vida comunitária, como tem sido desde sempre missão priveligiada das Universidades. E ao fazê-lo apenas nos baseamos na sua maior liberdade de actuação e ausência de limitações impostas por qualquer tutela que não seja a da sua própria natureza institucional. Não se esqueça, a propósito, que grande parte das alterações introduzidas na estrutura juridica da instituição familiar são de natureza legal, provenientes de órgãos do sector público a quem igualmente compete tutelar os estabelecimentos de ensino de idêntica natureza, por isso mesmo dotados de menor capacidade crítica. Razão pela qual, guardadas as distâncias, não podemos deixar de augurar para o ensino privado e em especial para a Universidade Lusíada importante papel na estruturação sociológica da comunidade nacional, quer pela transmissão do saber, quer pelo sentido crítico da sua preocupação de salvaguarda dos superiores interesses dessa comunidade. Para o que, como é lógico, não bastam, os 25 anos já decorridos, que, como acontece com as pessoas, constituem apenas o período prodrómico necessário à obtação da maioridade .. Verdadeiramente só agora começa a ser aceite, em plenitude, a sua afirmação no contexto do ensino superior nacional,solidamente alicerçada já, no entanto, em cerca de 30.000 licenciados nas mais diversas especialidades, saídos das três secções da Universidade Lusiada, em Lisboa, Porto e Vila Nova de Famalicão (e pena é que o não seja também em Coimbra onde estsve para ser instalada). A que incontestavelmente se junta o prestigio pedagógico-científiico que começa a
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ser alcançado pelo nosso ensino e bem expresso na bibliografia original já publicada pelos docentes das disciplinas curriculares de cada curso, com particular expressão no curso de direito. É incontestável, com toda a evidência, que a perspectiva valorativa do ensino superior em Portugal pende ainda de modo muito significativo a favor do ensino público, claramente beneficiado pela exclusividade da sua intervenção durante mais de dois séculos, pelo que não pretendemos com as referências feitas pôr em causa a excelência da sua afirmação, mas apenas evidenciar as virtualidades do ensino privado a nível universitário, bem demonstradas, de resto, pela panorâmica internacional desse ensino, onde brilham como estrelas de primeira grandeza as mais qualificadas Universidades do mundo ocidental, como sejam as universidades norte americanas de Harvard e Columbia, as Universidades inglesas de Oxford e Cambridge, a Universidade francesa da Sorbonne e a Universidade belga de Lovaina, para só citar as mais conhecidas, todas de origem e essência privatistica. Repare-se que não estou a invocar aqui a perspectiva que me é mais cara no domínio da estruturação cultural dos povos, a perspectiva histórica, rememorando os primórdios da civilização ocidental, desde a Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles, passando pela Universitas Boloniensis de Irnério, até à criação dos nossos Estudos Gerais, em 1290, a pedido de desassete eclesiásticos, tudo iniciativas de pendor privado, pondo em destaque uma realidade que me é também muito cara, e se concretiza na inteligência que brota naturamente dos homens individualmente considerados, para se converter depois na expressão colectiva do pensamento público E, mais não acrescentaremos, esperando com o que fica dito ter prestado também a homenagem devida aos fundadores da Universidade Lusíada, cujos nomes, gostaria ver perpetuados de forma indelével, para que no futuro não se pense que a Universidade Lusíada nasceu por acaso.
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A PROIBIÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES FASCISTAS ENQUANTO AUTO-RUPTURA CONSTITUCIONAL DESCONFORME COM O DIREITO INTERNACIONAL L. Barbosa Rodrigues 1
Resumo/Abstract:- O presente estudo tem por objecto o exame da interdição das organizações e associações fascistas no ordenamento jurídico português, procurando identificar a sua natureza e efeitos face à Constituição e frente ao Direito Internacional. - The present study has for aim the examination of the interdiction of the fascist organizations and associations in the Portuguese legal system, trying to identify its nature and effects in front of the Constitution and the International Law. Palavras-chavesjKey Words:- Direitos Fundamentais; direitos, liberdades e garantias; direito de associação; organização fascista. - Human Rights; rights, freedoms and warranties; association right; fascist organization.
A. INTRODUÇÃO I - A Constituição portuguesa consagra desde a respectiva origem - quer a situemos, como tradicionalmente, em 1976, quer a localizemos em 1982, como parece substantivamente mais adequado - o direito humano e fundamental de livre associação (art. 46°). Em primeiro lugar, num registo positivo, ao prever que os cidadãos o podem exercer sem quaisquer constrangimentos, maxime, sem dependência de au1
Doutor em Direito (Ciências Jurídico-Políticas - Direito Constitucional) Professor das Faculdades de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa e do Porto.
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torização (idem, no 1), e com ressalva apenas das exigências legais inerentes à aquisição da personalidade colectiva. Em segundo lugar, num plano negativo, ao estabelecer que aqueles cidadãos não podem ser compelidos a integrar associações ou impedidos de as abandonar (idem, n° 3), ao vedar a interferência das autoridades públicas no que concerne à identificação e prossecução dos respectivos fins (idem, n° 2), e ao tornar dependente de previsão legal e de intervenção judicial tanto sua suspensão como a respectiva dissolução (idem) . Em terceiro lugar, ao sediar a faculdade de associação entre os direitos, liberdades e garantias, fazendo-a beneficiar de um regime jurídico especialmente privilegiado no conspecto dos Direitos Fundamentais, quer em termos materiais, no que concerne à aplicabilidade, vinculação, restrição e suspensão (arts. 18° e 19°, Constituição), quer em termos orgânicos, no que toca à reserva de acto legislativo e à revisão constitucional (arts. 165°, no 1, al. b), e 288°, al. d)), Constituição). II- Essa extensão, porém, conhece limites, tanto nos termos constituídos gerais (art. 18°, n° 2 e n° 3, Constituição), como nos do próprio foro constitucional. Assim, ficam imediatamente excluídas as associações que se destinem a promover a violência (art. 46°, no 1, Constituição). Solução que não suscita dúvidas quanto à respectiva legitimidade, mas que se defronta com uma notória inaplicabilidade imediata, considerada a indefinição constitucional sobre o que deva entender-se por violência. Ficam afastadas, igualmente, as associações de fim contrário ao Direito Criminal. Proibição tautológica, porque se não faz sentido a existência de associações contrárias à lei geral, menos concebível seria a contradição com a lei criminal, e, sobretudo, proibição imprecisa, porque deixa por esclarecer se a menção à lei penal significa apenas conduta de natureza intrinsecamente criminal, ou se se alarga a qualquer outra sancionada com pena privativa de liberdade - uma vez que, no que concerne aos militares, inexiste correspondência exacta entre ambas (art. 27°, no 3, al. d), Constituição). São também interditas as associações armadas e as associações de tipo militar, militarizadas ou paramilitares (art. 46°, no 4, Constituição). Limitação que faz emergir relevantes dificuldades interpretativas, designadamente no que toca às associações de tipo militar ou análogas a estas. E que evidencia o problema da compatibilidade com o direito de resistência enquanto direito natural, isto é, enquanto direito não limitado pelos termos da sua específica consagração positiva (art. 21°, Constituição), ou mesmo, da compatibilidade com o próprio direito de revolução, de idêntica natureza e, naturalmente, sem previsão constitucional. São ainda constitucionalmente impedidas as organizações e, neste caso, não somente as associações, racistas (art. 46°, n° 4, Constituição). Construção pacífica, se situada no estrito plano da dignidade da pessoa hu-
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mana, nas suas dimensões pessoal e social, e da consonância com o princípio da igualdade, eixos fundamentais da Constituição (arts. 1° e 13°), mas construção seguramente mais polémica se nela se pretender visualizar a imposição constitucional de um modelo de multi-etnicidade e, numa sua variante qualificada, de multi-etnicidade inclusiva. Finalmente, em sede de limitação do direito humano e fundamental de livre associação, a Constituição portuguesa actual proíbe a existência de quaisquer organizações e, de novo, não apenas de quaisquer associações em sentido restrito, que perfilhem a ideologia fascista (art. 46°, n° 4, Constituição) 2 • Opção constitucional que, mais do que qualquer das remanescentes, suscita múltiplos e complexos problemas jurídico-políticos, quer internos, quer internacionais. Internos, no que concerne à legitimidade dessa proibição, dada a existência de uma auto-ruptura muito extensa de normas constitucionais, tanto intrínsecas como extrínsecas aos Direitos Fundamentais. Internacionais, no que respeita à consonância da referida proibição com os Direitos de vocação universal e de âmbito europeu, consideradas, designadamente, a natureza ius cogens e a consequente supremacia absoluta e incondicional de largos segmentos do Direito Internacional dos Direitos Humanos sobre os Direitos Internos estaduais.
B) A PROIBIÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES FASCISTAS
I - O primeiro problema a examinar prende-se com a determinação hermenêutica do sentido da expressão organização (art. 46°, n° 4, Constituição). Com efeito, se é seguro que esta compreende a pessoa colectiva associativa, não é menos exacto que nela se não esgota. De um lado, porque a associação, em sentido técnico-jurídico, abarca exclusivamente realidades jurídicas de substrato pessoal e nas quais a finalidade lucrativa se encontra ausente, ou seja, porque exclui tanto as fundações, pessoas colectivas cujo substrato se apresenta eminentemente patrimonial, como as sociedades, cujo escopo evidencia um qualquer modo de prossecução de lucro. E, de outro lado, porque a realidade organização se estende a um plano de natureza diversa do da associação, mas nem por isso juridicamente irrelevante, o plano informal, o plano fáctico. O acto legislativo ordinário que proporciona ao comando fundamental a
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A norma proibitiva assume como fonte o projecto de Constituição do Partido Socialista: "não serão consentidas associações de tipo militar, militarizado ou paramilitar fora do Estado ou das forças armadas, nem organizações que difundam ou pratiquem a ideologia fascista" (art. 21 °), tendo sido objecto de aprovação unânime (Diário da Assembleia Constituinte, n° 41, de 03/09/75, p . 1164 e segs, (sessão de 02/09/75)).
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aplicabilidade de que este carece- elaborado, precisamente, depois da verificação pela Comissão Constitucional da inconstitucionalidade por omissão - prevê a existência de organização "sempre que se verifique qualquer concertação ou conjugação de vontades ou esforços, com ou sem auxílio de meios materiais, com existência jurídica, independentemente da forma, ou apenas de facto, de carácter permanente, ou apenas eventual" (art. 2°, no 1, Lei no 64/78, 6 de Outubro). E, mais estabelece, "consideram-se, nomeadamente, como constituindo organizações ou associações, ainda que sem personalidade jurídica, os partidos e movimentos políticos, as comissões especiais, as sociedades e as empresas" (idem, n° 2). Por seu turno, o Tribunal Constitucional, procedendo à exegese dos referidos comandos, sustenta que, "perfilha-se, pois, uma noção muito ampla de 'organização', a qual tem correspondência, afinal, no entendimento ou conteúdo puramente 'sociológico' do conceito, isto é, no conceito de organização como 'sistema social': um sistema de actuações e comportamentos que mutuamente se integram e visam combinar, e que se diferenciam, de maneira relativamente estanque, do conjunto envolvente de actuações e comportamentos não pertencentes ao sistema (dr., NIKLAS LUHMANN, Evangelisches Staatslexikon, 2• ed., col. 1689). É irrelevante, por conseguinte, tudo quanto respeite à configuração jurídica da entidade em causa: basta - nas palavras da lei - uma 'qualquer concertação de vontades ou esforços' para que se esteja perante uma organização. E mais: não será mesmo necessário que tal concertação de vontades se traduza na mobilização de meios materiais, em ordem à prossecução do objectivo comum; nem necessário será, tão pouco, que essa concertação tenha carácter de permanência" (Acórdão n° 17/94, de 18 de Janeiro de 1994, relativo à extinção da organização denominada Movimento de Acção Nacional (MAN))3. Isto é, semelhante organização pode revelar-se, de forma cumulativa, estritamente fáctica, meramente eventual, não deter meios materiais alguns e não se revelar sequer apta à produção de quaisquer resultados. II - O segundo problema a escrutinar, de jaez igualmente hermenêutico, contende com o significado a atribuir à locução fascista (art. 46°, n° 4, Constituição). Neste caso, o mencionado acto legislativo ordinário estabelece que "considera-se que perfilham a ideologia fascista as organizações que, pelos seus estatutos, pelos seus manifestos e comunicados, pelas declarações dos seus dirigentes ou responsáveis, ou pela sua actuação, mostrem defender, pretender difundir ou difundir efectivamente os valores, os princípios, os expoentes, as instituições e os métodos característicos dos regimes fascistas que a História regista, nomeada-
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No mesmo sentido, J. J. GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA, Constituição da República portuguesa, anotada, V. I, 4a edição, Coimbra, 2007, p. 649: "abranger todo e qualquer tipo de esquema organizatório que sirva de substrato a actividades fascistas ou à difusão de ideias fascistas".
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mente, o belicismo, a violência como forma de luta política, o colonialismo, oracismo, o corporativismo ou a exaltação das personalidades mais representativas daqueles regimes" (art. 3°, no 1, Lei n° 64/78, 6 de Outubro). E, mais afirma, "considera-se, nomeadamente, que perfilam a ideologia fascista as organizações que combatam por meios anti-democráticos, nomeadamente com recurso à violência, a ordem constitucional, as instituições democráticas e os símbolos da soberania, bem como aquelas que perfilhem ou difundam ideias ou adoptem formas de luta contrárias à unidade nacional (idem, n° 2) O Tribunal Constitucional debruça-se igualmente, em termos gerais, sobre "a razão de ser e justificação constitucional de uma proibição 'privilegiada' de 'organizações que perfilhem a ideologia fascista', ( ...) proibição essa, dir-se-á, que se apresenta como 'uni~direccional', não abrangendo genérica e indiferenciadamente todas e quaisquer organizações que, v.g., 'atentem contra a ordem constitucional democrática' (para usar, com pequena diferença, uma conhecida fórmula da Grundgesetz alemã). E isso, tendo em conta que a busca de uma tal razão de ser e justificação normativas há-de naturalmente fazer-se também em termos actuais (isto é, considerando a aplicabilidade actual da Constituição e da lei), e não meramente históricos" (Acórdão n° 17/94, de 18 de Janeiro de 1994, relativo à extinção da organização denominada Movimento de Acção Nacional (MAN)) . E procura, ainda num plano generalista, "determinar com precisão o conceito de 'ideologia fascista' - ou o que seja 'perfilhar a ideologia fascista' "(idem) . Com efeito, prossegue, "nem mesmo com esta concretização legal se eliminaram todas as dificuldades - seja ainda da própria clarificação conceituai da categoria 'organização de ideologia fascista', seja, muito especialmente, da sua aplicação em concreto. Que é assim, no que toca àquela clarificação conceituai, denota-o logo, em primeiro lugar, a circunstância de o legislador haver tido de recorrer a um tão alargado conjunto de notas e índices, como os elencados nos números 1 e 2 do preceito transcrito, para densificar o conceito constitucional em questão, não logrando fazê-lo, afinal, senão de um modo típico e aproximativo; e resulta, a seguir, do facto de, no conjunto dessas notas ou índices, o lugar preeminente vir a ser assumido por uma noção meramente histórica - e, por isso, sempre susceptível de controvérsia ou polémica - como é a de 'regimes fascistas que a História regista"' (idem). III - A Constituição portuguesa não define, pois, nem organização, nem, menos ainda, organização fascista. Por consequência, a norma proibitiva em questão (art. 46°, no 4, in fine, Constituição) carece, em simultâneo, de aplicabilidade imediata e de aplicabilidade directa. Mesmo situando-se no contexto dos direitos, liberdades e garantias, que tipicamente a detêm (art. 18°, n° 1, Constituição), e no seio daqueles que, em razão do seu peculiar melindre, os de natureza pessoal, justificam agravada protecção. Mais: uma vez que tal restrição se ancora directamente no próprio texto
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constitucional, inexistem os limites constitucionalmente exigidos ao legislador comum para a restrição da generalidade dos direitos, liberdades e garantias (idem, n° 1 e n° 2). O que significa que esta específica compressão do direito de livre associação e de livre organização é operada sem respeito pelo princípio da proporcionalidade (idem, no 2), como o demonstra, aliás, o âmbito total e não parcial da ablação. Que é realizada sem preocupação com a natureza não normativa da mesma, tanto no plano da generalidade, quanto no domínio da abstracção (idem, n° 3). Que é possível sem consideração para com o princípio geral da irretroactividade das restrições de direitos, liberdades e garantias (idem). E, por fim, que tem como consequência não a preservação ou a mera redução da extensão e do alcance dessa possível faculdade associativa, mas a destruição do seu conteúdo e alcance essenciais (idem) - ou até, em rigor, do seu conteúdo e alcance mínimos. Pior: todas essas exigências garantísticas se encontram ausentes num contexto em que, embora não se verificando sobreposição entre a declaração de existência de uma associação ou organização fascista e a punição dos respectivos membros, há, todavia, uma evidente e estreita correspondência entre ambas (art. 4°, n° 1, Lei n° 64/78, 6 de Outubro). Na verdade, como afirma o Tribunal Constitucional, "o legislador separa processualmente o reconhecimento judicial duma organização como perfilhando a ideologia fascista, e a declaração da sua extinção, das consequências jurídico-criminais ligadas à constituição de organizações dessa natureza" ( ... );mas, em contraste, "na lógica do diploma em apreço, ocorre uma relação necessária de dependência e complementaridade entre aquele reconhecimento e aquelas consequências, já que o sancionamento criminal do desrespeito da proibição de constituir organizações que perfilhem a ideologia fascista depende, por um lado, da prévia declaração como tal, e da consequente extinção, de determinada organização, mas é, por outro lado, como que postulado por essa declaração. Ou seja: se a decisão judicial que qualifique uma organização como perfilhando a ideologia fascista é 'condição de punibilidade' dos fundadores, responsáveis, membros ou simples participantes na actividade dessa organização (nos termos antes sucintamente indicados), também, de acordo com o disposto na Lei n° 64/78, deverá ela dar automaticamente lugar à instauração do correspondente procedimento criminal" (Acórdão n° 17/94, de 18 de Janeiro de 1994, relativo à extinção da organização denominada Movimento de Acção Nacional (MAN)). Acresce, num domínio de natureza incriminadora, a alusão legislativa ordinária aos "regimes fascistas que a História regista" (idem, art. 3°, n° 1), isto é, o recurso a uma noção de teor a-jurídico, o recurso a "uma noção meramente histórica- e, por isso, sempre susceptível de controvérsia ou polémica" (Acórdão n° 17/94, de 18 de Janeiro de 1994, relativo à extinção da organização denominada Movimento de Acção Nacional (MAN)). Acresce, igualmente, que o citado normativo não se reporta especificamente
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à história pátria- ao referir-se, no plural, aos regimes- transportando assim dificuldades de densificação claramente superiores, quer se entenda essa expressão como uma referência exclusiva à História estrangeira, quer se considere - como parece mais razoável - que alude simultaneamente à História estrangeira e à nacional4. Acresce, ainda, que o referido comando infra-constitucional não se limita a estender o âmbito de aplicação da norma aos estatutos da organização, manifestos, comunicados, declarações ou actuação dos respectivos dirigentes ou responsáveis (art. 3°, n° 1). Nem, tão-pouco, a aludir, compreensivamente, aos valores, princípios, expoentes, instituições e métodos (idem) . Nem, sequer, a abarcar quer a adopção, quer a defesa, quer a difusão, quer, até, a difusão dos mesmos na forma tentada (idem). Passando a um patamar manifestamente superior, o diploma sub judice recorre também à a-tipicidade, utilizando, por quatro vezes, em apenas dois artigos, e em múltiplas sub-situações, o vocábulo nomeadamente (arts. 2°, n° 2, e 3°, n° 1 e n° 2, Lei 64/78, 6 de Outubro). Quando se refere, nomeadamente, aos partidos políticos, nomeadamente, aos movimentos políticos, nomeadamente, às comissões especiais, nomeadamente, às sociedades, nomeadamente, às empresas (idem, art. 2°, n° 2) e, sobretudo, quando alude, nomeadamente, ao belicismo, nomeadamente, à violência como forma de luta política, nomeadamente, ao colonialismo, nomeadamente, ao corporativismo, nomeadamente, à exaltação das personalidades mais representativas daqueles regimes, nomeadamente, ao racismo (idem, art. 3°, n° 1), nomeadamente - pela segunda vez - ao recurso à violência nomeadamente, ao combate por meios anti-democráticos, nomeadamente, ao combate à ordem constitucional, nomeadamente, ao combate às instituições democráticas, nomeadamente, ao combate aos símbolos da soberania, nomeadamente, às organizações que perfilhem ideias contrárias à unidade nacional, nomeadamente, às organizações que difundam ideias ou adoptem formas de luta contrária à unidade nacional, ou, 4 Em sentido próximo, J. J. GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA, Constituição daRepública portuguesa, anotada, V. I, 4a edição, Coimbra, 2007, p. 648: "a proibição de organizações de ideologia fascista traduz-se na limitação da liberdade de organização política, dirigida contra a revivescência de organizações defensoras do regime autoritário de 1933. Por isso, a definição de organizações fascistas terá sempre de reportar-se, em particular, à ordem política concreta, extinta em 25/04/74, com os seus próprios símbolos, expoentes organizações e ideologia, bem como às ideologias em que aquela se inspirou, designadamente o fascismo italiano"; e JORGE MIRANDA, RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, T. I. Coimbra, 2005, p. 470: "por ideologia fascista deve entender-se( ... ) a ideologia correspondente (ou análoga) à do regime anterior a 25 de Abril de 1974- assim definido no Preâmbulo da Constituição (sejam quais forem as dúvidas sobre o rigor da designação) tomando em devida conta o contexto histórico em que o preceito surgiu". Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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por último, nomeadamente, às organizações que adoptem formas de luta contrária à unidade nacional (idem, no 2). IV - Não obstante, mesmo recorrendo, cumulativamente, ao a-juridismo historicista e à atipicidade definitória, o problema da identificação das organizações fascistas permanece por solucionar, porquanto da construção escolhida emerge um trilema existencial básico. Assim, ou os requisitos mencionados são cumulativos e exaustivos, tomando-se porventura impossível encontrar, em Portugal, uma única organização que os reúna na íntegra. Ou esses são requisitos cumulativos e parciais, revelando-se então necessário saber quais se cumulam com quais, quais são, dentre eles, os essenciais e os acessórios, e quantos serão exigíveis, num interminável fenómeno de geometria variável, especialmente perverso em sede incriminadora. De facto, como sublinha o Tribunal Constitucional, "na aplicação concreta, por seu turno, desse conceito típico e aproximativo, sempre se suscita um problema, de resposta nem sempre fácil: o problema de saber qual a combinação dos diferentes índices legais que deve ter-se como relevante para que uma certa e determinada situação (uma certa e determinada organização) seja subsumida na previsão legal" (Acórdão no 17/94, de 18 de Janeiro de 1994, relativo à extinção da organização denominada Movimento de Acção Nacional (MAN)). Ou, por último, os supra-mencionados requisitos existenciais são autónomos, e essa organização é, naturalmente, passível de confusão com um alargadíssimo número de outras. Com efeito, a violência não é um exclusivo do fascismo, podendo inclusivamente não assumir qualquer coloração político-ideológica. O colonialismo, igualmente, não é uma consequência, uma derivação, ou uma especificidade do fascismo, mas um produto histórico que atravessa todos os modelos políticos, democráticos e não democráticos, fascistas e não fascistas, de uma determinada época e, consoante os casos, em moldes mais ou menos extensos. O próprio corporativismo, embora mais directamente conectado com o fascismo, não só o extravasa como inexiste em parte dos designados sistemas fascistas. Também o racismo não é necessariamente fascista, podendo ser-se fascista e não racista, bem como racista e não fascista. Aliás, a própria Constituição distingue claramente entre organizações fascistas (art. 46°, n° 4), organizações racistas (idem) e associações que se destinem a promover a violência (idem, n° 1). Do mesmo modo, nem o combate por meios anti-democráticos, nem o combate à ordem institucional, nem o combate às instituições democráticas, se revelam, historicamente, um exclusivo do fascismo, sendo partilhados com o comunismo, com certas formas de socialismo e, noutro plano, com o próprio
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anarquismo. Mais: contrariamente ao que sugere a lei ordinária examinanda, não pode, em nenhum caso, confundir-se o combate à democracia com o combate ao específico modelo político resultante da Constituição hoje em vigor e às suas concretas instituições. De facto, recusar tais instituições, lutando por outras de índole democrático, ou até, porventura, mais democrático, não pode ser entendido como o mesmo que recusá-las visando a substituição da democracia pela não democracia. Em síntese, a Constituição da República portuguesa remete integralmente a definição de organização e de associação fascistas, bem como a inerente punição criminal dos seus membros, para o legislador ordinário. Ao invés do que ocorre necessariamente em Estado de Direito, ou do que se verifica no remanescente preceituado, é a lei ordinária que integra as restrições em branco da Constituição, e não a Constituição que baliza as restrições desses direitos pela lei ordinária, recordando a tristemente célebre técnica jurídica utilizada pelo artigo 8° da Constituição de 1933. E essa lei ordinária proibitiva das organizações fascistas recorre, cumulativamente, à a-juridicidade e à a-tipicidade, para proceder à supressão total de um direito, liberdade e garantia pessoal, num quadro sistémico em que a essa ablação da faculdade associativa e organizativa inerem, ainda, a acção e a punição criminais. V -No único caso até ao momento julgado pelo Tribunal Constitucional, este aprecia, em concreto, alguns desses índices e critérios de identificação de organizações fascistas (Acórdão no 17/94, de 18 de Janeiro de 1994, relativo à extinção da organização denominada Movimento de Acção Nacional (MAN)). Assim, entende constituir evidência de organização fascista a publicação de artigos de opinião contrários não aos partidos políticos, em geral, mas aos específicos partidos políticos existentes em Portugal. "A contestação do regime democrático traduz-se ainda em ataques desferidos às respectivas instituições, designadamente os partidos políticos, a respeito dos quais se escreveu no n° 4 do jornal "HH": "os partidos, quer sejam de esquerda, do centro ou de direita, apenas estão interessados em subir ao poder mas nenhum deles vai mudar a nossa sociedade onde o poder do dinheiro é o centro de tudo". Por outro lado, no n° 2 do mesmo jornal já se havia escrito: "a principal função deste jornal é combater o sistema de partidos que se instalou em Portugal" (idem). Considera evidência, igualmente, a publicação de artigos de opinião sugerindo a necessidade de uma mudança revolucionária. "A proposta e o apelo à revolução resultam de vários textos imputáveis ao Movimento, como se vê, nomeadamente, através do seguinte, publicado numa das brochuras "RR.": "pretendem uma Revolução Nacional que transforme, de forma categórica, o mundo decadente em que vivemos" (idem).
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O Tribunal Constitucional sustenta, também, o entendimento de que a ideia de Pátria como realidade transcendente e sagrada, sobreposta aos interesses individuais, bem como o culto da raça, da ordem, da disciplina e da hierarquia consubstanciam indícios de organização fascista. "A concepção que o Movimento de Acção Nacional tem da sua intervenção política e da missão dos seus militantes envolve uma ideia de transcendência e sacralidade, ligada e decorrente da missão transcendente da Pátria - como se vê pelo "Discurso acerca do nacionalismo português", publicado num dos "QQ".: na formação política dos seus militantes, o M.A.N. incute-lhes a exaltação da colectividade nacional e a sobreposição dos interesses desta aos dos indivíduos e, bem assim, o culto da pureza da raça, da ordem, da disciplina e da hierarquia" (idem). Defende, ainda, como indiciário da verificação de organização fascista, o facto de a génese e a prática da mesma resultarem de discordância profunda com o concreto sistema político criado pelo golpe de Estado de 1974 e, designadamente, da ausência de legitimidade político-democrática deste. "Na sua origem esteve o descontentamento com o regime democrático instaurado em Portugal na sequência do movimento militar de 25 de Abril de 1974 - regime relativamente ao qual se evidencia uma clara aversão em textos vindos a lume em publicações editadas pelo M .A.N. (como o "Manifesto", os "Pontos Programáticos" e o jornal"HH.") ou a ele ligados (como o jornal"II."), e de que é exemplo o artigo "Daqui para a frente lutar para vencer", subscrito por A., e publicado no n° 1 do "HH.", no qual se lê, nomeadamente, o seguinte: "Para que queremos eleições quando os nossos interesses não são salvaguardados. Para que queremos viver em democracia se a ela corresponde a miséria, a corrupção e o terrorismo (... )aliado ao facto de ela nos ter sido imposta contra nossa vontade" (idem). VI- As mencionadas construções jurisprudenciais, sem prejuízo de um contexto constitucional e legal como o supra descrito, causam alguma perplexidade. Com efeito, para o Tribunal Constitucional, constituem indícios relevantes de existência de organização fascista quaisquer opiniões críticas em relação ao concreto sistema político vigente e, bem assim, quaisquer dúvidas publicamente manifestadas sobre as respectivas génese, legitimidade, idoneidade ou funcionalidade. Isto é, na interpretação do Tribunal Constitucional, a solução constitucional e político-organizativa actualmente existente em Portugal é, afinal, a única juridicamente admissível. Ora, a democracia política não se esgota numa única e determinada construção vigente. Essa democracia pode assumir uma forma institucional republicana ou monárquica, pode traduzir-se em sistemas de governo semi-directos ou representativos, presidenciais, parlamentares, governamentais ou híbridos, e pode assentar
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numa miríade de opções distintas em sede de Direitos Humanos e Fundamentais. Ocorre, ainda, que a actual Constituição portuguesa não se apresenta, em múltiplos domínios, como um texto exemplar. Não o é em sede de legitimidade originária, considerada a sua elaboração essencialmente anti-democrática militar, cumulada pela ausência de referendo final. Não o é no que concerne à legitimidade superveniente, atenta a firme proibição da consulta popular de revisão constitucional ou, por maioria de razão, de transição constitucional. Não o é relativamente à hiper-extensão dos estrangulamentos substanciais à respectiva modificação. Não o é sob o prisma da funcionalidade, dada a opção por um pretenso semi-presidencialismo, tipicamente inibidor de construções sólidas, maioritárias e homogéneas de governo. Não o é no que tange à imparcialidade e equidistância políticas exigidas a uma Lei Fundamental, exibindo um conteúdo ideológico não apenas social mas vincadamente socialista, designadamente no amplexo dos Direitos Fundamentais. E não o é, consabidamente, no foro específico do direito humano e fundamental de associação, ao admitir organizações, associações e partidos políticos defensores de ideologias totalitárias de esquerda, e ao proibir, de forma radical, quaisquer idênticas soluções de direita. Analogamente, os próprios partidos políticos não são, nem devem ser, um dogma absoluto, podendo no futuro evoluir-se para distintas formas de intervenção política, desde a despartidarização absoluta que marcou o recente procedimento constitucional democrático islandês, à informalização descentralizada que já caracteriza os tea parties americanos, ou mesmo à desmaterialização potenciada pela utilização da rede e, mais especificamente, o recurso sistemático e massivo às redes sociais. Além de que, as formações políticas partidárias da III República - como, aliás, as da I República- não se revelam modelares. Não apenas porque surgem desligadas da comunidade política e, designadamente, dos seus segmentos mais activos e produtivos, mas também porque se vêem manifestando sobretudo como instrumentos de fomento da promiscuidade entre o interesse público e os interesses privados. VII - Do exposto resulta que, a insistir-se na proibição destas organizações e associações, sem prejuízo das dificuldades evidentes e da potencial falibilidade de semelhante empresa, preferível teria sido procurar definir, na própria Constituição, e de forma taxativa, fascismo 5 • Ou, na impossibilidade absoluta de o fazer, remeter expressamente, mas de 5
Sobre o conceito de fascismo, ROGER GRIFFIN, The nature ofJascism, Nova Iorque, 1991; e ROBERT PAXTON, The anatomy ofJascism, Nova Iorque, 2004; sobre respectiva evolução, ROGER EATWELL, Fascism. A histon;. Nova Iorque, 1995.
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forma exclusiva, para o modelo português histórico existente entre 1933 e 1974.
C) A AUTO-RUPTURA CONSTITUCIONAL
I -Após o exame, em tese e em caso, da questão terminológico-conceptual, importa analisar as questões concernentes à auto-ruptura significada pela proibição das descritas organizações fascistas no conspecto da ordem constitucional portuguesa. Isto é, apreciar a contradição ou contradições entre essa interdição radical e as normas plasmadas na própria Constituição. Em primeiro lugar, a auto-ruptura existente em sede de direito de livre associação, ou, numa perspectiva mais lata, de direito de livre organização. Em segundo lugar, a auto-ruptura constatável face a outros direitos, liberdades e garantias. Em terceiro lugar, a auto-ruptura observável frente a outros direitos fundamentais de natureza análoga à daqueles. Em quarto lugar, a auto-ruptura patente no confronto com os direitos económicos, sociais e culturais. Em quinto lugar, a auto-ruptura respeitante a normas constitucionais transversais à integralidade dos Direitos Fundamentais. Em sexto e derradeiro lugar, a auto-ruptura atinente às normas e valores que alicerçam a própria Constituição. II -A consagração na Constituição portuguesa de um comando proibindo integralmente, e por quaisquer formas, jurídicas ou fácticas, a existência de organizações fascistas, auto-derroga, antes de mais, o direito de associação (art. 46°). De um lado, porque este é conferido, em termos gerais, de um modo remarcavelmente extenso. De outro lado, porque, extravasando o puro direito de associação, o texto fundamental proíbe não apenas o direito de livre associação mas também o, mais lato e compreensivo, direito de livre organização. Isto é, proíbe aquilo que não proíbe sequer quanto às estruturas de tipo militar, militarizado ou para-militar, ou mesmo às vocacionadas para a promoção da violência ou possuidoras de fins contrários à lei criminal - designadamente, os gangs- relativamente às quais se satisfaz com a exclusão das associações (art. 46°, no 1, Constituição). Acresce, ainda, que a Lei Fundamental veda a existência de associações ou organizações que agiriam, potencialmente, com o escrutínio da opinião pública e dos media, mas não afasta as associações secretas, cujos programas, fins, métodos, organização, filiação, ou formas de acção, embora tenham implicações directas profundas nos domínios político, económico e social, são desconhecidas para a generalidade dos cidadãos.
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Mais: por absurdo, só admitirá a existência de organizações fascistas desde que estas permaneçam, precisamente, secretas ou, pelo menos, discretas. Dir-se-ia que semelhante opção consubstancia um regresso ao Estado Liberal e à característica hostilidade deste em relação ao direito de associação e, de forma mais gerat à acção colectiva. Mas não é assim. Efectivamente, o Estado português não afasta todo e qualquer tipo de organizações políticas. O Estado de inspiração socialista consagrado pela Constituição abjura apenas um específico tipo, as organizações fascistas. O que significa que não só se não verifica uma reaproximação ao Estado Liberal, como se assiste a uma manifesta negação do mesmo, considerando que tal liberalismo sugere neutralidade, exige equidistância, obriga a imparcialidade e implica liberdade política, individual e colectiva, associativa e organizativa. III - A auto-ruptura introduzida na Constituição pela exclusão das organizações fascistas não se circunscreve aos direitos de livre associação e de livre organização. Essa ablação tem implicações necessárias, directas e indirectas, em múltiplos outros direitos, liberdades e garantias, e desde logo, nos de natureza vincadamente pessoat significando igualmente auto-derrogação. É o que se observa com o - afirmadamente inviolável - direito à integridade pessoal (art. 25°, n° 1, Constituição), na sua vertente relativa à integridade moral. De facto, a proibição associativa e organizativa analisanda, quer em si própria (idem, art. 46°, n° 4), quer pela conexão que sistematicamente é estabelecida na Constituição com o racismo (idem), com a violência (idem, no 1), com a violação da lei criminal (idem), ou com o militarismo (idem), funciona, imageticamente, como um anátema, colocando inevitavelmente em causa aquela integridade moral. É o que ocorre, também, no que tange a parte relevante dos direitos de personalidade (art. 26°, Constituição), nomeadamente com o direito ao desenvolvimento da personalidade, e, no quadro deste, no que concerne à sua afirmação frente ao Estado. Na verdade, esse livre desenvolvimento é negado ao indivíduo fascista por uma Constituição que o proíbe de optar por esta ideologia, e de agir, social e colectivamente, de acordo com a mesma, traduzindo-se o mero conhecimento da interdição, incontornavelmente, em inibição do respectivo exercício. Existe igualmente auto-ruptura constitucional no que se refere ao direito à liberdade física (art. 27°, n° 1, Constituição). De facto, ao fazer corresponder à privação do direito de associação e de organização fascista a punição criminal dos seus membros, a Constituição e o acto legislativo ordinário que a implementa criam uma extensão das causas de privação dessa liberdade locomotória.
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Neste caso, a auto-ruptura não se centra na existência de excepções à regra da liberdade, mas na circunstância de esta, atipicamente, assumir fundamentos políticos e ideológicos, e, bem assim, ter como fonte essencial o direito ordinário (idem, n° 2 e n° 3). Verifica-se também auto-ruptura no que concerne ao- também ele definido como inviolável- direito à liberdade de consciência (art. 41°, Constituição). Com efeito, na esteira do que ocorre com o direito ao livre desenvolvimento pessoal, a proibição associativo-organizatória fascista e a conotação negativa que a Constituição à mesma faz directamente corresponder, funciona como obliteraclara da própria determinação da consciência por parte dos indivíduos fascistas. Quer no plano interno, da formação e sedimentação de valores e de convicções, quer, por maioria de razão, no plano da sua exteriorização, quer, em moldes ainda mais evidentes, no plano da respectiva difusão massificada. Mais: a proscrição das organizações e associações fascistas significa a imposição pelo Estado de uma determinada opção ideológica, política e doutrinária, frequentemente ligada a formas de coacção jurídica e social, e, no limite, a mecanismos totalitários unidireccionados. Acontece igualmente auto-ruptura no que toca ao direito à liberdade de expressão (art. 37°, Constituição). Com efeito, num Estado em que se proíbem estas organizações e associações, ficam necessariamente prejudicadas as faculdades dos cidadãos fascistas de, livremente, exprimir ou divulgar o seu pensamento, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio (idem, n° 1). E a interdição das organizações fascistas gera, inclusive, um contexto constitucional absolutamente encorajador de todos os tipos possíveis, expressos, semi-expressos e tácitos, de censura (idem, no 2), ou até, em patamar distinto, de auto-censura. Idêntico fenómeno auto-ruptório se verifica com o- em múltiplos aspectos paralelo ao anterior- direito de informação (art. 37°, Constituição). Desde logo, no que contende com a liberdade de informação de terceiros (idem, n° 1), porque a verificada pré-existência de censura o comprime em termos quase absolutos. Depois, no que tange aos direitos de se informar e de ser informado (idem), uma vez que os referidos conteúdos informativos ideologicamente fascistas se encontram indisponíveis ou muito severamente limitados nos tradicionais meios de informação, sobretudo nos estaduais e, dentre eles, nos mais massificados. Análoga auto-derrogação ocorre no que concerne ao direito à liberdade de imprensa e de meios de comunicação social (art. 38°, Constituição). Efectivamente, ao invés do que se verifica para a generalidade dos cidadãos, o desvalor constitucional resultante da proibição constitucional relativa às organizações fascistas, conduz à denegação aos fascistas de qualquer garantia de liberdade de imprensa (idem, n° 1). Mais: evidenciando a extensão desta específica auto-ruptura, a mera funda-
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ção de um jornal ou de outra publicação (idem, n° 2, al. c)), bem como o simples pedido de licenciamento de uma estação emissora de rádio ou de televisão (idem, no 7) ideologicamente fascistas, consubstanciam, por si próprias, a existência de organização fascista (art. 46°, no 4, Constituição, e arts. 2°, no 1, e 3°, no 1, Lei no 64/78, 6 de Outubro) . Conforma-se ainda como auto-derrogação constitucional, fundamentada na proibição das organizações fascistas e no juízo exclusório que tal proibição veicula, a possibilidade oferecida ao Estado, neste caso excepcional, de, dirigisticamente, programar a educação e a cultura segundo directrizes filosóficas, estéticas, políticas e ideológicas, não apenas não fascistas ou a-fascistas, mas vincadamente anti-fascistas (art. 43°, n° 2, Constituição). Auto-ruptura existe, uma vez mais, no que tange à liberdade de criação de estabelecimentos de ensino particulares e cooperativos (idem, n° 4). Com efeito, a interdição organizatório-associativa analisanda, impede, nos termos generalissimos adoptados pela Constituição e ainda ampliados pelo acto legislativo ordinário, a abertura de quaisquer escolas, e de forma mais específica, de quaisquer universidades, que apresentem inspiração ou conotação fascistas. O mesmo se diga, mutatis mutandis, para qualquer das vertentes, intelectual, artística e científica, do direito à liberdade de criação cultural (art. 42°, Constituição). Não somente porque sobre o cidadão ideologicamente fascista incide um incontornável estigma constitucional, que condiciona essa liberdade, mas ainda porque a respectiva difusão é susceptível de consubstanciar, ela própria, por si só, a existência de uma organização desse tipo. Surge como auto-ruptura, analogamente, a contradição com os direitos atribuídos à generalidade dos cidadãos, em sede de informática, pela Lei Fundamental (art. 35°, Constituição). Com efeito, se esta encerra uma discriminação de natureza estritamente ideológica (art. 46°, n° 4), deixa de fazer sentido a norma que proíbe a utilização da informática para tratamento de dados pessoais referentes a convicções políticas, salvo autorização prevista por lei com garantias de não discriminação (art. 35°, no 3, Constituição). Isto é, se, neste caso excepcionalíssimo, a Constituição consagra a existência de uma discriminação ideológica, seria abstruso que a lei ordinária a não pudesse igualmente contemplar, ou até, quiçá, desenvolver. E se a Constituição proíbe expressamente as organizações fascistas, seria contraditório com tal proibição circunscrever o recurso à utilização da informática enquanto meio especialmente eficaz e adequado para a identificação e repressão das mesmas e dos respectivos membros. Auto-ruptura relevante dos direitos, liberdades e garantias de natureza pessoal, é, uma vez mais, a que se prende com o direito de reunião, considerando que, embora individualizado, este se perfila como um direito de exercício não individual (art. 45°, Constituição).
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Na verdade, ao definir organização como "qualquer concertação ou conjugação de vontades ou esforços, com ou sem auxílio de meios materiais, com existência jurídica (... ), ou apenas de facto, de carácter permanente, ou apenas eventual" e como fascista aquela que "pela sua actuação, mostre defender, pretender difundir ou difundir efectivamente os valores, os princípios, os expoentes, as instituições e os métodos característicos dos regimes fascistas que a História regista" (arts. 2°, no 1, e 3° no 1°, Lei no 64/78, 6 de Outubro), o acto legislativo ordinário exclui, necessariamente, o direito de livre reunião dos cidadãos ideologicamente fascistas. E o mesmo se afirme para o- conexo- direito de manifestação (art. 45°, Constituição). De um lado, porque na generalidade das situações, é exercido colectivamente, emergindo assim, por si próprio e para os mencionados efeitos legais, como verdadeira organização (art. 2°, no 1, Lei no 64/78, 6 de Outubro). De outro lado, porque se perfila como um instrumento essencial de externação política, de difusão de valores, de ideias ou de princípios, mais concretamente, de valores, de ideias ou de princípios fascistas. IV -Apresenta-se identicamente como auto-ruptura da Constituição material, no conspecto dos direitos, liberdades e garantias políticos, a quase integral ablação do direito de sufrágio, eleitoral e referendário (art. 49°, Constituição) dos cidadãos nacionais que perfilhem ideologia fascista. Na verdade, estes cidadãos encontram-se impedidos de criar quer organizações, quer associações (art. 46°, n° 4, Constituição), quer, por maioria de razão, partidos políticos (art. 51°, Constituição), que perfilhem a ideologia fascista. E, por inerência, estão inibidos de concorrer democraticamente, através dessas estruturas partidárias, para a formação da vontade popular e para a organização do poder político (idem, n° 1). Cumulativamente, o estatuto de cidadão fascista implica ainda a compressão do direito de sufrágio activo, na sua dupla valência eleitoral e referendária. Em primeiro lugar, no plano eleitoral, porque, atenta a vedação constitucional de partidos fascistas que potencialmente o representem, as suas únicas escolhas disponíveis são o voto nulo, o voto em branco ou a abstenção. Dir-se-à que essa facticidade não é exclusiva deste grupo porquanto, frequentemente, também parte significativa - ou mesmo maioritária - da comunidade se não revê nas estruturas partidárias ou nos candidatos não-partidários existentes. Mas não é exactamente assim. De um lado, porque a aludida situação assume, na maior parte desses casos, uma natureza não reiterada. De outro lado, porque ainda que permanente, nada condiciona a criação de novos e distintos partidos políticos que complementem, aperfeiçoem ou, porventura, substituam, o sistema existente, e nada limita também as suas candidaturas
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a cargos públicos de extracção supra-partidária, opostamente ao que se verifica, nos dois casos, com os cidadãos de ideologia fascista. Em segundo lugar, no plano referendário, porque a Constituição proíbe àqueles que perfilham a ideologia fascista o direito de sufrágio em relação a questões que possuam conexões com essa ideologia, desde logo, as respeitantes a um eventual referendo sobre a própria supressão da proibição organizativa. E, mesmo tratando-se de distintas matérias políticas, porque o direito ordinário afasta qualquer tomada de posição grupal por parte deste segmento da comunidade, ao considerá-la susceptível de qualificação como organização fascista (art. 2°, no 1, Lei no 64/78, 6 de Outubro). Relativamente aos direitos, liberdades e garantias políticas, mas de uma forma mais alargada, possui ainda perfil auto-ruptório a limitação aos cidadãos em exame do direito de participação na vida pública (art. 48°, Constituição) e, conexamente, do direito de acesso a cargos públicos (art. 50°, Constituição). Não apenas, pelas razões expostas, em sede de sufrágio, eleitoral, passivo ou activo, e referendário, mas também em todos os outros múltiplos domínios em que se desentranha o princípio democrático-participativo, decisivamente comprometido pela interdição constitucional. Mais: nesta última se inscreve quer o acesso aos cargos soberanos políticos e político-electivos, quer o respeitante aos próprios cargos públicos soberanos não políticos. Exemplificativamente, os cidadãos de ideologia fascistas estão impedidos de exercer funções enquanto juízes porque, embora seja hoje inexigida a expressa concordância com as instituições políticas vigentes, esse requisito decorre implicitamente do texto fundamental, atento o anátema fascista inerente à proibição das organizações fascistas, ou, noutra perspectiva, à proibição das organizações de fascistas. Para além de que, pela natureza das coisas, tais indivíduos, não se afirmam como lídimos defensores da legalidade - rectius, como lídimos defensores da específica legalidade democrática existente- não oferecendo, desse modo, quaisquer garantias de que agirão, se necessário, em ordem a reprimir a violação da mesma (art. 202°, n° 2, Constituição). E idêntico fenómeno é patente no que respeita ao Tribunal Constitucional, tanto mais que a selecção dos titulares deste órgão jurisdicional de soberania assume uma compreensível natureza política e político-partidária, dada a sua configuração como instrumento de defesa da Constituição e do regime político actualmente existentes. Outra manifestação auto-derrogatória das faculdades de matriz política deste grupo de cidadãos ocorre em sede de direito de petição popular (art. 52°, n° 1 e no 2, Constituição). No que concerne à petição de natureza colectiva, dado que esta se configura, sem mais, como organização, e, atentas a extensão e atipicidade do conceito de fascismo, como fascista (arts. 2°, n° 1, e 3o no 1°, Lei no 64/78, 6 de Outubro).
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No que toca à petição individual, sobretudo de perfil intrinsecamente político, considerado o manifesto desvalor constitucionalmente atribuído a toda a facticidade que possa conotar-se com o fascismo. No plano dos direitos, liberdades e garantias laborais, o afastamento das organizações fascistas faz emergir, analogamente, auto-rupturas constitucionais. É o que ocorre com o direito à livre criação de associações sindicais (art. 55°, n° 2, al. a), Constituição), ou, porventura, de organizações sindicais, ideologicamente fascistas. É o que se verifica, também, com o direito de tendência (idem, al. e)), que, mesmo nos casos consentidos pelos estatutos sindicais, se encontra vedado a cidadãos, ou a grupos de cidadãos, portadores da proscrita ideologia. E é o que se constata, ainda, com a denegação aos trabalhadores fascistas do próprio direito de greve (art. 57°, Constituição), atento o perfil não exclusivamente laboral deste e, por consequência, a natureza potencialmente político-ideológica dos motivos ou dos interesses a prosseguir através do respectivo exercício (idem, n° 2). V - A auto-ruptura constitucional sub judice abarca, cumulativamente, um relevante número de direitos de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (art. 17°, Constituição). Assim, existe derrogação constitucional auto-gerada no que concerne ao direito de apresentação de candidaturas à generalidade dos órgãos políticos, político-administrativos e administrativos, nacionais, regionais e locais. Com efeito, se o cidadão fascista se encontra proibido de fundar organizações, associações e partidos políticos, e de, através destes, concorrer democraticamente para a formação da vontade popular e para a organização do poder, isso implica que lhe esteja também interdito o direito de sufrágio eleitoral passivo, o direito de ser eleito. ' No que concerne à Assembleia da República e às Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas atendendo a que os partidos políticos detém o monopólio da apresentação de candidaturas (art. 151°, Constituição, art. 19°, Estatuto Político-Administrativo da Madeira, e art. 28°, Estatuto Político-Administrativo dos Açores). No que toca à designação do Primeiro-Ministro e dos Presidentes dos Governos Regionais uma vez que a respectiva nomeação decorre essencialmente, de forma mediata, dos resultados das referidas eleições parlamentares (art. 187°, Constituição, art. 57°, Estatuto Político-Administrativo da Madeira, e art. 81°, Estatuto Político-Administrativo dos Açores). No que se refere ao Presidente da República, dado que, embora as eleições não assumam natureza directamente partidária, a mera congregação de esforços, bem sucedidos ou frustrados, para reunir o número de assinaturas necessário à formalização da candidatura (art. 124°, Constituição) de um cidadão fascista, implica, em si mesma, a existência desse tipo organizatório (art. 2°, n° 1, Lei n°
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natureza a eles análoga, se poderia, em resposta, ser invocado o direito de resistência (art. 21°, Constituição). Mas não apenas o direito de resistência se revela insusceptível de utilização como remédio jurídico para as referidas auto-quebras constitucionais, como é, ele próprio parcialmente auto-derrogado aos cidadãos que professem a ideologia em análise. De um lado, porque quando a Constituição afirma que todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias, refere-se apenas aos por si própria consagrados, nos exactos termos por si própria consagrados, e nunca às rupturas constitucionalmente estabelecidas. De outro lado, porque o direito de resistência colectivo, tanto passivo como activo, é necessariamente negado aos cidadãos de ideologia fascista, dado que pressupõe organização, organização que se lhes encontra vedada (art. 2°, n° 1, Lei no 64/78, 6 de Outubro). Não obstante, se esse direito de resistência "pode revelar-se como um instrumento importante de defesa em caso de suspensão inconstitucional de direitos, liberdades e garantias" e "um contrapeso do artigo 19°" 6, por maioria derazão tem de ser considerado quando o que está em causa é não a mera suspensão, precária e temporária por natureza, mas a auto-ruptura permanente, para um conjunto de membros da comunidade nacional, de um largo segmento da ordem jurídica relativa aos Direitos Fundamentais. Mais: o direito de resistência, tal como o seu congénere direito de revolução, ergue-se não apenas como direito positivo ou positivado, mas, essencialmente, como direito natural, isto é, como direito supra-positivo, supra-legal, supra-constitucional e, por consequência, como direito subversor, em caso de imperiosa necessidade, da própria Lei Fundamental escrita. VI -A essa extensa listagem de direitos, liberdades e garantias, bem como de direitos de natureza análoga, atingidos pela auto-derrogação constitucional em exame, acresce um relevante número de direitos económicos, sociais e culturais. Exemplificativamente, é o que se constata com o direito à educação (art. 73°, Constituição) e com o direito à cultura (idem). Desde logo, porque a discriminação ideológica atinente aos cidadãos pretere a obrigação constitucionalmente fixada ao Estado de, na educação, promover um espírito de tolerância e de compreensão mútua, visando, designadamente, a participação democrática na vida colectiva (idem, n° 2). Depois, porque fica inviabilizada a promoção, por esse Estado, da democratização da cultura, quer no que toca à sua própria acção imediata, quer no que resulta da colaboração com um conjunto de entidades (idem, no 3), que os 6
J.J. GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA, Constituição da República portuguesa, anotada, V. I, 4" edição, Coimbra, 2007, p. 422.
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aludidos cidadãos não podem criar, em razão da proibição constitucional das organizações fascistas. E, em sede de criação e investigação científica, porque se torna inexequível assegurar a estes cidadãos qualquer incentivo ou apoio (idem, no 4), e, bem assim, qualquer liberdade ou autonomia (idem), face ao tratamento ideologicamente discriminatório que lhes é prescrito na Lei Fundamental. Auto-ruptura, no campo dos direitos económicos, sociais e culturais, existe, por fim, no que concerne à designada participação democrática no ensino (art. 77°, Constituição), sobretudo na sua vertente associativa (idem, n° 2), com especial incidência nas Universidades, considerada a respectiva autonomia (art. 76°, Constituição). Na verdade, atenta a latíssima proibição das organizações fascistas, fica vedada aos professores, alunos ou funcionários fascistas, o acesso a quaisquer órgãos de gestão, e, nomeadamente, a apresentação de listas para aqueles que possuam natureza electiva (art. 77°, no 1, Constituição). Do mesmo modo que lhes fica inibida, pela natureza das coisas, a participação ou a criação das associações que visem intervir na definição da política de ensino (idem, n° 2). VII - Resulta assim claramente demonstrado não poder contrapor-se, com um mínimo de seriedade científica, a proibição constitucional e ordinária dos direitos de associação ou de organização à proibição dos direitos singulares dos indivíduos. Isto é, torna-se cristalino que a interdição dos primeiros significa, incontornavelmente, a interdição de extensos domínios, ou, até, a quase integral supressão dos segundos. Mais: o direito de livre associação e- por identidade de razão, senão mesmo por superioridade de razão - o direito de livre organização, surgem compreendidos entre os direitos, liberdades e garantias pessoais, entre os direitos do homem individualmente visionado, entre os direitos do homem apartado da comunidade de cidadãos, entre os direitos do homem separado de qualquer dimensão colegial, colectiva ou transpessoal, que lhe seria oferecida, designadamente, pela sua inserção em sede de direitos, liberdades e garantias políticas. Construção que se encontra bem patente no acto legislativo ordinário que regula o direito de associação (Decreto-Lei n. 0 594/74 de 7 de Novembro, alterado pelo Decreto-Lei n° 71/77, de 7 de Fevereiro), que, logo no respectivo preâmbulo, declara que "o direito à livre associação constitui uma garantia básica de realização pessoal dos indivíduos em sociedade" 7 • 7
Em sentido oposto, Acórdão n° 17/94, de 18 de Janeiro de 1994, relativo à extinção da organização denominada Movimento de Acção Nacional (MAN)): "de facto, o que no artigo 46°, n° 4, da Constituição (e, depois, na Lei n° 64/78) se proíbe não é a adesão individual de quem quer à ideologia fascista, nem toda e qualquer forma de manifestação
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VIII- Juntamente com as examinadas auto-rupturas a múltiplos direitos, liberdades e garantias, direitos de natureza análoga, e direitos económicos, sociais e culturais, a proscrição das organizações fascistas auto-derroga a integralidade dos próprios princípios estruturantes dos Direitos Fundamentais. Em primeiro lugar, essa auto-derrrogação circunscreve o princípio da universalidade (arts. 12°, 14° e 15°, Constituição). Com efeito, a Constituição portuguesa é especialmente abrangente no que concerne à titularidade de Direitos Fundamentais. Desde logo, porque não estabelece senão de forma expressa e excepcional distinções entre cidadãos portugueses originários e cidadãos portugueses naturalizados (arts. 12° no 1, e, a contrario, 122°, Constituição), fazendo até uma especial alusão aos residentes no estrangeiro (art. 14°, Constituição). Depois, porque estende os Direitos Fundamentaís, inclusive os de natureza política, aos cidadãos apátridas e aos cidadãos estrangeiros, com particular ênfase para os oriundos dos Estados de língua oficial portuguesa e da União Europeia (idem, art. 15°). Finalmente, porque alarga o gozo de um relevante segmento dos Direitos Fundamentais às pessoas colectivas (art. 12°, no 2, Constituição). Todavia, em confronto com essa preocupação universalista e globalista, a Constituição portuguesa revela menor preocupação com os direitos pessoais, políticos, laborais, económicos, sociais e culturais de uma parte dos seus nacionais, os de ideologia fascista. Isto é, os apátridas, os estrangeiros, e até mesmo as pessoas colectivas, usufruem de múltiplos Direitos Fundamentais que, por razões de matriz ideológica, são recusados a cidadãos portugueses, quiçá originários e porventura residentes em território nacional. Em segundo lugar, a examinanda auto-derrogação choca com o princípio-farol da igualdade (art. 13°). De um lado, na sua dimensão liberal, que "consubstancia a ideia de igual posição de todas as pessoas ( ... ) perante a lei, geral e abstracta, considerada subpública, defesa ou propaganda dessa ideologia: é, tão-só, a existência de 'organizações' que se proponham tal objecto ou finalidade"; também, J. J GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA, Constituição da República portuguesa, anotada, V. I, 4• edição, Coimbra, 2007, ps. 648-649: "a Constituição proíbe as organizações fascistas mas não legitima qualquer delito de opinião. Podem defender-se ideias fascistas no exercício da liberdade de expressão individual; o que não se pode é fundar organizações fascistas, destinadas à defesa e promoção de ideias ou actividades fascistas"; e JORGE MIRANDA, RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, T.l. Coimbra, 2005, p. 470: "a proibição de organizações que perfilhem ideologia fascista tem de ser delimitada restritivamente, até por maioria de razão à face do artigo 18°, n° 2. Donde: a) a proibição afecta apenas a organização política, não a expressão política, pois está localizada num preceito sobre liberdade de associação (em sentido amplo) ao passo que no domínio da liberdade de expressão do pensamento (artigos 37° a 40°) nada de análogo existe".
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jectivamente universal em virtude da sua impessoalidade e da indefinida repetibilidade na aplicação" 8 • De outro lado, na sua vertente democrática, que "exige a explícita proibição de discriminações ( ... ) na participação no exercício do poder político, seja no acesso a ele ( ... ), seja na relevância dele ( ... ),bem como no acesso a cargos públicos" 9 . Com efeito, a Constituição portuguesa auto-exclui, em relação às organizações e aos cidadãos fascistas, um princípio de proibição do arbítrio com o qual vincula genericamente o legislador ordinário (idem, n° 2). E trata de forma desigual o que é efectivamente igual, privando de um extenso feixe de Direitos Fundamentais um segmento de cidadãos portugueses que apenas são distintos de todos os remanescentes do ponto de vista das suas convicções ideológicas (idem). Mais: a Constituição age de uma forma duplamente desigual, porque não equipara às organizações e aos cidadãos fascistas as organizações e os cidadãos defensores de outras ideologias não-democráticas, autoritárias ou totalitárias, como, por exemplo, as organizações e os cidadãos comunistas (art. 46°, n° 4, Constituição, a contrario). Inconstitucionalizando, aliás, desse modo, a preexistente lei ordinária reguladora do direito de associação, que, em termos analogamente ablativos mas seguramente mais igualitários, estatui que "não são permitidas associações que tenham por finalidade o derrubamento das instituições democráticas" (art. 3°, Decreto-Lei n. 0 594/74, de 7 de Novembro, alterado pelo Decreto-Lei no 71/77, de 7 de Fevereiro). Por fim, a desigualdade constitucional atinente aos referidos cidadãos portugueses escora-se no facto de estes não deterem parte relevante dos Direitos Fundamentais da generalidade dos seus concidadãos, nomeadamente dos direitos a prestações, mas se encontrarem obrigados à integralidade dos respectivos deveres, designadamente no plano tributário (art. 103°, n° 3, Constituição). No âmbito comparado, a construção adoptada em Portugal afasta-se da prevista na referencial Lei Fundamental alemã, que estipula, precisamente, que são proibidas associações cujos objectivos ou actividades ( ... ) contrariem a ordem constitucional ( ... ) (art. 9°), e, muito mais recentemente, da consagrada na Polónia- embora no plano legal e não no constitucional - dirigida contra o que qualifica expressamente como "crimes do fascismo e do comunismo" 10 • 8
J. J. GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA, Constituição da República portuguesa, anotada, V.
I, 4a edição, Coimbra, 2007, p. 337. Idem. 10 Lei de Junho de 2010, que, entre nós, foi objecto de uma viva reacção escrita do Partido Comunista Português, junto da Embaixada polaca em Lisboa. Na carta então entregue, critica-se o referido diploma, nomeadamente, pela sua "natureza discriminatória ediscricionária", pela " violação flagrante das garantias e princípios democráticos básicos dos cidadãos" e pelas "medidas que limitam gravemente os direitos elementares de
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Embora conheça hoje seguidores em alguns outros Estados do antigo bloco de Leste - República Checa, Hungria, Roménia, Estónia, Letónia ou Lituânia nos quais, sobre as organizações e os cidadãos comunistas, impende uma analogamente desigual interdição organizatória e associativa. Em terceiro lugar, a Constituição contraria auto-derrogatoriamente o princípio da proporcionalidade (arts. 18°, n° 2 e 19°, Constituição). Efectivamente, as restrições aos Direitos Fundamentais dos fascistas não se apresentam nem adequadas, nem necessárias, nem equitativas. São inadequadas, porque inexistem - e provavelmente sempre inexistiram -riscos sérios para outros direitos que semelhantes proibições visassem proteger. Mais: à data da decretação da Constituição de 1976, havia-se revelado mais efectivo o perigo de imposição de uma solução anti-democrática e totalitária comunista do que o de um eventual retorno da construção fascista. São dispensáveis, porque os fins visados poderiam ser prosseguidos sem o recurso a mecanismos grosseiros de auto-ruptura. E são excessivas porque, mesmo que esses remédios constitucionais fossem utilizados, devê-lo-iam ser sempre de forma justa. Em quarto lugar e último lugar, para além dos princípios da universalidade, da igualdade e da proporcionalidade, a Constituição portuguesa vigente auto-derroga o princípio da essencialidade conteudística (art. 18°, n° 3, Constituição). Na verdade, é integralmente recusado a este grupo social um alargado conspecto de Direitos Fundamentais e, não apenas, parcialmente limitado o respectivo exercício. Naturalmente, o acto legislativo fundamental não se confunde com o acto legislativo ordinário, nem se encontra, tão-pouco, auto-vinculado pelos princípios definidos no âmbito dos Direitos Fundamentais, maxime, dos direitos, liberdades e garantias ou dos direitos de natureza a estes análoga. Sem prejuízo, revela-se juridicamente inconsistente que um legislador constitucional que comprime, em sede de Direitos Fundamentais, de modo exaustivo a politicidade do legislador ordinário, se ofereça a si próprio uma reserva absoluta de não universalidade, de não igualdade, de não proporcionalidade e de não essencialidade conteudística. Isto é, que os princípios jurídicos que impõe ao legislador ordinário, nesta matéria, ou os valores jurídicos que lhe subjazem, sejam precisamente os opostos daqueles a que se auto-vincula, num normativismo aparentemente desconhecedor da existência de quaisquer limites à criação de normas fundamentais. IX - A auto-ruptura constitucional plasmada na proibição organizatório-associativa fascista estende-se, derradeiramente, aos princípios e aos valores estruturantes em que se alicerça a Constituição portuguesa actual. liberdade d e expressão e opinião", que constituem, "uma inaceitável forma de intimidação e pressão".
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Em primeiro lugar, porque nega a própria dignidade da pessoa humana (art. 1°), ofendendo a tripla dimensão constitucional de "respeito, protecção e promoção- respect, protect, fulfill" 11 -dessa dignidade, a que o Estado português se encontra genericamente adstrito. Efectivamente, atentas a relevância qualitativa e a extensão quantitativa de Direitos Fundamentais liminarmente suprimidos, semelhante opção político-ideológica do constituinte viola as mais elementares escolhas, internas e externas, das referidas pessoas. Em segundo lugar, porque, de forma indissociável, recusa a vontade soberana popular em que se louva o Estado desenhado pela actual Constituição (idem). De facto, entre as faculdades mais básicas afectadas pela proibição examinanda contam-se os direitos, liberdades e garantias de natureza política, ou a estes análogos e, sobressalientemente, o direito de sufrágio nas suas múltiplas valências. Isto é, a auto-ruptura constitucional significada pela proibição fascista subverte, cumulativamente, as "duas bases da República" 12 . Em terceiro lugar, porque choca com o objectivo escatológico da construção de uma sociedade livre, justa e fraterna (idem), atendendo a que, no que concerne aos defensores da ideologia fascista, a República portuguesa - e a Constituição em que esta se ancora - não se apresenta nem livre, nem justa, nem fraterna . Em quarto lugar, porque conduz à violação do princípio do Estado de Direito (art. 2°, Constituição), na medida em que autoriza - e encoraja- o Estado a agir em contradição com os seus princípios constitucionais nucleares, e em que cria para um segmento de membros da comunidade de cidadãos nacional normas opostas às aplicáveis aos remanescentes cidadãos. Em quinto lugar, porque implica a negação do princípio do Estado Democrático (idem), considerando que parte dos cidadãos se encontra inibida de participar directamente na vida política, em conjunto ou de forma individual, e se vê impedida de escolher livremente os respectivos representantes, nacionais, regionais ou locais, e de intervir em sede referendária. Em sexto lugar, porque oblitera o princípio do Estado Social (idem) atendendo a que um segmento da comunidade portuguesa se encontra privada, com fundamento em considerações de matriz ideológica, dos direitos, designadamente dos direitos a prestações, que a Constituição assegura a todos os restantes, Em sétimo lugar, porque conflitua com o princípio do pluralismo político, já que o mesmo se suporta, exactamente, nas liberdades de organização e de expressão (idem), isto é, em duas das liberdades que são negadas ao referido segmento dos cidadãos nacionais.
11
JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976, 4a edição, Coimbra, 2009, p. 161. 12 Na expressão de J. J. GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA, Constituição da República portuguesa, anotada, V. I, 4a edição, Coimbra, 2007, p. 198.
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E, em oitavo e último lugar, a auto-ruptura constitucional plasmada na proibição organizatório-associativa fascista estende-se aos princípios estruturantes da Constituição portuguesa actual porque atinge, inclusivamente, o seu patamar constituinte. Com efeito, ao prescrever a irrevisibilidade dos direitos, liberdades e garantias (art. 288°, ai. d)) - e, porventura, dos direitos de natureza análoga - a Constituição impede o afastamento desta auto-derrogação, considerando que, se a mesma visaria a salvaguarda dos Direitos Fundamentais dos remanescentes cidadãos, em caso de remoção estes resultariam necessariamente restringidos.
D) A DESCONFORMIDADE COM O DIREITO INTERNACIONAL I -A Constituição portuguesa de 1982 - como, aliás, a sua antecessora de 1976- não se cinge à derrogação de um extenso conjunto de princípios e normas por si própria estabelecidas. A Lei Fundamental interna colide igualmente com o Direito Internacional, quer universal, quer regional europeu, não obstante a genérica consagração constitucional de um monismo com supremacia da ordem externa face à ordem interna (art. 8°, Constituição). Mais concretamente, ofende a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (1966), o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (1966), a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (1950) e o Tratado da União Europeia (2007). II - Em primeiro lugar, a auto-ruptura consubstanciada na proibição das organizações fascistas revela-se desconforme com a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Com efeito, este texto consagra, expressamente, o direito de livre associação (arts. 20° e 23°, n° 4), e, implicitamente, por maioria de razão, o direito de livre organização. Prevê, igualmente, um vasto conjunto de outros direitos com aqueles directamente conexos, como o direito à liberdade (idem, art. 3°), as liberdades de pensamento e de consciência (idem, art. 18°), de opinião e de expressão (idem, art. 19°), os direitos de participação política (idem, art. 21 °), de sufrágio (idem), e, bem assim, os direitos à educação (idem, art. 26°) ou à cultura (idem, art. 27°). Acresce que o princípio da universalidade, auto-violado pela Constituição portuguesa no que toca aos fascistas, se apresenta neste texto incontornável (idem, Preâmbulo, parágrafos 1°,5° e 6°, e arts. 1° a 28°). E que idêntico fenómeno se observa por referência ao princípio da igualdade, que nele surge como transversal (idem, Preâmbulo, parágrafos 1o e 5°, e arts.
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1°, 2°, n° 1, 7°, 10°, 16°,21°, n° 2, 23°, n° 2, 25°, n° 2 e 26°, n° 1). 13 Mais: proíbe, de forma expressa, qualquer discriminação estadual entre indivíduos com fundamento nas suas opiniões políticas (idem, art. 2°), nestas havendo que incluir, naturalmente, as correspondentes à ideologia fascista. Por último, a Declaração Universal dos Direitos do Homem estabelece, enquanto limites gerais aos Direitos Humanos (idem, art. 29°), a promoção do reconhecimento e do respeito dos direitos e liberdades dos outros indivíduos, a satisfação das justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática (idem, n° 2), e a insusceptibilidade do respectivo exercício contra os fins e princípios das Nações Unidas (idem, n° 3). Admitindo assim, expressamente, a existência de restrições nacionais a tais direitos, mas adstringindo-as a um- embrionário -princípio de proporcionalidade. O que significa que a ordem jurídico-constitucional portuguesa é não apenas desconforme com uma miríade de concretos Direitos Humanos atribuídos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, mas, sobretudo, conflingente com três dos princípios seminais que àqueles subjazem. Nem se alegue que a Declaração Universal dos Direitos do Homem não vincula, por não assumir a natureza de tratado internacional (art. 2°, n° 1, al. a), Convenção de Viena de 1969 sobre o Direito dos Tratados entre Estados). Com efeito, embora surgindo como soft law, esta resolução da Assembleia-Geral das Nações ganha posteriormente vinculatividade jurídica, como consequência da progressiva aquiscência fáctica dos Estados, apresentando-se hoje como hard law de natureza consuetudinária geral. Mais: as suas normas, todas as suas normas, sem excepção, são hodiernamente qualificadas não apenas como normas vinculativas, mas como normas de ius cogens 14•
Isto é, como normas imperativas de Direito Internacional Geral, aceites e reconhecidas pela comunidade internacional dos Estados no seu todo, cuja derrogação não é permitida, só podendo ser alteradas por novas normas de Direito Internacional Geral com idêntica natureza (art. 53°, Convenção de Viena de 1969 sobre o Direito dos Tratados entre Estados). Não surpreende, pois, que a Constituição portuguesa receba expressamente a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a posicione num patamar supra-constitucional, ao prever que a identificação dos comandos fundamentais internos, quer em sede interpretativa, quer em sede integrativa, é obrigatoriamente realizada de harmonia com os comandos internacionais nela patentes (art. 13
Princípio internacionalmente tão nuclear que, antecedendo a Declaração Universal dos Direitos do Homem, encontra consagração na própria Carta das Nações Unidas (art. 1°, parágrafo 3°). 14 No mesmo sentido, EDUARDO CORREIRA BAPTISTA, Jus cogens em Direito Internacional, Lisboa, 1997, p. 413. Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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16°, no 2, Constituição) 15 . III- Em segundo lugar, a examinanda auto-derrogação constitucional emerge desconforme com o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. Com efeito, também este texto consagra, expressamente, o direito de livre associação (art. 22°), e, implicitamente, por maioria de fundamento, o direito de livre organização. Também nele se encontra prevista a generalidade dos direitos com esses imediatamente conexos, a saber, as liberdades de pensamento e de consciência (idem, art. 18°), de opinião e de expressão (idem, art. 19°), de reunião (idem, art. 21°), bem como os direitos de participação nos negócios públicos (idem, art. 25°, al. a)), de sufrágio (idem, al. b)) e de acesso à função pública (idem, al. c)). E, também nesta sede, se destacam o princípio da universalidade (idem, Preâmbulo, parágrafos 1o e 4°, e arts. 2°, n° 1 e n° 3, al. a), 6° a 19°, 21 o a 26° e 28°), inclusive com expressa menção aos estrangeiros (idem, arts. 12° e 13°), bem como o princípio da igualdade (idem, Preâmbulo, parágrafo 1°, e arts. 2°, no 1, 3°, 10°, 14°, 15°, n° 1, 20°, n° 2, 23°, n° 4, 24°, n° 1, 25°, 26° e 27°), e, mais especificamente, a inadmissibilidade de qualquer discriminação fundada em opiniões, políticas, ou de qualquer outra natureza (idem, art. 2°, no 1). Princípios aos quais se cumula, agora em moldes explícitos e exaustivos, o princípio da proporcionalidade (idem, art. 4°, 5°, 6°, n° 2 e n° 5, 12°, n° 3, 19°, n° 3, e 22°, n° 2 e n° 3). A obrigatoriedade do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos não suscita dúvidas, o mesmo se aplicando à natureza qualificadamente cogente de larga parte das respectivas normas. Mas, da problemática em questão, resultam alguns obstáculos jurídicos que implicam análise. Um, directamente relacionado com os direitos de livre associação e de livre organização, prende-se com admissibilidade de restrições aos mesmos (idem, art. 22°, n° 2). A verdade, porém, é que tais restrições apenas se revelam viáveis quando "necessárias, numa sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, da segurança pública, da ordem pública e para proteger a saúde ou a moralidade pública ou os direitos e as liberdades de outrem" (idem). Isto é, a respectiva utilização pelos Estados conhece, como limites, quer os princípios da universalidade e da igualdade, quer, sobretudo, o supra-identificado princípio da proporcionalidade, tendo, pois, de se apresentar necessárias, adequadas e equitativas. Ora - como demonstrado aquando da análise da Constituição portuguesa
15
No mesmo sentido, ANA GUERRA MARTINS, Direito Internacional dos Direitos Humanos, Coimbra, 2006, p. 117: o ius cogens "deve também servir de parâmetro de validade de normas de Direito Interno, inclusive das normas constitucionais, pelo menos dos Estados monistas, como é o caso de Portugal".
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- a interdição dos direitos de associação e de organização dos cidadãos fascistas é dispensável porque os fins visados podem prosseguidos sem o recurso a estes mecanismos, é inadequada, porque inexistem riscos para outros direitos que semelhantes proibições visem proteger, e é excessiva porque, mesmo que esses remédios constitucionais sejam utilizados, devê-lo-ão ser de forma justa. Um outro problema, mais genérico, emerge da admissibilidade pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos de derrogações a um relevante segmento dos direitos nele contidos e, designadamente, aos direitos sub judice, em circunstâncias de emergência pública que ameace a existência da Nação (art. 4°, n° 1). Contudo, não apenas a existência de cidadãos, organizações, associações, ou mesmo partidos políticos fascistas é insusceptível de inclusão nesse âmbito, como tais derrogações devem obediência, de novo, aos princípios gerais deste tratado, maxime, ao princípio da proporcionalidade. Isto é, só podem ser deliberadas na estrita medida em que a situação o exija, se não forem incompatíveis com outras obrigações impostas pelo Direito internacional e desde que não envolvam uma discriminação fundada unicamente sobre a raça, a cor, o sexo, a língua, a religião ou a origem social (idem). Mas, ainda que assim não fosse, a auto-derrogação constitucional portuguesa, não se esgota nos direitos associativo-organizatórios, atingindo múltiplos outros. E, ao invés do que acontece com os de associação e de organização, alguns desses direitos não são, em circunstância alguma, susceptíveis de derrogação. É o que se constata, paradigmaticamente, com os direitos à liberdade de pensamento e à liberdade de consciência (idem, arts. 4°, n° 2, e 18°), ambos atingidos pela proibição interna portuguesa. Mais: se quaisquer dúvidas hermenêuticas ocorressem na determinação do alcance das faculdades conferidas aos indivíduos por este instrumento internacional, importaria não esquecer que "nenhuma disposição( ... ) pode ser interpretada como implicando para um Estado( ... ) qualquer direito de( ... ) realizar um acto visando a destruição dos direitos e das liberdades reconhecidos no presente Pacto, ou as suas limitações mais amplas que as previstas (idem, art. 5°). Alegar-se-à que, ao invés da Declaração Universal dos Direitos do Homem que, ao integrar-se consuetudinariamente no Direito Internacional geral, prefere sobre a própria Constituição (art. 8°, n° 1, Constituição), o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos se posiciona num plano supra-legal mas infra-constitucional, atenta a sua natureza de tratado internacional (idem, n° 2). Mas não é, em rigor, assim. De um lado, porque se revelaria absurdo que a mesma norma internacional se sobrepusesse à Constituição quando integrada na Declaração Universal dos Direitos do Homem, e lhe devesse obediência quando contida no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. Logo, se a integralidade das normas ínsitas na Declaração Universal dos
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Direitos do Homem apresenta natureza vinculativa qualificada, natureza ius cogens, razão alguma subsiste para um entendimento distinto da força jurídica e da inserção hierárquica das normas contidas Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos. Até por maioria de razão, considerando que, neste caso, o assentimento dos Estados decorre de uma expressa manifestação de vontade no sentido da respectiva vinculação, atenta a sua natureza de tratado. De outro lado, porque, embora partilhando uma forma universal, os tratados não possuem todos a mesma força jurídica, nem, consequentemente, se posicionam de modo uniforme face ao Direito Interno. Observem-se os tratados conformadores do Direito originário da União Europeia que, desde a respectiva entrada em vigor se sobrepõem à Constituição - o mesmo ocorrendo, aliás, com o Direito derivado - em decorrência do primado absoluto e incondicionado do Direito desta Organização Internacional supra-estadual (art. 4°, no 3, Tratado da União Europeia). Considerem-se, igualmente, no específico domínio em questão, os tratados internacionais, meramente codificadores, cristalizadores ou inovadores, nos quais se acolhe ius cogens. E ainda que se advogue que nem todos os Direitos Humanos consagrados neste instrumento convencional assumem relevância ius cogens, ou que, nomeadamente, não a detêm os direitos de associação e de organização, possuem-na, indubitavelmente, os direitos à liberdade de pensamento e à liberdade de consciência, também afectados pela auto-ruptura constitucional portuguesa. Mais: tal natureza inviabiliza a formulação de reservas, ou, em razão da natureza das coisas, porque as reservas se afiguram contrárias ao objecto e à teleologia das normas ius cogens (art. 19°, Convenção de Viena de 1969 sobre o Direito dos Tratados entre Estados) 16, ou, indo mais longe, porque estas se revelam incompagináveis com o Direito Internacional dos Direitos Humanos globalmente considerado, designadamente em razão da inexistência nele de um princípio da reciprocidade 17 • IV -Em terceiro lugar, a examinanda auto-ruptura constitucional perfila-se desconforme com o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Desde logo, viola o direito de livre associação e organização, e, mais especificamente, o de livre associação e organização sindical (art. 8°). Isto é, a auto-derrogação portuguesa apresenta-se contrária ao direito dos cidadãos fascistas de formarem e de se filiarem em sindicatos por si livremente
16
No mesmo sentido, ANTÓNIO CANÇADO TRINDADE, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, V. II, Porto Alegre, 1999, p. 154. 17 No mesmo sentido, ANA GUERRA MARTINS, Direito Internacional dos Direitos Humanos, Coimbra, 2006, p. 93.
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escolhidos, com vista a favorecer e proteger os respectivos interesses económicos e sociais (idem, n° 1, al. a)). Depois, contraria as liberdades, conexas, dos pais de educar os filhos de acordo com as suas próprias convicções e de escolher para seus filhos um ensino diferenciado (idem, art. 13°, n° 3), ou de criação e direcção de quaisquer estabelecimentos de ensino (idem, n° 4). E conflitua, ainda, com a liberdade de investigação científica (idem, art. 15°, n° 3) e com a liberdade relativa às actividades criadoras (idem). Finalmente, lesa o princípio da universalidade (idem, Preâmbulo, parágrafo 1°, 2°,3°, e 4°, e arts. 6° a 15°), o princípio da igualdade (idem, Preâmbulo, parágrafo 1°, e arts. 2°, n° 2, 3°, 7°, als. a), i), e c), 8°, 10°, n° 2 e n° 3, 13°, n°, 2, als. a), b) e c), e 14°) 18, e o princípio da proporcionalidade (idem, arts. 2°, n° 3, 4°, 5°, 8°, n° 1, als. a) e c), n° 2 e n° 3, e 13°, n° 3 e n° 4). O que, nos termos deste último, implica que o direito de livre criação de associações e de organizações sindicais só poderia ser restringido pela ordem jurídica portuguesa em caso de necessidade, no interesse da segurança nacional ou da ordem pública, ou para proteger os direitos e as liberdades de outrem (idem, art. 8°, n° 1, al. a)), e na medida em que fosse compatível com a natureza do direito e com o fim de promover o bem-estar geral numa sociedade democrática (idem, art. 4°). V- Em quarto lugar, no quadro do Direito Internacional regional elaborado pelo Conselho da Europa, a aludida auto-derrogação constitucional portuguesa afirma-se desconforme com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Com efeito, este texto consagra, expressamente, o direito de livre associação e, implicitamente, o de livre organização (art. 11°). Prevê, também, múltiplos outros direitos civis e políticos conexos, como se verifica, nomeadamente, com os direitos às liberdades de pensamento (idem, art. 9°, n° 1) e de consciência (idem), de expressão (idem, art. 10°, no 1) e de reunião (idem, art. 11°, n° 1). E tem, como princípios reitores, o princípio da universalidade (idem, Preâmbulo, parágrafo 2° e 4°, e arts. 2° a 12° e 14°), o princípio da igualdade (idem, arts. 2°, n° 1, 7°, n° 1, 12°, 13° e 16°), designadamente, da não-discriminação com fundamento em opiniões políticas (idem, art. 14°), e o princípio da proporcionalidade (idem, arts. 2°, n° 2, 4°, n° 3, 5°, n° 1, 6°, n° 1, 8°, n° 2, 9°, n° 2, e 10°, n° 2). Em contraste, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem apenas autoriza derrogações em caso de estado de necessidade, isto é, de guerra, ou de outro
18
Idem, p. 174: o Comité dos Direitos Humanos considera, inclusivamente, que o artigo 26° do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos consagra um princípio geral de proibição da discriminação, podendo, assim, abranger também direitos constantes do Pacto Internacional sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais - ou mesmo em leis nacionais.
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perigo público que ameace a vida da Nação, sempre na estrita medida exigível por esse circunstancialismo, e sem preterição de outras obrigações decorrentes do Direito Internacional (idem, art. 15°, no 1) E, em termos análogos, somente admite as restrições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança nacional, segurança pública, defesa da ordem e prevenção do crime, protecção da saúde e da moral, e protecção dos direitos e liberdades de terceiros (idem, arts. 11°, n° 2, e 18°). Isto é, a Convenção clarifica a natureza excepcional de tais derrogações e restrições, estabelecendo um princípio de proporcionalidade na determinação das mesmas. Concretamente, como afirma a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a restrição de um direito outorgado pela Convenção "deve corresponder a uma necessidade convincente e imperiosa e ser proporcional ao fim visado (Acórdão Sidiropoulos e outros, de 10 de Julho de 1998)" 19 • Mais: "para julgar neste caso da existência dessa necessidade, os Estados contratantes dispõem apenas de uma margem de apreciação reduzida, à qual acresce um controlo europeu rigoroso sobre a lei e as decisões que a aplicam, incluindo as de uma jurisdição independente 20 • Ora, uma proibição de ordem constitucional, de âmbito integral, compreendendo tanto o direito formal de associação como o direito informal de organização, demarcada em termos atípicos e até mesmo a-jurídicos, não corresponde, decerto, e uma vez mais, ao princípio de proporcionalidade exigido pelo comando internacional ora examinando 21 . Ocorre ainda a específica circunstância de o acto legislativo que regula a interdição constitucional das organizações fascistas (Lei no 64/78, 6 de Outubro), haver sido publicado precisamente uma semana antes daquele que aprova para ratificação em Portugal da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (Lei no 65/78, de 13 de Outubro), não podendo, assim, alegar-se ignorância, com fundamento num possível desfasamento temporal, sobre a contradição dos respectivos conteúdos. Portugal, em razão das auto-rupturas da sua Lei Fundamental, formulou, no acto correspondente à respectiva vinculação, diversas reservas à Convenção sub judice (art. 2° e segs.), a saber, atinentes à prisão com fundamento meramente disciplinar imposta aos militares, à incriminação retroactiva dos agentes e responsáveis da ex-PIDE/DGS, ao monopólio estadual televisivo, à proibição do direito de lock out, à existência de um serviço cívico de natureza obrigatória, ao 19
IRENEU CABRAL BARRETO, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Anotada, 2" edição, revista e actualizada, Coimbra, 2005, p. 218.
20
Idem .
21
Em sentido oposto, a decisão da Comissão Europeia dos Direitos do Homem- órgão não jurisdicional- de proibição, na Alemanha, do Partido Comunista, bem como de dissolução, em Itália, de uma associação fascista; assim, MARIA JOSÉ MORAIS PIRES, As reservas à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Coimbra, 1997, p. 222.
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confisco em sede de direito de propriedade, à compressão da liberdade do ensino privado e cooperativo e, no caso vertente, à interdição das organizações de ideologia fascista (idem, al. f)). Poder-se-ia discutir a admissibilidade de reservas à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e concretamente, de uma reserva com a saliência e extensão que caracterizam a concernente às organizações fascistas e aos próprios cidadãos fascistas isoladamente considerados. De facto, se o texto europeu se limita a estabelecer a proibição de reservas de carácter geral (art. 64°, Convenção Europeia dos Direitos do Homem), isto é, aquelas que se não referem a uma disposição normativa específica, o mesmo não ocorre com o Direito Internacional geral, que expressamente obriga à sua conformidade com o objecto e fim do tratado (art. 19°, Convenção de Viena de 1969 sobre o Direito dos Tratados entre Estados). Mas o problema revela-se despiciendo na medida em que a maior parte dessas reservas, e, entre elas, a referente à proibição das organizações fascistas, foi supervenientemente retirada (Lei no 12/87, de 7 de Abril) - apenas subsistindo hoje as relativas à prisão disciplinar militar e à incriminação dos agentes da ex-PIDE/DGS22. A ruptura auto-gerada pela proibição constitucional portuguesa das organizações fascistas apresenta-se, pois, desconforme com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art. 11 °). E, considerada a atípica existência internacional de uma efectiva tutela jurisdicional, nada obsta a que um cidadão fascista, um grupo de cidadãos fascistas, ou mesmo uma organização de matriz fascista não autorizada ou subsequentemente proibida, obedecendo ao princípio da exaustão dos recursos internos (idem, art. 35°), recorram ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (idem, art. 34°), visando a condenação do Estado português e, porventura, a obtenção de uma reparação razoável (idem, art. 41 °). Mais: a condenação com fundamento não apenas na violação directa do direito de livre associação e de livre organização, mas de todo um conjunto de direitos conexos que, em razão da interdição daquele, surgem cumulativamente prejudicados23 . VI - Em quinto lugar, derradeiramente, a auto-ruptura constitucional ex22
Solução que suscita o problema- de que não curaremos- da constitucionalidade do acto legislativo ordinário através do qual se procede à eliminação da uma reserva que visava salvaguardar a proibição constitucional das organizações fascistas. 23 Ainda no âmbito do Conselho da Europa, no que concerne ao direito de associação e de organização sindical, a Carta Social Europeia, Revista (1996), art. 5°: "com vista a garantir ou promover a liberdade dos trabalhadores e dos empregadores de constituírem organizações locais, nacionais ou internacionais para a protecção dos seus interesses económicos e sociais e de aderirem a estas organizações, as Partes comprometem-se a que a legislação nacional não restrinja nem seja aplicada de modo a restringir esta liberdade".
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pressa atinente às organizações fascistas, apresenta-se desconforme com o Direito da União Europeia. Desde logo, atento o procedimento conducente à adesão desta organização internacional supra-estadual à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e ao modelo de Direitos Humanos nesta consagrado (art. 6°, n° 2, Tratado da União Europeia, e art. 59°, no 2, Convenção Europeia dos Direitos do Homem). Depois, considerando que se admissibilidade de reservas nacionais em sede de Conselho da Europa é susceptível de dúvidas, o mesmo não acontece no âmbito do Direito da União Europeia, que, em razão do primado absoluto e incondicionado, se afirma frontalmente incompatível com as mesmas. Por fim, dado que a União Europeia reconhece formalmente os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (art. 6°, no 1, Tratado da União Europeia). E que, nos termos desta última, é reconhecido aos indivíduos, uma vez mais, o direito universal (maxime, art. 1°) e igual (maxime, arts. 20° e 21°) à liberdade de associação e de organização, a todos os níveis, nomeadamente nos domínios político, sindical e cívico (idem, art. 12°, n° 1), com específica menção aos partidos políticos (idem, n° 2), pautando-se a respectiva restrição pela observância de um princípio da proporcionalidade (idem, art. 52°, no 1).
Em suma: A proibição do direito de livre associação e do direito de livre organização, contrária às normas constitucionais - quer em sede específica de Direitos Fundamentais, quer num plano sistémico - e contrária às normas internacionais de Direitos Humanos - tanto universais, como europeias - implica, para os cidadãos ideologicamente fascistas, uma efectiva capitio diminutio, revelando-se jurídico-politicamente inadequada a um Estado Europeu, de Direito, Democrático e Social, e uma Comunidade Internacional de vocação personalista, no início do século XXI.
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O REGIME FISCAL DO CENTRO INTERNACIONAL DE NEGÓCIOS DA MADEIRA (SINOPSE) Maria Eduarda Azevedo 1
SUMÁRIO: 1. O Centro Internacional de Negócios da Madeira. 2. Qualificação do Regime Fiscal do Centro Internacional de Negócios da Madeira. 3. Características do Regime Fiscal do Centro Internacional de Negócios da Madeira. 4. No tas Finais
1. O Centro Internacional de Negócios da Madeira
No início dos anos oitenta, a zona "off-shore" da Madeira, concebida e instituída com o objectivo central de promover o desenvolvimento económico e social da Região através da modernização e diversificação da estrutura produtiva, visou dar resposta às necessidades de uma economia marcada pela insularidade e ultraperificidade e, bem assim, pela dependência em relação a um número restrito de bens e serviços2 • Então, justificada pela situação geoestratégica do arquipélago, que alia características económicas específicas com uma configuração sacio-económica peculiar, foi dominante a perspectiva de uma zona franca industriaP que, centrada 1
Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Professora da Universidade Lusíada de Lisboa e da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Investigadora Jurista do Centro de Estudos Fiscais. 2 À data, a RAM dispunha de um PIB per capita que correspondia a menos de 30% da média da União Europeia. A este propósito, Clotilde Celorico Palma, O Novo Regime Fiscal do Centro Internacional de Negócios da Madeira - Enquadramento e Características Fundamentais, in: Fisco, n°s 107/108, 2003, p. 57. 3 As zonas francas industriais surgiram como variante das zonas francas comerciais, caracterizando-se pela implantação de actividades transformadoras, com base na livre importação de equipamentos e outros produtos, para exportação ou para o mercado in-
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no surgimento de novos sectores industriais, constitui uma área de livre importação e exportação de mercadorias 4 ;s. Aliás, esta feição clássica da zona franca saiu acentuada com o Decreto Regulamentar n° 53/82, de 23 de Agosto, que, para além de disciplinar a zona franca industrial, concebida como um "enclave territorial onde as mercadorias que nele se encontram são consideradas como não estando no território aduaneiro para efeitos da aplicação de direitos alfandegários, restrições quantitativas ou medidas de feito equivalente" 6 I 17, estendeu ainda o seu âmbito, admitindo que poderiam "ser autorizadas todas as actividades de natureza industrial, comercial ou financeira" 8 • Entretanto a regulamentação aplicável, incluindo o regime de facilidades aduaneiras, encontrava-se compreensivelmente ajustada à perspectivada área terno se pagas as correspondentes taxas aduaneiras. A utilização de zonas francas como instrumento de uma política industrial visa um desenvolvimento económico rápido, na vertente exportadora, de um país ou de uma região frequentemente em recessão ou de desenvolvimento industrial reduzido. Cf., OCDE, Investir dans les Zones Pranches Industrielles d'Exportation, 1984. 4 Neste quadro, o Decreto-Lei n° 500/80, de 20 de Outubro, veio autorizar a criação daquela zona franca, "revestindo a natureza industrial e constituindo uma área de livre importação e exportação de mercadorias". Acresce que o respectivo preâmbulo refere como aspecto fundamental "o aparecimento de novos sectores industriais voltados para o desenvolvimento económico e social da Região". E no art. 0 5° afirma-se que seria dada consideração aos "condicionalismos resultantes das negociações visando a adesão de Portugal à CEE" - condicionalismos que ditaram, aliás, a exclusão da hipótese de "implantação de uma Zona Franca comercial de consumo, entendida como um regime de Porto Franco estendido a todo o território da região". 5 Devida consideração seria dada, segundo o artigo 5°, aos "condicionalismos resultantes das negociações, visando a adesão de Portugal à CEE", condicionalismos que ditaram, aliás, a exclusão da hipótese de uma Zona Franca comercial de consumo, entendida como um regime de Porto Franco estendido a todo o território da região". Neste sentido, Paulo de Pitta e Cunha, A Alteração Regente do Regime de Benefícios Fiscais das Sucursais Financeiras na Zona Franca da Madeira, in: CTF, n° 391. Lisboa, DGCI-MF, 1998, p. 9. 6 No artigo 1o previa-se mesmo a possibilidade de a zona vir a ser resguardada por uma vedação. 7 Na senda do conceito de zona franca introduzido pela Convenção Internacional para a Simplificação e Harmonização dos Regimes Aduaneiros, concluída em Kyoto, em Maio de 1973, como "uma parte do território de um Estado onde as mercadorias que aí são introduzidas são geralmente consideradas como não estando no território aduaneiro, pelo que respeita aos direitos e taxas de importação, e não ficam sujeitas ao regime de controlo habitual da alfândega". 8 Como realça Alberto Xavier, Direito Tributário, ob. cit., p. 568, nesta fase de evolução da legislação da zona franca predominava o carácter territorial e regionalista da concepção subjacente, que não evoluíra ainda para a visão abrangente de um centro internacional de negócios.
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demarcada e localizada, onde se efectuavam transformações e demais operações de tipo industrial. Neste contexto, o Decreto-Lei n° 163/86, de 26 de Junho, apesar de referir no preâmbulo que havia chegado a oportunidade de "regulamentar as actividades financeiras integrativas do escopo da Zona Franca da Madeira, reputadas um factor de desenvolvimento económico e social da Região", e almejando com tal anúncio relembrar a continuidade do projecto encetado no início da década, promoveu a reformulação do conceito de zona franca, concedendo um relevo particular às operações financeiras internacionais e às instituições vocacionadas para a sua realização 9 . Deste modo, excluída a visão tradicional de entreposto comercial, cedo se associou à perspectiva industrial a óptica de centro financeiro internacional, na senda, aliás, do movimento de desmaterialização e internacionalização da zona franca, motivando a criação do Centro Internacional de Negócios da Madeira (CINM), que constitui indiscutivelmente um novo e decisivo passo da sua linha evolutiva. Marcou-se afinal a passagem de uma visão limitativamente territorial, prevalecente com a menção às actividades de transformação industrial orientadas no sentido da exportação, para uma concepção mais ampla, de pendor institucional, em que se destaca o quadro internacional das operações financeiras com não residentes a partir da Madeira 10 / 11 • Em boa verdade, a substituição do conceito inicial de "actividade exercida na zona franca" por "actividade desenvolvida no âmbito institucional da Zona Franca da Madeira" denotava já claramente que a zona franca não revestia mais um puro carácter regional, assumindo ao invés uma natureza institucional aberta a operações internacionais, característica dos chamados centros financeiros internacionais. E com a ZFM a deixar de ser uma mera zona franca industrial circunscrita ao enclave territorial, admitindo actividades comerciais e financeiras que não precisavam de ser fisicamente realizadas no território da Madeira, o diploma de O Decreto-Lei no 163/86 foi objecto de regulamentação pelo Governo Regional da Madeira, através do Decreto Regulamentar Regional n° 16/87 /M, de 13 de Julho, que aprovou o Regulamento de Actividades Financeiras Off-Shore Integradas no âmbito Institucional da Zona Franca da Madeira" 10 O Centro Internacional de Negócios da Madeira (CINM) assumiu como objectivos nucleares: modernizar, diversificar e internacionalizar a estrutura produtiva de bens e serviços da Região; compensar ineficiências e fraquezas estruturais resultantes da prevalência de sectores tradicionais de baixa produtividade e do estatuto ultraperiférico da Região. Cf., Cláudia Vasconcelos, O Centro Internacional de Negócios da Madeira, in: Madeira: Global Solutions for Wise Investments, SDM, 2010. 11 Segundo Boris Gombac, Les Zones Pranches en Europe, Bruxelles, Bruylant, 1991, pp. 35-37 e 47-49, a evolução do conceito de zona franca terá sido marcada pela criação, em 1959, da primeira zona franca industrial de exportação (a zona franca do Aeroporto de Shannon, na Irlanda) e depois pelo aparecimento e desenvolvimento, a partir dos anos 60, dos centros financeiros "off-shore".
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1986 procedeu ainda, pela primeira vez, à criação da figura das "sucursais financeiras exteriores" 12 . Estas agências, a constituir na Região Autónoma da Madeira e parte integrante da zona franca, iriam viabilizar a "realização de operações financeiras internacionais com não residentes em Portugal, sem sujeição às disposições da legislação relativa às instituições que exercem actividade nos mercados monetário, financeiro e cambial" 13 jl4 . Neste âmbito, foram definidos também os incentivos fiscais "para promoção e captação de investimentos na ZFM", agrupados em três categorias fundamentais: isenções concedidas às sociedades instaladas na zona franca; benefícios atribuídos aos respectivos sócios; e vantagens reconhecidas a certas operações, como operações de capitais e transferência de tecnologia 15 / 16 • 12
Cf., Paulo Macedo, Sucursais Financeiras Exteriores: Análise de Alguns Aspectos Práticos, in: Fisco, n° 58, 1993, pp. 36 e ss 13 Cf., Decreto-Lei n° 163 /86, de 26 de Junho, artigo 19°. 14 Dispôs-se que as sucursais financeiras exteriores que viessem a instalar-se na Região Autónoma da Madeira faziam parte da "actividade desenvolvida no âmbito institucional da Zona Franca" e, "como tal fazendo parte integrante daquela Zona", segundo o artigo 2°, n. 0 2. Por outro lado, a constituição de sucursais estava dependente de Portaria do Ministro das Finanças, precedido de pareceres do Governo Regional e do Banco de Portugal, "de acordo com critérios de conveniência e oportunidade"·, à luz do artigo 7°. Por outro lado, não havendo qualquer requisito de afectação específica de capital à actividade da sucursal, foi estabelecido que as instituições que as constituíssem haviam de responder plenamente pelas operações em causa. Por fim, às sucursais financeiras estava vedada a prática de operações financeiras a favor de residentes em território nacional, exceptuada a aplicação de recursos, especificamente autorizada pelo Banco de Portugal, em empreendimentos com interesse para o desenvolvimento da Região. 15 O primeiro diploma que de uma forma sistemática e coerente estabeleceu um conjunto de incentivos fiscais para as actividades económicas desenvolvidas no âmbito institucional da ZFM foi o Decreto-Lei no 165/86, de 26 de Junho. Tratou-se de um diploma que reflectiu já os princípios básicos aplicáveis ao Sistema e as suas principais características: era um diploma emanado do Governo da República, de âmbito nacional, embora os benefícios dele constantes se aplicassem unicamente a actividades desenvolvidas na Madeira em circunstâncias e condições especiais; acentuava um dos principais fundamentos do Sistema, ao referir que os incentivos deviam ser concedidos a investimentos que contribuíssem para o desenvolvimento económico e social da RAM; fixava a data de 31 de Dezembro de 2011 como limite para muitos dos incentivos, nos termos acordados com a Comissão Europeia; baseava-se no pressuposto técnico de que todas as entidades licenciadas para operar no âmbito do Sistema são residentes em Portugal para todos os efeitos fiscais. A este propósito, Francisco Costa, Critérios e Objectivos da Revisão do Regime Fiscal da Zona Franca da Madeira, in: Fisco, n° 58, 1993, pp. 3 e ss. A decisão de incorporar os incentivos fiscais da ZFM foi tomada não só por razões de melhor sistematização destas matérias, mas também para reafirmar a sua natureza de beneefícios nacionais e não meramente decorrentes de critérios de âmbito regional. 16 Os referidos incentivos fiscais não estavam dependentes da nacionalidade ou residência
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Tratou-se de normativos que não faziam depender o regime fiscal neles ínsito da nacionalidade ou residência dos titulares dos rendimentos isentos. De facto, a "nacionalidade" estrangeira das empresas, assim como dos respectivos sócios, constituía tão só um requisito do regime de liberdade cambial, consistente na liberdade de transferência de fundos relativos a operações comerciais. No entanto, a circunstância de o regime isencional da zona franca estabelecer como critério, em certos casos, o local de exercício da actividade, revelou ter sido concebido na base de uma visão geográfica ou territorial da zona franca, como espaço para que se objectiva a promoção e captação de investimentos 17 . Por outro lado, cumpre assinalar que o aludido alargamento de âmbito resultou ainda mais evidente com o Decreto-Lei 352-A/88, de 3 de Outubro, que, ao regulamentar a constituição e o funcionamento das sociedades e sucursais de "trust-off-shore na ZFM, foi ao encontro da necessidade de garantir a disponibilização dos atributos imprescindíveis à atracção do investimento estrangeiro e ao fomento da competitividade nos mercados internacionais. Posteriormente, o Decreto-Lei n° 35/89, de 1 de Fevereiro, veio estabelecer o que no preâmbulo se designou de "um regime mais flexível", com o vivo propósito de dar ao centro financeiro da Região Autónoma da Madeira condições de atracção compatíveis com as existentes em outros centros congéneres 18 • Daí que, para lá da excepção relativa à aplicação de recursos em empreendimentos com interesse para o desenvolvimento da Região, se haja previsto igualmente a possibilidade de efectuar operações com residentes no território nacional "nos termos e condições legais em que estes podem realizar tais operações com instituições financeiras estabelecidas noutro território cambial", bem como operações com entidades estrangeiras, devidamente licenciadas, no âmbito institucional da ZFM19 po dos titulares dos rendimentos isentos. De facto, a nacionalidade estrangeira das empresas, bem como dos respectivos sócios, foi prevista tão só como requisito do regime de liberdade cambial, consistente na liberdade de transferência de fundos referentes a operações comerciais, não imposição de restrição à importação de capitais e simplificação dos respectivos procedimentos administrativos. Neste sentido, Alberto Xavier, direito Tributário Internacional, ob. cit., p. 566. 17 Como refere Alberto Xavier, Direito Tributário Internacional, ob. cit., p. 567, a mesma ideia resulta do preâmbulo deste diploma, que salienta a especial situação geográfica da Madeira e as características bem específicas da sua economia como pano de fundo do objectivo fulcral ... de promover e captar novos investimentos, voltados para o desenvolvimento económico e social da Região. 18 Assim, além da excepção relativa à aplicação de recursos em empreendimentos com interesse para o desenvolvimento da Região, se haja previsto também a possibilidade de realizar operações com residentes no território nacional, "nos termos e nas condições legais em que estes podem realizar tais operações com instituições financeiras estabelecidas noutro território cambial (artigo 49°, n° 1, do Decreto-Lei n° 35/89). 19 Cf., Decreto-Lei n° 35/89, artigo 49°, n°s 1 e 2. 20 O mesmo Decreto-Lei admitia que. em alternativa, a instituição requerente assumisse Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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Por fim, coube ao Decreto-Lei no 96/89, de 28 de Março, instituir o sistema do duplo registo mediante a criação dos Serviços do Registo Internacional de Navios da Madeira (MAR), determinando a aplicação de benefícios fiscais às empresas e suas tripulações 21 • Como resulta do preâmbulo, a criação do MAR teve por fundamento seja razões de competitividade e rentabilidade internacionais, seja a urgência em reduzir custos, vindo a constituir um importante factor de dinamização económica da Região Autónoma e do País. Em síntese, dir-se-á que a expressão zona franca institucional passou a cobrir, decididamente, uma pluralidade de instituições dotadas de autonomia conceptual: uma zona franca industrial em sentido estrito, um centro financeiro "off-shore", um sistema de serviços internacionais e um sistema de registo de navios, sendo a designação de Centro Internacional de Negócios a expressão que melhor reflecte a realidade como configurada pela legislação vigente 22 •
2. A Qualificação do Regime Fiscal do Centro Internacional de Negócios da Madeira No que concerne ao regime fiscal do CINM, cumpre começar por atentar em dois pressupostos essenciais para a compreensão e justificação da sua existência como regime de excepção no âmbito do ordenamento tributário português: primeiro, desde o início que se trata de um regime especial inserido na categoria dos regimes fiscais preferenciais ou privilegiados, não dos paraísos fiscais 23; segundo, configura-se como um auxílio de Estado sob a forma fiscal com finalidades regionais. Em relação ao reconhecimento da situação como regime tributário preferencial, não paraíso fiscal, não é demais recordar que, nos finais de 1993, em resposta a uma questão formulada pelo Parlamento Europeu acerca da forma como a Comissão encarava a existência de centros financeiros "off-shore", de que se citavam Gibraltar, a Madeira, o Luxemburgo, Dublin e as ilhas Jersey, o Comissário europeu d' Archirafi declarou que as actividades do CINM não revestiam características "off-shore", aplicando-se o direito comunitário derivado 24 • o compromisso de dotar a sucursal com o capital mínimo necessário, a fixar mediante despacho do Primeiro ministro e do Ministro das Finanças, ou garantisse todas as operações da sucursal através dos seus capitais próprios. 21 Cf., Manuel Castelo Branco, Constituição e Registo de Sociedades, in: Fisco, no 58, 1993, pp. 23 e ss .. 22 Sobre a distinção entre estes vários tipos de instituições e mercados, cf., Boris Gombac, Les Zones Pranches en Europe, ob. cit., pp. 31 e ss. 23 Sem embargo da forma como incorrectamente muitas vezes o vemos qualificado. A este respeito, Rui Barreira, Problemas do Regime Fiscal da Zona Offshore" da Madeira, in: Fisco, no 33, 1991, pp. 18. 24 Cf., Pergunta Escrita E-204/93 e resposta do referido Comissário, em nome da Comissão,
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Aliás, só isso justifica que a Madeira não figure em qualquer lista oficial de territórios ou regiões qualificados como paraísos fiscais 25, seja da OCDE, seja do Grupo de Acção Financeira (GAFI), instituído pelo G-7 para combate ao branqueamento de capitais decorrente do tráfico de droga. Na realidade, no âmbito do regime fiscal do CINM, os benefícios fiscais previstos, que se corporizam na aplicação de taxas de tributação mais baixas, correspondem afinal à única excepção ao regime geral aplicável no Continente, sendo motivados exclusivamente pelo objectivo de contribuírem de forma real e efectiva para o desenvolvimento económico e social de uma Região insular com poucas alternativas de desenvolvimento, consideradas não só a perspectiva de esgotamento ao nível do sector turístico e das obras públicas, mas também as limitações dos fundos financeiros comunitários26 . Neste quadro, é manifesta a total transparência do regime, atributo de que não goza a esmagadora maioria dos paraísos fiscais verdadeiros, reflectida desde logo no facto de se aplicarem as mesmas regras sobre a fiscalização, controlo e supervisão vigentes para o resto do território nacional, não existindo quaisquer especificidades em matéria de sigilo, mormente no que concerne à troca de informações27. JO, n° C 219/1, de 8.08.1994. No mesmo sentido, as conclusões do estudo de Wolfang Hager e Mattias Levin, The Madeira International Business Centre: The Economic Context and European Interests, Centre of European Policy Studies (CEPS), Brussels, 2002, no sentido de que "o regime da Madeira não é um "offshore" no sentido normal do termo, propondo ainda que, dados os contributos para o desenvolvimento económico e social da Região, a Madeira devia ser autorizada a manter o regime, na sua totalidade, até ao ano de 2011 ou mesmo mais tarde. 25 Cf., Rui Duarte Morais, Imputação de Lucros de Sociedades não Residentes Sujeitas a um Regime Fiscal Privilegiado, Publicações Universidade Católica, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pp. 347 e ss.; Giuseppe Marina, I Paradisi Fiscali: Problematiche e Prospettive, in: Corso di Diritto Tributário Internazionale, Padova, CEDAM, 1999, pp. 578 e ss. 26 É bastante significativa a conclusão do estudo do CEPS, The Economic Context and European Interests, ob. cit., " the relevant handicap is to be found in the overall economy, i. e., the fragile growth prospects of the successful sectors and the virtual presence of any alternative economic activity" 27 A ausência de troca de informações entre as Administrações fiscais corresponde a um traço característico dos paraísos fiscais, aí radicando, aliás, um argumento suplementar em favor da sua especial atractividade. De facto, as tentativas de recolha de informações junto de paraísos fiscais esbarram, por norma, com a colaboração das autoridades e a invocação de segredo bancário e comercial, que funcionam qual forma privilegiada para assegurar a índole confidencial de informações. Nesta perspectiva, como refere Fernando António Fonte Ramos, Paraísos Fiscais, Polícia e Justiça, Instituto de Política Judiciária e Ciências Criminais, Rev n° 6, III Série, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p. 279 e Laurent Leservoisier, Os Paraísos Fiscais, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1990, p. 37, evidenciam-se as vantagens dos paraísos fiscais para quem pretenda refuLusíada. Direito. Lisboa, n .0 8 I 9 (2011)
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Por sua vez, quanto a consubstanciar um auxílio de Estado sob a forma fiscal tendo em vista promover o desenvolvimento económico e social da Região, é a associação ao estatuto da Madeira como região insular ultraperiférica 28 que, relevada a relação entre os benefícios fiscais concedidos e os efeitos económicos produzidos, tem-se mostrado susceptível de afastar, a título excepcional, o princípio da proibição genérica da concessão de auxílios de Estado constante do Tratado. De facto, o direito comunitário dispõe em matéria de ajudas de Estado que "salvo disposição em contrário, são incompatíveis com o mercado comum, na medida em que afectem as trocas comerciais entre os Estados membros, os auxílios concedidos pelos Estados membros ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma assumida, que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções" 29 / 30 • Uma incompatibilidade retomada com o programa do mercado único, dada a necessidade de prevenir que, através de medidas estaduais de auxílio às empresas e aos produtos, se modifiquem artificialmente as condições de troca, ou seja, se romova a desigualdade entre os vários operadores do mercado 31 • Na verdade, o processo de integração comunitária, alicerçado na livre circulação de mercadorias, pessoas, serviços e capitais, requeria do direito comunitário a previsão de um conjunto de medidas orientadas para limitar ou condicionar a autonomia das políticas económicas dos Estados membros, visto que na ausêngiar-se na discrição para realizar os seus investimentos ou guardar o seu dinheiro, sem ter de prestar contas sobre a respectiva proveniência. Uma omissão que torna possível a cobertura de esquemas, novos ou tradicionais, lesivos do enquadramento tributário, para já não falar da associação do sigilo bancário à criminalidade organizada, cf,., Osvaldo Cucuzza, Segreti Bancaria, Criminalità Organizzata, Reciclagio, Evasione Fiscale in Italia, Padova, CEDAM, 1995, pp. 618 e ss.; Maria Eduarda Azevedo, O Segredo Bancário e o Branqueamento de Capitais: a posição da CEE, Fisco, n° 35, 1991, pp. 3 e ss. 28 O estatuto da Madeira como região ultraperiférica saiu reforçado com o reconhecimento explícito decorrente da inserção do artigo 299°, n° 2 no Tratado, dando expressão à política e coesão económica e social, que se impõe horizontalmente, nomeadamente em domínios como as políticas aduaneira, fiscal, auxílios de Estado e zonas francas. Neste sentido, Clotilde Celorico Palma, O Novo Regime Fiscal do Centro Internacional de Negócios da Madeira- Enquadramento e Características Fundamentais, ob. cit., pp. 57-58. 29 Cf., Artigo 87° do Tratado da CE (ex art. 0 92a). 30 Os auxílios podem não visar especificamente o estímulo às exportações ou a restrição das importações: basta que reforcem a posição de uma empresa face aos respectivos concorrentes no comércio comunitário para que este requisito esteja preenchido. Decisão da Comissão, JO no L 276/34, 1984. 31 A passagem do "mercado comum" ao "mercado interno" implicava uma evolução da função e do conceito de concorrência. Já no mercado comum, a concorrência era tida como um factor essencial para alcançar uma melhor afectação dos recursos e de estímulo à inovação na actividade empresarial. Por sua vez, no mercado interno, a concorrência pode ser falseada por intervenções públicas.
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cia de tais limites só dificilmente se acautelam e garantem as condições mínimas exigíveis quer para a consecução plena das liberdades, fundamento de um mercado integrado, quer um sistema de concorrência não falseada. Atente-se, porém, que o legislador comunitário não define o que importa considerar como auxílio de Estado, tendo sido a Comissão32 e o Tribunal de Justiça a fazê-lo 33 f3 4 • No final, acabou por admitir-se um conceito extremamente amplo que abrange não só as subvenções, correspondentes a prestações pecuniárias, mas também as intervenções, que consistem na assunção de determinados custos normalmente incluídos no orçamento das empresas que, apesar de não serem subsídios em sentido estrito, apresentam características e efeitos semelhantes35 • Por conseguinte, os auxílios de Estado podem revestir um leque vastíssimo de formas, constituindo critério relevante os respectivos efeitos, não as causas motivadoras ou os objectivos prosseguidos. Deste modo, qualquer intervenção do Estado que beneficie uma empresa ou grupo de empresas, mediante o aumento dos recursos que normalmente obteriam ou a redução dos custos ou encargos a 32
Segundo o Executivo comunitário, Cf., Comunicação sobre a aplicação das regras relativas aos auxílios estatais a medidas que respeitam à fiscalidade directa das empresas, JO C n° 384, de 10 de Dezembro de 1998, para uma medida ser qualificada como auxílio de Estado há-de preencher cumulativamente quatro requisitos: deve conferir aos seus beneficiários uma vantagem que diminua os encargos que normalmente oneram os seus orçamentos, podendo ser concedida através da redução da carga fiscal da empresa sob diversas formas, como redução da matéria colectável (deduções derrogatórias, amortizações extraordinárias ou aceleradas, inscrição de reservas no balanço), redução total ou parcial do montante do imposto (designadamente isenção, crédito de imposto) e adiamento, anulação ou reescalonamento excepcional da dívida fiscal; a vantagem tem de ser concedida pelo Estado ou através dos recursos estatais; a medida não deve afectar a concorrência e as trocas comerciais entre os Estados membros, e será específica ou selectiva, no sentido de favorecer certas empresas ou produções: 33 Uma Jurisprudência constante de que se destacam o Acórdão de 23.3.1977, Steinike e Weinlig/ Alemanha, Proc. 78/76, Col. 1977, p. 611; o Acórdão de 14.11.1984, Pro c. 323 I 82, Intermills/Comissão, Col. 1984, p. 3809; Acórdão Comissão/França, Proc. 290/83, Col. 1985, p. 449. 34 No mesmo sentido, a Doutrina, entre outros, Aides d'État, Org. por Marianne Dony e Catherine Smits, Bruxelles, Institut d'Études Européennes, Université de Bruxelles, 2005; Nicolas Moussis, As Políticas da Comunidade Económica europeia, Coimbra, AImedina, pp. 456 e ss., R. Kovar, Le Regime des Aides en Droit Communautaire, Journal du Droit International, n° 2, 1974; C. Botelho Moniz, O Regime jurídico dos auxílios públicos às empresas na Comunidade Europeia -Reflexos na caracterização do sistema económico português, in: Rev OA, ano 47, Abril, 1987; Malcom Ross, Challenging state aids: the effect of recent developments, CMLR, n° 24, 4, 1986. 35 Neste sentido, Patrícia Silveira da Cunha, Auxílios de Estado Fiscais e Princípio da Não Discriminação Fiscal, in: Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem aio Professor João Lumbrales, Coimbra, Coimbra Editora, 2000, p. 895. Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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que em princípio teriam que fazer face, tornando-lhes viável enfrentar a concorrência com maior facilidade, corresponde a um auxílio de Estado 36 . No entanto, o princípio da proibição é temperado pela previsão de derrogações37. De facto, uma vez que o livre funcionamento do mercado não permite prosseguir, só por si, determinados objectivos económicos e sociais, reclamando a intervenção do Estado como factor essencial da política económica, o Tratado viu-se obrigado a admitir a concessão de ajudas estatais. Nesta linha, enquanto excepções à referida vedação, são aceites, taxativamente, duas hipóteses: as situações em que semelhantes auxílios "são compatíveis com o mercado comum"; e aquelas que "podem ser compatíveis com o mercado comum". E neste segundo caso cabem, entre outros, "os auxílios destinados a promover o desenvolvimento económico de regiões comunitárias em que o nível de vida seja anormalmente baixo ou em que exista uma situação grave de subemprego"38 - no fundo os auxílios regionais ou de finalidade regional -, ficando a sua compatibilidade dependente de autorização da Comissão que, proferida após notificação do Estado membro, funciona como condição de eficácia do regime das ajudas de Estado 39 . Na prática, a Comissão e o Tribunal de Justiça têm adoptado uma atitude realista e pragmática, reveladora da intenção de construir um equilíbrio entre a proibição de auxílios de Estado e a possibilidade de acolher de forma temporária 36
Neste sentido, as Conclusões do Advogado-Geral Slynn no Acórdão de 20.3.84, Alemanha/Comissão, Proc. 84/82, Col. 1984, pp. 1500-1501. 37 Segundo A. Pappalardo, Government equity participation under EEC rules on state aids: recent developments, Fordham International Law Journal, vol. 2, Winte1~ 1988, p. 315, uma proibição absoluta de auxílios estatais seria inconcebível, especialmente numa economia mista. 38 Segundo o Acórdão do, Processo n° 248/84, Alemanha/Comissão, ob. cit., p. 4013, "a utilização, na derrogação constante da alínea a), dos termos "anormalmente" e "grave" demonstra que essa derrogação apenas abrange as regiões em que a situação económica é particularmente desfavorável relativamente ao conjunto da Comunidade Europeia". Também "o carácter anormalmente baixo há-de aferir-se pelo nível médio de desenvolvimento existente no conjunto dos países membros, e não só no Estado membro em questão". 39 Com base na jurisprudência do Tribunal do Luxemburgo, o n° 3 do artigo 87° do Tratado confere à Comissão um poder discricionário, cujo exercício implica apreciações de carácter económico e social, a efectuar num contexto comunitário. Então, compete ao Executivo comunitário demonstrar que o auxílio é susceptível de realizar o objectivo descrito nas derrogações previstas no citado normativo. Este exercício do poder discricionário é exercido igualmente no que concerne à apreciação da elegibilidade das regiões. Acresce que a compatibilidade do regime de auxílios de Estado é a alvo de um exame permanente, competindo aos Estados fazer entrega de relatórios anuais cuja apreciação há-de permitir ao Executivo comunitário decidir-se pela manutenção do regime ou, pelo contrário, solicitar ao Estado a introdução de alterações, ou no limite a sua supressão.
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a sua utilização, tendo em conta as necessidades económicas e, sobretudo, os imperativos de adaptação estrutural e o reforço da competitividade. Visto que os auxílios com finalidade regional representam um instrumento indispensável de desenvolvimento e coesão económica, social e territorial, possibilitando aos Estados membros conduzir políticas em prol da promoção de um crescimento mais equilibrado entre as diferentes regiões de um mesmo Estado ou da Comunidade40 / 41, a Comissão não tem assumido uma atitude restritiva a este respeito. De facto, é vê-la permitir auxílios de Estado destinados a remediar situações em que as condições de mercado ora dificultam a prossecução de certos objectivos económicos ou sociais, ora não permitem atingi-los senão com delongas ou consequências sociais inaceitáveis, ora ainda intensificam a concorrência, a um ponto em que esta corre o risco de se auto-destruir. Entre este tipo de ajudas estatais ressaltam os auxílios sob a forma fiscal 42 / 43 , 40
Os auxílios regionais destinam-se ao desenvolvimento das regiões desfavorecidas através do apoio aos investimentos e à criação de emprego no contexto do desenvolvimento sustentável e favorecem o alargamento, a modernização e a diversificação das actividades dos estabelecimentos localizados nessas regiões, bem como a implantação de novas empresas. A fim de privilegiar este desenvolvimento e reduzir os potenciais efeitos negativos de eventuais deslocalizações, é necessário subordinar a concessão destes auxílios à manutenção do investimento e dos postos de trabalho criados durante um período mínimo na região desfavorecida. Cf., Comunicação da Comissão- Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional, JO n° C 74, de 10.03.1998 41 Trata-se, em última instância de um critério e de um instrumento de coesão económica e social. Cf., Manuel Carlos Lopes Porto, Coesão e Integração numa Europa Alargada, Temas de Integração, Coimbra, 1996; A União Monetária e os Processos de Convergência, in: A União Europeia numa Encruzilhada, Coimbra, Almedina, 1996, pp. 99 e ss.; Maria Eduarda Azevedo, A Europa em Movimento. Apostas e Desafios, Lisboa, Editorial Notícias, 1997, pp. 293 e ss. 42 A Doutrina costuma agrupar os auxílios de Estado em categorias. Assim, Eduardo Paz Ferreira, O Controlo das subvenções financeiras e dos benefícios fiscais, in: Rev Trimestral do Tribunal de Contas, no 1, 1989, pp. 25 e ss., distingue os auxílios em função do seu conteúdo. Nesta medida, ao lado das ajudas financeiras (entregas directas de verbas aos beneficiários, renúncia a créditos e utilização de mecanismos de crédito), enumera também os benefícios ou subvenções fiscais (a assistência técnica e, em determinadas circunstâncias, a participação pública no capital das empresas). Para António Carlos dos Santos, Auxílios de Estado e Fiscalidade, Coimbra, Almedina, 2003, pp. 319 e ss., quando se fala de auxílios tributários tem-se em vista um instituto de direito económico ou de direito da concorrência aplicável à fiscalidade. Importa sublinhar também que o recurso a incentivos fiscais ao investimento em detrimento dos financeiros não pode deixar de suscitar a questão das razões por que tal preferência pode ocorrer. 43 Importa sublinhar que o recurso a incentivos fiscais ao investimento em detrimento dos financeiros não pode deixar de suscitar a questão das razões de tal preferência. Então, serão sobretudo os objectivos ligados à promoção do desenvolvimento regional, ao fomento do emprego, à reestruturação de sectores de actividade, ao aumento das exporta-
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definindo o Tribunal de Justiça a sua identificação com as medidas destinadas a isentar, total ou parcialmente, as empresas de um determinado sector dos encargos derivados da aplicação normal do sistema geral, sem que tal isenção se justifique pela natureza ou economia do sistema44 / 45 •
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O regime fiscal do CINM, que é global e unitário, está basicamente previsto nos artigos 33° a 36 do Estatuto dos Benefícios Fiscais, abrangendo as actividades financeiras e os serviços internacionais, o registo internacional de navios da Madeira (MAR) e a zona franca industrial. No momento presente, comporta três regimes de incentivos fiscais: Regime I, Regime II e Regime III. O Regime I corporiza-se num leque de benefícios fiscais de que cumpre ressaltar, em especial, uma isenção do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), bem como uma isenção do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC), aplicáveis às entidades que prosseguem aquelas actividades a partir da ZFM e vigentes até 31 de Dezembro de 2011 46 . Neste quadro, a isenção das próprias entidades instaladas na ZFM, no que concerne ao imposto incidente sobre o respectivo lucro líquido, está sujeita a um duplo requisito: um requisito positivo, que é a inerência do rendimento à actividade objecto social, para cujo exercício foi licenciada; e um requisito negativo, traduzido na ausência de conexão entre esse mesmo rendimento e o resto do território português 47 . ções, que evidenciam uma identidade substancial entre os objectivos dos incentivos ou benefícios que configuram auxílios fiscais e os dos demais auxílios. Afinal, a roupagem "fiscal", ou não, das medidas é, no plano dos fins relativamente secundária. A este respeito, António Carlos dos Santos, Auxílios de Estado e Fiscalidade, ob. cit., p. 368. 44 Cf., Acórdão do Tribunal de Justiça, de 2 de Julho de 1974, Processo no 173/73, Itália/ Comissão Europeia, Colectânea 1974, pp. 709 e ss. A este respeito, Connor Quigley, European State Aid Law and Policy, Portland, Hart Publishing, 2009, pp. 66 e ss. e a larga cópia de jurisprudência citada sobretudo nas notas-de-rodapé n~s 7 e 8. 45 A interpretação extensiva do conceito de auxílio abrange ainda as actuações relacionadas com o Direito Tributário formal que, sem suporem de forma expressa, a concessão de auxílio, por não gerarem, em termos estritos, uma despesa fiscal, provocam no beneficiário um efeito semelhante, em particular moratórias, fraccionamentos ou diferimentos do prazo de pagamento dos impostos. A este respeito, Patrícia Silveira da Cunha, Auxílios de Estado Fiscais e Princípio da Não Discriminação Fiscal, in: Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Professor João Lumbrales, ob. cit., p. 897. 46 Este regime, previsto no artigo 33°, do Estatuto dos Benefícios Fiscais, geralmente designado por Regime I, é aplicável relativamente às entidades licenciadas até 31.12. 2000, para vigorar até 31 de Dezembro de 2011 . A partir de 1.01.2001 seria necessária uma nova autorização da Comissão. 47 Cf., Alberto Xavier, Direito Tributário Internacional, ob. cit., pp. 579 e ss. Sobre este requi-
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Quanto à origem dos rendimentos, ficam excluídos das isenções de IRS e IRC os rendimentos obtidos em território português, salvo as zonas francas 48 / 49 Por sua vez, a propósito dos sujeitos com que as operações são realizadas, a lei exige que não se trate de residentes no resto do território português50 / 51 . Por fim, para apuramento dos resultados das operações realizadas no quadro da zona franca, prevê-se que se considere pelo menos 85% do lucro tributável da actividade global52 . No tocante ao Regime Il53, autorizado pela Comissão europeia a 11 de Dezembro de 2002 (zona franca industrial e serviços internacionais) e a 22 de Janeiro de 2003 (shipping), foi aprovado pelo Decreto-Lei no 163/2003. Este regime conduziu à criação do artigo 34° do Estatuto dos Benefícios Fiscais pela Lei n° 30F /2000, de 29 de Dezembro54, pretendendo consagrar a proposta do novo regime, vigente a partir de 1 de Janeiro de 2003. sito negativo, foi o mesmo atingido pela imposição de dois subrequisitos: um objectivo e outro subjectivo. De facto, a ausência de conexão deve verificar-se cumulativamente no que concerne à origem dos rendimentos e ao sujeito com o qual a operação é realizada. 48 Cf., Artigo 33°, no 10 do Estatuto dos Benefícios Gerais. 49 E de reconhecer o bem fundado das preocupações em "isolar" de contactos com o restante território português, como forma de evitar fenómenos elisivos sem qualquer justificação económica substancial, criando em redor da zona franca um "anel" ou o "arame farpado" a que se refere Alberto Xavier, Direito Tributário Internacional, ob. cit., p. 596. 50 O artigo 33°, n° 13 do Estatuto dos Benefícios Fiscais vem determinar o que há-de entender-se por residente em território português. 51 Refira-se que o art. 0 33°, no 20 (ex-n° 21) do Estatuto dos Benefícios Fiscais veio determinar que "para efeitos do disposto no n° 1, não se consideram compreendidas no âmbito institucional da zona franca as actividades de intermediação na celebração de quaisquer contratos em que o alienante dos bens ou o prestador de serviços, ou, bem assim, o adquirente ou o utilizador dos mesmos, seja entidade residente no restante território português, fora das zonas francas, ou seja estabelecimento estável de não residente aqui situado, mesmo que os rendimentos auferidos pela entidade instalada na zona franca sejam pagos por não residentes em território português". 52 Uma previsão que se aplica às entidades que não exerçam em exclusivo a sua actividade na zona franca. 53 Cf., Artigo 34° do Estatuto dos Benefícios Fiscais. 54 No que respeita ao CINM, foram várias as medidas introduzidas por este diploma. Resumidamente, podem identificar-se como as mais significativas: a implementação de exigências acrescidas na prova de não residente; o condicionamento da aplicação do regime fiscal ao facto de as entidades financeiras licenciadas para operarem no CINM não efectuarem operações com determinadas entidades não residentes; a introdução de um novo regime fiscal, com taxas de tributação reduzidas. De igual modo, importa também sublinhar que as alterações propostas radicaram, fundamentalmente, nas seguintes razões: prevenir o uso abusivo do CINM por parte de residentes em Portugal; combater a prática das designadas operações triangulares; e responder às exigências da Comissão Europeia. Neste sentido, João Fernandes, A Reforma Fiscal e as Alterações ao Regime do Centro Internacional de Negócios da Madeira, in: Fisco, n°s 95/96, 2001, pp. 41 e ss. Lusíada. Direito. Lisboa, n .0 8 I 9 (2011)
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Trata-se de um regime com características próprias que o distinguem do anterior55, tendo sofrido não só a influência directa das "Orientações relativas aos auxílios estatais com finalidade regional"; da "Comunicação sobre a aplicação das regras relativas aos auxílios estatais às medidas que respeitam à fiscalidade directa das empresas" e ainda da "Alteração das Orientações aos auxílios estatais com finalidade regional", de modo a tomar em consideração o n° 2 do artigo 299° do Tratado CE respeitante às regiões ultraperiféricas da União, mas também o contributo indirecto dos trabalhos do Grupo do Código de Conduta sobre a fiscalidade das empresas. Atentando nos aspectos diferenciadores, ressalta desde logo que o Regime II foi amputado do sector dos serviços financeiros, excluídas não só as actividades de intermediação financeira e de seguro, mas também as actividades do género "serviços intra-grupo". Acresce, por outro lado, que assistiu-se à introdução de taxas de tributação em IRC e de "plafonds" limitativos dos benefícios outorgados, bem como, pela primeira vez, qual requisito essencial do licenciamento, à exigência de criação de postos de trabalho, uma verdadeira conditio sine qua non para efeitos de aplicação do regime56 • Para as empresas licenciadas entre 1 de Janeiro de 2003 e 31 de Dezembro de 2006, definiu-se a aplicação de uma taxa de IRC de 1% em 2003-2004, de 2% em 2005-2006 e de 3% em 2007-2011. Tal como no passado, às novas entidades licenciados aproveitam ainda os restantes incentivos fiscais aplicáveis conforme a lei vigente57 • Quanto às Sociedades Gestoras de Participações Sociais licenciadas para idêntico período, admite-se a tributação em IRC segundo este mesmo modelo 58, ressalvados os rendimentos obtidos no território português, fora as zonas francas, ou em outros Estados membros da União Europeia, que ficam sujeitos à imposição nos termos gerais. Por fim, o Regime II59, concebido na linha dos anteriores como um "regime
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O modelo deste regime foi aprovado pelo Decreto-Lei n° 163/2003, de 24 de Julho. Cf., Clotilde Celorico Palma, Algumas Reflexões sobre o Novo Regime do Centro Internacional de Negócios da Madeira, in: Rev. de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ano I, n° 1, 2008, pp. 140 e ss. 57 Veja-se os benefícios de IRS aplicáveis às tripulações dos navios e os benefícios relativos ao IMI e ao IMT. A este respeito, Clotilde Celorico Palma, Algumas reflexões sobre o novo regime do Centro Internacional de Negócios da Madeira, ob. cit., p. 141-142. 58 Estas sociedades não estão sujeitas, naturalmente, à observância do requisito respeitante à geração de postos de trabalho. 59 Cf., Artigo 36° do Estatuto dos Benefícios Fiscais. 56
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especial com o objectivo de promover o desenvolvimento regional" 60 / 61 / 62 , é aplicável às entidades licenciadas para operar no CINM entre 1 de Janeiro de 2007 e 31 de Dezembro de 2013. De acordo com o preâmbulo do Decreto-Lei instituidor, esteve em causa a introdução de um leque de alterações no regime tributário do CINM para o quinquénio 2007-2013, em que relevam as novas Orientações com finalidade regional63, assim como o aprofundamento e a diversificação do modelo de desenvolvimento para a Região 64 • No essencial, são mantidas as linhas estruturantes evidenciadas no anterior Regime II- taxas reduzidas de tributação de IRC e limitação da concessão de benefícios através de aplicação de "plafonds" à matéria colectável. Nestes termos, em relação às entidades licenciadas durante o referido lapso temporal para o exercício de actividades industriais, comerciais, de transportes marítimos e serviços de natureza não financeira, foi definido um regime degressivo de benefícios. Assim, passou-se a tributar os rendimentos em IRC à taxa de 3%, no biénio 20072009, de 4%, entre 2010 e 2012 e de 5%, nos anos 2013 e seguintes. Em relação às entidades devidamente licenciadas, mantém-se a dedução de 50% à colecta do IRC, uma vez preenchidas pelo menos duas das seguintes condições: contribuam para a modernização da economia regional, nomeadamente através da inovação tecnológica de produtos e de processos de fabrico ou de modelos de negócio; contribuam para a diversificação da economia regional, designadamente através do exercício de novas actividades de elevado valor acrescentado; fomentem a contratação de recursos humanos altamente qualificados; conduzam à melhoria das condições ambientais; e criam, pelo menos, 15 postos de trabalho, a manter durante um período mínimo de cinco anos 65 • O novo regime do CINM foi aprovado pelo Decreto-Lei n° 13/2008, de 18 de Janeiro, no uso da autorização legislativa constante da Lei n° 65-A/2007, de 26 de Novembro, tendo em vista prorrogar o regime fiscal especial aplicável às entidades que se licenciem para operar na Zona Franca da Madeira, no período entre 1 de Janeiro de 2007 e 31 de Dezembro de 2013, prevendo a extensão dos efeitos até 2020.0 novo regime é conforme ao disposto na Decisão da Comissão Europeia C (2007) 3037 final, de 27 de Junho, relativa ao auxílio estatal n° N 421/2006. 61 O regime foi apresentado ao Governo da República em Fevereiro de 2006, tendo sido enviado para negociação em sede de auxílios de Estado nas instâncias comunitárias a 28 de Junho de 2006, e aprovado pela Comissão a 27 de Junho de 2007. 62 Para tanto, careceu igualmente de ser devidamente notificado e aprovado pela Comissão, dando cumprimento ao direito comunitário. 63 Os referidos actos implicam que a Comissão proceda a um reexame dos auxílios de Estado em vigor, de forma a apurar da sua compatibilidade com o mercado interno, tendo presentes os efeitos produzidos e os objectivos económicos alcançados. 64 No final, introduziu-se um novo artigo 34°-A no Estatuto dos Benefícios Fiscais. 65 Para poderem beneficiar do regime especial, as entidades devem observar um dos seguintes requisitos de elegibilidade: criação de um a cinco postos de trabalho nos primeiros seis meses de actividade e realização de um investimento mínimo de 75 mil na aqui60
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Para beneficiarem do regime especial, as entidades hão-de observar um dos seguintes requisitos: criação de um até cinco postos de trabalho nos primeiros seis meses de actividade e realização de um investimento mínimo de 75 mil na aquisição de activos fixos, corpóreos ou incorpóreas nos dois primeiros anos de actividade; criação de seis ou mais postos de trabalho nos seis primeiros anos de actividade 66 • No conjunto, estão em causa características paralelas às do Regime III quanto à limitação temporal estabelecida, delimitação das actividades a exercer, condições de admissibilidade das entidades, aplicação de taxas de tributação em IRC e, ainda, limites dos benefícios a outorgar. As entidades licenciadas segundo os regimes referidos podem beneficiar do novo esquema a partir de 1 de Janeiro de 2012.
N otas Finais
O CINM corresponde a uma estrutura diversificada que compreende, para além da zona franca industrial, um centro financeiro internacional, um centro de serviços internacionais e um sistema de registo internacional de navios. Tratou-se da evolução gradativa de uma zona franca industrial e regional, de alcance naturalmente limitado, para um centro internacional de negócios, aberto a iniciativas e instituições multifacetadas. Peça fundamental de uma estratégia de recuperação do atraso estrutural de uma ilha pequena e ultraperiférica, tendo em vista superar os constrangimentos inerentes, o regime fiscal do CINM configura-se como um regime de auxílios de Estado sob a forma tributária, que há-de ser devidamente notificado e autorizado pela Comissão Europeia. Neste contexto, as contínuas prorrogações de que tem sido alvo, não deixam de representar a comprovação pelo Executivo comunitário do papel que tem tido na concretização do objectivo nuclear que esteve subjacente à sua criação. No entanto, cumprirá sempre enfatizar que este programa não atingiu ainda a fase de maturidade, não tendo produzido a plenitude dos efeitos económicos e sociais almejados 67 •
sição de activos fixos, corpóreos ou incorpóreas, nos dois primeiros anos de actividade; e criação de seis ou mais postos de trabalho nos primeiros seis meses de actividade, cf., art. 0 35°, n° 6 do Estatuto dos Benefícios Fiscais. 66 Cf., art. 0 35°, n°2 do Estatuto dos Benefícios Fiscais. 67 Esta a posição defendida por Clotilde Celorico Palma, A crise económica e o regime fiscal do Centro Internacional de Negócios da Madeira, Lisboa, 11 de Junho de 2010, no prelo.
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Daí que, em virtude da ausência de óbices de carácter legal à existência de controlos, se possa defender a permanência do regime do CICN como uma alternativa fundamental de desenvolvimento da Região.
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AS REFORMAS FISCAIS PORTUGUESAS DO SÉCULO XX UM ENFOQUE ANALÍTICO Maria Eduarda Azevedo 1
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A Reforma Fiscal de 1922; 2.1. Enquadramento; 2.2. A Tentativa Modernizadora da Reforma de 1922; 3. A Reforma Fiscal de 1929; 3.1. A Reforma Fiscal de 1927: Um Interlúdio; 3.2. A Reforma Fiscal do Estado Novo; 4. A Reforma Fiscal de 1958-1965; 4.1. Enquadramento; 4.2. A Reforma Fiscal de 1958-1965 e a Emergência do Desenvolvimento Económico-Social do País; 4.3. As "Contra-Reformas"; 5. A Reforma Fiscal dos Anos Oitenta: O Início da Adaptação à Europa Comunitária; 5.1. Enquadramento; 5.2. A Reforma da Tributação Indirecta; 5.3. A Reforma Fiscal de 1988-1989; 5.3.1. A Determinação Constitucional da Reforma Fiscal; 5.3.2. Os Principais Eixos da Reforma Fiscal de 1988-1989; 6. Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido; 6.1. O Desenvolvimento da Reforma Fiscal; 6.2. Uma Reforma Fiscal para o Século XXI; 6.2.1. A Reforma da Reforma Fiscal; 6.2.2. A "Reforma Fiscal Inadiável"; 7. Notas Finais
1. Introdução
Uma reforma fiscal pode ser considerada um processo estruturado e gradativo que, movido por um sentimento de insatisfação quanto ao sistema tributário vigente, procura introduzir ajustamentos e aperfeiçoamentos na estrutura e configuração dos impostos com o objectivo mais amplo de adoptar uma renovada matriz de imposição fiscal, em linha com a dinâmica requerida pela satisfação das necessidades financeiras do Estado e a evolução dos princípios económicos
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Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Professora da Universidade Lusíada de Lisboa e da Faculdade de Direito da Universidade deLisboa; Investigadora Jurista do Centro de Estudos Fiscais.
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e sociais prevalecentes2 j3. De facto, uma reforma fiscal traduz, na sua plenitude, um esforço consciente no sentido de operar uma remodelação global do sistema, convocando a incorporação de medidas de política conducentes à modificação da estrutura dos impostos de modo a operar a sua adequação às respectivas finalidades, tendo em conta imperativos de justiça, equidade e transparência. Nesta acepção, Portugal conheceu ao longo do século XX um leque significativo de reformas fiscais, umas mais dignas desta designação do que outras, havendo cada uma procurado corresponder quer à realidade política e socio-económica subjacente, quer à evolução doutrinária e ideológica e à mudança de mentalidades, afirmando a importância do instituto fiscal na plano da cidadania e da ética4 • E porque no domínio da fiscalidade também não existem realidades eternas, as fórmulas encontradas curaram, sobretudo, de ir ao encontro de exigências de justiça, eficiência e simplificação enquanto atributos maiores de um sistema fiscal mais evoluído5, perspectivando a introdução de inovações fundamentais no quadro vigente com o propósito de o adaptar às condições e aos desafios socio-económicos que, em cada tempo histórico, se apresentaram ao País. Com este espírito, propomo-nos traçar as principais linhas informativas das principais reformas fiscais materializadas no século passado, acompanhando o seu pendor evolutivo de natureza não linear e pendular, mesclado de momentos 2
Neste sentido, Paulo de Pitta e Cunha, A Pseudo-Reforma Fiscal do Final do Século XX e o Regime Simplificado do IRS, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ano 1, n° 1, Primavera, 2008, p. 17. 3 Reconhece-se a dificuldade de definir com rigor o que se entende por reforma fiscal, tanto mais que são distintas as perspectivas de políticos e académicos a tal respeito. De facto, como elucida Pitta e Cunha, A Pseudo-Reforma Fiscal do Final do Século XX e o Regime Simplificado do IRS, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ob. cit., p. 17, enquanto que os primeiros podem considerar que quaisquer "pequenas medidas" podem corporizar uma reforma, interessados em exaltar politicamente semelhante tipo de iniciativa; os segundos acabam por reservar tal designação para as alterações fundamentais efectivamente operada ao nível da concepção e morfologia do sistema fiscal vigente. Há, porém, um consenso relativo quanto ao facto de as reformas fiscais irem para além de meros ajustamentos nas regras tributárias em resultado de simples medidas correntes de carácter pontual e parcelar, como defende Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, Lisboa, Dom Quixote, 1989, p. 132, constituindo transformações mais profundas no plano da estrutura fiscal. 4 Como sublinham António Joaquim de Carvalho e Mário Alberto Alexandre, Aspectos Gerais do Sistema Fiscal, in: Colóquio sobre o Sistema Fiscal, Comemoração do XX Aniversário do CEF, Lisboa, DGCI-MF, 1984, p. 105, uma reforma fiscal projecta sempre, de forma directa ou indirecta, os seus efeitos na vida dos cidadãos e nas estruturas económicas e sociais dos países em que se incrusta. 5 Cf., James B. Mackie III, Tax Policy Design in a Global21 st. Century Economy, in: Homenagem a José Guilherme Xavier de Basto, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, p. 305.
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de progressão e regressão, de passos de maior vulto e arrojo e de iniciativas de menor alcance e efeito duvidoso. Em causa vão estar as reformas de 1922, de 1929, dos anos sessenta, de finais dos anos oitenta e, ainda, a proclamada reforma de meados da década de noventa. A Reforma de 1922 que, no dealbar da República, ao traduzir a primeira reforma tributária global, consubstanciou uma tentativa inovadora de configurar um sistema fiscal harmonioso subordinado a um regime unitário, pondo termo a uma pulverização de figuras tributárias bastante incipientes, desprovidas do necessário grau de sistematização. No entanto, a visão enunciada e o reconhecimento granjeado pela reforma não obstaram a que viesse a claudicar, pouco tempo depois, devido precisamente à amplitude da transformação face às condições do tecido sacio-económico e à capacidade administrativa do aparelho fiscal, entrando em progressiva suspensão. A Reforma de 1929, a primeira sob a égide do Estado Novo após um esforço inicial esboçado em 1927, que pretendeu essencialmente superar o manifesto desconhecimento da matéria colectável, combater a fraude fiscal, corrigir a violência das taxas tributárias e reduzir a complexidade das práticas burocráticas. Então, o legislador mostrou preferência pela tributação de valores normais, por entender que os valores reais não seriam, por norma, atingíveis pelo imposto, relegando para plano secundário as inerentes injustiças. Ora, não obstante a ambição e o sentido imprimidos à reforma, esta veio a revelar-se de alcance limitado e provisório, embora haja acabado por experimentar uma vida prolongada de cerca de 30 anos. A Reforma dos anos sessenta que, neste contexto, teve na consagração do princípio da tributação do rendimento real efectivo a grande inovação, abrindo um período de convivência de tributação dualista assente na imposição do rendimento real a par do rendimento normal. Com todas as limitações naturais, representou uma linha conceptual mais moderna e desenvolvimentista da fisionomia do sistema fiscal, rompendo com o estado arcaico desse sistema, constituindo uma contrariedade de peso pela sua inadequação às condições de uma economia que procurava progredir na via da modernização e avançar para novos patamares de industrialização. A reforma veio a fazer um percurso sinuoso, não tendo escapado a importantes contra-reformas até ao final da década, gerando desvios e entorses que conduziram à desactualização da morfologia original. A Reforma estrutural dos anos oitenta, que teve como duplo desígnio operar a adequação do sistema fiscal ao enquadramento político- constitucional decorrente da instauração do regime democrático da década de setenta, por um lado, e, por outro, proceder à indispensável harmonização da lei fiscal ao acervo axiológico e normativo da Comunidade Económica e Europeia, na sequência do pedido de adesão formulado por Portugal. Uma reforma que representou um ponto alto na evolução do regime fiscal, franqueando à fiscalidade portuguesa a entrada nos cânones da modernidade, ao instituir o imposto tendencialmente único e progressivo sobre o rendimento global, em acerto de passo com a tributação praticada nos países desenvolvidos e, bem assim, o imposto sobre o valor
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acrescentado, na linha do modelo de imposição indirecta comunitária. Por fim, a proclamada Reforma dos anos noventa que, mantendo as linhas-mestras do ordenamento jurídico-tributário resultante do processo reformador da década anterior, protagonizou basicamente uma intervenção cirúrgica incidente sobre variadas distorções entretanto ocorridas, mostrando-se também informada tanto pela preocupação de cobrir áreas de tributação carecidas ainda de aprofundamento de disciplina reformadora, como pela necessidade seja de reforçar os instrumentos de combate à evasão e fraude fiscais, seja de conferir capacidade acrescida de resposta à Administração tributária. Naturalmente, as diferentes reformas hão-de ser contextualizadas atendendo às circunstâncias da época em que tiveram lugar, sobretudo em sede da evolução das Finanças Públicas e do fenómeno financeiro, em particular na tripla vertente das relações entre os sectores público e privado, do papel do Estado na economia e das funções prosseguidas e a cargo do Estado 6 . Assim, o presente estudo procura consubstanciar uma síntese analítica das reformas fiscais mais relevantes do último século, cobrindo o enunciado darespectiva ambição e escopo, o seu conteúdo e traços mais característicos, bem como o grau de concretização que, cada uma, no seu tempo, logrou alcançar. De um modo geral, sob a forma de ensaio, pretende-se também evidenciar a trajectória não linear e pendular dos processos entrecruzados de reforma e contra-reforma que se foram sucedendo até à grande transformação estrutural dos anos 90, que operou a reconfiguração do sistema fiscal adaptando-o às exigências de uma economia evoluída e inserida no complexo movimento de integração europeia.
2. A Reforma Fiscal de 1922 2.1. Enquadramento
A primeira reforma fiscal do século emergiu, em 1922, em pleno advento da 1• República 7 e após o termo do primeiro conflito mundial, que envolveu o País 6
A este propósito, António de Sousa Franco, Ensaio sobre as transformações estruturais das finanças públicas portuguesas:1900-80, in: Análise Social, vol XVIII (72-73-74), 1982,p. 1107, identifica três períodos característicos, como um quadro de entendimento e exposição, a saber:"1° O período das finanças liberais, que é o prolongamento da fase das finanças liberais que se inicia na depressão do final do século XIX e vai até 1929; 2° O período das autoritário-corporativas, que começa com a gestão financeira e a reconstrução do Estado operadas por Salazar e termina com o golpe de 25 de Abril de 1974, que instaurou o regime democrático; 3° O período das finanças socializantes, de 1974 até ao presente". Uma linha de análise a que, em termos de actualização, há-de acrescer o período correspondente aos processos de desintervenção económica do poder público e de adesão ao projecto de construção europeia que lhe sucederam. 7 Como bem assinala João Ricardo Catarina, Para uma Teoria Política do Tributo, Ciên-
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no esforço de guerra. A iniciativa representou uma tentativa séria, quiçá ousada, de transformação do panorama da fiscalidade em que predominava a tributação indirecta, propondo-se estabelecer um sistema fiscal mais harmonioso subordinado a um regime de carácter unitário 8 / 9 , tendo a lei que lhe deu corpo- a Lei n° 1368, de 21 de Setembro de 1922- vindo a abolir muitos dos impostos parcelares até aí dispersos por múltiplos e variados textos legais. O mérito do lançamento da reforma coube ao Governo de António Maria da Silva, havendo a iniciativa merecido aprovação parlamentar e ficado registada como avançada para o tempo, ao visar a criação de um imposto global e pessoal incidente sobre a totalidade dos rendimentos. Deste modo, ficou definitivamente para trás um longo período marcado por uma realidade tributária assaz arcaica, que havia tido na ausência de sistematização o traço dominante, fazendo ius, aliás, ao pensamento e à praxis da época liberal10 • Então, na democracia formal de inspiração liberal, o nível requerido de satisfação financeira das necessidades do sector público era consonante com a reduzida dimensão do Estado e o liberalismo agrário-comercial dominante, sendo a base do sistema tributário constituída pelos impostos indirectos (desde os direitos aduaneiros e impostos sobre o consumo ao imposto de selo e impostos especiais, frequentemente cobrados em regime de monopólio fiscal ou de regimes especiais atribuídos a certas indústrias) e complementada com a uma tributação directa incipiente, sem cobertura integral e racional do rendimento e do património. Na verdade, fora um tempo em que se haviam replicado pequenas reformas de cunho meramente conjuntural, fruto em boa parte da instabilidade política que se vivia. Reformas que, assentes em princípios conservadores do tipo benefício/sacrifício, apresentavam uma índole tendencialmente programática, evidenciando ainda uma manifesta e reconhecida carência de estruturas administrativas adequadas, indispensáveis para a implementação de um sistema de carácter definitivo 11 • De facto, havia primado também o reduzido relevo conferido ora à dimensão jurídica das situações tributárias, ora à posição jurídica do contribuinte, como cia e Técnica Fiscal, no 184, Lisboa, DGCI-MF, 1999, p. 287, "passado que foi o período dos "vivas" e dos foguetes, era necessário olhar a sério para as finanças do país, cuja situação era caótica. Desde os anos de 1910 até à publicação do texto da reforma, o país conheceu quase 60 ministros das finanças, 8 apenas no ano de 1915 e 5 no ano de 1922". 8 Cf., Vítor António Duarte Faveiro, Noções Fundamentais de Direito Fiscal Português, IIEstrutura Jurídica do Sistema Fiscal Português. Impostos sobre o Rendimento, Coimbra, Coimbra Editora, 1986, pp. 18 e ss. 9 Cf., A Reforma Tributária de 1922, in: As Reformas Tributárias de 1922 e 1929, Ciência e Técnica Fiscal, n° 24, Lisboa, DGCI-MF, 1964, pp. 17 e ss. 10 Cf., Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, Ministério das Finanças. Textos Fundamentais da Reforma Fiscal para o Século XXI, Coimbra, Almedina, 1998, pp. 21-26. 11 Cf., João Ricardo Catarina, Para uma Teoria Política do Tributo, ob. cit., pp. 280 e ss. Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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decorrência do Direito Fiscal ser encarado, enquanto ramo do Direito Financeiro, como o direito do Estado a lançar e cobrar impostos. Daí que, perante uma sucessão vertiginosa de diplomas criadores quer de tributos parcelares sobre o rendimento, quer de impostos indirectos sobre o consumo, quer ainda de medidas de natureza correctiva visando atenuar situações de crise financeira e moralizar o crédito público e as finanças através de uma profunda reestruturação dos serviços da Administração, não tenha deixado de ser manifesta a falta de uma reforma fiscal global. Assim, sobretudo após a I Grande Guerra, mostrou-se indispensável rever e actualizar o velho sistema fiscat até porque muitas das disposições legais já não tinham correspondência no estado económico e social do País. Acresce que se atravessava um período de crise política e financeira, que requeria um esforço suplementar no sentido de aumentar as receitas ordinárias do Estado e, por esta via, ocorrer à cobertura do défice orçamentaP 2 •
2.2. A Tentativa Modernizadora da Reforma de 1922
A reforma realizada em 1922, ao propor-se substituir um regime fiscal arcaico por um sistema de tributação racionat deu um passo importante no caminho da unificação sistemática da maioria dos tributos. Nesta medida, fiel ao propósito de promover a sistematização do sistema fiscal, a reforma começou por enquadrar um importante leque de impostos antigos: a contribuição industriat a que as pessoas que exerciam comércio, indústria ou qualquer profissão, arte ou ofício estavam sujeitas, mediante tributação a uma taxa anual fixa, paga adiantadamente, ou a uma taxa complementar, incidente sobre os lucros verificados ou presumivelmente obtidos 13; a contribuição prediat mantida nos moldes que vinham da legislação anterior, mas que foi objecto de actualização das matrizes prediais através de coeficientes variáveis 14; o imposto pessoal do rendimento, estruturado como um imposto de sobreposição, já que recaía sobre a totalidade do rendimento anual de cada contribuinte, em contraste, portanto, com os demais tributos, de natureza reaP 5, evidenciando a preocupação 12
Um período de regresso à instabilidade e ao desequilíbrio, que Sousa Franco, Ensaio sobre as transformações estruturais das finanças públicas portugueas:1900-80, ob. cit., p .1113, caracteriza lapidarmente como marcado pelo "relativo agravamento das doenças crónicas -o défice orçamental e o endividamento público (que cresce e retoma o primeiro lugar entre as despesas, após a reabsorção do esforço bélico)- e a manutenção no essencial da carga fiscal e da estrutura de despesas". 13 Cf., Arto 10° e ss. da Lei n° 1 368. 14 Cf., Art0 23° e ss. da Lei n° 1368. 15 Como referido em Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, Ministério das Finanças. Textos Fundamentais da Reforma Fiscal para o Século XXI, ob. cit., p. 26, o imposto pessoal de rendimento fora já tentado em vão em 1880 e 1889.
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de assegurar objectivos de justiça fiscal mediante uma tributação globaF 6; e a contribuição de registo por título oneroso17 • Porém, reflexo das novas preocupações reformistas, foram criados ainda outros tributos: o imposto sobre o valor das transacções 18, um imposto indirecto cumulativo, abrangendo todas as fases do circuito das mercadorias, e o imposto sobre a aplicação de capitais19, com uma secção A, que compreendia os juros devidos por contratos de mútuo e abertura de crédito, e uma secção B, sobre dividendos, lucros dos sócios, juros de obrigações de sociedades ou de suprimentos, juros de empréstimos de corpos e corporações administrativas e quaisquer outros rendimentos derivados da aplicação de capitais, desde que não sujeitos a contribuição industrial. A reforma permitiu, afinal, conferir à realidade fiscal a estabilidade de que, em boa verdade, nunca tinha gozado. Mas a sua relevância acabou por não se cingir ao período de vigência, que por sinal foi curto, visto o método e os princípios que encerrou terem tido continuidade nas reformas seguintes. Contudo, apesar de haver modificado o sistema anterior- em muitos aspectos até com profundidade -e granjeado mesmo a reputação de, sob o prisma tributário, ser geradora de uma época nova, na prática a reforma veio a saldar-se por um falhanço quase imediato. De facto, a reforma veio a ser suspensa, no seu essencial, pelo Decreto n°15 290, de 1 de Junho de 1926, que suspendera por três anos o imposto pessoal de rendimento e reduzira as taxas de tributação pessoal, assim como as aplicáveis às pessoas colectivas que passaram a estar sujeitas ao novo imposto então criado, complementar à contribuição predial, à taxa complementar da contribuição industrial e ao imposto sobre a aplicação de capitais. Daí que, cumpridos apenas quatro anos de aplicação, o Governo, após a revolução de 28 de Maio e ainda no decurso do ano de 1926, haja nomeado uma Comissão, com a tarefa de propor as bases de uma nova reforma tributária 20 • É que, apesar de notável em matéria do reconhecimento e da afirmação de princípios como a generalidade, a uniformidade, a salvaguarda do mínimo de existência e a progressividade, enquanto elementos estruturantes, a reforma de 1922 acabou por ter na sobrevivência de estruturas orgânicas e funcionais antigas e obsoletas a principal causa do insucesso. Estruturas que, insuficientemente habilitadas para o lançamento e a execução de um sistema fiscal bem mais evoluído, por contraposição ao pragmatismo e menor grau de exigência dos regimes
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O imposto global, tornado impraticável, como assinala Paulo de Pitta e Cunha, As Grandes Linhas da Reforma Fiscal de 1988-89, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, Coimbra, Almedina, 2005, p . 19, pela manifesta incompatibilidade entre o nível de desenvolvimento do País e as exigências de uma fiscalidade evoluída. 17 Cf., Art0 47° e ss. da Lei n° 1368. 18 Cf., Art0 1° e ss. da Lei n° 1368. 19 Cf., Art0 35° e ss. da Lei no 1368. 2 °Cf., João Ricardo Catarino, Para uma Teoria Política do Tributo, ob. cit., p. 291. Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 / 9 (2011)
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pretéritos, vieram a condicionar a sua aplicaçãd1 j22 . De notar que uma boa parte das dificuldades de implementação da reforma teve a ver com a reacção resistente dos contribuintes. Do lado das empresas, a criação de um imposto geral de transacções foi percepcionada como uma duplicação da tributação já a seu cargo; do lado dos particulares, a tributação pessoal e global dos rendimentos, em termos progressivos, foi encarada, sobretudo pela alta classe média, como uma forma de confisco e intrinsecamente injusta. Assim, uma larga franja de contribuintes recusava-se a declarar transacções e rendimentos enquanto outros recorriam ao expediente das declarações inexactas, desafiando a capacidade da Administração fiscal para repor a legalidade tributária.
3. A Reforma Fiscal de 1929 3.1. A Reforma Fiscal de 1927: Um Interlúdio
O Governo emergente da instauração do Estado Novo reconheceu, desde logo, a necessidade de retomar de imediato a reforma da fiscalidade à luz do novo ideário político e face aos desequilíbrios persistentes das Finanças Públicas, tendo nomeado para o efeito uma Comissão presidida por Oliveira Salazar, cujos trabalhos, sem concretização prática de vulto, vieram a anteceder a marcante reforma fiscal de 1929, agora conduzida sob a sua própria égide enquanto primeiro-ministro. A Comissão incumbida de reformar o sistema fiscal vigente, no extenso relatório sobre as bases da reforma, não só identificou circunstanciadamente os motivos que demonstravam a premência em introduzir as correcções necessárias nos impostos, indo ao encontro das reclamações insistentes da opinião pública, mas também sugeriu algumas alterações do regime tributário. De um modo geral, apontava-se uma determinação deficiente e irregular da matéria colectável, que o Estado procurava compensar com taxas de imposto excessivamente elevadas, criando uma distribuição irregular da carga fiscal com o sacrifício dos contribuintes mais cumpridores. Por outro lado, o contribuinte via-se confrontado também com um número exagerado de declarações e contactos com o Fisco, sendo as técnicas de lançamento e liquidação dos impostos com21
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Este carácter inexequível subjaz às palavras de Oliveira Salazar em uma entrevista ao Diário de Notícias, de 14 de Julho de 1927, a propósito da Reforma Fiscal de 1922. Neste sentido, Marcello Caetano, A Reforma Fiscal, O Direito, Rev. Ciências Jurídicas e de Administração Pública, Ano XCVI, Lisboa, 1964, p.7: "A Lei n° 1 368 não logrou alcançar os objectivos visados: os governos não tinham autoridade para a executar, a desordem social não inclinava à disciplina dos contribuintes, a inflação continuava a anarquizar a matéria colectável e a exigir a correcção das colectas por sucessivos adicionais, a administração fiscal não estava em condições de acompanhar as profundas transformações de processos e de espírito que a aplicação da lei implicava".
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plexas e trabalhosas. Por fim, acresciam ainda as dificuldades administrativas emergentes da instabilidade governativa, a falta de informação sobre a situação tributária do País e a carência de pessoal, factores que afectavam a eficácia do sistema fiscal. Em consequência, a liquidação e a cobrança dos impostos chegavam a fazer-se com anos de atraso, sendo até praticamente esquecidas no caso do imposto pessoal sobre o rendimento, área onde a evasão fiscal se tornara mesmo generalizada 23 • De registar que a Comissão, do seu livre alvedrio, associou àquele rol o abuso de adicionais para muitos e diversificados fins, que acabavam por "tirar ao imposto principal a qualidade fundamentalíssima de certeza"24, facto que, além de emprestar uma nítida complexidade à tributação para o contribuinte, impedia também uma gestão financeira eficaz da parte do Ministério das Finanças, limitando-o a distribuir os fundos pelos serviços a que eram afectos e a canalizar o remanescente para satisfação dos encargos gerais do Estado. No final, pretendia-se essencialmente que a nova reforma se ocupasse da correcção do sistema anterior e, sem fazer decrescer a "soma que ao Estado advém dos seus impostos", nem alterar no essencial o regime tributário em vigor 25, realizasse a simplificação do regime quanto ao número de impostos, taxas, declarações, prazos e formalidades de liquidação e cobrança, prevenindo a dupla tributação 26 • Almejava-se de igual forma facilitar a determinação da matéria colectável, bem como alcançar maior equidade na distribuição da carga fiscaF 7 j28 • 23
No Relatório da Comissão nomeada em 1926 para propor as bases da reforma tributária, in: As Reformas Tributárias de 1922 e 1929, ob. cit., p . 136, afirma-se "o imposto é quase só pago por funcionários cujos proventos foram declarados pelas repartições públicas. A restante massa dos contribuintes declarou o que quis, porque não se fa z fiscalização nenhuma, ou não declarou nada e não foi importunada por isso, dando campo não só a esquecimento e a evasão fiscal generalizada". 24 Cf., Relatório da Comissão nomeada em 1926 para propor as bases da reforma tributária, in: As Reformas Tributárias de 1922 e 1929, ob. cit., p. 56. 25 Como refere o Relatório da Comissão, ob. cit., p. 56,"0utros motivos ainda levaram a olhar com desconfiança uma reforma profunda. Não só geralmente estas reformas se afirmam a princípio por uma diminuição de receitas, incompatível com as necessidades do momento presente, mas ainda não pareceu que sem contrariedade e descontentamento do contribuinte fosse possível pôr a funcionar um sistema inteiramente novo". 26 Neste sentido, Marcello Caetano, A Reforma Fiscal, ob. cit., pp. 8-9, "O Decreto de 1929 apresenta-se também como simples correcção do sistema da Lei n° 1368. Para mais, as circunstâncias eram ainda críticas, estava-se a travar a batalha do equilíbrio orçamental, era preciso infundir confiança ao País e não sobrecarregar excessivamente a máquina fiscal. O legislador tinha a preocupação dominante de introduzir ordem e simplicidade nas relações tributárias, com o máximo de certeza possível dos encargos para o contribuinte e de segurança de receitas para o Estado". 27 Cf., Relatório da Comissão, ob . cit., pp. 57 e ss. 28 Como recorda A. Galhardo Simões, Reflexões sobre uma Reforma Fiscal, Ciência e Técnica Fiscal, n° 399, Lisboa, DGCI-MF, 2000, p. 97, "O autor da Reforma Fiscal de 1929
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Todavia, a Comissão acabou por incumprir no que respeita às orientações estabelecidas - uma atitude apenas admissível à luz da nova situação política -, assumindo, ao invés, o aumento da carga fiscal como o objectivo principal sempre que a matéria colectável o permitisse, com a nítida intenção de obter um aumento significativo de receita para os cofres públicos 29 . Aliás, dispensou-se mesmo de prosseguir o objectivo de simplificação fiscal, que reputou de "utopia", invocando que "não convém adorar tanto a simplicidade que se lhe sacrifique tudo, inclusivamente a justiça" 30 • Nestes termos, a reforma acabou porém por não lograr o duplo propósito que havia perseguido: por um lado, promover o tão ansiado reequilíbrio das finanças públicas e, por outro, revigorar a Administração financeira. E, neste ambiente, foi manifesto ter falhado ainda a tentativa de criar um imposto único sobre o rendimento pessoal que, propiciador de mais receita, representava um objectivo de primeira grandeza num quadro de dificuldades orçamentais crónicas31 •
3.2. A Reforma Fiscal do Estado Novo
A reforma de 192932, considerada de "emergência", foi concebida sob o signo do saneamento e da reconstituição financeira e marcada pela imperiosa necessidade de assegurar a realização duradoura do equilíbrio orçamentaP3, enquanto pilar fundamental de umas finanças sãs, assumindo mais um cariz disciplinador do foi o próprio Doutor Oliveira Salazar, cujo pressuposto de política financeira era o da estabilidade das receitas fiscais para a partir daí exercer um controlo mais ajustado sobre um montante de despesa pública efectivamente desregrado no início do seu depois longo mandato" . 29 Cf., A este propósito, Pedro Soares Martinez, Direito Fiscal, Coimbra, Almedina, 1993, p. 518; Vítor Faveira, Noções de Direito Fiscal, ob. cit., pp. 18 e ss. 3 °Cf., Relatório da Comissão, ob. cit., p 58. 31 Quanto ao imposto pessoal de rendimento, criado em 1922, a Comissão propôs que fosse suspenso por três anos e substituído por um imposto complementar de carácter provisório. 32 A II República (Estado Novo) fez duas reformas fiscais. Preparada, antes de chegar ao Governo, pelo próprio Salazar na Comissão de Reforma Fiscal de 1927, a reforma fiscal de 1929 representou uma travagem, dominada pelo realismo e pela prudência, em relação à reforma de 1922 que veio substituir, como referido em Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, ob. cit., p. 27. 33 A fase inicial de ascensão de Salazar ao poder é marcada pela premência do equilíbrio orçamental e de uma actuação condizente, adoptando decisivamente a via clássica da tributação extraordinária, sob a forma de imposto de salvação nacional susceptível de gerar um acréscimo significativo de receita, acompanhada, em termos complementares, pela compressão das despesas. Estratégia portadora de sucesso imediato, pois na gerência de 1928-29, o equilíbrio orçamental foi conseguido.A este respeito, António de Sousa Franco, Ensaio sobre as transformações estruturais das finanças públicas portuguesas:1900-80, ob . cit., p. 1119.
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que verdadeiramente inovador em que o realismo e a prudência se impuseram. Neste contexto, orientação imprimida visou sobretudo a obtenção de receitas públicas certas e seguras de modo a salvar as finanças públicas de uma derrocada iminente, tendo em conta mormente a necessidade de pôr termo ao total desconhecimento da matéria colectável, evitar as fraudes fiscais, corrigir a violência das taxas tributárias, reduzir a complexidade dos ritos burocráticos34 . De facto, se em 1922, a Lei n° 1368 havia pretendido atingir os rendimentos realmente auferidos pelos contribuintes, a nova reforma, plasmada no Decreto no 16731, de 13 de Abril, procurou fundar-se na tributação do rendimento normaP5 / 36que, enquanto rendimento médio anual dos contribuintes, era garante de um caudal certo de receitas 37 j38 • Todavia, a adopção deste método de tributação dos rendimentos não deixava de redundar em injustiças flagrantes 39, 34
Cf., Pedro Soares Martinez, Direito Fiscal, ob. cit., p. 519 e ss. Conforme se lê no preâmbulo do Decreto n° 16731, "a certeza, a clareza, a simplicidade do imposto e a independência do contribuinte valem também alguma cousa, e, em obediência a elas, estabeleceram processos de trabalho que terão de ser os preferidos ao menos enquanto não tenhamos os nossos organismos de imposição e fiscalização em condições de executar a sério, sem injustiças mas também sem violências e sem abusos, o imposto pessoal de rendimento". 36 Na reforma de 1929, como assinala Vítor Faveira, in: Debate sobre a Reforma Fiscal. Observações ao Relatório Silva Lopes e Jornadas Fiscais, MF, 1999, p. 55, consagrou-se o espírito e a mentalidade oriunda da estrutura napoleónica em que à Administração se reconhecia a titularidade e o atributo de soberania e de poder autoritário. Os chefes de repartição, informados por um corpo de funcionários de reduzida preparação técnica e cultural, fixavam para cada contribuinte, o rendimento que, segundo o seu critério pessoal, se considerava como normal; efectuada a fixação, era indiferente que a realidade do rendimento excedesse ou fosse inferior à expressão de rendimento normal atribuído. 37 Segundo Marcello Caetano, A Reforma Fiscal, ob. cit., p. 9, " os tempos conturbados de então não eram propícios à confissão franca desses rendimentos por quem os recebia, nem permitia a luta do Fisco contra a evasão, sem violências de efeitos contraproducentes.( ... ) O interesse do Estado está em assegurar-se de um imposto antes de um lucro, evitar a discussão estéril e falcatruenta sobre elementos inverificáveis a maior parte das vezes, não ser solidário com prejuízos resultantes de administrações que não orienta nem fiscaliza, não proteger por sistema a incapacidade, nem perseguir por princípio com tributações excessivas os que, sendo bons valores económicos, são, ao mesmo tempo, perante ele, sinceros confessores da verdade fiscal". 38 Como refere Pedro Soares Martinez, Direito Fiscal, ob. cit., p. 520, alguns dos argumentos usados em 1929 a favor da tributação de valores normais ofereceram um relevo relativamente intemporal, tendo continuado a ser válidos. 39 Como bem defende J. J. Teixeira Ribeiro, A Reforma Fiscal, Coimbra, Coimbra Editora, 1989, pp. 13-18, "a tributação do rendimento normal é arbitrária, obsta à personalização do sistema e abstrai da conjuntura". De facto, o rendimento normal é sempre um rendimento em larga medida arbitrário, pois não há, nem pode haver critérios definidos para o avaliar, tudo dependendo praticamente do livre juízo da Lei e da Administração sobre os factores significativos para o seu apuramento; impossibilita a personalização 35
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representando um sério retrocesso face à marcha então encetada em prol de uma tributação real e progressiva do rendimento e abrindo, ao invés, caminho à consagração do princípio da tributação do rendimento normal. Na sua essência, a reforma de 1929, que correspondeu aos princípios gerais do pensamento financeiro clássico ortodoxo, que Salazar aceitava, conquanto rejeitasse os seus pressupostos liberais, procurou evitar que os impostos fossem excessivos, visando dotar o sistema de regularidade e simplicidade e, assim, gerar confiança junto dos interesses económicos e tranquilizar, em particular, proprietários e empresários. Neste cenário, o sistema fiscal, ao nível da tributação directa, foi integrado essencialmente por um conjunto de impostos cedulares de natureza real: a contribuição predial; a contribuição industrial; o imposto profissional, então criado 40; e o imposto sobre a aplicação de capitais. A estes tributos acrescia o imposto complementar41 que, como imposto global, de sobreposição aos demais impostos puramente reais e seu mero adicional42 , destinava-se a prosseguir a personalização da tributação, sobretudo perante a decisão da Comissão de suspender a introdução do imposto pessoal sobre o rendimento e enquanto essa suspensão se mantivessé3 / 44 . No campo da tributação indirecta, assistiu-se quer à abolição do imposto do sistema; e é insensível à conjuntura económica, indiferente perante a prosperidade e a depressão. 40 O novo imposto profissional sobre os rendimentos do trabalho era um sinal evidente de que começava a emergir uma classe média e um proletariado urbano. 41 Criado pelo Decreto n° 15 290, de 30 de Março de 1928, o imposto complementar foi igualmente regulado nos art S 88° e ss. do Decreto n° 16 731. 42 Veio a ser autonomizado apenas, em termos de lançamento e liquidação, em 1933 Decreto-Lei n° 22 541, de 18 de Maio. 43 Tratava-se de assegurar essa mesma personalização, enquanto estivesse suspenso o imposto pessoal sobre o rendimento, configurando assim uma solução de compromisso, face à relutância do próprio Salazar em abolir o imposto sobre o rendimento. Neste sentido, Relatório da Comissão nomeada em 1926 para propor as bases da reforma tributária, in: As Reformas tributárias de 1922 e 1929, ob. cit., pp. 136 e ss., em especial na nota 18, em que Salazar refere "se a Comissão tem votado simplesmente a abolição do imposto sobre o rendimento, eu não podia de modo algum acompanhá-la nesse voto, pois considero a abolição do imposto pessoal de rendimento um retrocesso no nosso sistema fiscal. .. ". Essa suspensão correspondeu ao que Paulo de Pitta e Cunha, As Grandes Linhas da Reforma Fiscal de 1988-89, ob. cit., p.19, designa de "falta de golpe de asa que seria a passagem à tributação unitária". 44 Nesta perspectiva, o imposto complementar constituía u m sucedâneo imperfeito do imposto único, como defende Abel L. Costa Fernandes, Algumas Notas sobre a Reforma Fiscal de 1988, Fisco, Ano 1, n° 9, Junho 1989, pp. 18 e ss., quer pela sua pouca transparência, quer pelos custos administrativos e de cumprimento que implica, quer ainda pela deficiente afectação de recursos económicos a que dá origem, uma vez que alguns destes são subtraídos a aplicações alternativas socialmente mais produtivas. 0
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de transacções 45 , visto ter-se tornado uma duplicação da contribuição industrial pela sua incidência sobre os mesmos factos tributários 46 , quer à manutenção da sisa sobre as transmissões de imobiliários a título oneroso 47 e do imposto sobre as sucessões e doações 48 - que recuperou a denominação que fora substituída por "contribuição de registo"- e, ainda, do imposto do selo 49 • Assistiu-se igualmente à introdução de novos impostos sobre o consumo, em especial, sobre o açúcar e os derivados do petróleo, e à criação da taxa de salvação nacional, incidente sobre os vencimentos dos funcionários públicos. Deram-se ainda alguns avanços, porventura tímidos, em matéria de criação de um regime de contencioso dos actos administrativos, com uma eficácia reduzida devido tanto à não contenciosidade do poder de fixação dos rendimentos normais, como à separação de poderes, que supõe o controlo do poder executivo pelo poder judicial50 . À guisa de balanço sempre se poderá defender quanto ao novel sistema que, influenciado pelos ideais do Estado Novo, revelou um nítido pendor autoritário. E em relação à nova reforma que, apesar de consentânea com o pensamento financeiro clássico e, por isso, de busca de um modelo de regularidade e simplicidade sem prejuízo da obtenção de receita, enfermou de vícios idênticos aos detectados em 1922. Na verdade, a reforma, embora tivesse procurado atingir o objectivo da restauração das finanças públicas, na prática viu-se privada de estruturas orgânicas e funcionais à altura do desafio. Contudo, cumpre ter presente que a lei-padrão de 1929 não se propôs resolver a totalidade dos problemas de um sistema tributário cuja reforma era incontornável, mas tão só dar solução às questões mais palpitantes e urgentes, marcando sobretudo rumos no caminho para se chegar, tanto quanto possível, a um sistema fiscal capaz de dar satisfação plena aos princípios fundamentais de legalidade, autoridade, justiça e liberdade51 . Por isso, não obstante haver tido em vista apenas completar e "arrumar" o sistema parcelar existente, esta reforma racionalizou-o através, designadamente, da criação do imposto profissional e da Cf., Art0 .143° do Decreto no 16 731. Constituiu o ponto mais controvertido da reforma de 1929, uma vez que as opiniões se dividiram, havendo quem sustentasse a manutenção dos dois impostos, quem reclamasse a abolição do imposto de transacções e quem se pronunciasse pela eliminação da contribuição industrial. A este respeito, Relatório da Comissão, ob. cit., pp. 112 e ss. 47 Cf., Arto 97° do Decreto no 16 731. 48 Cf., Arto 92o do Decreto no 16 731. 45
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Cf., Decreto n° 1 2700, de 20 de Novembro de 1926, e a Tabela Geral pelo Decreto n° 21 916, de 28 de Novembro de 1932. 5 °Cf., Reforma Tributária de 1929, in: As Reformas Tributárias de 1922 e 1929, ob. cit., pp. 357 e ss. 51 Neste sentido, cf., Vítor António Duarte Faveira, A Reforma Tributária de Salazar. Breves Notas sobre a sua realização, Boletim DGCI (separata) Lisboa, Imprensa Nacional de Lisboa, 1954, pp. 7 e ss.
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integração do imposto complementar52 • Sendo indesmentível que a reforma, conquanto provisória e limitada, marcou uma época na história da legislação fiscal portuguesa53, o certo é que, depois de uma prolongada vigência de quase trinta anos, conduziu inevitavelmente tanto à acumulação de um extenso elenco de diplomas, como a uma complexa teia burocrática, apelando à realização de uma nova iniciativa reformadora.
4. A Reforma Fiscal de 1958-1965 4.1. Enquadramento Em finais da década de cinquenta eram inegáveis os sinais de profundo cansaço do sistema fiscal, não só porque causa directa das muitas injustiças da tributação, mas também pela incapacidade de produzir receita suficiente, num momento em que os objectivos do desenvolvimento industrial do País reclamavam um refrescamento do modelo de tributação. Entretanto, a necessidade de acréscimo de receita fiscal tornou-se uma questão crucial com o eclodir da luta armada nos territórios ultramarinos, que passaram a absorver uma parte significativa das disponibilidades do erário público54• É verdade que a reforma fiscal de 1929 começara por proporcionar algum desafogo das contas públicas, uma circunstância que servira, aliás, de sustentáculo à política de "finanças sãs" emblemática do regime. Todavia, a partir de uma certa altura o princípio da tributação pelo rendimento normal, que havia funcionado como o eixo da reforma, passou a ser questionado com vigor. De facto, a economia de guerra havia posto em causa o princípio da tributação dos valores normais, uma vez que o imposto sobre os lucros extraordinários de guerra incidia sobre rendimentos presumidos55, tomando-os como normais. E, ao requerer um apuramento complexo da matéria colectável, era gerador de conflitos, fomentando quer um clima adverso à tributação dos rendimentos não reais, quer o ressurgimento de tensões e a própria deterioração das relações entre os contribuintes e a Administração56 • Acresce que a tendência legislativa mundial era já no sentido do cálculo do rendimento nacional em bases mais adequadas, uma corrente que Portugal se 52
Importa registar que, a par da reestruturação dos textos legislativos, se assistiu também à reforma das normas relativas à organização do orçamento, reforçando princípios como o da universalidade e da legalidade dos impostos. Neste sentido, João Ricardo Catarina, Para uma Teoria Política do Tributo, ob . cit., p.298. 53 Cf., José Casalta Nabais, Direito Fiscal, Coimbra, Almedina, 2006, 4a edição, p.474, nota de rodapé n° 8. 54 Cf., João Ricardo Catarina, Para uma Teoria Política do Tributo, ob. cit., p. 303. 55 Cf., Lei n° 1 989, de 6 de Março de 1942. 56 Cf., Pedro Soares Martinez, Direito Fiscal, ob. cit., p. 521.
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propôs também acompanhar depois do fim da autarcia económica do período de guerra 57, tendo os serviços públicos de estatística, ao passarem a publicar regularmente anuários e boletins, secundado o esforço das empresas no sentido da expansão e do apuramento das técnicas contabilísticas. Ao mesmo tempo, assistiu-se ainda ao ajustamento dos sistemas tributários às novas políticas de tendência livre-cambista, orientadas na linha da criação de grandes espaços económicos.
4.2. A Reforma Fiscal de 1958-1965 e a Emergência do Desenvolvimento Económico-Social do País
A segunda reforma fiscal de Salazar58 teve um longo período de maturação e concretização, tendo-se materializado na publicação de uma série de Códigos no período de 1958-196559 / 60 que, apesar de alterar os impostos mais importantes, manteve a tributação dualista. 57
Cf., Pedro Soares Martinez, Direito Fiscal, ob. cit., p. 521. Cf., Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, ob. cit., p. 29. Para João Ricardo Catarino, Para uma Teoria Política do Tributo, ob. cit., p. 304, a reforma fiscal dos anos sessenta teve como causa directa o prolongamento por tempo indefinido do carácter transitório da reforma de 1929 e o reconhecimento da gravidade da situação no plano da justiça, face ao arbítrio dos agentes, à desigualdade das situações tributárias e à falta de uma verdadeira ordem jurídica em um tão importante sector da vida nacional. 59 Como refere Marcello Caetano, A Reforma Fiscal. ob. cit., p. 11, "A Lei n° 2 045, de 26 de Dezembro de 1950, estabeleceu o método de trabalho. Assim, devia principiar-se pela sistematização dos textos legais reguladores dos principais impostos vigentes, para os codificar em um texto único por cada imposto. Simultaneamente, o Instituto Nacional de Estatística ia proceder ao cálculo do rendimento nacional a fim de permitir que, a partir de textos únicos, se fizesse a reforma dos impostos directos com base nos rendimentos, no capital e no enriquecimento do contribuinte, de modo a proporcionar a carga tributária ao valor verificado do rendimento nacional e a distribuí-la de harmonia com a composição deste. Apontava-se ainda um ideal a atingir: o de que a cobrança se baseasse num só conhecimento para todos os impostos de cada contribuinte, com um único regime de prestações, prazos e condições de relaxe". 60 Os trabalhos de preparação da reforma vieram a concretizar-se em sete projectos de diploma, sucessivamente entregues de 1958 a 1963, emergindo, no final, um total de sete códigos fiscais, com os quais, como refere J. J. Teixeira Ribeiro, A Reforma Fiscal, ob. cit., p. 11, se procedeu pela primeira vez, entre nós, a uma reforma integral dos grandes impostos directos. Uma reforma profunda, visto que atingiu não apenas muitos aspectos técnicos do sistema em vigm~ mas também alguns dos princípios em que se baseava. Concretizou-se, assim, a Ordem legal substantiva, de que fala João Ricardo Catarino, Para uma Teoria Política do Tributo, ob. cit., p. 306, através de códigos juridicamente estruturados segundo uma linha uniforme. Todos os impostos de grande impacto acabaram estruturados em termos jurídicos, sistemáticos e uniformes. 58
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Tratou-se de uma reforma animada por um elenco abrangente de objectivos em que se destacam: a adaptação às novas condições económicas, o estímulo ao desenvolvimento económico, a adequação às variações conjunturais, uma maior justiça fiscal, o combate à evasão, a eliminação de casos de dupla tributação, o alargamento das garantias jurídicas dos contribuintes, a equiparação do tratamento de nacionais e estrangeiros, a melhoria da confiança nas relações entre os contribuintes e o fisco. À imagem da anterior, a reforma manteve um conjunto de impostos cedulares com taxas proporcionais ou de progressividade restrita, que colectavam em separado o rendimento a partir de uma dada proveniência61 - contribuição industrial, imposto profissional, contribuição predial, imposto sobre a indústria agrícola e imposto de capitais -, a que se associava um imposto complementar de sobreposição com taxas progressivas que, recaindo sobre o rendimento global, permitia introduzir uma certa personalização ao tomar em consideração a pessoa do contribuinte e a sua situação económica, funcionando portanto como um elemento corrector do sistema. Por isso, conquanto perspectivada como o início de uma actuação de maior fôlego, que havia de culminar na substituição dos impostos cedulares e do imposto complementar por um imposto único sobre o rendimento 62 , na prática assistiu-se à manutenção de um sistema misto de impostos reais e de um imposto pessoal por força de uma economia pouco desenvolvida e de uma Administração fiscal antiquada que dificilmente poderia aplicar métodos uniformes de determinação da matéria colectável aos rendimentos das diferentes origens e fontes 63• 61
Pela sua própria natureza, a tributação cedular não proporciona uma visão de conjunto da situação financeira do contribuinte. A principal vantagem da imposição cedular reside, nomeadamente, na possibilidade de adequar as modalidades de tributação à natureza dos rendimentos tributáveis, onerando mais pesadamente os rendimentos do capital do que os do trabalho, modulando as taxas consoante a maior ou menor exactidão na determinação da matéria colectável. Neste sentido, Paulo de Pitta e Curlha, A Tributação do Rendimento na Perspectiva de uma Reforma Fiscal, Ciência e Técnica Fiscal, n°s 226228, 1977, ob. cit., pp.7 e ss. 62 Nesta linha, as palavras com que fecha o relatório do Código do Imposto Complementar, publicado em Novembro de 1963, "por muito vasta, porém, que tenha sido areforma, a verdade é que ainda fica um longo caminho a percorrer, que é o da paulatina substituição, até onde as circunstâncias o permitirem, da tributação real pela tributação pessoal. Simplesmente, esse é um caminho que só poderá começar a ser trilhado dentro de alguns anos, quando os resultados da reforma da tributação directa já permitam decidir com segurança qual o alargamento que há-de dar-se sucessivamente ao imposto complementar para compensação do gradual recuo dos impostos parcelares". A propósito de uma eventual passagem a um sistema integralmente personalizado, assente no maior relevo reconhecido ao imposto complementar e, correlativamente, à menor importância dos impostos cedulares, a reflexão de Paulo de Pitta e Curlha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p.l7. 63 Eram múltiplas as razões aduzidas pela Comissão da reforma fiscal para recusar a cria-
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Mas a reforma acabou por representar uma viva reacção contra o princípio da tributação integral pelo rendimento normal, procurando antes adoptar o princípio da tributação pelo lucro real no que concerne às grandes e médias empresas, se bem que mantivesse a tributação pelo lucro normal ou presumido para as demais 64 / 65 . Com efeito, a tributação do rendimento real, ao pressupor uma normalização contabilística amplamente satisfatória, não se afigurava viável em relação às pequenas e médias empresas66, justificando o "desabafo" da Comissão que, apesar de adepta fervorosa deste tipo de tributação, não deixou de lamentar a impossibilidade de se ir mais longe por razões práticas67 • ção de um imposto único directo sobre o rendimento das pessoas físicas, como assinala J. J. Teixeira Ribeiro, A Reforma Fiscal, ob. cit., pp. 18 e ss., preferindo a manutenção de um sistema de impostos cedulares. Desde logo, ainda que consciente das virtudes do imposto único sobre o rendimento -economia, simplicidade, clareza - e que se tratava do caminho trilhado nos países progressivos quanto à h·ibutação das pessoas físicas, como demonstravam, entre outros, Martin, Imposition cédulaire et imposition unitaire des revenus, in: Revue de Science et de Législation Financiere, 1956, pp. 486 e ss., Brochier e Tabatoni, Éconornie Financiere, Paris, PUF, 1959, pp. 80 e ss.; Conac, Unité ou Dualité dans la Taxation des Revenus, Revue de Science Financiere, 1960, pp. 752 e ss., a "inevitabilidade de redução de receita" falou mais alto. Sobre a ampla expansão e difusão dos sistemas mistos, Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., pp. 13 e ss. 64 Como é assumido no n° 8 do Relatório ao Código da Contribuição Industrial: "Não foi possível ir mais longe no tocante à aplicação do princípio da tributação do rendimento real, por virtude da existência de um considerável número de pequenas e pequeníssimas empresas, às quais nenhumas exigências se poderiam fazer em matéria de organização da escrita. Este facto, verificável, de resto, em numerosos países, constituía obstáculo invencível à generalização do princípio acima referido e obrigava a transigir, no que se refere a tais contribuintes, com o critério da tributação do rendimento normal" . 65 Como assinala José Joaquim Teixeira Ribeiro, A Reforma Fiscal, ob. cit., pp. 13 e ss., a fixação do rendimento normal é sempre um rendimento em larguíssima medida arbitrário, visto que não se pode saber com segurança quais os elementos a que se há-de recorrer para fixar o rendimento real de uma empresa, nem o peso a atribuir a cada um deles. Daí que a tributação do rendimento normal gere fortes litígios com os contribuintes, que se consideram frequentemente alvo de injustiças. Neste sentido Henrique Medina Carreira, A Tributação das Sociedades na Constituição e na Reforma de 1988/1989, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/1989, Coimbra, Almedina, 2005, p. 146. 66 Segundo Pedro Soares Martinez, Direito Fiscal, ob. cit., pp. 523-524, não obstante o princípio de tributação de valores reais enunciado pela reforma de 1958-1965, os impostos portugueses continuaram quase sempre a incidir sobre valores normais, ou assim considerados. De acordo com Luís M. T. Menezes Leitão, Estudos de Direito Fiscal, Coimbra, Almedina, 1999, p. 180, procurou-se adoptar o princípio da tributação pelo lucro real quanto às grandes e médias empresas, mantendo apenas quanto às demais a tributação pelo lucro normal. 67 Tal é confessado no n° 8 do Relatório ao Código da Contribuição Industrial: "Não foi possível ir mais longe no tocante à aplicação da tributação do rendimento real, por virtude da existência de um considerável número de pequenas e pequeníssimas empresas, Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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Afinal, além de pretender a retoma do caminho no sentido da tributação real, que representou, aliás, o seu grande marco inovador, a reforma visou ainda criar um certo grau de personalização no sistema, não obstante a Comissão ter afastado a hipótese de uma introdução imediata do sistema de imposto único sobre o rendimento, invocando argumentos de ordem técnica em que sobressaíam a impreparação dos serviços da Administração fiscal e a necessidade de continuar a atingir com intensidade diferente as diversas categorias de rendimentos 68 / 69 • Acresce que, ao pretender aumentar os rendimentos fiscais do Estado sem abandonar a tributação parcelar, adaptou o sistema fiscal a uma estrutura mais evoluída, tributando rendimentos antes subtraídos à incidência fiscal. Com este propósito, criou o imposto de mais-valias, bem como o imposto sobre a indústria agrícola, que veio, porém, a ser suspenso quase de imediato70 • Por sua vez, ultrapassada a zona dos impostos directos a que primeiramente se restringira 7I, e à margem de qualquer relação com a reforma da tributação do rendimento, recriou o imposto de transacções como imposto geral sobre o consumo, adoptando o tipo monofásico incidente sobre o estádio do grossista, mas repercutível na linha do circuito económico até ao consumidor. às quais nenhumas exigências se poderiam fazer em matéria de organização da escrita. Este facto, verificável, de resto, em numerosos países, constituía um obstáculo aparentemente invencível à generalização do princípio acima referido, obrigando a transigir, no que se refere a tais contribuintes, com o critério da tributação do rendimento normal". 68 A existência de diferentes impostos sobre o rendimento com taxas diversas procurava compensar as notórias diferenças de rigor na determinação da matéria colectável. Tratava-se, afinal, como defende Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p . 22, de praticar um certo intervencionismo por via da fiscalidade. Assim, tornava-se possível que a taxa sobre os rendimentos do trabalho fosse a mais baixa de todas, não só por se encontrar segura a aferição dos rendimentos tributáveis, pelo menos em relação aos trabalhadores por conta de outrem, mas sobretudo porque era visível a intenção de os atingir de forma menos intensa atendendo à sua precariedade. Por outro lado, a fixação das taxas da contribuição predial rústica e do imposto sobre a indústria agrícola em níveis inferiores aos dos demais impostos incidentes sobre os chamados "rendimentos não ganhos" correspondia ao objectivo de aligeirar a carga fiscal sobre o produto da terra. Por último, à contribuição predial urbana atribuía-se um valor inferior à da contribuição industrial e à do imposto de capitais, com o propósito de prosseguir uma política de incentivo à construção. 69 Cf., José Joaquim Teixeira Ribeiro, A Reforma Fiscal, ob. cit., pp. 20-21; Paulo de Pitta e Cunha, A Tributação do Rendimento na Perspectiva de uma Reforma Fiscal, ob. cit., p . 13; Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., pp. 16-17. 70 Os esforços do reformador fiscal concentram-se, então, na tributação dos rendimentos reais e efectivos, em especial, na contribuição industrial e na predial urbana, autonomizando-se da contribuição predial rústica os lucros das explorações agrícolas, objecto do novo imposto que, suspenso, assim se veio a manter quase sempre. Neste sentido, a análise de Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p. 85. 71 Cf., Marcello Caetano, A Reforma Fiscal, ob. cit., pp. 12-13.
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Então, com a criação deste tributo teve-se em vista compensar o facto da tributação do rendimento real efectivo, para que se tinha querido enveredar com a reforma dos impostos directos, não assegurar um nível estável de receita, pelo que procurou atribuir ao novo imposto de transacções uma função estabilizadora no processo de obtenção de receitas. Mas, para lá deste objectivo imediato, visou-se ainda dar um "contributo" para a solução do problema da perda de relevo reditício dos impostos alfandegários72. Uma situação que, derivada sobretudo da participação de Portugal no GATF3 e nos movimentos de integração europeia- Acordo Portugal-EFTA74 e Acordo Portugal-CEF5 -,além de arrastar a diminuição ou mesmo extinção daqueles impostos, obrigou ainda à revisão da pauta aduaneira, cuja nomenclatura foi simplificada segundo as regras de unificação internacional, marcando o estádio inicial da política de redução progressiva destes direitos 76 . Entretanto, circunstâncias de ordem política, com reflexos financeiros sensíveis no primeiro semestre de 1961, impuseram a criação do imposto sobre consu-
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Apesar da cobrança de receitas haver constituído um objectivo central, o legislador português exprimiu também outras preocupações, como o preâmbulo do decreto-lei deixara claro quando anunciou a vontade de atender a "fundamentais preocupações de ordem económica e social" . Assim, como sublinha Manuel Carlos Lopes Porto, A Integração na CEE e a Reforma do Sistema Fiscal Português, in: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Ferrer-Correia, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. III, 1991, pp. 761 e ss., foi tendo em conta este tipo de preocupações que afastou liminarmente a adopção de um imposto de transacções de tipo cumulativo, recusando um modelo tão "sedutoramente" reditício; por outro lado, para evitar alguns efeitos de regressividade, que resultariam da aplicação de um imposto geral com taxa uniforme, introduziu elementos de progressividade e foi sensível a objectivos de ordem económica mediante a concessão de benefícios a alguns sectores básicos da economia. 73 Desde 1962, ao passar a fazer parte do GATT (na sequência do Dillon-Round), foram também aplicadas a Portugal as reduções estabelecidas no quadro geral do Acordo, de grande relevo em 1962-1967 no âmbito do Kennedy-Round. 74
Embora ao abrigo do anexo G Portugal tenha ficado com a possibilidade de reduzir de um modo mais lento a tributação sobre as importações. 75 O acordo comercial celebrado com a CEE, revisto em 1976, sendo a Comunidade, de longe, o principal parceiro de Portugal, com peso reforçado desde que o Reino Unido dela passou a fazer parte. A este respeito, Silva Lopes, Portugal and the EEC: The Application for Membership, Economia, vol. IV, 1980, pp. 519 e ss. 76 Como assinala Manuel Carlos Lopes Porto, A Integração na CEE e a Reforma do Sistema Fiscal Português, ob. cit., p. 759, para a perda de relevo reditício da pauta alfandegária portuguesa contribuiu ainda a circunstância de se tratar de uma pauta fundamentalmente específica (em mais de 85% dos seus artigos), ficando naturalmente prejudicada a prossecução daquele objectivo à medida em que se ia agravando o valor em moeda portuguesa das mercadorias importadas. Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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mos supérfluos ou de luxo 77 j78, que vieram, no entanto, a proporcionar montantes de receita assaz modestos. No conjunto, esta reforma teve como objectivos fundamentais a adaptação às novas condições económicas do País, o estímulo ao desenvolvimento económico, a adequação às variações conjunturais, a realização de maior justiça fiscal, o combate à evasão, a eliminação dos casos de dupla tributação, o aumento das garantias jurídicas dos contribuintes, a equiparação do tratamento de nacionais e estrangeiros e a obtenção de uma maior confiança nas relações entre o contribuinte e a Administração tributária. E, com todas as suas limitações, veio a representar uma concepção mais moderna e desenvolvimentista do sistema fiscal, tornando patente que o sistema em vigor, pelo seu arcaísmo, revestia um carácter indiscutivelmente desadequado à conjuntura e às próprias condições de uma economia que encetava os primeiros passos na linha da industrialização79 ; so. A reforma dos anos sessenta procurou, pois, adaptar o sistema tributário a uma estrutura económica em mutação, melhorando a sistemática das áreas de tributação, integrando os rendimentos até aí excluídos e, ainda, racionalizando a tributação do consumo. Nesta medida, pretendeu inserir-se num quadro de modernidade que o poder político queria fazer transparecer, seja através de leis de fomento e regulação industrial, seja mediante uma participação externa mais ampla em blocos comerciais81 . Afinal, tanto o novo sistema fiscal, como a reforma integrada de todos os sectores da fiscalidade nacional tiveram em vista constituir o primeiro passo no sentido quer da criação de uma verdadeira Ordem Jurídica Tributária, quer da sua integração na Ordem Jurídica geral82, assumindo-se qual reflexo da imagem de estabilidade que o poder político se empenhava em transmitir 83 • 77
Cf., Decreto-Lei no 4 4510, de 16 de Agosto de 1962. Cf., Marcello Caetano, A Reforma Fiscal, ob. cit., pp. 12-13. 79 Cf., Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, Ministério das Finanças. Textos Fundamentais da Reforma Fiscal para o Século XXI, ob. cit., p. 29; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Estudos de Direito Fiscal, ob. cit., p. 180. 80 Como refere Manuel Carlos Lopes Porto, A Integração na CEE e a Reforma do Sistema Fiscal Português, ob. cit., p 748, tratou-se de uma reforma que não pretendeu introduzir apenas melhorias técnicas, tendo trazido importantes alterações de fundo ao sistema fiscal português. 81 Cf., João Ricardo Catarina, Para uma Teoria Política do Tributo, ob. cit., p . 308. 82 Como defende Vítor Faveira, in: Debate sobre a Reforma Fiscal. Observações ao Relatório Silva Lopes e Jornadas Fiscais, ob. cit., pp. 56 e ss., o objectivo fundamental dareforma dos anos sessenta foi a criação de uma verdadeira Ordem Jurídica Tributária face à insegurança da Ordem Jurídica Geral, gravemente afectada e constantemente violada pela injustiça da lei substantiva, pelo arbítrio dos procedimentos administrativos e pela falta de apoio judiciário contra as injustiças e as ilegalidades. 83 Cf., Neste sentido, Vítor Faveira, A Reforma Tributária de Salazat~ Texto evocativo dos 25 anos da sua chegada ao Poder, Lisboa, INCM, 1954, p. 10. 78
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4.3. As "Contra-Reformas"
A longa reforma, malgrado a sua relevância e abrangência, veio a ser alvo de duas "contra-reformas" 84 / 85 : uma, vasta e persistente, de carácter administrativo, resultante ora de um entendimento deficiente dos funcionários quanto às suas linhas directoras, ora da reacção contra os princípios enunciados86; e outra, de pendor legislativo, decorrente da publicação de diplomas que, sem atacarem de modo declarado os principais eixos em que se ancorava, conduziram à sua negação ou desvirtuamento de facto 87 • 84
Cf., José Joaquim Teixeira Ribeiro, A Contra-Reforma Fiscal, Separata Boletim de Ciências Económicas, vol. XI, Coimbra, 1968, pp. 5-6; do mesmo Autor, A Reforma Fiscal, ob . cit., p. 59. No mesmo sentido, entre outros, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Estudos de Direito Fiscal, ob. cit., pp. 184-185; João Ricardo Catarina, Para uma Teoria Política do Tributo, ob. cit., pp. 311 e ss.; Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, ob. cit., pp. 29 e ss. 85 A este propósito, Pedro Soares Martinez, Pressupostos Político-Económicos de uma Reforma Fiscal, Ciência e Técnica Fiscal, n°s 289/291, CEF, Lisboa, DGCI-MF, 1983, pp. 7 e ss., atribui à falta de definição política de directrizes alguns dos defeitos de que padeceu a reforma fiscal de 1958-1963. 86 Como reconhece o Presidente da Comissão de Reforma, J. J. Teixeira Ribeiro, A Reforma Fiscal, ob. cit., pp. 43-44, "era preciso que a Administração correspondesse, que realizasse as condições para a pôr adequadamente em prática. Exigia-se: primeiro, que se confiasse a direcção superior da execução da reforma a um corpo de funcionários que a conhecessem em toda a sua amplitude e que, portanto, pudessem decidir, de esh·eito acordo com o espírito das novas leis, os muitos e inevitáveis problemas de interpretação e preenchimento de lacunas; que se reorganizassem os serviços de fiscalização, de modo a estes ficarem a dispor do numeroso pessoal necessário à correcta leitura e apreciação da escrita das empresas; que se dotassem as direcções e repartições de finanças com pessoal bastante para o acréscimo de tarefas que resultava da reforma, e particularmente da tributação dos rendimentos reais, que se estudassem e promulgassem com a brevidade possível as providências complementares previstas em vários códigos, sobretudo no da contribuição industrial; que se desenvolvesse uma vasta e persistente campanha de elucidação do público sobre os intuitos da reforma, a razão das suas soluções, os deveres e direitos dos contribuintes. Eis o que se exigia à Administração para o cabal sucesso da reforma. 87 Consistiu, em primeiro luga1~ no facto do Decreto-Lei n° 4 567, de 24 de Abril de 1964, ter vindo a estabelecer adicionais para impostos locais, que desvirtuaram a hierarquia das taxas da reforma fiscal; em segtmdo lugar, na circunstância de o Decreto-Lei no 46 496, de 18 de Agosto de 1965, haver suspendido o imposto sobre a indústria agrícola; e, por fim, no facto de o Decreto-Lei n° 48 316, de 5 de Abril de 1968, ter permitido à Administração fiscal tributar os contribuintes do grupo A da contribuição industrial com base em rendimentos presumidos, em caso de duvidar da sua declaração. De um modo geral, os impostos parcelares não foram minguando com o passar do tempo, bem ao invés, como defende José Guilherme Xavier de Bastos, O IRS na Reforma Fiscal de 1988/89, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1998/89, Coimbra, Almedina, 2005, p . 75, frisando que alguns, como o imposto profissional, receberam taxas progressivas, enquanto o imposto Lusíada. Direito. Lisboa, n .0 8 I 9 (2011)
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Por conseguinte, a partir de finais da década de sessenta, a progressão do sistema fiscal português ficou marcada pela introdução de modificações no regime dos diferentes impostos88 que, não fazendo ius à concepção da reforma como um "processo em permanente evolução", se traduziram, antes, no comprometimento das concepções que haviam servido de base à modificação das estruturas fiscais, vindo a dificultar ou retardar a passagem às categorias fiscais antevistas como expressão de um estádio mais avançado da fiscalidade nacional89 / 90 . Assim, o sistema tributário acabou transformado, por acção do legislador, culpa da Administração e complacência dos Tribunais Tributários, em um retorcido e amorfo complexo de regras jurídicas, caracterizado essencialmente pelo
complementar não via a sua importância crescer, como seria desejável para a evolução no sentido do imposto único. Afinal, era manifesta a incapacidade do sistema nascido da reforma dos anos sessenta de evoluir no sentido da modernidade e das próprias exigências do desenvolvimento económico. 88 Uma situação geradora das insuficiências e dos profundos "traumatismos" sofridos pelo Sistema, de que fala Vítor Faveiro, in: Debate sobre a Reforma Fiscal. Observações ao Relatório Silva Lopes e Jornadas Fiscais, ob. cit., pp. 59-60. 89 Em 1977, à distância dos anos, Paulo de Pitta e Cunha dizia, a propósito da reforma dos anos 60, A Tributação do Rendimento na Perspectiva de uma Reforma Fiscal, ob. cit., pp. 7 e ss., que "era lógico que se tendesse a atribuir cada vez maior relevo ao imposto complementar e, correlativamente, fosse sendo reduzida a importância dos tributos cedulares", concluindo que "os aperfeiçoamentos nos diferentes códigos mostraram-se negativos sob um duplo aspecto: por um lado estilhaçaram a harmonia lógica do esquema instituído de tributação cedular ( ... )e, por outro, afectaram em particular o regime de taxas dos principais impostos parcelares, implicando uma nítida tendência para a crescente cedularização do sistema português de impostos sobre o rendimento, precisamente a contrária à que deveria caracterizar a prevista passagem ao sistema unitário. Neste sentido a análise de Vasco Branco Guimarães, A Reforma Fiscal de 1989 (Uma Visão por Dentro), in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, Coimbra, Almedina, 2005, pp. 100-101, que acrescenta ainda "a não existência de qualquer meio informático de centralização e tratamento dos dados fiscais existentes nos impostos parcelares". Também as conclusões de Henrique Medina Carreira, Alguns Aspectos Sociais, Económicos e Financeiros da Fiscalidade Portuguesa, Análise Social, vol. XXII, n° 90, 1986, pp. 66 e ss., no sentido de os efeitos das políticas fiscais seguidas apresentarem-se distorcidas por três razões: a incidência de mais do que um imposto sobre o mesmo rendimento; a existência de impostos progressivos cujos escalões não acompanhavam a inflação; haver rendimentos sujeitos a taxas proporcionais, outros sujeitos a uma taxa proporcional e a outra progressiva e outro ainda a duas taxas progressivas. 9 °Cf., Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p. 44; Manuel Carlos Lopes Porto, A Integração na CEE e a Reforma do Sistema Fiscal Português, ob. cit., pp. 751e ss.
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regresso à tributação dos rendimentos normais e ao arbítrio91 / 92 . De então em diante, os "retoques" introduzidos, longe de obedecerem a uma visão de conjunto, conduziram pelo contrário a que, de forma desgarrada, fossem realizadas distorções na própria harmonia lógica que o sistema tinha tido inicialmente. Por isso, o regime desactualizou-se na sua própria morfologia, continuando a basear-se em categorias de impostos cedulares, já há muito tempo substituídos na generalidade dos países industrializados pelo esquema da tributação unitária do rendimento global93 .
5. A Reforma Fiscal dos Anos Oitenta: O Início da Adaptação à Europa Comunitária 5.1. Enquadramento
Duas décadas volvidas sobre a reforma fiscal dos anos sessenta, no quadro político-constitucional do regime democrático emergente do 25 de Abril de 1974 e após a fase de normalização e estabilização democrática, assistiu-se a um novo e ambicioso impulso reformista na área tributária. A importância de uma reforma fiscal tornou-se não só consensual, como premente, face à crescente inoperacionalidade geral do sistema tributário, sujeito a sucessivas distorções e sob pressões de vária ordem que conduziram a um certo desregramento e uma certa desregulação fiscal94 . Desde logo, observava-se a conjugação de um agravamento da pressão fiscal real com a insuficiência económica dos impostos directos para cobrir as necessidades financeiras do Estado, em acentuado crescimento. Entretanto, o sistema fiscal perdeu coerência, deixando de estar subordinado a uma visão de conjunto e a considerações de justiça tributária: abundantes adicionais e complementos irracionais coexistem com uma parafiscalidade extravagante e descontrolada. Acresce que a pressão fiscal incidia mais sobre o trabalho do que sobre o património e os impostos indirectos aumentavam à custa da tributação directa. Por 91
Neste sentido, João Ricardo Catarina, Para uma Teoria Política do Tributo, ob. cit., p. 314. Também Vítor Faveira, in: Debate sobre a Reforma Fiscal. Observações ao Relatório Silva Lopes e Jornadas Fiscais, ob. cit., p. 60, fala de correspondência à reimplantação dos métodos da Reforma de 29. 92 Em finais dos anos sessenta, Oliveira Salazar, Função Pública e a Burocracia, Discursos e Notas Públicas, vol. III, 1938-1942, Coimbra, Coimbra Editora, 1940, p. 282, dizia "Sistematicamente usados, o adiamento, a prorrogação, a isenção, a dispensa dos preceitos legais, têm a tal ponto deseducado o espírito público que a maior parte da gente não acredita que a lei venha a ser cumprida ao menos tão inteiramente como nela se contém". 93 Cf., Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p. 113. 94 Cf., Sousa Franco, Ensaio sobre as transformações estruturais das finanças públicas portuguesas:1900-80, ob. cit., p. 1135. Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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outro lado, a deterioração das relações Administração-contribuintes, bem como a redução da eficácia e produtividade do aparelho tributário tornavam-se patentes e indisfarçáveis. Por fim, numa tendência de transformação desordenada do sistema, a fraude fiscal ganhava terreno. Neste contexto, o foco prioritário da nova reforma recaiu na fiscalidade indirecta em virtude do pedido de adesão de Portugal à Comunidade Europeia, centrado, por isso, na adopção do IVA em substituição do imposto de transacções e de outros tributos menores 95 . A esta reforma parcelar seguiu-se uma,Q_utra, de natureza global, a reforma fiscal de 1988-198996 enquanto peça central de um esforço mais amplo que, encetado com a introdução do novo modelo de tributação da despesa, pretendia-se prosseguir com uma revisão da regulamentação de outras categorias fiscais 97 j98 • Então, a Comissão de reforma assumiu o desafio de concretizar a gratificante, mas complexa, tarefa de realizar uma das mais importantes mutações estruturais de que o País carecia: a passagem à tributação unitária do rendimento99 / 100 • Na verdade, tratava-se de uma alteração substancial que conferiu ao imposto pessoal e progressivo o papel de elemento dominante do sistema, comportan95
Tratou-se de uma verdadeira miríade de impostos especiais sobre o consumo ou "accises". Os acontecimentos políticos com repercussão no processo legislativo foram a dissolução da Assembleia da República, em 1987, a subsequente realização de eleições, em 18 de Julho desse ano, e a posse do XI Governo Constitucional. Cf., Olívio Mota Amador, As Vicissitudes do Processo Legislativo na Reforma Fiscal de 1988/89, in: 15 Anos daReforma Fiscal de 1988/89, Coimbra, Almedina, 2005, p. 37. 97 Com Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p. 132, reservamos a expressão "reforma fiscal" para a tarefa de instituir alterações de importância fundamental no domínio da tributação directa, na linha da percepção de que os impostos directos constituem o verdadeiro núcleo do sistema fiscal e polarizam o debate em torno das questões mais difíceis e controvertidas de política fiscal e, bem assim, ao facto de, em Portugal, a tributação do rendimento se apresentar com a configuração de uma pluralidade de impostos, ocupando uma grande parte do panorama fiscal, como reflexo do sistema cedular-misto ainda vigente. 98 A Reforma fiscal de 1988-1989 foi precedida de trabalhos e estudos de grande qualidade e envergadura da responsabilidade de uma Comissão nomeada para o efeito e de que fizeram parte os maiores especialistas da matéria, bem como as instituições mais reputadas em questões de natureza fiscal, de entre as quais se destacou o Centro de Estudos Fiscais. 99 Neste sentido, Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p. 151. Também em Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, ob. cit., p. 32. 100 Como sublinha Miguel Cadilhe, O Enquadramento Político da Reforma Fiscal de 1988/89, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, Coimbra, Almedina, 2005, p. 28, "Olhando para as três últimas décadas, não é fácil encontrar uma série de anos como 1986 a 89 em matéria de resultados macroeconómicos. ( ... )dificilmente se encontra uma outra série de anos em que o País tenha assistido a um conjunto tão vasto de reformas. Das Privatizações ao Tribunal de Contas, do Sistema Financeiro à Dívida Pública, dos instrumentos de poupança e do Mercado de Capitais à Reforma Fiscal". 96
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do-se os impostos parcelares como formas fiscais com uma autonomia meramente relativa, "condenados" a dissolverem-se quando se introduzisse a tributação unitária do rendimento pessoaP 01 • Tal como na década de sessenta, quando se havia verificado a primeira reforma compreensiva abrangendo os impostos directos e indirectos, na década de oitenta ocorreu um esforço similar, se bem que de sentido inverso, com a introdução do IVA a preceder a finalização da nova regulamentação da tributação do rendimento 102 .
5.2. A Reforma da Tributação Indirecta
A reforma da tributação indirecta, animada pelo propósito de conduzir à adopção do IVA, configurou uma iniciativa que teve como causa próxima a integração de Portugal na CEE 103 • De facto, a participação no projecto comunitário, sem exigir modificações de vulto no plano do sistema fiscaP 04 / 105, ao significar a 101
Cf., Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p. 17. Nos anos sessenta, a instituição do imposto de transacções, subsequente à introdução de modificações no sistema de impostos de rendimento, foi ditada pelo imperativo de obter compensações para a perda gradual dos impostos sobre o comércio externo como fonte de receita. 103 A instituição do sistema comum de imposto sobre o valor acrescentado era a única grande realização em termos de aproximação dos sistemas fiscais dos Estados membros. 104 O processo de integração na CEE implicava a adequação do sistema fiscal português às regras e políticas que, neste domínio, constituíam o "acquis communautaire". Porém, não se encontrando prevista no Tratado de Roma a instituição de uma "política fiscal comunitária", como bem reconhece Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p. 47, nele apenas se inseriam medidas concretas com respeito às compensações e aos desagravamentos nas fronteiras em matéria de impostos indirectos, procurando-se conferir base jurídica a esforços de harmonização de legislações nacionais, na perspectiva limitada do bom funcionamento do mercado comum. Por isso, à data, as implicações da integração na CEE estavam concentradas no campo dos impostos indirectos. Quanto aos demais impostos, prevalecia um largo campo de liberdade para a tomada de decisões e opções nacionais, com particular realce para os impostos directos sobre os rendimentos individuais. E, mesmo no que se refere aos impostos directos sobre as sociedades, as perspectivas de harmonização continuavam a confinar-se a propostas de directiva, ainda não convertidas em normas comunitárias. Do mesmo Autor, A Harmonização da Fiscalidade e as Exigências da União Monetária na Comunidade Europeia, in: XXX Aniversário de Centro de Estudos Fiscais, 1963-1993, DGCI-MF, 1993, pp. 208 e ss. 105 A próxima reforma fiscal não podia alhear-se das implicações emergentes da participação de Portugal na CEE, como reconhece Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., pp. 48-49, uma vez que, implicando a integração a aproximação das economias, quer por via da superação de obstáculos às relações comerciais e aos movimentos de factores produtivos, quer pela adopção de políticas comuns, a dinâmica do processo não 102
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integração do País num espaço em que se haviam eliminado os obstáculos à livre circulação de mercadorias e dos factores nas relações intracomunitárias, tornava imperativa a introdução do modelo comum de tributação indirecta corporizado no imposto sobre o valor acrescentado 106 jl 07 • Assim, os Estados membros deviam substituir o seu sistema de imposto de transacções - a maioria, enquadrada ainda no modelo tosco do imposto cumulativo ou em cascata- pelo "sistema comum de imposto sobre o valor acrescentado", em que o imposto devido em cada transacção corresponde à diferença entre a importância resultante da aplicação da taxa ao preço do bem ou serviço em causa e o montante do imposto que haja onerado o custo dos diversos elementos constitutivos do preço. Um método de dedução "imposto a imposto", que opera nas sucessivas fases dos circuitos de produção e comercialização, incluindo o estádio de retalhista 108, visando a introdução do IVA assegurar uma neutralidade
iria deixar de envolver, a prazo, uma convergência, em termos de grandes linhas, dos sistemas fiscais nacionais. 106 A revisão constitucional de 1982 veio realizar alterações importantes em que, além da previsão expressa de um poder tributário próprio a favor das Regiões Autónomas, envolveu ainda a eliminação, no respeitante à tributação do consumo, da isenção dos bens necessários à subsistência dos mais desfavorecidos e suas famílias, pretendendo-se prevenir a futura adesão à CEE. Neste sentido, José Casalta Nabais, A Constituição Fiscal de 1976, sua Evolução e seus Desafios, Anuário Português de Direito Constitucional, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 49. 107 O pedido formal de adesão à CEE foi formulado em 18 de Março de 1977, tendo as negociações tido início em 17 de Outubro de 1978, no Luxemburgo. Só três anos depois começaram os trabalhos preparatórios para a adopção do IVA comunitário. Em meados de 1980, tinha-se como possível que a adesão se pudesse verificar em 1984. Ora, como refere José Xavier de Basto, Perspectivas de Evolução do Imposto sobre o Valor Acrescentado em Portugal, in: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor A. Ferrer-Correia, Boletim. Faculdade de. Direito de Coimbra, n° especial, III, 1991, pp. 793 e ss., várias circunstâncias levaram a considerar que seria um risco excessivo adoptar o imposto logo no momento da adesão, até porque o próprio conhecimento da técnica do imposto era limitado, rareando os especialistas versados na matéria. Por outro lado, o então vigente imposto de transacções apresentava-se de complexidade inferior, exigindo a sua administração menos meios técnicos e humanos. Daí que, a negociação de um período transitório haja constituído um elemento indispensável para uma cuidada preparação da reforma. Assim, se explica uma importante inflexão na estratégia da reforma, operada em 1983, e expressa na Lei do Orçamento para 1984 (Lei n° 42/83, de 31.12): a decisão de acelerar os trabalhos preparatórios de modo a introduzir um IVA - não necessariamente o do sistema comum da CEE -,independentemente do "timing" da adesão. Então, através do Decreto-Lei n° 394-B/84, de 26 de Dezembro, foi aprovado o Código do IVA que, após vicissitudes várias, acabou por ver a sua entrada em vigor fixada para 1 de Janeiro de 1986, coincidindo, afinal, com a adesão portuguesa às Comunidades Europeias. 108 Cf., Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p . 57; José Casalta Nabais, Direito Fiscal, ob. cit., p. 482.
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concorrencial, impossível de alcançar com os sistemas cumulativos 109 . Mas a adopção do IVA, enquanto imposto geral sobre o consumo, plurifásico, embora não cumulativo, baseado num princípio de neutralidade nas trocas internas e internacionais e fundamentado em directivas comunitárias, com particular destaque para a 6• Directiva110 / 111 , acarretou a eliminação do imposto de transacções, monofásico, que operava no estádio do produtor e do grossista, assente numa técnica de suspensão de imposto a montante e que, além de se mostrar muito permeável a fraudes, denotava ainda pouca rendibilidade fiscal, apesar do agravamento de taxas que se verificara nos últimos tempos da sua vigência. A introdução do IVA correspondeu a uma reforma parcelar112 / 113, não se tendo afigurado indispensável a sua globalização, seja pelo menor grau de incerteza gerado junto dos agentes económicos se desgarrada do vasto elenco de medidas
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A adopção do IVA correspondeu ainda à exigência de assegurar o cumprimento da Decisão do Conselho de 21 de Abril de 1970 que, mediante a criação dos recursos próprios do orçamento comunitário, operara uma mudança substancial no plano da natureza e da estrutura financeira da Comunidade. E entre os recursos próprios contava-se, a par dos direitos aduaneiros e dos direitos niveladores agrícolas, a aplicação de uma percentagem sobre a base de incidência do IVA, pelo que o acolhimento deste modelo de tributação, juntamente com o facto de se encontrar harmonizado de acordo com regras comunitárias em muitos aspectos do seu regime jurídico, designadamente a sua base tributável, era indispensável para viabilizar a afectação deste recurso ao orçamento comunitário. Neste sentido, Maria Eduarda Azevedo, A Europa em Movimento. Apostas e Desafios no Limiar do Novo Século, Lisboa, Editorial Notícias, 1997, pp. 309; António de Sousa Franco, Problemas Financeiros e Orçamentais da União Europeia, in: A União Europeia na Encruzilhada, Coimbra, Almedina, 1996, p. 24. 110 Cf., Maria Teresa Lemos, Algumas Considerações sobre a Adopção do IVA Comunitário, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n°s 247/249, Lisboa, DGCI-MF, 1979, pp. 149 e ss.; da mesma Autora, Alguns Aspectos da Substituição do Imposto de Transacções pelo Imposto sobre o Valor Acrescentado, in: Colóquio sobre o Sistema Fiscal, Comemoração do XX Aniversário do CEF, DGCI-MF, 1984, pp. 639 e ss. 111 A 6• Directiva IVA constituía como que um "código europeu de imposto sobre o valor acrescentado", como refere Paulo de Pitta e Curlha, A Reforma Fiscal, ob . cit., pp. 60 e ss., proclamando-se no preâmbulo o objectivo de supressão das "fronteiras fiscais" nas trocas entre os Estados membros. 112 Cumpre atender ao facto de a Comissão da reforma fiscal, ainda que vocacionada naturalmente para o domínio da tributação do rendimento (pessoas singulares e pessoas colectivas), não poder deixar de tomar em conta a fiscalidade no seu todo. Daí que o preâmbulo do Decreto-Lei n° 232/84, de 12 de Julho, se refira à inserção dos trabalhos relativos à esfera da tributação directa numa "concepção global de reforma fiscal". E a presença, entre os seus membros, do presidente da Comissão do IVA constituiu uma garantia da articulação entre a introdução desta nova categoria tributária e a reestruturação no plano dos impostos directos. 113
Cf., J. Xavier de Basto, Perspectivas de Evolução do Imposto sobre o Valor Acrescentado em Portugal, ob. cit., pp. 852 e ss. Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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que corporizam, por norma, uma reforma de maior vulto, visto as modificações concentrarem-se em um uma só peça do sistema gerando menores resistências à mudança, seja pela maior facilidade na gestão dos aspectos políticos e administrativos inerentes. Na verdade, com reformas parciais correm-se menos riscos do que com a experimentação de soluções administrativas mais abrangentes e ousadas, envolvendo as reformas globais com frequência demasiadas mudanças que hão-de ser absorvidas pelos decisores políticos e pelos órgãos da Administração114 • Porém, esta estratégia não deixou de apresentar igualmente custos e limitações. Um cenário em que as limitações apareceram bem reveladas ao nível da manutenção de preocupações distributivas, ora na construção da base tributável, ora na definição da estrutura de taxas, ora ainda no carácter restrito da substituição fiscal empreendida115 • De facto, a introdução do IVA não foi pacífica, havendo suscitado vários problemas de carácter político, socio-económico e administrativo, mostrando-se os primeiros associados quer ao alargamento da base tributável aos serviços, quer sobretudo ao abandono de certas isenções existentes em sede de imposto de transacções, pelo forte impacto nas despesas familiares das classes de rendimento mais baixo, mas que a 6• Directiva não abrangia 116 • Quanto às questões de natureza económico-social, basilares no plano da aceitação do imposto pelos cidadãos, a mais importante respeitou ao impacto do IVA sobre o custo de vida, com implicações inevitáveis na escolha das taxas aplicáveis como modo de atenuar a regressividade do imposto. Neste domínio, a experiência de outros parceiros europeus demonstrava que o efeito de modulação das taxas era relativamente diminuto no que tange à distribuição do imposto entre diferentes categorias de famílias 117 . 114
Neste sentido, Vito Tanzi, A Review of Major Tax Policy Missions in Developing Countries, Comunicação ao 41° Congresso do International Institute of Public Finance, Madrid, 1985. 11 5 Como regista J. Xavier de Basto, Perspectivas de Evolução do Imposto sobre o Valor Acrescentado em Portugal, ob. cit., p. 855, o IVA português não recebeu a extensa base tributável que teria sido possível e desejável construir, se as preocupações de redistribuição do rendimento pudessem ser prosseguidas onde têm o seu assento predominante. Ademais, igualmente em consequência da necessidade de enquadrar objectivos distributivos na construção do sistema, estabeleceu-se uma estrutura de taxas relativamente complexa, prevendo-se uma taxa reduzida e uma taxa agravada. 116 Como refere António Carlos dos Santos, Políticas Orçamental e Fiscal 20 Anos Depois, ob. cit., p. 445, a lista dos bens isentos contemplada pela 6" directiva não abrangia, nem abrange, este tipo de bens, nomeadamente bens alimentares destinados ao consumo final bem como os "inputs" usados na sua produção. A manutenção de uma situação similar à do imposto de transacções não podia deixar de exigir uma isenção completa, convocando uma situação admissível apenas com carácter transitório, tal como ocorrera em matéria de tributação de bens essenciais no Reino Unido e na Irlanda. 117 Para prevenir piorias em relação à situação anterior, foram efectuados estudos anima-
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Por fim, no plano administrativo foi viva a consciência de que se tratava da gestão de um sistema com um número muito elevado de contribuintes 118 / 119, circunstância a que acrescia a maior complexidade do novo imposto com repercussões tanto sobre a Administração, como ao nível dos contribuintes. Nesta medida, tornava-se necessário desenvolver um esforço de formação da máquina administrativa e dos próprios contribuintes relativamente a este tributo com que não estavam de todo familiarizados 120 . Afinal, as obrigações fiscais inerentes à tributação em IVA iam ditar novos desafios, em especial para as pequenas unidades comerciais, industriais e de exploração agrícola, obrigando ao estabelecimento de regimes simplificados e/ ou a regimes de isenção de imposto. Um leque de problemas que justificou, aliás, que na Assembleia da República o Partido Comunista Português e o Centro Democrático e Social hajam requerido a ratificação do diploma que aprovara o Código do IVA, questionando, entre outras matérias, a incidência sobre bens essenciais até aí isentos, os efeitos negativos da tributação na inflação e na carga fiscal das famílias com menores rendimentos, bem como a falta de condições para a implementação do imposto no curto prazo. Daqui ter resultado a suspensão temporária do Código, seguida do estabelecimento de 1 de Janeiro de 1986 como a nova data de início de vigência121 .
5.3. A Reforma Fiscal de 1988-1989 5.3.1. A Determinação Constitucional da Reforma Fiscal
A reforma fiscal de 1988-1989, sob a égide dos X e XI Governos Constitucio-
dos pelo propósito de perspectivar os efeitos redistributivos que a introdução do IVA iria provocar sobre as famílias agrupadas em diferentes classes de despesa e numa regional. A este respeito, António Carlos dos Santos, Políticas Orçamental e Fiscal20 Anos Depois, ob. cit., p. 466. 118 O universo de contribuintes ia passar de cerca de 98 mil, no quadro do imposto de transacções, para mais de meio milhão, no âmbito do IVA, como salienta, António Carlos dos Santos, Políticas Orçamental e Fiscal20 Anos Depois, ob. cit., p. 466. 119 Como assinala Vasco Branco Guimarães, A Reforma Fiscal de 1989, in: 15 Anos daReforma Fiscal de 1988/89, Coimbra, Almedina, 2005, p. 100, a reforma do IVA veio criar uma dinâmica positiva ao trazer para o sistema formal toda uma série de agentes económicos que não se encontravam integrados. 120 A reforma do IVA trouxe a adopção de tecnologias modernas para a época e uma filosofia informática e de gestão dos impostos, decisiva para a resolução de alguns problemas e para a agilização do modus operandi. Neste sentido, Vasco Branco Guimarães, A Reforma Fiscal de 1989, ob. cit., p. 100; António Carlos dos Santos, Política Orçamental e Fiscal 20 Anos Depois, ob. cit., p. 447, nota de rodapé n° 17. 121 p Cf., Lei no 42/85, de 22 de Agosto.
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nais, representou uma viragem histórica na fiscalidade portuguesa122, ao substituir o sistema cedular-misto, que era praticado há longos anos, por uma fórmula de tributação tendencialmente unitária do rendimento123 / 124 • Uma mudança de paradigma que, pedra-angular desta iniciativa reformadora, viu as suas principais directrizes plasmadas na Constituição Política de 1976125 jl 26 - na lógica de 122
Como assinala de forma impressiva Eduardo Paz Ferreira, Prefácio a 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, Coimbra, Almedina, 2005, a reforma "constituiu um passo decisivo para a modernização do sistema fiscal português". 123 O modelo de tributação unitária, que era tradicional no mtmdo anglo-saxónico e germânico, foi objecto de introdução, algo tardia, em sistemas de raiz latina. Mas, como aponta Paulo de Pitta e Cunha, As Grandes Linhas da Reforma Fiscal de 1988-89, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, Coimbra, Almedina, 2005, p.20, ao tempo da criação da Comissão de Reforma Fiscal (1984), a conversão já se havia operado na Bélgica, em 1963; em Itália, em 1973; em Espanha, em 1978. Assim, entre os países da OCDE, Portugal era, afinal, o derradeiro portador da fórmula dualista, posição que partilhava, no plano extra-europeu, com certos países da América Latina, o Egipto, a Síria e o Líbano. 124 O modelo de tributação unitária, que era tradicional no mundo anglo-saxónico e germânico, foi objecto de introdução, algo tardia, em sistemas de raiz latina. Mas, como aponta Paulo de Pitta e Cunha, As Grandes Linhas da Reforma Fiscal de 1988-89, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, Coimbra, Almedina, 2005, p. 20, ao tempo da criação da Comissão de Reforma Fiscal (1984), a conversão já se havia operado na Bélgica, em 1963; em Itália, em 1973; em Espanha, em 1978. Assim, entre os países da OCDE, Portugal era, afinal, o derradeiro portador da fórmula dualista, posição que partilhava, no plano extra-europeu, com certos países da América Latina, o Egipto, a Síria e o Líbano. 125 A Constituição de 1976 estabeleceu as traves-mestras de uma democracia financeira, ao definir, em termos gerais, os instrumentos fundamentais da actividade financeira do Estado e as competências do Parlamento, do Governo e do Tribunal de Contas na elaboração, execução e controlo de tais instrumentos. Neste sentido, António Carlos dos Santos, Políticas Orçamental e Fiscal 20 Anos Depois, in: A Economia Portuguesa - 20 Anos após a Adesão, Coimbra, Almedina, 2006, p . 441. Como defende J. L. Saldanha Sanches, A Reforma Fiscal Portuguesa numa Perspectiva Constitucional, CTF, n° 353, Lisboa, DGCI-MF, 1989, p. 47,a constitucionalização do direito fiscal representa uma evolução irreversível na sua evolução actual e será uma questão tanto mais aguda quanto mais intenso for o esforço estatal, quer para aumentar o nível das suas exacções tributárias, quer para reduzir o incumprimento das leis fiscais. A este respeito José Casalta Nabais fala das três notas que nos dão o retrato da Constituição Fiscal de 1976, Estudos de Direito Fiscal. Por um Estado Fiscal Suportável, Coimbra, Almedina, 2005, p. 122, apontando o seu carácter de constituição fiscal de transição (para o socialismo), a ideia de continuidade da constituição fiscal de 1933 e a sua integração por um programa de reforma fiscal próprio de um país economicamente desenvolvido. 126 A Constituição desenvolveu, em paralelo, princípios de raiz liberal, inerentes à ideia de Estado de Direito, como os da generalidade e legalidade tributária e o direito de resistência conh·a impostos ilegais. Por outro lado, distanciou-se da concepção da Constituição de 1933, como refere João Ricardo Catarina, Para uma Teoria Política do Tributo, ob. cit., p . 385, que via os impostos como direitos naturais do Estado, transpessoais ou transindividuais.
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uma constituição dirigente, ao pôr em causa o sistema existente, ditou soluções diferentes de enquadramento do regime fiscal 127 • Na verdade, logo no artigo 106°, n° 1 da Lei Fundamental, a propósito das finalidades do sistema fiscal, previu-se uma finalidade extrafiscal, de repartição igualitária da riqueza e dos rendimentos, em que era evidente a inspiração socialista da Lei Fundamental, elaborada numa época bem próxima do auge da revolução de 1974128 / 129, e uma finalidade fiscal, de satisfação das necessidades financeiras 130 . Tratou-se de uma fixação ideológica que levou mesmo a que se tenha omitido qualquer referência à eficácia na utilização dos recursos, ao crescimento económico, à regulação da procura global ou ao equilíbrio externo, objectivos prosseguidos pelos modernos sistemas tributários sem embargo de preocupações de justiça social. Mas a reforma da tributação não podia alhear-se das questões de fundo da recuperação económica, combinando-se, no quadro dos objectivos, com a promoção da expansão económica, a diminuição das desigualdades única via para garantir uma mais justa distribuição de um produto interno em crescimento 131 • Acresce que o programa de reforma fiscal foi ainda mais longe, sendo notória a percepção do legislador constitucional sobre as profundas mudanças que 127
Cf., J.J. Teixeira Ribeiro, A Reforma Fiscal, ob. cit., 97-120; Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, ob. cit., pp. 31-32; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Estudos de Direito Fiscal, ob. cit., pp. 185-187; António Carlos dos Santos, Políticas Orçamental e Fiscal: 20 Anos Depois, ob. cit., p. 442; Paulo de Pitta e Cunha, As Grandes Linhas da Reforma Fiscal de 1988-89, ob. cit., p. 19; José Casalta Nabais, A Constituição Fiscal de 1976, sua Evolução e seus Desafios, Anuário Português de Direito Constitucional, vol. II, ob. cit., p. 46. 128 Cf., J. J. Teixeira Ribeiro, O Sistema Fiscal na Constituição de 1976, in: A Reforma Fiscal, Coimbra, Coimbra Editora, 1989, pp. 98 e ss.; J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3a ed, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p. 457; Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p. 133. 129 Enquanto em Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, ob. cit., p. 31, se refere que as finalidades do sistema fiscal foram colocadas a par, Manuel Faustino, Evolução da Tributação do Rendimento. Da Tributação Parcelar ao Modelo IRS/IRC, in: As Reformas Fiscais dos Anos 80 e Perspectivas de Evolução (Repercussão ao nível dos contribuintes e da administração fiscal), Lisboa, AATP, 1995, p. 43, defende que, com a Constituição de 1976, fixou-se ao sistema fiscal um quadro intervencionista, ao impor-lhe como finalidade primacial "a repartição igualitária da riqueza e dos rendimentos" e, em plano secundário, "a satisfação das necessidades financeiras do Estado". A este propósito, José Casalta Nabais, A Constituição Fiscal de 1976, sua Evolução e seus Desafios, Anuário Português de Direito Constitucional, ob. cit., p. 46, para quem o primeiro objectivo do sistema fiscal não pode deixar de ser, porém, o da satisfação das necessidades financeiras do Estado, devendo a repartição igualitária da riqueza e dos rendimentos ser entendida basicamente como uma diminuição das desigualdades. 130 Estranhamente mencionada em segundo lugar, como sublinha J. J. Teixeira Ribeiro, A Reforma Fiscal, ob. cit., p. 98. 131 Nesta linha, Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p. 26-27. Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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cumpria realizar na esfera da relação jurídica tributária. Deste modo, o artigo 107°, n° 1 contemplou quatro impostos: dois sobre o rendimento -imposto sobre o rendimento pessoal e imposto sobre o rendimento das empresas -, um sobre o património- imposto sobre sucessões e doações- e um sobre o consumo, indicando soluções específicas em relação a cada um132 • No que toca ao imposto sobre o rendimento pessoal, o objectivo de diminuição das desigualdades justificou a previsão de um imposto único, global e progressivo 133, que havia de recair, portanto, sobre a totalidade do rendimento de cada contribuinte 134, aumentando a taxa à medida do aumento do rendimento do contribuinte 135 / 136 . Simultaneamente, estabeleceu-se também o dever de considerar as necessidades e os rendimentos do agregado familiar, forçando, por um lado, a que se atendesse ao conjunto dos rendimentos gerados pela unidade familiar e, por outro, a que se previssem as deduções ao rendimento ou à colecta reportados aos
132
Cf., José Casalta Nabais, A Constituição Fiscal de 1976, sua Evolução e seus Desafios, Anuário Português de Direito Constitucional, ob. cit., pp. 47-48; Manuel Pires, Alguns Aspectos da Reforma da Tributação do Rendimento das Pessoas Singulares, in: Colóquio sobre o Sistema Fiscal, Centro de Estudos Fiscais, Comemoração do XX Aniversário, Lisboa, CEF, DGCI-MF, 1984, pp. 168 e ss. 133 A referência constitucional ao carácter global do imposto pessoal, veio reforçar o significado quase "mítico" que foi conferido à adopção do imposto único, tida como a alteração de longe mais importante a ser proporcionada pela reforma fiscal dos anos oitenta. 134 Segundo Paulo de Pitta e Cunha, O Novo Sistema de Tributação do Rendimento, in: A Fiscalidade dos Anos 90, (Estudos e Pareceres), Coimbra, Almedina, 1996, pp. 11 e ss., "só a perspectiva unitária permite as deduções personalizantes, desde a dedução pessoal correspondente à porção do rendimento que se presume destinado à satisfação das necessidades básicas da vida, à dedução dos dependentes e à dedução por despesas pessoais especificadas, que só fazem sentido quando referidas ao rendimento global dos sujeitos passivos". 135 Na versão original, esta disposição previa ainda a imposição de o imposto tender a limitar os rendimentos a um máximo nacional, a definir anualmente por lei. Segundo J. L. Saldanha Sanches, A Reforma Fiscal Portuguesa numa perspectiva Constitucional, Ciência e Técnica Fiscal, n° 354, Lisboa, DGCI-MF, 1989, pp. 41 e ss., esta norma tinha subjacente uma concepção de uma acentuada função redistributiva do sistema fiscal, própria dos anos sessenta. As décadas seguintes implicaram um nível elevado de progressividade na tributação dos rendimentos do trabalho, para lá de dar origem a fenómenos de evasão e fraude fiscal. Donde a alteração da Constituição, podendo retirar-se a aceitação de limites à progressividade. 136 Como sublinha Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p. 138, o constrangimento constitucional, representado pela referencia ao carácter progressivo, ainda que actuando em sentido não convergente com a vaga predominante no mundo, não se mostrava incompatível com a prossecução de objectivos de eficiência e simplificação, que tinham um papel nuclear no âmbito da reforma fiscal.
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encargos da família 137 j 13s . Quanto à tributação sobre o rendimento das empresas, o artigo 107°, n° 2 veio estabelecer que a imposição havia de incidir fundamentalmente sobre o rendimento real, não o lucro normal. E, em relação ao imposto sobre sucessões e doações, o no 3 impôs a sua progressividade, com o propósito de contribuir para a igualdade dos cidadãos 139 • Por fim, no capítulo da tributação do consumo, o n° 4 apontou para a adaptação da estrutura do consumo às necessidades de socialização da economia, isentando os bens necessários à subsistência dos mais desfavorecidos e suas famílias e onerando os consumos de luxo. Deste modo, acabou-se por acolher uma directriz constitucional programática na linha da isenção dos bens de primeira necessidade e do agravamento da taxa sobre os bens sumptuários 140 . Então, ficou por demais evidente que as directrizes da Lei Fundamental entravam em choque com o sistema de impostos vigente, mostrando à saciedade a premência de uma nova reforma fiscaP 41 . Todavia, o ambiente político e económico que se seguiu à revolução de Abril de 1974, as consequências dos choques petrolíferos, bem como os graves desequilíbrios económico-financeiros que justificaram a celebração de dois programas de estabilização económica com o FMI, não proporcionaram as condições adequadas à realização da reestruturação global da fiscalidade portuguesa 142 . Pelo contrário, o sistema fiscal viu-se confrontado com uma sucessão de medidas requeridas pelo aumento desmesurado da despesa pública, baseadas no agravamento excessivo das taxas progressivas de tributação que, factor de 137
Neste sentido, entre outros, Diogo Leite Campos, Evolução e Perspectivas do Direito Fiscal, Rev. Ordem dos Advogados, 43-III, 1983, pp. 645 e ss.; Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., pp. 15-16, que sublinha que, com esta formulação constitucional, o modelo previsto reconduz-se aos conceitos tributários próprios das economias ocidentais descentralizadas, nada tendo a ver com a "tributação dos rendimentos da população", típica das economias colectivizadas. 138 Como sublinha Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., pp. 26 e ss., a previsão da tributação unitária do rendimento enquadrou-se em uma problemática mais vasta: a da caracterização do sistema económico e definição das suas condições de funcionamento. 139 Na versão original, previa-se ainda a imposição de considerar a transmissão por herança dos frutos do trabalho. 14 °Cf., J. J. Teixeira Ribeiro, O Sistema Fiscal na Constituição, ob. cit., p. 118. Neste sentido, António Carlos dos Santos, Políticas Orçamental e Fiscal Vinte Anos Depois, ob. cit., p. 442. 141 A manter-se o sistema de impostos vigente ia-se gerar uma situação de inconstitucionalidade por omissão, como adverte Manuel Faustino, Evolução da Tributação do Rendimento. Da Tributação Parcelar ao Modelo IRS/IRC, in: As Reformas Fiscais dos Anos 80 e Perspectivas de Evolução (Repercussão ao nível dos Contribuintes e da Administração Fiscal), Lisboa, Associação dos Administradores Tributários Portugueses, 1995, pp. 43 e ss. 142 Cf., Paulo de Pitta e Cunha, O Desafio da Integração Europeia, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n°s 247/249, Lisboa, DGCI-MF, 1979, pp. 203 e ss.
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ineficiência, fraude e evasão, foi ainda potenciado ora pela deterioração e paralisia funcional e qualitativa da Administração, ora pela lentidão da justiça fiscaP 43 . Daí que, sem embargo da imposição constitucional, tanto a crise do sistema fiscaP 44 - geradora de uma profunda erosão das bases tributáveis 145, insuficientes para responder aos crescentes compromissos financeiros do Estado -, como o afastamento da fórmula mista de tributação dos rendimentos146 - em que os impostos cedulares funcionavam como figuras independentes, dotados de um grau variável de progressividade, sem qualquer articulação entre si ou com o imposto complementar -, como ainda as graves injustiças a que a evolução do sistema acabava por dar lugar- patente na menor atenção conferida a objectivos de repartição equitativa da carga fiscal pela população147 - , tenham reforçado o carácter imperioso de uma nova reforma, capaz de definir uma estrutura fiscal moderna para satisfazer os objectivos de equidade, eficiência, simplicidade e certeza148 . 143
Cf., Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Estudos de Direito Fiscal, ob. cit., pp. 187-188. Sobre as causas da crise, Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., pp. 43 e ss.; António Carlos dos Santos, Política Orçamental e Fiscal20 Anos Depois, ob. cit., p. 443. 145 Segundo Manuel Faustino, As Motivações da Reforma da Tributação do Rendimento, ob. cit., p. 45, apontam-se como causas desse fenómeno: os procedimentos da administração fiscal, quer por acção, quer por omissão; o comportamento dos contribuintes, interessados em pagar o menos possível; a proliferação descontrolada de benefícios fiscais, em regra constantes de legislação avulsa; a introdução da progressividade nos impostos parcelares e as taxas proibitivas do imposto complementar, que chegavam a ser invocadas como desincentivo ao trabalho e, portanto, como fomentadoras do desincentivo à prossecução de actividades produtivas, preferindo-se a especulação cujos ganhos ou não eram tributados ou sendo-o, tinham taxas muito mais favoráveis. 146 Configurou-se, afinal, um sistema fiscal assente em uma multiplicidade de impostos, "complementada" por uma inúmera legislação avulsa, que constituía um verdadeiro "caos" legislativo, de onde a coerência e sistematicidade estavam praticamente ausentes. Neste sentido, o nosso sistema de tributação, com acentuação de características como a complexidade excessiva, a desigualdade de tratamento, o estreitamento das bases de tributação, o agravamento crescente das taxas nominais, saldava-se pelo desincentivo à poupança e aplicação ao trabalho e de estímulo à evasão, como assinala Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p. 83, bem como pela instabilidade e falta de coerência interna do regime das diferentes categorias fiscais e a deficiente articulação entre umas e outras. 147 Tratava-se do reconhecimento das graves injustiças a que a evolução do regime tributário havia dado lugar, pela importância excessiva atribuída a objectivos de redistribuição vertical, sem atender à conveniência, prioritária, de assegurar a repartição equitativa da carga fiscal pelos contribuintes, que constitui, afinal, uma condição indispensável da aceitação de um sistema fiscal, como bem defende Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p. 52. 148 A incapacidade do sistema nascido da reforma da década de sessenta de evoluir no sentido da modernidade e das próprias exigências do desenvolvimento económico pesou fortemente sobre a reforma dos anos oitenta, já que se tratava de adoptar modelos básicos de tributação que se desviavam radicalmente dos existentes, como sublinha José Guilherme Xavier de Basto, O IRS na Reforma Fiscal de 1988/89, in: 15 Anos da Reforma de 1988/89, Coimbra, Almedina, 2005, p. 53, o que requeria uma transformação signifi144
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Assim, à consagração constitucional associou-se a consciência da desagregação progressiva do sistema tributário, o seu desajustamento face à realidade económico-social nacional e a necessidade de renovação das estruturas fiscais, num contexto em que pontuavam o envolvimento do País no movimento de integração económica prosseguido pelas Comunidades Europeias e, em consequência, as adaptações do sistema fiscal dai emergentes.
5.3.2. Os Principais Eixos da Reforma Fiscal de 1988-1989 A reforma fiscal de 1988-1989, orientada, em primeira linha, no sentido da substituição dos impostos parcelares pela tributação unitária do rendimento mediante a instituição de um imposto tendencialmente único e progressivo sobre o rendimento globaP 49 , provocou uma verdadeira transformação do sistema fiscal
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cativa tanto ao nível legislativo, como das práticas administrativas. Tratava-se de um modelo tradicionalmente implantado no mundo anglo-saxónico e germânico, que havia sido de introdução, algo tardia, em sistemas de raiz latina, como acentua Paulo de Pitta e Cunha, As Grandes Linhas da Reforma Fiscal de 1988/89, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, ob. cit., p . 20. Ao tempo da criação da Comissão de Reforma Fiscal já a respectiva conversão se operara há bastante tempo: na Bélgica, em 1963 na Itália, em 1973; em Espanha, em 1978. Assim, na OCDE, Portugal estava na posição pouco invejável de figurar como o último portador da fórmula dualista, a par, no plano extra-europeu de certos países da América Latina e, ainda, pelo Egipto, Síria e Líbano.
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português 150 j151 • Colmatou-se, assim, um atraso de décadas, pondo termo à pesada carga de cepticismo em relação à vontade e capacidade de concretizar um desígnio que, tantas vezes anunciado, mas de cada vez remetido para uma futura
150 O labor da Comissão da reforma de 1988-1989 não se circunscreveu à reestruturação dos tributos sobre o rendimento, embora aí tenha radicado o centro da iniciativa. Criou também a Contribuição Autárquica, um imposto sobre o valor patrimonial dos prédios rústicos e urbanos, em obediência a considerações das finanças locais, como sustenta Manuel Porto, A Tributação Local na Reforma Fiscal de 1988/89. Uma Avaliação 15 Anos Depois, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, Coimbra, Almedina, 2005, pp. 277 e ss. e, do mesmo Autor, A Reforma Fiscal Portuguesa e a Tributação Local, in: Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, Faculdade de Direito de Coimbra, no especial, Coimbra, 1984, pp. 151 e ss. De facto, nas receitas locais anteriores à reforma incluía-se a receita de um dos impostos parcelares - a contribuição predial- incidente sobre o rendimento real e imputado a prédios urbanos e sobre a renda fundiária dos prédios rústicos. Ora, com o novo sistema da tributação sintética, o englobamento de, pelo menos, alguns destes rendimentos tornava-se inevitável, pelo que a reforma não podia aqui evitar as decorrências do anterior regime do financiamento local. Assim, optou-se pela criação de um imposto patrimonial - a contribuição autárquica -, uma figura tributária corrente nos países da OCDE, assistindo-lhe, geralmente, a função de financiar a Administração Local. Então, a contribuição autárquica não representou uma mera substituição da contribuição predial, como defende Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Estudos de Direito Fiscal, ob. cit., pp. 199 e ss., tendo constituído antes um novo imposto, com carácter proporcional, incidente sobre o valor patrimonial dos prédios, que devia ser determinado com base num código das avaliações. Nesta medida, como assinala Luís Magalhães, O IRC no Contexto Internacional, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, ob. cit., p. 194, procedeu-se à instituição de um imposto que tributa a riqueza sob a forma de detenção do património imobiliário, que passa a ser tributado ainda que não gere rendimento, deixando este reconduzido à incidência do imposto sobre o rendimento das pessoas singulares e do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas, como refere António da Rocha Vaz, A Evolução da Tributação do Património, Lisboa, AATP, pp. 65 e ss. Desta maneira tornou-se legítimo afirmar que a contribuição autárquica acabou por preencher o vazio existente no tocante à tributação de prédios não arrendados. Paralelamente, decidiu-se proceder à reformulação unitária dos benefícios fiscais que haviam proliferado no anterior regime, havendo sido autorizada, pela Lei n° 8/89, de 12 de Abril, a aprovação de um Estatuto dos Benefícios Fiscais, concretizada pelo Decreto-Lei n° 215/89, de 1 de Julho. 151 A contribuição autárquica, considerada por Teixeira Ribeiro, Sistema Fiscal Português. Anos 60 - anos 90, in: Documentos do IESF, n° 1 - Conferências Portugal anos 60-anos 90, 1990, pp. 29 e ss., como um imposto pouco feliz, em primeiro lugar, porque substitui a tributação progressiva da renda normal dos prédios pela tributação proporcional do valor destes; e, em segundo lugar, porque se mostra regressiva relativamente ao património dos contribuintes, dada a actual tendência para a percentagem do valor dos bens imóveis no património ir diminuindo à medida em que este aumenta.
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oportunidade, à data era já exigido pelo próprio texto constitucionaP 52 j153 • Na verdade, a evolução do sistema fiscal resultante da reforma dos anos sessenta, em lugar de haver ficado marcada pela conversão paulatina do imposto complementar em "imposto principal" 154, mantendo ainda a gravitar à sua volta os impostos parcelares como formas de tributação "por conta" e operando por deduções à colecta, deixara evidente que o Estado contava de forma crescente com as receitas provenientes de impostos menos aptos a traduzirem preocupações personalizantes 155 ou até mesmo desprovidos de justificação económica 156 • Havia-se assistido, por conseguinte, ao reforço do papel e da autonomia dos impostos cedulares, que passaram a gozar de uma manifesta preponderância, patente na introdução de progressividade no âmago das próprias cédulas. Tratara-se de uma real involução para o protótipo cedular, consubstanciada na consagração dos impostos parcelares como factores centrais da tributação e afundando-se o imposto complementar na zona das categorias mais débeis da tabela das receitas fiscais. Donde o retardamento da passagem ao estádio intermédio do sistema misto, com o imposto global a tornar-se cada vez mais complementar e cada vez menos principaP57 • Daí que, nos anos oitenta, a adopção da fórmula tributária unitária tenha constituído um importante passo em frente que, ao viabilizar a superação das deficiências inerentes ao modelo de tributação parcelar, foi igualmente ao encontro das fórmulas há muito consagradas quer pelos Estados membros da CEE, quer 152
Como sublinha Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p. 83, realizava-se a reforma da tributação do rendimento, que há muito se sabia constituir uma das traves-mestras da indispensável modernização do País, pondo assim termo a uma série de iniciativas sem continuidade e que haviam mesmo chegado a alimentar a descrença sobre a capacidade de empreender esta acção fundamental da organização económica e de realização da justiça social. 153 Quando a Comissão de Reforma Fiscal foi nomeada já havia decorrido quase uma década desde a introdução na Constituição da referencia à fórmula unitária e sido feitas repetidas reflexões convergindo na necessidade de uma profunda remodelação das estruturas fiscais. Neste sentido, Paulo de Pitta e Cunha, As Grandes Linhas da Reforma Fiscal de 1988/89, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, ob . cit., p. 20. 154 Cf., Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., pp. 19 e ss. Neste sentido, Abel L. Costa Fernandes, Algumas Notas sobre a Reforma Fiscal de 1988, Fisco, Ano 1, n° 9, 1989, p. 18, para quem o imposto complementar constituía um sucedâneo imperfeito do imposto único, quer pela sua pouca transparência, quer pelos custos administrativos e de cumprimento adicionais que implicava, quer, ainda, pela deficiente afectação de recursos económicos, uma vez que alguns deles eram subtraídos a aplicações alternativas socialmente mais produtivas. 155 Era o caso do imposto de transacções que, em espectacular ascensão, garantia já praticamente um quarto das receitas tributárias. Nesta linha, Abel L. Costa Fernandes, Algumas Notas sobre a Reforma Fiscal de 1988, ob. cit., pp. 18 e ss. 156 Era o caso do imposto do selo. 157 Cf., Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p. 20.
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por países no plano pluricontinental da OCDE, à margem de qualquer imposição constante de acordos internacionais, mostrando-se ditada, antes, por uma forte determinação em superar os traços de arcaísmo que imbuíam ainda a nossa fiscalidade. Nesta medida, o principal elemento da nova reforma residiu, naturalmente, na substituição do sistema misto com preponderância dos elementos cedulares pela fórmula de tributação unitária, sujeitando a totalidade dos rendimentos individuais a uma tabela única de taxas escalonadas em progressividade. Uma solução superior 158, numa perspectiva de equidade, seja à fórmula cedular159, seja à modalidade compósita 160, uma vez que pronta a assegurar a distribuição da carga fiscal segundo um esquema racional de progressividade em função da capacidade contributiva, justificada pela necessidade de corrigir a distribuição do rendimento e servindo como factor compensador de aspectos de regressividade constantes de outras áreas do sistema tributário. Ora, embora haja saltado o estádio intermédio do sistema misto, a reforma assumiu frontalmente o esquema da tributação unitária, não acolhendo uma perspectiva "gradualista"161 • De facto, a Comissão de Reforma, sem deixar de atender em numerosos aspectos a preocupações de gradualismo, optou sem hesitações por uma abordagem dirigida à própria fisionomia essencial do sistema 162 . No final, a reforma da tributação do rendimento comportou vários traços inovadores, tendo o mais importante residido na completa transformação da morfologia da estrutura fiscal, consagrando um sistema moderno de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares e de imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas. Deste modo, no que concerne à construção do conceito de rendimento tributável, a globalização norteou-se por uma concepção ampla- a perspectiva patrimonial-, presente quer no tratamento dos rendimentos individuais, quer na 158
Cf., Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p. 85. e 162. Do mesmo Autor, A Reforma Fiscal- A Unicidade do Imposto e as taxas, Rev. Ordem dos Advogados, ano 48, III, 1988, p. 684 e ss. 159 A fórmula cedular firmava-se em impostos separados e não articulados, incidentes sobre as diversas fontes de rendimento, como assinala Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p. 85. 160 A fórmula compósita era fruto, em regra, de uma progressão operada a partir de uma estrutura parcelar, em que a um esquema de impostos cedulares se sobrepõe uma tributação de segundo grau com natureza global, como destaca Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p. 85. 161 Em geral, na realização de reformas fiscais e, sobretudo, de reformas de tributação do rendimento, recomenda-se uma orientação gradualista, invocando factores como a especial complexidade dos sistemas, os constrangimentos orçamentais, o peso da eventual reacção de grupos de contribuintes mais directamente afectados pelas modificações previstas. 162 Cf., Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., pp. 89-90.
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definição do lucro no plano societário. Com efeito, os objectivos tanto de equidade, eficiência e simplicidade, como de aumento da receita fiscal que inspiraram a reforma163 , além de determinarem o acolhimento do sistema de tributação unitária, ditaram ainda o estabelecimento de uma maior aproximação ao conceito de rendimento-acréscimo, uma noção mais compreensiva que inclui na base de incidência do imposto todo o aumento do poder aquisitivo, como as mais-valias 164 e, em geral, as receitas irregulares e os ganhos fortuitos 165 • Deste modo, acabou por verificar-se a substituição da definição firmada nas fontes produtivas, inerente à morfologia cedular do sistema tributário até aí vigente 166 • 163
Tratou-se de um leque de objectivos que presidiram também à generalidade das reformas fiscais dos anos oitenta, 164 A tributação das mais-valias esteve por trás de uma assinalável controvérsia entre o Governo e a Comissão de Reforma. Com efeito, tendo em conta que a essência da reforma se traduzia na adopção do imposto único sobre o rendimento, ou seja, na adopção de um sistema de tributação global, caracterizado pela sujeição, em princípio, da totalidade dos rendimentos individuais a uma única taxa escalonada em progressividade, a consagração de um importante leque de taxas liberatórias veio corporiza1~ desde o início, uma distorção do modelo. De facto, a Comissão, como atesta Paulo de Pitta e Cunha, O Andamento da Reforma Fiscal, in: A Fiscalidade dos Anos 90, ob. cit., pp. 6467, ciente da necessidade de fazer algumas concessões em relação à pureza do modelo de tributação global, admitiu que, sem prejuízo da expressa opção do titular em sentido contrário, não fossem englobadas certas espécies de rendimentos de capitais e de mais-valias, atenta a impossibilidade de individualização de tais rendimentos para efeitos de englobamento. Contudo, a posição do Governo evoluiu no sentido de que fossem fixadas taxas liberatórias em relação às categorias dos rendimentos de capitais e mais-valias, que ficariam assim excluídas da tributação pessoal global para se sujeitarem a taxas constantes, de nível inferior ao das taxas progressivas que atingiam os rendimentos do trabalho e prediais. Uma posição não aceite pela Comissão, segundo Paulo de Pitta e Cunha, O Andamento da Reforma Fiscal, ibidem, p. 66, que sustentou que, para o aludido princípio continuar a ser matriz do imposto e da reforma, os regimes especiais de taxas que fossem admitidos deviam confinar-se a casos bem delimitados e referidos a situações em que não se tornasse possível a identificação dos titulares dos rendimentos. No final, a solução vertida no código do IRS traduziu um compromisso entre ambas as posições: assim, da exclusão integral das categorias E e G, como pretendia o Governo, passou-se a uma exclusão meramente parcial, como havia aceite a Comissão. Sobre a tributação liberatória, Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal- A Unicidade do Imposto e as Taxas, ob. cit., p. 694-695; Joaquim Águeda Petisca, Uma Opção para a Reforma do IRS, Ciência e Técnica Fiscal, n° 186, Lisboa, DGCI-MF, 2000, pp.222 e ss. 165 Como salienta José Guilherme Xavier de Basto, O IRS na Reforma Fiscal de 1988/89, in: 15 Anos da Reforma de 1988/89, ob. cit., p. 75, já desde a reforma dos anos sessenta se tributavam algumas mais-valias, através do designado "imposto de mais-valias", imposto real que, todavia, não influía na base de incidência do imposto complementar. 166 Cf., Paulo de Pitta e Cunha, As Grandes Linhas da Reforma Fiscal de 1988-89, ob. cit., p. 21.
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Acolheu-se, portanto, uma concepção de rendimento tendencialmente ampla, à semelhança da maior parte dos países da OCDE167, com maior nitidez do que na reforma anterior em que as mais-valias, objecto de uma categoria fiscal específica, eram excluídas do âmbito de incidência do imposto complementar. Contudo, o princípio do englobamento dos rendimentos das diferentes categorias - que tem de constituir, no sistema do imposto único sobre o rendimento pessoal, o princípio básico de determinação do rendimento colectável- veio a sofrer significativos entorses com a imposição de taxas liberatórias para a generalidade dos rendimentos de capitais. Por outro lado, não obstante o carácter unitário do imposto, foram admitidos elementos analíticos168, tal como, aliás, nas experiências de direito comparado. Comportou-se assim a divisão interna em categorias ou classes de rendimentos que, procurando cobrir no seu campo de previsão todas as formulações contratuais susceptíveis de terem como consequência a percepção de rendimento, constituíam, de certo modo, uma "reminiscência do tratamento separado que no anterior sistema se fazia em cédulas diferenciadas até final" 169 . No entanto, a circunstância de o rendimento tributável se repartir por diferentes categorias não permitiu inferir que o sistema haja retido a natureza cedular170. Esteve em causa uma divisão recomendada pela diversidade dos regimes de tributação, sobretudo no campo da determinação do rendimento e dos métodos de percepção do imposto sem prejuízo do tratamento unitário da matéria colectável, visto a tributação ser realizada por forma unitária mediante o englobamento do conjunto dos rendimentos 171 , sendo o resultado final apurado sujeito a tributação através de uma tabela única de taxas progressivas em que reside a essência da fórmula unitária então assumida. De assinalar ainda, no que concerne à definição de sujeito passivo, que, oscilando entre a manutenção da concepção tradicional da fiscalidade portuguesa, que vê no agregado familiar o pólo da sujeição ao imposto pessoal de rendimento, e o estabelecimento da tributação separada a nível individual, pesou mais a 167
Neste sentido, Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., 91 e ss.; António Manuel Cardoso da Mota, A Tributação Unitária do Rendimento (IRS e IRC), Coimbra, Coimbra Editora, 1990, pp. 21 e ss. 168 Cf., Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p . 163; do mesmo Autor, As Grandes Linhas da Reforma Fiscal de 1988-89, ob. cit., p. 23, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Estudos de Direito Fiscal, ob. cit., pp. 191-196; José Guilherme Xavier de Basto, IRS na Reforma Fiscal de 1988/89, in: 15 Anos da Reforma de 1988/89, ob. cit., pp. 76-77. 169 Cf., Paulo de Pitta e Cunha, As Grandes Linhas da Reforma Fiscal de 1988-89, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, ob. cit., p . 23. 17 °Cf., Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p . 153. 171 O englobamento dos rendimentos das diferentes categorias constituiu, como salienta, entre outros, José Guilherme Xavier de Basto, IRS na Reforma Fiscal de 1988/89, in: 15 Anos da Reforma de 1988/89, ob. cit., p. 78, o princípio básico da determinação do rendimento colectável.
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visão da interdependência da família como unidade básica para a tomada de decisões de despesa e centro de partilha do rendimento auferido. Afinal, uma posição consonante com o normativo constitucional que mandava atender às necessidades e aos rendimentos do agregado familiar, não obstante a Comissão conhecer a tendência, já então clara, das legislações para a adopção de tributação separada dos rendimentos dos cônjuges e as vantagens de neutralidade face ao regime alternativo de tributação conjunta 172 • Contudo, porque se impunha resolver o problema da penalização que, no sistema de taxas progressivas, decorre da tributação conjunta dos rendimentos do casal - uma penalização contrária ao comando constitucional de protecção do agregado familiar -, foi avançada a modalidade do coeficiente conjugal - "incame splitting" -, assente no pressuposto de que o casal, tratado como uma unidade contributiva única, partilha em partes iguais o rendimento produzido 173 / 174 . No que concerne ao imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas 175, tornou-se ainda mais visível a perspectiva do rendimento-acréscimo na definição do lucro tributário 176 / 177 . Um domínio em que o novo imposto passou a ter em vista tributar, de acordo com os princípios da universalidade e da territorialidade, a generalidade das pessoas colectivas e entidades equiparadas, em função do 172
A interpretação do n° 1 do art. 0 104° da CRP, sendo geralmente lida no sentido da tributação dever tomar em conta os rendimentos e as necessidades do agregado familiar, não concitava a unanimidade, inibindo contudo um sistema de tributação sep arada. 173 Cf., Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., pp. 106-107; Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Estudos de Direito Fiscal, ob. cit., pp. 196. 174 Ao propor esta hipótese, a Comissão admitiu estar, porventura, perante um regime transitório, antecipativo da consagração, em momento ulterior, de fórmulas de tributação separada. 175 Trata-se de um imposto cuja criação insere-se na filosofia que informou a reforma fiscal, nomeadamente na integração dos vários rendimentos no imposto único. Deste modo, através da noção de lucro adop tada, o Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas fundiu a base de incidências de anteriores impostos: contribuição industrial, imposto sobre a indústria agrícola e o imposto de mais-valias na parte relativa à transmissão, a título oneroso, de elementos do activo imobilizado, incluindo os terrenos para construção e as partes sociais que o integram, cf., Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, ob. cit., pp. 242 e ss. A propósito da "velha" contribuição industrial, entendemos, com Paulo de Pitta e Cunha, A Fiscalidade dos Anos 90, ob. cit., p. 36, que, pelo facto de incidir sobre o lucro global determinado na base da contabilidade, constituía já um embrião de um verdadeiro imposto de sociedades. 176 Cf., Nuno Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, vol. I, Lisboa, Editora Rei dos Livros, 1999, pp. 170 e ss. 177 A introdução do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas veio promover também o preenchimento de vazios da lei fiscal, como defende Luís Magalhães, O IRC no Contexto Internacional, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, Coimbra, Almedina, 2005, p. 196, que se traduziam na existência de realidades não tributáveis até aí, mormente os ganhos obtidos na venda de participações financeiras. Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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rendimento por elas auferido, independentemente de ser ou não resultante da participação na actividade produtora. Nesta medida, a base tributável do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas, indo ao encontro do normativo constitucionaP 78 / 179, orientou-se no sentido da tributação das empresas pelo seu rendimento real, efectivo ou presumido, determinado pela diferença entre o valor do património líquido no fim e no início do período de tributação180, uma fórmula que, tendo constituído a pedra-de-toque da reforma dos anos sessenta, acabou por sair particularmente reforçada. Assim, sem embargo da aplicação de métodos indiciários não haver sido completamente posta de lado, o certo é que o campo de utilização de presunções veio a sofrer uma redução substanciaP 81 jl82 • Quanto à articulação de ambas as categorias fiscais -imposto pessoal sobre o rendimento das pessoas singulares e imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas -, que configurava uma tendência evidente das legislações nacionais em finais da década de oitenta, vingou uma solução moderada de crédito parcial de imposto concedido aos titulares de lucros distribuídos, que a Comissão de reforma encarou ser passível de evolução, porventura no sentido de uma inte178
Cf., Artigo 107°, no 2 da CRP. Para lá do imperativo constitucional, confiança, que se veio a revelar demasiado optimista, na capacidade da inspecção tributária em controlar adequadamente as declarações e os registos dos sujeitos passivos e, ainda, a reacção natural e saudável contra os excessos de determinação da matéria colectável até aí vigentes, herdados do regime político anterior e revelando uma concepção autoritária da Administração fiscal, terão explicado a solução radical da Reforma de 1988/89. Neste sentido, José Guilherme Xavier de Basto, O IRS na Reforma Fiscal de 1988/89, ob. cit., pp. 82-83. 180 Segundo Luís Magalhães, O IRC no Contexto Internacional, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, ob. cit., pp.194, no final da contribuição industrial, a circunstância de a generalidade das empresas se encontrarem incluídas no Grupo A implicava que fossem tributadas sobre o rendimento apurado a partir das respectivas demonstrações financeiras. Neste sentido, Henrique Medina Carreira, A Tributação das Sociedades na Constituição e na Reforma de 1988/89, 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, ob. cit., pp. 146-147. 181 O critério introduzido em 1988/99 tornou casuística a aplicação dos "métodos indiciários", depois da verificação pelo director distrital das circunstâncias concretas e individuais impeditivas do conhecimento do lucro "real". Assim, como refere Medina Carreira, A Tributação das Sociedades na Constituição e na Reforma de 1988/89, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, ob. cit., p. 147, à partida, todas as sociedades estavam, potencialmente, sujeitas à determinação do lucro real. Porém, a experiencia viria a mostrar que, na maioria dos casos, Administração fiscal se contentaria com o resultado, positivo ou negativo, constante da declaração. Na prática, em lugar do "real" imperou o "declarado". 182 Cf., Rogério Fernandes Ferreira, Reflexão sobre a Fiscalidade Existente, in: As Reformas Fiscais dos Anos 80 e Perspectivas de Evolução, Seminário Associação dos Administradores Tributários Portugueses, Lisboa, 1995, pp. 30 e ss. 179
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gração total, com a consequente eliminação da dupla tributação económica183 jl 84 • No tocante aos níveis de taxas, entendeu-se que se, por um lado, as referências constitucionais à repartição igualitária como finalidade do sistema fiscal apontavam para uma estrutura de taxa progressiva- exigência explícita, aliás, na configuração do imposto pessoal sobre o rendimento-, por outro, não eram proibitivas de uma orientação que correspondia a uma afirmação clara do princípio de atenuar a intensidade da incidência. Donde ter-se tido em conta o objectivo de promoção do desenvolvimento e do acréscimo de bem-estar, no âmbito de uma economia mista e social de mercado em que o papel da iniciativa privada é determinante, e atendido à preocupação de evitar níveis nominais de taxas dos impostos inaceitavelmente elevados, fruto mais da premência na obtenção de receitas do que da aplicação de critérios de justiça fiscal. Em termos globais, ficou clara a pretensão de inscrever a reforma fiscal no âmbito da vaga de fundo que inspirava a adaptação dos sistemas tributários do rendimento dos principais países industrializados 185 • À guisa de balanço, sempre se dirá que a reforma fiscal de 1988-1989, além de cumprida a finalidade dominante de introduzir o conceito unitário de tributação do rendimento, promovendo uma alteração de importância fundamental na longa história da fiscalidade portuguesa, alcançou também o objectivo de racionalizar e melhorar a estrutura fiscal, prestando a devida atenção à necessidade de realizar os objectivos de simplicidade, equidade e eficiência186 j1 87 • 183
Uma solução prudente, segundo a qualificação de José Guilherme Xavier de Basto, O IRS na Reforma Fiscal de 1988/89, ob . cit., p.81, já adoptada por várias legislações e de existiam, ao tempo, indícios - materializados em uma proposta de directiva comunitária - de que poderia vir a constituir o sistema comum europeu em sede de relações entre ambos os impostos sobre o rendimento. O que, porém, até ao presente ainda não ocorreu. 184 Sobre as soluções adoptadas por diversos sistemas fiscais para a eliminação da dupla tributação económica sobre os lucros distribuídos, cf., Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Estudos de Direito Fiscal, ob. cit., p. 197. 185 Neste sentido, Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal, ob. cit., p. 105, ao sublinhar que no caso português o alargamento da base, a redução das taxas marginais e a tónica de simplificação constituíam preocupações assumiam, porém, um carácter de especial urgência, uma vez que a hipertrofia das taxas, o encolhimento do campo de incidência pessoal e real e a complexidade dos dispositivos, dos formulários e das obrigações se haviam convertido em vícios centrais da estrutura fiscal portuguesa 186 Os textos legislativos, pela sua qualidade intrínseca, foram objecto de referências favoráveis da parte do FMI e da OCDE, como realça João Ricardo Catarino, Para uma Teoria Política do Tributo, ob. cit., p. 322.
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Concluídos os trabalhos preparatórios, foi publicada a Lei n° 106/88, de 17 de Setembro, que permitiu ao Governo aprovar a reforma fiscal, havendo sido aprovados o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (Decreto-Lei no 442-A/88, de 30 de Novembro), o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (DecretoLei n° 442-B/88, de 30 de Novembro) e o Código da Contribuição Autárquica (Decreto-
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Todavia, as boas intenções expressas na presente reforma, tal como as preconizadas anteriormente na de 1922, não lograram vencer a força da realidade e as circunstâncias. Daí que, perante as práticas evasivas, não só geradoras de graves distorções dos princípios da equidade e da justiça tributárias e da própria eficiência económica, mas também lesivas da estabilidade das receitas fiscais, dez anos depois o sistema fiscal haja conhecido o "pagamento especial por conta" 188, com um lugar equivalente ao da "taxa anual" de 1922, ficando os contribuintes obrigados à realização de uma prestação tributária antecipada, dedutível da colecta liquidada sobre o valor dos lucros obtidos posteriormente. Afinal, uma aproximação a um "imposto mínimo" notoriamente penalizante das pequenas e médias empresas, que se limitava a dissimular um imposto sob a aparência de um "empréstimo forçado" 189 .
6. Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido 6.1. O Desenvolvimento da Reforma Fiscal
De um modo geral, a reforma fiscal constitui desde sempre uma preocupação permanente dos Governos que fazem da Fiscalidade uma "bandeira" recorrente, muito embora tenda a configurar uma tarefa jamais finalizada. Neste contexto, apesar da profunda transformação fiscal realizada no final da década de oitenta, a reforma do sistema tributário manteve-se na ordem-do-dia, essencialmente por duas ordens de razões: a necessidade de reformar o que não foi abrangido com o último impulso reformador: é o caso da tributação do património que, em bom rigm~ ficou praticamente intocada em 1988-1989190 e, Lei n° 442-C/88, de 30 de Novembro). Paralelamente, decidiu-se proceder à reformulação unitária dos benefícios fiscais que proliferavam no anterior regime. Posteriormente, já no ano de 1990, foram publicadas as novas leis relativas às infracções fiscais (Decreto-Lei n° 376-A/90, de 25 de Outubro, no tocante ao Regime das Infracções Fiscais Aduaneiras) e Decreto-Lei n° 20-A/90, de 15 de Janeiro, quanto ao novo Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras). Por fim, em 1991, foi aprovado pelo Decreto-Lei n° 154/91, de 25 de Abril, um novo Código de Processo Tributário. 188 O Pagamento Especial por Conta surgiu na Lei do Orçamento do Estado para 1998. A propósito do Pagamento Especial por Conta, entre outros, Henrique Medina Carreira, A Tributação das Sociedades na Constituição e na Reforma de 1988/89, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, ob. cit., pp. 148-153; Luís Belo, O Pagamento Especial por Conta no âmbito do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades, Fisco, n° 1077108,2003, pp. 3 e ss.; Sanches, J.L./ André Salgado de Matos, O Pagamento Especial por Conta de IRC: questões de conformidade constitucional, Fiscalidade, n° 15, Lisboa, ISG, 2003, pp. 5 e ss. 189 Cf., Henrique Medina Carreira, A Tributação das Sociedades na Constituição e na Reforma de 1988/89, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, ob. cit., p. 150 190 A reforma de 1988/1989 previu, em substituição da contribuição predial, a contribuição
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bem assim, o imperativo de "reformar a anterior reforma" no sentido de suprir as deficiências e distorções entretanto detectadas. Em relação à reestruturação da tributação dos anos oitenta, a reforma imprimida, que foi recebida de início com alguma reticência pela opinião pública191 apesar da substituição de uma parafernália de impostos por um tributo único, veio a revelar-se não só de aplicação inteiramente pacífica 192, como ainda geradora de um significativo aumento das receitas tributárias 193 • Todavia, o bom acolhimento do modelo adoptado não se fez acompanhar da perenidade da legislação então produzida, consideradas as múltiplas alterações sofridas pelos códigos por via das sucessivas Leis do Orçamento de Estado 194 j195 , acabando a fase de arranque do sistema remodelado de tributação do rendimento por ficar marcada, de forma indelével, por uma acentuada instabilidade legislativa196. Por sua vez, um ano após o início de vigência dos novos códigos, não obsautárquica e, apesar do preâmbulo do respectivo código anunciar para breve a aprovação do Código de Avaliações, como parte inseparável dessa reforma, vicissitudes várias levaram a que o mesmo nunca tivesse "visto a luz do dia", gerando-se uma situação que, com o andar dos anos, gerou uma situação que José Casalta Nabais refere como "situação de intolerável inconstitucionalidade da tributação do património", Por um Estado Fiscal Suportável. Estudos de Direito Fiscal, Coimbra, Almedina, 2005, pp. 230 e ss. 191 Uma situação susceptível de ser explicada pelo facto da Reforma haver sido lançada num contexto de alguma precipitação e incerteza. A este respeito, Paulo de Pitta e Cunha, O Novo Sistema de Tributação do Rendimento, in: A Fiscalidade dos Anos 90, Coimbra, Almedina, 1996, pp. 17 e ss. 192 Excepção feita à contribuição autárquica, de aplicação problemática, apenas tendo significado económico relativamente aos imóveis novos, como sustenta Luís Manuel de Menezes Leitão, Estudos de Direito Fiscal, ob. cit., pp. 200-202, perante a dificuldade política em aprovar o código de avaliações. 193 Cf., OCDE, Estudos Económicos da OCDE, Portugal1990/1991. 194 Sobre as principais alterações legislativas introduzidas nesse período, quer ao nível do IRS quer do IRC, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Estudos de Direito Fiscal, ob. cit., pp.204-205. Neste sentido, segundo Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal a Caminho do Primeiro Ano, in: A Fiscalidade dos Anos 90, ob. cit., p . 42., "dez meses passados sobre o início de aplicação da reforma, as débeis medidas legislativas que se anunciam mais parecem revelar uma inquietante auto-satisfação pela obra realizada do que a consciência da necessidade de se corrigirem importantes desvios praticados em relação ao modelo configurado". 195 Iniciou-se a "saga" da utilização da lei do orçamento de Estado para operar a transformação evolutiva da reforma fiscal. Esta opção foi criticada- e é criticável - , na medida em que a revisão anual de novas regras, algumas de natureza substancial, v.g., normas de incidência tributária, podem pôr em causa princípios fundam entais de direito fiscal que se traduzem pela certeza e estabilidade das relações entre o fisco e os contribuintes. 196 Cf., Paulo de Pitta e Cunha, A Reforma Fiscal a Caminho do Primeiro Ano, in: A Fiscalidade dos Anos 90, ob. cit., pp. 39 e ss., Henrique Medina Carreira, Uma Reforma Fiscal Falhada?, Lisboa, Editorial Inquérito, 1989, pp. 48 e ss. Lusíada. Direito. Lisboa, n.0 8 I 9 (2011)
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tante o sistema de tributação directa se mostrar operacional por via seja dos esforços envidados para melhorar a eficácia da máquina administrativa, seja da generalização da prática de retenção na fonte, seja ainda de se haver conferido uma larga autonomia às fórmulas analíticas sucessoras das categorias cedulares, observou-se que o legislador fiscal tinha introduzido um sistema que ficara aquém do nível desejável de realização dos objectivos visados em termos de eficiência, equidade e simplificação 197 • Mesmo assim o sistema manteve-se estável no tocante à nova morfologia 198, não tendo as modificações introduzidas prejudicado o carácter globalmente positivo da reforma, embora fosse indesmentível que os aperfeiçoamentos entretanto operados haviam contribuído para lhe aumentar a complexidade, comprometendo o objectivo de simplicidade que deve, afinal, presidir a qualquer reforma fiscaP 99 • Mas no âmbito da evolução do sistema fiscal, entre 1991 e 1993, num ambiente económico de caráceter recessivo 200 , veio a ser posta a descoberto uma verdadeira crise fiscal do Estado 201 j2°2, cujo significado extravasou as meras baias do 197
Como é salientado em Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, ob. cit., pp. 229-230, quer o desenho inicial do imposto, como havia sido consagrado no Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, quer as alterações legislativas posteriores, quer ainda a prática do imposto afastaram-se da filosofia originária, com prejuízo dos princípios do englobamento e da progressividade, e, consequentemente, do princípio da igualdade horizontal e vertical, sem que daí houvessem resultado ganhos visíveis de eficiência tributária ou económica. 198 Em sentido contrário, Paulo de Pitta e Cunha, O Andamento da Reforma Fiscal, in: A Fiscalidade dos Anos 90, ob. cit., p. 66. 199 Cf., Rogério Fernandes Ferreira, Reflexões sobre a Fiscalidade Existente, in: As Reformas Fiscais dos Anos 80 e Perspectivas de Evolução, Lisboa, AATP, 1995, pp. 30-42. 200 No âmbito da verdadeira evolução da reforma fiscal a que se vinha assistindo, as alterações legislativas provocadas pelo exercício de 1993, em que se verificou uma deterioração das contas públicas, levando o défice a rondar os 8% do PIB e fazendo perigar a possibilidade de Portugal integrar o pelotão da frente dos países fundadores da União Económica e Monetária, justificaram que tanto o orçamento desse ano, como do ano seguinte hajam introduzido restrições fiscais que se configuraram como parte integrante de um plano objectivo de consolidação orçamental a médio prazo, entrando em ruptura com a própria reforma fiscal. Neste sentido Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Estudos de Direito Fiscal, ob. cit., p. 205. No mesmo sentido, Luís Máximo dos Santos, Os Desenvolvimentos Posteriores à Reforma Fiscal de 1988/1989, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, Coimbra, Almedina, 2005, p. 58; Paulo de Pitta e Curlha, A Harmonização Fiscal Europeia e o Sistema Fiscal Português, Fisco, no 28, Fevereiro 1991, ano 3, pp.23. 201 Cf., João Ricardo Catarina, Para uma Teoria Política do Tributo, ob. cit., pp. 327-328, 202 A situação das contas públicas em 1993 não foi seguramente alheia à decisão, tomada em 1994, de criar a Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal. Também Paulo de Pitta e Cunha, A Pseudo-Reforma Fiscal do Final do Século XX e o Regime
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deve e haver das contas públicas, para se situar no plano dos valores, da justiça, da moralização do sistema e da própria legitimação e razão de ser do Estado 203 • Crise de natureza para-sistémica que, imputável em certa medida à recessão económica e à globalização dos mercados, teve a ver sobretudo com os desvirtuamentos resultantes das "mini-reformas" executadas em sede orçamental e a desmobilização do aparelho fiscal. Entretanto, as tímidas mudanças orgânicas introduzidas não vieram permitir que fossem alcançados os desejados ganhos de eficiência da máquina fiscal no que concerne à aplicação dos novos impostos, com consequências negativas no plano da justiça social e da redistribuição da riqueza. Uma estrutura administrativa inadequada impelia, de novo, à adopção de medidas que representavam um retrocesso dos princípios consagrados, respondendo, de algum modo, pela efectiva descaracterização da reforma, antes mesmo da sua concretização plena. Assim, a ocorrência de tais factos não deixou de despertar a consciência para o imperativo de regressar à via reformadora, delineando um cenário em que "a reforma da reforma" ganhava contornos de uma medida incontornáveF04 , justificando a criação, em 1994, da Comissão para o Desenvolvimento da Reforma FiscaF05 • Neste quadro, a Comissão, animada pelo propósito de propor medidas para o aperfeiçoamento e desenvolvimento do sistema fiscal, sem esquecer a operacionalização da Administração, veio a suscitar um debate amplo e aberto sobre a matéria fiscal, que cobriu, além da Política e Técnica Fiscal, também a própria Administração tributária 206, aqui tendo residido, aliás, um traço inequívoco de absoluta singularidade. De facto, as reformas fiscais anteriores, designadamente a de 1929 e a dos Simplificado do IRS, in: Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ob. cit., p. 19, sobre o colapso (ou quase colapso) da Administração fiscal, expressão empregue pelo Banco de Portugal, dada a manifesta incapacidade de ser assegurada a arrecadação de receitas fiscais em termos eficazes, evidenciando o contraste entre uma reforma norteada por princípios em si mesmo adequados e a impreparação da Administração fiscal para a sua aplicação. 203 Cf., Artigo do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais António Carlos Santos, publicado no Diário de Notícias a 3 de Março de 1996, "Notas sobre as propostas do OE/96 - Métodos Indiciários e a Questão Fiscal, in: Palavras no Tempo - Colectânea de Intervenções Públicas da Equipa do Ministério das Finanças, Outubro de 1995 a Abril de 1996, vol. I, pp. 406-407. 204 Como defende Abel L. Costa Fernandes, Algumas Notas sobre a reforma Fiscal de 1988, ob. cit., p . 21, "a recente reforma fiscal necessita, ela própria, de ser objecto de uma reforma num futuro relativamente próximo, à medida que os inconvenientes que apresenta se tornem evidentes ...". 205 Cf., Resolução do Conselho de Ministros n° 6/94, de 7 de Abril de 1994, DR n° 90/94, II Série Suplemento, de 18 de Abril de 1994. 206 Cf., Relatório da Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, no 191, Lisboa, DGCI-MF, p . 11.
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anos sessenta, haviam sido marcadas pela transitoriedade, em larga escala, fruto da ausência de estruturas orgânicas apropriadas e requeridas pela implantação de um sistema fiscal eficaz 207 • Demais, a história das reformas fiscais comprovava à saciedade que a norma tributária, que encerra a virtualidade de interferir na esfera jurídica dos cidadãos e das empresas, definindo obrigações concretas e quantificadas, marcando prazos de cumprimento e prevendo os meios coercivos se o mesmo não se realizar de forma voluntária, ainda que perfeita e ajustada na sua elaboração, é na verdade inoperante e inútil caso não seja aplicada devidamente 208 • Nesta senda, estando já adquirido que a reforma da tributação do rendimento e do consumo convocava uma solução consentânea com os padrões mais exigentes ditados pela fiscalidade contemporânea, impunha-se realizar uma nova reforma nas áreas ainda não abrangidas, dando continuidade ao mesmo espírito e pressupostos conformantes209 • 207
A própria reforma dos anos oitenta, apesar da Comissão de Reforma ter advertido que a criação de figuras fiscais sofisticadas, como o IRS e o IRC, implicaria uma plena remodelação do sistema de funcionamento da Administração fiscal, incluindo a informatização global do sistema, não conseguiu ser secundada por um verdadeiro ímpeto de mudança neste domínio, havendo sido marcante o contraste entre uma reforma norteada por princípios em si mesmos mais adequados, por um lado, e, por outro, a impreparação da Administração no que concerne à sua aplicação. Neste sentido, Paulo de Pitta e Cunha, A Pseudo-reforma do Final do Século XX e o Regime Simplificado do IRS, in: Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ob. cit., p. 19; Miguel Cadilhe, O Enquadramento Político da Reforma fiscal de 1988/89, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, ob. cit., p.33. 208 A este respeito, o comentário de Paulo de Pitta e Cunha, A Pseudo-reforma Fscal do Final do Século XX e o Regime Simplificado do IRS, in: Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ob. cit., p. 19, sobre o colapso (ou quase colapso) da Administração fiscal, expressão empregue pelo Banco de Portugal, dada a manifesta incapacidade de ser assegurada a arrecadação de receitas fiscais em termos eficazes, evidenciando o contraste entre uma reforma norteada por princípios em si mesmo adequados e a impreparação da Administração fiscal para a sua aplicação. No mesmo sentido Luís Máximo dos Santos, Os Desenvolvimentos Posteriores à Reforma Fiscal de 1988/89, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, ob. cit., p. 58, que, a propósito da referência específica ao "funcionamento da Administração " ínsita no Relatório Silva Lopes, além de admitir que era reveladora quanto à fonte de uma boa parte dos problemas do sistema fiscal que se pretendia debelar, não podia deixar de constar de qualquer processo de reforma fiscal que havia, forçosamente, de envolver a Administração fiscal - simultaneamente como objecto e como sujeito-, sob pena de um provável fracasso das intenções reformadoras. 209 Como referiu o Ministro das Finanças, Prof. Doutor António de Sousa Franco, no discurso de apresentação pública do Relatório da Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal, em 17 de Maio de 1996, "A Comissão para o Desenvolvimento daReforma Fiscal fornece importantes pistas: desenvolvimento no sentido da reformulação e revigoramento da Administração, em particular na execução da reforma; desenvolvimento no sentido de repensar muitos dos aspectos do regime dos impostos que fizeram parte das duas etapas da reforma
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Então, a Comissão veio a desenvolver um importante conjunto de trabalhos orientados para a melhoria da eficácia do sistema fiscal, não só no que respeita à estrutura dos impostos, mas também à organização e ao funcionamento da Administração fiscaF10 • Para tanto, suscitou uma aturada reflexão e um profundo e rico debate público sobre aspectos essenciais- como é evidenciado pelo Relatório produzido, que se fez eco dos vários contributos - , tendo elaborado um leque significativo de recomendações 211 • No capítulo da Administração fiscal, considerada a importância de uma Administração tributária activa, eficiente e respeitadora dos direitos dos cidadãos, as recomendações centraram-se na necessidade de operar uma transformação profunda dos serviços, tanto ao nível dos comportamentos e procedimentos, com o objectivo de atingir maior eficácia e garantir um combate sucedido à evasão e fraude fiscais, como no plano da agilização dos processos de justiça fiscal, como ainda nas relações com os contribuintes. Para tanto, propôs um modelo mais flexível, capaz de atender à possibilidade de mobilizar técnicos e dirigentes de qualidade, utilizando esquemas firmados na combinação incentivos-penalizações ligados ao desempenho e aos resultados obtidos. No tocante à Política e Técnica Fiscal, a Comissão, à luz do mandato que lhe havia sido fixado, tomou como ponto de partida da reflexão o sistema fiscal saído das reformas dos anos oitenta, cujos princípios e modelos fundamentais se afiguravam ainda adequados às condições da sociedade e da economia. Então, não esteve em causa conceber uma nova fiscalidade, no seu sentido verdadeiro, mas antes analisar em que medida o desenvolvimento concreto do sistema, nas suas múltiplas vertentes, se havia afastado das expectativas criadas pelas medidas reformadoras e, em consequência, proceder à identificação dos ajustamentos indispensáveis para corrigir as anomalias verificadas. Para tanto, a análise sobre questões de Política e Técnica Fiscal circunscreveu-se ao IRC, IRS e IVA212, orientando-se as modificações sugeridas essencialmente para a melhoria das mo210
Segundo o Ministro das Finanças, no discurso de apresentação pública do Relatório da Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal, em 17 de Maio de 1996, "A Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal fornece importantes pistas: desenvolvimento no sentido da reformulação e revigoramento da Administração, em particular na execução da reforma; desenvolvimento no sentido de repensar muitos dos aspectos do regime dos impostos que fizeram parte das duas etapas da reforma fiscal; desenvolvimento no sentido de, a essas duas etapas, corresponder como terceira, ou seja, a revisão da parte do sistema que foi deixada para trás e hoje se encontra muitas vezes numa situação pouco menos do que caótica". 211 Este relatório constituiu um marco fundamental na reflexão crítica sobre a reforma fiscal de 1988/89. 212 De fora ficaram os impostos especiais sobre determinados bens e serviços (v.g., produtos petrolíferos, tabaco, álcool, veículos automóveis), as contribuições para a Segurança Social, como refere o Relatório da Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal, ob. cit., pp. 12 e ss. Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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dalidades de aplicação, no respeito da estrutura e das características básicas. Por outro lado, na convicção de que, nos anos seguintes, o nível da pressão fiscal não podia aumentar de forma muito significativa, as recomendações contornaram o objectivo de crescimento de receita, centrando-se antes na melhor distribuição da carga tributária através da redução dos fenómenos da fraude e evasão fiscais, bem como na eliminação das distorções mais difíceis de justificar no sistema em vigor. Ora, a transição para um sistema mais perfeito, ao implicar inevitavelmente alguma quebra da receita, não pôde deixar de justificar a busca de receitas de substituição por via quer da maior eficácia da Administração fiscal, quer da redução de alguns benefícios fiscais, quer ainda de ajustamentos na estrutura de certos impostos. Razões similares levaram ainda a Comissão a abster-se, em geral, de fazer recomendações quantificadas sobre o nível das taxas dos principais impostos. No entanto, não deixou de considerar que era desejável não apenas reduzir a taxa do IRC, mas também aumentar os limites de não tributação em IRS, alargando os respectivos escalões de progressividade, sem perder de vista que tais modificações só eram exequíveis se viessem a conduzir a resultados significativos ao nível do combate à evasão e fraude fiscais ou fossem reduzidos, no limite eliminados, vários dos benefícios fiscais e regimes especiais de justificação mais controversa. Mas para lá de orientar as suas análises com base no pressuposto de não aumento da carga fiscal em relação ao PIB, a Comissão procurou também reger a sua apreciação sobre o estado do sistema fiscal, revisitando os seus princípios basilares - equidade horizontal e vertical, neutralidade e simplicidade - e a sua adequação à dinâmica sacio-económica, em especial, considerando a competitividade internacional e eficiência económica e social.
6.2. Uma Reforma Fiscal para o Século XXI 6.2.1. A Reforma da Reforma Fiscal Na segunda metade da década de noventa, o XIII Governo Constitucional proclamou novamente a necessidade de uma reforma fiscal, apoiando-se no reconhecimento de que o sistema vigente, ao configurar um modelo ainda inacabado, nem servia os interesses do Estado, por não constituir um meio eficaz de gestão da política económica, nem era justo, pelas iniquidades e ineficiências que lhe eram assacadas 213 •
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Em meados da década de noventa havia-se começado a formar em Portugal um justificado consenso de que o nosso sistema fiscal, saído da meritória reforma de 1988-1989, necessitava de novo de profundas alterações, como sublinha Luís Máximo dos Santos, A Reforma da Tributação do Rendimento de 2000: o Reforço do Carácter Unitário do IRS
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De facto, as distorções do sistema, incluindo a complexidade cada vez maior da legislação fiscal, a proliferação de regimes tributários de excepção, as injustiças que alimentava e a erosão das matérias colectáveis, consubtanciavam, entre outros, factores que legitimavam do anúncio de uma revisão premente do sistema fiscaF 14 . Contudo, o programa económico do Governo, apesar de definir duas importantes linhas reformadoras de pendor estrutural e carácter financeiro - a reforma orçamental e a reforma da administração financeira-, em sede de política fiscal limitou-se a apontar um leque de medidas prioritárias215 . Tratou-se de um conjunto de objectivos passíveis de serem sintetizados em três ideias-chave: a introdução de maior justiça na repartição da carga tributária, com um desagravamento progressivo dos rendimentos do trabalho por conta de outrem e, de um modo geral, dos contribuintes cumpridores; a contribuição do sistema fiscal para o desenvolvimento sacio-económico equilibrado e sustentável do País, mormente pela via do estímulo ao triângulo competitividade-produtividade-emprego; e o reforço da confiança entre os cidadãos e a Administração tributária216 • e a Tributação das Mais-Valias Mobiliárias, Fisco, n°s 99/100, 2001, p.18, tão evidentes eram os seus desajustamentos e iniquidades. A título elucidativo, refira-se um grave problema de falta de equidade, como demonstra o facto de, na tributação do rendimento das pessoas singulares, quase 90% da carga tributária recair sobre os trabalhadores por conta de outrem e os pensionistas; por outro, o imperativo constitucional da unidade e progressividade da tributação do rendimento das pessoas singulares era cumprido d e uma forma muito deficiente. Daí que a fraude e a evasão atingissem elevadas proporções, aumentando a iniquidade e falseando a concorrência, além de tornarem o esforço fiscal mais pesado para os contribuintes cumpridores. Era imperioso, ainda, melhorar certos aspectos relativos à tributação da família, designadamente conferindo-lhe uma maior protecção através do aumento de certas deduções à colecta. Por fim, era notório que qualquer esforço reformador tinha de envolver profundamente a Administração fiscal, como objecto e como sujeito, uma vez que sem maior eficiência da sua acção grande parte do esforço poderia ser em vão. Neste sentido, do mesmo Autor, Os Desenvolvimentos Posteriores à Reforma Fiscal de 1988/89, ob. cit., p. 59, sobre a consciência dos cidadãos, em finais da década de noventa, sobre o elevado grau de iniquidade e ineficiência que vinha caracterizando o sistema fiscal; Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal desenvolvido, ob. cit., pp. 34-41; Rogério Fernandes Ferreira, Reflexões Dispersas, Fisco, n° 95/96, ano XII, 2001, p . 33. 214 Neste sentido, Maria Celeste Cardona, Uma Política Fiscal para o Século XXI: Contributos para uma Reforma, Fisco, n° 97/98,2000, p. 21. 215 Como referido em Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, ob. cit., p. 48, a política fiscal do XIII Governo Constitucional assentou na CRP, no seu Programa, nos princípios gerais de tributação, em particular dos relativos aos impostos sobre o rendimento e despesa, e nos compromissos assumidos nos Acordos de Concertação de curto prazo e de Concertação Estratégica. Fundamentos que tiveram expressão nos Orçamentos para 1996 e 1997. 216 Cf., Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, ob. cit., pp. 48-49; João RicarLusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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Deste modo, foi só durante o debate parlamentar do programa do Executivo - que em boa verdade não abordava expressamente a questão da reforma fiscal-, que o Ministro das Finanças veio a reconhecer-lhe uma função central e um papel decisivo na revisão do sistema tributário. Seria esse o veículo para lhe introduzir justiça e solidariedade como critérios essenciais, não de aumento da carga fiscal, mas antes de repartição mais justa e solidária do sacrifício com os encargos públicos, desenhando-se assim um cenário em que a modernização da Administração fiscal iria gozar de um lugar igualmente determinante21 7 / 218 . De início, o Governo, na senda das linhas programáticas relativas à política fiscal definidas no âmbito dos Estados Gerais para uma Nova Maioria 219 , esboçou porém um programa mínimo e relativamente pouco ambicioso, mais próprio de
do Catarina, Para uma Teoria Política do Tributo, ob. cit., p. 329. A intervenção do Ministro das Finanças no debate parlamentar sobre o Programa do Governo, em 9 de Novembro de 1995, in: Palavras no Tempo, vol. I, Lisboa, Ministério das Finanças, 1996, pp. 31 e ss. 218 Como consta do Programa do Governo, "A prioridade fundamental da política fiscal será a de introduzir mais justiça na repartição da carga tributária, empreendendo para isso uma profunda alteração das regras e espécies fiscais existentes e investindo na modernização da administração directa" . E, indo mais além do que o Programa, que não falava de reforma fiscal, coube ao Ministro das Finanças, no debate na Assembleia da República, referir que "a reforma fiscal (... ) corresponde " a um aspecto fundamental de introdução de justiça na sociedade portuguesa, o de revisão do sistema fiscal à luz da harmonização tributária na União Europeia, que introduza nele justiça e solidariedade como critérios ftmdamentais, não do aumento da carga fiscal global, mas sim da repartição, de modo mais justo e igualitário, do sacrifício com os encargos públicos, incluindo justiça na distribuição e, sobretudo, luta contra a fraude e a evasão. ( ... ).Parte não menos fundamental desta reforma é ainda a modernização da administração fiscal, sem a qual não será sequer possível aumentar as receitas, quanto mais aumentar a justiça". Cf., Discurso do Ministro das Finanças na posse da Comissão de Reforma da Tributação do Património, in: Palavras no Tempo, vol. IV, Lisboa, Ministério das Finanças, 1998, pp. 37-38. Objectivos reiterados pelo Ministro das Finanças na I Reunião das Comissão Executiva da Unidade de Coordenação da Luta contra a Evasão e Fraude Fiscal e Aduaneira, UCLEFA, in: Palavras no Tempo, vol. V, Lisboa, Ministério das Finanças, 1999, p. 295 e ss. 219 Cf., A. L. Sousa Franco e A. Carlos dos Santos, Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido. Balanço de uma Legislatura, Lisboa, Ministério das Finanças, 1999, pp. 85 e ss. 217
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uma política fiscal reformista do que de uma reforma fiscaF2° / 221 • Uma opção justificada não só pela falta de dados e estudos credíveis para sustentar "voos mais altos" 222, mas também pela prioridade conferida ao cumprimento dos parâmetros exigidos pela adesão ao euro conforme a disciplina estabelecida em Maastricht, no quadro de uma convergência evolutiva que assim secundarizava a tão ansiada redução da carga fiscaF 23 • 220
Inicialmente, o Governo prosseguiu uma política fiscal reformista, não uma reforma fiscal formalizada e global, em que avultaram, nomeadamente, o escrupuloso cumprimento do compromisso de não aumentar os impostos até ao fim da legislatura; a prioridade dada ao eficiente funcionamento da Administração fiscal; o cumprimento dos compromissos assumidos no âmbito do programa do Governo e dos Acordos de Concertação Social; a introdução de elementos determinados por critérios de justiça, eficiência e competitividade; a prioridade conferida ao reforço da Administração Fiscal, visando a sua modernização. Cf., Discurso do Ministro das Finanças na posse da Comissão da Reforma da Tributação do Património, em 3 de Setembro de 1997, ob. cit., pp. 38-42; A. L. Sousa Franco e A. Carlos dos Santos, Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido. Balanço de uma Legislatura, ob. cit., pp. 81 e ss.; Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, ob. cit., pp. 57 e ss. 221 Após as eleições legislativas de 1995, passou a ser prática corrente a introdução de alterações profundas na legislação fiscal por via dos Orçamentos de Estado. Uma opção criticável, e que foi criticada, como destaca Maria Celeste Cardona, Uma Política Fiscal para o Século XXI: Contributos para uma Reforma, ob. cit., p. 21, na medida em que arevisão anual de novas regras, algumas delas de natureza substancial, como sejam normas de incidência tributária, podem pôr em causa princípios fundamentais de direito fiscal que se traduzem pela certeza e estabilidade das relações entre o fisco e os contribuintes. A propósito da introdução sistemática no Orçamento de um vastíssimo capítulo sobre matéria fiscal, que não há-de deixar de ser avaliada negativamente pela contribuição que dá para a falta de estabilidade e segurança do sistema fiscal, bem como da utilização dos chamados "cavaleiros orçamentais", que correspondem a normas de muito variada natureza incluídas sistematicamente na Lei do Orçamento como forma expedita de obter a sua aprovação, Eduardo Paz Ferreira, Ensinar Finanças Públicas numa Faculdade de Direito, Coimbra, Almedina, 2005, pp.149-151. 222 O Relatório Silva Lopes foi apresentado apenas em 1996. Tratou-se de um relatório exaustivo, como refere Sousa Franco, Intervenção durante o almoço-debate "A reforma fiscal e a Lei Geral Tributária", promovido pelo Forum de Administradores de Empresas, em 2 de Março de 1998, in: Palavras no Tempo, vol. V, Lisboa, Ministério das Finanças, pp. 228 e ss., que, pela primeira vez, desfez a "visão idílica" segundo a qual o sistema fiscal português já era moderno e, sem grandes problemas, adaptar-se-ia às novas necessidades da economia. Esboçou-se um quadro em que as Estatísticas Fiscais de 1989-1992 apenas foram publicadas no início do ano de 1997. 223 Cf., Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, ob. cit., pp. 340 e ss.; Paulo de Pitta e Cunha, A Harmonização da Fiscalidade e as Exigências da União Monetária na Comunidade Europeia, in: A Fiscalidade dos Anos 90, ob. cit., pp. 53 e ss.; Discurso do Ministro das Finanças, Prof. Doutor António de Sousa Franco, na posse da Comissão Euro, Lisboa, 16 de Janeiro de 1997, in: Palavras no Tempo, vol. III, Lisboa, Ministério Lusíada. Direito. Lisboa, n." 8 I 9 (2011)
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Nesta linha, a primeira tentativa governamental para dar corpo à ideia de que o País carecia de um sistema fiscal novo apenas surgiu com a Resolução do Conselho de Ministros n° 119/97, de 14 de Julho 224, sob a epígrafe "Uma Política Fiscal para o Século XXI", que enunciou um corpo de princípios e regras fundamentais a adoptar nos trabalhos conducentes à reforma da tributação 225 • Então, a Resolução, de acordo com os seus próprios termos, pareceu estabelecer a baliza e os limites de uma verdadeira reforma fiscaF 26 / 227, que havia de incidir sobre a tributação do rendimento, do património e da despesa, o reforço das Finanças, 1997, pp. 35 e ss. O principal instrumento de programação da reforma foi uma Resolução do Conselho de Ministros, visto o Orçamento do Estado não constituir o meio adequado para a concretização de uma reestruturação do sistema fiscal, nas suas vertentes legislativa e administrativa, que implica um aprofundamento técnico que a lei orçamental não propicia porquanto vinculada a uma lógica de curto prazo, Assim, vingou o entendimento de que a política fiscal há-de ser traçada à margem dos Orçamentos do Estado, de que devem constar tão só adaptações transitórias, conjunturais ou de ocasião. Neste sentido, Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, ob. cit., pp. 52-53. 225 Tratou-se de uma Resolução que, no respeitante à tributação básica, definiu as linhas gerais relativas à revisão dos impostos sobre o rendimento e o consumo; em relação às reformas incompletas ou ainda não encetadas, em especial no que toca à tributação do património, apontou para uma mudança de raiz de toda a filosofia da tributação; em matéria de legislação conexa com os diversos impostos, preconizou uma profunda revisão do Código de Processo Tributário, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais não Aduaneiras e Aduaneiras, bem como uma redefinição dos incentivos fiscais. Em termos de preparação, foi antecedida de consulta aos Parceiros Sociais, como constava do Acordo de Concertação Estratégica (1997-1999), com o propósito de introduzir e provocar um debate que se revelasse ou gerasse consensos resultantes da identidade de posições entre forças políticas, económicas e sociais, assumindo no final um cunho orientador da Reforma Fiscal. Cf., Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, ob. cit., pp. 66 e ss. 226 Os objectivos e a estratégia política relativamente ao sistema fiscal, que a reforma não podia deixar de ter em consideração podem agrupar-se em quatro grandes ordens de finalidades: uma finalidade reditícia, devendo o sistema proporcionar receitas bastantes para satisfazer as necessidades através da despesa pública, cumprindo ponderar-se a propósito de cada situação a melhor forma de alcançar o objectivo, sem deixar de ter em linha de conta a consolidação orçamental requerida pelo Programa de Estabilidade e Crescimento para 1998/2000; os objectivos de igualdade, justiça e solidariedade, uma vez que a estrutura fiscal representa um dos principais instrumentos de intervenção do Estado na redução das desigualdades e na luta contra a exclusão; os objectivos de desenvolvimento, não sendo de negligenciar o contributo do sistema fiscal para a definição das políticas de desenvolvimento, cumprindo-lhe incentivar, nomeadamente, a promoção do crescimento económico e do emprego, a inovação, a qualificação dos recursos humanos; os objectivos de qualidade do sistema e comodidade para os contribuintes. Cf., Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, ob. cit., p . 363. 227 Neste sentido, Maria Celeste Cardona, Uma Política Fiscal para o Século XXI: Contributos para uma Reforma, ob. cit., p. 21. 224
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e alargamento das garantias dos contribuintes e a revisão seja das regras de funcionamento e organização da Administração tributária, seja das novas formas de incidência tributária. Neste quadro, o imperativo de desenvolver uma reforma da tributação coerente, profunda e inovadora, animada pelo propósito de readaptar o sistema fiscal às transformações verificadas na última década no sistema socio-económico em Portugal, na Europa e no mundo228, veio a a ser proclamada como um objectivo estratégico global, cuja concretização devia ser encetada nos dois anos da legislatura (1997-1999) e prosseguida na legislatura seguinte (1999-2003)2 29 j230• Com particular destaque, importava que o sistema fiscal desse resposta cabal à introdução do euro 231 e acompanhasse a evolução da sociedade de informação232 . 228
Tais propósitos foram devidamente enfatizados pelo Ministro das Finanças, Prof. Doutor António de Sousa Franco, durante o almoço-debate "A Reforma Fiscal e a Lei Geral Tributária" promovido pelo Forum de Administradores de Empresas, em 2 de Março de 1998, in: Palavras no Tempo, vol. V, ob. cit., p . 294, quando disse: "a ideia duma reforma fiscal para o século XXI é precisamente esta: temos de começar a dar passos que tenham uma visão de prospectiva e que não se limitem a tentar corrigir a curto prazo as muitas deficiências de justiça, de eficiência e de modernidade que o nosso sistema fiscal actualmente tem, mas abram também caminho para aquilo que são as necessidades dum sistema fiscal da sociedade global e de Portugal, que tem de cumprir os compromissos de estabilidade, por um lado, e que tem de tornar a sua economia competitiva, sem ser, em termos fiscais, ainda mais injusta do que já é hoje". 229 Cf., Resolução do Conselho de Ministros n° 119/97, de 14 de Julho. 23 ° Com múltiplas frentes anunciadas, esta reforma não poderia ser lançada ou resumida numa única iniciativa legislativa. A ser viável, a reforma global devia reflectir uma atitude política igualmente global, comportando não apenas a alteração da legislação fiscal substantiva, mas também modificações da legislação fiscal adjectiva, como ainda da legislação respeitante às instituições responsáveis pela gestão e administração dos impostos. Neste sentido, Fernando Castro Silva, Fisco, n° 92, 2000, p. 36. 231 No quadro da UEM, o desafio fiscal traduzia-se basicamente em duas tendências: competição e coordenação. Cada país devia ser capaz de competir, criando condições de competitividade para as suas empresas e gerando elementos de atracção para o investimento e as operações económicas no seu interior. Por isso os sistemas fiscais deviam ser modernos e eficientes. Ora, Portugal tinha já uma das pressões fiscais mais baixas entre os parceiros comunitários, mostrando-se necessário inverter esse nível. Sobre a importância acrescida da política orçamental na 3a fase da UEM e o impacto do Euro no sistema fiscal, cf., Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, ob. cit., pp. 340 e ss.; Intervenção do Ministro das Finanças na Assembleia da República sobre a participação de Portugal na Terceira Fase da União Económica e Monetária e o Pacto de Estabilidade, in: Palavras no Tempo, vol. III, Lisboa, Ministério das Finanças, 1997, pp. 101 e ss. A propósito da introdução do Euro e suas implicações fiscais e contabilístico-financeiras, cf., Intervenção do Ministro das Finanças, Prof. Doutor António de Sousa Franco, sobre o tema na abertura das acções de formação da Associação dos Técnicos Oficiais de Contas, ATOC, in: Palavras no Tempo, vol. IV, Lisboa, Ministério das Finanças, 1999, pp. 263 e ss. 232 Sobre os objectivos da Administração tributária na sociedade de informação, cf., EstruLusíada. Direito. Lisboa, n.0 8 I 9 (2011)
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Um ambiente em que o esforço reformista pretendia ser, simultaneamente, mais do que um processo permanente num domínio de especial sensibilidade para a economia e a sociedade, atendendo ao papel central dos impostos na regulação e distribuição, e mais do que uma mera concretização, do lado da receita, da consolidação financeira imposta pela adesão à moeda única europeia233 • Nestes termos, razões operativas justificaram que se tenha delineado uma estratégia faseada de adequação ao ideal fiscal de maior justiça e igualdade, eficiência e comodidade, promovendo-se uma cisão nítida entre, por um lado, o levantamento da situação e a tomada de medidas urgentes e, por outro, a adopção de intervenções de fundo 234 . Deste modo, o programa anunciado mostrou-se radicalmente distinto das anteriores reformulações da fiscalidade empreendidas desde a década de trinta, evidenciando um cunho particular no que concerne seja ao conteúdo, seja ao modo como se perspectivou a função do sistema fiscal. Daí que, assumida a situação de partida e, sobretudo, aceite que a política fiscal há-de ser traçada à margem dos Orçamentos do Estado 235 , o Governo tenha
turar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, ob. cit., pp. 334 e ss. Sendo a manutenção da disciplina orçamental uma restrição permanente da UEM, a relação entre a consolidação financeira e a reforma fiscal afigurava-se decisiva e da maior pertinência. Neste sentido, Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, ob. cit., p. 119; 234 Uma cisão estratégica fundamental considerado o estado do sistema fiscal, que acusava falta de instrumentos legislativos, informativos e de apoio à decisão, capazes de assegurarem a estabilidade do sistema, o acompanhamento e controlo do seu desempenho e uma adequada previsão da sua evolução quantificada; atraso nas tarefas de modernização da administração tributária; acumulação de casos de atraso nas cobranças, com os consequentes efeitos negativos na justiça tributária e no tecido sacio-económico, mormente no plano das distorções de concorrência; larga evasão e fraude fiscal e aduaneira, sem combate eficaz; ausência de diálogo institucionalizado entre os vários departamentos da Administração tributária; sucessão de mini reformas em cada Orçamento do Estado, em violação da estabilidade do próprio sistema. Sobre a situação do sistema fiscal em 1995, A. L. Sousa Franco e A. Carlos dos Santos, Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido: Balanço de uma Legislatura, ob. cit., pp. 8 e ss. 235 Uma posição de saudar, sobretudo se considerarmos que entre os princípios a que deve obedecer a fiscalidade surge a segurança e é desta que nasce a protecção do contribuinte, imperativo de um bom sistema. Ora, neste contexto, não são suficientes soluções substanciais apropriadas, mostrando-se igualmente necessário que o contribuinte saiba sob que lei vive. Deste modo, impõe-se controlar- porventura, erradicar- o afã legislativo que se vem verificando, sobretudo através da utilização de cada nova lei do Orçamento do Estado como fonte de um extenso caudal de modificações e renumerações de códigos, criando-se mais dificuldades no âmbito de um verdadeiro labirinto normativo, em que é posta à prova a capacidade do intérprete. A este propósito, Manuel Pires, A Hiperinflação legislativa fiscal, in: Jornal Expresso, Caderno de Economia, de 23 de Janeiro de 2010, p. 22; Maria Celeste Cardona, Uma Política Fiscal para o Século XXI: Contributos para uma Reforma, ob. cit., p. 21; Eduardo Paz Ferreira, Ensinar Finanças 233
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passado a concentrar-se, numa primeira fase, ora na prossecução de estudos e debates, ora no combate à fraude e evasão, ora ainda na preparação de medidas imediatas tendentes a repor um mínimo de justiça, realizando igualmente o objectivo de consolidação orçamental. E uma vez concluída a fase de normalização do sistema, seria portanto o tempo de passar à concepção, programação e reforma da reforma 236 . Desde o primeiro momento ficou patente que não era objectivo desta iniciativa reformista operar uma modificação estrutural do ordenamento jurídico-tributário, no sentido e com o alcance da reforma de finais dos anos oitenta237 - cuja matriz representara um passo enorme no caminho da modernização do País e devia ser mantida -, pretendendo-se antes, mediante o aproveitamento da experiência vivida com a sua implementação, encetar uma reflexão global e uma intervenção selectiva sobre tudo que havia ficado incompleto ou era considerado imperfeito. No fundo, visava-se aperfeiçoar as leis, instituições e instrumentos operativos, criando condições de estabilidade do quadro jurídico-administrativo, bem como inflectir comportamentos fiscais danosos para o cidadão e para o Estado, em vez de realizar mexidas bruscas na estrutura dos impostos 238 . Impunha-se, pois, incorporar as alterações que tornassem possível não só eliminar alguns dos reconhecidos entorses do ordenamento jurídico, mas também concretizar os princípios essenciais da Constituição fiscal de forma mais eficaz, abrindo ainda espaço ao reforço dos instrumentos de combate à evasão e à fraude 239 . Públicas numa Faculdade de Direito, Coimbra, Almedina, 2005, p. 150. Em Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, ob. cit., p. 66, fala-se de que então dar-se-ia por concretizado o Programa do XIII Governo Constitucional e ficariam satisfeitos os compromissos assumidos em sede de concertação estratégica. 237 Tratara-se de uma reforma fiscal de carácter estrutural que, ao impor uma nova ordem jurídica que se pretendia tributária das exigências constitucionais decorrentes da nova ordem política e social, era consentânea não só com o acervo axiológico e normativo da Comunidade Europeia, como também da generalidade dos países desenvolvidos. Neste sentido, Fernando Castro Silva, Reforma Fiscal: Âmbito e Motivações, ob. cit., pp. 35. 238 Perspectivava-se uma reestruturação do sistema fiscal, como resultou da intervenção do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais no Seminário sobre fiscalidade promovido pela Associação dos Industriais de Construção Civil e Obras Públicas do Norte (AICOPN), in: Palavras no Tempo, vol. III, Lisboa, Ministério das Finanças, 1997, pp. 93 e ss. De facto, a reforma iniciada em meados da década de oitenta nas áreas dos impostos sobre o rendimento e do IVA evidenciava, como todas as reformas, após alguns anos, a necessidade de ser reformada. No caso vertente, dez anos em matéria de fiscalidade era muito tempo, sobretudo quando as circunstâncias, os contextos, o ambiente em que funcionava se haviam alterado de forma tão significativa e os sinais de evasão fiscal começavam a ser verdadeiramente preocupantes. Donde impor-se fazer uma reavaliação do sistema fiscal existente, cujo desfasamento face ao sistema económico existente era manifesto. Por isso, a modernização do sistema fiscal e da Administração tributária eram um objectivo decisivo. 239 Como se anuncia em Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, ob. cit., p. 236
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Numa palavra, pretendia-se reorientar a evolução do sistema fiscal, colocando-o ao serviço do desenvolvimento socioeconómico e político, integrando-o no âmbito do movimento de transformação da economia e da sociedade portuguesa e europeia, em consonância com os novos modelos e paradigmas que se perfilavam no horizonte. Em certos domínios, a reforma a realizar na segunda metade da década de noventa iria envolver modificações estruturais, sendo indiscutível que não podia deixar de completar a reforma anterior, incidindo então sobre a tributação do património240 j241 • De facto, estava em causa uma área que justificava uma acção 120, pretendeu-se propor não uma reforma fiscal global, com a ambição de substituir todos os impostos existentes, uma vez que muitos dos tributos, bem como a estrutura em que se integram têm sentido e futuro. Ao invés, visou-se desenvolver uma reflexão e intervenção globais sobre o que ficou incompleto ou aquilo que estava errado nas denominadas reformas fiscais entretanto levadas a cabo que, por vezes, de reformas fiscais pouco haviam tido, traduzidas tão somente na adopção de alguns textos animados pelo intuito de regular impostos ou áreas importantes da organização e actuação fiscal. Neste sentido, João Ricardo Catarina, Para uma Teoria Política do Tributo, ob. cit., pp. 331 e ss. 240 A tributação do património havia ficado praticamente intocada com a reforma de 19881989, já que a única alteração que se verificara neste sector foi a que se traduziu na substituição da contribuição predial, que era um imposto sobre o rendimento, pela contribuição autárquica, um imposto sobre o património. Por isso, uma tal reforma, de certo modo, não era mais do que uma medida para completar a reforma inacabada dos anos oitenta. Nesta linha, José Casalta Nabais, Direito Fiscal, ob. cit., pp. 335 e ss.; Rui Duarte Morais, Do Código da Contribuição Predial ao Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, Coimbra, Almedina, 2005, pp.313 e ss.; António da Rocha Vaz, A Evolução da Tributação do Património, in: As Reformas Fiscais dos Anos 80 e Perspectivas de Evolução, Lisboa, AATP, 1995, pp. 65 e ss. Neste quadro, a Comissão Silva Lopes, Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido, ob. cit., p. 47, havia sugerido um leque de medidas: a actualização anual dos valores patrimoniais dos prédios com base nos índices de correcção monetária utilizados para cálculo das mais e menos-valias e, em caso de transmissão onerosa, o valor patrimonial seria actualizado com base no valor considerado para efeitos de sisa e, em caso de arredondamento, com base na capitalização do rendimento anual; a redução da taxa de contribuição autárquica e do imposto sobre sucessões e doações, em conformidade com o aumento desse valor patrimonial; a sujeição da transmissão por morte das acções ao regime geral do imposto sucessório, através da instituição de um regime obrigatório de registo ou depósito, celeridade na avaliação de estabelecimentos comerciais e partes sociais e redução do número de isenções. 241 Durante o XIII Governo Constitucional foi preparado o terreno para esta reforma, in: Estruturar O Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido: Balanço de umas Legislatura, ob. cit., pp. 63 e ss. Nomeadamente, foram publicados alguns trabalhos preparatórios; foi desenhado, na Resolução sobre a Reforma Fiscal, o modelo do futuro imposto único e global sobre o património, em substituição da sisa, do imposto sucessório e da contribuição autárquica; foi concluído o relatório da Comissão presidida pelo Dr. Medina Carreira, acompanhado de um anteprojecto de lei relativo ao imposto sobre o patrimó-
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imediata e determinada, uma vez que, embora o volume de receitas geradas representasse menos de 4% dos impostos cobrados e de 0,9% do PIB, dados que, sem uma alteração profunda e atempada, acabariam por conduzir a uma desvalorização financeira destes tributos, como, aliás, se vinha já a assistir 242 j243• Acresce que a concepção dos impostos sobre o património revelava-se profundamente inadequada às circunstâncias e necessidades do País 244 • Donde aprenio mobiliário e imobiliário. A ideia base foi evitar a tributação específica no momento da aquisição onerosa dos bens ou da sua transmissão por morte, diluindo a carga fiscal dai emergente ao longo da vida dos bens. 242 Cf., Discurso do Presidente da Comissão da Reforma da Tributação do Património, Dr. Henrique Medina Carreira, Lisboa, 3 de Setembro de 1997, in: Palavras no Tempo, vol. IV, Lisboa, Ministério das Finanças, 1998, pp. 53 e ss. 243 Diferente a posição de Paulo de Pitta e Cunha, A Pseudo-Reforma Fiscal do Final do Século XX e o Regime Simplificado do IRS, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ob. cit., p. 25, para quem a importância desta reforma devia ser relativizada em função do peso relativo dos impostos em causa que, refere, corresponde a 3% do total das receitas tributárias, logo aquém do nível de 5% ou 4% verificado entre os países da OCDE. Deste modo, tratava-se de uma reforma que, tecnicamente interessante, revestia um alcance limitado, visto não atingir as grandes figuras da fiscalidade: o IRS, o IRC e o IVA. 244 A sisa e o imposto sucessório, não sendo periódicos, produziam receitas apenas quando havia transmissão de bens, a título oneroso ou gratuito; a base patrimonial tributada através da sisa, do imposto sucessório e da contribuição autárquica era muito reduzida uma vez que abrangia uma parte insignificante da riqueza mobiliária e valores geralmente desactualizados e, baixos, da riqueza imobiliária; sendo a riqueza imobiliária considerada de acordo com os valores matriciais, tanto mais distantes quanto mais antigos os respectivos registos, havia contribuintes que suportavam impostos liquidados em função de valores actuais e outros em função de valores profundamente desactualizados; no imposto sucessório vigoravam tratamentos discriminatórios na tributação de valores patrimoniais da mesma natureza; o regime do imposto sucessório era tecnicamente muito complexo, implicando, muitas vezes, uma pesada, incómoda e inútil burocracia; na tributação do património, tudo parecia incentivar a evasão e a fraude. Em consequência, as taxas dos impostos eram muito altas; a base tributada reduzida, duplamente pela fuga quase total da riqueza mobiliária e pela generalizada subavaliação da riqueza imobiliária; em consequência, a importância relativa da riqueza mobiliária provocava uma progressiva erosão da matéria tributada; a evasão e a fraude atingiam dimensões inimagináveis; as receitas ficavam muito aquém dos valores potenciais que o regime vigente justificaria; os altos custos da sisa não facilitavam as aquisições de imóveis, influenciando, negativamente, a solução dos problemas habitacionais; estes elevados custos dificultavam ainda as operações de reorganização de empresas que envolvem a transmissão de imóveis; a tributação por avença dos dividendos dos accionistas quase os extinguiu; a redistribuição vertical, justificação quase única do imposto sucessório, não ocorre, sendo atingidos os pequenos patrimónios que integram quotas em sociedades. Este o diagnóstico expresso no discurso do Presidente da Comissão de Reforma da Tributação do Património, Dr. Henrique Medina Carreira, Lisboa, 3 de Setembro de 1997, in: Palavras no Tempo, ob. cit., p. 53. Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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mência em proceder à mudança de filosofia a fim de prosseguir a sua conformação com as novas realidades económicas e sociais, mediante soluções de carácter estrutural firmadas não só no desenvolvimento de uma lógica de concertação com as autarquias locais e as organizações representativas dos sectores envolvidos, mas também na análise da fiscalidade da habitação para valorizar no futuro tanto a habitação própria e permanente e respectiva mobilidade, com a conservação e requalificação do parque habitacionaF45 . Alterações viabilizadas pela revisão constitucional de 1997246, que permitiram ao legislador ordinário encaminhar a tributação do património por vias muito diversas 247 , designadamente através da extinção do imposto sucessório. Um espaço de actuação que, na altura, gerou fundadas expectativas quanto à concretização da última grande reforma para preparar a transição para o século XXF48 • Por outro lado, a reforma anunciada pelo XIII Governo não podia deixar ainda de demonstrar uma enorme e firme preocupação com as instituições e estruturas de gestão dos impostos, no sentido quer de definir um modelo orgânico a médio prazo 249 capaz de corporizar uma Administração moderna ao serviço 245
Cf., António L. Sousa Franco e A. Carlos dos Santos, Estruturar o Sistema Fiscal do Portugal Desenvolvido: Balanço de uma Legislatura, ob. cit., p. 152. 246 Sobre as principais alterações que a revisão constitucional de 1997 provocou na constituição fiscal de 1976, José Casalta Nabais, A Constituição Fiscal de 1976, sua Evolução e seus Desafios, Anuário Português de Direito Constitucional, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 2002., pp. 51 e ss. 247 Em sede de tributação do património apresentavam-se duas vias de solução para a situação insustentável em que se encontrava este sector de tributação, como assinala José Casalta Nabais, Direito Fiscal, ob. cit., p. 336: uma, mais moderada, que, mantendo os impostos sobre o património - CA, IMS e ISD - , propunha apenas modificações, basicamente no respeitante à determinação do valor dos prédios em cada um deles; outra, mais radical, propunha a substituição dos impostos por um imposto geral sobre o património imobiliário e mobiliário detido. Se quanto à primeira via, ela foi sufragada pela Comissão Silva Lopes, já a segunda mereceu o aplauso da Comissão de Reforma da Tributação do Património, que propôs no seu anteprojecto de reforma a eliminação da CA, do IMS e do ISD e a criação de um imposto geral sobre o património. 248 Cf., José Casalta Nabais, A Constituição Fiscal de 1976, sua Evolução e seus Desafios, Anuário Português de Direito Constitucional, ob. cit., pp. 54. 249 Uma tarefa para que foi constituído, em termos conceptuais, um grupo de trabalho destinado a identificar objectivos e estratégias de mudança a médio prazo. Como sublinha João Ricardo Catarina, Para uma Teoria Política do Tributo, ob. cit., p. 331, visava-se a melhoria da eficácia da Administração tributária procurando modernizar e adaptar a orgânica do sector às novas exigências tecnológicas e sacio-económicas e contribuir para um melhor planeamento da acção dos serviços, definindo objectivos e prioridades. De igual modo, pretendia-se reforçar os meios humanos e materiais em áreas-chave como serviços de inspecção, justiça, informática e formação profissional, estabelecendo formas institucionais de cooperação entre as componentes da Administração tributária, e ainda despolitizar a nomeação dos cargos de chefia.
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dos cidadãos, encarados como clientes do Estado, não seus "súbditos"250, quer de superar as deficiências endémicas do seu funcionamento. Tratava-se, pois, de desencadear um novo tipo de relacionamento entre a Administração e os contribuintes que, retomando o carácter nuclear do Relatório Silva Lopes, era susceptível de ser gerador de um clima de maior confiança entre os actores intervenientes.
6.2.2. A "Reforma Fiscal Inadiável"
Decorridos mais de três anos sem que nada de significativo tivesse ocorrido em termos de concretização dos grandes objectivos de redefinição da política fiscaF 51 , reiterando-se, ao invés, a prática tradicional de realizar reformas pela via orçamentaF52, encetou-se um novo ciclo reformista com a criação da Estrutura de Coordenação da Reforma Fiscal, então sob os auspícios do XIV Governo ConstitucionaF53. Da ECORFI esperava-se que, tomando como matriz integradora o Relatório Silva Lopes e as bases gerais aprovadas pela Resolução do Conselho de Ministros no 119/97254, estivesse em condições não só de identificar um conjunto de me250
Um entendimento na senda, nomeadamente, de Albert Breton e Ronald Wintrobe, The logic of burocratic conduct, Cambridge, Cambridge University Press, 1982, pp. 13 e ss. e Edward C. Page, Burocrazia, Amministrazione, Politica: Un' Analisi Compara ta, Bologna, 11 Mulino, 1990, pp. 7 e ss 251 A reforma anunciada, embora objecto de porfiados estudos, não chegou praticamente a ter execução. Neste sentido, Paulo de Pitta e Cunha, A pseudo-reforma fiscal do final do século XX e o regime simplificado do IRS, in: Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ob. cit., p. 18. 252 A par de um importante esforço em matéria de elaboração de estudos sobre aspectos nucleares para o desencadeamento de qualquer acção reformadora no domínio fiscal, a segunda parte da legislatura de 1995-99, foi marcada pela aprovação de um conjunto de medidas de que cumpre destacar: a aprovação, em 1998, da Lei Geral Tributária, que veio preencher uma lacuna há muito identificada no nosso sistema fiscal; a aprovação do Código de Procedimento e Processo Tributário e, bem assim, do Código do Imposto do Selo e do Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo; a transformação dos abatimentos à matéria colectável em deduções à colecta, o início do processo de descida da taxa do IRC, a criação do regime fiscal das micro-empresas, entre outras medidas. A este respeito Luís Máximo dos Santos, Os Desenvolvimentos Posteriores à Reforma Fiscal de 1988/89, in: 15 Anos da Reforma de 1988/89, ob. cit., p. 59. 253 Com o objectivo de analisar o vasto conjunto de trabalhos desenvolvidos, continuar e, em certos aspectos, aprofundar, o processo de reforma já iniciado, em 12 de Janeiro foi criada a Estrutura de Coordenação da Reforma Fiscal (ECORFI), como regista Luís Máximo dos Santos, Os Desenvolvimentos Posteriores à Reforma Fiscal de 1988/89, in: 15 Anos da Reforma de 1988/89, ob. cit., p . 60. 254 Cf., Posteriormente alvo de ligeiras modificações através da Resolução do Conselho de
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didas e reformas a concretizar no horizonte da legislatura para, até Outubro de 2000, serem objecto de decisão política, mas também de estabelecer o respectivo calendário até ao ano de 2003, com especial incidência em 2001 e 2002 255 • Assim, em 2000, na sequência dos trabalhos desenvolvidos no âmbito da ECORFI, o Governo pôde anunciar publicamente que iria entregar no Parlamento uma proposta de lei de autorização legislativa com o propósito de realizar a reforma fiscal da tributação do rendimento e dos benefícios fiscais 256 . Todavia, tendo os partidos com assento parlamentar feito igualmente a entrega de projectos de diploma com um objectivo idêntico 257, o Executivo viu-se forçado também a introduzir, em lugar da proposta de lei de autorização legislativa, uma proposta de lei, que correspondia ao primeiro dos quatro pilares de um corpo normativo que havia de culminar com a reforma da tributação indirecta, nomeadamente do sector energético258 f259 • Ministros no 10/98, de 23 de Janeiro. Cf., Fernando Castro Silva, Reforma Fiscal: Âmbito e Motivações, ob. cit., pp. 36 e ss.; ECORFI- Relatório Final e Anteprojectos, CTF, n° 190, DGCI-MF, 2002. 256 A proposta de lei de autorização legislativa ia, por um lado, alterar o Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e o Estatuto dos Benefícios Fiscais e, por outro, modificar a Lei Geral Tributária, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e o Código de Procedimento e Processo Tributário. Segundo Fernando Castro Silva, Reforma Fiscal: Âmbito e Motivações, ob. cit., pp. 36 e ss., a proposta de lei teve por pressuposto metodológico a apresentação faseada dos principais documentos legislativos da reforma a realizar: primeiro, as modificações ao IRS e algumas medidas essenciais de combate à evasão e fraude fiscais; até à apresentação do Orçamento de Estado de 2001, as modificações ao IRC e o novo regime jurídico das infracções fiscais e aduaneiras; e, por último, o novo regime de tributação do património e dos impostos ambientais. Afinal, uma apresentação faseada que visou, essencialmente, marcar de forma irreversível o calendário para a discussão das medidas apresentadas e preparar, com antecipação, todos os intervenientes em tal debate. Aliás, a bondade desta metodologia esteve bem patente na importância que passou a merecer o tema da fiscalidade junto da generalidade dos agentes políticos, havendo-se multiplicado os debates, as intervenções públicas e as contrapropostas. 257 Cf., Maria Celeste Cardona, Uma Política Fiscal para o Século XXI: Contributos para uma Reforma, ob. cit., p. 22. 258 Segundo assinalam Joaquim Pina Moura e Ricardo Sá Fernandes, A Reforma Fiscal Inadiável, Oeiras, Celta Editora, 2000, p . viii, a reforma fiscal, global, coerente e articulada baseava-se em quatro pilares: a reforma da tributação do rendimento, juntamente com os novos mecanismos de combate à fraude e à evasão fiscais; a reforma da justiça tributária dos sistemas de infracções tributárias e de garantias dos contribuintes; a reforma da tributação do património imobiliário, as propostas relativas à "nova fiscalidade (a "reforma fiscal ecológica" em toda a sua plenitude). Sobre os quatro pilares, Ricardo Sá Fernandes, Uma Reforma Fiscal Inadiável, Fisco, no 99/100, Outubro 2001, pp. 7 e ss. 259 Tratou-se de um processo de reforma fiscal que, iniciado com a aprovação pela Assembleia da República das Leis n°s 30-F e 30-G/2000, ambas de 29 de Dezembro, vieram "mexer" com a tributação do rendimento e adoptar um importante conjunto de medi255
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Neste contexto, a proposta do Governo, aprovada através da Lei n° 30G/2000, de 29 de Dezembro, foi apresentada como uma verdadeira reforma fiscal, cuja qualificação não deixou, porém, de ser questionada e alimentar profundas divergências de opinião 260 j261 . De facto, alguns apontaram-lhe a ausência dos atributos essenciais de uma reforma, como a inovação de princípios fundamentais, o enquadramento sistemático, a coerência lógica das respectivas normas, a modificação substantiva das regras de incidência, bem como de organização e funcionamento da máquina aplicadora do direito, o que tomava a iniciativa mais consentânea com uma mera reformulação das regras que haviam vigorado em sede de tributação dos rendimentos 262 j263 • Ademais, as novas regras, além de serem parte de um edifício inacabado, ficaram dispersas, não surgindo modeladas por princípios susceptíveis de lhes emprestarem a necessária coerência interna, até em termos da respectiva aplicação prática. Afinal, a proposta do Governo foi elaborada tendo em vista a prossecução de um conjunto importante de objectivos, de que cumpre destacar a equidade, a justiça tributária e o combate à fraude e evasão fiscais, bem como a diminuição das destinadas a combater a evasão e a fraude fiscais. A Lei n° 30-G/2000, de 29 de Dezembro foi considerada um "erro de política fiscal", uma vez que realizada, do ponto de vista da situação económica, a contra ciclo; foi também aprovada em contra-ciclo ao ciclo das reformas que feitas nos demais parceiros comunitários. Saldou-se ainda por um erro, na medida em que, após a respectiva aprovação parlamentar, foram suscitadas as maiores dúvidas de interpretação sobre o modo da respectiva aplicação. Neste sentido, Maria Celeste Cardona, Uma Política Fiscal para o Século XXI: Contributos para uma Reforma, ob. cit., p . 34, 261 Uma reforma que, segundo Pina Moura e Ricardo Sá Fernandes, A Reforma Fiscal Inadiável, ob. cit., p. IX, evidenciou a marca política e ideológica de um Governo do Partido Socialista. A este respeito, secundamos a posição de Paulo de Pitta e Cunha, Públicas e Direito Fiscal, ob. cit., pp. 20: "creio que melhor seria que uma reforma não ostentasse marcas deste tipo, que até podem afectar a sua durabilidade, pois semelhantes afirmações podem suscitar, por parte dos partidos que se sucedem no poder, o desejo de aporem também a sua marca, praticando alterações eventualmente desnecessárias" 262 Cf., Maria Celeste Cardona, Uma Política Fiscal para o Século XXI: Contributos para uma Reforma, ob. cit., p. 24; Paulo de Pitta e Cunha, A Pseudo-Reforma Fiscal do Século XX e o Regime Simplificado do IRS, in: Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ob. cit., pp. 16-17. Em sentido contrário, Luís Máximo dos Santos, A Reforma da tributação do rendimento de 2000: o reforço do carácter unitário do IRS e a tributação das mais-valias mobiliárias, ob. cit., p. 20. 263 Secundamos Luís Belo, Algumas Reflexões ao nível do Impacto sobre os Grupos Económicos da designada Reforma Fiscal, Fisco, n° 99/100, Outubro 2001, pp. 67 e ss., quando considera ser ainda prematuro julgar extensivamente as efectivas consequências das medidas recentemente aprovadas, independentemente de se concordar, ou não, com o seu teor. 260
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das taxas de tributação incidentes sobre os rendimentos do trabalho 264, tendo o Executivo enunciado um leque de possíveis soluções para a sua prossecução que vieram a conhecer desenvolvimentos diferenciados. Deste modo, da pretensa reforma constou, no plano do IRS, entre outros, a unificação de três categorias de rendimentos, reduzindo o número de nove para seis; o alargamento da base tributável através da criação de um novo regime simplificado de tributação; um novo figurino da tributação das mais-valias; e ainda a criação de uma tributação autónoma, enxertada ao nível da tributação do rendimento das pessoas singulares265 • No que respeita à primeira medida, cumpre registar que, em 1988, na construção do Código do IRS, tinha-se já optado por estruturar a incidência do imposto em torno de várias categorias, dentro das quais se enumeraram os distintos tipos de rendimentos sujeitos a tributação 266 • E, neste quadro, a incidência do imposto ficou alicerçada na numeração taxativa de um catálogo de rendimentos repartidos por nove categorias, em que as seis primeiras corresponderam a diferentes fontes ou origens do rendimento-produto, tendo a sétima assumido uma função enquadradora das mais-valias e as duas últimas revestido uma natureza residual. Ora, em virtude da evolução social e económica, o redesenho desta catalogação dos rendimentos 267 , e com ele das normas de incidência do IRS, ganhou um carácter imperativo, que importava temperar por razões de estabilidade e gradualismo de modo a prevenir a degradação do processo de aplicação da lei, seja por falta de referenciais, seja por rupturas que os destinatários da lei não pudessem compreender. A revisão das categorias de rendimento e a sua eventual fusão passou a constituir, por conseguinte, um objectivo principal, orientando-se os esforços por Cf., Ricardo Sá Fernandes, Uma Reforma Inadiável, Fisco, n° 99/100, ob. cit., p. 10: "Fazendo uma rápida referência aos objectivos centrais da reforma da tributação do rendimento, eu começaria por um vector fundamental: a melhor forma de evitar a evasão fiscal na tributação do rendimento é tributar todo o rendimento. 265 Como assinala Paulo de Pitta e Cunha, A Pseudo-Reforma Fiscal do Final do Século XX e o Regime Simplificado do IRS, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ob. cit., p. 20, trata-se de sintetizar alguns aspectos assaz controversos da recente mutação fiscal no domínio do IRS, facto que não nos deve inibir, porém, de formular um juízo positivo não só em relação ao aumento dos benefícios concedidos às famílias, mas também no que concerne a uma redução ao nível do escalão mais baixo. 266 Recusaram-se, consequentemente, outras técnicas como a técnica que acolhe, sob o chamado princípio da enumeração, a elaboração de um possível catálogo de receitas, bem como a que se funda no princípio da cláusula geral acompanhada por uma enumeração exemplificativa. Afastadas ficaram, também, as técnicas de previsão sintética assentes numa previsão global de incidência. 267 De salientar que Portugal, ao apresentar nove categorias de rendimentos no IRS, distinguia-se dos demais parceiros da União Europeia, em que a tributação do rendimento se faz através de um número variável, mas sempre inferior, dessas categorias 264
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propósitos de justiça tributária, simplificação e ampliação da base tributável. No final, a aglutinação de três categorias um uma só- a categoria B, designada "rendimentos empresariais e profissionais"-, que veio a absorver as duas seguintes, misturando de forma confusa profissionais independentes e empresários individuais, mereceu a viva reprovação da doutrina 268 j269 • Uma posição doutrinária compreensível à luz da tradição do sistema fiscal português em que os profissionais livres, atendendo à estrutura tradicional da sua ocupação, sempre haviam sido alvo de um tratamento idêntico ao dos empresários, merecendo antes a integração em uma categoria fiscal autónoma. Por sua vez, o alargamento da base tributável através da criação de um novo regime simplificado de tributação foi justificado pelo facto de os contribuintes das antigas categorias B, C e O- trabalho independente, actividades comerciais, industriais e agrícolas- apresentarem rendimentos anuais médios por titular significativamente inferiores quando confrontados com o valor correspondente dos trabalhadores por conta de outrem, evidenciando uma elevada evasão fiscal. E um dos aspectos críticos dessa tributação- que contribuía, de sobremaneira, para a deterioração da base tributável-, era fruto da falta de contabilidade organizada da generalidade dos sujeitos passivos das referidas categorias. Daí que a criação do regime simplificado se tenha reportado, no seu núcleo fundamental, à faculdade dos contribuintes poderem dispensar a existência de contabilidade organizada, passando a pagar o imposto por referência a índices de base técnico-científica aplicáveis ao volume de vendas ou ao valor das prestações de serviços. Mas, até que fossem publicados tais índices, a lei estipulava o valor das percentagens elegíveis para o apuramento do imposto a liquidar. Ora, o que se afigurou grave foi, logo à partida, o estabelecimento de uma presunção de rendimento mínimo, visto tal representar uma profunda distorção
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No que concerne à nova categoria B, o que pode dizer-se é que se tratou de uma unificação inteiramente formal, em que as regras substantivas de cada uma das categorias não foram tidas em conta para efeitos, nomeadamente, de questões relativas a regimes de retenção na fonte. Daí a publicação da circular interna n° 5/2001, com o objectivo de resolver tais questões, se bem que esta circular, como as demais regras "circulatórias" entretanto publicadas, não é do conhecimento dos contribuintes, sendo de aplicação vinculativa apenas para os serviços dela destinatários. Neste sentido, Maria Celeste Cardona, Uma Política Fiscal para o Século XXI: Contributos para uma Reforma, ob. cit., p . 27. Neste sentido, Paulo de Pitta e Cunha, A Pseudo-Reforma Fiscal do Final do Século XX e o Regime Simplificado do IRS, Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ob. cit., p . 20. 269 Verificou-se igualmente a fusão das anteriores categorias G e I numa única categoria- a categoria G -, designada "incrementos patrimoniais", na qual, para além das mais-valias, se compreenderam também certas indemnizações, as compensações pela assunção de obrigações de não concorrência e os chamados acréscimos patrimoniais não justificados, determinados através de uma avaliação indirecta da matéria colectável, regulada na Lei Geral Tributária. Lusíada. Direito. Lisboa, n .0 8 I 9 (2011)
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das concepções inerentes à filosofia de base do imposto único 270 • Dir-se-ia até particularmente grave porquanto, não admitindo o nosso sistema fiscal presunções iuris et de iure, a verdade é que a lei foi omissa sobre como elidir essa presunção de rendimento mínimo. Assim, a partir de 2001, quando passou a haver, além do apuramento dos rendimentos efectivos, uma alternativa que remetia para fórmulas simplificadas e rudimentares, o tratamento dado aos dois regimes foi de molde a implicar que o regime dominante haja passado a ser o simplificado271 , relegando-se o de contabilidade organizada para um plano secundário272 • Deste modo, a adopção de fórmulas simplificadas de tributação, justificadas por exigências práticas deduvidosa valia, ao traduzir uma regressão para sistemas que se pensava definitivamente ultrapassados, constituiu o início de um caminho sinuoso, de rumo incerto e controverso. Acresce que um outro aspecto que suscitou, com igual justeza, a retracção quanto a esta medida, assentou no facto do Governo não se ter comprometido com um prazo para efeitos de publicação dos índices de base técnico-científica 273 • De facto, era de recear que pudessem mesmo nunca ver a luz do dia, condenando o regime, porventura, a um destino semelhante ao famoso "redditometro" 274, um 270
De facto, a preeminência do regime de contabilidade organizada é, aliás, o único sentido compatível com o espírito do sistema fiscal instituído pela Reforma de 1988/89, que se pautou em relação ao IRS pela tributação dos rendimentos realmente auferidos, enquanto forma evoluída de imposto global, com base em declaração do contribuinte, configurando o regime simplificado, criado em 2000, um entorse de todo o progresso representado pela consagração daqueles princípios. Neste sentido, Paulo de Pitta e Cunha, A Pseudo-Reforma Fiscal do Século XX e o Regime Simplificado do IRS, in: Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ob. cit., p. 31. 271 A adesão ao regime simplificado mostrou-se meramente tácita, já que, de acordo com a lei, a opção deve ser expressa apenas quando o contribuinte pretenda manter o sistema de contabilidade organizada. 272 É esta posição assumida pela Administração fiscal que faz lembrar o funcionamento da "Lei de Gresham", surgindo o regime simplificado - "a má moeda" - a expulsar a boa moeda- "o regime de contabilidade organizada". Neste sentido, Paulo de Pitta e Cunha, A Pseudo-Reforma Fiscal do Século XX e o Regime Simplificado do IRS, in: Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ob. cit., pp. 27 e ss. 273 Cf., Maria Celeste Cardona, Uma Política Fiscal para o Século XXI: Contributos para uma Reforma, ob. cit., p.25; Paulo de Pitta e Cunha, A Pseudo-Reforma Fiscal do Século XX e o Regime Simplificado do IRS, in: Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ob . cit., p. 21. 274 Em Itália, um Decreto de 1983 consagrou um mecanismo de métodos indirectos, Correntemente designado "redditometro", o dispositivo baseou-se em índices relativos à utilização de veículos de elevada cilindrada, roulottes, cavalos de corrida, residências principais e secundárias. Recaía sobre o contribuinte o ónus de provar que o rendimento do "reddidometro" não era o correcto. Cf., Gaspare Falsitta, Manuale de Diritto Tributário, Padova, Cedam, 1995, pp. 222 e ss.
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dispositivo baseado também em indicadores técnico-científicos, que, introduzido com o propósito de assegurar receita e evitar as oportunidades de fraude, veio a ser qualificado como uma "evolução perversa da fiscalidade italiana" 275 • Em relação às mais-valias, a designada reforma fiscal pretendeu agir sobre o regime de tributação assente na sujeição a taxas liberatórias, que distorcia quer o carácter unitário, quer a progressividade do imposto, introduzindo um factor de injustiça no sistema sem paralelo na grande maioria dos parceiros comunitários. Na verdade, desde o lançamento da reforma de 1988, cuja essência consistiu na adopção de um figurino de imposto único sobre o rendimento, que se tornara evidente que a opção feita no sentido de consagrar um importante leque de taxas liberatórias derrogava de modo significativo a regra fundamental da unidade e progressividade do imposto. Demais, a existência de taxas liberatórias, cujo campo de aplicação havia aumentado de forma assinalável, constituindo os rendimentos de capitais e as mais-valias os domínios por excelência, perdera já alguns dos principais argumentos invocados em sua defesa, designadamente a necessidade de auxiliarem o processo de desenvolvimento do mercado de capitais, em geral, e, em particular, do mercado de valores mobiliários. Neste contexto, procedeu-se à eliminação da taxa liberatória sobre os ganhos da alienação de obrigações, outros títulos de dívida e acções, mesmo que detidas pelo seu titular há mais de 12 meses, passando o respectivo valor a ser obrigatoriamente englobado em termos gerais 276 / 277 • Porém, o certo é que a adopção do novo figurino de tributação das mais-valias acabou por constituir o que alguns designam "um verdadeiro erro de política fiscal" 278• De facto, o País, ao arrepio do que parecia ser a tendência dominante da generalidade dos parceiros comunitários que, animados pelo objectivo de promover a concorrência fiscal para a captação de investimentos e empresas, vinham realizando reformas fiscais orientadas para a isenção da tributação de mais-valias, a par da diminuição das taxas de imposto ao nível do IRS e IRC, acabou por escolher um caminho diverso, optando por uma tributação agravada das mais-valias das acções. Por fim, a criação de uma tributação autónoma sobre remunerações acesSegundo Raffaello Lupi, Diritto Tributaria, Milano, Giuffre Editare, 3a ed., 1995, pp. 227 e ss., a determinação sintética, mediante a utilização dos coeficientes e o "reddidometro", constituiu um corpo estranho na fiscalidade italiana. 276 Como assinala Ricardo Sá Fernandes, um dos responsáveis políticos da reforma, Uma Reforma Fiscal Inadiável, Fisco, n° 99/100, ob. cit., p. 12,a tributação das mais-valias entroncava na tónica de moralização que o Governo pretendia imprimir do sistema fiscal. 277 Um regime suspenso e alterado pelo Orçamento do Estado para 2002 e posteriormente revogado pelo Governo saído das eleições de Março de 2002, voltando-se ao regime que vigorava desde o início da Reforma Fiscal de 1989. 278 Cf., Maria Celeste Cardona, Uma Política Fiscal para o Século XXI: Contributos para uma Reforma, ob. cit., p.25. 275
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sórias em que se incluem, nomeadamente, despesas confidenciais, despesas de representação e despesas com viaturas, representou uma tributação adicional de encargos que constituem despesas dedutíveis no apuramento do rendimento colectável de IRS. Trata-se de benefícios fiscais que, embora susceptíveis de tributação, pela indeterminação na forma do cálculo, viam esta imposição não se efectivar ou efectivar-se de forma muitas vezes arbitrária, à luz de critérios fixados pela Administração fiscal. Uma prática geradora de incerteza para os contribuintes, susceptível de ferir os princípios constitucionais279 • Não estando em causa questionar o bem fundado da sua tributação, afigura-se que devia constar de um diploma autónomo, uma vez que, no final, esta figura não tem nada a ver com o resto do sistema do imposto sobre o rendimento. Assim, ao surgir de forma desgarrada dentro do IRS, contribui para comprometer ainda mais o carácter único deste tributo 280 • No que concerne ao IRC, a par da definição de um regime simplificado de tributação à semelhança do IRS281, introduzido com um idêntico propósito de combater a evasão e a fraude fiscais, mas que se relevou uma solução controversa, procedeu-se à alteração da tributação das mais-valias formadas nas sociedades "holding", uma proposta que mereceu igualmente reservas 282 • Na verdade, o regime anterior, assente na isenção de tais ganhos se ocorresse reinvestimento e pelos períodos em que o mesmo tivesse lugar, havia dado azo 279
Cf., Vasco Valdez, As Remunerações Acessórias e a Reforma da Tributação do Rendimento, Fisco, n° 99/1000,2001, pp.85 e ss. 280 A este propósito, Paulo de Pitta e Cunha, A Pseudo-Reforma Fiscal do Século XX e o Regime Simplificado do IRS, in: Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ob. cit., p . 22, fala em "figura autónoma de imposto, que aberrantemente surge dentro do próprio IRS". 281 As mesmas dificuldades de carácter geral que haviam justificado o "Pagamento Especial por Conta" originaram a criação do "regime simplificado". Mas se o regime criado pela Reforma de 1988/89 se mostrou incapaz de enfrentar a realidade económica e social, o "regime simplificado" é igualmente inadequado, dispendioso, insuficiente e, como tal, de rejeitar. Nesta linha, Henrique Medina Carreira, A Tributação das Sociedades na Constituição e na Reforma de 1988/89, ob. cit., p. 150. 282 Em sede de IRC, são de salientar, como principais aspectos positivos: a acentuação da gradual redução das taxas, porventura sob pressão da comparação competitiva com a Irlanda, país onde as taxas eram muito baixas; bem como a introdução de regras sobre os preços transferência, fenómeno com uma grande relevância fiscal que vinha a ser debatido há longo tempo, sendo imperioso dotar o País quer de regras sofisticadas sobre a matéria, quer de capacidade de aplicação. Neste sentido, Paulo de Pitta e Cunha, A Pseudo-Reforma Fiscal do Século XX e o Regime Simplificado do IRS, in: Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ob. cit., p. 21. Também Luís Máximo dos Santos, A Reforma da Tributação do Rendimento de 2000: O Reforço do Carácter Unitário do IRS e a Tributação das Mais-Valias Mobiliárias, ob. cit., p. 22, no quadro das medidas visando o estímulo da competitividade.
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a um p laneamento fiscal excessivo, acabando por permitir um diferimento quase ilimitado da respectiva tributação, sendo utilizado especialmente por sociedades gestoras de participações sociais. Então, perante a necessidade de rever o modelo, assistiu-se à abolição da isenção, passando as mais-valias das SGPS's a ser tributadas tal como as das outras sociedades, aceitando-se um regime de diferimento por prazo determinado, havendo reinvestimento. Uma medida de eficácia duvidosa que, ao afectar a atractividade fiscal, tendeu a retrair o investimento, designadamente de origem estrangeira, e se mostrou visivelmente inoportuna considerada a volatilidade das bolsas e o quadro psicológico depressivo que então se vivia283 . No conjunto, estas iniciativas inseridas na proclamada última "reforma fiscal" do século cedo começaram a suscitar "dúvidas e perplexas inquietações interpretativas" 284 . Facto que, associado à ausência de uma avaliação do respectivo impacto económico-financeiro, veio a suscitar, mais uma vez, a questão da melhor qualificação, numa óptica de reforma, a atribuir ao pacote de medidas adoptadas em face às expectativas alimentadas. Uma "reforma" porventura inadiável, mas seguramente empolada e curta, que procurou pontificar recorrendo ao método de "reforma da reforma" e teve um desfecho que, em termos práticos, pode ser considerado como uma "reformette".
7. Notas Finais
A análise da dinâmica das cinco reformas fiscais realizadas no século XX permite reflectir, desde logo, sobre a dificuldade em definir os contornos do que se há-de entender por uma reforma fiscal pautada, em cada época pela acepção política dominante. Na verdade, enquanto que, em certos casos, meras medidas avulsas foram suficientes para configurar uma reforma tributária, sempre que se mostrou conveniente exaltar com base em argumentos políticos o respectivo sentido e ambição, em outros, porém, apostou-se decididamente numa visão de mais largo alcance, orientada para uma mudança do paradigma de tributação vigente 285, com
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Cf., Maria Celeste Cardona, Uma Política Fiscal para o Século XXI: Contributos para uma Reforma, ob. cit., p.27; Paulo de Pitta e Cunha, A Pseudo-Reforma Fiscal do Século XX e o Regime Simplificado do IRS, in: Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ob. cit., p. 21. 284 Cf., Rui Barreira, A Reforma Fiscal, Fisco, no 99/100, 2001, p. 4. 285 A este propósito adoptamos o critério esboçado por Paulo de Pitta e Cunha, A Pseudo-Reforma Fiscal do Final do Século XX e o Regime Simplificado do IRS, in: Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal ob. cit., p. 17. Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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a reforma a convocar transformações fundamentais do sistema fiscal instituído 286 . Numa outra perspectiva, as iniciativas reformadoras desenhadas no início da República tornam também legítimo ressaltar com clareza uma conexão natural - dir-se-ia, de todos os tempos -, entre a robustez das reformas e a força do poder político que sustenta cada "ímpeto" reformista 287 • Na verdade, quando o poder foi fraco ou exercido em condições de instabilidade, as chamadas reformas fiscais pecaram pela debilidade, mostrando-se incipientes e circunscritas aos elementos de tributação susceptíveis de garantir a obtenção de receita, entendida como a função prioritária. Porém, sempre que o poder se estabilizou, independentemente do regime político, tornou-se possível empreender reformas profundas, abrangentes e até mesmo afectantes de interesses instalados. Por fim, no Portugal democrático do último quartel do século passado, torna-se possível destacar ainda, de forma inequívoca, através das últimas experiências reformadoras, o forte impacto da integração europeia quer no plano da arquitectura do sistema tributário, quer ao nível da própria política fiscal. Com efeito, a adesão de Portugal ao projecto de integração económica europeia funcionou como o principal motor da reforma mais relevante e decisiva, porventura da "verdadeira revolução", que o sistema fiscal português alguma vez conheceu. Tratou-se de uma reforma fiscal autêntica e global que, ao ter como fulcro a instituição da unicidade (tendencial) da tributação do rendimento, conjuntamente com a adopção do imposto sobre o valor acrescentado, acabou por transformar de forma definitiva a matriz do sistema fiscal nacional, na linha de inspiração do modelo acolhido pelos demais parceiros comunitários e pela generalidade dos países desenvolvidos. Mas no virar do século e do milénio, num ambiente marcado pela vontade de afirmar princípios e valores fundamentais, corrigir normas e, ainda, afinar sistemas, não deixaram de se multiplicar iniciativas que o legislador, sob a epígrafe "a reforma fiscal para o século XXI", não resistiu a qualificar como uma intervenção inadiável para preparar o sistema fiscal para o novo século. Contudo, na realidade assistiu-se não à remodelação total do sistema instituído, antes a uma evolução na continuidade, com a introdução de um conjunto de ajustamentos ditados, em especial, pela pressão do acréscimo da receita ou pelo propósito, sempre meritório, de promover o combate à evasão e fraude fiscais. Nesta senda, a "reforma" incessantemente proclamada circunscreveu-se sobretudo a uma reformulação do sistema vigente, não se tendo traduzido, na prática, em medidas capazes de materializar o avanço da fiscalidade nacional, acabando mesmo por revelar-se, em alguns casos, contraproducentes288 • As "major changes", como referem os Autores anglo-saxónicos. Cf., João Ricardo Catarina, Para uma Teoria Política do Tributo, ob. cit., p. 338. 288 É elucidativa a introdução de uma colecta mínima, seja em IRS, seja em IRC, corporizan-
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Todavia, tal circunstância não anulou o contributo emprestado à visibilidade crescente que a política fiscal adquiriu entre nós, fruto, mormente, da participação do País na zona euro. Com efeito, a União Económica e Monetária, ao reclamar um novo policy mix, justificou a revalorização da política fiscal no quadro das políticas macroeconómicas 289, conferindo-lhe um papel reforçado assente no facto de nela se afirmar um dos últimos baluartes da soberania dos Estados. Afinal, no domínio das políticas de conjuntura, à míngua de outros instrumentos de actuação, é para a política fiscal que os países tendem a voltar-se, procurando atribuir-lhe uma renovada vocação no respeito da harmonização comunitária, seja ao nível dos princípios e regras da tributação indirecta, seja no plano dos tímidos avanços da tributação directa 290 / 291 • Um novo cenário de actuação em que, não obstante os constrangimentos, pede-se à política fiscal que vá mais longe e, garantindo um fluxo adequado de receita, promova ainda a competitividade e o crescimento económico. Pretende-se também que uma política fiscal moderna atenda a um leque diversificado de áreas de preocupação: mostre-se amiga do ambiente, incentive os mercados financeiros, fomente a poupança, contribua para a preservação do património cultural, apoie a criação artística e participe até no esforço de inversão da pirâmide etária292 • No actual quadro de consolidação dos modelos de tributação, não se visualiza nem a premência, nem a oportunidade de lançar a breve trecho uma nova do a vontade do fisco de obtenção de rendimentos, ainda que ao arrepio dos princípios de personalização e justiça fiscal, que haviam sido inspiradores da reforma originária. Neste sentido, Paulo de Pitta e Cunha, A Pseudo-Reforma Fiscal do Final do Século XX e o Regime Simplificado do IRS, in: Revista de Finanças Públicas e Direito Fiscal, ob . cit., p . 18. 289 Com a UEM, não só a política monetária ficou centralizada na União Europeia, como também os países da zona euro perderam a autonomia da política cambial. Mas, mantendo-se nas mãos dos Estados a condução da política orçamental, o bom funcionamento da UEM não deixa de impor o acatamento de importantes constrangimentos ao manejo da política orçamental, definidos ao nível comunitário, dos quais o mais importante respeita à dimensão do défice. A este respeito, entre outros: Luís D. S. Morais, Portugal e os Défices Excessivos- o Pilar Económico da União Económica e Monetária e a Disciplina do "Pacto de Estabilidade e Crescimento", in: Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Sousa Franco, Coimbra, Coimbra Editora, 2006, vol. II, pp.815 e ss.; Maria Eduarda Azevedo, As Parcerias Público-Privadas: Instrumento de uma Nova Governação Pública, Coimbra, Almedina, 2009, pp. 103 e ss. 29 Cf., Luís Máximo os Santos, Os Desenvolvimentos Posteriores à Reforma Fiscal de 1988/89, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, ob. cit., pp. 62-63. 291 A este leque de condicionantes associam-se ainda a incidência, no domínio da fiscalidade, das regras do comércio multilateral, no âmbito da Organização Mundial do Comércio, bem como a concorrência fiscal internacional. 292 Cf., Luís Máximo dos Santos, Os Desenvolvimentos Posteriores à Reforma Fiscal de 1988/89, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, ob. cit., p. 63.
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reforma fiscal. O tempo é mais de aprofundamento do que de transformações fundamentais. No entanto, a presente estrutura fiscal não será imutável, tendo em conta as exigências da competitividade da economia e os imperativos de transparência, equidade, estabilidade e certeza na aplicação do sistema jurídico-tributário. Ora, neste início de século, considerados os desequilíbrios financeiros e os desafios em matéria de competitividade e emprego, uma futura reforma fiscal, sendo importante, não será a única contribuição decisiva. Na verdade, o esforço de ajustamento requerido há-de compreender, antes, reformas estruturais em áreas nevrálgicas como a justiça, a saúde, a educação e a segurança social. Julho 2011
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INABILITAÇÃO DO INSOLVENTE CULPOSO 1 Miguel J. Pupo Correia2
1. Digressão histórica por uma questão já antiga ... 1.1. O tema que me proponho tratar tem raízes longínquas no direito falimentar: e pareceu-me interessante abordá-lo para mostrar como o nosso legislador "pós-moderno" por vezes vem, julgando que inova, retomar velhíssimas soluções que a evolução do pensamento jurídico aconselhara abandonar, normalmente à luz de novas realidades e de uma melhor percepção dos valores e interesses em jogo. É o que se passa com a incapacitação civil do insolvente declarado culposo, que o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) veio adoptar, reintroduzindo na nossa lei uma medida há muito abandonada. Os sucessivos regimes da falência (hoje denominada insolvência) traduzem algumas flutuações no pensamento do legislador quanto às finalidades do instituto, mas, apesar disso, denotam preocupações constantes, que determinam soluções básicas algo estáveis quanto aos efeitos decorrentes da declaração judicial da falência/insolvência. Assim, no que toca aos efeitos patrimoniais, o nosso direito positivo tem recorrentemente previsto três tipos de medidas dirigidas ao falido: 1•: A privação da posse, administração e disposição dos seus bens patrimoniais, que são autonomizados como um acervo destinado ao ressarcimento dos credores ("massa falida" ou "massa insolvente"); 2°: A proibição de continuar a exercer o comércio, que exprime a perda de confiança na sua aptidão para lidar com os riscos desse género de actividades; 3°: A censura penal, se a quebra se tiver ficado a dever a conduta dolosa ou negligente do falido (crimes de falência/insolvência dolosa 1
Intervenção no Colóquio "Insolvência e recuperação de empresas: uma realidade multidisciplinar", realizado na Universidade Lusíada de Lisboa, em 28.10.2010. 2 Mestre em Direito; advogado; Professor na Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa
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ou fraudulenta e de falência/insolvência negligente ou ocasional). Porém, ao longo das sucessivas reformas legislativas que o instituto tem experimentado ao longo do tempo, estes pilares do seu regime de efeitos patrimoniais têm sofrido alguma evolução, em que o legislador geralmente acolhe os ensinamentos da experiência e influências de direito comparado, com vista a melhorar a eficácia da prossecução dos fins visados, que são, geralmente: a satisfação quanto possível dos credores do falido; a salvaguarda da sua empresa, se esta puder ser preservada; e a punição das condutas do falido que violem valores fundamentais da protecção dos interesses de terceiros (maxime, dos credores). Aliás, tem sido frequente a alteração do regime da falência, sobretudo em épocas de crises económicas, surgindo por vezes inovações menos felizes, porque inconsistentes com a teleologia do instituto e a harmonia entre as soluções adoptadas. 1.2. Vejamos como se projectam estas considerações preliminares na perspectiva histórica. Recordo, desde logo, a lição de J. G. PINTO COELHO (3): «A falência importava, antigamente, uma incapacidade absoluta para o falido, determinando até a sua morte civil; mas, com os progressos da civilização, suavizou-se a situação do falido, que passou a sofrer apenas uma incapacidade relativa, isto é, restrita a bens». Assim sucedia no Código Comercial de 1833 (de Ferreira Borges), cujo art. 29 privava de capacidade comercial os falidos não reabilitados, proibindo-lhes o exercício do comércio. E o art. 700° do Código Comercial de 1888 (de Veiga Beirão), que veio a ser reproduzido no Código de Falências de 1899 (art. 16°), atribuía à falência o efeito da «interdição civil do falido pelo que respeita aos seus bens havidos ou por haver>>., acrescentando o seu§ 1° que «a incapacidade do falido é suprida pelo administrador ... >>. Daqui resultava que, como efeito automático da declaração da falência, o falido era havido por incapaz e que seriam nulos os actos que ele praticasse tendo por objecto os seus bens. Solução esta, porém, que foi alvo de fortes críticas: primeiro, por a queda em falência não resultar normalmente de deficiência de maturidade ou de qualidades intelectuais ou morais da pessoa do falido (como é timbre das causas de incapacidade civil), mas sim de má gestão ou má fortuna dos negócios; e segundo, por a incapacitação conduzir ao resultado injusto de o falido se poder aproveitar do estado de coisas por ele criado com a prática de negócios jurídicos vedados ao incapaz, lesando os interesses dos parceiros envolvidos, pois, invocando a nulidade, fugiria ao cumprimento das suas obrigações e não teria sequer suporte patrimonial para ressarcir de tais parceiros (4). Daí que
3
4
"Efeitos da falência sobre a capacidade do falido, segundo o novo Código do Processo Civil", in "Revista da Ordem dos Advogados", ano 3°, 1943, n°s 2 e 3, p . 176 e seg .. Vd. tb ., ARY DE ALMEIDA ELIAS DA COSTA, "Das Falências", E.D.A., 2a ed. 1971, p. 79, n. 3. Cfr. A. FERRER CORREIA, "Lições de Direito Comercial", policop., vol. I, 1973, p. 168.
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FERRER CORREIA defendesse uma interpretação correctiva no sentido de que só a massa falida, representada pelo administrador, deveria poder arguir a nulidade dos actos praticados pelo falido e, até, referisse que já então se questionava se era a nulidade a sanção adequada. Por outro lado, embora o C.Com. de 1888 e o Código de Falências de 1899 nada referissem a propósito da proibição do exercício do comércio pelo falido, a doutrina entendia maioritariamente que a incapacidade do falido tinha a consequência de ele não poder comerciar (5). Ademais, naquela mesma época, o Código Penal de 1852 previa e punia com "degredo por toda a vida"!- o crime de quebra fraudulenta (art. 447°). 1.3. O Código de Falências de 1935 abandonou a solução da incapacidade do falido, dando acolhimento às críticas que esta tinha vindo a acumular ao longo de muito tempo. E, no seu art. 212°, substituiu-a pela medida, mais moderada de contornos e consequências, de «inibição do falido para administrar e dispor dos seus bens ... >>, a qual depois passou para o Código de Processo Civil de 1939 (art. 1189°), tendo por consequência a "ineficácia" em relação à massa falida dos actos que o falido praticasse após a declaração de falência (no art. 1190°, n. 0 1 do CPC) (6 ) E assim perdeu base legal a tese da incapacidade do falido, tornando-se doutrina largamente dominante a de que a declaração de falência apenas o afecta de indisponibilidade dos bens da massa falida, em relação à qual os actos por ele praticados não podem produzir efeitos. No entanto, tais actos poderiam ganhar eficácia caso fossem ratificados pelo administrador, se conviessem à massa (art. 1190°, n° 2, do CPC); e, na hipótese de não serem ratificados, tais actos permaneciam válidos inter partes, pelo que, após a reabilitação do falido ou a aquisição por ele de novos bens, poderia ser exigido pelos terceiros o cumprimento das obrigações que o falido assumiu. O último vestígio da velha capitis deminutio do falido era limitado à esfera patrimonial relativa à falência, na medida em que o art. 1189° do CPC dispunha que: «O administrador da falência fica a representar o falido para todos os efeitos, salvo quanto ao exercício dos seus direitos exclusivamente pessoais ou estranhos à falência. >> 5
6
J. M. BARBOSA DE MAGALHÃES, "Código de Falências Anotado", Parceria António Maria Pereira, Lisboa, 1901, p. 101. No mesmo sentido, JOSÉ TAVARES, CAEIRO DA MATA e PINTO COELHO; contra, todavia, MARNOCO e SOUSA e a Revista de Legislação e de Jurisprudência, apud LUÍS BRITO CORREIA, "Direito Comercial", AAFDL, Lisboa, 1987(88, 1o vol., p. 173 e seg. Desde então, perdeu fortuna a tese da incapacidade, muito embora ainda tivesse sido sustentada por J. G. PINTO COELHO, em face da redacção menos feliz dos arts. 1317° e segs. da redacção original do CPC de 1939, onde continuava a falar-se em "interdição" do falido. Mais tarde, porém, esta incongruência veio a ser removida, com a alteração daquele termo para inibição (art. 1318°, assim harmonizado com o art. 1189°).
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Ademais, o art. 1191° do CPC retomou a proibição do falido exercer o comércio, por si ou por interposta pessoa, bem como de desempenhar funções de gerente ou administrador de sociedades. Na esteira de FERRER CORREIA C), sempre entendi que esta disposição não tinha por fundamento qualquer incapacidade do falido, tese incompatível com a solução legal de os actos infractores daquela proibição não serem nulos ou anuláveis (como deveria ocorrer se se tratasse de uma incapacidade), mas apenas ineficazes porque inoponíveis em relação à massa falida; bem como, por tal proibição ser fundada na protecção dos interesses do comércio e não em qualquer causa que afecte a aptidão natural do falido. Trata-se, pois, como entenderam FERNANDO OLAVO e L. BRITO CORREIA (8), de uma situação de impedimento ou incompatibilidade, visando proteger o comércio, e tendo a infracção a tal impedimento a consequência da não atribuição ao falido da qualidade de comerciante, mesmo que ilicitamente exerça uma actividade comercial, além de cada um dos actos praticados contra a proibição ser ineficaz em relação à massa falida. Entretanto, manteve-se o enquadramento penal da falência, tendo o Código Penal de 1982 previsto os tipos legais de falência dolosa (art. 325°) e falência por negligência (art. 326°). 1.4. A disciplina falimentar do CPC veio a ser substituída pela do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresas e de Falência (CPEREF) (aprovado pelo Decreto-Lei n° 132/93, de 23 de Abril), que manteve substancialmente o regime do CPC acima sumariado (arts. 147° e 148°), embora tenha abandonado a referência a "inibição" constante do precedente art. 1189° do CPC: o art. 147°, no 1, passou a dispor que: «A declaração de falência priva imediatamente o falido( ... ) da administração e do poder de disposição dos seus bens presentes e futuros ... ». Houve quem entendesse, que o preceito do no 2 do art. 147° [«O liquidatário judicial assume a representação do falido para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência»], significaria uma limitação da capacidade patrimonial do falido, ou seja, corresponderia a ressuscitar a teoria da incapacidade (9). Porém, tal entendimento sempre me pareceu incompatível com solução do mesmo CPEREF de os actos do falido serem inoponíveis à massa falida e não anuláveis, como seria lógico e coerente se duma verdadeira incapacidade se tratasse. Portanto, em substância, o CPEREF nada alterou a este respeito, mantendo, no entanto, o carácter automático da inibição do falido como consequência da declaração de falência, bem como a proibição do falido exercer o comércio.
7
Obra e vol. cits., pp. 174 e ss. L. BRITO CORREIA, obra e vol. cits., pp. 174 e seg. 9 Neste sentido, LUIS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, "Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência Anotado", Lisboa, Quid Juris?, 1994, p. 354. 8
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Entretanto, a revisão do Código Penal operada pelo Decreto-Lei n° 48/95, de 15 de Março, manteve nele os tipos legais de crimes de insolvência dolosa (art. 227°) e falência não intencional (art. 228°). 1.5. Contudo, o actualmente vigente Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE - aprovado pelo Decreto-Lei n° 53/2004, de 18 de Março) -além de modificar o nome do instituto insolvência-, manteve o preceituado no art. 147°, no 1, do CPEREF, que o seu art. 81°, no 1, praticamente reproduziu: a declaração de insolvência continua a privar imediatamente o insolvente dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, que passam a competir ao administrador da insolvência, o qual «assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência» (n° 4 do art. 81 °). E o n° 6 do mesmo art. 81 o estabelece (ainda à semelhança do CPEREF) que os actos contra a proibição constante daquele n° 1 são ineficazes em relação à massa insolvente. Consequentemente, o terceiro que se torne credor mercê de um acto praticado pelo insolvente nessas circunstâncias poderá exigir o seu crédito, respondendo pela respectiva dívida os bens do insolvente que não façam parte da massa (art. 81°, no 8, al. a)). Se tais bens não existirem ou não forem suficientes, o credor terá de aguardar que o falido possa cumprir a respectiva obrigação, maxime após o encerramento do processo de insolvência. (1°) (11 ) Mas o CIRE alterou significativamente a incidência da inibição do falido para 10
11
Todavia, segundo o mesmo no 6 do art. 81°, se mercê de tais actos ineficazes tiverem sido efectuadas prestações a favor da massa insolvente, esta responderá pela respectiva restituição apenas segundo as regras do enriquecimento sem causa. Isto salvo se tais actos: (a) forem celebrados a título oneroso com terceiros de boa fé anteriormente ao registo da sentença da declaração de insolvência; e (b) não forem de algum dos tipos de actos resolúveis em benefício da massa insolvente (referidos no n. 0 1 do artigo 121°). Logicamente, quando os actos obedecerem cumulativamente a estes dois requisitos, os terceiros terão direito à restituição integral. Por outro lado, segundo o n° 7 do art. 81°, se o insolvente receber pagamentos de dívidas à massa após a declaração de insolvência, os devedores só ficarão liberados se os pagamentos forem efectuados de boa fé em data anterior à do registo da sentença, ou se for demonstrado que o respectivo montante deu efectiva entrada na massa insolvente. É de notar que o CIRE não contém a regra constante dos regimes falimentares precedentes (por último, do art. 155°, n° 2, do CPEREF) segundo a qual os actos do devedor podem produzir efeitos em relação à massa, caso sejam confirmados pelo administrador. Mas, apesar do silêncio do CIRE a este respeito, creio que essa solução pode ainda hoje ser extraída do regime da gestão de negócios (arts. 464° e segs. do C.Civ.), para que os interesses dos terceiros que contratem com o insolvente sejam razoavelmente protegidos, pelo que tais actos, se convierem à massa, podem ser ratificados pelo administrador da insolvência, caso em que se tornarão eficazes para com aquela. E, na hipótese de não serem ratificados pelo administrador, tais actos permanecerão válidos inter partes (o insolvente e o terceiro), como já se referiu.
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exercer o comércio, que deixou de ter carácter legalmente imperativo e automático e duração ilimitada (como sucedia nos art. 1191°, do CPC, e art. 148°, n°s. 1 e 2, do CPEREF), pois passou agora a ser apenas uma das consequências sancionatórias da sentença do incidente de qualificação da insolvência (arts. 185° e segs.), que a qualifique como culposa (conforme prevê a al. c) do n° 2 do art. 189° do CIRE. Tal inibição não tem lugar, portanto, em caso de qualificação da insolvência como fortuita . Por outro lado, o Decreto-Lei n° 53/2004, que aprovou o CIRE, agravou a pena do crime de insolvência dolosa - de até 3 para até 5 anos de prisão - (art. 227° do Cód. Penal) e manteve a da insolvência negligente (art. 228°, idem).
2. O reforço do enquadramento punitivo: a inabilitação do insolvente
2.1. Como o excurso precedente tornou claro, a partir de 1833 e ao longo da história do nosso direito falimentar codificado: a) O regime básico de efeitos patrimoniais da declaração de falência/insolvência manteve três pilares básicos: 1o - Privação do falido I insolvente da administração e disposição dos seus bens; 2° - Proibição do exercício do comércio pelo falido/insolvente; 3°- Enquadramento criminal das condutas geradoras de falência/insolvência devidas a culpa do devedor. b) Todavia, evoluiu, a partir da solução primitiva de incapacidade relativa do falido, num sentido moderador das consequências da declaração de falência: 1°) passando (a partir do Código de Falências de 1935) da incapacitação para a mera inibição do falido para administrar e dispor dos seus bens, geradora de mera ineficácia em relação à massa falida/insolvente dos actos pelos quais ele a infrinja; 2°) retirando (a partir do CIRE de 2004) carácter automático e duração ilimitada à proibição do falido exercer o comércio; e 3°) moderando as consequências penais da falência, desde o "degredo para toda a vida" de 1852 até às penas de prisão diferenciadas consoante a imputação por dolo ou negligência da conduta dos agentes. 2.2. Porém, o sentido dessa tendência inverteu-se no Decreto-Lei n° 53/2004, que aprovou o CIRE, não só ao agravar a pena da insolvência dolosa, mas também porque o CIRE veio adoptar novas medidas punitivas do insolvente culposo, nomeadamente a prevista na al. b) do n° 2 do seu art. 189°, segundo a qual a sentença do incidente de qualificação da insolvência que a qualifique como culposa deve decretar a «inabilitação das pessoas afectadas pela qualificação por um período de 2 a 10 anos». Procurando entender o significado da referida al. b) do n° 2 do art. 189°, somos levados forçosamente a estabelecer uma conexão com o regime das inabilitações dos arts. 152° e seguintes do Código Civil. É nesta perspectiva que se pode entender que o art. 190°, n° 1, do CIRE determine que para cada um dos inabilitados seja nomeado pelo juiz um curador e são fixados os respectivos poderes; e
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que o art. 189°, n° 3, idem, preveja que tanto a inibição para o exercício do comércio como a inabilitação e a nomeação do curador serão oficiosamente registadas na Conservatória do Registo Civil (1 2), bem como, quando se trate de comerciante individual, na Conservatória do Registo Comercial (13). Estas normas confirmam o intuito do legislador do CIRE de acrescentar à indisponibilidade dos bens da massa insolvente, que manteve, uma sanção incapacitante do insolvente (e dos administradores da pessoa colectiva insolvente): ao prever a inabilitação do insolvente e demais pessoas afectadas pela qualificação da insolvência como culposa, aquele preceito tem por consequência repor a questão no âmbito da incapacidade, pelo que, em caso de prática por qualquer dessas pessoas, sem autorização do respectivo curador, de actos abrangidos no âmbito da inabilitação, tais actos serão anuláveis. Não me parece, com efeito, de subscrever a opinião que pretende aplicar aos actos praticados pelo insolvente inabilitado, no domínio da sua incapacidade, por analogia, o regime de ineficácia em relação à massa previsto no art. 81°, n° 6, do CIRE (1 4): por um lado, a solução resultante do Código Civil para infracções à inabilitação é a anulabilidade; e, por outro lado, a situação jurídica da massa, como património autónomo sujeito à gestão do administrador, é completamente distinta da dos bens do insolvente a ela estranhos, aos quais se dirige a curatela instaurada pela inabilitação. 2.3. Esta alínea b) do n° 2 do art. 189° do CIRE tem sido alvo de veementes críticas por parte da Doutrina (1 5) e da Jurisprudência, sob vários aspectos que corroboram a total infelicidade da norma, justamente acoimada de "estranha" (J. M. COUTINHO DE ABREU) e "absurda" (R. PINTO DUARTE). Desde logo, pelo erro de tradução de que padece na sua origem: ela é uma das normas que foram inspiradas pela lei falimentar espanhola de 2003 ("Ley 22/2003, de 9 de julio, Concursal) (1 6), tendo sido baseada no no 2.2 do seu artigo 12
Por averbamento ao assento de nascimento: art. 69°, n° 1, al. j), do Cód. do Registo Civil, redacção dada pelo art. 6° do DL n° 53/2004, de 18.3. 13 Estas normas sobre as incidências registais da inabilitação do insolvente convencem-me de que não existe "lapso" do legislador ao adoptar este conceito, como sugeriu RUI PINTO DUARTE (apud LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, "Direito da Insolvência", Almedina, Coimbra, 2a ed., 2009, p. 277, n. 329). 14 LUIS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, "Código da Insolvência de da Recuperação de Empresas Anotado", Quid Juris?, Lisboa, 2008, p. 624, nota 5; e "Colectânea de Estudos sobre a insolvência", Quid Juris?, Lisboa, 2009, p. 268. 15 J. M. COUTINHO DE ABREU, "Curso de Direito Comercial", Almedina, Coimbra, vol. I, 7a ed., 2009, p. 134 e ss.; LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, "Direito da Insolvência", Almedina, Coimbra, 2a ed., 2009, pp. 277 e ss; RUI PINTO DUARTE, "Efeitos da declaração de insolvência quanto à pessoa do devedor", in Themis, ed. especial, 2005, pp. 131-150. 16 Cfr. J. M. COUTINHO DE ABREU, obra e local cits.; e Ac. TC n° 173/2009, D.R., !a S., n° 85, de 4.5.2009, p. 2519, n° 5.
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172, segundo o qual: « La sentencia que califíque el concurso como culpable contendrá(. . .): 2. La inhabilitación de las personas afectadas por la calificación para administrar los bienes ajenos durante un período de dos a 15 anos, así como para representar o administrar a cualquier persona durante el mismo período, atendiendo, en todo caso, a la gravedad de los hechos y a la entidad deZ perjuicio. » Não custa muito perceber que estamos perante uma errónea transplantação do conceito mencionado na lei do país vizinho: a "inhabilitación" no direito espanhol não é uma incapacidade (do tipo da contemplada pelos arts. 152° e segs. do nosso Código Civil, que tem como equivalente, naquele ordenamento vizinho, é o de "incapacitación" - arts. 199 e segs. do Código Civil Espanol), mas sim uma medida inibidora do exercício de certas actividades, de alcance equivalente ao das incompatibilidades ou impedimentos do nosso direito, que no caso se traduz na proibição de administrar bens alheios e representar ou administrar outras pessoas. A solução da lei espanhola nada tem, portanto, que radique no domínio da capacidade natural da pessoa do insolvente: trata-se, antes, de uma solução homóloga à tradicional no nosso direito falimentar e hoje expressa na al. c) do mesmo n° 2 do art. 189° do CIRE, que estabelece uma incompatibilidade ou impedimento para o exercício do comércio ou de funções de administradores de pessoas colectivas das pessoas abrangidas pela qualificação da insolvência culposa. Por outro lado, o aditamento às consequências da insolvência culposa da "inabilitação" prevista na citada al. b) representa uma inexplicável inversão de tendência na evolução histórica do regime da falência, no nosso País, onde desde há cerca de 75 anos fora posta de lado a ideia e a solução da afectação do falido no plano da capacidade civil; inversão tanto mais de estranhar quanto é certo que a descrição legal das condutas que fundamentam a qualificação como culposa da insolvência tem proximidade evidente com a tipificação legal dos crimes de insolvência fraudulenta, pelo que veio acrescer uma sanção civil à de carácter criminal, ainda por cima em simultâneo com o agravamento da pena desta. Sem contar, aliás, com o facto de a al. d) do n° 2 do mesmo art. 189° ter ido buscar à mesma fonte da lei espanhola mais uma consequência punitiva: «Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.>> Ainda por outro lado, o disposto na al. b) ora em apreço poderá atingir de forma altamente gravosa os interesses de terceiros, na medida em que pode constituir fundamento para anulação de actos por ele praticados de boa fé com insolventes declarados culposas. A este respeito, convém fazer notar que a norma em questão não se reveste de utilidade palpável, nem sob o ponto de vista punitivo, nem sob o da protecção do interesse do insolvente ou de terceiros, porque a massa insolvente «abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e
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direitos que ele adquira na pendência do processo» (art. 46°, n° 1, do CIRE), só dela sendo excluídos os bens do insolvente «isentos de penhora» (art. 46°, n° 2, idem), e também porque os poderes de administração e disposição dos bens da massa passam a competir ao administrador da insolvência (art. 81°, no 1, idem ), em nada sendo afastado o disposto no art. 81 o pelo motivo de a insolvência vir a ser declarada culposa (1 7) . Isto implica que o labéu de inabilitado e a gravosa nomeação de um curador praticamente só pode ter por destino os actos relativos aos bens impenhoráveis do insolvente, o que reforça a convicção de que este medida não satisfaz um interesse relevante, sendo desnecessária, além de incongruente.
2.4. Por isso, a aplicação desta norma deu motivo a grande número de recursos para o Tribunal Constitucional, o qual, na maior parte dos arestas tirados a este respeito, a declarou inconstitucional in totum( 18 ) e em vários outros a julgou inconstitucional apenas quando aplicada a administrador de sociedade comercial declarada insolvente(19 ). Foi nesta linha que o Ac. do TC n° 173/2009, de 2.4.2009(2°) declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da citada al. b) do n° 2 do art. 189° do CIRE, «na medida em que impõe que o juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente». Vale a pena uma referência, ainda que sucinta, aos fundamentos des-
se esclarecido aresto, do qual foi Relator o Cons. Joaquim de Sousa Ribeiro. Primeiramente, demonstrou que, sendo a inabilitação do insolvente culposo uma restrição à capacidade civil, ela não satisfaz os critérios legitimadores da restrição à garantia contida no art. 26°, no 1, da Constituição - «quando os seus motivos forem "pertinentes e relevantes sob o ponto de vista da capacidade da pessoa", não podendo também a restrição "servir de pena ou de efeito de pena" (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4." ed., Coimbra, 2007, p. 465)». Com efeito, por um lado, a insolvência culposa não resulta de uma situação de incapacidade natural, mas sim de um estado objectivo de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas (art. 3°, n° 1, do CIRE), devido a actuação culposa do devedor ou dos seus administradores, se for pessoa colectiva. E, por outro lado, a inabilitação em causa nada acrescenta à protecção dos interesses dos credores resultante do regime do art. 81° do CIRE, tanto mais que a 17
Cfr. LUIS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, "Código da Insolvência de da Recuperação de Empresas Anotado", Quid Juris?, Lisboa, 2008, p. 625, nota 8; e"Colectânea de Estudos sobre a insolvência", Quid Juris?, Lisboa, 2009, p. 269 . 18 Acs. n°S. 564/2007, 570/2008, 571/2008, 584/2008 e decisões sumárias n°s. 85/2008, 267/2008,323/2008, 376/2008, 417/2008 e 425/2008, apud Acórdão T. C. 173/2009. 19 Acs. n°S. 581/2008 e 582/2008, e decisões sumárias n°s 615/2007, 288/2008, 321/2008, 371/2008 e 421/2008. ibidem. 20 D.R. , 1.• série, no 85, de 4.5.2009.
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curatela que dela resulta só versa sobre os bens estranhos à massa falida. «A inabilitação prevista na alínea b) do n. 0 2 do artigo 189.0 do CIRE só pode, pois, ter um alcance punitivo, traduzindo-se numa verdadeira pena para o comportamento ilícito e culposo do sujeito atingido», «consequência que, tendo também presente a globalidade dos efeitos da insolvência, e em particular a inibição para o exercício do comércio, não pode deixar de ser vista como inadequada e excessiva» (21). Entendeu, pois, aquele Acórdão que a norma em questão põe em causa o princípio da proporcionalidade, à luz do critério da necessidade ou exigibilidade, concluindo por «declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do artigo 189. 0 , n. 0 2, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto Lei n. 0 53/2004, de 18 de Março, por violação dos artigos 26. 0 e 18. 0 , n. 0 2, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que impõe que o juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente». 2.5. Uma observação ainda: como se constata da transcrição supra do tópico conclusivo do Acórdão T.C. n° 173/2009, este adoptou a solução da jurisprudência minoritária daquele Tribunal a respeito da norma em causa, ao restringir o seu comando decisório aos casos de inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente. Portanto, a declaração de inconstitucionalidade não abarcou os casos de inabilitação de insolventes pessoas físicas ou de administradores de pessoas colectivas que não sejam sociedades comerciais. Pela declaração de voto do Relator, ficamos a saber que esta limitação de âmbito resultou do princípio do pedido, devido aos termos em que foi formulado pelo Ministério Público, ao requerer o pronunciamento do Tribunal Constitucional. Por isso mesmo, o Relator sublinhou que a razão de ser desta decisão é válida para a inabilitação de quaisquer pessoas atingidas pela aplicação da norma em apreço, pelo que melhor seria que tivesse sido formulado o pedido em termos amplos. O que, aliás, permitiria que fosse consagrada a orientação da jurisprudência da maioria das decisões proferidas a tal respeito por aquele Tribunal. É, pois, de esperar e desejar que doravante a Jurisprudência reconheça a inconstitucionalidade da inabilitação decorrente da aplicação do art. 189°, n° 2, al. b), do CIRE, quanto a todas as pessoas abrangidas pela qualificação da insolvência como culposa, arredando assim a aplicação desta infeliz inovação trazida ao nosso direito falimentar.
21
Ibidem, no 6, p . 2520.
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ÂMBITO DAS OBRIGAÇÕES FISCAIS DO ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA1 Raul Gonzalez 2
I - INTRODUÇÃO
Trata-se de um tema bastante complexo atendendo à desactualização da legislação fiscal face à evolução que se tem registado a nível do direito falimentar, circunstância que promove grandes dúvidas de actuação profissional e, consequentemente, quais são as efectivas obrigações do Administrador da Insolvência em sede dos processos de insolvência. Por outro lado, o articulado do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) distingue vários "tipos" de insolvência, designadamente, as insolvências de carácter limitado (Art0 39°) e as insolvências de carácter pleno (e dentro destas, desde logo duas alternativas distintas: liquidação ou recuperação). Note-se que enquanto no primeiro caso (insolvências de carácter limitado) o trabalho do Administrador da Insolvência circunscreve-se à publicação dos anúncios obrigatórios e à qualificação da insolvência, no segundo caso, ou seja, insolvências de carácter pleno (na perspectiva da liquidação), as tarefas do Administrador da Insolvência são bastante mais vastas e complexas, e incluem normalmente, entre outros aspectos, a pesquisa e apreensão de bens, apreensão dos elementos da contabilidade, verificação do passivo (análise das reclamações de créditos), preparação dos elementos para a Assembleia de Credores, liquidação dos bens apreendidos e a qualificação da insolvência. Não obstante a diversidade e características próprias que cada processo de insolvência pode assumir, a Administração Fiscal, com base em CIRCULARES (particularmente a Circular 01/2010, de 2 de Fevereiro) pretende "impor" ao AdIntervenção no Colóquio "Insolvência e recuperação de empresas: uma realidade multidisciplinar", realizado na Universidade Lusíada de Lisboa, em 28.10.2010 (Síntese). 2 Economista; Presidente da APAJ (Associação Portuguesa dos Admnistradores Judiciais)1
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ministrador da Insolvência, o mesmo conjunto de obrigações fiscais a todos os processos de insolvência, muito para além do que é exigido em termos de CIRE.
II - SENTENÇA DE DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA E OBRIGAÇÕES FISCAIS
Logo que é proferida a sentença de declaração de insolvência e a mesma é recebida pelo Administrador da Insolvência, este entra em funções (a menos que não aceite o processo) e nos 10 (dez) dias seguintes à mencionada notificação deve proceder em conformidade com o estipulado no Art0 181 do Código do Procedimento e de Processo Tributário (CPPT). Curioso notar que o Art0 181° menciona expressamente a figura da CITAÇÃO. Como se operacionaliza este procedimento? Bastará uma carta do Administrador da Insolvência a notificar? Após a recepção e análise da sentença, o Administrador da Insolvência começa a perspectivar o tipo e características do processo de insolvência para actuar em conformidade com os requisitos do CIRE. Sublinhe-se que é a partir da deliberação tomada em Assembleia de Credores (n° 2 do Art0 156° do CIRE) que se vai conhecer a decisão sobre o processo de insolvência: liquidação ou recuperação da entidade declarada insolvente! Portanto, antes deste momento processual, podem-se desenhar cenários, mas nada que seja definitivo. A palavra final é da responsabilidade dos credores. Face ao mencionado anteriormente, os termos e os prazos previstos na Circular 01/2010, de 2 de Fevereiro, são manifestamente inadequados! Por outro lado, com a Circular 01/2010, de 2 de Fevereiro, a Administração Fiscal desde logo pretende impor ao Administrador da Insolvência a obrigação deste proceder à Declaração de Alterações (para efeitos de IVA e de IRC). Mas será adequada esta imposição? Entende-se que não e, por exemplo, nas insolvências de carácter limitado, é por demais evidente que a Administração Fiscal que não apreciou devidamente o tema (possibilidades legais decorrentes do CIRE) exigindo procedimentos que, de todo, não são aplicáveis neste tipo de processos de insolvência. Na maior parte dos processos de insolvência o cumprimento dessas directrizes é um perfeito absurdo! Sendo certo que no cenário da RECUPERAÇÃO as obrigações fiscais das entidade declarada insolvente se mantêm (ainda que possam ser da responsabilidade do Devedor ou do Administrador da Insolvência, conforme deliberação da Assembleia de Credores sobre o encargo da administração), no cenário da LIQUIDAÇÃO a questão é substancialmente diferente, vislumbrando-se apenas duas obrigações:
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a)Quanto à obrigação de liquidação e pagamento de IV A relacionado com as vendas dos bens apreendidos, tal assunto tem sido pacífico até à presente data e, nessa medida, os Administradores da Insolvência têm vindo a liquidar esse IVAna modalidade de "acto isolado". Note-se que o vendedor já não é a entidade insolvente, mas sim o património autónomo denominado Massa Insolvente (acervo de bens e direitos), porquanto os bens da primeira foram apreendidos à ordem da Massa Insolvente (entidades jurídicas distintas). b) Relativamente ao pagamento do IMI tal obrigação recai na esfera de obrigações fiscais da Massa Insolvente, devendo o Administrador da Insolvência, uma vez notificado para o efeito, verificar se os imóveis relativamente aos quais o IMI está em dívida foram de facto apreendidos à ordem da Massa Insolvente e, nessa conformidade, liquidar o respectivo IMI. c) A partir de 2009, com a publicação do Decreto-Lei n° 122/2009, de 21 de Maio (concretização do SIMPLEX) é interpretação e convicção dos Administradores da Insolvência que se clarificou a situação relativa às obrigações fiscais em sede de processo de insolvência e que inexistem obrigações declarativas, contrariamente ao que a Administração Fiscal pretende impor através da Circular 01/2010, de 2 de Fevereiro.
III- CONCLUSÃO De facto, o tema das obrigações fiscais em sede de processo de insolvência é bastante árduo e complexo e, actualmente, está a condicionar a actuação profissional dos Administradores da Insolvência., tanto mais que grande parte dos mesmos estão hoje com acções em tribunal para dirimir este tipo de questões, com todos os incómodos e custos que tal acarreta. Na perspectiva dos Administradores da Insolvência, é necessário constituir-se uma comissão técnica, que integre estes profissionais, para se apreciar de forma consequente toda esta problemática e, a partir desse momento, definir-se o quadro das ditas obrigações fiscais.
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RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE 1 Nuno Lumbrales 2
I - Considerações Intrudotórias
Começo, naturalmente, por saudar todos os presentes, em particular os meus ilustres colegas de mesa e, naturalmente, o Professor Doutor Duarte Nogueira, com quem tive a honra e o privilégio de colaborar directamente na organização deste colóquio. Para uma correcta compreensão do instituto jurídico da Resolução em Benefício da Massa Insolvente, a primeira noção a ter presente é a da respectiva finalidade: trata-se de um mecanismo não penal de combate à fraude e à sonegação de activos da massa insolvente. No combate às fraudes praticadas no contexto da insolvência, actual ou iminente, de uma empresa, é essencial a questão do acesso à informação sobre essa empresa, as causas da insolvência, e sobre os actos praticados pelos seus orgãos de gestão, sobretudo nos exercícios imediatamente anteriores à data de declaração da insolvência. Assim sendo, o interveniente processual que assume a maior relevância no que a este aspecto diz respeito, é o administrador da insolvência. A sua maior ou menor aptidão, capacidade e empenho profissional na perseguição e repressão actos fraudulentos praticados pelos responsáveis pela gestão da empresa insolvente, com vista à reversão dos efeitos práticos desses actos e consequente ressarcimento da massa insolvente e, assim, em última análise, dos credores, é muitas vezes a diferença entre o sucesso e o fracasso no combate a este tipo de fraudes. De facto, o administrador da insolvência é o interveniente processual que, 1 Intervenção no Colóquio "Insolvência e recuperação de empresas: uma realidade multidisciplinar", realizado na Universidade Lusíada de Lisboa, em 28.10.2010.
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Mestre em Direito. Advogado (Lumbrales e Associados,Ssociedade de Advogados, RL) .
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Nuno Lumbrales
ao assumir funções e consequentemente a responsabilidade pela gestão da massa insolvente, primeiro tem contacto com a empresa devedora a partir de uma perspectiva interna à mesma, com acesso ilimitado a toda a documentação (designadamente, mas não só, contabilística) que esteja disponível e a todos os actores que a compõem (legais representantes e trabalhadores). É, além disso, o interveninente processual que tem a melhor visão de conjunto de todo o processo de insolvência e, pelo menos formalmente, contacto com todos os credores. É por isso necessário, para qualquer credor que esteja empenhado na detecção e repressão de actos fraudulentos praticaodos pelo insolvente, ou simplesmente em ter um grau aceitável de informação e de intervenção na gestão e tomada de decisões no âmbito do processo de insolvência ao longo da sua longa tramitação, estar representado na Comissão de Credores. A mera comparência e votação nas Assembleias de Credores é, para este efeito, absolutamente insuficiente. Só uma representação efectiva na Comissão de Credores garante, através da presença e intervenção nas reuniões periódicas daquele órgão (cujas funções são, em traços gerais, o acompanhamento, colaboração e, na medida do possível, fiscalização da actividade do adminitrador da insolvência) garante na prática a um credor uma comunicação permanente com o administrador da insolvência e assim o acesso, ainda que por interposta pessoa, à informação necessária, designadamente à contabilidade da insolvente (Cfr. art. 68°, n. 0 2, do CIRE).
II - Regime Legal (arts. 120° a 127° do CIRE)
A resolução de actos desfavoráveis à massa insolvente, em natural benefício da mesma, é antes de mais um instituto jurídico com um vastíssimo âmbito de aplicação, cuja aplicação cabe ao administrador da insolvência. O seu objecto são todos os actos jurídicos (e não apenas contratos) que, nos termos do CIRE, possam ser considerados prejudiciais à massa insolvente. Nos termos do disposto no art. 120°, n. 0 2, do CIRE, "Consideram-se prejudiciais à massa os actos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência."
Além de uma previsão abstracta como a que acaba de se referir, de vastíssimo âmbito, o legislador procurou ainda assegurar, através da consagração da possibilidade de resolução incondicional (art. 121° do CIRE) e do estabelecimento de uma presunção inilidível de má fé do terceiro adquirente ou beneficiário (120°, n. 0 4, do CIRE), a aplicação efectiva da resolução em benefício da massa insolvente aos seguintes tipos de actos: a) Partilhas em que o quinhão que cabe ao insolvente seja, ao contrário dos restantes, constituído essencialmente por bens de fácil sonegação; b) Actos gratuitos praticados pelo insolvente;
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c) Constituição de garantias pelo insolvente, em determinadas circunstâncias; d) Pagamentos antecipados ou em termos, por meios ou formas não usuais; e) Contratos onerosos mas manifestamente desiquilibrados em prejuízo do insolvente; f) Reembolso de suprimentos feitos pelos sócios da empresa insolvente. Os actos referidos dos tipos referidos nas alíneas anteriores podem ser, em circunstâncias que variam (designadamente ao nível do prazo aplicável) para cada um deles, objecto de resolução incondicional (ou seja, que não depende da verificação de qualquer requisito adicional ao enquadramento do acto em questão numa das previsões constantes nas várias alíneas do art. 121 o do CIRE), fora desses prazos, de uma resolução «normal>> (ou seja, que carece da demonstração da má fé do terceiro beneficiário e da prejudicialidade do acto, e que pode ter por objecto actos praticados nos ultimos quatro anos anteriores à data do início do processo de insolvência- Cfr. art. 120°, n. 0 1, do CIRE) com o benefício da presunção inilidível da prejudicialidade do acto (sem dependência de prazo)- Cfr. Art. 120°, n. 0 3, do CIRE Além disso, quer no âmbito da resolução incondicional quer no âmbito da resolução «normal>>, a má fé do terceiro beneficiário presume-se sempre que o acto objecto da resolução tenha sido praticado nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e nele tenha participado ou dele tenha beneficiado "pessoa especialmente relacionada com o insolvente" (art. 120°, n. 0 4, do CIRE). Cumpre sublinhar que, segundo dispõe o art. 122° do CIRE, não podem ser objecto de resolução, <<normal>> ou incondicional, os "actos compreendidos no âmbito de um sistema de pagamentos (... )", ou seja, actos praticados no âmbito do mercado de valores mobiliários. Como se procede à resolução? No que se refere à forma, a resolução é efectuada pelo administrador da insolvência por meio de carta registada com aviso de recepção (Cfr. art. 123° do CIRE) ou, se necessário, com forma ainda mais qualificada (designadamente com rescurso a notificação judicial avulsa). Se o insolvente, algum transmissário, ou o beneficiário final do acto resolvido pretender opor-se à resolução, impugnando-a, cabele-lhe o ónus de instaurar uma acção judicial contra a massa insolvente e por apenso ao processo de insolvência, no prazo de seis meses (Cfr. art. 125° do CIRE), com todas as implicações inerentes, sobretudo ao nível dos custos e do ónus da prova. Cumpre referir que a resolução apenas é oponível ao segundo transmissário e seguintes se a respectiva má fé puder ser demonstrada, salvo se a respectiva aquisição do bem em causa se fundar em acto gratuito ou em sucessão universal (Cfr. Art. 124° do CIRE). Por outro lado, voltando à questão dos prazos aplicáveis, o adminitrador da insolvência pode efectuar a resolução dos actos prejudiciais no prazo de seis
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meses contados da data em que teve conhecimento dos mesmos (o que constitui um problema de prova para o administrador da insolvência quando a resolução seja efectuada depois de seis meses contados da respectiva tomada de posse), e nunca depois de passados dois anos sobre data da declaração da insolvência (Cfr. art. 123°, n. 0 1, do CIRE). A resolução pode sempre, no entanto, ser utilizada como defesa por excepção no âmbito de uma acção movida contra a massa insolvente pelo beneficiário do acto prejudicial para obter coercivamente o cumprimento de um negócio ainda não cumprido (v.g. um contrato ainda não executado, pelo menos parcialmente)- Cfr. art. 123°, n. 0 2, do CIRE. Caso os efeitos da resolução (reposição da situação anterior à prática do acto prejudicial) devam ser assegurados coercivamente, o mecanismo ao dispor do administrador da insolvência é a instauração de uma acção judicial que correrá por apenso ao processo de insolvência (Cfr. art. 126°, n .0 2, do CIRE), sendo que, se a sentença proferida nessa acção não vier a ser cumprida pelo(s) Réu(s) condenado(s), as consequências para os mesmos não são as da simples mora, mas antes as previstas para o infiel depositário (civis e criminais)- Cfr. art. 126°, n. 0 3, do CIRE. A resolução de um acto prejudicai por parte do adminitrador da insolvência impede a instauração de acções de mpugnação paulinana por parte dos credores quanto aos mesmos actos ou negócios, e suspende a tramitação das que estiverem pendentes em juízo; por outro lado, a decisão judicial que declare ineficaz a resolução efectuada pelo adminitrador da insolvência tem força vinculativa no âmbito das acções de impugnação pauliana pendentes, quanto às questões que tiver apreciado - Cfr. Art. 127°, n .0 1 a n .0 3, do CIRE). Se sobreviver a tudo isto, porém, a impugnação permitirá ao credor que a tiver instaurado a satisfação do seu crédito com recurso aos bens abrangidos pela impugnação "com abstracção das modificações introduzidas ao seu crédito por um eventual plano de insolvência ou de pagamentos" (Cfr. art. 127°, n. 0 3, do CIRE), o que se explica pelo facto de a acção ser necessariamente anterior resolução e/ ou se basear em fundamentos diferentes, e ainda na natureza singular (e não universal) da acção de impugnação pauliana.
III- Jurisprudência Cumpre agora referir de forma sumária e não exaustiva algumas das principais decisões proferidas pela jurisprudência, concretamente do Supremo Tribunbal de Justiça (STJ) e do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) no âmbito da aplicação do quadro legal supra referido. Relativamente ao STJ, é sobretudo de destacar o douto acórdão proferido em 17-09-2009, no âmbito do processo n .0 307 /09.1YFLSB, onde se sustenta que:
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"I- Na notificação de resolução de negócio feita pelo Administrador em favor da massa, tem o Administrador de indicar os factos fundamento da medida. II- Só dessa forma está o impugnante em condições de impugnar a resolução. III- A deficiência de fundamentação do acto não pode ser suprida em sede de contestação à acção de impugnação, com indicação de novo quadro factual ou outros vícios." Trata-se de uma decisão tomada com base no princípio do contraditório, tido como essencial não só em termos gerais como, especialmente, numa acção como a de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente, a que é atribuída, neste aresto, a natureza de acção de contra-ataque». Relevante é, também, ainda no âmbito da jurisprudência do STJ, o douto acórdão proferido por este Tribunal em 30-09-2008, no âbito do processo n. 0 08A1825, onde se sustenta que "I- As novas disposições de resolução em benefício da massa insolvente do CIRE constantes nos arts. 120° e ss são inaplicáveis aos actos e contratos do insolvente celebrados anteriormente ao início da vigência deste diploma." II- A forma de efectuar a resolução prevista no art. 123° vale tanto para os negócios não formais como formais, como é o caso por estarmos em presença de um contrato de compra e venda de imóveis, celebrado entre o impugnante e o insolvente, então necessariamente sujeito a escritura pública." Trata-se, quanto à primeira questão, da afirmação de uma regra geral de aplicação da lei no tempo (Cfr. art. 12° do Código Civil), segundo a qual um acto jurídico é regulado pela lei vigente à data em que foi praticado, em homenagem, naturalmente, à tutela de principios constitucionais, designadamente do Estado de Direito e da protecção da confiança. Quanto ao aspecto referido no segundo ponto do acórdão em apreço, declara-se a improcedência da tese do impugnante, que procurou sustentar que os negócios formais (no caso, a compra e venda de um imóvel) não seria susceptível de resolução em benefício da massa, o que se fez com o recurso ao art. 123° do CIRE e às regras gerais do direito civil, segundo as quais a resolução é uma declaração unilateral e receptícia, relativamente à qual vigora o princípio da liberdade de forma. Relativamente à jurisprudência do TRL, importa destacar antes de mais o douto acórdão proferido por este Tribunal em 06-03-2008, no âmbito do processo n. 0 1610/2008-8. Neste aresto declarou-se expressamente a legitimidade processual do insolvente para instaurar a acção de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente, o que é relevante tendo em conta a omissão do CIRE, que não elenca expressamente os sujeitos titulares de legitimidade activa neste tipo de acção judicial. De facto, como se refere no aresto em análise, o devedor apenas é afastado da gestão patrimonial da massa insolvente sendo que, porém, os bens que a compõem continuam, em bom rigor, a pertencer-lhe enquanto não forem liquidados
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e o respectivo produto entregue em pagamento aos credores. Nessa medida, o insolvente é um sujeito processual com interesses relevantes no processo de insolvência, que podem e devem ser tutelados mediante uma intervenção processual efectiva. Diz-nos também o TRL, no seu douto acórdão de 09-03-2010, que "I- É à parte que impugna a resolução que cabe alegar e provar todos os factos extintivos do direito de resolução." Trata-se em suma da aplicação geral das regras do ónus da prova. Também é de sublinhar que, neste caso, o acto resolvido foi uma transacção judicial. A mesma jurisprudência já tinha sido seguida no acórdão do TRL de 24-092009, proferido no âmbito do processo n. 0 725/06.7TBTVD-I.Ll-8, onde porém se chama a atenção para o facto de, se estivesse em causa a instauração de uma acção judicial por parte do administrador da insolvência com vista à declaração da resolução de um determinado acto prejudicial à massa, o ónus da prova caberia à massa insolvente.
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§2
Trabalhos Académicos
O TRAÇADO DAS LINHAS DE BASE. O CASO PARTICULAR DAS LINHAS DE FECHO E DE BASE RECTA PORTUGUESAS 1
Paulo Neves Coelho2
INTRODUÇÃO l.Introdução; 1.1. Objecto do presente texto; 1.2. Contexto do tema; 3 Metodologia PARTE I O TRAÇADO DAS LINHAS DE BASE 1. Aspectos gerais; 2. Linhas de base; 3. Linhas de base normal; 3.1. Definição de linha de base normal na CNUDM; 3.2. Referência vertical recomendada pela Organização Hidrográfica Internacional; 3.3. Prática dos Estados no que respeita ao uso da referência vertical; 3.4. Representação da linha de base normal e das linhas relevantes nas cartas náuticas portuguesas; 4. Linhas de fecho; 4.1. Definição de linha de fecho; 4.2. Linhas de fecho das baías jurídicas; 4.2.1. Baías históricas; 4.2.2. Baías jurídicas; 4.2.2.1. Condições para o traçado das linhas de fecho; 4.2.2.2. Águas encerradas; 4.2.2.3. Baías cujas costas pertencem a mais que um Estado; 4.2.3. Prática internacional; 4.2.3.1. Argentina; 4.2.3.2. Venezuela; 4.2.3.3. Mauritânia; 5. Linhas de base recta; 5.1. Antecedentes históricos; 5.1.1. Conferência de Haia de 1930; 5.1.2. O Caso das Pescas Anglo-Norueguês, de 1951; 5.1.3. Convenção de Genebra sobre o Mar Territorial e Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar; 5.2. Finalidade do traçado de linhas de base recta; 5.3. Locais; 5.4. Recortes profundos ou reentrâncias; 5.4.1. Número de recortes profundos ou reentrâncias; 5.4.2. Razão de penetração; 5.4.3. Medição da razão de penetração; 5.4.4. Prática internacional; 5.4.4.1. Costa Rica; 5.4.4.2. Irão; 5.4.4.3. Colômbia; 5.4.4.4. Itália; 5.4.4.5. Egipto; 5.4.4.6. Espanha e Madagascar; 1 2
Dissertação de Mestrado na Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa. Oficial da Marinha; Jurista; membro da Estrutura de Missão para os Assuntos do Mar.
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5.5. Franja de ilhas ao longo da costa na sua proximidade imediata; 5.5.1. Conceito de ilha e capacidade para gerar zonas marítimas; 5.5.2. Traçado de linhas de base recta nas ilhas; 5.5.3. Franja de ilhas; 5.5.4. Proximidade imediata; 5.5.5. Prática Internacional; 5.5.5.1. Vietname; 5.5.5.2. Coreia do Sul; 5.5.5.3. Tailândia; 5.5.5.4. Myanmar; 5.6. Outros conceitos que influenciam o traçado; 5.6.1. Direcção geral da costa; 5.6.2. Vínculo ao domínio terrestre; 5.6.3. Interesses económicos próprios da região; 5.6.4. Comprimento das linhas de base recta; 6. Linhas de base arquipelágicas; 6.1. Origens; 6.2. Definição de Estado arquipelágico e linhas de base arquipelágicas; 6.3. Prática internacional; 6.3.1. Cabo Verde; 6.3.2. Reino Unido: Ilhas Falkland e Ilhas Turcos e Caicos; 6.3.3. Equador; 6.3.4. Ilhas Faeroe; 7. Da prática dos Estados a um novo costume internacional; 7.1. Prática dosEstados e reacções internacionais; 7.2. Posição assumida pelos Estados Unidos da América; 7.2.1. A Titularidade dos Recursos nas Águas Interiores e no Mar Territorial; 7.2.2. United States Freedom of Navigation Program; 7.2.3. Importância da posição assumida pelos Estados Unidos da América; 7.3. O princípio da prática subsequente; 7.4. Prática dos Estados e formação do costume internacional; 7.4.1. O aparecimento da ZEE; 7.4.2. As Decisões tomadas no âmbito das reuniões dos Estados Partes da CNUDM; 7.4.3. O caso especial dos conceitos indeterminados relativos ao traçado das linhas de fecho e de base recta. PARTE II O CASO PARTICULAR DAS LINHAS DE FECHO E DE BASE RECTA PORTUGUESAS 8. Aspectos gerais; 8.l.Legislação referente às linhas de base; 8.2. Legislação referente às linhas de fecho e de base recta; 8.3. Aspectos técnicos relativos às linhas de base portuguesas; 8.3.1. Linha de baixa-mar cartográfica; 8.3.2. Imprecisões do traçado das linhas de fecho e de base recta; 9. Influência do traçado actual das linhas de fecho e de base recta nos limites das zonas marítimas portuguesas; 9.1. Águas interiores, mar territorial e zona contígua; 9.1.1. Portugal continental; 9.1.2. Arquipélago dos Açores; 9.1.3. Arquipélago da Madeira; 9.2. Zona Económica Exclusiva; 9.2.1. Portugal continental; 9.2.2. Arquipélago dos Açores; 9.2.3. Arquipélago da Madeira; 9.3. Plataforma continental de Portugal; 9.4. Efeitos no cálculo da linha mediana com Estados adjacentes; 9.4.1. Linha mediana a Norte de Portugal continental; 9.4.2. Linha mediana a Sul de Portugal continental; 9.4.3. Linha mediana no arquipélago da Madeira; 10. Reacções ao traçado português; 10.1. Doutrina nacional; 10.2. Doutrina estrangeira; 0.3. Reacções por parte outros Estados; 11. ão aplicação do regime das linhas de base arquipelágicas aos arquipélagos portugueses; 12. Aplicação dos artigos 7° e 10° da CNUDM ao traçado português; 12.1. Aplicabilidade dos critérios às fozes do Tejo e do Sado 12.l. l.Critério do semicírculo; 12.1.2. Águas do domínio público marítimo; 2.1.3. As Fozes do Tejo e do Sado como Baías Históricas; 12.2. Recortes profundos e reentrâncias; 12.3. Franja de ilhas ao longo da costa na sua proximidade imediata 12.3.l.Portugal continental; 12.3.2. Arquipélago dos Açores; 12.3.3. Arquipélago
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da Madeira; 13. Eventual responsabilidade internacional resultante do traçado de linhas de base recta portuguesas; 13.1. Pressupostos da responsabilidade internacional; 13.2.Validade internacional do traçado português; 13.3. Dano;13.3.1. Exercício de direitos de navegação; 13.3.1.1. Direito de passagem inofensiva nas águas interiores; 13.3.1.2. Direito de passagem inofensiva no mar territorial; 13.3.1.3. Esquemas de separação de tráfego; 13.3.2. Exploração de recursos naturais; 13.3.2.1. Recursos vivos; 13.3.2.2. Recursos não-vivos; 13.3.3. Investigação científica marinha; 14.Decreto-Lei n. 0 495/85: requiem pro defunctis?; 14.1. Linhas de fecho e de base recta ou linhas de base normal?; 14.2. Problema do rigor geodésico; 14.3. A questão da inconstitucionalidade; 15. Conclusões. ANEXO I Figuras
A.1-1 ANEXO II
Versões nas línguas portuguesa e inglesa do artigo 4°, nos 1 e 3, da Convenção de Genebra sobre o Mar Territorial e Zona Contígua, de 958, e preceitos correspondentes no artigo 7° da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982 2-1
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 -Exemplo de carta náutica e referências cartográficas verticais Figura 2 - Baías. Teste do semicírculo Figura 3 - Baía. Linha de fecho Figura 4 - Linhas de fecho da Argentina. Figura 5 -Linha de fecho da Venezuela-Guiana Figura 6 - Linha de fecho da Mauritânia Figura 7- Linhas de base recta da Noruega Figura 8 - Razão de penetração Figura 9 - Linhas de base recta da Costa Rica Figura 10- Linhas de base recta do Irão Figura 11 - Linhas de base recta da Colômbia. Costa do Oceano Pacífico. Figura 12 - Linhas de base recta da Colômbia. Costa do Mar das Caraíbas Figura 13 - Linhas de base recta de Itália Figura 14- Linhas de base recta do Egipto Figura 15 - Linhas de base recta de Espanha continental Figura 16 - Linhas de base recta de Madagascar
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Figura 17- Linhas de base recta das ilhas Hébridas Ocidentais, (Reino Unido) Figura 18- Linhas de base recta do Vietname Figura 19- Linhas de base recta da Coreia do Sul Figura 20 - Linhas de base recta da Tailândia Figura 21 -Linhas de base recta de Myanmar Figura 22 - Diferentes interpretações de direcção geral da costa e escolha de linhas de base recta Figura 23 - Arquipélago de Cabo Verde Figura 24- Linhas de base recta das ilhas Falkland e Turks e Caicos (Reino Unido) Figura 25- Linhas de base recta do Equador (continental) Figura 26- Linhas de base recta do Equador (Ilhas Galápagos) Figura 27 - Linhas de base recta das Ilhas Faeroe (Dinamarca) Figura 28 - Erros técnicos relativos à localização de alguns pontos indicados na lista de coordenadas contida no Quadro I do Decreto-Lei n. 0 495/85, de 29 de Novembro Figura 29 - Linhas de fecho e de base recta de Portugal continental Figura 30 - Linhas de base recta do arquipélago dos Açores. Grupo oriental Figura 31- Linhas de base recta do arquipélago dos Açores. Grupo central Figura 32 -Linhas de base recta do arquipélago dos Açores. Grupo ocidental Figura 33 - Linhas de base recta do arquipélago da Madeira Figura 34 - Área acrescida de soberania e jurisdição para lá das 200 milhas náuticas Figura 35 - Área acrescida de soberania e jurisdição resultante de um novo traçado de linhas de base recta Figura 36 - Limite exterior da plataforma continental portuguesa. Sectores limitados pelo fórmula restritiva das 350 milhas náuticas a contar das linhas de base Figura 37 - Linhas medianas referidas à linha de base normal e às linhas de fecho e de base recta no Sul de Portugal Figura 38 -Baías do Tejo e do Sado Figura 39 - Esquema de separação de tráfego do Cabo da Roca Figura 40 -Esquema de separação de tráfego do Cabo de São Vicente
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Prefácio O presente texto corresponde, em larga extensão, à dissertação de mestrado defendida na Universidade Lusíada perante o júri constituído pelos Professor Doutor José Artur Anes Duarte Nogueira (presidente), Professor Doutor Afonso Filipe Pereira d'Oliveira Martins (orientador), Professor Doutor Fernando Manuel Pereira Loureiro Bastos (arguente) e Professora Doutora Elizabeth Accioly Rodrigues da Costa. É justo realçar o incentivo e apoio dispensado pelo Professor Doutor Manuel Pinto de Abreu na preparação do presente texto. Aos Professores Doutores Aldino Santos de Campos e Nuno Lourenço, bem como aos Mestres Filipe Brandão e António Calado, o meu reconhecimento pela paciência e prontidão demonstrados na utilização de aplicativos informáticos que permitiram a elaboração de parte importante das imagens e de todos os cálculos geodésicos nelas indicados. Por último, mas não menos importante, à minha família pelo constante apoio e pelo tempo que lhes foi roubado.
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Lista de Abreviaturas e Acrónimos #Abreviatura/ Acrónimo
Significado
AR
Assembleia da República
ARSIWA
Articles on the Responsibility ofStates for Intemationally Wrongful Acts
cm
Comissão de Direito Internacional
COMI
Comissão de Direito Marítimo Internacional
Cfr.
Confira
CGAM
Convenção de Genebra sobre o Alto Mar, de 1958
CGMTZC
Convenção de Genebra sobre o Mar Territorial e Zona Contígua, de 1958
CGPC
Convenção de Genebra sobre a Plataforma Continental, de 1958
CLCS/40
Rufes of Procedure of the Commission on the Limits of the Continental Shelf
CLPC ouCLCS
Comissão de Limites da Plataforma Continental ou Commission on the Limíts of the Conti11ental Shelf
CNUDM
Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982
CPDMI
Comissão Permanente de Direito Internacional Marítimo
CRP
Constituição da República Portuguesa
CVDTE
Convenção de Viena do Direito dos Tratados entre Estados
DL
Decreto-lei
DOALOS
Division for Ocean Affairs and the Law of the Sea, sucessor do Office oJOceaJI Affairs and tl1e Law of the Sea
e. g.
Exempli gmtia
EMEPC
Es trutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental
EST
Esquema de Separação de Tráfego
EU
União Europeia
EUA
Es tados Unidos da América
FONP
Freedom oJNavigation Program
III Conferência
III Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar
lbid.
lbidem
i. e.
ld est
!LA
hlfernational Law Association
LBA
Linha de base arquipelágica
LBR
Linha(s) de base recta(s)
LFBR
Linha(s) de fecho e de base recta(s)
M
Milha Náutica
m
Metro
OH!
Organização Hidrográfica Internacional
OMI
Organização Marítima Internacional
ONU
Organização das Nações Unidas
op. cit.
Opuscitatum
OR
Officia/ Reports
PDD
Presidential Decision Directive
p.
Página
PP·
Páginas
RAR
Resolução da Assembleia da República
RCM
Resolução do Conselho de Ministros
RPAA
Regulamento da Pesca por Arte do Arrasto
ss.
Seguintes
TALOS
A Mmwa/ on the Tedmical Aspects of the United Nations Convention on tlle Law of the Sea
TIJ
Tribunal Internacional de justiça
URSS
União Soviética (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas)
v.g.
Verbi gmtia
YBILC
Yearbook of the International Law Commission
ZEE
Zona Económica Exclusiva
O Traçado das Linhas de Base. O Caso Particular das Linhas de Fecho e de Base ... Pág. 259-456 -------------------------------------------------------------------
1. Introdução 1.1. Objecto do presente texto
O presente texto tem por objecto o traçado das linhas da base. O traçado das linhas de base continua ainda hoje como um tema de grande actualidade e debate a nível internacional. Trata-se de uma matéria que se situa na esfera dos poderes soberanos dos Estados abrangendo, neste âmbito, desde a definição de sistemas de linhas de base recta (LBR), das linhas de fecho, das linhas de base arquipelágicas (LBA), até à definição da referência vertical cartográfica. Esta última influencia directamente a definição da linha de baixa-mar cartográfica e, consequentemente, a linha de base normal tal como definida na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982 (CNUDM)<3l. O traçado de LBR por um Estado costeiro não constitui apenas uma questão teórico-jurídica que confronta as disposições pertinentes do direito interno do Estado costeiro com o Direito Internacional aplicável. A decisão do Tribunal Internacional de Justiça no Caso das Pescas Anglo-Norueguês, de 1951 (adiante designado apenas por Caso das Pescas) veio sublinhar dois aspectos fundamentais inerentes à delimitação de zonas marítimas<4l. O primeiro consiste na competência exclusiva do Estado costeiro para a realizar, e constitui uma das mais importantes manifestações do princípio da igualdade soberana dos Estados. O segundo aspecto tem a ver com a necessária conformidade dessa delimitação com o Direito Internacional aplicável. Na orla marítima essa definição assenta, em determinadas circunstâncias, no traçado das LBR, que terá reflexos nas zonas onde serão exercidos os correspondentes poderes soberanos ou de jurisdição. Estando em causa, como adiante se verá, a aplicação de conceitos indeterminados<5l, a questão da eventual desconformidade com o Direito Inter3
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Texto integral publicado na Resolução da Assembleia da República n. 0 60-B/97, de 14 de Outubro (RAR 60-B/97). Publicado no Diário da República I Série-A, N. 0 238, de 14 de Outubro de 1997. Aprova, para ratificação, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar e o Acordo Relativo à Aplicação da Parte XI da mesma Convenção. Também contido em MARTINS, A. D'Oliveira. 2000. Textos Básicos de Direito do Mar. 2a ed. Lisboa: AAFDL, pp. 61 a 352. Versão oficial em língua portuguesa publicada por MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS. 1985. Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar- Versão em Língua Portuguesa com Anexos e Acta Final da Terceira Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. Lisboa: Biblioteca Diplomática -Série C. Caso das Pescas Anglo-Norueguês [Fisheries case, Judgment of December 18th, 1951: I.C.J. Reports 1951, p. 116], julgamento de 18 de Dezembro 1951. Na p. 132 pode ler-se "The delimitation of sea areas has always an international aspect; it cannot be dependent merely upon the will of the coas tal State as expressed in its municipallaw. Although it is true that the act of delimitation is necessarily a unilateral act because only the coas tal State is competent to undertake it, the validity of the delimitation with regard to other States depends upon internationallaw". Em 1987, Prescott referia-se às regras do artigo 7° da CNUDM como notoriously ambi-
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nacional do actual traçado das linhas de fecho e de base recta (LFBR)C6l nas costas portuguesas, tanto do continente como dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, contido no DL 495/85, de 29 de Novembro (DL 495/85)(7), deve ser avaliada não apenas pela análise do próprio traçado das LFBR mas também, e principalmente, através dos mecanismos previstos no Direito Internacional para esse efeito.
1.2. Contexto do tema
A questão da conformidade internacional do actual traçado de LFBR português foi suscitada pela Marinha logo desde a fase dos respectivos trabalhos preparatóriosC8>. A doutrina portuguesa e internacional têm, igualmente, tecido comentários que, de um modo geral, vão no sentido de apontar desconformidades, inicialmente com o regime estabelecido na Convenção de Genebra sobre o Mar Territorial e Zona Contígua, de 1958 (CGMTZC)C9>, posteriormente, com os correspondentes preceitos da CNUDM. As falhas que lhe são apontadas têm a ver, por regra, com o facto de os vários segmentos do traçado não encerrarem recortes profundos, nem reentrâncias, não existirem franjas de ilhas na proximidade imediata e Portugal não ser um Estado arquipelágico, nos termos do artigo 46°, alínea a), da CNUDM. Este último aspecto, sendo procedentes os argumentos apresentados, tornaria inválidos os vários traçados entre ilhas nos arquipélagos portugueses. A juntar aos juízos desfavoráveis referidos, acrescem ainda o protesto recebido em 1986 no Ministério dos Negócios Estrangeiros proveniente dos Estados Unidos da guous. Cfr. PRESCOTT, J. R. V. 1987. Straight and Archipelagic Baselines. ln Maritime Boundaries and Ocean Resources, London: Croom Helm, pp. 38-51, p. 39. SCOVAZZI classifica as condições requeridas para que um Estado possa traçar um sistema de linhas de base rectas como um aspecto obscuro do Direito Internacional actual (Les conditions requises afin qu'un État côtier puisse établir un systeme de lignes de base droites constituent un aspecto plutôt obscur du présent droit international de la mer), SCOVAZZI, T. 1997. L'Établissement de Systemes de Lignes de Base Droites de la Mer Territoriale: Les Regles et la Pratique. Annuaire du Droit de la Mer. Paris, pp. 160 a 176, p. 161. 6 No decurso do presente texto é adoptada a designação "linhas de fecho e de base recta", ou a respectiva abreviatura, para todas as linhas definidas no Decreto-Lei n. 0 495/85, de 29 de Novembro, independentemente da respectiva qualificação jurídica face às disposições pertinentes da CNUDM. Esta é a designação constante nos Quadros I a V do referido diploma, que não distingue as "linhas de fecho" das "linhas de base recta". 7 Publicado no Diário da República I Série, N. 0 275, de 29 de Novembro 1985- Redefine as linhas de fecho e de base recta estabelecidas pelo Decreto-Lei n .0 47771, de 27 de Junho de 1967. Também contido em MARTINS, A D'Oliveira. 2000, pp. 449 a 455. 8 COMISSÃO DE DIREITO MARÍTIMO INTERNACIONAL. 1994. Legislação Portuguesa sobre Águas Jurisdicionais do Arquipélago da Madeira - ZEE. Parecer. Vol. III. Lisboa: Ministério da Defesa Nacional-Marinha, pp 229 e 230. 9 A CGMTZC encontra-se publicada no Diário da República I Série, N. 177, de 3 de Agosto de 1962. Também contida em MARTINS, A D'Oliveira. 2000, pp. 13 a 25. 0
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América (EUA) e, também no mesmo ano, a afirmação de direitos por parte de Espanha relativamente ao exercício do direito de passagem inofensiva em águas que passaram a estar encerradas pelo traçado de LFBR português. Para além do referido, este assunto é frequentemente suscitado quando está em causa a apreciação de legislação ou outras matérias relacionadas com as zonas marítimas portuguesas, ou com outras actividades, em especial quando está em causa o exercício da autoridade do Estado no mar. Foi o que sucedeu pelo menos duas vezes desde 2005. A primeira ocasião ocorreu por altura dos trabalhos preparatórios da Lei n. 0 34/2006, de 28 de Julho (Lei 34/2006)(1°l, em que Manuel Lobo Antunes, Secretário de Estado da Defesa Nacional e dos Assuntos do Mar, quis conhecer, em 27 de Fevereiro de 2006, a opinião da Estrutura de Missão para Extensão da Plataforma Continental (EMEPqcnJ sobre esta matéria. A questão foi suscitada novamente à EMEPC num segundo momento, precisamente um ano depois, por Jaime Gama, Presidente da Assembleia da República, que acompanhou a Comissão de Defesa da Assembleia da República durante a apresentação do ponto de situação do projecto de extensão da plataforma continental. Foi então questionado se o actual traçado de LFBK alegadamente desconforme face ao Direito Internacionat não teria influência na fixação dos limites exteriores da plataforma continental e, em caso afirmativo, se este não deveria constituir um assunto a ser previamente corrigido. O presente texto tem em vista a resposta às referidas questões, que se crê constituírem dúvidas de base de quem trabalha nestas matérias, ou tem por elas interesse, académico ou outro.
1.3. Metodologia O presente texto está dividido em duas partes. A primeira parte compreende uma análise genérica sobre o que consistem os conceitos usados na definição dos vários tipos de linhas de base e o modo como a generalidade dos Estados costeiros os tem aplicado. A segunda parte contém uma análise ao traçado de LFBR estabelecido no DL 495/85. Importa referir que, neste âmbito, a análise incide essencialmente sobre o traçado em si enquanto solução jurídica para a concretização de uma faculdade expressamente concedida pela CGMTZC e pela CNUDM aos Estados costeiros que reúnam determinadas condições geográficas. 10 11
Publicada no Diário da República, 1a Série, N .0 145, de 28 de Julho de 2006. Criada pela Resolução do Conselho de Ministros n. 0 9/2005, de 17 de Janeiro, publicada no Diário da República, 1a Série, N. 11, de 17 de Janeiro de 2005. O mandato da EMEPC foi sucessivamente prorrogado pelas Resoluções do Conselho de Ministros n. 26/2006, de 14 de Março, publicada no Diário da República, la Série, N . 52, de de 14 de Março de 2006, n. 55/2007, publicada no Diário da República, la Série, N . 67, de 14 de Março de 2007, n. 0 32/2009, publicada no Diário da República, la Série, N. 0 74, de 16 de Abril de 2009. 0
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No final é efectuada ainda uma breve referência ao DL 495/85 enquanto instrumento jurídico que materializa a solução adoptada pelo legislador português. O objecto da análise incide essencialmente sobre os vários tipos de linhas de base e, em particular, sobre o traçados das LBR. Apesar de abordado de modo ligeiro no que respeita às baías históricas, fica de fora um estudo mais aprofundado sobre as águas históricas, nomeadamente, sobre a sua origem e o modo como se constituem este tipo de direitos O Direito do Mar é um ramo do Direito que incide sobre realidades representáveis. Considera-se, assim, indispensável a inclusão de figuras(1 2) que possam ajudar a visualizar a realidade geográfica que apoia a argumentação jurídica. Só com imagens se consegue ter uma ideia adequada do que é, e o que está efectivamente em causa, no traçado de LFBR português, em especial quando comparado com outros traçados existentes a nível mundial. Esta é a justificação para a inclusão de um número significativo de figuras na parte final do texto, que são meramente ilustrativas da realidade que pretendem representar e sem rigor geodésico. É também incluída alguma informação técnica, mas com uma dupla preocupação: reduzi-la ao mínimo indispensável para a compreensão do problema na globalidade e apresenta-la de um modo tão simples quanto possível. Por último, por uma questão de simplificação e fluidez do texto são usadas as abreviaturas e acrónimos constantes em tabela própria, bem como a designação em forma reduzida de algumas expressões e conceitos. Em complemento, a referência a qualquer um dos tipos de linhas de base, sem outra designação complementar, significa às linhas de base a partir das quais se mede a largura do mar territorial. As distâncias a terra sem qualquer outra referência devem entender-se como sendo efectuada em relação às linhas de base a partir das quais se mede a largura do mar territorial. A referência a qualquer artigo sem indicar a respectiva fonte deve entender-se como sendo efectuada à CNUDM.
PARTE I- O traçado das linhas de base- aspectos gerais 2. Linhas de base O conceito de linhas de base, tal como é presentemente entendido, surgiu na primeira metade do século XIX, na Convenção Anglo-Francesa para as Pescas, de 1839. Esta Convenção foi o primeiro instrumento internacional a referir-se à linha de baixa-mar como linha de base normal e a aplicar linhas de fecho às em-
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Salvo indicação em contrário na própria figura, ou na respectiva legenda, as figuras são da responsabilidade do autor, tendo sido elaboradas a partir do Generic Mapping Tools (GMT) com base nas listas de coordenadas indicadas em documentos mencionados na bibliografia. Todos os cálculos geodésicos foram elaborados p elo Gabinete de Geomática da EMEPC.
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bocaduras das baías(1 3). O traçado dos limites exteriores das diversas zonas marítimas é efectuado em relação a uma referência relativamente à qual as correspondentes distâncias são medidas. Essa referência é, por regra, materializada pelas linhas de base<14), sendo as distâncias medidas em milhas náuticas (M)(IS)(l 6). É em relação às linhas 13
PRESCOTT, J. R. V., e SCHOFIELD, C. 2005, The Maritime Politicai Boundaries of the World, 2a ed. Leiden/Boston: Martinus Nijhoff, p. 93. 14 O limite exterior da plataforma continental pode constituir uma excepção a esta regra nos casos em que a margem continental se situa para lá das 200 milhas náuticas (Cfr. 9.3 infra) 15 A milha náutica é uma unidade que não pertence ao Sistema Internacional de Unidades (SI) . TAYLOR, B. N., e THOMPSON, A. 2008, The International System oJUnits (SI). Washington: NIST, p. 52. Embora seja por vezes referida como uma unidade de distância, em rigor terminológico constitui uma unidade de comprimento, à qual corresponde 1852 metros (m) . 16 No presente texto é adoptado o termo "milha náutica" por ser o referida na Lei 34/2006, de 28 de Julho (Lei 34/2006), publicada no Diário da República, 1" Série, N. 145, de 28 de Julho de 2006. "Milha náutica" é a tradução para língua portuguesa do termo em língua inglesa nautical mile. A língua inglesa é, juntamente com o arábico (UNITED NATIONS Resolution 3191(XXVIII), de 18 de Dezembro de 1973) e as línguas chinesa, francesa, russa e espanhola, uma das seis línguas oficiais das Nações Unidas (UNITED NATIONS Resolution 2(1), de 1 de Fevereiro de 1946). Ao longo do tempo a lei portuguesa não tem sido coerente no que respeita ao termo usado para esta unidade de comprimento, embora sempre tenha estado subjacente que se trata de uma dimensão equivalente a 1.852 m, tal como foi aprovado na Conferência Hidrográfica Internacional, em 1929. A designação em língua inglesa desta unidade é international nautical mile, também referida abreviadamente por nautical mile (INTERNATIONAL HYDROGRAPHIC ORGANIZATION. 1994. Hydrographic Dictionary. Vol. I. S'h ed. Monaco:IHO). A falta de coerência terminológica esteve também presente a nível internacional por ocasião dos trabalhos preparatórios das Convenções de Genebra, levados a cabo pela Comissão de Direito Internacional. O relatório que a Comissão de Direito Internacional enviou à Assembleia Geral referia que os termos mile, mille e milla, respectivamente nas versões em língua inglesa, francesa e espanhola do projecto da Convenção de Genebra sobre o Mar Territorial e Zona Contígua, de 1958, significavam, pela mesma ordem, nautical mile (YEARBOOK OF THE INTERNATIONAL LAW COMMISSION [YBILC]. 1956. Vol. II. New York: United Nations, p . 256), mille marin (ANNUAIRE DE LA COMMISSION DU DROIT INTERNATIONAL. 1956. Vol. II. New York: Nations Unies, p. 256) e milla marina (ANUÁRIO DE LA COMISIÓN DE DERECHO INTERNATIONAL. 1956. Vol. II. New York: Naciones Unidas, p. 252)- e tinham o valor de 1.852 metros. Na versão portuguesa das Convenções de Genebra, de 1958, contida no Decreto-Lei n. 0 44.490, de 3 de Agosto de 1962, publicado no Diário do Governo, la Série, N. 0 177, de 3 de Agosto de 1962, a designação usada para aquela unidade de distância foi "milha marítima". Não obstante, a Lei N. 0 2130, de 22 de Agosto de 1966, publicada no Diário do Governo, 1a Série, N. 0 194, de 22 de Agosto de 1966, afastando-se da designação 0
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de base que se medem as larguras do mar territorial, da zona contígua, da zona económica exclusiva (ZEE) e da plataforma continental, nos casos em que a margem continental se situa até 200 M. As linhas de base são ainda as referências a
adopatada na legislação portuguesa poucos anos antes, refere-se às distâncias no mar apenas por "milha". A entrada em vigor da CNUDM não veio trazer uniformidade a esta nomenclatura. As designações para a unidade de comprimento no mar nas línguas inglesa, francesa e espanhola vieram, nesta Convenção, a ser nautical mile, mille marin e milla marina. Os sete países de língua oficial portuguesa elaboraram uma versão única para o texto da CNUDM, que foi publicada em 1985 pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros (MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS. 1985. Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar- Versão em Língua Portuguesa com Anexos e Acta Final da Terceira Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar. Lisboa: Biblioteca Diplomática- Série C.). A designação "milha marítima" contida neste documento não corresponde a uma tradução directa de qualquer outra designação nas línguas oficiais do texto convencional. Não pode, igualmente, dizer-se que consiste numa tradução do termo "sea mile", visto que "sea" na língua inglesa não corresponde a "marítimo(a)" em língua portuguesa. Tratou-se, por isso, de uma adopção, não de uma tradução, que manteve a opção já tomada relativamente aos textos das quatro Convenções de Genebra de 1958. O texto da CNUDM constante na RAR 60-B/97 manteve a designação "milha marítima" adoptada pelos países de língua oficial portuguesa. À revelia do caminho seguido até então, a Lei 34/2006 veio substituir a designação "milha marítima" por "milha náutica", referindo o seu artigo 4°, alínea e), que a uma milha náutica corresponde a uma distância de 1852 metros. Anteriormente à Lei 34/2006 já o Decreto-Lei n .0 112/2002, de 17 de Abril (publicado no Diário da República, la Série, N. 90, de 17 de Abril de 2002. Aprova o Plano Nacional da Água), o Decreto-Lei n. 0 289/2003, de 14 de Novembro (publicado no Diário da República, la Série, N. 0 264, de 14 de Novembro de 2003. Define os requisitos para a emissão do certificado de operador aéreo e regula os requisitos relativos à exploração de aeronaves civis utilizadas em transporte aéreo comercial), e a Lei n. 0 58/2005, de 29 de Dezembro (publicada no Diário da República, 1a Série, N. 0 249, de 29 de Dezembro de 2005. Aprova a Lei da Água), optaram por designar as distâncias por referência à milha náutica. Tendo sido adoptada uma versão em língua portuguesa do texto da CNUDM, em 1985, e publicada uma versão integral da Convenção no Diário da República, os diplomas legais subsequentes deviam ter mantido o termo "milha marítima". A possível, mas não óbvia e pouco segura, ligação do termo "milha náutica" ao termo anglo-saxónico "sea mile" pode constituir um obstáculo ao seu rigor enquanto unidade de referência. Refere o Admiralty Manual of Navigation que, correspondendo a sea mile a um minuto de arco do elipsóide que representa a terra, o correspondente valor em metros varia entre 1842,9 metros, no equador, e 1861,7 metros nos pólos, sendo 1852,3 nos 45° de latitude (MINISTRY OF DEFENSE (UK).l987. Admiralty Manual ofNavigation- General Navigation, Coas tal Navigation and Pilotage. Vol.l. London: The Stationery Office, p. 6). Esta ambiguidade por vezes invocada a favor da adopção do termo "milha náutica" poderia ser facilmente resolvida referindo a lei que à "milha marítima" corresponde o valor de 1.852 metros, à semelhança do que sucede com o supra mencionado artigo 4°, alínea e), da Lei 34/2006. 0
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usar na fixação dos limites exteriores da plataforma continental, nos casos em que a margem continental se situa aquém das 200 M ou, ultrapassando esta distância, quando o limite exterior da plataforma continental é estabelecido com recurso à fórmula restritiva que consiste na distância de 350 M em relação às linhas de base a partir das quais se mede a largura do mar territorial. É também em relação às linhas de base que, em princípio, é traçada a linha mediana, em particular quando esteja em causa a delimitação do mar territorial entre Estados com costas adjacentes ou opostas. Na CNUDM, as linhas de base compreendem três subtipos: as linhas de base normalC17l, as linhas de base rectaC 18l e linhas de base arquipelágicasC19l. Existem ainda as linhas de fecho que, não cabendo directamente na tipologia das linhas de base, têm natureza e finalidade equivalente a estas, correspondendo às linhas que unem os limites exteriores das fozes dos rios, das baías e dos portos. À semelhança das linhas de base recta, é a partir das linhas de fecho que se medem os limites das zonas marítimas.
3. Linhas de base normal 3.1. Definição de linha de base normal na CNUDM A CNUDM define linha de base normal como sendo a linha de baixa-mar ao longo da costaC20l . De acordo com o Hydrographic Dictionary a linha de baixa-mar (low water mark, laisse de basse mer)C 21l é definida corno a intersecção da superfície do mar na baixa-mar com a costa. O Consolidated Glossary of Technical Terms 22 l define costa (coast) Used in the United Nations Convention on the Law of the SeaC corno a faixa estreita de terra na vizinhança imediata de um determinado espaço de mar, incluindo a área entre as linhas de preia-mar e baixa-marC23l . O mesmo 17
CNUDM, artigo 5°.
18
Ibid., artigo 7°. 19 Ibid., artigo 47°.
°CNUDM, artigo 5°.
2
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INTERNATIONAL HYDROGRAPHIC ORGANIZATION. 1994. Hydrographic Dictionary. Vol. I. 5'11 ed. Monaco: lHO, p. 135. "The intersection of the plane ofLOWWATER with the SHORE. TI1e line alonga COAST, or BEACH, to which the SEA recedes at LOWWATER", versão inglesa; "Ligne jusqu'à laquelle se retire l'eau à basse mer le long de la côte, en particulier sur une plage. Dans de nombreux pays elle coi"ncide avec l'intersection du zéro des cartes choisi parles hydrographes avec le rivage", versão francesa. 22 OFFICE FOR OCEANS AFFAIRS AND LAW OF THE SEA. 1989. Baselines: An Examination of the Relevant Provisions of the United Nations Convention on the Law of the Sea. New 23
York: United Nations. Appendix I. Hydrographic Dictionary.1994, p. 216. «The sea-shore. The narrow strip of land in immedi-
ate contact with any body of water, including the area between high- and low-water lines». Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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documento define também linha de baixa-mar como a intersecção do plano da baixa-mar com terra ou a linha ao longo da costa, ou praia, até onde o mar recua na baixa-mar<24l. A linha de base normal, i.e., a linha de baixa-mar, deve ser representada nas cartas marítimas de grande escala, reconhecidas pelo Estado costeiro<25l. As Regulations of the International Hydrographic Organization for International Charts referem como sendo de média e grande escala as cartas náuticas cuja escala seja 1:2.000.000 ou superior<26l. Quando esteja em causa a representação cartográfica de LBR ou linhas de fecho, a CNUDM vem exigir que a escala seja a adequada<27l, podendo considera-se, para esse efeito, como adequada a escala de 1:75.000 para uma precisão de cerca de 30 metros (aproximadamente 1" de arco)<28l . Uma vez que nesta escala apenas uma pequena porção da costa é abrangida pela carta, a Organização Hidrográfica Internacional (OHI) considera como igualmente adequada, na maioria das circunstâncias, a utilização de escalas entre 1:100.000 e 1:250.000<29l. Aquela organização internacional justifica a exigência numa maior precisão na definição das linhas de base e nas fronteiras com a necessidade de controlar e gerir os recursos do offshore, nomeadamente, hidrocarbonetos e minerais<30l . Na mesma linha, a Division for Ocean Affairs and the Law of the Sea (DOALOS) recomenda a utilização de cartas com uma escala entre 1:50.000 e 1:200:000 para representar a linha de base normal<31 l.
3.2. Referência vertical recomendada pela Organização Hidrográfica Internacional
Conhecida a definição constante na CNUDM relativa à linha de base norTradução livre do autor. OFFICE FOR OCEAN AFFAIRS AND THE LAW OF THE SEA. 1989. Baselines: An Examination of the Relevant Provisions of the United Nations Convention on the Law of the Sea. New York: United Nations, p. 58. «The intersection of the plane of low water with the shore. The line along a coast, ar beach, to which the sea recedes at low water». Tradução livre do autor. 25 CNUDM, artigo 5°, in fine . 26 INTERNATIONAL HYDROGRAPHIC ORGANIZATION. 2010. Regulations of the IHO for International (INT) Charts and Chart Specifications of the IHO. 4• ed. Monaco. P A302. 27 CNUDM, artigo 16°, n. 0 1. 28 INTERNATIONAL HYDROGRAPHIC ORGANIZATION. 2006, A Manual on the Technical Aspects of the United Nations Convention on the Law of the Sea- 1982, 4rd• ed., Monaco: International Hydrographic Bureau, p. 4-11. Este manual será adiante designado apenas por TALOS 29 Ibid., p. 4-1. 30 Ibid., p. 4-1. 31 DIVISION FOR OCEAN AFFAIRS AND THE LAW OF THE SEA (DOALOS) . 2000, Handbook on the Delimitation of Mar i time Boundaries, New York: United Nations, p. 4. 24
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mal e as escalas adequadas para a respectiva representação cartográfica, importa agora saber como é definida a linha de baixa-mar numa carta náutica. As referências verticais usadas tanto em mapas topográficos, como nas cartas náuticas, estão baseadas nos níveis do mar. Nos mapas topográficos as altitudes são medidas directamente por referência ao nível médio do mar. Nas cartas náuticas a referência vertical é tomada, por regra, relativamente a um nível de baixa-mar. A referência vertical nas cartas náuticas costuma ser designada na linguagem internacional por chart datum, definido como o plano em relação ao qual todas as sondas e baixios são representados<32). A Figura 1 representa os níveis correspondentes às possíveis alturas de maré, bem como as referências cartográfica e topográfica. Uma vez que a amplitude das marés varia no tempo em função da posição relativa da Terra e de outros corpos celestes, nomeadamente, da Lua, a altura da preia-mar e da baixa-mar ao longo dos ciclos não é sempre a mesma. Quando o alinhamento dos corpos celestes contribuem do modo mais favorável para o ciclo das marés, verificam-se amplitudes de marés particularmente grandes. Nessas circunstâncias especiais, que ocorrem em ciclos de vários anos< 33), a preia-mar e baixa-mar atingem a amplitude representada na Figura 1 pelas linhas correspondentes a preia-mar máxima e baixa-mar mínima. Definir uma referência vertical adequada constitui uma tarefa complexa, uma vez que o nível da baixa-mar não é fixo no tempo, nem no espaço<34). Esta situação leva a que não exista um chart da tum universalmente aceite. A nível internacional as únicas orientações existentes são as contidas na Resolução de 1926 da OHI, que recomendam que o chart datum deve<35): (1) estar suficientemente baixo, de modo a que o nível da água raramente desça abaixo dele; (2) não se situe tão baixo que possa originar que as sondas indicadas nas cartas representem profundidades irrealistas; (3) varie apenas gradualmente de área para área de modo a que, entre cartas náuticas contíguas, evite descontinuidades significativas. 3.3. Prática dos Estados no que respeita ao uso da referência vertical
Sendo uma organização de natureza meramente técnica e consultiva, a OHI não tem a capacidade para impor procedimentos aos Estados membros, pelo que a implementação das respectivas regras fica à descrição destes< 36). De um modo muito breve importa apenas sublinhar que a OHI, em 1995, apresentou uma lista 32
lHO. 2010. Regulations of the IHO .. ., p. 4, B-400. O período astronómico ao longo do qual se verificam as combinações de astros que levam às várias amplitudes é 19 anos. TALOS, p. 2-18. 34 Ibid., p. 2-17. 35 Ibid., p. 2-18. 36 ANTUNES, N. M .. 2004. The Importance of the Tidal Datum in the Definition of the Maritime Limits. ln ANTUNES, N. M. (ed.). Estudos em Direito Internacional Público. Coimbra: Almedina, pp. 63-108, p. 70. 33
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que continha a indicação vertical chart datum adoptado por um conjunto de 22 Estados<37l. Entre estes, existem variações que podem ultrapassar largas dezenas de centímetros, sendo que alguns se situam abaixo da baixa-mar mínima, como são, para além de Portugal, os casos da França e da Bélgica<38l. Na Figura 1 os diversos níveis usados como chart datum estão representados pela área a vermelho. Não existindo um valor universalmente atribuído para o chart datum, fica ao critério de cada Estado a respectiva definição<39l. Este facto significa que, potencialmente, esta referência poderá ser definida a um nível conveniente de modo a poder incluir determinadas áreas sempre emersas, como os baixios, com reflexos na definição da linha de base e, eventualmente, nas linhas medianas com outros Estados<40l. A diferença de níveis pode não ser relevante no que respeita à determinação dos limites exteriores das zonas marítimas, mas pode ser significativo no que respeite à delimitação das referidas zonas em Estados com costas adjacentes ou opostas. Quando a linha de costa se situa sobre um declive muito suave, ou quando nela existam bancos ou recifes, uma pequena variação na escolha do nível pode resultar em diferenças apreciáveis no traçado das LBR< 41 l.
3.4. Representação da linha de base normal e das linhas relevantes nas cartas náuticas portuguesas
Uma vez que as cartas náuticas estão elaboradas tendo em conta a segurança da navegação, as profundidades nela indicadas devem estar referidas à baixa-mar mínima. Só nestas circunstâncias estará garantido ao navegador que, ao ler determinado valor de profundidade na carta náutica, nunca encontrará no lugar correspondente, por efeitos da maré, um valor de profundidade inferior ao indicado na carta náutica< 42l . Reforçando a questão de segurança da navegação, nas cartas náuticas portuguesas a referência a partir da qual são marcadas as profundidades encontra-se ainda abaixo da baixa-mar mínima e designa-se por" zero hidrográfico". Este nível corresponde à sonda reduzida zero, indicada na Figura 1 pela linha a vermelho. Entre as situações, muito raras, de baixa-mar mínima e preia-mar mar máxima, a amplitude de maré oscila entre valores de maior amplitude, correspondentes às marés-vivas, e menor amplitude, respeitantes às marés-mortas. Ao ponto médio 37
INTERNATIONAL HYDROGRAPHIC BUREAU. Circular Letter 26/ 1995, de 16 de Junho de 1995. Citado por ANTUNES, N. M .. 2004. The importance of tidal datum ..., p.
71. Ibid., Figura 2, p. 72. 39 ANDERSON, D. 2008, Modern Law of the Sea- Selected Essays. Leiden: Brill, p. 383. 40 ANTUNES, N. M .. 2004. The importance of tidal da tum ... , p. 73 e ss. 41 BEAZLEY, P. B. 1986, Maritime Limits and Baselines- A Cuide to Their Delineation, 3a, Special Publication N. 0 2a ed., London: The Hydrographic Society, p. 7. 42 Ibid., p. 2-16. 38
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das amplitudes corresponde o nível médio do mar que representa, em Portugal, ao plano a partir do qual são medidas as altitudes cartográficas e topográficas. Nas cartas náuticas portuguesas o zero hidrográfico fica abaixo da baixa-mar mínima, não existindo uma linha a que corresponda qualquer um dos níveis de baixa-mar reais que possa corresponder directamente ao mencionado no artigo 5° da CNUDM. Para obviar este inconveniente, o Instituto Hidrográfico definiu que a linha de baixa-mar é representada nas cartas náuticas portuguesas pela batimétrica dos zero metros nelas representada, i.e., a linha do zero hidrográficoC43l. No canto inferior direito da Figura 1 estão indicadas as designações em língua inglesa correspondentes a cada um dos níveis anteriormente indicados. Nas cartas náuticas estrangeiras pode existir uma diferença importante, que consiste no facto de nalguns Estados o chart datum coincidir com a baixa-mar mínima (lowest astronomical tide). Neste caso a linha de "profundidade zero", ou "sonda reduzida zero", resulta da intercepção da superfície da Terra com um plano correspondente a um nível de baixa-mar efectivamente existente, apesar de ocorrer com intervalos de vários anos. Apresentadas as várias referências, é possível agora indicar na Figura 1, ainda que de modo muito breve, as linhas mais relevantes. Na parte superior da Figura que representa a carta náutica existem três linhas. Estas linhas são as que separa a área amarela da área verde (linha 1), a que separa a área verde da área azul (linha 2) e, por último e menos importante para o presente estudo, a que separa a área azul da área branca (linha 3). Percorrendo, na parte superior da Figura, do ponto A para o ponto B a linha de traço interrompido encontramos primeiro o ponto a situado na linha de preia-mar máxima, situado sobre a linha 1. As áreas a amarelo nas cartas náuticas representam, assim, áreas que nunca são alcançadas pela maré, qualquer que seja a sua amplitude. O limite exterior da área a amarelo constitui uma linha de costa marcada na carta náutica. Continuando na mesma direcção sobre a linha de traço interrompido encontramos o ponto b, situado sobre a linha 2, correspondente à linha do zero hidrográfico. Uma vez que o zero hidrográfico se situa abaixo da baixa-mar mínima, esta linha encontra-se sempre molhada. A área a verde entre os pontos a e b corresponde, na maior parte<44l da sua extensão, a uma área molhada sujeita à influência das marés. Entre os pontos b e c as profundidades da carta náutica são sempre superiores a Ometros. Entre os pontos c e d existe uma característica física no fundo que fica acima da linha de cota Omas abaixo do plano correspondente a qualquer dos níveis de preia-mar indicados. Trata-se de um baixio a descoberto na baixa-mar, mas que fica submerso na preia-mar, correspondendo à definição indicada no artigo 13°, n. 0 1, da CNUDM. Dos pontos d afo raciocínio é o inverso
MARINHA. 2003. Símbolos e Abreviaturas das Cartas Náuticas Portuguesas. 2a ed. Lisboa: Instituto Hidrográfico, p. 26. 44 No exemplo em concreto, apenas a área situada entre os níveis da baixa-mar mínima e o zero hidrográfico está permanentemente molhada. 43
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ao indicado entre os pontos a a c. Indicar outras linhas para além das existentes nas cartas náuticas, apesar de ser tecnicamente simples, pode implicar um investimento significativo por parte do Estado costeiro, muitas vezes sem um retorno significativo para além de ficar a possuir um elemento que o habilita a cumprir melhor as regras da CNUDM que respeitam à definição da linha de costa. O recurso às LBR não deixa de ser uma opção tecnicamente simples e financeiramente acessível, uma vez que implicará apenas coordenar com rigor alguns pontos.
4. Li inhas de fecho 4.1. Definição de linha de fecho Como referido supra, as linhas de fecho são linhas que unem os limites exteriores das fozes dos rios, das baías e dos portos, conforme resulta da conjugação dos artigos 9°, 10° e 11 o da CNUDM, que não referem a denominação da respectiva linha de base, com o artigo 50°, onde a designação "linha de fecho" vem expressamente referida(45l. À semelhança com o que acontece com o artigo 7° da CNUDM, também o artigo 9° desta Convenção segue muito perto o texto do artigo 13° da CGMTZC. Importa sublinhar que o tanto o artigo 9° da CNUDM, como o artigo 13° da CGMTZC não fazem qualquer referência a estuários, parecendo submeter à mesma provisão normativa qualquer daquelas características da costa. A versão final proposta pela Comissão de Direito Internacional (CDI) distinguia claramente cada uma destas características, separando-as no projecto do que veio a ser o artigo 13° da CGMTZC em dois números distintos( 46l(47l. Ao referir a frase "o rio desagua directamente no mar" (a ri ver flows directly into the sea) subentendia que o rio desagua no mar sem formar um estuário. Para efeitos do traçado de linhas de fecho, os estuários estariam sujeitos às mesmas regras que as baías. No decurso da I Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1958 (I Conferência) os dois primeiros parágrafos foram aprovados 45
PRESCOTT define linha de fecho por comparação com as LBR e as LBA, referindo que a distinção fundamental entre a primeira e as últimas consiste no facto de se relacionar com características geográficas simples e serem, normalmente, curtas (PRESCOTT, J. R. V. 1987. Straight and Archipelagic Baselines. BLAKE, G. (ed.) Maritime Boundaries and Ocean Resources. London: Croom Helm, pp. 38 a 51). 46 "1. If a river flows directly into the sea, the territorial sea shall be measured from a line drawn inter fauces terrarum across the mouth of the ri ver. 2. If the river flows into an estuary the coasts of which belong to a single State, article 7 shall apply" O artigo 7° da CGMTZC refere-se às baías. 47 YBILC. 1956. Vol. II. New York: United Nations, p. 258.
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no Primeiro Comité. No entanto, o segundo parágrafo não conseguiu obter a necessária maioria de dois terços em plenário, indispensáveis para a respectiva aprovação(48l. Não obstante o desaparecimento do segundo parágrafo na versão final, é uniformemente entendido que o artigo 13° da CGMTZC e, posteriormente, o artigo 9° da CNUDM devem ser interpretados no sentido de incluir também os estuários(49l.
4.2. Linhas de fecho das baías jurídicas
Apesar de as baías jurídicas terem um regime normativo próprio, consubstanciado no artigo 10° da CNUDM, a verificação das condições em que são traçados os sistemas de LBR poderá estar associada ao traçado de linhas de fecho nas baías jurídicas, não deixando de constituir, relativamente a estas, um caso especial de aplicação.
4.2.1. Baías históricas
Tem sido prática dos Estados reclamar para si o exercício de soberania relativamente a águas próximas da costa, em particular, as enquadradas por características geográficas especiais. O traçado de LBR ou de linhas de fecho entre pontos convenientes situados em estuários, deltas, baías ou grupos de ilhas surgiu como um método natural para delimitar os espaços considerados sob soberania do Estado costeiro. A este respeito, CHURCHILL e LOWE referem que desde muito cedo o costume internacional reconheceu a possibilidade de serem traçadas linhas de fecho à entrada das baías(50l . Sobre o conceito de "baías susceptíveis de poderem ser consideradas como parte do território do Estado costeiro", o Tribunal Permanente de Arbitragem afirmou, em 1910, na decisão de um diferendo que ficou conhecido como North. Atlantic Fish.eries, entre os Estados Unidos da América e a Grã-Bretanha, que(51 l "A interpretação [deste conceito] deve ter em conta todas as circunstâncias individuais relativamente às quais cada uma das diferentes baías é apreciada, a relação da sua largura com o comprimento da penetração em terra, a possibilidade e necessidade de ser defendida pelo Estado costeiro no território do qual se recorta, o valor especial que tem para a indústria dos habitantes costeiros, a distância a que se 48
OFFICIAL RECORDS OF THE III CONFERENCE ON THE LAW OF THE SEA. 19'h Plenary Meeting (1958). Vol. II. §19. 49 NANDAN, S. N. e ROSENNE, S.. 2003. United Nations Convention on the Law of the Sea 1982-A Commentary. Dordrecht: Martinus Nijhoff Publishers, Vol. II, p.111. 5° CHURCHILL, R. R., e LOWE, A. V. 1999. The Law of the Sea. Manchester: Manchester University Press, p.41 51 Decisão de 7 de Setembro de 1910, in S.n. 1910. American Journal of International Law. Vol. 4, pp. 982 e 983.
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encontra retirada dos caminhos das outras nações no mar aberto e outras circunstâncias cuja enumeração, em geral, não é possível"<52>. No entanto, neste âmbito e tal como sucedeu posteriormente com as LBR, foram necessárias várias décadas para que se soubesse quais os critérios ou regras a aplicar concretamente, de modo a poderem ser avaliadas determinadas características da costa que permitissem a respectiva classificação como baías jurídicas. Essas regras apenas surgiram em texto convencional com a CGMTZC. A referência a águas históricas veio a constar na decisão do TIJ, no Caso das Pescas, onde se referia que<53 l""Águas históricas" significa, em regra, águas que são tratadas como internas mas que não teriam esse natureza se não existisse um título his tórico"<54 l O regime específico relativo aos títulos históricos, pela natureza complexa que lhe é peculiar, não veio a constar na CGMTZC nem na CNUDM. Nelas apenas ficou sublinhada a sua natureza excepcional, ao afastar a aplicabilidade a estas baías das regras contidas nos artigos 7° e 10° da CGMTZC e da CNUDM, respectivamente, que constituem as regras para o traçado de linhas de fecho das baías jurídicas. A avaliação da existência de um título histórico relativamente a determinadas águas de um Estado costeiro, pressupõe a apreciação cumulativa de um conjunto de elementos, designadamente, o exercício de facto da autoridade do Estado costeiro sobre as águas reclamadas como históricas, o exercício continuado desses poderes e a atitude dos restantes Estados<55>. Relativamente ao primeiro elemento, para que possa ser considerada válida a reclamação de um Estado costeiro sobre determinadas águas que considera "históricas" o exercício da autoridade desse Estado deve ser efectivo, sendo a respectiva notoriedade um requisito essencial<56>. Não bastam, para esse efeito, a emissão de proclamações ou intenções por parte do Estado em causa<57>. No que respeita ao segundo elemento, não existe um padrão temporal que possa servir de base à respectiva verificação. É comum na doutrina e jurisprudência 52
Versão original: "The interpretation must take into aeeount all the individual eireumstanees whieh for any one of the different bays are to be appreeiated, the relation of its width to the length ofpenetration inland, the possibility and the neeessity of its being defended by the State in whose territory it is indented, the speeial value whieh it has for the industry of the inhabitants of its shore, the distanee whieh it is secluded from the highways of nations on the open sea and other eireumstanees not possible to enumerate in general" (tradução livre do autor). 53 Caso das Pescas, p. 130. 54 Versão original: "By "historie waters"are usually meant waters whieh are treated as internal but whieh would not have that eharaeter were it not for the existenee of an historie title" (tradução livre do autor). 55 A/CN.4/143 - Juridical Regime of Historie Waters, Including Historie Bays - Study Prepared by the Secretariat, in YBILC. 1962. Vol. II. New York: United Nations, p. 25. 56 ICJ Reports, 1951, p. 139: <<( .. .) the notoriety essential to provide the basis of an historie title ( ... ). 57 A/CN.4/143, p. 15.
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internacionais a utilização de vocábulos como immemorial ou long usage, cuja quantificação e avaliação dependerá duma apreciação casuística<58l. A atitude dos restantes Estados afigura-se como o elemento mais importante para a avaliação do título histórico. No Caso das Pescas foi mencionada pelo Tribunal a expressão "tolerância"<59l (toleration) para referir a ausência de reacção por parte da comunidade internacional relativamente às reivindicações norueguesas. No estudo anteriormente citado<60l, dentro do terceiro elemento, o Secretariado releva três aspectos que são importantes para a respectiva avaliação, que se podem resumir nas seguintes questões< 61l: que tipo de oposição impedirá a emergência de um título histórico?; qual o número de Estados necessário para que a oposição seja válida?; e quando deverá ocorrer essa oposição? Como resposta às questões apontadas é referido que o protesto (protest) constitui forma de oposição bastante para impedir a emergência de direitos históricos. Adianta ainda que a existência de um único protesto não é, por si só, facto que obste à constituição do direito. Uma vez mais, são as circunstâncias do caso concreto que ditarão a respectiva procedência. Há, pois, que avaliar outras circunstâncias, designadamente, os interesses vitais do Estado costeiro relativamente às áreas reclamadas e os interesses lesados do Estado protestante. Não existe, igualmente, um limite temporal preciso que permita a constituição de um direito histórico, como também não existe uma medida que possa quantificar a oposição de modo a excluir a tolerância. O Estado costeiro ao reclamar como históricas certas áreas de mar tornava suas áreas que, de outro modo, fariam parte do alto-mar. A entrada em vigor da CNUDM, a crescente invasão das jurisdições nacionais no alto-mar, bem como a intensificação das jurisdições nacionais na zona económica exclusiva como resultado, em especiat da necessidade de salvaguardar os recursos naturais e preservar o meio marinho, tendem a enfraquecer as liberdades próprias do alto mar e, consequentemente, a importância desta figura jurídica no Direito Internacional do mar. Em resultado da crescente regulamentação, esta realidade tende a assumir ainda maior expressão nas zonas de mar próximas da costa, normalmente correspondentes ao mar territorial. A implementação de esquemas de separação de tráfego (EST), o Port-State Contrai e a criação de zonas de protecção especial<62l, entre outros, são exemplos dos mecanismos mais recentes do novo Direito Internacional do mar, que impõem regras de tal modo restritivas ao direito de passagem inofensiva no mar territoriat e mesmo às liberdades de navegação' 63l na Ibid., p. 15. A expressão long usage foi utilizada no Caso das Pescas, pp. 133 e 142. ICJ Reports, 1951, p. 138: [t]he general tolerance ofJoreign States with regard to the Norwegian practice is an unchallenged Jact (... ). 6 °Cfr. 53 supra. 61 A/CN.4/143, pp. 17 e ss 62 Como é o caso das áreas a evitar das Berlengas, criadas pelo Decreto-Lei n. 0 198/2006, de 19 de Outubro. 63 Nos termos dos artigos 55° e 58° da CNUDM as liberdades do alto mar, nomeadamente a 58 59
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ZEE(64l, cuja realidade actual pouco tem a ver com a de tempos passados, mesmo relativamente recentes.
4.2.2. Baías jurídicas 4.2.2.1. Condições para o traçado das linhas de fecho No que respeita ao traçado de linhas de fecho nas baías, o respectivo regime vem descrito nos artigos 10° da CNUDM e 7° da CGMTZC. Para que uma baía possa ser considerada como "jurídica" é necessária a verificação de um conjunto de condições. Como condição de apreciação subjectiva, o n. 0 2 do artigo 10° da CNUDM exige que a reentrância da costa esteja bem marcada. Este pressuposto subjectivo é complementado com critérios geométricos objectivos que vão permitir a qualificação das reentrâncias como baías jurídicas. A verificação desses critérios objectivos assenta na observância de um teste. Como primeiro passo, deve ser traçada uma linha entre os pontos da entrada da natural da reentrância. Depois, em conformidade com o n. 0 3, do artigo 10°, deve ser traçado um semicírculo que tenha a linha anteriormente referida como o respectivo diâmetro. Se, devido à presença de ilhas a reentrância tiver mais que uma entrada, o semicírculo será traçado tomando como diâmetro a soma dos comprimentos das linhas que fechem as diferentes entradas. Seguidamente, devem ser calculadas a área desse semicírculo e a área do plano de água compreendida entre a linha de baixa-mar ao longo da costa da reentrância e a(s) linha(s) de baixa-mar da entrada da reentrância(65l. A condição estará verificada se a área de água encerrada pela(s) linha(s) for superior à área do semicírculo, tal como sucede na situação 2 da Figura 2. Nos casos em que a referida condição esteja verificada, pode ser traçada uma linha de fecho que não exceda 24 M entre os pontos naturais de entrada da reentrância( 66l. Quando os pontos naturais de entrada da baía excederem 24M, tal como se encontra exemplificado na Figura 3, pode ser traçada no interior da entrada natural da reentrância uma linha de fecho com aquele comprimento que encerre a maior superfície de água possível(67l.
liberdade de navegação, aplicam-se na ZEE na medida em que não sejam incompatíveis com o regime jurídico desta zona marítima. 64 VAN DYKE, J. M. 2005. The disappearing right to navigational freedom in the exclusive economic zone. Marine Policy. 29• Série, pp. 107 a 121, pp. 109 a 112. 65 CNUDM, artigo 10°, n°S 2 e 3. 66 Ibid., artigo 10°, n. 0 4. 67 Ibid., artigo 10°, 5.
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4.2.2.2. Águas encerradas
Um aspecto fundamental para avaliar a área de água compreendida entre a linha de baixa-mar ao longo da costa da reentrância e a linha que une seus pontos naturais de entrada, consiste em definir com rigor que superfície de águas conta para este efeito. Importa saber, em particular, em que medida determinadas características geográficas, como rios, lagoas ou riachos, contribuem para a área total de uma baía para efeitos da aplicação dos n.os 2 e 3 do artigo 10° da CNUDM. Para a avaliação da questão acima identificada, a interpretação meramente literal do artigo 9° não parece ser suficiente, nem a via mais adequada. Embora o elemento literal deva ser o primeiro a ter em conta para a interpretação de uma norma, também é certo que nenhuma disposição convencional impede expressamente que rios, riachos, lagoas ou outras características geográficas deste tipo possam ser tomadas em consideração no cálculo da superfície da baía para efeitos da aplicação do artigo 10°, n. 0 2. A este argumento acresce ainda o facto de a finalidade do artigo 9° consistir numa permissão ao Estado costeiro para traçar uma linha de fecho entre os pontos limites da linha de baixa-mar das margens dos rios que desaguam nas respectivas costas. O Estado costeiro não tem que a seguir mas, se o fizer, resultarão um conjunto de consequências jurídicas. A mera faculdade conferida ao Estado costeiro pelo artigo 9° da CNUDM não parece, por isso, impeditiva de vir a ser seguida a opção de não traçar uma linha de fecho na foz do rio, mas antes na embocadura da baía que a encerra. No nosso entendimento a questão de base que permitirá considerar ou não as águas de um estuário como fazendo parte da superfície de uma baía está em saber o que se deve entender por "linha de baixa-mar ao longo da costa" tal como descrito no artigo 10°, n. 0 3<68 >. Para a interpretação desta disposição a versão adoptada em língua portuguesa não é esclarecedora, havendo por isso que recorrer a versões nas línguas oficiais das Nações Unidas que constituem os textos autênticos da CNUDM<69 >. A expressão "linha de baixa-mar ao longo da costa" contida no n. 0 3 do artigo 10° da CNUDM é a tradução oficial para língua portuguesa das expressões inglesa "low water mark around the shore" e francesa "laisse de basse mer le long du rivage" . De acordo com o Hydrografic Dictionary<70> os termos shore e rivage significam, respectivamente," [t]he narrow strip ofland in immediate contact with any body ofwater including the area between high and low water lines"< 71 > (sublinhado do autor) e "[z] CNUDM, artigo 10°, n .0 3: <<Para efeitos de medição, a superfície de uma reentrância é a compreendida entre a linha de baixa-mar ao longo da costa e uma linha que una as linhas de baixa-mar dos seus pontos naturais de entrada.( ... )» (sublinhado do autor). 69 CNUDM, artigo 320°. 70 Versão online disponível em http:/ /www.iho-ohi.net/iho_pubs/standard/S-32/S-32eng.pdf 71 "[a] faixa estreita de terra em contacto imediato com qualquer corpo de água incluindo a área entre as linhas de preia-mar e baixa-mar" (tradução livre do autor) . 68
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one de terre en bordure de la mer ou d'un lac d'étendue notable. Dans le cas d'une mer à marée, il comprend l'estran. Dans le cas d'un lac le terme rive est en général préféré"
(sublinhado do autor)(72 ). Num contexto diferente, a mesma expressão em língua portuguesa "linha de baixa-mar ao longo da costa" é utilizada no artigo 5° da CNUDM(73), traduzida de expressões nas línguas inglesa e francesa diferentes "low water line along the coast'' e "laisse de basse mer le long de la cote". Verifica-se então que, tanto nas línguas inglesa e francesa, coast e côte são as referências para a delineação da linha de baixa-mar, a partir da qual se mede a largura do mar territorial, enquanto que shore e rivage são as referências onde se deve procurar as linhas de baixa-mar a partir das quais é determinada a área das águas encerradas pelos pontos naturais das entradas das baías. Parece não existirem dúvidas de que se trata de termos diferentes(74 ). Relembrando o princípio da integração, um tratado deve ser interpretado como um todo, devendo a termos idênticos ser atribuídos sentidos e alcances igualmente idênticos(75). Seguindo um raciocínio a contrario, a termos diferentes devem ser conferidos significados diferentes. Afigura-se, igualmente, que a partir das definições daqueles termos nas línguas oficiais a expressão em língua portuguesa 72
O dicionário Le Petit Larousse esclarece que "estran" significa a «porton du litoral comprise entre les plus hautes et les plus basses mers». Le Petit Larousse- Grand Format. 2003. Paris: Larousse, p. 400. 73 CNUDM, artigo 5°: <<( ... ) a linha de base normal para medir a largura do mar territorial é a linha de baixa-mar ao longo da costa, tal como medida nas cartas marítimas (... )» (sublinhado nosso). 74 A tradução dos termos "shore", em língua inglesa, e "rivage", em língua francesa, por "linha de costa" não parece adequada uma vez que induz o intérprete em confusão ao sugerir que se trata da mesma realidade física que "coast" ou "côte". A tradução dos primeiros termos por "linha de maré" afigura-se simultaneamente como menos confuso e efectivamente representativo da realidade em causa. A versão em língua portuguesa da CNUDM contém outras traduções menos conseguidas que podem originar erros de interpretação quando comparados com as versões nas línguas oficiais. A versão em língua portuguesa traduz a alínea b) do n. 0 1 do artigo 33° da CNUDM "b) Punish infrigment of the above laws and regulation committed within its territory or territorial sea" por "b) Reprimir as infracções às leis e regulamentos no seu território ou no seu mar territorial", sugerindo que o Estado costeiro terá legitimidade para reprimir todas e quaisquer infracções às leis e regulamentos no seu território ou no seu mar territorial. Efectivamente a expressão "of the above laws" contida na versão em língua inglesa restringe o âmbito de aplicação material ao tipo de infracções indicadas na alínea a) do mesmo número, i.e., às leis e regulamentos aduaneiros, fiscais, de imigração ou sanitários. 75 FITZMAURICE, M. 2006, The Practical Working of the Law of the Treaties, ln, EVANS, M. D., Edit., International Law. 2" ed .. New York: Oxford University Press Inc., pp. 187 a 213; AUST, A. 2000. Modem TreatJ; Law and Practice. Cambridge: Cambridge University Press, p. 198 e 199.
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"linha de baixa-mar ao longo da costa" contida no artigo 10°, n .0 3, da CNUDM deve necessariamente ser interpretada no sentido de incluir todas as superfícies de água onde se faz sentir o efeito das marés. Limitar essa linha apenas à linha de costa a partir da qual se mede a largura do mar territorial constitui uma interpretação restritiva da expressão que não tem correspondência nos textos em língua oficial inglesa e francesa sendo, por isso, contrário ao texto convencional<76l. Seguindo uma via de interpretação restritiva no que respeita aos conceitos indeterminados sobre baías, HODGSON e ALEXANDER defendem a não inclusão de rios e lagoas na avaliação da superfície de uma baía, uma vez que são características que não são seus elementos essenciais<77l. Como autor de uma obra de referência e relevo sobre esta matéria<78l, WESTERMAN não apresenta um raciocínio claro parecendo subscrever em parte o entendimento de HODGSON e ALEXANDER. Numa conclusão claramente insatisfatória no que respeita à clareza da posição assumida, este autor refere que as superfícies que não se conformem com a configuração geral da baía não devem ser consideradas para o cálculo da superfície antes da respectiva medição. Assim, não devem ser considerados rios, riachos e outras características geográficas que não sejam semelhantes a baías (un-baylike Jeatures) que desagúem na baía principal. Para a superfície total apenas devem contribuir as lagoas e outras características geográficas idênticas a 79 l. A solução proposta por WESTERMAN parece trazer mais difibaías (bay like)< culdades do que contribuir para a solução da questão de base, uma vez que para se tornar exequível haveria, complementarmente, que esclarecer o sentido de um 76
Loureiro BASTOS refere não existir um limite genérico para as águas interiores, seja interno ou externo, fundando esta afirmação nos artigos 5° da Lei 34/2006, e 5° a 13° da CNUDM (BASTOS, Fernando Loureiro. 2010. Os Poderes do Estado Português no Mar. ln MATIAS, N. et. al. (Eds.) Políticas Públicas do Mar. Lisboa: Esfera Caos Editores, pp. 35 a 65, pp. 55 e 56). Do texto dos referidos preceitos da CNUDM retira-se que, nos locais em que existam LBR ou linhas de fecho, existem efectivamente limites interiores e exteriores para as águas interiores. No caso das LBR, os limites interior e exterior são, respectivamente, a linha de preia-mar máxima (linha de costa cartográfica) correspondente à parte da costa LBR projectada pela LBR, e a própria LBR. Quando esteja em causa uma linha de fecho, os limites interior e exterior das águas interiores são, respectivamente, a linha da preia-mar máxima no interior do rio ou da baía e a própria linha de fecho . No caso português, cfr. 12.1.2 nfra. 77 HODGSON, R. D., e ALEXANDER, L. M .. 1972. Towards an Objective Analysis of Special Circumstances: Bays, Rivers, Coas tal and Oceanic Archipelagos and Atolls. Rhode Island: Rhode Island Law of the Sea Institute. Ocasional Paper n .0 13, pp. 4 e 5, <<[r]ivers and subsidiary features like lagoons should not be included when determining the area of water in a bay because such feature s could lead to an open-ended situation where, for instance, a river led to an inland lake system and thus added a vast area of water which was clearly unrelated to the bay. 78 WESTERMAN, G. S. 1988. Straight Baselines in International Law: A Call for Reconsideration. American Society of International Law. Vol. 82, pp. 260 a 276. 79 WESTERMAN, G. S. 1987. The Juridical Bay. Oxford: Oxford University Press, pp. 111 e 112.
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conjunto acrescido de conceitos indeterminados, designadamente, determinar em concreto o que são "bay-like" e "un-baylike Jeatures". Afastando-se claramente da perspectiva de HODGSON e ALEXANDER, BEAZLEY constrói o seu entendimento com base na linha de baixa-mar, apontando como verdadeiro ponto de referência o local onde a água da característica secundária (secundary waterways), seja rio, riacho, lagoa, ou braço de mar, deixa de ser constituído por água do mar. O termo "costa da reentrância" mencionado no artigo 10°, n. 0 3, da CNUDM, deve ser entendido como abrangendo todas as águas onde se façam sentir os efeitos das marés, tal como se encontra representado nas cartas náuticas' 80l. Na mesma linha de BEAZLEY, SHALOWITZ defende a linha de costa como referência para efeitos qualificação de uma reentrância como baía jurídica, mencionando que esta deve ser considerada até aos pontos onde se façam sentir os efeitos das marés que estejam marcados nas cartas náuticas. Como argumentação para este entendimento adianta também que tanto as baías, como os rios e as lagoas, se englobam numa classe comum que são as águas interiores (inland waters, termo que é diferente de internal waters), que correspondem às águas interiores em sentido estrito, tal como estão definidas no artigo 8°, n. 0 1, da CNUDM, não fazendo sentido considerar uma referência (linha de costa) diferente para cada uma delas'81l . CHURCHILL e LOWE, referindo-se ao caso Post Office vs Estuary Radio (1968) que qualificou o estuário do Tamisa como baía jurídica, não tomam posição sobre a questão, mencionando apenas que podem surgir algumas dificuldades no que respeita à avaliação até que ponto determinadas características secundárias (como rios e lagoas) podem ser tomadas em conta para calcular a superfície de água numa baía'82l. Referindo-se expressamente a BEAZLEY, PRESCOTT subscreve o entendimento que vai no sentido de considerar a superfície das águas dos rios e estuários para a área total a ter em conta no teste do semicírculo, no caso de a área de reentrância principal falhar. Chega mesmo a referir que não poderá haver qualquer reclamação se um governo decidir incluir todas as águas tão longe quanto as cartas náuticas demonstrem a linha de baixa-mar'83l.
4.2.2.3. Baías cujas costas pertencem a mais que um Estado
À semelhança do que que sucedia com o artigo 7° da CGMTZC, o artigo 80
BEAZLEY, P. B. 1986. Maritime Limits and Baselines - A Cuide to Their Delineation. 3'd Special Publication. 2"d ed. London: The Hydrographic Society, pp. 18 e 19. 81 SHALOWITZ, A. L. 1962. Shore and Sea Boundaries: With Special Reference to the Interpretation and Use of Coast and Geodetic Survey Data. Washington, D.C.: Government Priting Office, p .220. 82 CHURCHILL, R. R., e LOWE, A. V. 1999, p.42. 83 PRESCOTT, J. R. V., e SCHOFIELD, C. 2005, p.123.
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10° da CNUDM começa por afastar as baías cujas costas pertencem a mais que um Estado do regime nele contido. Em casos excepcionais, perante um título histórico, é possível o traçado de uma linha de fecho que encerre águas de mais que um Estado<84 >. É o que sucede no Golfo de Fonseca, cujas águas tocam as costas de El Salvador, Honduras e Nicarágua<85 >.
4.2.3. Prática internacional 4.2.3.1. Argentina
O sistema de LER da Argentina<86><87>, representado na Figura 4, apresenta três características geográficas de relevo, que são a foz do rio da Prata e os golfos de S. Matias e S. Jorge, sendo cada uma delas fechada por uma LER. Os pontos a partir dos quais são traçadas as LER do rio da Prata situam-se em Estados diferentes, localizando-se a Punta deZ Este no Uruguai e o Cabo de S. António na Argentina. O Departamento de Estado Norte-Americano não considera o disposto no artigo 13° da CGMTZC aplicável ao rio da Prata, do qual não resulta um limite máximo para as fozes dos rios, sugerindo como aplicável o regime das baías previsto no artigo 7° da mesma convenção. Como resultado desta qualificação a referida LER não estaria conforme com as disposições convencionais, uma vez que, além de ser constituída por costas de dois Estados, situação que não se enquadra no disposto no n. 0 1 do artigo 10° da CNUDM, o comprimento é cerca de 120M, superior às 24M permitidas pelo artigo 7°, n .0 4. As LER que fecham os golfos de S. Matias e S. Jorge não cumprem, igualmente, o requisito das 24M, uma vez que apresentam cumprimentos de 65 e 123M, respectivamente. No que respeita a uma possível qualificação como águas históricas, a declaração conjunta dos governos da Argentina e do Uruguai, de 30 de Janeiro de 1961, não invocou qualquer título histórico como base para a declaração, justificando-a com base no artigo 13° da CGMTZC<88 >. Este facto enfraquece a qualificação da84
CHURCHILL, R. R., e LOWE, A. V. 1999. p. 46.
85
Ibid., p . 46.
86
A Argentina ratificou a CNUDM em 01 de Dezembro de 1995. Lista completa de Estados que ratificaram a CNUDM em http:l lwww.un.orgiDeptsl los I reference_files I sta tus201 O. pdf Lista completa de Estados que ratificaram a CGMTZC em http:l ltreaties.un.orglpagesiViewDetails.aspx?src=TREATY &mtdsg_no=XXI-1&chapter=21&lang=en#EndDec 87 Cfr. UNITED STATES DEPARTMENT OF STATE. 1972. Limits in the Seas n. 0 44. Straight
Baselines -Argentina. Os documentos da série "UNITED STATES DEPARTMENT OF STATE-Limits in the Seas" são, ao longo do texto, designados apenas por "Limits in the Seas", seguidos do número e designação correspondentes. 88 ROACH, J. A., e SMITH, R. W. 1996. United States Responses to Excessive Maritime Claims. Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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quelas águas como históricas.
4.2.3.2. Venezuela
O Decreto Presidencial, de 10 de Julho de 1968<89 ) criou uma LBR, com cerca de 98,9 M, que fecha o delta do Orinoco, cuja representação consta na Figura 5. Relativamente a esta LBR sobressaem como elementos de relevo o facto de os pontos em cada uma das margens pertencerem a Estados diferentes, Venezuela<90 ) e Guiana<91l, bem como o facto de não estarem reunidos os requisitos dos artigos 7°, n .0 4, no que respeita às 24M e, aparente, o n. 0 2, ambos da CGMTZC, este último correspondente ao teste do semicírculo<92l.
4.2.3.3. Mauritânia
A LBR da Mauritânia<93l entre os cabos Blanc e Timiris, foi criada pela Lei n. 67023, de 21 de Janeiro de 1967, que modificou a Lei n. 0 62038, de 20 de Janeiro de 1962<94l. Como se pode verificar na Figura 6, a referida LBR, apresenta um comprimento aproximado de 89 M. Tendo em conta os requisitos constantes nas disposições convencionais, a LBR é superior a 24M e parece não satisfazer o teste do semicírculo. 0
S. Linhas de base recta 5.1. Antecedentes históricos
A análise dos conceitos vagos e indeterminados que permitem o traçado de linhas de base recta (LBR) é, como inicialmente referido, efectuada tendo por base as disposições pertinentes constantes na CNUDM, em especial o respectivo artigo 7°. No entanto, para a compreensão da ratio legis do referido preceito importa recuar aos marcos históricos mais importantes que deram origem ao seu texto actual. Fica assim reservado o primeiro dos seguintes subcapítulos para uma análise dos antecedentes históricos das linhas de base recta antes de prosse2"ded .. The Heague [etc.] : Martinus Nijhoff Publishers, p.35. Limits in the Seas n .0 21. Straíght Baselínes- Venezuela, p .2. 90 A Venezuela não ratificou a CNUDM. Ratificou a CGMTZC em 15 de Agosto de 1961. 91 A Guiana ratificou a CNUDM em 16 de Novembro de 1993. 92 MASOT, O. V. 1991, The GulfofVenezuela: A Case Study ofHístoríc Waters, Caracas: Editorial Arte, pp. 72 a 74. 93 A Mauritânia ratificou a CNUDM em 17 de Julho de 1996. 94 Limits in the Seas n. 0 8. 1970. Straíght Baselínes-Maurítanía, p. 2. 89
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guir a exposição já no âmbito da CNUDM.
5.1.1. Conferência de Haia de 1930
Para melhor se compreender o conceito de linha de base recta é importante ter uma ideia de como ele surgiu no Direito Internacional, das condicionantes que lhe são intrínsecas e do desenvolvimento que conheceu até aos dias de hoje. O traçado das LBR foi um dos pontos em apreciação na Conferência de Haia para a Codificação do Direito Internacional, de 1930. Tendo em vista a obtenção de elementos que pudessem orientar os trabalhos, o Comité Preparatório para a Conferência submeteu aos diversos governos da época algumas perguntas. Relativas às linhas de base as perguntas foram as seguintes: "[a] linha da baixa-mar é a que segue as sinuosidades da costa?; ou a linha traçada entre pontos salientes das costa, ilhas, ilhotas ou rochedos?; ou outra linha qualquer? A distância entre ilhas e a costa deve ser tida em consideração neste traçado?"<95 ). Estas questões, cuja pertinência tem
vindo a ser demonstrada consistentemente e que, na prática, ainda hoje não se encontram totalmente respondidas, não tiveram seguimento adequado uma vez que a Conferência de Haia de 1930 não atingiu os objectivos previstos. Apesar de, nessa época, já existirem outros Estados que tinham traçado LBR<96), este assunto apenas regressou à cena internacional de um modo particularmente activo com o Caso das Pescas<97).
5.1.2. O Caso das Pescas Anglo-Norueguês, de 1951
Os primeiros factos que deram origem a este caso reportam-se a alguns séculos atrás, ao tempo em que os pescadores ingleses começaram a pescar nas águas das costas da Noruega e da Dinamarca. Em resultado das queixas apresentadas pelas populações locais devido à presença de embarcações estrangeiras na costa e às diligências promovidas pelos respectivos soberanos junto da coroa inglesa, os pescadores ingleses abstiveram-se de pescar naquelas águas desde o início do século XVII até ao início do século XX. A partir de 1906 as visitas de pescadores ingleses às costas da Noruega começaram de novo a tornar-se frequentes, facto que causava grande apreensão nas populações locais que tinham na pesca o modo de vida principal. Em 1911 aconteceu o primeiro apresamento, S.n. 1930. Basis of Discussion Drawn Up by the Preparatory Committee for the Codification Conference- 1930. American Journal of International Law (Supplement). Vol. 24, pp. 29 e ss .. Tradução livre do autor. 96 CHURCHILL, R. R., e LOWE, A. V. 1999. p. 34, nota 8. 97 Caso das Pescas, pp. 124 e ss. DIVISION FOR OCEAN AFFAIRS AND THE LAW OF THE SEA. 2007. Digest of International Cases on the Law of the Sea, New York: United Nations, pp. 6 a 10. 95
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tendo-lhe sucedido a partir de então muitos outros, bem como diversas acções diplomáticas por parte de ambos os Estados, sem resultados concretos. Em 1935 entrou em vigor um decreto norueguês delimitando as águas norueguesas a uma faixa de 4 M contadas a partir de LBR. As LBR então traçadas uniam 48 pontos da costa norueguesa, incluindo ilhas e rochedos, fechando como águas interiores uma área considerável. Parte destas áreas agora qualificadas como águas interiores continuavam, segundo os britânicos, consideradas como sendo de alto-mar e de grande importância para a sua indústria de pesca. Perante esta divergência de entendimentos, o Reino Unido e a Noruega acordaram então na submissão da questão à apreciação do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ). A decisão do Tribunal foi no sentido de referir que o método utilizado pelos noruegueses não era contrário ao Direito Internacional (10 votos contra 2), e que as LBR efectivamente traçadas eram conformes com o referido método (8 votos contra 4). Como fundamento para a decisão, o Tribunal definiu três regras como válidas para a definição das LBW98l : (1) As linhas de base não devem afastar-se consideravelmente da direcção geral da costa. (2) Na escolha das linhas de base é essencial avaliar se as áreas de mar por elas encerradas estão suficientemente ligadas ao domínio terrestre para ficar sujeitas ao regime das águas interiores. (3) Existência de certos interesses económicos próprios de uma região e a respectiva importância, relativamente aos quais deve ser provado um uso prolongado. Estas regras tornaram-se, a partir de então, pressupostos cuja verificação seria indispensável para o traçado de LBW99l, passando em 1958 a constar expressamente em texto convencional. É clara, como se pode verificar infra, a colagem de algumas passagens da decisão nos textos convencionais adoptados uns anos mais tarde: «Onde na costa existam recortes profundos ou reentrâncias, como é o caso do Eastern Finnmark, ou onde seja bordejada por um arquipélago tal como o "skjcergaard" ao longo do sector Oeste da costa em apreço, a linha de base torna-se independente da linha de baixa-mar, e só pode ser determinada através de construção geométrica.»C 100H101 l. «[a]lguma referência deve ser feita à dependência do mar territorial relativamente ao domínio terrestre. É a terra que confere ao Estado costeiro o direito às águas para lá das suas costas. Em consequência, enquanto que ao Estado deve ser conferida a latitude necessária para adaptar a delimitação às suas necessidades práticas e requisitos locais,
98
GREEN, L. C. 1952. The Anglo-Norwegian Fisheries Case, 1951 (ICJ Teports 1951, p. 116). The Modem Law Review. Vol. 15. 3'd Series, pp. 373 a 377. 99 R. R. CHURCHILL e A. V. LOWE, p . 35. 100 Caso das Pescas, pp. 128 e 129 (sublinhado do autor). 101 Versão original: <<Where a coast is deeply indented and cut into, as is that ofEastern Finnmark, ar where it is bordered by an archipelago such as the "skja:rgaard" along the western sector of the coast here in question, the base-line becomes independent of the low-water mark, and can only be determined by means of a geometrical construction» (tradução livre do autor).
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o traçado das linhas de base recta não deve afastar-se da direcção geral da costa»<102H103l. «Outro aspecto fundamental, de particular importância neste caso, consiste na relação mais ou menos próxima existente entre certas áreas de mar e as formações terrestres que as dividem ou circundam. A questão de base suscitada relativamente à escolha das linhas de base é, com efeito, se certas áreas de mar situadas dentro destas linhas estão suficientemente vinculadas ao domínio terrestre para ficarem submetidas ao regime das águas interiores. Esta ideia, que estána base da determinação das regras relativamente às baías, deve ser aplicada de modo liberal no caso de uma costa cuja configuração geográfica seja tão for a do comum como é o caso da Noruega>>< 104H105 • <<[e]xiste um aspecto a não desprezar cujo objectivo se estende para lá dos factores puramente geográficos: os interesses económicos próprios da região, cuja realidade e importância estejam claramente demonstradas por um uso prolongado>><106l< 107l. As LBR publicadas no decreto real de 12 de Julho de 1935 consistiam nos segmentos 1 a 48, tal como se encontram representados na Figura 7 com um traço preto, tendo sido esse o traçado apreciado pelo TIJ e que deu origem ao caso supra citado. Não deixa de merecer realce o facto de a Noruega pouco tempo depois, através do decreto real de 18 de Julho de 1952, ter estendido o traçado das LBR na sua costa de modo a cobri-la completamente para Sul, dos pontos 48 ao 123, representados na Figura 7 a vermelho. Como se pode verificar facilmente, o traçado imediatamente a seguir ao ponto 48 parece não reunir de um modo tão claro as condições fisiográficas que estiveram na base da decisão do TIJ no ano anterior. Em termos de estratégia e de política internacional este novo traçado consistiu claramente no aproveitamento da oportunidade excepcional que decorreu de uma decisão que lhe foi favorável e que afastaria à partida nova acção 102 103
Caso das pescas, p. 133 (sublinhado do autor). Versão original: «[s]ome reference must be made to the close dependence of the territorial sea
upon the land domain. It is the land which confers upon the coas tal State a right to the waters off its coasts. It follows that while such a State must be allowed the latitude necessary in arder to be able to adapt its delimitation to practical needs and local requirements, the drawing ofbase-lines must not depart to any appreciable extent from the general direction of the coast.>> (tradução 104
livre do autor). Ibid., p. 133 (sublinhado do autor).
<<Another fundamental consideration, of particular importance in this case, is the more ar less close relationship existing between certain sea areas and the land formations which divide ar surround them. The real question raised in the choice of base-lines is in effect whether certain sea areas lying within these lines are sufficiently closely linked to the land domain to be subject to the regime of internal waters. This idea, which is at the basis of the determination of the rules relating to bays, should be liberally applied in the case of a coast, the geographical configuration ofwhich is as unusual as that ofNorway.>> (tradução livre do autor). 106 Ibid., p. 133 (sublinhado nosso). 107 «[t]here is one consideration not to be overlooked, the scope of which extends beyond purely geographical factors : that of certain economic interests peculiar to a region, the reality and importance ofwhich are clearly evidenced by a long usage» (tradução livre do autor). 105
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junto do TIJ subsequente à execução do segundo traçado.
5.1.3. Convenção de Genebra sobre o Mar Territorial e Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar Na época em que decorreram os trabalhos preparatórios da CGMTZC já era manifesta a importância do traçado das linhas de base. Tendo em conta que o mar territorial e a zona contígua tal como vieram a ser definidos nesta Convenção eram os únicos espaços de mar onde os Estados costeiros podiam exercer poderes soberanos ou de jurisdição, cujas larguras tomadas em conjunto podiam ir até às 12 M(los>, um traçado "generoso" das LBR poderia aumentar significativamente as áreas de soberania ou jurisdição do Estado costeiro. As vantagens desse traçado eram óbvias, não só sob o ponto de vista económico, mas também estratégico e de segurança. Quanto mais longe da costa estivessem as linhas de base, mais longe se situariam também os limites interiores e exteriores do mar territorial, maiores seriam as áreas de soberania dos Estados costeiros por aumento das áreas correspondentes, em especial, das águas interiores. Maior seria, por isso, a distância a impor às frotas estrangeiras, tanto navais, como de pesca, potencialmente as mais invasivas e que maior dano poderiam causar aos Estados costeiros. Tendo por base o trabalho preparado pela CDI para a I Conferência, o artigo respeitante às LBR na CGMTZC veio a conhecer uma fórmula que se tem mantido, desde então, praticamente inalterada( 109l, conforme se pode verificar nos textos abaixo indicados nas versões em língua portuguesa e língua inglesa constantes no Anexo 2 ao presente texto. Como se pode verificar no texto de cada um dos artigos, existem vários conceitos indeterminados relativos ao traçado das LBR cuja origem vem do próprio texto da decisão do Caso das Pescas. Os inconvenientes resultantes da importação directa dos termos, em especial a falta de precisão, são a consequência de uma normatização a partir de um caso específico como é o da costa da Noruega, sem uma preocupação na respectiva clarificação. À época, a decisão do Tribunal revelou-se de uma importância fundamental para a solução de uma questão nova visto que, pela primeira vez, a legitimidade para o estabelecimento de linhas de base tinha sido posta em causa por outro Estado perante um tribunal internacional. Embora a própria decisão do Tribunal referisse que não fazia mais 108
Na CGMTZC a largura do mar territorial não vem expressamente fixada. O artigo 24°, n. 0 2, refere que a zona contígua não se pode estender para além das 12 M a contar da linha de base que serve para medir a largura do mar territorial. No limite será esta a largura máxima do mar territorial, nos casos em que o Estado costeiro não estabeleça zona contígua. 109 Os textos correspondentes aos números 1 e 2 do artigo 4° da CGMTZC e dos números 1 e 3 do artigo 7° da CNUDM, na versão oficial em língua inglesa, são exactamente iguais. As pequenas diferenças entre os textos em língua portuguesa resultam da tradução.
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que a aplicação do Direito Internacional comum a um caso concreto<110l o Tribunal estava consciente das particularidades geográficas, económicas e históricas, que caracterizam a Noruega<111 l. Esta constitui uma primeira explicação sobre as obscuridades e dúvidas no que respeita ao significado dos conceitos indeterminados dos artigos 4° e 7° acima descritos. Segundo SCOVAZZI, uma interpretação restritiva daqueles preceitos não traduziria mais que a possibilidade de a Noruega e de alguns Estados, poucos, com as respectivas costas com características semelhantes, poderem traçar linhas de base recta<112l. Não existe hoje uma definição jurídica, ou técnica, internacionalmente aceite sobre qual o entendimento a seguir para avaliar um conjunto de conceitos e circunstâncias, tais como se determinado "local" da costa apresenta "recortes profundos e reentrâncias", ou se um conjunto de ilhas na "proximidade imediata" da costa constitui uma "franja de ilhas" apto para o traçado de LBR válidas. Fica igualmente por saber, com base em critérios internacionalmente aceites, a que distância e com que inclinação determinado traçado estará "consideravelmente afastado" da "direcção geral da costa", bem como determinar se certa área de mar está ou não "suficientemente vinculada ao domínio terrestre" para que possa ser encerrada por LBR. A inexistência de um entendimento internacionalmente aceite para cada um dos conceitos indeterminados origina, necessariamente, a impossibilidade de avaliar de modo seguro e conciso se determinado traçado lhes está conforme. Uma vez que a maioria dos conceitos indeterminados se refere implicitamente a distâncias e números (v.g., ilhas), que são realidades quantificáveis e/ ou representáveis geometricamente, a inexistência de critérios objectivos para a respectiva avaliação deixa em aberto uma enorme e (in)conveniente margem de discricionariedade.
5.2. Finalidade do traçado de linhas de base recta A análise de qualquer traçado de LBR deve ter presente a finalidade subjacente à utilização deste método. PRESCOTT aponta como motivo inicial que levou à substituição da linha de baixa-mar por LBR o evitar situações em que o mar territorial fosse penetrado por corredores profundos de águas não territoriais. A substituição da linha de costa por uma linha recta tem em vista a simplificação do alinhamento do bordo exterior do mar territorial. Com este processo beneficiam tanto os navegadores estrangeiros como as autoridades costeiras encarregadas da respectiva fiscalização< 113l.
°Caso das Pescas, p. 133.
11
111
SCOVAZZI, T. 1997, pp. 160 a 176, p . 172. Ibid., p. 172; ZHANG, H. Z. 1991. The Adjacent Sea. ln BEDJAOUI, M. (ed.). International Law: Achievements and Prospects. Vol. 1. Dordrecht: Martinus Nijhoff Publishers, pp. 849 a 870, pp. 850 e 851. 113 PRESCOTT, J. R. V. 1987. Straight and Archipelagic Baselines. BLAKE, G. (ed.) Maritime 112
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Segundo a DOALOS a finalidade subjacente ao traçado de LBR é evitar traçados complexos para os limites do mar territorial, e das zonas marítimas a elas referenciadas, que possam resultar da configuração das linhas de base normal nos estuários, baías e outras características geográficas da costa< 114>. O propósito das LBR não é, por isso, aumentar indevidamente a área do mar territorial<11 5>, nem das zona marítimas que lhes estão referenciadas. A primeira utilidade relativamente à qual o traçado das LBR potencialmente mais pode conflituar é a liberdade de navegação. Uma vez que o traçado das linhas de base pode vir a constituir a referência para delimitações tanto para Estados vizinhos, como o poderá ser relativamente à Área, a ele fica ligado intrinsecamente um leque vasto de interesses. Na perspectiva do Estado costeiro existem interesses fundamentais que lhe estão igualmente associados, tais como a segurança, o controlo sobre os recursos marinhos, a protecção do ambiente, a repressão à criminalidade e às infracções fiscais, só para mencionar, porventura, os mais evidentes. Ao referir que o Estado costeiro tem a faculdade de, através das LBR, eliminar eventuais padrões complexos que o limite exterior do respectivo mar territorial possa vir a ter, não é intenção das disposições convencionais, nem o foi a decisão do Caso das Pescas, permitir ao Estado costeiro traçar as LBR onde bem o entendesse. Quando adequadamente traçadas, das LBR não resultam projecções excessivas dos limites exteriores das zonas marítimas relativamente aos traçados que resultariam em relação à linha de base normal, i.e., a linha de costa<116>. No Caso das Pescas, o juiz Alvarez referiu que, tendo por base a variedade das condições económicas e geográficas de cada um dos Estados, não é possível estabelecer regras gerais adequadas aplicáveis a todos eles<117>. Esta constatação demonstra que a cada Estado costeiro deve ser reconhecida uma determinada latitude para a avaliação das condições que lhe são próprias no que respeita ao traçado das LBR, desde que o faça de um modo moderado e razoável(JIBl, pelo que a avaliação de traçados com base na mera aplicação de critérios matemáticos ou geométricos deve seguida com prudência. Aliás, importa ter sempre presente que, salvaguardados que estejam os aspectos internacionais que lhe são ineren-
114
Boundaríes and Ocean Resources. London: Croom Helm, pp. 38 a 51, p. 39. OFFICE FOR OCEANS AFFAIRS AND LAW OF THE SEA. 1989. Baselínes: An Examínatíon of the Relevant Provísíons of the Uníted Natíons Conventíon on the Law of the Sea. New
York: United Nations, p.l8. Ibíd., p. 21. 116 Por vezes, mesmo em situações onde as áreas acrescidas são mínimas não deixam de existir comentários desfavoráveis. V.g. caso de Malta em BLAKE, G..1997. Coastal state sovereignty in the Mediterranean sea: the case of Malta. GeoJournal. Vol. 41, 2"d Series, pp. 173 a 180. 117 Caso das Pescas, p. 151. 11 8 Os termos "razoável" [reazonable] e "moderado" [moderate] foram utilizados no Caso das Pescas, como medida de um equilíbrio justo entre os interesses do Estado costeiro e da restante comunidade internacional, Caso das Pescas, p. 142. 115
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tes, compete em primeira mão aos Estados interpretar e aplicar as normas das Convenções que lhe são aplicáveis<119l. Tendo em conta as diversas circunstâncias que podem levar a que determinado Estado costeiro opte pelo traçado de LBR em determinados locais da sua costa, deve ser tido em consideração que o referido traçado não deve aumentar indevidamente as áreas correspondentes a cada uma das zonas marítimas. Importa sublinhar que a definição de LBR implica sempre<120l, qualquer que seja a configuração da costa, um aumento das áreas sob soberania ou jurisdição do Estado costeiro. A este propósito Loureiro BASTOS vai mais longe ao referir que o traçado das linhas de base não consiste numa operação puramente mecânica, com resultados neutros, consistindo, antes, numa opção dos Estados costeiros, que dessa forma podem proceder, de uma forma não imediatamente evidente, à territorialização do espaço adjacente ao seu território terrestre< 121 l. Como se verá infra, não existe no Direito Internacional qualquer método, referência ou medida que permita entender de modo claro quando é que existe um aumento indevido das zonas marítimas, em particular das águas interiores, mar territorial e zona contígua, que são as que reflectem de modo mais evidente as áreas acrescidas de soberania ou jurisdição que resultam do traçado. No entanto, o aumento de áreas só por si não é o único elemento a ter em conta na avaliação. É necessário também avaliar a medida do prejuízo efectivo para os restantes Estados costeiros que resultará desse aumento de áreas de soberania ou jurisdição. Caso contrário poderá estar em causa um mero exercício teórico com possíveis reflexos quanto à pertinência de eventuais protestos por parte de outros Estados.
5.3. Locais
A avaliação inicial do espaço onde vai ser efectuada a análise de um sistema de LBR impõe a definição do que se deve entender por "locais" [localities], como consta na primeira parte do artigo 7°, n. 0 1. Tal como na esmagadora maioria dos outros conceitos, "locais" não tem uma definição internacionalmente aceite. A interpretação e aplicação deste conceito habilita o Estado a poder traçar LBR ao longo de partes importantes da sua costa, dispensando-o de demonstrar que toda ela é recortada ou coberta por uma franja de ilhas<122l. O facto de o termo estar no plural impõe a necessidade de demonstrar a verificação dos requisitos necessários para o traçado das LBR independentemente para cada um desses locais, não 119
Romani. 2007, pp. 23 e ss. Quanto mais perto entre si se encontrarem os pontos que servem de base ao traçado, menor será a área acrescida de soberania/jurisdição dele resultante a favor do Estado costeiro. 121 BASTOS, F. Loureiro. 2005. A Internacionalização dos Recursos Marinhos. Lisboa: AAFDL, p. 272. 122 NOSSUM, J. H .. 2000. Straight Baselines of Vietnam. Oslo: University of Oslo, p.35. 120
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valendo para toda a costa, o considerado cumprido apenas relativamente a uma parte dela. O Departamento de Estado Norte-Americano admite um traçado de LBR relativamente ao qual apenas 70% corresponde a recortes profundos. Como justificação para este valor refere que, no Caso das Pescas, apenas 94 das 160M de LBR cobriam os fjords, o que dá uma percentagem de 60% (mais rigorosamente, 58%), seguindo a opinião de HODGSON e ALEXANDER, que propõe aquele como o valor de referência para a respectiva avaliação<123>. A matéria relativa ao máximo comprimento admissível para uma LBR nos locais onde não existam recortes profundos e reentrâncias parece não merecer a maior atenção por parte da doutrina, constituindo os exemplos apontados os únicos encontrados. Outro aspecto igualmente importante no que respeita à interpretação do conceito de "locais" tem a ver com a respectiva situação geográfica, valendo tanto para costas continentais, como insulares. Esta interpretação resulta do texto dos artigos 7°, 10" e 121°, da CNUDM, da doutrina e da prática dos Estados. O artigo 121°, n. 2, ao referir que "Salvo o disposto no n. 0 3, o mar territorial, a zona contígua, a zona económica exclusiva e a plataforma continental de uma ilha serão determinados de conformidade com as disposições da presente Convenção aplicáveis a outras formações terrestres" transpõe para as ilhas o regime estabelecido na CNUDM para as zonas marítimas indicadas, designadamente, o aplicável às linhas de base e baías. Por outro lado, o texto dos artigos 7° e 10° não faz distinção entre costas continentais ou insulares sendo, por isso, aplicáveis a ambas. A aplicabilidade dos requisitos para o traçado de LBR às ilhas, designadamente, os previstos para as baías, a existência de recortes profundos ou reentrâncias ou a existência de uma franja de ilhas na sua proximidade imediata, constam em diversos exemplos apresentados por FRANCALANCI e SCOVAZZI relativos a traçados de LBR existentes em ilhas como Cuba<124>, as Falkland, South Georgia, Turks and CaicosU 25l e a IslândiaU 26 >. 0
5.4.Recortes profundos ou reentrâncias 5.4.1. Número de recortes profundos ou reentrâncias
A existência de recortes profundos ou reentrâncias na costa constitui um dos pressupostos fundamentais para o traçado de LBR. Importa, por isso, saber a nível internacional qual o significado atribuído a esta expressão. 123
Limits in the Seas n. 106. Developing Standard Guidelines for Evaluating Straight Baselines, p.9. 124 Limits in the Seas n. 76. Straight Baselines-Cuba. 125 FRANCALANCI, G. e SCOVAZZI, T. 1994. Lines in the Sea. Dordrecht: Martinus Hijhoff Publishers, pp. 41 e ss. 126 Limits in the Seas n." 34. 1974. Straight Baselines-Iceland. 0
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Para a interpretação de termos e expressões contidas em convenções internacionais é fundamental ter em consideração as respectivas versões oficiais. A expressão "recortes profundos e reentrâncias" é a tradução para língua portuguesa das expressões inglesa "deeply indented and cut into", francesa "profondément échancrée et découpée" e espanhola "profundas aberturas y escotaduras". É defendido pela maioria da doutrina internacional que é necessária a existência de uma determinada quantidade de recortes profundos ou reentrâncias como pressuposto de base para a existência do traçado de LBR. Isto resulta da parte inicial do texto do artigo 7°, n. 0 1, da CNUDM. A falta de clareza do texto, e as dúvidas a ela inerentes, surgiram logo após a decisão do Caso das Pescas. Mais tarde, durante a I Conferência, o representante dos Estados Unidos sugeriu a substituição da expressão "deeply indented or cut into" pelo termo "bay", uma vez que a referida expressão era confusa e sem significado legal próprioC127l<128l. Esta opinião não veio a merecer consideração de maior por parte da doutrina norte-americana posterior. No que respeita à expressão "cut into", REISMAN e WESTERMAN consideram que se trata de um conceito com um significado jurídico preciso no contexto em que está inserida, podendo ser considerado como sublinhando determinado grau de penetração da costa(1 29l. Estes autores sugerem que "cut into" consiste num requisito de pluralidade, uma vez que o requisito de profundidade de reentrância já se encontra fixado (através da expressão deeply indented). Para que esta pluralidade se verifique e a costa possa ser considerada "cuted into", consideram que basta a existência de mais que uma reentrância. Estes autores complementam esta interpretação com recurso a um critério de legalidade duvidosa que não encontra suporte no texto convencional, afirmando que com vista a evitar abusos na aplicação do regime das linhas de base recta, a norma deve ser interpretada restritivamente no sentido de serem necessárias mais de duas reentrâncias para que o traçado possa ser considerado válido(1 30l. A este respeito e sem adiantar um número conclusivo, o Office for Ocean 127
SCOVAZZI, T. 1986. Le Linee di Base Rette. ln SCOVAZZI, T. (ed.), La Linea di Base deZ Mare Territoriale. Milano, p .105. 128 <<The ILC phrase "deeply indented ar cut into" is a repetitive and relative one, without legal meaning. These words were used by the Intemational Court of Justice in the Fisheries case in a very limited context in arder to refute the argument that the trace paralele method of delimitation could be applied without difficultt; to "broken" coasts ... Replacement of this phrase by the term "bay" is in accord with the facts of the Fisheries case, and will lend legal precision to this rule when considered in conjunction with article 7». Documento CONF.13/C.l/L86, citado por
RONZITTI, Natalino. 1986. New Criticism of the Gulf of Taranto Closing Line: a Restatement of a Different View. Syracuse ]ou mal of International Law and Commerce. N. 0 12.(3), pp. 465 a 472. 129 REISMAN, M. W., e WESTERMAN, G. S. 1982. Straight Baselines in Maritime Delimitation. New York: St. Martins Press, p.82. 130 Ibid., p. 82. Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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Affairs and the Law of the Sea considera necessária a existência de vários (several) recortes profundos ou reentrâncias para que seja possível o traçado de LBR< 131l. A expressão "severa/" acima citada significa, segundo o Oxford Dictionary & Thesaurus(l 32l, "more than two, but not many". Esta descrição parece sustentar o entendimento dos autores anteriormente citados no sentido de que seriam necessários pelo menos três recortes profundos ou reentrâncias para que se possam traçar LBR. PRESCOTT e SCHOFIELD baseando-se no texto do Office for Ocean Affairs and the Law of the Sea referem que não existe nenhum critério universalmente aceite sobre esta questão, sugerindo que devem existir vários recortes profundos ou reentrâncias que, individualmente, satisfaçam os requisitos relativos às baías jurídicasC133l. Estes autores subscrevem igualmente o entendimento apresentado pelo Office for Ocean Affairs and the Law of the Sea no sentido de que, se o espírito do artigo 7° da CNUDM for salvaguardado, podem ser traçadas LBR de modo a eliminar padrões complexos correspondentes ao bordo exterior do mar ten·itorial, sem aumentar indevidamente a respectiva áreaC134l. O Departamento de Estado Norte-Americano, apoiando-se na opinião de vários peritos, considerou que um sistema de linhas de base não pode ser traçado num local em que haja só uma ou duas reentrâncias semelhantes a baías. Caso contrário, as limitações relativamente ao fecho de baías, designadamente, o requisito do semicírculo e o limite das 24 M para as linhas de fecho perderiam o significadoC135l. Apoiando-se nos textos da decisão do Caso das Pescas, e nos artigos 4° e 7°, respectivamente, das CGMTZC e da CNUDM, BRUBAKER refere que a expressão "deeply indented and cut into" se refere conjuntamente aos fiords profundos e às reentrâncias ligeiras da costa da Finlândia, citada pelo TIJ como exemplo. A conjunção e [and] refere-se à pluralidade que constitui duas daquelas formações em simultâneo, bastando assim apenas a existência de um recorte profundo para a condição esteja verificada. É sublinhado ainda que a frase analisada (deeply indented and cut into) é formada por três adjectivos e nenhum substantivo, podendo estes ser interpretados tanto no singular como no plural. Adianta ainda que, seguindo a interpretação mais próxima da letra da norma, basta a existência de mais que uma reentrância para que esteja cumprido o requisito de pluralidade e possam ser traçadas LBR<136l. OFFICE FOR OCEANS AFFAIRS AND LAW OF THE SEA. 1989, p.18, n. 0 36. Oxford Dictionary & Thesaurus. 2009. 3'd ed. OXFORD UNIVERSITY PRESS (ed.). London: Clays Ltd., p.847. 133 PRESCOTT, J. R. V. e SCHOFIELD, C. 2005, p.146. 134 Ibid., p. 146. 135 Limits in the Seas n. 106. Developing Standard Guidelines for Evaluating Straight Baselines, p.10. 136 BRUBAKER, R. D. 1999. The Legal Status of Russian Baselines in the Arctic. Ocean Development & International Law. Vol. 30. 3'd Series, pp. 191 a 223. 131
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Tendo em conta o acima referido verifica-se não existir consenso quanto ao número de recortes profundos ou reentrâncias que devem existir em determinado troço da costa ("local", tal corno consta na primeira parte do n. 1 do artigo 7° da CNUDM, e com o entendimento exposto em 5.3 supra) para que possam ser traçadas LBR. Urna parte da doutrina anteriormente citada defende a necessidade de existência de pelo menos três recortes profundos e reentrâncias, com base em critérios aparentemente mais políticos que jurídicos . Corno argumentação de base é normalmente citado o exemplo da Noruega, cujo padrão fisiográfico é muito próprio e de difícil comparação na maioria das regiões do globo. Tornando corno ponto de partida o princípio da literalidade, o modo corno está escrita a norma, i.e., no plural, é sugerido apenas que bastaria a verificação de mais do que um recorte profundo para que nesse "local" possam ser traçadas LBR. Deste modo, dois já seriam suficiente para satisfazer o requisito e validar o traçado, cumprido o requisito de pluralidade apontado por REISMAN e WESTERMAN. Esta é a via interpretativa sugerida por NOSSUM, sob a condição de se encontrar verificado o propósito subjacente ao traçado de LBW137l. 0
5.4.2. Razão de penetração A interpretação literal do artigo 7°, n. 0 1, com o artigo 10°, n. 0 2, ambos da CNUDM, pode oferecer-nos urna primeira pista no que respeita a urna avaliação da profundidade que as reentrâncias devem ter para que possam dar origem a traçados de LBR válidas. De acordo com o artigo 10°, n. 0 2, urna baía "[é] uma reentrância1138! bem marcada, cuja penetração em terra, em relação à sua entrada, é tal que contém águas cercadas pela costa e constitui mais que uma simples inflexão da costa". Enquanto para o traçado de LBR a costa deve apresentar "recortes profundos e reentrâncias", para o traçado de linhas de fecho nas baías é necessário que a "reentrância seja bem marcada". De acordo com a versão em língua inglesa, podem ser traçadas LBR quando a costa for deeply indented. No que respeita às baías é necessário que exista urna well-marked indentation. Verifica-se, assim, que o traçado de LBR em reentrâncias (ou indentations) exigem que estas sejam mais pronunciadas que no caso das baías (deeply indented contra well-marked indentation). Urna vez que, nos termos do artigo 10°, nos 2, 4 e 5, nas baías podem ser traçadas linhas de fecho cujo comprimento não deve exceder 24 M e devem compreender urna superfície de água igual ou superior ao semicírculo que tenha por diâmetro a entrada, parece possível concluir que a penetração que o recorte profundo em
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NOSSUM, J. H. 2000, p.64. O termo "reentrância" contido no artigo 10°, n." 1, na versão portuguesa é a tradução do termo indentation, em língua inglesa, échancrure, em língua francesa, e escotadura, em espanhol. O recurso às várias versões oficiais do texto do artigo 10°, n. 1, também não ajudam a esclarecer o significado preciso dos termos requeridos. 0
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terra deve ter deve ser, pelo menos, igual ao raio desse semicírculo. Uma interpretação dos preceitos com base na versão em língua portuguesa das expressões anteriormente referidas acompanha a mesma conclusão. Embora não sendo possível uma quantificação com base apenas nos termos "reentrância bem marcada", respeitante às baías, e "recorte profundo", correspondente às LBR, tendo em conta os restantes números de cada um dos artigos em causa não parece desajustado concluir que um "recorte profundo" será mais pronunciado que "reentrância bem marcada". O Departamento de Estado Norte-Americano, apresenta um valor para a razão de penetração determinado em articulação com as exigências estabelecidas na CNUDM para as baías jurídicas. Partindo do princípio que o factor de penetração das baías é 1:2 (5:10), cfr. Figura 8, para as LBR essa razão de penetração deve ser superior, tendo sido estabelecido, neste caso, um valor de 6:10(139). Este número (0,6) avançado pelo Departamento de Estado Norte-Americano coloca, na nossa opinião de modo injustificado face ao que é possível retirar do texto convencional, a fasquia interpretativa um décimo acima (0,5, para o caso das baías) do que resultaria da interpretação literal dos conceitos anteriormente apresentada. Sendo certo que, de acordo com a interpretação anteriormente referida, a razão de penetração de um recorte deve ser mais pronunciada que numa baía, qualquer que seja o valor apresentado estará sempre sujeito a críticas. Tendo em consideração as diversas interpretações acima apresentadas, em especial os textos convencionais, na ausência de outro suporte interpretativo considera-se que, para que se possa qualificar a penetração de um recorte profundo como deeply indented, basta que a razão de penetração seja superior à exigida para uma baía jurídica, i.e., 1:2 (0,5).
5.4.3. Medição da razão de penetração O modo, ou processo, para medir a razão de penetração não é matéria normalmente abordada pela doutrina na parte respeitante ao traçado das LBR, designadamente na descrição dos requisitos inerentes à qualificação das características da costa como recortes profundos ou reentrâncias. O próprio Departamento de Estado Norte-Americano, que acompanha muito de perto os assuntos relativos ao traçado das LBR, sugere, de modo muito directo e sem justificações, como via a seguir a medição a partir da perpendicular à linha de fecho que atinja a maior penetração(l 4o). Ao invés, é na matéria relativa às baías que aparecem na doutrina os entendimentos relativos ao modo como pode ser efectuada a medição da razão de 139
Limits in the Seas n. 0 106. 1987. Developíng Standard Guidelínes for Evaluating Straight Baselínes, pp. 7 e 8. t40 Ibíd., p. 6.
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penetração. HODGE e ALEXANDER sugerem quatro modos para determinar a medida da penetração, que são os seguintesCl 41 l: (1) Através de uma perpendicular a partir do centro da linha de fecho; (2) Qualquer perpendicular a partir da linha de fecho; (3) A maior recta que pode ser traçada dentro da baía a partir da linha de fecho; (4) A linha equidistante entre as margens da baía. No caso que envolveu a South Harrison Bay, no Alaska, foi sugerido um novo método para a medição da penetração, que consistiu no traçado de um segmento mais curto a partir do ponto de máxima penetração a partir da linha de fecho( 142l. Da aplicação desta variante resultarão, naturalmente, factores de penetração com valores mais elevados que em qualquer dos outros métodos anteriormente apresentados, uma vez que passam a existir dois segmentos para a medição em lugar de um.
5.4.4. Prática internacional 5.4.4.1. Costa Rica Em 14 de Outubro de 1988 o governo da Costa Rica( 143l publicou um decreto que estabeleceu as LBR na costa do Pacífico. Conforme se pode verificar na Figura 9, as reentrâncias a que correspondem aos semicírculos se 1 a se 3 não preenchem os requisitos necessários para as qualificar como baías. De igual modo, não estão verificados os pressupostos para que as referidas características geográficas possam ser qualificadas como recortes profundos ou reentrâncias que permitam a respectiva inclusão em traçados de LBR. A baía correspondente ao SC 4 parece estar muito próximo de cumprir as condições exigidas para a respectiva qualificação como baía jurídica. O traçado da Costa Rica foi, em 1989, objecto de um protesto dos Estados Unidos(1 44l.
5.4.4.2. Irão O lrãd145l é um Estado cuja costa, representada na Figura 10, é relativamente suave. Na região do Golfo de Omã possui um traçado de LBR que a cobre praticamente toda a extensão da costa. Esta característica é de tal modo evidente que nem se justifica o traçado auxiliar dos semicírculos em cada uma das re141
HODGSON, R. D., e ALEXANDER, L. M. 1972. Towards an Objective Analysis of Special Circumstances: Bays, Rivers, Coastal and Oceanic Archipelagos and Atolls. Ocasional Paper n. 0 13. Rhode Island: Rhode Island Law of the Sea Institute, p.S. 142 PRESCOTT, J. R. V., e SCHOFIELD, C. 2005, pp. 119 e 120. 143 A Costa Rica ratificou a CNUDM em 21 de Setembro de 1992. 144 Limits in the Seas n. 0 111. Straight Baselines- Costa Rica, p.7. 145 O Irão não ratificou a CNUDM nem a CGMTZC.
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entrâncias. As LBR foram inicialmente proclamadas em 1973 e reafirmadas em 1993. Este traçado foi objecto de um protesto por parte dos Estados Unidos da AméricaCI 46l e da Alemanha em representação da União Europeia (UE)(l 47l.
5.4.4.3. Colômbia
O governo da Colômbia(l 48l estabeleceu o traçado das LBR para as suas costas em 1984. Observando o traçado, em particular as características a que correspondem os semicírculos SC 1 a SC 9 das Figura 11 e Figura 12, verifica-se que, à semelhança do que sucede com os exemplos anteriores, não parecem estar preenchidos os requisitos que permitem considerar aquelas zonas da costa como apresentando recortes profundos e reentrâncias. Os comentários dos EUA ao traçado colombiano foram moderados( 149l tendo em conta o traçado em si e a posição já assumida relativamente a outros Estados, designadamente, a Portugal. Neste traçado foi referido expressamente a respectiva desconformidade com as disposições pertinentes da CNUDM(l50l.
5.4.4.4. Itália
A ItáliaCI 51 l faz parte, igualmente, dos Estados cujo traçado, representado na Figura 13, foi objecto de protesto por parte dos EUA(1 52l que, para além do Golfo de Taranto, não especifica, ao contrário do que sucedeu com Portugal, quais as linhas que considera inválidas à luz do Direito Internacional.
5.4.4.5. Egipto
O traçado das LBR do Egipto'153l, representado na Figura 14, constitui um dos exemplos mais evidentes de um traçado que, apesar de referido como desconforme com as regras estabelecidas nos artigos 7° e 10° da CNUDM, "conquista" menor área de mar territorial relativamente a um traçado a partir da linha de base normal. A opinião de diversos autores reflecte bem a forma como é inLimits in the Seas n. 114. Iran's Maritime Claims, pp. 37 a 39. Cfr. notas 205 e 206 infra. 148 A Colômbia não ratificou a CNUDM nem a CGMTZC. 0 t49 Limits in the Seas n. 103. 1985. Straight Base/ines- Colombia, p. 8; 150 ROACH, J. A., e SMITH, R. W. 1996, pp. 75 e 83. Limits in the Seas n. 112. Straight Baselines- United States Response to Excessive National Maritime Claims, pp. 14 e seguintes. 151 A Itália ratificou a CNUDM em 13 de Janeiro de 1995. ts2 ROACH, J. A., e SMITH, R. W. 1996, pp. 103 e 104; 153 O Egipto ratificou a CNUDM em 26 de Agosto de 1983. 146
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terpretado este traçado. ROACH e SMITH referem este tratado como excessivo, uma vez que as costas do Egipto, tanto do Mediterrâneo, como do Mar Vermelho, são suaves, não se observando recortes profundos e reentrâncias, nem franjas de ilhas na sua proximidade imediata(1 54l. Estas foram também as razões apontadas pelo Departamento de Estado Norte Americano nos comentários ao traçado(155l. Por outro lado, SCOVAZZI qualifica o traçado das LBR do Egipto simultaneamente como moderado e ilegal. Moderado porque as LBR seguem a direcção geral costa, não deslocando muito para o exterior o limite exterior do mar territorial egípcio. Ilegal porque as LBR são traçadas em partes da costa que não apresentam características norueguesas no que respeita aos recortes profundos e reentrâncias( 156l. Importa referir que a linha de costa do Egipto na proximidade do delta do Nilo sofre grande erosão, recuando a uma razão de cerca de 40 metros por ano(1 57l. O traçado de LBR tende a anular, de modo artificial e meramente formal, os efeitos da acção da natureza mantendo constante a referência para a medida da largura das várias zonas marítimas.
5.4.4.6. Espanha e Madagascar Os traçados de Espanha(lss) continental, Figura 15, e Madagáscar(159 l, Figura 16, estão agrupados num mesmo subcapítulo por partilharem uma característica em comum que consiste no facto de não terem sido objecto de protesto por parte dos EUA. Como se pode verificar nas referidas figuras, parte das objecções apontadas ao traçado de outros Estados está também presente neste de forma clara. No caso do traçado espanhol, apesar de o comprimento das LBR não parecer excessivo, uma vez que o maior dos segmentos não chega às 30M, as linhas de base recta não encerram recortes profundos nem reentrâncias, quaisquer que sejam os critérios ou posições doutrinárias anteriormente apresentadas relativamente aos quais aqueles sejam avaliados. O mesmo aspecto pode ser apontado relativamente ao caso de Madagáscar, com a agravante de existirem quatro troços com mais de 70 M de comprimento, atingindo um deles 123M. Apesar de o silêncio dos EUA poder, de algum modo, ser compreensível relativamente à costa Oeste de Madagáscar, uma vez ROACH, J. A., e SMITH, R. W. 1996, p.SS. Limits in the Seas n. 116. Straight Base/ines -A/bania and Egypt. 156 SCOVAZZI, T. 1997. L'Établissement de Systemes de Lignes de Base Droites de la Mer Territoriale: Les Regles et la Pratique. Annuaire du Droit de la Mer. Paris, pp. 160 a 176; SCOVAZZI, T. 1999, The Establishment of Straight Baselines Systems: The Rules and the Practice. ln VIDAS, D., and OSTRENG, W. (eds.). Order for the Oceans at the Tum of the Century. The Hague: Kluwer Law International, pp. 445 a 456, p. 454. 157 BOCZEK, B. A. 2005. International Law-A Dictionary. Lanham: Scarecrow Press, p. 261. 158 A Espanha ratificou a CNUDM em 15 de Janeiro de 1997. 159 Madagáscar ratificou a CNUDM em 22 de Agosto de 2001. 154 155
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que apenas tem oposição com Moçambiqué 60l, sendo este o Estado confinante em termos de zonas marítimas e que maiores objecções poderia apresentar, a costa Leste é coberta em grande extensão por linhas de base recta em zonas na sua maioria muito pouco recortadas. Independentemente das razões que levaram ao silêncio dos EUA relativamente a estes dois traçados, a prática de protesto sistemático, com as correspondentes consequências jurídico-internacionais, parece sair claramente prejudicada por falta de unanimidade de critério.
5.5. Franja de ilhas ao longo da costa na sua proximidade imediata 5.5.1. Conceito de ilha e capacidade para gerar zonas marítimas
O regime das ilhas, regulado no artigo 121 o da CNUDM. A qualificação das formações insulares como ilhas ou como rochedos é uma matéria que, por princípio, se situa no âmbito dos poderes soberanos do Estado costeiro e que este a concretiza no seu direito internoU 61 l. Este assunto tem uma natureza internacional assinalável, em especial quando a ela estão associados conflitos de interesses com outros Estados que, por vezes, não reconhecem essa qualificação e o manifestam publicamente. A expressão "prestem à habitação humana ou à vida económica" é mais um dos casos em que existem conceitos indeterminados para os quais não existe uma definição internacionalmente aceite e o consenso quanto ao respectivo significado está ainda longe de ser alcançado. A importância que as ilhas podem ter no traçado de LBR, confere a este tema especial importânciaU 62 l. Apesar de não existir uniformidade absoluta na doutrina e na jurisprudência internacionais relativamente à possibilidade de uma formação insular qualificada como rochedo poder ser incluída num sistema de LBR, a tendência parece apontar com consistência no sentido afirmativo. KWIATKOWSKA, SOONS e ELFERINK consideram que o n. 3 do artigo 121 o da CNUDM não tem precedência sobre os artigos relativos ao traçado das linhas de base a partir das quais as zonas marítimas são traçadas. KWIATKOWSKA e SOONS referem que o objectivo principal do preceito anteriormente mencionado é evitar que os rochedos gerem áreas acrescidas de zona económica exclusiva e plataforma continental, não tendo, em princípio, influência na definição das linhas de base. Estes autores adiantam ainda que as regras definidas na CNUDM para o traçado das LBR são as constantes na Secção II da Parte II da Convenção, sendo a qualificação das for0
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O Canal de Moçambique apresenta, na sua maior dimensão, cerca de 425 M. ELFERINK, A. G. 1998. Clarifying Article 121(3) of the Law of the Sea Convention: The Limits Set by the Nature of International Legal Processes. Boundary and Security Bulletin. Summer, pp. 58 a 68. 162 BEAZLEY, P. B. 1986, p. 9; CHURCHILL, R. R., e LOWE, A. V. 1999, pp. 49 e 50; ELFERINK, A. G. 1998, pp. 58 a 68. 161
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mações emersas como ilhas ou rochedos irrelevante para este efeito <163l. Seguindo uma analogia com os baixios, outros autores afastam a aplicabilidade do artigo 121°, n. 3, referindo que os rochedos podem fazer parte de uma franja de ilhas ou fazer parte de um traçado arquipelágico< 164l. NOSSUN considera que o propósito do artigo 121°, n. 3, da CNUDM não tem a ver com a capacidade que os rochedos possam ter para fazer parte de uma franja de ilhas. A referência a "ilhas" efectuada no artigo 7°, n. 0 1, compreende uma designação genérica cuja definição consta no artigo 121°, n. o 1, tendo subjacente a ideia que mesmo os rochedos, para este efeito, não deixam de ser ilhas. Considera, por isso, perfeitamente admissível a inclusão de rochedos num traçado de LBR relacionado com uma franja de ilhas. Para este autor uma coisa é um rochedo isolado gerar uma área de ZEE cuja superfície pode atingir as 125.600 M 2 (430.796 km2), outra substancialmente diferente é um rochedo estar integrado num sistema de LBR de uma franja de ilhas<165l. Verifica-se, assim, uma adesão significativa por parte da doutrina à ideia de que as formações insulares qualificadas como rochedos podem integrar sistemas de LBR. Efectivamente, mesmo os baixios podem, em determinadas circunstâncias, estar integrados em sistemas de LBR. Para esse efeito, o artigo 7°, n. 0 4, dispõe que "As linhas de base recta não serão traçadas em direcção aos baixios que emergem na 0
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baixa-mar, nem a partir deles, a não ser que sobre os mesmos se tenham construído faróis ou instalações análogas que estejam permanentemente acima do nível do mar, ou a não ser que o traçado de tais linhas de base recta até àqueles baixios ou a partir deles tenha sido objecto de reconhecimento internacional geral". Por seu turno, o artigo 13°, n. 0 1, estabelece que "Um baixio a descoberto é uma extensão natural de terra rodeada de água, que, na baixa-mar, fica acima do nível do mar, mas que submerge na preia-mar. Quando um baixio a descoberto se encontre, total ou parcialmente, a uma distância do continente ou de uma ilha que não exceda a largura do mar territorial, a linha de baixa-mar desse baixio pode ser utilizada como linha de base para medir a largura do mar territorial".
De acordo com a primeira das disposições anteriormente citadas, podem ser traçadas LBR de e para qualquer baixio a descoberto no qual exista um farol, independentemente da distância a que este se encontre do continente ou de outra ilha, bastando que estejam cumpridas as outras condições previstas no artigo 7°. A segunda disposição vem complementar a primeira referindo que, mesmo nos casos em que não existam faróis ou instalações análogas, ainda assim podem ser traçadas LBR de e para os referidos baixios se estes se situarem a uma distância 163
KWIATKOWSKA, B., e SOONS, A. H .. 1990. Entitlement to Maritime Areas of Rocks Which Cannot Sustain Human Habitation or Economic Life of Their Own. Netherlands Yearbook of International Law. Vol. 21, p. 165. 164 BEAZLEY, P. B. 1986, p. 9; LAVALLE, R .. 2004. Not Quite a Sure Thing: The Maritime Areas of Rocks and Low-Tide Elevations Under the UN Law of the Sea Convention. The International Journal of Marine and Coastal Law. Vol. 19. 1'' Series, pp. 43 a 69, pp. 49 a 56. 1 65 NOSSUM, J. H .. 2000, pp. 66 e 67. Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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do continente ou de uma ilha que não exceda a largura do mar territorial. Para além do disposto no artigo 121°, n. 0 2, esta ideia encontra igualmente eco nos textos dos artigos 7°, n. 0 4 e 13°, n. 0 1, da CNUDM. Da conjugação destas disposições resulta expressamente a exclusão de um sistema de LBR dos baixios a descoberto que se encontrem total, ou parcialmente, a uma distância da costa superior à largura do mar territorial. Estão excepcionados desta restrição os baixios nos quais exista um farol ou instalação análoga. Por maioria de razão o mesmo se verificará com os rochedos. Os pontos 21 e 22 da Figura 17 constituem um bom exemplo da situação da prática que vem sendo seguida internacionalmente relativamente a este aspecto importante do traçado de LBR. Tendo em conta o anteriormente mencionado, parece não restarem dúvidas quando à aptidão para as formações insulares poderem vir a integrar sistemas de LBR, independentemente da sua qualificação como ilhas ou rochedos, nos termos do artigo 121o da CNUDM.
5.5.2. Traçado de linhas de base recta nas ilhas
Como referido no parágrafo anterior, a determinação das zonas marítimas das ilhas é efectuada do mesmo modo que para as formações terrestres, ex vi artigo 121°, n. 0 2, da CNUDM. Essa faculdade refere-se não só à fixação de limite externo de cada uma dessas zonas, mas também à referência que é comum à maioria delas, as linhas de base. Permitido que este esteja determinado fim, ainda que por remissão, estão naturalmente permitidos os correspondentes meios para atingir esse fim. Esta conclusão não consta no artigo 121°, mas o artigo 50° refere expressamente a possibilidade de o Estado arquipelágico traçar linhas de fecho nas fozes dos rios, nas baías e nos portos. Havendo uma permissão expressa para formações insulares nas quais os espaços marítimos são traçados a partir de LBA que são, por natureza, uma referência que projecta, de modo significativo, para o exterior do respectivo perímetro as zonas marítimas que lhes são referenciadas, por maioria de razão as ilhas que não possuem traçados arquipelágicos poderão, do mesmo modo, traçar LBR e linhas de fecho desde que estejam reunidos os pressupostos necessários. Embora de modo tácito, a doutrina tem aceitado esta faculdade conferida pela CNUDM relativamente às ilhas. A prática dos Estados vem colmatar este aparente silêncio doutrinal oferecendo inúmeros exemplos de LBR traçadas com base nos artigos 7° a 14° da CNUDM. Importa sublinhar que esta prática é global, compreendendo todas as regiões do mundoC1 66>.
166
Cfr. entre outros, Limits in the Seas n. 0 3. Straight Base/ines - Ireland; Limits in the Seas n. 0 5. Straight Base/ines - Dominican Republic; Limits in the Seas n. 0 23. Straight Baselines- United Kingdom.; Limits in the Seas n. 0 34. Straight Baselines- Iceland.; Limits in the Seas n. 76. Straight Baselines- Cuba.; RODGERS, J. H .. 1998-1999. The Continental Shelf 0
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5.5.3. Franja de ilhas
O termo franja de ilhas surgiu no Direito Internacional como consequência da decisão do Caso das Pescas, em virtude da natureza extremamente recortada e bordejada de parte significativa da costa da Noruega(167). Paralelamente à existência de recortes profundos e reentrâncias que, igualmente, caracterizam a costa norueguesa, a existência de mais de uma centena de milhar de ilhas constituiu para o TIJ uma justificação válida para que as águas por elas banhadas pudessem vir a ser encerradas por LBR. Estes factos são comprovados pelas seguintes passagens da decisão do TIJ "O número de formações insulares, pequenas e grandes, é estimado pelo governo norueguês em cento e vinte mil. [D]a extremidade Sul da área em disputa ao Cabo Norte, os "skjaergaard" situam-se ao longo de toda a costa continental. [A] costa continental não constitui, tal como sucede praticamente em todos os outros países, uma linha divisória clara entre terra e mar. O que releva, o que realmente constitui a linha de costa norueguesa, é o limite exterior do "skjaergaard"( 16B)(169). Usando estas passagens como auxiliar interpretativo pode retirar-se que a franja de ilhas deve cobrir de modo significativo o território principal [mainland], formando com este uma unidade. Esta conclusão tem sido considerada insuficiente para a aplicação do artigo 7°, n. 0 1, da CNUDM, uma vez, que seguindo à letra o texto da norma e os que lhe deram origem, muito poucos seriam os Estados que estariam em condições de a aplicar. Raros são os que têm as respectivas costas com características semelhantes às da Noruega. Esta é, porém, a base da argumentação de quem sustenta o carácter excepcional do art. 0 7°(170). O Office for Ocean Affairs and Law of the Sea, sublinhando o facto de não existir definição ou teste internacionalmente aceites que possa guiar na aplicação do conceito "franja de ilhas", refere de modo algo lacónico que é necessária a presença de mais de uma ilha na franja, mas que é difícil estabelecer em concreto um número. Adianta ainda que, uma vez que a franja tem que se situar ao longo da costa, o preceito não será aplicável a rochedos que se desenvolvam de modo of Ireland: The Law and Politics of Delimitation. UCLA Joumal of International Law and Foreign Affairs. Vol. 3, pp. 129 a 181. 167 OFFICE FOR OCEAN AFFAIRS AND LAW OF THE SEA. 1989, p.21. 168 Caso da Pescas, p. 127. 169 Versão original: "The number of insular formations, large and small, which make up the "skjaergaard", is estimated by the Norwegian Government to be one hundred and twenty thousand. [F]rom the southern extremity of the disputed area to the North Cape, the "skjaergaard" lies along the whole of the coast of the mainland. [T]he coast of the mainland does not constitute, as it does in practically ali other countries, a clear dividing line between land and sea. What matters, what really constitutes the Norwegian coast line, is the outer line of the "skjaergaard" 170
(tradução livre do autor) . Entre outros, O'CONNELL, D. P.. 1984. The International Law of the Sea. Oxford: Clarendon Press. Vol. 1, pp. 211 e 212.
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perpendicular a esta. Existem duas situações em que tal pode acontecer, a primeira é em costas do género da Noruega, outra é quando existam franjas de ilhas próximas da costa que a cubram numa percentagem significativa(171 l. Baseado na análise do Caso das Pescas, o Departamento de Estado Norte-Americano considera que um conjunto de ilhas pode ser qualificado como uma franja de ilhas quando estas não estejam afastadas entre si mais de 24 M e cubram 50% da costa(172l correspondente ao local onde as LBR se encontram traçadas. Para BEAZLEY uma franja de ilhas deve compreender um conjunto de ilhas cujo número dependerá da respectiva dimensão mas que, no todo, deverá ser significativamente maior que as águas por elas cobertas(1 73l. NOSSUM conclui, na análise que efectua sobre esta matéria, que embora se trate de um assunto vago no âmbito do Direito Internacional é evidente que tem de existir uma relação espacial entre as ilhas para que possam ser qualificadas como constituindo uma franja de ilhas, sendo possível ao Estado costeiro traçar LBR desde que não contrarie o espírito do artigo 7°.
5.5.4. Proximidade imediata
Para que possam ser traçadas LBR de e para a franja de ilhas, o artigo 7° da CNUDM refere também que esta deve estar na proximidade imediata da costa. O adjectivo "imediata" impõe uma definição, porventura restritiva, da distância a que as ilhas se devem encontrar da costa. Tal como nos outros conceitos, consenso parece ser coisa que também não existe no que respeita a esta condição. O Office for Ocean Affairs and Law of the Sea reconhece que a expressão "na proximidade imediata" é um conceito com um significado claro mas para o qual não existe um teste perfeito, exemplificando que uma franja de ilhas a 3 M da costa estará na sua proximidade imediata, ao passo que se se encontrar a 100M já não o estará. Adianta ainda que é normalmente aceite que, para uma largura do mar territorial de 12 M, uma distância de 24 M satisfará a condição, refutando o valor de 48 M proposto por parte da doutrina( 174l. Apresentando como exemplo parte da costa do Chile e do Alaska, o Departamento de Estado Norte-Americano aceita, propondo neste aspecto uma interpretação mais extensiva que noutras circunstâncias, que uma franja de ilhas se possa situar até 48 M(175l . REISMAN e WESTERMAN sugerem que "proximidade 171
OFFICE FOR OCEANS AFFAIRS AND LAW OF THE SEA. 1989, p . 21. Limits in the Seas n. 0 106. Developing Standard Guidelines for Evaluating Straight Baselines, p.16. 173 BEAZLEY, P. B.. 1986, pp. 13 e 14. 174 OFFICE FOR OCEANS AFFAIRS AND LAW OF THE SEA. 1989, p. 22. 175 Limits in the Seas n.o 106. Developing Standard Guidelines for Evaluating Straight Baselines, p. 172
21.
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imediata da costa" deve ser interpretado no sentido de considerar as ilhas que fazem parte da franja não devem estar afastadas mais de 12M da costa( 176l, enquanto que ROACH fixa esse limite em 24 M(1 77l. Como se pode verificar, os valores defendidos sobre esta matéria situam-se entre as 12 e as 48 M. Embora não exista critério sólido que permita uma tomada de posição de modo sustentado sobre esta matéria, parece algo exagerado que se possa sustentar que a franja de ilhas se possa situar a 48 M da costa.
5.5.5. Prática Internacional 5.5.5.1. Vietname
À semelhança do que sucede com outros traçados daquela região do globo, vulgarmente designada na terminologia anglo-saxónica por South China Sea, o traçado do Vietname(1 78l, representado na Figura 18, tem sido objecto de muitas críticas a nível internacional< 179l. O traçado tem uma extensão aproximada de cerca de 825 M, abrangendo toda a costa Sul até ao Cambodja. Para além do comprimento das LBR, a maior das quais tem 162M, a distância a que estas se situam da costa (até cerca de 75 M) devido à utilização de formações insulares qualificadas como rochedos é, igualmente, digna de nota. Pode referir-se que o traçado do Vietname se divide em duas partes, uma dos pontos 1 a 6, que se afasta significativamente da costa, não sendo possível sustentar que se encontra na proximidade imediata desta. A segunda parte, dos pontos 6 a 11, para além do facto de o comprimento de alguns dos segmentos não se enquadrar nos valores defendidos pelos vários autores, também não encerram recortes profundos nem reentrâncias. O traçado das LBR do Vietname recebeu vários protestos<180 l.
176
REISMAN, M. W., e WESTERMAN, G. S.. 1982, p. 88. ROACH, J. A. e SMITH, R. W.. 1996, p. 64. 178 Ratificou a CNUDM em 25 de Julho de 1994. 179 BATEMAN, S. e SCHOFIELD, C .. 2008. State Practice Regarding Straight Baselines in East Asia - Legal, Technical and political Issuesin a Changing Environment. Difficulties in Implernenting the Provisions ofUNCLOS. Monaco: International Hydrographic Bureau; NOSSUM, J. H .. 2000; ROACH, J. A., e SMITH, R. W.. 1996.; Limits in the Seas n." 99. Straight Baselines - Vietnam, entre outros. 180 Para dos mencionados no documento Limits in the Seas, n." 112. United States Response to Excessive National Claims, também a China (Law of the Sea Bulletin n." 1), a França (Law of the Sea Bulletin n. 0 3), a Tailândia (Law of the Sea Bulletin n." 7) e Singapura (Law of the Sea Bulletin n."9) apresentaram protestos.
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5.5.5.2. Coreia do Sul À semelhança de parte do traçado das LBR do Vietname, o traçado das LBR da Coreia do Sul0 81l, representado na Figura 19, apoia-se, na sua maioria, em formações insulares dificilmente sustentáveis como ilhas, no sentido estabelecido no artigo 121°, n. 0 3, da CNUDM. Este facto, conjugado com a distância a que as referidas formações insulares se encontram da costa, originaram protesto um protesto por parte dos EUA0 82l e comentários desfavoráveis por parte da doutrina internacional(183l.
5.5.5.3. Tailândia
O traçado de LBR da Tailândia(IB4)(IBSJ assenta igualmente, como pode ser verificado na Figura 20, em pequenas formações insulares, algumas situadas a várias dezenas de milhas da costa, originando um traçado que não encerra recortes profundos nem reentrâncias, nem se situa na proximidade imediata da costa. À semelhança de outros casos anteriormente referidos, este traçado foi objecto de protesto diplomático por parte dos EUA(l86l .
5.5.5.4. Myanmar
O traçado de LBR de Myanmar(187l (antiga Birmânia), representado na Figura 21, tem a particularidade de incluir a maior LBR existente, com 222,3 M situada no Golfo de Martaban0 88l. A parte Sul do traçado das LBR está localizada numa zona com formações insulares que cobrem parte significativa da costa. No entanto, esse mesmo traçado é efectuado a partir das formações insulares mais afastadas da parte continental, sendo algumas delas de dimensão muito reduzida. O mesmo se verifica na parte Norte do traçado, o que origina que se situe a uma distância assinalável da costa. Contudo, não encerra recortes profundos nem reentrâncias. O traçado de Myanmar foi protestado pelos EUA0 89l . 181
Ratificou a CNUDM em 29 de Janeiro de 1996. ROACH, J. A. e SMITH, R. W.. 2000, pp. 47 a 80, pp. 61 e 62. 183 Entre outros, WESTERMAN, G. S.. 1987, p.186; BATEMAN, S. e SCHOFIELD, C .. 2008; Limits in the Seas n. 0 82. Straight Baselines-Republic of Korea. 184 Não ratificou a CNUDM. Ratificou a CGMTZC em 2 de Julho de 1968. 185 Limits in the Seas n. 0 31. Straight Base/ines-Thailand. 186 ROACH, J. A. e SMITH, R. W.. 2000, pp. 47 e 80, p. 48. 187 Ratificou a CNUDM em 25 de Maio de 1996. 188 Limits in the Seas n .0 14. Straight Baselines-Burma .. 189 ROACH e SMITH. 1996, pp 123 e 124; ROACH, J. A. e SMITH, R. W. 2000, pp. 47 e 80, p. 48. 182
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5.6. Outros conceitos que influenciam o traçado
5.6.1. Direcção geral da costa Sendo outra designação que resulta directamente do Caso das Pescas, à semelhança do que se verifica com os restantes conceitos, também relativamente a "direcção geral da costa" não existem critérios ou testes universalmente aceites que esclareçam quais as regras concretas a seguir para o traçado de LBR. O Office for Ocean Affairs and Law of the Sea afasta qualquer ligação deste conceito com o analisado em 5.5 supra, que tem a ver com a distância a que as ilhas envolvidas no traçado estão da costa, relacionando-o apenas com as direcções da costa e do traçado em si. Considerando o valor médio de 15° do traçado da Noruega, adianta que um valor de 20° é, por regra, tido como aceitável(1 90l. Com base no mesmo racional, o Departamento de Estado Norte-Americano propõe idêntico valor, 20°<191 l. No entendimento de O'CONNELL, "direcção geral da costa" não é uma descoberta científica mas um assunto a ser avaliado que implica, necessariamente, uma margem de discricionariedade por parte do Estado costeiro. Cada LBR, à excepção dos casos em que é traçada numa baía, é parte de um sistema que requer a avaliação da costa do Estado como um todo. Adianta ainda que o conceito de escala da representação cartográfica é importante na avaliação deste parâmetro, podendo um desvio tornar-se considerável sem distorcer a direcção geral da costa como resultado da escala da carta utilizada e do troço da costa em apreço <192l. PRESCOTT desvaloriza este critério referindo que, caso uma costa apresente recortes profundos ou reentrâncias ou que tenha uma franja de ilhas na sua proximidade imediata, não haverá grandes hipóteses de traçar LBR que se afastem da direcção geral costa. Este autor considera tratar-se de um critério que não merece especial atenção na avaliação de traçados de LBR<193l. O TALOS refere que tem existido grande latitude na interpretação do artigo 7°, n. 3, da CNUDM, ilustrando esse facto com cinco exemplos de possíveis traçados que podem ser efectuados num troço de costa fictício como o representado na Figura 22. Existe um aspecto relevante que não é sublinhado por nenhum dos autores, que tem a ver com o tipo de projecção utilizada nas cartas nas quais é avaliada a direcção geral da costa. Todas as projecções cartográficas têm, necessariamente, associada uma distorção que resulta do facto de se estar a representar numa superfície bidimensional, a carta, uma realidade que é tridimensional, a superfície 0
190
OFFICE FOR OCEAN AFFAIRS AND LAW OF THE SEA. 1989, pp. 25 e 26. Limits in the Seas n. 0 106. Developing Standard Guidelines for Evaluating Straight Baselines, p. 18. 192 O'CONNELL, D. P.. 1984, p. 215. 193 "[P]erhaps the best advice is to pay little attention to this requirement". PRESCOTT, J. R. V. e SCHOFIELD, C .. 2005, p. 157. 191
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terrestre. A distorção dependerá do tipo de projecção utilizada, sendo, por regra, tanto mais significativa quanto mais pequena for a escala da carta.
5.6.2. Vínculo ao domínio terrestre As áreas de mar fechadas pelas LBR em conformidade com o artigo 7°, n. 3, da CNUDM, devem estar suficientemente vinculadas ao domínio terrestre para ficarem submetidas ao regime das águas interiores. Este critério, igualmente impreciso, é de difícil concretização e não tem sido especialmente desenvolvido pela doutrina. Do julgamento do Caso das Pescas, CHURCHILL e LOWE retiram o valor 1:3,5 que corresponde à razão entre as áreas das ilhas e de mar encerradas pelas LBR(1 9•l. Da análise da prática internacional verifica-se que esta é uma das condições menos respeitadas, sendo difícil de encontrar um traçado que não contenha pelo menos um local onde esta condição não se verifica. O próprio traçado das LBR da Noruega, representado na Figura 7, em es 0
5.6.3. Interesses económicos próprios da região É indiscutível a importância que o traçado das LBR pode ter na economia de uma região( 195l. O factor económico teve um papel importante no contexto do Caso das Pescas, em três aspectos. Primeiro, apontando o facto de os habitantes da Noruega terem na pesca um dos modos de vida principais. Depois, sublinhando a importância de as actividades económicas relevantes estarem consolidadas por um uso prolongado, associando mutuamente os factores económicos aos históricos. Finalmente, fazendo referência aos direitos tradicionais de pesca, que se podem estender a outros direitos de natureza económica adquiridos ao longo do tempo. Apesar de só por si não justificarem o traçado de LBR(1 96l e não terem sido incorporados na justificação jurídica da decisão, o reconhecimento da relevância dos interesses económicos por parte do TIJ constituiu um factor a ter em conta. Em todos os outros traçados posteriores tem-se verificado constantemente uma motivação económica, sendo igualmente claro que, nas reivindicações efectua19 1 '
0CHURCHILL, R. R. e LOWE, A. V.. 1999, p. 39. Relativamente à Tailândia cfr. DZUREK, D. J.. 2004. Maritime Agreements and Oil Exploration in the Gulf of Thailand. ln GANSTER, P. e LOREY, D. E. (eds.). Borders and Barder Politics in a Globalizing World. Lanham: Rowan & Littlefields Publisher, pp. 301 a 316, e ao Ártico SCOVAZZl, T.. 2001. The Baseline of the Territorial Sea: The Practice of Artic States. ln ELFERlNK, A. G. e ROTHWELL, D. R. (eds.). The Law of the Sea and Polar Maritime Delimitation and Jurisdiction. Dordrecht: Martinus Nijhoff Publishers, pp. 69 a 84. 196 OFFlCE FOR OCEAN AFFAIRS AND LAW OF THE SEA. 1989, p. 26.
195
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das, o elemento económico muito pouco terá a ver apenas com os interesses das populações locais0 97>. O uso prolongado é outro aspecto que nos traçados mais recentes também não tem sido demonstrado com consistência( 198>.
5.6.4. Comprimento das linhas de base recta
Apesar de os textos convencionais nada disporem quanto ao comprimento máximo que as LBR podem ter, a doutrina é unânime em considerar que as LBR devem ter um valor máximo. Relativamente a este aspecto Loureiro Bastos sublinha que a utilização das linhas de base rectas, apesar da indicação geral do n° 3 do artigo 7, e da prevenção do Tribunal de Haia de que a sua utilização deveria ser levada a cabo de forma moderada e razoável, se presta a muitos abusos. O mesmo autor adianta ainda que a principal razão reside no facto de não ter sido previsto um limite ao comprimento máximo de cada segmento individual das linhas de base rectas, nem da distância máxima a que estas podem estar da costa(199>. Referindo que se trata de uma das propostas mais controversas(200l, o Departamento de Estado Norte-Americano defende que nenhuma LBR deve ter um comprimento superior a 48 M, sendo este valor um critério empírico resultante do Caso das Pescas(201 >. Com base no facto de algumas LBR norueguesas excederem as 45 M, BEAZLEY considera ser este o melhor valor a ter em consideraçãd202l. ROACH opta por 24M defendendo que este é o valor resultante da interpretação do artigos 7°, n. 0 S 1 e 3, e 10°, n. 0 S 4 e 5, todos da CNUDM( 203 >. Com acentuada inspiração na decisão do TIJ, PRESCOTT menciona o facto de existirem LBR com um comprimento de 43,6 M para concluir o que parece óbvio, ou seja, que uma distância máxima aceitável não será inferior àquele valor(204 >. Apesar de reconhecer não existir um comprimento internacionalmente aceite, em 1994 a Alemanha em representação da União Europeia protestou ostra-
197
CHURCHILL, R. R. e LOWE, A. V.. 1999, p . 217.
198
Ibid.
199
BASTOS, F. Loureiro. 2005, p. 277. Limits in the Seas n .0 106. Developing Standard Guidelines for Evaluating Straight Baselines, p.14. 201 Sobre este assnnto importa ver também o entendimento de KWON, P. H. e PAK, H. G .. 2000. The Law of the Sea and the Northeast Asia - A Challenge for Cooperation . Dordrecht: Kluwer Law International, pp. 16 a 30. 202 BEAZLEY, P. B.. 1986, p. 14. 203 ROACH, J. A. e SMITH, R. W.. 1996, pp. 64 e 65. 204 PRESCOTT, J. R. V. e SCHOFIELD, C .. 2005, p . 146. 200
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çados da Tailândia<205 l< 206 l, Figura 20, e do Irão< 207l< 208 l, Figura 10, com base, entre outras razões, também no comprimento excessivo das LBR. KIM qualifica os critérios contidos no artigo 7° da CNUDM em duas categorias, os primários e os secundários. Os primários são os que constam directamente no articulado de cada um dos números e que foram objecto de análise mais detalhada no presente texto. É sobre estes critérios que, em primeira análise, incidirá a aferição sobre a validade do traçado. Os secundários são critérios não directamente relacionados com o texto do artigo mas que têm, naturalmente a ver com a respectiva aplicação. Segundo este autor, são critérios secundários o comprimento das LBR e o desvio que estas podem apresentar com a direcção geral da costa< 209 l. A diferença anteriormente apresentada< 210l relativamente à razão de penetração relativa a "reentrâncias bem marcadas" e "recortes profundos" suscita uma outra questão, que poderá ajudar a esclarecer a diferença entre as regras para traçar linhas de fecho nas baías e LBR onde existam recortes profundos. Do anteriormente referido tira-se com facilidade que um "recorte profundo" será sempre uma baía jurídica desde que a distância entre os pontos naturais de entrada seja inferior a 24M. Nestes casos, sendo o "recorte profundo" mais pronunciado que a "reentrância bem marcada", o teste do semicírculo estará, em princípio, cumprido. Sendo possível aplicar a todos os "recortes profundos" as regras para a definição das baías jurídicas, a primeira parte do n. 0 1, do artigo T da CNUDM perderia o efeito útil. O efeito útil do referido preceito é conseguido por recurso aos elementos que podem distinguir as "reentrâncias bem marcadas" dos "recortes profundos", que evitam que a segunda característica seja reduzida à primeira. Esses elementos de distinção são o limite de 24M para as linhas de fecho e o cumprimento do teste do semicírculo. Sendo a razão de penetração superior a 0,5 para os "recortes profundos", só em circunstâncias muito especiais o teste do semicírculo não esta"The European Union considers that, even if the United Natio11s Conve11tion 011 the Law of the Sea does not seta maximum length for baseline segments, the segme11ts determined by Thaila11d are excessively long. They are in fact 81 miles long betwee11 points 1 a11d 2, 98 miles lo11g betwee11 poi11ts 2 and 3 and 60 miles betwee11 points 3 and 4." 206 OFFICE FOR OCEAN AFFAIRS AND THE LAW OF THE SEA. 1995. Law of the Sea Bulleti1111 .0 28. New York: United Nations, p. 31. 207 OFFICE FOR OCEAN AFFAIRS AND THE LAW OF THE SEA. 1996. Law of the Sea Bulleti1111.0 31. New York: United Nations, p. 37. 208 Como resposta o Irão afirmou "[a]s the demarche by the Germa11 Embassy itself states, the Co11ventio11 011 the Law of the Sea does not stipulate a11y maximum le11gth for baseli11e segments. Co11seque11tly, it is the view of the Islamic Republic of Iran that there are no legal grou11ds for regardi11g those baseli11es as excessively long". 209 KIM, S. P.. 2004. Maritime Delimitatio11 and Interim Arrangements in North East Asia. Dordrecht: Martinus Nijhoff Publishers, p. 194. 210 Cfr. 5.4.2. supra. 205
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rá cumprido. Dando como aceites os parâmetros de distinção entre "reentrâncias bem marcadas" e "recortes profundos", parece poder aceitar-se que as LBR que encerrem os recortes profundos possam ter mais de 24M. Não existem, no entanto, elementos que permitam concluir o valor máximo que essa linha poderá ter. Uma vez mais, à semelhança do que acontece com outros critérios, é difícil ponderar sobre qual será o comprimento máximo admissível que uma LBR poderá ter. Seguindo a opinião de parte da doutrina citada, parece difícil sustentar um entendimento que fixe esse comprimento máximo abaixo do valor das LBR de maior comprimento apreciadas pelo TIJ no Caso das Pescas. A este argumento acresce ainda outro facto que se considera importante. Sendo a costa norueguesa tão recortada, na localidade onde as LBR foram traçadas havia a possibilidade de inflectir e seguir um traçado com comprimentos mais curtos e menor superfície de mar encerrada. Tendo sido aceites pelo TIJ, no caso norueguês, comprimentos maiores quando seriam possíveis outros mais curtos, parece muito difícil argumentar que, de futuro e noutras circunstâncias, pelo menos esse comprimento máximo não possa ser repetido e considerado conforme com o Direito Internacional.
6. Linhas de base arquipelágicas 6.1. Origens
O conceito jurídico de águas arquipelágicas teve a sua origem nas disposições relativas às ilhas Filipinas contidas no tratado de paz de 1898 que pôs fim à guerra entre a Espanha e os EUA< 211 >. A ideia de associar os recifes de coral e bancos às águas de soberania dos Estados insulares manifestou-se, igualmente, noutras situações no final do século XIX na Florida, Cuba, Bahamas e Bermuda, embora à designação de arquipélago tivesse associado um critério de unidade política e não territorial<212>. Desde 1958 que muitos Estados arquipelágicos< 213 > recentemente independentes, com base em interesses económicos (pesca e controlo de tráfego entre ilhas), de segurança, de prevenção do contrabando e imigração ilegal, e controlo de poluição, deram origem a um grupo de pressão que veio a ter forte influência durante a III Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (III Conferência) . O resultado final foi o reconhecimento e estatuição de um regime com consagração convencional (Parte IV da CNUDM) que pôs fim à resistência das 211
MUNOZ. 2005. Las Aguas del Archipiélago Canario en el Derecho Internacional del Mar Vigente. Real Instituto Elcano de Estu.dios Internacionales y Estratégicos, p.2. Consultado em http: I I www.realinstitutoelcano.orgl documentos 1203 ILacleta_PDF.pdf 212 O'CONNELL, D. P.. 1984. Vol. 1, p. 238. 213 A versão da CNUDM em língua portuguesa refere-se a Estado arquipélagos. No presente texto é adoptada a designação sugerida por Marques Guedes. GUEDES, A. M. 1998, p . 107, nota 284.
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principais potências marítimas que sempre tinham temido um regime do qual pudesse resultar a conversão de áreas de alto-mar em águas interiores. Os receios incidiam sobre a consequente perda da inerente liberdade de navegação para as marinhas mercante e de guerra, em especial nos arquipélagos das Bahamas, Fiji, Indonesia e Filipinas, de importância estratégica crucial<214l. No decurso da III Conferência um grupo de Estados, entre os quais Portugal, mas que incluía também a Espanha, a Índia, o Canadá e a Grécia, defenderam a aplicação do regime das águas arquipelágicas a grupos de ilhas (arquipélagos) que faziam parte integrante de Estados continentais. Após muitos debates e a oposição radical das grandes potências marítimas, o resultado final foi a exclusão da aplicação do regime pretendido àquele tipo de arquipélagos. No entender de parte da doutrina, esta restrição é desnecessária e injustificada, parecendo ter sido fundada no receio por parte dos Estados que impediram a adopção deste regime, de uma proliferação de declarações nesse sentido por parte dos Estados continentais com arquipélagos< 215l . Como adiante se descreverá<216l, não foi o impedimento da extensão desse regime que evitou a adopção do traçado de LBA por parte de vários Estados, alguns mesmo antes da III Conferência.
6.2. Definição de Estado arquipelágico e linhas de base arquipelágicas
Para efeitos da aplicação do regime estabelecido na Parte IV da CNUDM, um Estado arquipelágico é um Estado constituído totalmente por um ou vários arquipélagos, podendo incluir outras ilhas para além das que fazem parte dos arquipélagos. Esta definição, contida no artigo 46°, alínea a), da CNUDM é complementada pela definição de arquipélago, contida na alínea b) do mesmo artigo. Arquipélago significa, assim, um grupo de ilhas, incluindo parte de ilhas, as águas circunjacentes e outros elementos naturais, que estejam tão estreitamente relacionados entre si que essas ilhas, águas e outros elementos naturais formem intrinsecamente uma unidade geográfica, económica e política ou que historicamente tenham sido considerados como tal. A qualificação, nos termos previstos na alínea a) do artigo 46° da CNUDM, de um Estado como arquipelágico é condição necessária, mas não suficiente para que o referido Estado possa traçar linhas de LBA. É necessário que esse traçado cumpra, de facto, um conjunto de regras e testes, estabelecidos nos vários números do artigo 47°. O primeiro desses textos impõe a existência de uma razão entre as superfícies marítima e terrestre, incluindo os atóis, que se situe entre 1 para 1 e 9 para 1. Uma razão menor que 1 para 1 impede que ilhas de grandes dimensões 214
CHURCHILL, R. R. e LOWE, A. V.. 1999, p. 119; O'CONNELL, D. P. 1984, p. 237. CHURCHILL, R. R. e LOWE, A. V.. 1999, p.120; O'CONNELL, D. P. 1984, p. 236. 216 Cfr. parágrafo 6.3. 215
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como o Reino Unido, Nova Zelândia, Cuba, Madagascar tracem um perímetro de LBA à sua volta. Uma razão maior que 9 para 1 impede a adopção deste tipo de traçado por Estados constituídos por várias ilhas dispersas e de pequena dimensão, tais como Kiribati e Tuvalu. As referidas regras impõem ainda que as ilhas principais tenham que ficar incluídas no referido traçado. O comprimento máximo das linhas de base não deve exceder as 100 M, sendo admissível que até 3% do número total de LBA possa exceder esse comprimento, até um máximo de 125M. À semelhança do que sucede em relação à costa com as LBR traçadas em conformidade com o artigo 7°, também o traçado de LBAnão deve afastar-se consideravelmente da configuração geral do arquipélago. As linhas de base também não deverão ser traçadas em direcção a baixios a descoberto, nem a partir deles, a não ser que sobre os mesmos tenham sido construídos faróis ou instalações análogas, ou quando o baixio a descoberto esteja total ou parcialmente situado a uma distância da ilha que não exceda a largura do mar territorial. As LBA não podem ser traçadas de modo a separar do alto mar ou de uma ZEE o mar territorial de outro Estado. O Estado arquipelágico deve indicar claramente o traçado das LBA em cartas de escala adequada ou, alternativamente, publicar uma lista de coordenadas geográficas dos pontos de e para onde as linhas são traçadas. As disposições convencionais dão flexibilidade suficiente para o Estado arquipelágico traçar as LBA num único sistema, ou em vários, desde que, conforme mencionado no artigo 46°, esse Estado seja constituído por vários arquipélagos. As águas que são encerradas pelas LBR designam-se, tal como referido no artigo 49°, n. 0 1, da CNUDM, por águas arquipelágicas e estão sujeitas à soberania do Estado arquipelágico, independentemente da sua profundidade ou distância à costaC217). O artigo 50° da CNUDM vem ainda facultar a possibilidade de serem traçadas linhas de fecho em conformidade com os artigos 9°, 10° e 11°. No que respeita à navegação internacional e aos direitos de passagem, o regime das águas arquipelágicas compreende dois tipos de direitos no que respeita aos direitos de passagem da navegação, definidos pelos artigos 52° e 53°, da CNUDM. São eles os direitos de passagem inofensiva, tal como previsto na secção 3 da parte II da CNUDM, e o direito de passagem pelas rotas marítimas arquipelágicas. O direito de passagem inofensiva nas águas arquipelágicas pode ser temporariamente suspenso em determinadas áreas, se tal suspensão for indispensável para a protecção da segurança do Estado costeiroC 218 ). A designação de rotas marítimas arquipelágicas, que atravessam as águas arquipelágicas e o mar territorial adjacente, é uma faculdade concedida pela CNUDM ao Estado arquipelágico, que o deve efectuar em articulação com a or-
217
SYMMONS, C. R .. 1979. The Maritinze Zones of Islands in Intemational Law. Dordrecht: Brill, pp. 68 a 80. 218 CNUDM, artigo 52°, n. 2. 0
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ganização internacional competente(219l, sob pena de, caso não o faça, a navegação internacional continuar a utilizar as rotas existentes(220l. Os aspectos práticos desse regime são idênticos à passagem em trânsito nos estreitos(221 l, por permitir direitos de navegação e sobrevoo. Um aspecto de grande importância para a análise dos traçados de LBR ou LBA tem a ver com o regime jurídico que é aplicável a esse traçado em função da situação político-geográfica correspondente a cada arquipélago. No Caso Qatar/ Bahrain o TIJ defendeu a necessidade de o estatuto de águas arquipelágicas ser especificamente invocado pelo Estado costeiro para que aquele regime jurídico lhe seja aplicável (222l. Isto significa que, perante um traçado de linhas de base que una diversas ilhas, mesmo que o Estado em causa cumpra todos os critérios anteriormente indicados há que averiguar se o Estado em causa qualificou expressamente esse traçado como arquipelágico. Se não o fizer, refere o TIL as regras aplicáveis são as constantes no artigo 7° a 14° da CNUDM. Esta situação é de particular importância para a análise de alguns traçados de LBK como é o caso do português relativamente ao Arquipélago dos Açores( 223l.
6.3. Prática internacional 6.3.1. Cabo Verde À data da proclamação da independência de Cabo Verdé 224l, em 5 de Julho de 1975, o sistema de LFBR em Portugal estava definido pelo Decreto-Lei n. 0 • 0 47771/67. O arquipélago de Cabo Verde não constava nos locais onde estavam definidas as LFBR para Portugal; pelo que a referência a partir da qual era medida a largura do mar territorial era a linha de baixa-mar, conforme estabelecido na Base I; n. 0 1, da Lei n. 0 2.130/66. Após a independência, em 31 de Dezembro de 1977, Cabo Verde definiu 219
A International Maritime Organization (IMO) é a organização internacional competente para regular a matéria em apreço. No entanto, para os efeitos de regulação equivalente no que respeita ao tráfego pode ser requerida a intervenção da International Civil Aviation Organization (ICAO) (JOHNSON, D. H. N .. 1959. The Preparation of the 1958 Ceneva Conference on the Law of the Sea. The International and Comparative Law Quarterly. Vol. 8. 1'' Series, pp. 122 a 145). 22 °CNUDM, artigo 53°, n. 12. 221 CHURCHILL, R. R. e LOWE, A. V. 1999, p. 127. 222 Caso Qatar/Bahrain: "[t]he method of straight baselines is applicable only if the State has declared itself to be an archipelagic State under Part IV of the 1982 Convention on the Law of the Sea, which is not true of Bahrain in this case". Racional nos parágrafos 180 a 183, conclusão transcrita, no parágrafo 214. 223 Cfr. parágrafo 11 infra. 224 Ratificou a CNUDM em 18 de Agosto de 1987. 0
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através do Decreto-Lei n. 0 126/77, de 31 de Dezembro(225l, as linhas de base a partir das quais é medida a largura do mar territorial. As referidas linhas de base, qualificadas pelo diploma legal como LBA(226l, constam numa lista de coordenadas(227l. Este traçado inicial, representado na Figura 23, que compreendia as LBA iniciais 1 e 2 (representadas por LBAil e LBAi 2) e encerrava uma superfície de água maior que a actual, foi objecto de um protesto por parte dos Estados Unidas da América( 228l . Este protesto referia que dois segmentos das LBA excediam o comprimento máximo admissível de 125 M e que a razão superfície marítima : superfície terrestré229l do arquipélago era 12,54:1, o que ultrapassa, igualmente, o máximo permitido na CNUDM. A Lei n. 0 60/IV /92, de 21 de Dezembro(230l, veio definir novas LBA de modo a tornar o traçado conforme com o texto da CNUDM, compreendendo apenas a área encerrada pelo traçado representado a cheio na figura anteriormente mencionada. A nova superfície marítima encerrada tem 36.176 km2, o que reduz a razão anteriormente indicada para valores abaixo de 9(231l, adequando-se o resultado calculado a partir de qualquer delas com o disposto na CNUDM( 232l. No que respeita ao comprimento das LBA, as duas linhas actuais (LBA. 1 e LBA, 2) têm um comprimento geodésicd 233l de cerca de 100 e 83 M, respectivamente, o que se conforma com os valores máximos permitidos pela Convenção. Cabo Verde merece destaque no presente elenco por ser um dos poucos Estados que recuou na reivindicação inicial respeitante às zonas marítimas e traçado de LBA( 234l, uma vez que alterou o traçado inicial das suas LBA de modo a conformá-lo com o texto da CNUDM. Mas o caso de Cabo Verde é igualmente interessante por se tratar de um exemplo concreto em que se demonstra na prática que, para a configuração geográfica do arquipélago, é possível conceber (pelo menos) dois traçados. O primeiro, usando a faculdade prevista no artigo 47°, n. 0 1, da CNUDM, une os pontos extremos das ilhas mais exteriores, mas o traçado dele resultante excede os critérios estabelecidos no referido artigo. No outro, Publicado no Suplemento ao Boletim Oficial de Cabo Verde, n .0 53, de 31 de Dezembro de 1997. 226 Ibid., artigo 3°. 227 Decreto-Lei n. 0 126/77, artigo 2°. 228 ROACH e SMITH. 1996, pp. 215 e 216. 229 Superfície de água encerrada pelo traçado : 50.546 km 2; superfície emersa do arquipélago: 4.031 km2 • 230 Law of the Sea Bulletin, n .0 55. 2004, pp. 32 e ss. 231 8,75 ou 8,97, consoante se utilize a superfície terrestre (4.133 km2 ) calculada com base no Global Self-consistent, Hierarchical, High-Resolution Shoreline (GSCHHSD) ou a referida no sítio da Internet do Governo de Cabo Verde (4.033 KM2 ). 232 CNUDM, artigo 47°, n. 0 1. 233 Medido sobre o geóide. 234 ROACH, J. A. e SMITH, R. W.. 1996, pp. 151 e ss, na maioria referentes à largura e direitos a exercer por outros Estados nas respectivas zonas marítimas. 225
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o Estado opta por um traçado mais restritivo unindo pontos extremos das ilhas, mas em que uma delas não é exterior, dele resultando a conformidade com as restantes condições contidas na parte final do n. 0 1 e do n. 0 2 do artigo 47°. A admissibilidade deste segundo traçado assenta, em nossa opinião, no argumento a maiore ad minus uma vez que, sendo possível um traçado que subtraia ao alto-mar uma área maior de mar em favor do Estado costeiro, será igualmente possível um outro traçado menos invasivo no que respeita ao alto-mar e mais desfavorável para o Estado costeiro.
6.3.2. Reino Unido: Ilhas Falkland e Ilhas Turcos e Caicos O Reino UnidoC235 > foi parte vencida no Caso das Pescas, mas isso não o impediu de vir a traçar LBR que constituem, porventura, dos casos de estudo mais interessantes. A Statutory Order n. a 1993(236> refere-se às linhas loxodrómicas traçadas entre as várias ilhas Falkland apenas como "linhas de base" (baselines), não as qualificando expressamente como LBR ou LBA. O mesmo se passa relativamente à Statutory Order n. a 1996(237>, referente a Turks e Caicos. Não podendo ser qualificados como arquipelágicos face ao referido pelo TIJ no Caso Qatar/Bahrain( 238>, visto que a lei inglesa não as qualifica como tal, a validade internacional das linhas de base deverá ser apreciada no âmbito dos artigos Ta 14° da CNUDM. Observada a Figura 24 verifica-se relativamente a qualquer dos traçados que houve a preocupação de, ao contrário do que sucede com o traçado de Cabo Verde que é arquipelágico, encerrar a maior superfície possível de mar. No que respeita às Falkland, seguindo o entendimento de PRESCOTT(239 >, é aceitável o traçado entre as formações insulares imediatamente adjacentes às ilhas East Falkland e West Falkland, seguindo o entendimento de que se tratam de franjas de ilhas na proximidade imediata, em conformidade com o n. 1, do artigo 7° da CNUDM. Relativamente às fason Islands, apesar de poder ser considerado que se situam na proximidade imediata com base nos critérios defendidos pelo Departamento de Estado Norte Americano e pelo Office for Ocean Affairs and Law of the Sea( 240>, a qualificação das referidas ilhas como "franja de ilhas" já se afigura mais complexa segundo os mesmo critérios. O mesmo poderá ser referido relativamente a Turks e Caicos. Não se tratando de um perímetro arquipelágico, não parece possível a qualificação de formações insulares como as Seal Cays e Big Sand Cay como uma franja de ilhas, em conformidade com o artigo 7°, n. 1, da CNUDM. 0
0
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Acessão à CNUDM em 25 de Julho de 1997. http:/ /www.un.org/Depts/los/reference_files/ status2010.pdf 236 http:/ /www.opsi.gov.uk/ si/ si1989 /Uksi_19891993_en_l.htm 237 http: I /www.opsi.gov.uk/ si/ si1989 /Uksi_l9891996_en_l.htm 238 Cfr. 220 supra. 239 Cfr. nota 396 infra. 2 •° Cfr. 5.5.4 supra.
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Existe uma curiosidade que não pode deixar de ser apontada. Apesar de a parte Oeste do traçado das Falkland e o traçado de Truks e Caícos parecerem mais excessivos que a grande maioria do traçado dos arquipélagos portugueses, os EUA não apresentaram até à data qualquer protesto.
6.3.3. Equador O sistema de LBR do Equador( 241 l, proclamado pelo Decreto Supremo n. 959-A de 28 de Junho de 1971, compreende a parte continental do território e o arquipélago de Colón (ilhas Galápagos). O Equador não é parte da CGMTZ0242l, nem da CNUDM, pelo que, nesta matéria, são-lhe aplicáveis as regras que venham a ser consideradas como internacionalmente aceites que, presentemente, apenas parecem existir no que respeita ao traçado de LBA. 0
6.3.4. Ilhas Faeroe O sistema de base recta do arquipélago das Faeroe, Dinamarca(243l, representado na Figura 27, está traçado de modo a compreender a maior superfície de mar possível. Este traçado foi objecto de comentários desfavoráveis por parte dos EUA(244l e de um protesto posterior também por parte deste Estadol245l. Apesar do aspecto do traçado das LBR das ilhas Faeroe, cuja disposição abrange os pontos exteriores das ilhas, não constam nos registos da DOALOS como sendo um traçado arquipelágicol246l.
7. Da prática dos Estados a um novo costume internacional 7.1. Prática dos Estados e reacções internacionais Apesar de ter sido inicialmente considerado como um procedimento a ser 241
242
Não ratificou a CNUDM nem a CGMTZC. Limits in the Seas n. 0 42. Straíght Baselínes - Ecuador refere "The entíre system of Ecuadorean straíght baselínes is questíonable, based upon accepted ínternatíonallegal practices and on cri teria established at the 1958 Geneva Law of the Sea Conference. The mainland coast is not "deeply indented and cut into", and it is not an accepted principie of customary law [em 1972] that base/ines can be constructed around archipelagos", p.10.
243
Ratificou a CNUDM em 16 de Novembro de 2004. Cfr. Limits in the Seas n. 0 13. Straight Baselines-Faeroes. 245 SECRETARY OF DEFENSE. 1997. Maritime Claims Reference Manual (DoD 2005.1-M). Washington: Defense Pentagon, p. 2-128. 246 Law of the Sea Bulletin. 2007. n. 0 63, p. 84. 244
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tomado em circunstâncias excepcionais<247l, a realidade actual demonstra que, presentemente, muitos Estados traçaram LBR nas respectivas costas em circunstâncias que, por vezes, parecem afastar-se muito do texto das disposições convencionais. Até 2007 já tinham publicado legislação sobre LBR 90 Estados<248l. Já em 2000, tendo por base um levantamento então efectuado pelo Departamento de Estado dos EUA, PRESCOTT e SCHOFIELD consideraram o estabelecimento de LBR a nível mundial como um processo com um final próximo< 249l. Em 2007 não tinham declarado LBR 44 Estados< 250l. Importa recordar que entre a maioria dos Estados que não estabeleceu LBR encontram-se muitos com uma linha de costa muito pequena<25 1l. No que respeita aos protestos a traçados de LBR apresentados até ao presente, podem ser divididos em duas categorias genéricas com base na respectiva motivação. A primeira deriva de interesses regionais tanto de Estados vizinhos, como de outros Estados embora geograficamente mais afastados, mas com interesses específicos na região onde esse traçado foi efectuado. Como exemplos desta primeira categoria podem apontar-se os casos da França, Singapura e Tailândia que protestaram relativamente ao traçado de LBR do Vietname; o Irão que protestou o traçado de Omã; a União Europeia que protestou os traçados do Canadá no Árctico e do Irão; a França, a Alemanha, a Noruega e a Espanha protestaram o traçado da Líbia; o Reino Unido e a Holanda que protestaram as LBR 247
Cfr. Caso das Pescas, pp. 116 e ss; Caso Qatar/Bahrain, parágrafo 212. 248 DOALOS. 2007. Law of the Sea Bulletin n. 63. New York: United Nations. Cfr. tabela das pp. 81 a 92. Entre eles: África do Sul, Albânia, Alemanha, Argélia, Angola, Arábia Saudita, Argentina, Australia, Bangladesh, Barbados, Belize, Brasil, Bulgária, Camarões, Cambodja, Canadá, Chile, China, Chipre, Colômbia, Coreia do Sul, Costa Rica, Costa do Marfim, Croácia, Cuba, Dinamarca, Djibouti, Dominica, Egipto, Emiratos Árabes Unidos, Equador, Eslovénia, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Gabão, Grenada, Guiné Equatorial, Guiné-Bissau, Guiana, Haiti, Honduras, Holanda, Iémen, Ilhas Maurícias, Irão, Irlanda, Islândia, Itália, Japão, Letónia, Líbia, Lituânia, Madagáscar, Malta, Mauritânia, Marrocos, México, Moçambique, Myanmar, Nauru, Noruega, Nova Zelândia, Omã, Paquistão, Polónia, Portugal, Quénia, Quiribati, Reino Unido, República Dominicana, Roménia, Rússia, Saint Kitts e Nevis, Samoa, Senegal, Síria, Somália, Sri Lanka, Sudão, Suécia, Tailândia, Tonga, Tunísia, Ucrânia, Uruguai, Vanuatu, Venezuela e Vietname. Cfr. também Limits in the Seas n. 0 112. Straight Baselines- United States Response to Excessive National Maritime Claims, pp. 26 e ss. Não existe nas Nações Unidas um registo sistematizado e exclusivo dos protestos apresentados. Porém, alguns são incluídos na série Law of the Sea Bulletin, presentemente publicado pela DOALOS, das Nações Unidas. 249 PRESCOTT, J. R. V. e SCHOFIELD, C.. 2005, p. 163. 250 DOALOS. 2007. Law of the Sea Bulletin. Cfr. tabela das pp. 81 a 92. 251 V.g., Benin, ~60 M; Bósnia e Herzegovina ~8 M; Brunei Darussalam ~80 M; Congo (República Democrática do) ~19M; Congo (República do) ~81 M; Cambia ~37M; Iraque ~10M; Kwait ~75 M; Monaco ~2M; Montenegro ~50 M; Singapura ~30M. 0
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da Argentina e do Uruguai; a Índia e Myanmar protestaram o traçado do Bangladesh; o Japão protestou os traçados de Madagáscar e Mauritânia; e a Grécia que protestou o traçado Turco. A segunda categoria tem a ver com a política de protesto sistemático que vem sendo seguida pelos EUA, que será abordada em parte própria do presente texto(252l. Os exemplos realçados ao longo do presente texto pretendem, acima de tudo, demonstrar o facto internacionalmente reconhecido que consiste na existência de um grande número de Estados de todos os grupos regionais das Nações Unidas, desenvolvidos e em vias de desenvolvimento, que traçaram LBR e LBA seguindo uma interpretação extensiva dos conceitos indeterminados contidos no artigo 7° da CNUDM, ou mesmo em violação dos artigos 10°, 46° e 47° da CNUDM.
7.2. Posição assumida pelos Estados Unidos da América Para que se possa compreender melhor o comportamento que os EUA(253l vêm assumindo sistematicamente a partir da segunda metade do século passado relativamente ao traçado de LBR de outros Estados é importante apontar, ainda que de forma muito breve, dois dos aspectos que têm caracterizado o comportamento desta superpotência, tanto a nível interno, como externo. Um desses aspectos, que tem condicionado o comportamento dos EUA no plano internacional, tem a ver com uma questão interna que consiste nas relações entre os Estados federados e a Federação no que respeita à titularidade dos recursos existentes nas águas interiores e numa faixa de mar adjacente a estas. Trata-se de matéria complexa e controvertida, que está na base de um desenvolvimento doutrinal e jurisprudencial importante, cujos efeitos ultrapassam, como adiante descrito, as barreiras da Federação. O eixo principal desta questão gira em volta da definição da linha de base normal e das linhas de fecho das baías, que são definidas pela Interagency Committee on the Delimitation of the United States Baseline, normalmente conhecido como Baseline Committee. Se um Estado federado discorda do Baseline Committee, pode recorrer para o United States Supreme Court. São numerosos os casos de disputas judiciais entre a referida Agência e Estados federados, como a Louisiana, Missuri, Alaska, Florida, Texas, Maine e Rhode Island( 254 l. A interacção doutrinária resultante de disputas legais desta natureza é terreno fértil para o respectivo desenvolvimento. Presentemente, os EUA não têm traçado na sua costa um sistema de LBR, existindo apenas linha de fecho em partes específicas da costa, normalmente encerrando baías. Tendo em conta as relações normalmente difíceis entre a 252
Cfr. parágrafo 7.2.2 infra. Não ratificou a CNUDM. Ratificou a CGMTZC em 12 de Abril de 1961. 254 PRESCOTT, J. R. V. e SCHOFIELD, C. 2005, p. 118. 253
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Federação e os Estados federados nesta matéria, dificilmente se configurará uma alteração da situação actual. A liberdade de navegação é outro aspecto fundamental tanto para a economia, como para a política externa norte-americana. A opção que tem vindo a ser seguida pelos EUA em não traçar LBR nas suas costas poderá estar influenciada pela sua doutrina e jurisprudência de âmbito interno, cuja articulação com o United States Freedom of Navigation Program (USFONP), o coloca numa posição relativamente confortável para comentar e protestar os traçados de LBR dos outros Estados em todas as áreas do globo.
7.2.1. A Titularidade dos Recursos nas Águas Interiores e no Mar Territorial
À medida que o desenvolvimento tecnológico foi permitindo a exploração do leito e subsolo em áreas situadas em profundidade, a questão de saber quem na União exerceria, de facto, os direitos soberanos sobre os referidos recursos conheceu relevância acrescida. Tendo por base uma prática vinda dos primeiros tempos da União e as decisões resultantes dos casos Pollard's Lesse v. Hagan e Martin v. Waddell, a maioria dos Estados federados costeiros assumiu como sua a titularidade relativamente aos recursos existente no subsolo até às 3 Mrzss) das respectivas costas. Este facto levou a que, desde os anos 30 do século passado, a Califórnia e outros Estados federados tivessem passado a concessionar para exploração, sem qualquer oposição por parte do governo federal, partes do subsolo marinho até àquela distância. No entanto, a constatação do enorme potencial de riqueza existente naquelas áreas marinha levou a que o governo federal suscitasse a questão da titularidade daqueles recursos(256). A Proclamação de Truman sobre a plataforma continental, de 28 de Setembro de 1945, constituiu o primeiro passo para a afirmação internacional por parte dos EUA relativamente aos recursos existentes no leito e subsolo das áreas adjacentes ao território emerso. Em Março de 1945, poucos meses antes da Proclamação de Truman, o governo federal promoveu uma acção judicial contra o Estado da Califórnia(257), com base no artigo III §2 da Constituição dos EUA, tendo em vista saber se a titularidade dos recursos marinhos seriam do Estado federado ou da federação. A decisão do tribunal foi no sentido de concluir que os direitos soberanos no mar territorial devem ser considerados como integrantes da soberania nacional da federaçãorzss). Idênticas acções e resultados foram obtidos
255
Correspondia, à época, ao limite exterior do mar territorial. United States v. California, 332 U .S. 19 (1947), p . 38 "The question ofwho owned the bed of the sea only became of great potential importance at the beginning of this century, when oil was discovered there.". http :/ /supreme.justia.com/us/332/19/case.html. 257 United States v. California, 332 U.S. 19 (1947). 258 Ibid., pp. 38 e 39. 0
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relativamente aos Estados da Luisiana<259l e do TexasC 260l. As decisões tomadas pelo Supremo Tribunal de Justiça dos EUA nos casos anteriormente referidos deram origem a um dos assuntos de maior contestação política interna do pós-guerra<261 l. Em 1952 e 1953 o Congresso aprovou, respectivamente, o Submerged Lands Act e o Continental Shelf Lands Act, que atribuem aos Estados costeiros federados a titularidade exclusiva sobre os recursos do "solo sob as águas navegáveis" (land beneath navígable waters) dentro das fronteiras do respectivo Estado< 262l. O Submerged Lands Act define "solo sob as águas navegáveis" como "todo o solo submerso situado para lá das fronteiras do Estado tal como existia na ocasião em que esse Estado se tornou membro da União mas em caso algum interpretável como se estendendo mais de 3 milhas geográficas a partir da linha de costa"< 263l. Por sua vez, "linha de costa" foi definida como a linha de baixa-mar onde o território emerso está em contacto directo com o mar aberto e, noutros locais, como sendo o limite exterior das "águas internas" (ínland waters). A decisão do Supremo Tribunal de Justiça dos EUA deixou claro, no caso United States v. Californía, de 1947, que as "águas internas" deveriam ficar confinadas a um limite exterior coincidente com a linha de base usada no âmbito internacional<264l. Para além de não ter correspondência no Direito Internacional, o termo "águas internas" nunca chegou a estar definido com rigor, referindo BLACKC265 l que, tendo em conta os registos históricos que estiveram na origem do diploma, houve intenção em deixar para a jurisprudência a tarefa de determinar o significado concreto a atribuir àquele conceito. A entrada em vigor da CGMTZC, da qual os EUA são parte<266l, trouxe a necessidade de harmonizar os conceitos e referências nela contidos com os existentes na legislação interna<267l. United States v. Louisiana, 339 U. S. 699 (1950). http: I I supreme.justia.coml us I 339 I 699 I case.html 260 United States v. Texas, 339 U. S. 707 (1950). http:l lsupreme.justia.comlusl339l707 I case.html 261 United States v. California, 381 U. S. 139 (1965), p. 185 "This Court's 1947 holding [United States v. California, 332 U.S. 19 (1947)] precipitated one of the most hotly contested politicai issues of the post-war decade. Critics of the decision said that it had come as a complete surprise, and had effectively taken away from the coas tal States what they and others had thought from the time they entered the Union and before belong to them.". 262 United States Code, edição de 1958, Título 43, Capítulo 29, parágrafo 1311, Westerman, ob.cit, p.204. 263 Tradução livre do autor. Texto original: "all submerged land lying within the seaward boundaries of a state "as they existed at the time such State became a member of the Union" but in no event to be interpreted as extending more than three geographic miles from the coast line". 264 United States v. Califomia, 381 U. S. 139 (1965), p. 165. 265 United States v. Califomia, 381 U. S. 139 (1965), pp. 197-198. Voto de vencido de Justice Black. 266 Os EUA ratificaram a CGMTZC em 12 de Abril de 1961. 267 Na CGMTZC não existe o termo "inland waters", sendo as águas situadas aquém da 259
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Do texto do Submerged Lands Act<268l retira-se que, quando maior for a área imersa correspondente às águas interiores, maior será também a área de potenciais recursos à disposição do Estado federado a profundidades mais baixas, consequentemente com menores custos de extracção. O interesse antagónico entre a Federação e os Estados federados nesta matéria parece, só por si, justificar uma posição prudente por parte dos EUA relativamente a uma interpretação extensiva dos artigos 7° a 14° da CNUDM.
7.2.2. United States Freedom of Navigation Program
Nos últimos anos da guerra fria a U.S. National Military Strategy assentou em três pilares fundamentais: dissuasão, defesa avançada e solidariedade da Aliança<269l. A dissuasão baseava-se na posse de meios necessários para convencer a União Soviética (URSS) que os riscos associados a uma agressão seriam muito maiores que os benefícios. Para que fosse eficaz e credível a URSS teria de compreender que os EUA e seus aliados tinham forças prontas e capazes de a derrotar em todo o espectro possível do conflito e que recorreriam à força se considerassem necessário. A defesa avançada pressupunha que os EUA enfrentariam a URSS tão longe quanto possível tendo em vista o fortalecimento da Aliança. A solidariedade da Aliança, por seu lado, impunha que as forças dos EUA estivessem presentes onde e quando pudesse ser necessário e que as 43 nações envolvidas na Aliança ocidental compreendessem que o compromisso dos EUA para com elas era tanto convencional como estratégico. Por seu lado, em apoio à National Military Strategy a United States Maritime Strategy tinha as suas próprias linhas de acção bem definidas, que implicavam uma presença naval a nível mundial, dissuasiva, que permitisse o seu acesso, e o do aliados, aos mercados, petróleo e matérias-primas. Esta presença naval tinha como principal objectivo dissuadir e anular, se fosse o caso, quaisquer tentativas de negação do uso do mar ou das vias de comunicação marítimas e aéreas< 270l. O FONP teve início em 1979 durante a administração Carter, tendo-se mantido praticamente inalterável desde então. Foi criado tendo em vista a protecção linha de base designadas por "internal waters". U.S. Code, Título 43, Capítulo 29, §1301, (a) (2): <<a/1/ands permanently or periodically covered by tida/ waters up to but not above the fine of mean high tide and seaward to a fine three geographica/ miles distant from the coast fine of each such State and to the boundary fine of each such State where in any case such boundary as it existed at the time such State became a member of the Union, or as heretofore approved by Congress, extends seaward (or into the Gulf of Mexico) beyond three geographica/ miles, and ( )». 269 WATKINS, J. D .. 1986. The Maritime Stategy. U. S. Naval Institute Proceedings. Supplement, pp. 2 a 4. 270 Ibid., p. 5. 268
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dos direitos de navegação e sobrevoo, não só para os EUA, mas para a comunidade internacional em geralC271 l. O objectivo fundamental é promover juntos dos Estados costeiros o cumprimento da CNUDM em particular os que possam influenciar as liberdades do alto mar. Para alcançar esse fim, o FONP encoraja os Estados a alterar a legislação interna no sentido de a tornar conforme com a letra e o espírito da CNUDM. Outro aspecto fundamental do FONP consiste na demonstração clara e inequívoca do não reconhecimento por parte dos EUA das reivindicações relativamente a zonas marítimas que sejam excessivas, ou que não estejam de acordo com a CNUDMC 272 lC273 l. Com base na ideia de que os direitos que não são exercidos regularmente serão definitivamente perdidos, têm existido a percepção por parte do governo norte-americano que as reivindicações consideradas excessivas que não sejam objecto de protesto podem vir a constituir no futuro normas obrigatórias de Direito Internacional. Esta matéria ganha especial relevância à medida que a prática internacional se vai consolidando no sentido de interpretar de 271
A este propósito, em lO de Março de 1983, no Oceans Policy Statement o presidente Ronald Reagan afirmou "The United States has long been a leader in developing customary and conventional law of the sea. Our objectives have consistently been to provide a legal arder that will, among other things, facilita te peaceful, international uses of the oceans and provide for equitable rmd effective management and conservation of marine resources. The United States also recognizes that all nations have an interest in these issues. [H]owever, the convention also contains provisions with respect to traditional uses of the oceans which generally confirm existing maritime law and practice and fairly balance the interests of all states. Today Iam announcing three decisions to promote and protect the oceans ínterests of the Uníted States ín a manner consístent with those Jair and balanced results in the Convention and internationallmu. [t]he United States will exercise and assert its navigation and overfiight rights and freedoms on a worldwide basis ín a manner that is consistent with the balance of interests reflected ín the convention. The Uníted States wíll not, however, acquíesce in unilateral acts of other states designed to restrict the ríghts and freedoms of the international community in navigation and overflight and other related high seas uses". Cfr. Texto integral em http:/ /www.oceanlaw.org/index.php?name=News&file=article &sid=73 272 Em 1979, na oitava sessão da III Conferência, o embaixador Elliot Richardson, chefe da delegação dos EUA mencionou que "activities in the oceans by the United States are fully ín keeping with its long-standíng and with ínternationallaw, which recognízes that rights which are not consístently maintaíned will be ultímately lost" GRUNAWALT, R. J.. 2000. Freedom of Navigation in the Post-Cold Era. ln ROTHWELL, D. R. e BATEMAN, S. (eds.). Navigation Ríghts and Freedoms and the New Law of the Sea. The Heague: Martinus Nijhoff Publishers, pp. 11 a 21. 273 Ibid .. Estes aspectos da política externa Norte-Americana constam em GALDORISI, G. 1997. Beyond the Law of the Sea: New Directions for U. S. Oceans Policy. Wesport: Praeger; GALDORISI, G.. 1996. The United States Freedom of Navigation Program: A Bridge for International Compliance with the 1982 United Nations Convention on the Law of the Sea- Comment. Ocean Development & International Law. 27'h Series, pp. 399 a 408.
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modo consistente os conceitos gerais, indeterminados e ambíguos existentes na CNUDM' 274 ). Os objectivos políticos do FONP'275 ) compreendem a realização de acções diplomáticas e operacionais de afirmação dos direitos de navegação e sobrevoo, tendo em vista demonstrar o não reconhecimento de direitos reivindicados por outros Estados que sejam desconformes com as liberdades de navegação e sobrevoo constantes na CNUDM, e encorajar a alteração dessa situação. Para esse efeito a Presidential Decision Directive (PDD)-32 determinou ao Departamento de Estado Norte-Americano que protestasse diplomaticamente toda e qualquer reivindicação marítima que não se conforme com a CNUDM. No cumprimento dessa directiva foram efectuados desde 1979 mais de 100 protestos diplomáticos relativamente a reivindicações marítimas'276)( 277) . A afirmação operacional de direitos com base na PDD-32 rege-se pelos princípio da não provocação, igualdade e neutralidade política. De acordo com o princípio da não provocação (alegadamente diferente de não confrontação), os EUA demonstram a sua determinação numa utilização do mar de modo conforme com as disposições da CNUDM, não se conformando com as reivindicações excessivas por parte de outros Estados. O Programa baseia-se num princípio de igualdade, no sentido de que não são apenas os Estados com fraca capacidade militar que são confrontados. Durante o período da guerra fria a URSS foi confrontada diversas vezes, sendo digno de referência o caso do abalroamento de um navio americano por outro soviético, ocorrido em 1988 junto à península da Crimeia, justificado por parte dos EUA pelo não reconhecimento e afirmação de direitos de navegação em passagem inofensiva no mar territorial soviético. A neutralidade política do Programa revela-se no facto de as acções serem motivadas pela natureza da reivindicação em si e não pela filosofia política subjacente GRUNAWALT, R. J.. 2000. Freedom ofNavigation in the Post-Cold Era. ln ROTHWELL, D. R. e and BATEMAN, S. (eds.) . Navigation Rights and Freedoms and the New Law of the Sea. The Heague: Martinus Nijhoff Publishers, pp. 11 a 21. 275 Cfr. Hegemonic Stability Theonj, SCOTT, S. V.. 2005 . The Law of the Sea as a Constitutional Regime for the Oceans. ln ELFERINK, A. G. (ed.). Stability and Change in the Law of the Sea: The Role of the LOS Convention. Leiden: Maritinus Nijhoff Publishers, pp. 9 a 38; LEICH, M. N .. 1986. Contemporary Practice of the United States Relating to lnternational Law. American Journal ofinternational Law. Vol. 80. 3'd Series, pp. 612 a 644; LElCH, M. N .. 1990. Contemporary Practice of the United States Relating to International Law. American Journal ofinternational Law. Vol. 84. 1st Series, pp. 237 a 248; MECONlS, C. A. e MAKEEV, B. N .. 1996. U.S. Russian Naval Cooperation. Westport, CT: Praeger Publishers; NlNClC, D. J. 2000. From Sea-Lanes to Global Cities: The Policy Relevance of Politicai Geography. ln NlNCIC, M. e LEPGOLD, J. (eds.). Being Useful- Policy Relevance and International Relations Theory. [S.l.): University of Michigan Press, Pp. 295 a 324; NAVAL WAR COLLEGE (U.S.). 2006. lnternational Law Studies. [S.l.): U.S. G.P.O. 276 GRUNAWALT, R. J. 2000, pp. 11 a 21. 277 Entre as acções desenvolvidas pelo Departamento de Estado Norte-Americano conta-se o protesto às LFBR portuguesas anteriormente referido. Cfr. 10.3 infra. 274
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ou pertença ou não a determinada aliança político-militar. As acções tanto têm incidido sobre Estados com os quais os EUA têm relações pouco amigáveis, como foi o caso da Líbia relativamente ao Golfo de Sidra<278 ), como a aliados de longa data como o caso da Austrália< 279 ). A área de incidência das reivindicações que mais preocupam o Departamento de Estado Norte-Americano, e sobre as quais os protestos mais têm incidido, têm a ver com as baías históricas, traçados de LBR, mar territorial com limites para lá das 12 M e outras reivindicações territoriais que se sobrepõem a estreitos usados pela navegação internacional que ponham em causa o direito de passagem em trânsito, existência de zonas de segurança que restringem liberdades de alto mar, zonas contíguas onde vários direitos e restrições são proclamados à revelia dos textos convencionais, ZEE onde os Estados negam direitos de navegação, reivindicações arquipelágicas contrárias à CNUDM e outras reivindicações várias que atentam, designadamente, contra os direitos de passagem inofensiva no mar territorial e de passagem pelas rotas marítimas arquipelágicas<280 ).
7.2.3. Importância da posição assumida pelos Estados Unidos da América A política dos EUA no que respeita à definição da linha de base tem ido no sentido de não estabelecer um sistema de LBR nas suas costas<281 ). Não obstante, na prossecução do FONP e PDD-32, os EUA têm vindo a oferecer comentários e critérios<282 ), através de documentos oficiais, para a interpretação e aplicação dos conceitos indeterminados relativos ao traçado das LBR. Como já referido, não se têm coibido de apresentar, de um modo generalizado, protestos relativamente aos Estados cujos traçados não estejam de acordo com as regras por si
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Em 1973 a Líbia declarou as águas do Golfo de Sidra situadas a Sul da LFBR definida pelo paralelo 32° 30' N como águas interiores. A marinha dos EUA tem realizado desde então exercícios navais no interior do referido golfo tendo em vista a reafirmação de direitos de navegação e sobrevoo. Em 1981, num desses exercícios verificou-se um incidente entre forças norte-americanas e líbias de onde resultou o abate de dois aviões líbios. Em 1986, aconteceram novos incidentes tendo sido atacadas pelas forças norte-americanas instalações de radar e navios patrulha líbios (ROACH e SMITH, 1994: 141). 279 GRUNAWALT, R. J.. 2000, pp. 11 a 21. 280 GALDORISI, G .. 1995. The United Nations Convention on the Law of the Sea: A National Security Perspective. The American Journal of International Law. Vol. 89. 1st Series, pp. 208 a 213; ROACH, J. A. e SMITH, R. W.. 2000. Straight Baselines: The Need for a Universally Applied Norm. Ocean Development & Intemational Law. Vol. 31, pp. 47 a 80. 281 ROACH, J. A., e SMITH, R. W. 1996, p. 69. 282 Department of State- Bureau of Ocean and International Environment and Scientific Affairs. Cfr. a série Limits in the Seas, designadamente o n. 0 106, Developing Standard Guidelines for Evaluating Straight Baselines.
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definidas<283>. A criação pelos EUA de regras concretas sobre o traçado de LBR tem, pelo menos, o mérito de por à disposição da comunidade internacional um conjunto sistemático de regras que serve como auxiliar interpretativo dos textos convencionais. A posição hegemónica que os EUA vêm assumindo desde a 2a metade do século passado, em particular no pós Guerra-Fria, faz com que não seja parte neutra para a definição destas regras. A existência de LBR constitui, naturalmente, um obstáculo à liberdade de navegação, em especial nos casos em que encerram áreas de mar consideráveis. Para uma potência naval como os EUA o facto de estar assegurada juridicamente a manutenção do direito de passagem inofensiva, nas águas interiores encerradas após a entrada em vigor da CGMTZC<284l, não é suficiente. A realização de operações navais de superfície ou submarinas, bem como a utilização do espaço aéreo, constituem actividades que, nos termos do artigo 19°, n .0 2, da CNUDM, podem ser consideradas prejudiciais à paz, boa ordem ou segurança do Estado costeiro, pelo que, nestes casos, a passagem pode não ser considerada inofensiva. A política de protesto sistemático seguida pelos EUA relativamente aos Estados que traçam LBR em desconformidade com a interpretação americana das regras para os traçados das LBR, nos quais se inclui Portugal< 285>, tem, em nosso entender, três objectivos distintos. Como primeiro objectivo pretende reduzir ou anular as reivindicações por parte de outros Estados possam ter como consequência a redução espacial e material das liberdades de alto mar. Depois, evita que as águas encerradas pelas LBR possam, no futuro, vir a ser qualificadas como históricas. Como acima referido, o protesto é, segundo a doutrina internacional, forma de oposição bastante para, em determinadas circunstâncias, impedir a emergência de títulos históricos. Finalmente, tenta impedir uma prática subsequente consolidada relativamente à interpretação e aplicação dos conceitos indeterminados relativos às LBR. Apesar de, presentemente, não ser parte na CNUDM, os protestos apresentados têm vindo a ser fundados no regime aplicável ao Estado alegadamente violador. O facto de as disposições convencionais que contêm os conceitos indeterminados serem iguais na CGMTZC e na CNUDM, contribui largamente para esta finalidade. Existem, no entanto, outros aspectos que podem enfraquecer a posição norte-americana. A política de protesto sistemático não tem seguido uma via coerente. Como exemplo desse facto pode ser apontada a já referida ausência de protestos relativamente ao traçado das LBR da Espanha continental (Figura 15) e das ilhas de Madagascar (Figura 16), Falkland e Turcos e Caicos (Figura 24) bem como ROACH, J. A. e SMITH, R. W .. 2000. Referem que a posição oficial dos EUA no querespeita ao traçado das LBR é a constante no documento Commentary on the Law of the Sea Convention, publicado no US Department ofState, 6 Dispatch Supplement, N .0 1, Fev. 1995. 284 Cfr. 13.3.1 infra. 285 ROACH, J. A. e SMITH, R. W.. 1996, pp. 23 e 112 a 113. 283
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ao traçado de LBR em Jan Mayer, na Noruega, apesar de não se enquadrarem nos critérios adoptados e defendidos pelo Departamento de Estado para a interpretação dos conceitos indeterminados relativos ao traçado das LBR'286>, contidos nas convenções internacionais. É também digno de relevo o facto de esta política não ter apresentado efeitos significativos junto da comunidade internacional ao ponto de originar um retrocesso (roll back) nos Estados com traçados excessivos nas respectivas LBR, uma vez que poucos Estados seguiram esta via. Como exemplo dessa situação podem apontar-se os exemplos da Guiné que, em 1980, revogou um decreto de 1964 que estabelecia uma LBR com 120M de comprimento, a Alemanha que alterou o regime referente a um ancoradouro situado no Mar do Norte, ao largo de Osterfriesland e Land Hadeln' 287> e Cabo Verde' 288> que modificou o traçado das LBA de modo a cumprir os parâmetros exigidos pelo artigo 47° da CNUDM. Tendo em conta o anteriormente exposto, para a interpretação dos conceitos indeterminados para o traçado de linhas de base recta com base na posição assumida pelos EUA, importa ter presente vários aspectos que não podem deixar de ser tomados em consideração: l.Consiste numa interpretação unilateral de normas convencionais, não constituindo, apenas por isso, regras internacionalmente aceites. 2. A avaliação feita da realidade internacional assenta, em muitas situações, essencialmente em critérios internos, nomeadamente os resultantes da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça Norte-Americano'289>, em detrimento de critérios aceites internacionalmente. 3. As posições assumidas a nível internacional têm repercussões importantes a nível interno no que respeita à titularidade dos recursos do solo e subsolo marinho, contrapondo os interesses da Federação e dos Estados federados. 4. Numa perspectiva de política internacional, assenta num objectivo de fundo que vai de encontro aos objectivos da política externa norte-americana: assegurar as liberdades de navegação e sobrevoo evitando a diminuição das áreas geográficas em que vigorem as liberdades de alto mar. Para esse fim, no que respeita ao traçado de LBR, tentar impor uma interpretação restritiva dos conceitos indeterminados contidos no artigo 7° a 14° da CNUDM. 5. Apesar de existir uma posição de base que é clara e concisa, existem vários documentos oficiais cujas regras neles contidas parecem não ser rigorosa-
PRESCOTT, J. R. V. e SCHOFIELD, C .. 2005, p.150. ROACH, J. A. e SMITH, R. W .. 1996, p .146. 288 Cfr. 6.3.1 supra. 289 Cfr., entre outros, Limits in the Sea, n .0 112 - United States Responses to Excessive National Maritime Claims, p. 8, notas de rodapé.
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mente coincidentes(290l.
7.3. O princípio da prática subsequente
Um aspecto importante para aferir o sentido que pode ser conferido aos conceitos indeterminados contidos no artigo 7° da CNUDM consiste na avaliação da prática subsequente como princípio interpretativo e nas consequências que dele pode resultar para a eventual formação de costume internacional. Apesar de existirem alguns autores que defendem que o texto do artigo 7° da CNUDM é muito claro no que respeita à respectiva aplicaçãol 291 l, os factos demonstram que assim não é. Basta confrontar tudo o que se tem escrito doutrinariamente sobre a matéria com o facto de a esmagadora maioria dos Estados costeiros ter traçado LBR consideradas por aqueles autores como inválidas. Parte significativa da doutrina internacional interpreta os artigos 7° a 14° da CNUDM duma maneira tendencialmente restritiva, ao passo que a esmagadora maioria dos Estados que traçaram LBR fizeram-no, segundo eles, interpretando extensivamente os referidos conceitos. Comparando estas duas realidades parece até um caso de desrespeito concertado por parte da comunidade internacional. Obviamente que, em termos de Direito Internacional, esta situação apresenta contornos interessantes, merecendo estudo adequado que ultrapassa o âmbito do presente texto. Para o estudo dos traçados de LBR importa, por isso, fazer uma referência ao princípio da prática subsequente. Sempre que o intérprete encontre termos 290
No documento Limits in the Seas n. 0 106 (31 de Agosto de 1987), o Departamento de Estado Norte-Americano referiu" [I]n the light of the above, 48 nau ti cal miles, which is only marginally greater than the lengths used by Beazley and by Hodgson and Alexander, appears to be a reasonable limit. Moreover, because it is double the maximum length for a juridical bay closing line, it preserves the significance of the differences between the bay articles and straight baseline articles of the two conventions" p. 14. A 11 de Janeiro de 1994, a Missão Permanen-
te dos Estados Unidos junto das Nações Unidas numa nota dirigida às Nações Unidas (USUN 3509 I 437) adoptou uma interpretação mais restritiva ao comentar o traçado das LFBR iranianas, defendendo que "[T]he United States believes that the maximum length of an appropriately drawn straight baseline segment normally should not exceed 24 nautical miles", Limits in the Seas, n. 0 114, p. 37. Incoerências desta natureza sobre a interpretação,
que se pretende uniforme, de um conceito indeterminado considerado por muitos como relevante enfraquecem, naturalmente, a posição dos EUA. Limits in the Seas n. 0 124. Straight Baselines -Honduras, p. 3. 291 Em Outubro de 2008, Sam BATEMAN na apresentação do seu trabalho State Practice Regarding Straight Base/ines in East Asia- Legal, Technical and politicai Issuesin a Changing Environment durante a ABLOS Conference 2008 (http:/ /www.iho.shom.fr/COMMITTEES/ ABLOS/ ABLOS_5th_Conference/Programme_2008-Revl.pdf) referiu "[A]rticle 7 ofUNCLOS is very clear, States shall not draw straight baselines when the coast is not deeply indented ar cut into".
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cujo sentido e alcance não é determinável, deve recorrer, para além do texto convencional, aos restantes meios e regras de interpretação jurídica, nomeadamente, às regras de interpretação de tratados internacionais contidas nos artigos 31 o a 33° da CVDTE. O artigo 31°, n. 0 1, da CVDTE estabelece que "Um tratado deve ser interpretado de boa-fé, segundo o sentido comum atribuível aos termos do tratado no seu contexto e à luz dos respectivos objectivo e fim". O n. 3, do mesmo artigo, adianta que "Ter-se-á em consideração, simultaneamente com o contexto: b) [T]oda a prática seguida ulteriormente na aplicação do tratado pela qual se estabeleça o acordo das partes em relação à interpretação do tratado". No caso Kasikidi/Seduku Island o TIJ, seguindo o entendimento apresentado pela CDI nos trabalhos preparatórios da CVDTE e a própria Convenção, referiu que a prática subsequente [subsequent practice] das partes de um Tratado constitui um elemento a ter em consideração no seu sentido e alcance "A importância de tal prática subsequente na aplicação do tratado, como um elemento de interpretação, é óbvia; constitui prova objectiva do entendimento das partes relativamente ao significado do tratado. A sua utilização como elemento de interpretação está bem fixada na jurisprudência dos tribunais internacionais" <292 l< 293 l. No caso Land, Island and Maritime Frontier< 294l (El Salvador/Honduras) o TIJ afirmou que apenas poderiam ser sustentadas no artigo 31°, n. 0 3, alínea b) situações em que existisse incerteza relativamente a uma disposição de um tratado. Assim, a prática dos Estados não poderia ser utilizada para defender uma interpretação que fosse contrária a um sentido que resultasse claramente do texto. A prática demonstra um entendimento comum seguido pelas partes no que respeita à disposição a interpretar. A referida incerteza está presente nos conceitos indeterminados contidos no artigo 7° da CNUDM, pelo que a prática seguida pelos Estados anteriormente referidos não parece ser "claramente" contrária ao texto convencional. Um entendimento semelhante, que também releva a importância deste princípio interpretativo, é seguido pela doutrina internacional. O princípio da prática subsequente contido no artigo 31°, n." 3, alínea b) da CVDTE, considerado por AUST< 295l como o princípio interpretativo mais importante, constitui um 0
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Caso da Ilha Kasikili/Sedudu entre o Botswana e a Namíbia [Kasikili/Sedudu Island (Botswana/Namibia), Judgment, I.C.J. Reports 1999, p. 1045], julgamento de 13 de Dezembro de 1999, parágrafo 49. Versão original: "The importance of such subsequent practice in the application of the treaty, as an element of interpretation, is obvious; for it constitutes objective evidence of the understanding of the parties as to the meaning of the treaty. Recourse to it as a means of interpretation is well-established ín the jurísprudence of ínternatíonal tribunais".
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Caso da Disputa de Fronteiras Terrestre, Insular e Marítima entre S. Salvador e Honduras [Land, Island and Maritíme Frontier Dispute between El Salvador and Honduras(El Salvador v. Honduras: Nicaragua íntervening), Judgment, I.C.J. Reports 1992, p. 351], julgamento de 11 de Setembro de 1992, parágrafo 380. 295 AUST, A .. 2000. Modem Treaty Law and Practíce. Cambridge: Cambridge University
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indicador determinante relativamente ao modo como são interpretados determinados preceitos dum tratado, desde que a prática seja consistente e comum, ou aceite, por todas as partes( 296l. Não é necessária a demonstração que cada uma das Partes seguiu determinada prática, apenas que a aceitou, mesmo que tacitamente, mas a existência de uma divergência clara entre as Partes afastará a prática subsequente como um meio suplementar de interpretaçãd297l . BROWLIE chega mesmo a apontar que, com base no princípio da prática subsequente, a prática individual de um Estado Parte acaba por ter sempre algum valor probatórid298l. Sob a perspectiva da formação normativa VAN HOOF considera a prática subsequente como um usus relativamente ao qual ainda não existe uma opinio juris. No que respeita à relação que essa prática pode ter com uma regra pré-existente, se aquela seguir o previsto na norma estaremos perante uma situação de prática subsequente secundum legem. Neste caso a norma sairá reforçada pela prática, verificando-se que a segunda encaixa exactamente na primeira. No caso contrário, estaremos perante uma situação de prática contra legem, que constitui assim uma violação da regra internacional. Para além dos dois casos anteriormente referidos existe ainda um terceiro tipo, que se verifica nas situações em que a prática subsequente segue, de um modo geral, a regra, mas por vezes afasta-se da respectiva estatuição. Este caso, que consubstancia uma prática praeter legem, é de grande importância no Direito Internacional contemporâneo uma vez que irá contribuir para o futuro desenvolvimento da norma através de um processo de formação tácitd 299l . O entendimento de VAN HOOF quando associado à interpretação e aplicação das regras aplicáveis ao traçado de LBR reforça uma possível ponte de ligação entre uma prática subsequente muito uniforme no sentido de interpretar extensivamente as referidas regras a um processo de formação de costume internacional. No que respeita ao momento a partir do qual a prática releva como elemento interpretativo, CHURCHILL defende que, no que respeita à CNUDM, apenas importa a prática que se tem verificado desde que os Estados em causa são parte da Convenção(300l. Parece, contudo, razoável considerar como relevante determinada prática verificada antes de os Estados serem partes da Convenção e que se manteve depois a partir da respectiva adesão. Um aspecto prático desta situação terá a ver com a prática de Estados que eram parte das Convenções de Genebra, de 1958, relativamente a preceitos que são muito semelhantes às correspondentes disposiPress, p. 194. Ibid., p . 194. 297 Ibid., p . 195. 298 BROWNLIE, I.. 2003. Principies of Public International Law. Oxford: Oxford University Press, p. 605. 299 VAN HOOF, G. J. H.. 1983. Rethinking the Sources ofinternational Law. Deventer: Kluwer, pp. 276 e 277. 300 CHURCHILL, R. R.. 2005. p 94. 296
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ções da CNUDM como é o caso das regras relativas ao traçado de LBR. Contudo, seguindo uma interpretação restritiva do artigo 31°, n. 3, alínea b) da CVDTE parece haver pouco espaço para acomodar este entendimento, uma vez que tal prática parece não cair na previsão deste preceito. Nesta linha de entendimento, CHURCHILL considera que seria razoável considerar tal prática como contida no conceito de trabalho preparatório, tal como referido no artigo 32° da CVDTE, relativamente à CNUDM<301 l. Esta prática pode ser considerada como parte do contexto da CNUDM, embora possa não se situar rigorosamente na noção de contexto mencionado no artigo 31 o da CVDTE. O facto de as regras relativas ao traçado das LBR se manterem praticamente inalteradas desde a decisão do Caso das Pescas, em 1951, até aos dias de hoje, constitui um factor que permite avaliar de modo uniforme a prática internacional, independentemente de os Estados costeiros serem Estados Partes da CGMTZC, da CNUDM, ou de nenhuma delas. Para efeitos de avaliação e aplicação do princípio da prática subsequente, importa realçar que a maioria dos Estados que têm traçados de LBR alegadamente excessivos baseados em interpretações extensivas dos conceitos indeterminados são Estados Partes da CNUDM. Os EUA, que têm sido o único Estado que se tem oposto de forma sistemática e continuada a esta realidade, apenas é parte da CGMTZC. Sendo os textos iguais em ambas as Convenções no que respeita aos conceitos indeterminados relativos ao traçado das LBR, parece fácil retirar que, para efeitos da consolidação da prática subsequente, a oposição nestas circunstâncias vale, também, relativamente à CNUDM. Por outro lado, o facto de a partir de 1958 existir apenas uma zona marítima (ou duas, caso o Estado costeiro decidisse manter a zona contígua), cuja largura podia ser medida a partir das LBR, e as liberdades de alto-mar terem uma amplitude que não possuem hoje, em particular nas zonas de mar que correspondem presentemente à ZEE, são elementos que parecem militar a favor de considerar transponível para o âmbito da CNUDM a consolidação da prática subsequente. Se essa prática é relevante face a um quadro normativo que confere direitos mais intensos aos potenciais lesados, não deverá deixar de ser tomada em consideração numa outra moldura subsequente menos gravosa. No seguimento do anteriormente referido< 302l, é fundamental para a formação de novas regras (aqui inclui-se também a interpretação das existentes) relativas ao traçado de LBR a não existência de protestos. A realidade diz-nos que para lá dos EUA, e dos casos de Estados adjacentes ou opostos que possam sentir os respectivos interesses ameaçados, os protestos parecem existir em número muito red uzido<303l. 0
301
Ibid., p. 95. Cfr. 4.2.1 supra. 303 BRUBAKER, R. D .. 1999, pp. 191 a 223. 302
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7.4. Prática dos Estados e formação do costume internacional Uma prática continuada e consistente por parte dos Estados constitui, juntamente com a opinio juris, o elemento necessário para a formação do costume internacional. A maioria das regras que vieram a ser reconhecidas pelos tribunais como costume internacional partiu de matérias ou situações não previstas em tratados, tendo passado posteriormente a fazer parte de tratados de âmbito equivalente, especialmente aqueles que constituem a codificação de costume internacional pré-existente. Uma regra de costume internacional pode, igualmente, surgir no seguimento, e corno complemento, a determinadas disposições de um tratado. Existem ainda situações, embora poucas, em que o costume internacional posterior chegou mesmo a modificar disposições do tratado pré-existente. De entre todas as áreas do Direito Internacional, o Direito do Mar deve contar-se entre as que maior dinamismo vem apresentando, em especial após a proclamação de Truman de 194SC304l. Sendo uma área em constante mutação não admira que novas necessidades económicas, políticas ou estratégicas dos Estados costeiros, fruto do contexto internacional de cada época, não se encaixem num quadro convencional rígido e estático e os processos lentos de formação normativa convencional não estejam à altura de lhes dar resposta atempada. Esta situação constitui terreno fértil para o crescimento de práticas à margem das disposições convencionais que, a generalizarem-se, tendem a consolidar convicções na comunidade internacional sobre a via a seguir, mesmo que não se enquadre integralmente no quadro normativo vigente.
7.4.1. O aparecimento da ZEE Pela dimensão das áreas que lhe estavam associadas à escala global o aparecimento da ZEE é, possivelmentel305l, um dos casos mais notórios e recentes no Direito do Mar de costume contrário ao quadro convencional vigente<306l. Os primeiros sinais do aparecimento desta nova zona marítima foram dados pelo 304
Cfr. BASTOS, F. Loureiro. 1993. Algumas Notas Sobre a Zona Económica Exclusiva e a Caracterização do Direito Internacional Contemporâneo. Lisboa: Luso Livro, pp. 26 a 27 (Também publicado in Política Internacional. N. 0 1. Vol. 1. Janeiro de 1990, pp. 195 a 215). 305 O mesmo se poderá referir relativamente à plataforma continental após a Proclama-
ção de Truman e até à Convenção de Genebra sobre a Plataforma Continental, de 1958, enquanto conceito jurídico autónomo. No entanto, as áreas potenciais de plataforma continental então reclamadas pelos Estados costeiros para lá do mar territorial, apesar de considerável, não tinha a dimensão das áreas de ZEE reclamadas à data de entrada em vigor da CNUDM. 306 Loureiro BASTOS reforça a operacionalidade do costume para conduzir a transformação da estrutura jurídica da Comunidade Internacional apontando o aparecimento da ZEE como paradigma desta realidade (BASTOS, F. Loureiro. 1993, pp. 23 a 29).
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Chile, Equador e Peru quando, em 18 de Agosto de 1952, assinaram um documento que ficou conhecido como "Declaração de Santiago", que criou uma zona de "soberania e jurisdição"(307l para lá das respectivas costas até uma distância mínima de 200 M. Naquela data os regimes das zonas marítimas aplicáveis às águas adjacentes aos Estados costeiros assentavam no costume internacional. Apesar de não existir um valor uniforme internacionalmente aceite para a largura do mar territorial, estava desde há muito consolidado o regime de liberdades do alto mar, existente para lá do limite exterior do mar territorial, que incluíam, entre outras, as liberdades de navegação e pesca. O regime decorrente da Declaração de Santiago pretendeu colocar sob "soberania e jurisdição" dos referidos Estados áreas de alto mar com uma largura 50 vezes superior às 4 M reclamadas nessa época por muitos Estados, entre os quais, a Noruega. As reivindicações de áreas de alto mar para a soberania dos Estados não ficaram por aqui. A Convenção de Genebra sobre o Alto Mar, de 1958 (CGAM) 0308 veio definir, no artigo 1°, o alto mar como compreendendo todas as partes do mar que não pertencessem ao mar territorial ou às águas interiores dos Estados. O artigo 2° estabeleceu, expressamente, para esta zona marítima um conjunto de liberdades entre as quais se encontra a liberdade de pesca. A partir da II Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, em 1960, alguns Estados começaram a reclamar uma zona exclusiva de pesca com 12 M para lá das linhas de base utilizadas para medir a largura do mar territorial, mas independente deste, em contradição com o estabelecido nas disposições anteriormente mencionadas da CGAM. Em 1974 no Fisheries Jurisdiction Case, o TIJ considerou que esta prática já estava suficientemente consolidada como costume internacional ao referir que "Dois conceitos cristalizaram-se nos anos mais recentes como costume internacional em resultado do consenso geral revelado nessa Conferência. O primeiro é o conceito de zona de pesca, a área na qual um estado pode reclamar jurisdição exclusiva sobre as pescas independentemente do seu mar territorial; a extensão dessa zona de pesca até ao limite de 12 milhas das linhas de base parece agora como geralmente aceite. O segundo é o conceito de direitos preferenciais de pesca nas águas adjacentes a favor do Estado costeiro numa
307 Nos parágrafos II e III da Declaração pode ler-se: "II) Como consecuencia de estas hechos, los Gobiernos de Chile, Ecuador y Peru proclaman como norma de su politica internacional maritima, la soberanía y jurisdicción exclusivas que a cada uno de ellos corresponde sobre el mar que bana las costas de sus respectives países, hasta una distancia mínima de 200 millas marinas desde las referidas costas. III) La jurisdicciôn y soberanía exclusivas sobre la zona marítima indicada incluye también la soberanía y jurisdicciôn exclusivas sobre el suelo y subsuelo que a ella corresponde." Documento n. 0 14758, CHILE, ECUADOR e PERU, Declaration on the maritime zone. Signed at Santiago on 18 August 1952. Disponível para consulta em http:I I treaties.un.orgl . 308 A CGMTZC encontra-se publicada no Diário da República I Série, N. 0 177, de 3 de Agosto de 1962. Também contida em MARTINS, A. D'Oliveira. 2000, pp. 27 a 39. Lusíada. Direito. Lisboa, n .0 8 I 9 (2011)
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situação de especial dependência relativamente às pescas costeiras" c309l(310l. Esta área foi qualificada como um tertium genus entre o mar territorial e o alto mar "The concept of a 12-mile fishery zone, referred to in paragraph 52 above, as a tertium genus between the territorial sea and the high seas"C311 l. Mas a ofensiva ao regime do alto mar não ficou por ali. A ZEE como conceito autónomo foi avançado pela primeira vez pelo Quénia no Asian-African Legal Consultative Committee, em Janeiro de 1971, um ano antes da criação do Sea-bed CommitteeC312 lC313 l, que veio a constituir o embrião da III Conferência. Não obstante, a partir do final dos anos 70 muitos Estados, entre os quais PortugalC314l e os EUAC 315l, declararam ZEE o que, conjuntamente com a quase completa ausência de protestos, levou a que muitos autores defendessem que a ZEE tinha passado a integrar o costume internacional. Efectivamente esta qualificação só veio a ser declarada pelo TIJ na decisão do Libyan Arab Jamahiriya/Malta Case, em 1985: "Na perspectiva do Tribunal é incontestável que, apesar desses preceitos, a definição de uma zona económica exclusiva, com a sua regra legitimadora em razão da distância, é demonstrada pela prática dos Estados como tendo-se tornado parte do direito costumeiro." C316lC317l. Pela contribuição que teve para a uniformização da prática internacional relativa à ZEE, merece especial relevo a Resolução do Conselho, de 3 de Novembro 309
310
Caso da Jurisdição das Pescas entre o Reino Unido e a Islândia [Fisheries Jurisdiction (United Kingdom v. Iceland), Merits, Judgment, I.C.J. Reports 1974, p. 3.], julgamento de 25 de Julho de 1974. Citação no parágrafo 52. Versão original: "Two concepts have crystal/ized as customary law in recent years arising out
of the general consensus revealed at that Conference. The first is the concept of the fishery zone, the area in which a State may claim exclusive fishery jurisdiction independently of its territorial sea; the extension of that fishery zone up to a 12-mile limit frorn the base/ines appears now to be generally accepted. The second is the concept of preferential rights offishing in adjacent waters in favour of the coas tal State in a situation of special dependence on its coas tal fisheries". 311 Ibid., parágrafo 54. 312 Designação abreviada do Committee on the Peaceful Uses of the Sea-bed and the Ocean Floor Beyond the Limits of National Jurisdiction. 313 CHURCHILL, R. R. e LOWE, A. V.. 1999, p. 160. 314
Lei n. 33/77, de 28 de Maio (Lei 33/77), artigos 2° e ss. Publicada no Diário da República, 1a Série, N. 0 124, de 28 de Maio de 1977. Fixa a largura e os limites do mar territorial e estabelece uma zona económica exclusiva de 200 milhas do Estado Português. Também contida em MARTINS, A. D'Oliveira. 2000, pp. 429 a 433. 315 Declaração Presidencial n. 0 5030, de 10 de Março de 1983, efectuada pelo presidente Ronald Reagan. Limits in the Seas n. 0 36. National Claims to Maritime Jurisdictions. 8'h Revision, p.79. 316 Caso da Plataforma Continental entre a Líbia e Malta [Continental Shelf (Libyan Arab Jamahiriya/Malta), Judgment, I.C.J. Reports 1985, p. 13], julgamento de 3 de Junho de 1985. Citação no parágrafo 34. 317 Versão original: "It is in the Court's view incontestable that, apartfrom those provisions, the 0
institution of the exclusive economic zone, with its rule on entitlement by reason of distance, is shown by the practice of 5 tates to have become a part of custommy law".
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de 1976, também conhecida por Resolução de Haia< 318l. Esta Resolução respeitava a alguns aspectos externos da criação no âmbito da Comunidade Económica Europeia de uma zona de pesca que se estende até 200M, a partir de 1 de Janeiro de 1977. Nela pode ler-se "Convém que os Estados-membros alarguem, através de uma acção concertada, os limites das suas zonas de pesca para 200 milhas a partir de 1 de Janeiro de 1977, ao largo das suas costas bordejando o Mar do Norte e o Atlântico Norte, sem prejuízo de uma acção da mesma natureza em relação às outras zonas de pesca sob a sua jurisdição, nomeadamente, o Mediterrâneo. Convém igualmente que, a partir dessa data, a exploração de recursos da pesca nessas zonas, por navios de pesca de países terceiros, seja regulada através de acordos entre a Comunidade e os países terceiros interessados". Dos exemplos anteriormente apontados resulta claro um comportamento consistente por parte dos Estados costeiros e de organizações regionais no sentido de seguirem práticas internacionais das quais resultariam a diminuição de liberdades do alto mar contidas na CGAM, designadamente a liberdade de pesca, numa extensão que foi variando ao longo dos anos e que se consolidou nas 200M conferidas pela CNUDM à ZEE. Esta prática, que à época da CGAM era claramente contrária a esta convenção, passou todas as etapas de formação normativa até vir a constar posteriormente em regime convencional.
7.4.2. As Decisões tomadas no âmbito das reuniões dos Estados Partes da CNUDM
Algumas decisões tomadas no âmbito das Reuniões dos Estados Partes da CNUDM (Meetings of the States Parties to the 1982 United Nations Convention on the Law of the Sea) merecem, igualmente, uma breve referência pela sua natureza e importância. A CNUDM prevê nos artigos 312° a 314° a possibilidade de serem efectuadas emendas ao texto convencional segundo um procedimento cuja simplicidade formal está relacionada com o objecto em concreto da alteração em causa. Assim, as emendas podem seguir um procedimento simplificado quando estejam em causa alterações que não se relacionem com actividades na Área. Tendo já decorrido 10 anos sobre a entrada em vigor da Convenção<319l, qualquer Estado Parte pode propor, mediante comunicação escrita ao Secretário-Geral da Autoridade ou ao Secretário-Geral das Nações Unidas conforme respeitem ou não a actividades na Área, incluindo a Secção 4 do Anexo VI, emendas concretas àCNUDM. Em princípio, a existência destes procedimentos afastaria a possibilidade de a Convenção ser alterada por outros meios que não fossem os anteriormente re-
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CHURCHILL, R.R. 1987. EEC Fisheries Law. Dordrecht: Martinus Nijhoff Publishers, p. 69. 319 Facto que, segundo o artigo 312°, n. 1 ab initio, constituem um pressuposto essencial para a realização de emendas. 0
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feridos. Independentemente da intenção que possa ter subjazido à produção das normas convencionais supra referidas, as decisões tomadas nas 11 a( 320i e 18a(321 i Reuniões dos Estados Partes da CNUDM constituem de facto, materialmente, emendas ao texto convencional. É unanimemente aceite que todos estes documentos, que foram aprovados por unanimidade (322i, constituem instrumentos indispensáveis à aplicação da CNUDM nas partes a que dizem respeito. Os documentos SPLOS/72 e SPLOS/183 configuram-se como emendas ao artigo 4° do Anexo II da CNUDM na parte que se refere ao prazo de 10 anos conferido aos Estados costeiros para que entreguem à Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC) a respectiva submissão onde constem os limites da plataforma continental para lá das 200 M. A norma anteriormente referida começou por ser modificada pelo documento SPLOS/72 no sentido de o prazo de 10 anos ser contado a partir da data de publicação do documento CLCS/11 (Scientific and Technical Guidelines of the Commission on the Limits of the Continental Shelj). Assim, os Estados que tinham ratificado a CNUDM antes de 13 de Maio de 1999 viram esta data como a referência a partir da qual o prazo de 10 anos passava a ser contado. Em 2008, dando corpo às dificuldades que foram manifestadas ao longo dos diversos encontros dos Estados Partes por muitos Estados costeiros, em particular os Estados em vias de desenvolvimento, começou a criar-se na comunidade internacional a convicção de que mesmo a data fixada pelo documento SPLOS/72 não era suficiente para que os Estados que pretendessem levar a cabo os trabalhos necessários ao estabelecimento dos limites da plataforma continental para lá das 200 M e cumprir os prazos a que estavam adstritos. Neste sentido, a alínea a) do n. 1 do documento SPLOS I 183 veio referir que "É entendido que o period referido no artigo 4° do Anexo II à Convenção e a decisão contida no document SPLOS/72, parágrafo (a), podem ser satisfeitos pela submissão ao Secretário-Geral de uma informação preliminar indicativa dos limites exteriores da plataforma continental para além das 200 milhas náuticas e uma descrição do estado da preparação e data prevista para a realização da submissão em conformidade com o requerido no artigo 76° da Convenção e com as Regras de Procedimento e as Normas Técnicas e Cientificas da Comissão de Limites da Plataforma Continental;"(323i. 0
°Cfr. documento SPLOS/72, de 29 de Maio de 2001.
32
321 322
Cfr. documento SPLOS/183, de 20 de Junho de 2008. A propósito do consenso D' Amato refere "[C]onsensus in a sense is a replacement for cus-
tom. For it is ele ar that if there is an international "consensus" that an alleged rule is in fact a rule of internationallaw, then that's the end of the matter! What we mean by a rule of internationallaw is a rule that has achieved an international consensus as to its validity." D' AMATO, A. 2004. International Lmv Sources. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, p.185. 323 Versão original: "[I]t is understood that the time period referred to in article 4 of annex II to the Convention and the decision contained in SPLOS/72, paragraph (a), may be satisfied by submitting to the Secretary-General preliminary information indica tive of the ou ter limits of the continental shelf beyond 200 nau ti cal miles and a description of the status of preparation and intended date of making a submission in accordance with the requirements of article 76 of the
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O artigo 4° do Anexo II da CNUDM refere que os Estados que tiverem intenção de estabelecer o limite exterior da sua plataforma continental além das 200M devem fazê-lo logo que possível, mas em qualquer caso dentro dos 10 anos seguintes à entrada em vigor da Convenção para esse Estado. A primeira condicionante temporal para o Estado costeiro cumprir esta obrigação é "logo que possível". Quer isto dizer que, se for possível o Estado costeiro realizar os trabalhos necessários à preparação e apresentação da submissão à CLPC em 3 anos, este seria o seu limite temporal. O prazo de 10 anos referido na CNUDM não prejudica, teoricamente, o primeiro limite materializado pela expressão "logo que possível". O certo é que, em termos práticos, apenas cada um dos Estados conhece quais são efectivamente as suas capacidades para apresentar a sua submissão. Os 10 anos constituíam o limite material de controlo pela comunidade internacional, bem como uma referência importante para a delimitação da Área. As decisões contidas nos documentos SPLOS/72 e SPLOS/183 vieram, de facto, consubstanciar a transformação de um prazo de 10 anos num espaço de tempo virtualmente sem limite. Acresce ainda que, embora se possa entender que não se trata de uma emenda relativa exclusivamente a actividades na Área, tem com estas, no mínimo, uma relação indirecta uma vez que está em causa a fixação definitiva dos limites daquela zona marítima, que é residual relativamente às actividadesC324l respeitantes aos recursosC325l do leito e subsolo que fica para lá das jurisdições nacionais. À semelhança do anteriormente referido relativamente à ZEE, também neste aspecto existem autoresC326l que defendem o aparecimento de uma nova regra de costume internacional no sentido de permitir a alteração do texto da CNUDM através de decisões tomadas no âmbito das reuniões dos Estados Partes, em contradição com o disposto nas regras convencionais existentes para esse efeito. SILVA CUNHA eM. Assunção VALE PEREIRA apontam, com base na decisão do Nicaragua v. United States of América CaseC 327l, como modo de revelação de costume internacional, a participação e votação de determinadas resoluções, designadamente as que definem regras e princípios em determinadas matérias, em órgãos de organizações internacionais e as suas atitudes face a elasC328l. Pela importância das matérias em causa que estiveram na base das decisões tomadas nos 11 o e 18° Convention and with the Rules of Procedure and the Scientific and Technical Guidelines of the Commission on the Limits of the Continental Shelf;".
No sentido indicado na CNUDM, artigo 1°, n. 0 1, alínea 3. Idem, artigo 133°, alínea a). 326 CHURCHILL, R. R .. 2005, pp. 91 a 143. 327 Caso das Actividades Paramilitares entre a Nicarágua e os Estados Unidos da América 324
325
[Military and Paramilitary Activities in and against Nicaragua (Nicaragua v. United States of Arnerica), Merits, Judgment, I.C.J. Reports 1986, p. 14], julgamento de 27 de Junho de 1986. Parágrafo 188. 328 SILVA CUNHA, J. e VALE PEREIRA, M. A .. 2004. Manual de Direito Internacional Público. 2a ed .. Coimbra: Livraria Almedina, pp. 312 e 313.
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Encontro dos Estados Partes, dos quais resultaram os documentos acima referidos, e ainda pelo elevado consenso relativamente às decisões então tomadas, afigura-se como muito pouco provável que as regras nele contidas venham no futuro a ser questionadas. Para além deste aspecto, fica ainda a convicção de que alterações à CNUDM, em especial as que tenham a ver com os órgãos directamente geridos nos encontros dos Estado Parte da Convenção, i.e., a CLPC e o Tribunal Internacional para o Direito do Mar (ITLOS), podem ser efectuadas nos referidos encontros desde que exista unanimidade sobre as decisões a tomar.
7.4.3. O caso especial dos conceitos indeterminados relativos ao traçado das linhas de fecho e de base recta Embora com algumas semelhanças com os exemplos anteriormente apontados, o que se tem vindo a verificar com os traçados das LBR, das linhas de fecho das baías e com o traçado de LBA em arquipélagos pertencentes a Estados não arquipelágicos é algo diferente e pode ser dividido, para efeitos da presente análise, em duas situações distintas. A primeira situação é referente à prática dos Estados no que respeita à interpretação dos conceitos indeterminados contidos no artigo 7° da CNUDM relativos ao traçado de LBR. Numa segunda situação consta a prática dos Estados no que respeita à aplicação dos artigos 10°, 46° e 47° da CNUDM referentes, respectivamente, ao traçado de linhas de fecho nas baías jurídicas e de LBA. Relativamente à primeira situação é possível afirmar que a prática dos Estados tem seguido uma via que assenta numa interpretação extensiva das regras estabelecidas convencionalmente para o traçado de LBR de modo consistente e generalizado, facto que tem sido uniformemente reconhecido pela doutrina internacional. Não existindo uma interpretação internacionalmente aceite para os referidos conceitos no que respeita ao seu sentido e alcance, neste nível não poderá falar-se numa prática objectivamente contrária aos textos convencionais porque estes não são precisos. É, por isso, difícil, senão mesmo impossívet apurar a partir de quando é que determinada prática ultrapassa as balizas convencionais tornando-se inválida por violação do princípio pacta sunt servanta para os Estados que são parte da CNUDM ou da CGMTZ0329l. Assim, o que está em causa não é uma prática objectivamente contrária ao texto do artigo 7° da CNUDM, porque não existe consenso internacional sobre o que isso efectivamente significa, mas antes uma prática que se baseia numa interpretação 329
Os efeitos decorrentes de um tratado ou convenção internacionais constituem uma limitação voluntária à soberania dos Estados que são partes (SCHWARZENBERGER 1965, International "ius cogens". Texas Law Review. 3a Ed. Vol. I, pp. 445 a 478, p. 123, citado por ROCHA António S.. 2007. Direito Internacional -Fases e Fontes. Maia: Vida Económica, p. 177). Em muitas situações, ao traçarem os respectivos sistemas de LBR os Estados comportam-se como se estivessem desonerados de qualquer dever, parecendo actuar livremente em função dos seus interesses.
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extensiva desses mesmos conceitos. Relativamente aos Estados que não são parte da CNUDM, nem da CGMTZC, a questão é ainda mais complexa, uma vez que não se conhece com exactidão quais as práticas que já se encontram reconhecidas como costume internacional. Afigura-se, assim, que será possível afirmar com alguma segurança que, entre os conceitos indeterminados contidos no artigo 7° da CNUDM, algumas interpretações, e respectiva aplicação, seguidas pelos Estados costeiros parecem de tal modo consolidadas que dificilmente poderão no futuro vir a ser consideradas inválidas. Entre estas parecem estar as que permitam aos traçados cumprir a finalidade do artigo 7° da CNUDM, tal como é entendida pelo Offíce for Ocean Affairs and Law of the Sea<330 l, bem como algumas das regras interpretativas defendidas pelo Departamento de Estado Norte Americano, designadamente, as que permitem aferir se determinada característica da costa constitui um recorte profundo (deeply indented) pela avaliação da razão de penetração<331 l ou a aceitabilidade de LBR com comprimentos até 48 M<332l, desde que se considerem verificadas as restantes condições. No que respeita à segunda situação, tratando-se normalmente de normas que consubstanciam testes de verificação objectiva será, em princípio, mais fácil de aferir quando é que determinada prática viola as disposições convencionais. É relativamente fácil de verificar quando determinada reentrância da costa cumpre o teste do semicírculo, se o comprimento das LBA está dentro dos valores estabelecidos, se um Estado é arquipelágico ou não nos termos do artigo 46°, alínea a), ou qual a razão entre as superfícies marítima e terrestre de um arquipélago. Também nestes casos não deixa de relevar tudo o que já foi referido como prática internacional seguida por muitos Estados, e respectivas consequências jurídico-internacionais. Não é possível afirmar com segurança se os factos relativos à prática dos Estados no que respeita ao traçado de LBR são ou não suficientes para que se considere verificado o elemento objectivo necessário à constituição do costume internacional<333l. Importa ter em conta que a interpretação extensiva dos conceitos contidos no artigo 7° da CNUDM levada a cabo por um número significativo de Estados costeiros, designadamente, no que respeita ao comprimento máximo admissível para uma LBR e ao pouco rigor com que é dado como verificada a existência de recortes profundos e reentrâncias, prejudica claramente as regras relativas às baías jurídicas, contidas no artigo 10° da CNUDM, retirando-lhes o efeito útil. Face ao anteriormente referido, parece legítimo questionar se determinado traçado ao afastar-se das regras, mesmo indeterminadas, do artigo 7° da CNUDM
°Cfr. 5.2 supra.
33
Cfr. 5.4.2 supra. Cfr. 5.6.4 supra. 333 Prática reiterada, uniforme, generalizada e consistente. 331
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é só por esse facto contrário ao Direito Internacional. Somos levados a crer que a prática dos Estados desde 1951 desempenha um papel fundamental na resposta a esta questão, tanto pela via da interpretação dos conceitos indeterminados em causa, como pelo estabelecimento de práticas consistentes que vão no sentido de quebrar quase 60 anos de cristalização de um regime porventura desajustado aos dias de hoje. Se assim fm~ o facto de um traçado não se enquadrar no texto do artigo 7" da CNUDM pode não ser necessariamente sinónimo de ser contrário ao Direito Internacional. Para um esclarecimento definitivo desta matéria importa aguardar por uma decisão dos tribunais internacionais. Existem Estados como a Colômbia, o Equador e o Irão, que não são parte da CGMTZC nem da CNUDM, cujos traçados de LBR já foram objecto de protestos e críticas internacionais. Os traçados destes dois Estados apresentam, praticamente, os elementos mais polémicos que um traçado de LBR pode conter, tais como, comprimento alegadamente excessivo de LBR, que encerram reentrâncias que não são profundas e, no caso do Equador, um traçado à volta de ilhas que não se enquadra no artigo 46" e dificilmente se conformará com o artigo 7". Uma decisão por parte de tribunais internacionais relativamente aos traçados de qualquer um destes Estados constituirá uma excelente oportunidade para a determinação das práticas que são já consideradas como costume internacional.
PARTE II- O CASO PARTICULAR DAS LINHAS DE FECHO e de BASE RECTA PORTUGUESAS
8. Aspectos gerais 8.1. Legislação referente às linhas de base A linha de base normal, referência a partir da qual é medida a largura do mar territorial, começou por ser fixada na legislação portuguesa pela Lei n." 2130, de 22 de Agosto de 1966 (Lei 2130/66)(334!, como sendo a linha de baixa-mar ao longo da costa, tal como vem indicada nas cartas náuticas( 335l oficialmente reconhecidas para esse fim pelo Estado Português(336l. Esta definição de linha de base normal veio a ser reiterada na Lei 34/2006(337!. 334
Publicada no Diário da República 1" Série, N." 194, de 22 de Agosto de 1966. Promula as bases sobre a jurisdição do mar territorial e a zona contígua. Também contida em MARTINS, A D'Oliveira. 2000, pp. 425 a 427. 335 Seguindo a designação da versão em língua portuguesa do artigo 3" da CGMTZC, a Lei 2130 refere-se a cartas marítimas. 336 Lei 2130, Base I. 337
LEI 34/2006, ARTIGO 5°, N.o 1.
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8.2. Legislação referente às linhas de fecho e de base recta Dando cumprimento ao n. 0 2, da Base I, da Lei n. 0 2130, foi publicado o Decreto-Lei n. 0 47771, de 27 de Junho de 1967 (DL 47771/67)C338l, onde constaram as primeiras LFBR portuguesas, tanto do continente, como da Guiné, Angola e Moçambique. A definição das LFBR e de fecho tal como existem hoje na costa continental portuguesa e nos arquipélagos dos Açores e da Madeira, consta no DL 495/85, que revogou expressamente o DL 47771/67. As LFBR definidas pelo DL495/85 estão repartidas por cinco quadros numerados de I a V, correspondendo ao I a costa de Portugal continental, ao II as costas do arquipélago da Madeira, aos III, IV e V, respectivamente, as costas dos grupos oriental, central e ocidental do arquipélago dos Açores.
8.3. Aspectos técnicos relativos às linhas de base portuguesas 8.3.1. Linha de baixa-mar cartográfica Embora consistindo num desenho meramente ilustrativo, a Figura 1 contém as linhas e cores representativas das áreas junto à costa, em conformidade com as normas estabelecidas pela OHF339l, tal como estão indicadas nas cartas n áuticas portuguesas. Conforme referido supraC340l, não existia à data da publicação da Lei 2130, representação da linha de baixa-mar nas cartas náuticas portuguesas, uma vez que a linha de sonda reduzida zero nelas representada corresponde ao zero hidrográfico e n ão à linha da baixa-mar mínima. A linha de costa indicada nas cartas náuticas portuguesas é a correspondente à linha da preia-mar máxima correspondendo à linha 1 da Figura 1, e não à linha de baixa-mar mínima que seria a necessária para dar cumprimento ao artigo 5°, n. 0 1, da CNUDM. Quer isto dizer que, desde 1966, a lei portuguesa define a linha de base normal com base numa referência que, apesar de formalmente conforme com o estabelecido nos artigos 3° da CGMTZC e 5° da CNUDM, nunca chegou a estar materializada de modo a que possa servir referência. Em termos práticos, a diferença num plano horizontal entre a localização da linha de costa marcada nas cartas náuticas e a localização da linha da baixa-mar mínima, se estivesse marcada, não é significativa quando comparada com a distância das LFBR a terra,
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Publicado no Diário da República, 1• Série, N. 0 148, de 27 de Junho de 1967- Define as linhas de fecho e de base recta que, na costa continental europeia e nas províncias da Guiné, Angola e Moçambique, suplementam a linha de base estabelecida no n. 0 1 da Base I da Lei n. 2130, de 22 de Agosto de 1966. 339 Cfr. INTERNATIONAL HYDROGRAPHIC ORGANIZATION. 2010, Regulations of the lHO for International (INT) Charts and Chart Specifications of the lHO, 4•• ed., Monaco. 34 °Cfr. 3.4 supra. 0
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situando-se na ordem de algumas dezenas de metros.
8.3.2. Imprecisões do traçado das linhas de fecho e de base recta Ao analisar o traçado das LFBR definido pelo DL 495 I 85 importa ter presente alguns aspectos técnicos inerentes ao estado da arte, à época, da hidrografia e cartografia em Portugal e nos restantes Estados( 341 l. No início dos anos oitenta não existiam sistemas de informação geográfica (SIG)( 342l, e o Global Positioning System (GPS) estava numa fase de desenvolvimentoC343l. O traçado das LFBR portuguesas foi efectuado sobre as cartas náuticas de grande escala existentes à época, importando os erros inerentes à metodologia. As LFBR são segmentos de recta traçados de e para pontos apropriados sobre a costa, por regra pontos situados sobre a linha de costa representada na carta, ou sobre rochedos existente na proximidade da costa. Os elementos de maior rigor representados nas cartas náuticas são, como já referido( 344l, os respeitantes à segurança da navegação. Acontece, porém, que nem todos os pontos apropriados que servem de base às LFBR constituíam elementos relevantes para efeitos da segurança de navegação, pelo que o rigor cartográfico das extremidades dos segmentos de recta das LFBR não é o desejável para este tipo de representação. A Error! Reference source not found. representa alguns dos pontos da lista de coordenadas contida no Quadro I do DL 495/85, cujo posicionamento relativamente à costa não é o adequado. Um outro aspecto técnico de relevo que esteve subjacente ao traçado das LFBR consistiu na utilização de diversas cartas náuticas construídas a partir de
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Para além das imprecisões resultantes da metodologia da época que se mantêm presentemente, o DL 498/85 continha outros erros, rectificados pela Declaração de 28 de Fevereiro, publicada no Diário da República, 1a série, N." 49, de 28 de Fevereiro de 1986. 342 Embora os primeiros programas informáticos para a gestão e utilização de informática tenham surgido nos anos sessenta, os SIC apenas conheceram desenvolvimento e difusão assinalável a partir do início dos anos noventa. GOMARASCA, M. A .. 2009. Basics of Geomatics. Dordrecht: Springer, p. 10. 343 O primeiro satélite foi lançado em 1972, existindo 24 satélites em 1993. O sistema apenas foi considerado apto para a navegação aérea pela Federal Aviation Agency em 1994. TSUI, J.. 2005. Fundamentais of Global Positioning Systems Receivers-A Software Approach. New Jersey: John Wiley and Sons, Inc., p. 2. 344 Cfr. 3.4 supra.
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vários elipsóides de referência<345l<346l. As imprecisões no traçado inerentes aos aspectos técnicos indicados resultam, essencialmente, num posicionamento incorrecto dos extremos de algumas LFBR relativamente ao ponto relevante, sendo que nalgumas situações a LBR chega mesmo a passar por cima de terra. Apesar de relativamente comum a nível internacional<347l, outro aspecto menos correcto do traçado resulta do facto de algumas partes não constituírem linhas fechadas relativamente a terra, existindo extremidades abertas que não coincidem com nenhuma característica geográfica existente. Independentemente dos aspectos relativos à definição do datum geodésico, o traçado da linha de baixa-mar ao longo da costa portuguesa, tanto no continente, como nos arquipélagos, não origina erros significativos na fixação dos limites exteriores das zonas marítimas que são delimitadas relativamente a eles. Isto resulta do facto de, no que respeita à respectiva largura, as zonas marítimas portuguesas estarem referenciadas às LFBR ou a pontos a partir dos quais são traçadas as LFBR, correspondentes, normalmente, a zonas da costa com desenvolvimento vertical acentuado (promontórios, falésias), pelo que as variações da referência vertical não se fazem sentir de modo significativo, por nestes casos a referência ser fixa.
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O elipsóide de revolução constitui uma aproximação matemática à forma física da Terra, que é irregular, normalmente designada por geóide. O elipsóide permite a realização de cálculos matemáticos, uma vez que se trata de uma forma perfeitamente regular, SEEBER, G .. 2003. Satellite Geodesy. Berlin: Walter de Gruyter GmbH, p. 26, CARLETON, C., e SCHOFIELD, C.. 2001. Developments in the Technical Determination of Maritime Space: Charts, Datums, Baselines, Maritime Zones and Limits. Durham: International Boundaries Research Unit, p. 5. Muitos Estados escolheram para as suas áreas elipsóides locais tendo em vista conseguir o modelo matemático que melhor se adaptasse ao geóide na sua área de interesse. Desta situação resultavam desconformidades quando eram comparadas cartas elaboradas a partir de elipsóides diferentes, CARLETON, C., e SCHOFIELD, C.. 2001, pp. 6 a 8. 346 As referências geodésicas das cartas náuticas respeitantes às listas de coordenadas eram as seguintes: LFBR do continente - datum Lisboa; LFBR do arquipélago dos Açores - datum S. Bráz para o grupo oriental, datum Base SW para o grupo central e datum Observatório 66 para o grupo ocidental; LFBR do arquipélago da Madeira - datum Base SE. Esta situação não é exclusiva do traçado português. A representação dos traçados de muitos dos Estados, tal como estão publicados em documentos internacionais (v.g. , Law of the Sea Bulletin) ou nas bases de dados existentes no sítio das Nações Unidas (http: // www.un.org/ Depts/ los/ LEGISLATIONANDTREATIES/ regionslist.htm) apresentam igualmente erros que resultam, na maioria dos casos, da referência usada. Nalguns casos, as LFBR chegam mesmo a passar por cima de terra (Limits in the Seas n. 0 106. Developing Standard Guidelines for Evaluating Straight Baselines, p. 7). 347 Cfr. entre outras, Figura 18 (Vietname), Figura 19 (Coreia do Sul) e Figura 21 (Myanmar). Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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9. Influência do traçado actual das linhas de fecho e de base recta nos limites das zonas marítimas portuguesas Apesar de já se encontrar estabelecida na CGMTZCl348l e na CNUDM, a Lei n. 34/2006, veio reiterat~ expressamente, a regra segundo a qual os limites exteriores das zonas marítimas devem ser referenciados em relação às linhas de baseC349l. Nesta conformidade, o modo como as LFBR são traçadas poderá ter influência directa no limite exterior de cada uma das zonas marítimas e, consequentemente, nos espaços de mar que ficam sob soberania ou jurisdição do Estado costeiro, no caso concreto do presente capítulo, de Portugal. O regime anterior à Lei 34/2006 respeitante a cada uma das zonas marítimas não era uniforme relativamente a este aspecto. No caso do mar territorial, a lei portuguesa fixava a respectiva largura como sendo 12 M, não indicando de modo directo e explícito, ao contrário do que sucedia com a zona económica exclusiva (ZEE)C350l, a referência a partir da qual essa distância devia ser contadaC351 l. A zona contígua não tinha existência legal expressa e a plataforma continental, seguindo a fórmula da Convenção de Genebra sobre a Plataforma Continental, de 1958, (CGPC)C352lC 353l, ia até onde a profundidade das águas suprajacentes permitisse a exploraçãoC354l. 0
9.1. Águas interiores, mar territorial e zona contígua 9.1.1. Portugal continental Observando o Quadro I do DL 495/85 e a Figura 29C 355l verifica-se que o traçado das LFBR do continente é constituído por 9 segmentos, 6 deles com comprimentos superiores a 24M, cobrindo uma elevada percentagem da costa (cerca de 73 %). Duas LFBR estão traçadas nas reentrâncias onde desaguamos rios Tejo e Sado, 4 LFBR estão traçadas de, para, e entre um conjunto de ilhas (Farilhões, Forcada e Berlenga) e as outras 3 LFBR encerram reentrâncias pouco acentuadas Artigo 24°, n." 2. Lei n. 34/2006, artigos 6°, 7°, 8° e 9°. 350 Lei 33/77, artigo 2°, n. 0 1. 351 Ibid., artigo 1". O artigo 2°, n. 0 1, desta lei menciona, ao apontar o limite interior da ZEE, que a largura do mar territorial se mede em relação às linhas de base. 352 Artigo 1o. alínea a). 353 A CGPC encontra-se publicada no Diário da República I Série, N. 0 177, de 3 de Agosto de 1962. Também contida em MARTINS, A. D'Oliveira. 2000, pp. 51 a 56. 354 Decreto-Lei n. 49.369, de 11 de Novembro, artigos 1°, n. S 1 e 2.Cfr. GUEDES, A. M .. 1998. Direito do Mar. 2a ed. Coimbra: Coimbra Editora, p. 196 e ss. 355 A escala utilizada na Figura 29 não permite a observação de todas as LFBR traçadas entre as várias ilhas do Arquipélago das Berlengas. 3 18 ' 349
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da costa. As áreas totais acrescidas de soberania e jurisdição que resultam da utilização do traçado das LFBR estabelecidas no DL 495/85 em lugar da linha de costa correspondem a 1.883,2 M 2 (6.459,5 km2)(356l para as águas interiores, 1.171,4 M 2 (4.018,2 km2) para o mar territorial e 824,1 M 2 (2.826,3 km2) para a zona contígua. Os limites exteriores das águas interiores, do mar territorial e da zona contígua de Portugal continental encontram-se, igualmente, representados na Figura 29.
9.1.2. Arquipélago dos Açores O grupo oriental do arquipélago dos Açores, representado na Figura 30, está encerrado por 4 LFBR, envolvendo as ilhas de S. Miguel, de Santa Maria e as Formigas. Apenas uma LFBR têm comprimento inferior a 24 M, tendo a maior delas cerca de 64 M. O traçado das LFBR relativo ao grupo central do arquipélago, Figura 31, compreende 12linhas, divididas em 3 conjuntos. O primeiro abrange as ilhas do Pico, Faial e S. Jorge, tendo a maior das LFBR deste conjunto tem cerca de 20 M de comprimento. Cada um dos outros dois conjuntos é constituído por LFBR, traçadas apenas em cada ilha, Terceira e Graciosa. Destas últimas, a LFBR com maior comprimento situa-se ilha Terceira e tem cerca de 6 M. A Figura 32 mostra o traçado do grupo ocidental, que é constituído por duas LFBR, cujos comprimentos são cerca de 12 e 15 M. As áreas totais acrescidas de soberania e jurisdição originadas pelo traçado das LFBR estabelecidas no DL 495/85 em substituição da linha de base normal variam muito consoante os grupos de ilhas. O grupo oriental é o que apresenta maiores áreas de soberania e jurisdição acrescidos, resultantes do traçado das LFBR, correspondendo a 1.327,1 M 2 (4.551,8 km 2) para as águas interiores, 715,3 M 2 (2.453,3 km2) para o mar territorial e 472,0 M 2 (1.618,8 km2) para a zona contígua. Nos grupos central e oriental, representados, respectivamente n a Figura 31 e Figura 32, estes valores são substancialmente mais reduzidos, sendo no grupo central, 434,0 M 2 (1488,4 km2) para as águas interiores, 52,7 M 2 (180,9 km2) para o mar territorial e 25,2 M2 (86,5 km2) para a zona contígua. No grupo oriental as áreas em causa são 58,5 M 2 (200,5 km2) para as águas interiores, 22,4 M 2 (77,0 km2) para o mar territorial e 11,7 M 2 (40,0 km 2) para a zona contígua.
9.1.3. Arquipélago da Madeira O traçado das LFBR do arquipélago da Madeira, representado na Figura 33, é constituído por 11 segmentos divididos em 2 conjuntos. O primeiro, que conta com uma LFBR de comprimento superior a 24 M, compreende 6 LFBR entre as 356
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ilhas da Madeira e das Desertas, encerrando um espaço de águas entre ilhas. O segundo conjunto, cuja LFBR de maior comprimento tem cerca de 6 M, desenvolve-se à volta da ilha de Porto Santo. As áreas totais acrescidas de soberania e jurisdição originadas pelo traçado das LFBR estabelecidas no DL 495/85 em lugar da linha de base normal no arquipélago da Madeira correspondem a 263,1 M 2 (902,5 km2) para as águas interiores, 109,2 M 2 (374,6 km2 ) para o mar territorial e 59,4 M 2 (203,9 km 2 ) para a zona contígua. Os limites exteriores destas zonas marítimas estão representados na Figura 33.
9.2. Zona Económica Exclusiva No que respeita em particular à ZEE, após a entrada em vigor do regime estabelecido pela Lei n. 0 34/2006 os limites exteriores de cada uma das subáreas desta zona marítima mantêm-se transitoriamente os definidos pelo Decreto-Lei n. 0 119/78, de 10 de Maio (DL 119/78Y357l( 358l. Apesar de este decreto-lei ter sido expressamente revogado pela Lei 34/2006(359!, os artigos 3°, 4°, 5° e 6° mantêm-se em vigor até à publicação do diploma previsto no n. 0 1 do artigo 12° da referida Lei. Os limites exteriores da ZEE contidos no DL 119/78 são os definidos pela "linha externa"(360l traçada relativamente a pontos relevantes em terra constantes Publicado no Diário da República, 1" série, N. 0 125, de 1 de Junho 1978- Define a Zona Económica Exclusiva e fixa os seus limites geográficos. Também contido em MARTINS, A. D'Oliveira. 2000, pp. 435 a 439. 358 Sendo o DL 119/78 anterior ao próprio traçado da LFBR, todas as questões técnicas indicadas em 8.3.2 tiveram igualmente reflexo no traçado dos limites exteriores das subáreas da ZEE portuguesa. Na submissão portuguesa entregue à Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC) em 11 de Maio de 2009, na qual consta o limite exterior da plataforma continental portuguesa situado além das 200 M, foi utilizada a tecnologia mais recente no que respeita à representação geodésica das áreas e distâncias dos elementos de relevo que interessam à respectiva apresentação junto da CLPC. A determinação do limite exterior da plataforma continental para lá das 200M implica, num primeiro passo, a determinação das linhas que se situam a 200 M geodésicas das linhas de base portuguesas. Comparadas as linhas das 200 M geodésicas com as definidas no DL 119/78 verifica-se, em rigor, que estas normalmente não coincidem. Uma das localidades onde essa diferença é mais significativa situa-se ao extremo Sudoeste da mediana Portugal continental/Marrocos, junto às 200M, e ao extremo Nordeste da mediana do Arquipélago da Madeira/Marrocos, igualmente junto às 200M. Nestas áreas a diferença entre as 200 M geodésicas e a correspondente linha traçada em conformidade com o DL 119/78 chega a ter uma diferença de cerca de 5 M. Isto significa que falar em 200M geodésicas ou limite exterior da ZEE não é, em rigm~ a mesma coisa. 359 Lei 34/2006, artigo 21°, al. d). 360 DL 119/78, artigo 1°, al. c): "[l]ugar geométrico dos pontos sobre o mar cuja distância aos pontos mais próximas das linhas de base é a distância especificada, lugar que se obtém determinando 357
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nos anexos a este diploma. O modo como é feita a definição dos limites exteriores das diversas subáreas da ZEE no DL 119/78, torna-os independentes do traçado das LFBR uma vez que referencia os limites exteriores de cada uma das subáreas da ZEE a pontos relevantes da costa. Esta é a situação actuat que vigorará enquanto as disposições anteriormente mencionadas se mantiverem em vigor. Presentemente, se não existissem LFBR o limite exterior da ZEE nas diferentes subáreas seria o mesmo. A situação actual poderá modificar-se quando entrar em vigor o diploma mencionado no artigo 12°, n. 0 1, da Lei 34/2006, uma vez que o artigo 8° desta lei refere que as linhas de base são a referência para a determinação do limite exterior da ZEE. Os exemplos que seguidamente se apresentam relativamente a Portugal continental e aos arquipélagos dos Açores e da Madeira, pretendem demonstrar a área acrescida de ZEE que ficará sob jurisdição portuguesa quando entrar em vigor o referido diploma. Da observação das figuras já mencionadas respeitantes às áreas acrescidas de soberania e jurisdição referentes ao continente e aos arquipélagos do Açores e da Madeira pode concluir-se facilmente que, quanto mais longe da costa se situar o limite exterior de determinada zona marítima, menor será a influência das LFBR e, consequentemente, mais reduzidas serão as áreas acrescidas de soberania ou jurisdição. Relativamente ao DL 119/78, importa ainda referir que o mesmo foi objecto de um protesto por parte de Espanha<361 l, que reagiu à definição unilateral por Portugal dos limites entre os dois Estados, contrariamente ao estabelecido no Direito Internacional.
9.2.1. Portugal continental Como se pode verificar na Figura 34, face à configuração geográfica da costa continental portuguesa, o traçado de uma distância de 200 M a partir das LFBR originará um acréscimo de área muito pequeno situado a Oeste do Cabo da Roca, com um valor de @3,5 M 2 (@12 km2), relativamente ao que resulta da aplicação dessa distância aos pontos relevantes da costa previstos no DL 119/78. Essa diferença, que é mínima, apenas é determinável por computação cartográfica e sem efeito prático de relevo.
9.2.2. Arquipélago dos Açores
a envolvente, sobre o mar, de arcos de circunferência de raio igual a essa distância, centrados nas linhas de base;". 361 Nota verbal n. 0 165, de 18 de Agosto de 1978, do Ministério dos Assuntos Exteriores. Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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Ao contrário do que sucede com o arquipélago da Madeira e continente, o arquipélago dos Açores não encontra limites com outros Estados no que respeita ao limite exterior da ZEE, pelo que esta se desenvolve até às 200 M ao redor de todo o arquipélago. No entanto, neste arquipélago o traçado das LFBR induzirá a maior diferença nos limites exteriores da ZEE entre a solução preconizada pelo DL 119/78 e a que, potencialmente, poderá resultar da aplicação da Lei 34/2006, que impõe a referenciação das zonas marítima às LFBR. O DL 495/85 veio incluir um ponto nas Ilhas Formigas no traçado de LFBR, solução que não era contemplada na lista de pontos conspícuos contida no Decreto-Lei n. 0 119/78. Conforme se pode verificar na Figura 35, uma futura utilização efectiva das LFBR de e para as Ilhas Formigas originará o acréscimo de área representada a verde, com uma superfície total de 1.722,0 M 2 (5.906,3 km2), sendo esta a única situação verdadeiramente significativa em valores absolutos de todas as subáreas da ZEE. Nos restantes locais em que existem diferenças, a mais significativa situa-se a Sul do grupo central com uma área de 0,8 M 2 (2,8 km2).
9.2.3. Arquipélago da Madeira A subárea da ZEE correspondente ao arquipélago da Madeira não alcança as 200M nos sectores que vão de Nordeste a Sudoeste em virtude da delimitação com Marrocos e Espanha (Canárias), pelo que, neste caso, o traçado das LFBR é irrelevante para a definição do limite exterior da ZEE. Nas zonas em que a ZEE se estende até às 200 M, da utilização das LFBR como referência para a definição do limite exterior desta zona marítima, não resultam áreas acrescidas significativas, tendo a maior delas, situada a Norte do arquipélago, uma superfície inferior a 0,00029 M 2 (1.000 m 2).
9.3. Plataforma continental de Portugal O DL 119/78 não é aplicável à plataforma continental, pelo que os limites exteriores desta zona marítima devem dever estabelecidos em conformidade com o disposto no artigo 9° da Lei 34/2006. Este preceito refere que "O limite exterior da plataforma continental é a linha cujos pontos definem o bordo exterior da margem continental ou a linha cujos pontos distam 200 milhas náuticas do ponto mais próximo das linhas de base, nos casos em que o bordo exterior da margem continental não atinja essa distância". Efectivamente, o limite exterior da plataforma continental portuguesa não coincide em toda a sua extensão com a linha que define o bordo exterior da margem continental jurídicaC362 ) portuguesa. Nos locais em que a 362
O conceito de "margem continental" contido no artigo 76" é um conceito jurídico, definido na CNUDM nos n.os 3 e 4, afastando-se muito do conceito tal como é entendido
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margem continental portuguesa se entende além da mais favorável das fórmulas restritivas definidas no artigo 76°, n. 5, da CNUDM, o limite exterior da plataforma continental portuguesa será definido pela fórmula restritiva aplicável. Tal como resulta do artigo 8°, n. 0 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do artigo 3° da Lei 34/2006, que parece tautológico face ao preceito constitucional, o artigo 9° desta Lei deve, assim, ser interpretado em conformidade com o artigo 76, n. 5, da CNUDM. De acordo com o artigo 76° da CNUDM, a primeira referência para a determinação do limite exterior da plataforma continental é a localização do bordo exterior da margem continental. Uma vez que a margem continental jurídica se estende para além das 200 M a contar das linhas de base, tanto em Portugal continental, como em cada um dos arquipélagos, o limite exterior da plataforma continental é definido por três elementos diferentes. O primeiro destes elementos resulta da própria definição de plataforma continental, contida no artigo 76°, n. 1, da CNUDM, que refere "A plataforma continental ( ... ) compreende o leito e subsolo das áreas marinha que se estendem (.. .) até ao bordo exterior da margem continental(... )". Parte do limite exterior da plataforma continental portuguesa coincide assim com o bordo exterior da margem continental. A localização do bordo exterior da margem continental é determinada de acordo com o artigo 76°, n. 0 4, da CNUDM, sendo independente da localização das linhas de base. O segundo elemento que contribui para alguns sectores do limite exterior da plataforma continental portuguesa consiste, conforme refere o artigo 76°, n. 0 5, da CNUDM, numa distância de 350M a contar das linhas de base. Na Figura 36 estão indicados os sectores da plataforma continental portuguesa que são definidos pela fórmula restritiva das 350 M. Conforme referido em 9.2 supra, quanto maior for a distância das linhas de base a linha limite das zonas marítimas, menores são as áreas de soberania ou jurisdição acrescidas. Em concreto, nestes casos as LFBR não produzem áreas crescidas de jurisdição ou soberania referentes à plataforma continental. O terceiro elemento que contribui para outros sectores do limite exterior da plataforma continental portuguesa, também indicado no artigo 76°, n. 0 5, da CNUDM, consiste na fórmula restritiva definida pela linha das 100M situada para lá batimétrica dos 2.500 m. A determinação desta fórmula restritiva é independente da localização das linhas de base pelo que também nos casos em que o limite exterior da plataforma continental é definida por este terceiro elemento, o traçado das LFBR contida no DL 495/85 é absolutamente irrelevante. 0
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no âmbito das geociências. A determinação do bordo exterior da margem continental jurídica obedece apenas aos critérios fixados no artigo 76°, sendo irrelevantes outros critérios e características normalmente consideradas no âmbito das ciências Terra. As referências efectuadas no presente texto a "margem continental" devem ser entendidas como o sendo à "margem continental jurídica", tal como definida nos preceitos convencionais anteriormente mencionados.
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9.4. Efeitos no cálculo da linha mediana com Estados adjacentes A definição unilateral dos limites da ZEE portuguesa com Espanha com base na linha mediana, posta em vigor pelo DL 119/78, foi calculada tendo por referência a linha de base normal, i.e., a linha de costa. Seguidamente apresentam-se as modificações no cálculo da linha mediana entre os Estados vizinhos, Espanha e Marrocos, trazidas pela publicação e entrada em vigor das LFBR contidas no DL 495/85, bem como as respectivas implicações até às 200M, e para lá desta distância.
9.4.1. Linha mediana a Norte de Portugal continental Nos termos dos artigos 74°, n. 0 1, e 83°, n. 0 1, ambos da CNUDM, a delimitação da ZEE e da plataforma continental entre Estados com costas adjacentes deve ser feita por acordo, tendo em vista chegar a uma solução equitativa. Embora a solução equitativa não resulte necessariamente da aplicação da regra da equidistância, esta constitui o primeiro passo para a respectiva definiçãd 363l. A inexistência de acordo válido entre Portugal e Espanha<364l para a delimi363
ANTUNES, N. M .. 2003. Towards the Conceptualisation of Maritime Delimitation - Legal and Technical Aspects of a Politicai Process. Leiden [etc.]: Brill Academic Publishers, p. 66. 364 Portugal e Espanha celebraram em 1964 e 1968 convénios relativos à distribuição dos recursos hídricos de vários rios com troços internacionais, que têm seguimento em 1998 por uma outra Convenção que procurou regular o quadro de cooperação entre Portugal e Espanha para a protecção das águas superficiais e subterrâneas e dos ecossistemas aquáticos e terrestres deles directamente dependentes, e ainda para o aproveitamento sustentável dos recursos hídricos das bacias hidrográficas relativas aos rios transfronteiriços (MARTINS, A. D'Oliveira. 2004. FDL (ed.). Estudos em Homenagem ao Prof Doutor Armando M. Marques Guedes. Coimbra: Coimbra Editora, pp. 659 a 678; MARTINS, A. D'Oliveira. 2005. FDL (ed.). Estudos em Homenagem ao Prof Doutor Joaquim Moreira da Silva Cunha. Coimbra: Coimbra Editora, pp. 39 a 50.) No que respeita às zonas marítimas não tem sido possível, até agora, alcançar consenso idêntico. Em 12 de Fevereiro de 1976, e na sequência de uma reunião luso-espanhola realizada em Lisboa no ano anterim~ foram assinados, na cidade da Guarda, dois acordos de delimitação, sendo um referente ao mar territorial e outro à plataforma continental. Estes acordos, designados normalmente por Acordos da Guarda, de 1976, previam uma delimitação por um paralelo na foz do rio Minho, e por um meridiano na foz do rio Guadiana. No entanto, as coordenadas que serviam de base à delimitação continham um erro técnico derivado da utilização de elipsóides de referência diferentes por Portugal e por Espanha. Em 1978, na sequência de reuniões efectuadas entre as duas delegações foi possível chegar a consenso relativamente ao problema técnico anteriormente apontado e à delimitação da ZEE no Continente, o mesmo não sucedendo relativamente à ZEE a Sul das Ilhas Selvagens. Na falta de acordo, a delegação portuguesa declarou que o Governo Português estaria na disposição de ratificar os Acordos da Guarda, mas a dele-
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tação do mar territorial até às 12M, da ZEE e plataforma continental e a já certa sobreposição de áreas de plataforma continental portuguesa e espanhola para lá das 200 M estiveram na origem de um conjunto de reuniões(365l entre a EMEPC e a Comisiónes de Límites com Francia e Portugal, do Ministério de Asuntos Exteriores y de Cooperación Espanhol(366l. As reuniões entre os dois órgãos tiveram como finalidades principais a decisão sobre o modo como seria apresentada cada uma das submissões na região do Banco da Galiza(367l, e os aspectos técnicos inerentes à definição de um limite assente numa solução técnica comum a ambos os Estados. Esta situação levou à definição de uma área de interesse comum (AIC)(368l que, na submissão portuguesa constitui a Região do Banco da Galiza( 369l. Conforme se pode verificar nos Sumários Executivos português e espanhol, a AIC comum é definida pelos paralelos 41 o 52' 00" N e 40° 34' 13" N, pelas linhas de base de cada um dos Estados e pela linha situada à distância de 350 M das referidas linhas de base(370l. Ficou igualmente acordado que a delimitação lateral da plataforma con-
gação espanhola preferiu que ficasse, igualmente, em aberto essa questão. As duas delegações acordaram, no entanto, em reatar as negociações em data próxima e em manter a título provisório as disposições daqueles Acordos no referente ao mar territorial e à plataforma continental, enquanto que para a delimitação da zona económica exclusiva no continente se aplicaria o critério da linha mediana previsto nas leis dos dois Países (COMISSÃO DE DIREITO MARÍTIMO INTERNACIONAL. 1994. Legislação Portuguesa sobre Águas Jurisdicionais do Arquipélago da Madeira - ZEE. Parecer. Vol. III. Lisboa: Ministério da Defesa Nacional-Marinha, pp. 229 e 230). 365 As reuniões entre a EMEPC e a Comissão de Limites espanhola decorreram de 18 de Janeiro de 2006 a 2 de Abril de 2009, alternadamente em Espanha e Portugal. 366 Os órgãos que, em cada um dos Estados, têm a cargo a definição do limite exterior da plataforma continental para lá das 200 M. 367 Tendo em conta o disposto no artigo 76°, n. 0 10, da CNUDM, e o Anexo I das Rules of Procedure of the Commission on the Limits of the Continental Shelf (CLCS/ 40 /Rev. 1). As regras de procedimento da CLPC podem ser consultadas em http:/ /www.un.org/ Depts /los I clcs_new I commission_documents.htm#Rules%20of%20Proced ure 368 Na AIC Portugal e Espanha partilham os dados e informação disponível e realizaram operações conjuntas para a recolha de dados. Cada um dos Estados autoriza a CLPC a utilizar a informação constante na respectiva submissão na avaliação da submissão da outra parte. Cfr. Sumário Executivo da submissão portuguesa, parágrafo 3, e Sumário Executivo da submissão espanhola, parágrafo 5-5. Os Sumários Executivos das submissões portuguesa e espanhola estão disponíveis para consulta em http: I I www. un.org/Depts /los I clcs_new I submissions_files I prt44_09 I prt2009executi vesummary. pdf e http: I I www. un.org/Depts /los I clcs_new I submissions_files I esp47_09 I esp _2009 _ summary_esp.pdf 369 Cfr. Sumário Executivo da submissão portuguesa, parágrafo 3. 37 °Cfr. Sumário Executivo da submissão portuguesa, parágrafo 3, e Sumário Executivo da submissão espanhola, parágrafo 5-3.
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tinental entre Portugal e Espanha ficaria reservada para momento posterior à apreciação de ambas as submissões pela CLPC, tarefa a ser conduzida, no que respeita à parte portuguesa, pelos órgãos competentes do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Do anteriormente mencionado, importa realçar o facto de a definição de AIC contida nos textos dos Sumários Executivos das submissões portuguesas e espanhola mencionar expressamente que tanto o limite exterior, como o limite interior, estão referidos às linhas de base a partir das quais se mede a largura do mar territorialW1l. Esta menção expressa, reforçada pelos textos das actas entretanto realizadas, que contêm referências idênticas às linhas de base sem qualquer objecção ao traçado das LFBR portuguesas, levam a crer numa aceitação do mesmo por parte de EspanhaC372l. Tomando em consideração o traçado espanhol representado na Figura 15 verifica-se que tem características idênticas ao traçado português, em especial a parte correspondente à costa Norte que respeitam às comunidades autónomas das Astúrias, da Cantábria e do País Basco. Este facto retiraria força a eventual argumentação no sentido de não aceitar a parte Norte do traçado de LFBR português.
9.4.2. Linha mediana a Sul de Portugal continental A Figura 37 representa a linha mediana tal como definida no DL 119/78 e as linhas medianas geodésicas referentes à linha de costaC373l (linha 1) e à LFBR (linha 2)C374l. A imagem inferior constitui uma representação, numa escala maior, da parte da imagem superior relativa à área de influência da LFBR no cálculo da mediana. A mediana definida pelo DL 119/78 situa-se aquém da mediana geodésica calculada a partir da linha de costa que, por sua vez, se situa aquém da me371
Em Portugal estão definidas no artigo 5° da Lei 34/2006, em conjugação com o DL 495/85. Em Espanha estão definidas no artigo 2° da Ley 20/1976, de 8 de Abril, publicada no Boletín Oficial dei Estado (BOE) N. 86, de 11 de Abril de 1967, em conjugação com o Real Decreto 2510/1977, de 5 de Agosto, publicado no BOE N. 234, de 30 de Setembro de 1977. BOE pode ser consultado em http:/ /www.boe.es/ aeboe/ consultas/bases_datos/ doc.php?id=BOE-A-1976-6661. 372 Importa referir que a Espanha reagiu negativamente aquando da publicação do DL495/85. Cfr. 10.3 infra. 373 Em rigor a linha mediana devia ser determinada a partir da linha de base normal, ou seja, a linha de baixa-mar. No entanto, a informação disponível para este tipo de cálculo é a linha de costa cartográfica, i.e., a linha de preia-mar máxima. Na costa portuguesa o erro resultante é, no plano horizontal, de poucos metros, sendo desprezível face à distância a que se encontra a linha mediana. 374 As linhas representadas na Figura 37 ilustram com alguma nitidez os erros resultantes da metodologia usada à época do DL 199/78, por comparação com os métodos geodésicos actuais. 0
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diana geodésica calculada a partir da LFBR, todas elas determinadas em relação à costa marroquina. O cálculo da linha mediana a partir da LFBR em substituição da linha de costa origina um acréscimo de área, representada a vermelho, com 34M2 (117 Km2). Não existe qualquer acordo de delimitação das zonas marítimas entre Portugal e Marrocos. A situação actual é desfavorável a Portugal, não só na área de influência da LFBR, como praticamente ao longo de toda a mediana. Constituindo uma situação que requer estudo e precauções cuidadas em futuras negociações para os tratados de delimitação de zonas marítimas tanto com Marrocos, como com Espanha.
9.4.3. Linha mediana no arquipélago da Madeira As LFBR não têm influência no traçado das linhas medianas a partir do arquipélago da Madeira, tanto no que se refere às ilhas Canárias, como a Marrocos. Os pontos que contribuem para as referidas linhas são a Ponta da Agulha, ilha do Bugio, que é o ponto mais a Sul das ilhas Desertas e a ponta mais a nordeste da ilha de Porto Santo.
10. Reacções ao traçado português 10.1. Doutrina nacional O traçado de LFBR tem sido objecto de diversas críticas, tanto da doutrina nacional, como da internacional. De um modo geral, os comentários da doutrina nacional incidem tanto no traçado das LFBR nos arquipélagos como nas LFBR do continente. Relativamente às LFBR dos arquipélagos, é apontada a desconformidade do traçado, normalmente qualificado pelos autores como "arquipelágico". No que respeita às LFBR continentais, é, por regra, também sublinhado o excesso que estas representam face ao permitido pela Lei Internacional. As primeiras reacções ao traçado português começaram pela Marinha (a quem, por vezes, é imputada a autoria da solução jurídica posta em vigor pelo DL 495/85), que desaconselhou fortemente a sua promulgação quando foi consultada durante os trabalhos preparatórios do diploma, tendo reiterado posteriormente a mesma posição<375l. Referindo-se ao traçado, a Comissão de Direito Marítimo Internacional (COMI) sublinha "[o] traçado estabelecido pelo Decreto-Lei n. 0 495/85, é insustentável. Não encontra base no regime jurídico tradicional codificado 375
COMISSÃO DE DIREITO MARÍTIMO INTERNACIONAL. 1994. Legislação Portuguesa sobre Águas Jurisdicionais do Arquipélago da Madeira - ZEE. Parecer. Vol. III. Lisboa: Ministério da Defesa Nacional-Marinha, pp. 229 e 230.
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na Convenção sobre o Mar Territorial e a Zona Contígua, de Genebra, 1958, e contraria abertamente o previsto na nova Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de Montego-Bay, 1982, assinada por Portugal mas ainda não ratificada nem vigente"<376l. Na mesma linha, Marques GUEDES refere a existência de diversas legislações de outros Estados como não cumpridoras do preceituado internacionalmente no que respeita ao traçado de LFBR. No que respeita ao traçado português, aponta como principais falhas a falta de exactidão das coordenadas geográficas e, no que respeita aos arquipélagos, as linhas de base recta entre ilhas que configuram juridicamente um verdadeiro perímetro arquipelágico, em particular o que une as ilhas de S. Miguel e Santa Maria. O mesmo autor acrescenta ainda que a ratificação da CNUDM originou a inconstitucionalidade do DL 495/85, por violação do artigo 8°, n. 2, da lei fundamental< 377l. Fausto de QUADROS, Paulo OTERO e Bacelar GOUVEIA, autores da monografia portuguesa que mais desenvolve o tema em apreço, apontam a possível existência de fricções entre os regimes internacional e o português, uma vez que este apresenta perímetros arquipelágicos não permitidos pela Lei Internacional e algumas das linhas de base recta não limitam recortes profundos ou reentrâncias ou afastam-se consideravelmente da direcção geral da costa. Adiantam ainda que, concretamente, os domínios em que a incompatibilidade com o regime internacional é maior são essencialmente dois: a) o traçado da costa continental, não havendo razão para em muitas das situações assim traçadas se proceder fora do quadro do estabelecido pelo critério da linha de base normal; b) o traçado das costas arquipelágicas dos Açores e da Madeira, desenhado por grupos de ilhas, quando o nada legitima em termos internacionais. Estes autores apontam uma possível razão para o traçado continental" [a]té nos fazem supor que o critério utilizado, decerto pouco científico, terá sido o da facilidade do traçado de linhas de base recta com este teor, em contraste com o difícil que seria traçar a linha de baixa-mar ao longo da costa portuguesa nas cartas marítimas para tanto apropriadas"< 378 l. Lynce de FARIA realça como principais defeitos do traçado português a existência de "[p]erímetros arquipelágicos, não permitidos na Lei Internacional; e algumas das suas linhas de base recta parecem não se enquadrar no disposto na Lei Internacional, por não limitarem recortes profundos ou reentrâncias ou por se afastarem consideravelmente da direcção geral da costa". Este autor refere ainda que "Salvam-se, assim, no Continente, o traçado entre o Cabo Raso e o Cabo Espichei (21.5 milhas) e entre o Cabo Espichei e o Cabo de Sines (31.5 milhas). Contudo, na situação do Cabo Raso-Cabo Espichei, apesar da distância ser inferior a 24 milhas, a área do semicírculo interior só aproximadamente é igual à do exterior. Tolera-se esta aproximação, mais que não seja, pelo método das linhas de base recta (e por efeito da qualificação de baía histórica) e não 0
Ibid., p. 230. GUEDES, A. M .. 1998, pp. 133 e 134. 378 QUADROS, Fausto de, OTERO, Paulo e GOUVEIA, J. Bacelar. 2004. Portugal e o Direito do Mar. Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros, pp. 44 a 47. 376
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como mera baía"<379 l. CORREIA Baptista afasta a qualificação das baías do Tejo e do Sado como jurídicas por incumprimento dos critérios contidos no artigo 10°, n. 2, da CNUDM. Considerando, igualmente, que é relativamente pacífico na doutrina internacional o facto de o traçado de linhas de base recta estabelecido para os Açores não ser compatível com o Direito Internacional por violação do artigo 46° da CNUDM. No que respeita à possibilidade de serem traçadas linhas de base recta entre ilhas, este autor refere que "Resulta claro que a teleologia (que não é vedada pela sua letra) implica uma aplicação igualmente entre uma franja de ilhas pequenas perante uma outra ilha grande. A prática confirma este entendimento". Porém, ao concretizar o raciocínio para as ilhas do grupo central do arquipélago dos Açores adianta que a respectiva aplicação se torna problemática, tanto pela configuração geográfica das ilhas, como pela natureza dos poderes que daí resultam<380l. Referindo-se ao protesto apresentado pelos EUA relativamente ao traçado português, Marques ANTUNES indica que "[a] referência ao elemento literal dos Artigos 7° e 10° da CNUDM é absolutamente clara, e há que reconhecer que, em alguns pontos, o referido protesto tem fundamento"< 381 l. Moreira da SILVA sublinha que "Portugal não pode reivindicar águas arquipelágicas por não ser um Estado arquipelágico, mas com o Dec.-Lei n. o 495/85 fê-lo para os arquipélagos da Madeira e dos Açores, fixando linhas de base arquipelágicas nos dois arquipélagos. Nessa altura Portugal ainda não estava vinculado à observância da Convenção de 1982, mas com a ratificação da Convenção, em 1997, o Dec.-Lei n. 0 495/85 passou a ser inconstitucional, por força do disposto no artigo 8°, n. o 2, da Constituição"< 382 l. As referências doutrinárias encontradas que se destacaram da linha crítica anteriormente apresentada pertencem a Carlos Blanco de Morais, consultor principal do Centro Jurídico da Presidência do Conselho de Ministros<383l e ao comandante Limpo Serra, neste último caso referindo-se ao DL 47771 I 67< 384l. 0
FARIA, D. Lynce de. 2002. A Jurisdição e a Delimitação dos Espaços Marítimos em Portugal. Lisboa: AAFDL, pp. 348 a 355. 380 BAPTISTA, E. Correia. 2006. O Regime das Baías Históricas e a Aplicação de Linhas de Base recta nas Embocaduras do Tejo e do Sado e nos Açores. In FDL (ed.). Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano no Centenário do seu Nascimento. Coimbra: Coimbra Editora, pp. 371 a 383. 381 ANTUNES, N. M .. 2004. Porque Não Existe Direito de Passagem Inofensiva para Dentro das Linhas de Fecho nas Embocaduras dos Tejo e do Sado. InANTUNES, N. M. (ed.). Estudos em Direito Internacional Público. Coimbra: Almedina, pp. 59 a 68. 382 SILVA, J. L.Moreira da. 2003 Direito do Mar. Lisboa: AAFDL, p. 74. 383 QUADROS, Fausto de, OTERO, Paulo e GOUVEIA, J. Bacelar. 2004, p. 43, nota 44, referindo-se ao Parecer do Centro Jurídico da Presidência do Conselho de Ministros, de 3 de Setembro de 1996. 384 Ibid. p. 43, nota 45. 379
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10.2. Doutrina estrangeira A dimensão das áreas acrescidas de soberania e jurisdição que resultam do traçado português fica claramente aquém do que se verifica a nível internacionat facto que justifica a pouca atenção que desperta na doutrina internacional. Normalmente é apenas apontado corno exemplo a nível regional e sem comentários particularmente desenvolvidos. NOSSUM comenta o traçado de Portugal continental, referindo que o mesmo parece ser contrário ao Direito Internacional, apontando-o corno urna prova da prática dos Estados que se afasta dos princípios convencionais contidos no artigo 7°da CNUDM(385>. Referindo-se às reivindicações marítimas por parte dos Estados europeus, MOLENAAR considera indevidamente traçadas as LFBR de algumas formações insulares que qualifica corno arquipelágicas, por isso desconformes com as disposições pertinentes da CNUDM. Entre estes traçados encontram-se os respeitantes aos arquipélagos dos Açores e da Madeira(386>. O mesmo tipo de comentários, em geral muito resumidos, é efectuado por outros autores (387>.
10.3. Reacções por parte outros Estados Após a entrada em vigor do DL 495/85, o traçado português foi objecto de duas reacções internacionais, urna por parte de Espanha, outra por parte dos EUA. Referindo-se ao traçado de LFBR de e para as ilhas Berlengas, o Ministério dos Assuntos Exteriores de Espanha invocou, em 1986, o artigo 5°, n. 0 2, da CGMTZC no sentido de afirmar o direito de passagem inofensiva entre aqueles ilhas e a costa terrestre de Portugal continental. Chamada a pronunciar-se sobre esta matéria, a CMDI referiu tratar-se de" [s]imples afirmação pelo Estado Espanhol
NOSSUM, J. H .. 2000, p. 86. MOLENAAR, E. J.. 2000. Navigational Rights and Freedoms in a Regional Context. ln ROTHWELL, D. R. e BATEMAN, S. (eds.). Navigation Rights and Freedoms and the New Law of the Sea. The Heague: Martinus Nijhoff Publishers, pp. 22 a 46. 387 WESTERMAN, G. S.. 1987, p. 186, nota 17; McRAE, Donald M., MUNRO, Gordon R. 1989. Canadian Oceans Policy: National Stategies and the New Law of the Sea. Vancover: University of British Columbia Press, pp. 224 e 225; WANG, J. C. F.. 1992. Handbook on Ocean Politics & Law. [S.l.]:Greenwood Publishing Group, p. 86; MUNAVVAR, M .. 1994, p. 141, nota 72; HILLIER, T.. 1998. Sourcebook on Public International Law. London: Cavendish Publishing Limited, p. 377; ROTHWELL, Donald, BATEMAN, Walter. 2000. Navigational Rights and Freedoms, and the New Lmv of the Sea. Dordrecht: Kluwer Law International, p. 24; O'BRIEN, J.. 2001. International Lmv. Oxon: Routledge-Cavendish, p. 401; ELFERINK, A. G. 2004. Stability and Change in the Law of the Sea: The Role of the LOS Convention. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, p. 123. 385
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de um direito que efectivamente lhe assiste, segundo o artigo invocado"C388 l. Importa referir que, pelo Real Decreto 2510/1977, de 5 de Agosto, a Espanha publicouC389l o seu sistema de LFBR que cobriu parte muito substancial das costas espanholas e cuja conformidade com o artigo 4° da CGMTZC não o deixa imune a possíveis críticasC390l. Numa obra que constitui uma compilação das reacções oficiais do Departamento de Estado Norte Americano, ROACH e SMITH, apresentam o protesto norte-americano ao traçado de LFBR estabelecido no DL 495/85(391 l. A administração norte-americana sublinha a sua discordância relativamente ao traçado, tanto na parte referente ao continente como dos arquipélagos dos Açores e da Madeira. No que respeita às LFBR do continente, o protesto referia que as LFBR compreendidas entre a Ponta Carreiras e a Barra de Aveiro, o Cabo da Roca com o Cabo Raso (que não existe nos traçados postos em vigor pelo DL 47771 I 67, e pelo DL 495/85), o Cabo Raso com o Cabo Espichei, o Cabo Espichei com o Cabo de Sines, o Cabo de Sines com o Cabo de São Vicente e a Ponta de Sagres com o Cabo de Santa Maria não encerram baías jurídicas ou preenchem os requisitos que as possam qualificar como locais onde existam recortes profundos ou reentrâncias. No que respeita aos arquipélagos da Madeira e dos Açores, o referido documento 388
COMISSÃO DE DIREITO MARÍTIMO INTERNACIONAL. 1994. Linhas de Base recta (Berlengas). Parecer. Vol. III. Lisboa: Ministério da Defesa Nacional-Marinha, p. 140. 389 SECRETARY OF DEFENSE. 1997. Maritime Claims Reference Manual (DoD 2005.1-M). 1997, pp. 2-461. 39 °Cfr. 5.4.4.6 supra. 391 ROACH, J. A. e SMITH, R. W.. 1996, pp. 92, 93, 108, 109 e 112. O protesto foi elaborado com base em instruções transmitidas pelo Departamento de Estado Norte-Americano através do Telegrama 266998, de 25 de Agosto de 1986 (ROACH e SMITH, 1996: 92-93, 112). As passagens mais importantes do referido documento são as seguintes: "The United States is unable to accept as valid the establishment by the Govemment of Portugal of many of the closing lines and straight baselines promulgated in the decree. It is the view of the United States that the Iines in question do not comply with intemationallaw which in this case is refiected in the 1982 United Nations Convention on the Law of the Sea. With regard to the mainland, those segments which connect Ponta Carreiras with Barra de Aveiro, Cabo da Roca with Cabo Raso, Cabo Raso with Cabo Espichei, Cabo Espichei with Cabo de Sines, Cabo de Sines with Cabo de São Vincente and Ponta de Sagres with Cabo de Santa Maria, do not enclose juridical bays or lie in localities which meet the legal requirement that the coastline is deeply indented and cut into (. . .). Certain base/ines around the Madeira and the Azares Islands grouping are objectionable for the same reasons, i.e., they do not lie in localities where the coastlines are deeply indented and cut into nor they connect a fringe of islands along the coast in its immediate vicinity. Moreover, insofar as concems the Madeira and Azares Islands groupings, archipelagic baselines cannot be justified under customary international law as refiected in Part IV of the 1982 Law of the Sea Convention as Portugal is not an "archipelagic state", but in fact comprises a mainland continental state with islands components". Também referido em Limits in the Seas n. 0 36. 2000. National Claims to Maritime Jurisdictions. 8'h Revision, p. 125.
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mencionava que algumas das linhas de base são questionáveis pelas mesmas razões, não existindo em locais que possam ser qualificados como existindo recortes profundos ou reentrâncias, ou que liguem franjas de ilhas ao longo da costa na sua proximidade imediata. Finalmente, no que respeita a uma possível qualificação dos traçados existentes nos arquipélagos da Madeira e dos Açores refere que estes não podem ser qualificados como arquipelágicos uma vez que Portugal é um Estado continental com componentes insulares, e não um Estado arquipelágico nos termos em que se encontra definido no artigo 46°, alínea a) da CNUDM. O teor do protesto acima descrito, e outros documentos já publicados pelos EUA relativamente a traçados anteriores das LFBR portuguesas(392l, merecem alguns comentários. No documento Limits in the Seas n. 0 27, publicado em 1970, que descreve e comenta o traçado das LFBR estabelecido pelo DL 47771 I 67, os EUA não objectaram nenhuma das partes do traçado português que, além da parte continental europeia, cobria ainda alguns dos troços das então províncias ultramarinas da Guiné, Angola e Moçambique. Não deixa de parecer estranho o facto de, no entendimento do Departamento de Estado Norte-Americano, em 1970 não ter sido invocada qualquer objecção ao traçado das LFBR nas embocaduras do Tejo e do Sado, sugerindo assim que estariam conformes com o Direito Internacional, e em 1986 deixarem de o estm~ apesar de os textos das disposições aplicáveis da CGMTZC(393l e da CNUDM, que ainda não estava em vigor, serem iguais na versão em língua inglesa, como adiante se verá (dr. Anexo 2). Para esse efeito não poderá relevar a qualificação das próprias linhas como LFBR, ou linhas de fecho de estuários, porque não relevou no documento de 1970, nem o facto de apenas estarem em causa cerca de 53 M, numa costa de cerca de 400 M, porque esse não é o único factor a ter em conta para a avaliação da respectiva conformidade com o Direito Internacional. Dos comentários apresentados pelo Departamento de Estado Norte-Americano relativamente ao traçado de LFBR de 1985, relevam ainda outros aspectos. Como falhas apontadas ao traçado respeitante ao continente é referido que as diferentes LFBR não encerram baías jurídicas ou recortes profundos e reentrâncias que, juridicamente, possam ser qualificados como tal. De realçar que não constam nesta lista as LFBR do Cabo Mondego ao arquipélago das Berlengas e deste para o Cabo da Roca. Esta parte do traçado tem sido apontada como de difícil justificação face ao texto do artigo 7° CNUDM tendo em conta as áreas acrescidas de águas interiores, mar territorial e zona contígua e ainda devido ao facto de a projecção das ilhas das Berlengas sobre a costa continental cobrirem apenas uma Limits in the Seas n. 0 106. Developing Standard Guidelines for Evaluating Straight Baseline;. Limits in the Seas n. 0 27. Portugal. 393 A referência frequente à CGMTZC resulta, essencialmente, do facto de existirem ainda hoje muitos Estados que não são Parte da CNUDM, como é o caso dos Estados Unidos da América, pelo que é esta a Convenção que lhes é aplicável. Por outro lado, a semelhança entre os textos e a evolução histórica dos conceitos justificam, em nossa opinião, essa opção. 392
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pequena parte da mesma quando comparada com o comprimento total das LFBR envolvidas nesta parte do traçado (cfr. Figura 29). Também não encerra recortes profundos nem reentrâncias, constituindo a parte do traçado do continente que mais parece afastar-se da direcção geral da costa. Ao não referir esta parte do traçado no protesto, quando o fez expressamente para todas as outras LFBR do continente, mesmo aquelas que já tinha aceite em 1970, não poderá deixar de se sugerir que existe uma aceitação, embora por omissão. O Departamento de Estado Norte Americano incluiu, assim, no seu protesto de 1986 parte do traçado relativamente ao qual não encontrara desconformidade anteriormente (baías do Tejo e do Sado)(394l, nada apontando a uma parte do actual traçado (LFBR dos Cabo Mondego/Berlengas/Cabo da Roca) que, seguindo uma interpretação rigorosa do artigo 7° da CNUDM não será a que melhor se enquadra no referido preceito. Na parte relativa aos arquipélagos dos Açores e da Madeira são apontadas como falhas o facto de as LFBR não encerrarem recortes profundos ou reentrâncias que juridicamente possam ser qualificados como tal, nem ligarem franjas de ilhas ao longo da costa na sua proximidade imediata. O comentário não diz exactamente quais os traçados que considera não cumprirem os referidos requisitos, mas pelo modo como está formulado (certain baselines around Madeira e A zares Islands) sugere que alguns encerram recortes profundos ou reentrâncias que juridicamente podem ser qualificados como tal, ou ligam franjas de ilhas ao longo da costa, admitindo implicitamente a aplicação deste último critério a ilhas.
11. Não aplicação do regime das linhas de base arquipelágicas aos arquipélagos portugueses O disposto no artigo 46°, alínea a), da CNUDM, impede a qualificação dos perímetros traçados nos três grupos do arquipélago dos Açores e no arquipélago da Madeira como arquipelágicos, uma vez que Portugal não é constituído apenas por ilhas. Muitos autores avaliam o sistema de LFBR português partindo do princípio que nos arquipélagos da Madeira e dos Açores os traçados entre as ilhas têm natureza arquipelágicas e as linhas que lhes dão corpo são LBA. O texto preambular do DL 495/85 começa por referir "Tornando-se necessário redefinir as linhas de fecho e de base recta estabelecidas pelo Decreto-Lei n. 0 47771, de 27 de Junho de 1967, que nas costas do continente e das ilhas das Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores suplementam a linha de base estabelecida no n. 0 1 da base I da Lei n. 0 2130, de 22 de Agosto de 1966". O texto descritivo dos quadros I a V também menciona expressamente "linhas de fecho e de base recta" .
Não se encontra na CNUDM, na prática internacional, nem no próprio texto do DL 495/85, sustentação que permita concluir que todas as linhas traçadas en394
Cfr. 12.1.3 infra.
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tre ilhas para servir como referência para a medição da largura do mar territorial são necessariamente LBA. São inúmeros os Estados com ilhas, ou constituídos por ilhas, que têm LBR entre elas sem que sejam qualificadas como arquipelágicas. Importa relembrar a decisão do TIL no Caso Qatar/Bahrain, ao defender a necessidade de o estatuto de águas arquipelágicas ser especificamente invocado pelo Estado costeiro para que aquele regime jurídico lhe seja aplicável<395l. A ausência de tal qualificação no DL 495/85 faz com que fique claramente afastado um elemento essencial que permita a qualificação dos traçados das linhas traçadas entre as várias ilhas nos arquipélagos portugueses como LBA, e das águas por ele encerradas, como arquipelágicas. O facto de existirem LFBR traçadas entre ilhas não implica por si só a respectiva qualificação como LBA nem que o regime das águas por elas encerradas seja o correspondente a águas arquipelágicas. Esse é igualmente o entendimento da DOALOS ao não qualificar o traçado de LFBR portuguesas como LBA <396l. Face ao anteriormente exposto, parece não existir outra alternativa para avaliar o traçado de LFBR nos arquipélagos portugueses que não seja com base no disposto nos artigos 7° e 10° da CNUDM, que são os artigos que dispõem sobre as linhas de fecho e as linhas de base recta. Ainda a este respeito, mas apenas como mero exercício, importa referir que para além do impedimento acima apontado, os outros critérios para a realização de um traçado arquipelágico encontram-se verificados. A razão entre as superfícies marítimas e terrestre variam entre 1) para 1 para as ilhas da Madeira e Desertas e 5,2 para 1 no caso do grupo oriental do arquipélago dos Açores e a LFBR mais comprida tem cerca de 60 M e pertence também a este grupo. A existência de LFBR a encerrar grupos de ilhas tal como existem nos arquipélagos dos Açores e da Madeira não constitui, como adiante é referido, caso único. Existem na comunidade internacional múltiplos exemplos de LFBR traçadas entre ilhas com características muito próximas das existentes nos arquipélagos portugueses, muitos deles sem protestos conhecidos relativamente ao respectivo traçado. Como exemplo podem apontar-se, entre outros, os casos apresentados relativos às ilhas Falkland e às ilhas Turcos e Caicos. O facto de existirem traçados a unir os pontos exteriores das ilhas de vários arquipélagos em Estados que não são arquipelágicos terem sido reconhecidos levou CHURCHILL e LOWE a afirmar a sua validade internacional com base no costume internacional<397l. Cfr. nota 220 supra. DOALOS. 2007. Law of the Sea Bulletin, p. 90. Em 2007 eram considerados arquipelágicos os traçados dos seguintes Estados: Antígua e Barbuda, Bahamas, Cabo Verde, Comoros, Fiji, Filipinas, Ilhas Marshall, Ilhas Salomão, Indonésia, Jamaica, Quiribati, Maldivas, Papua Nova Guiné, S. Vicente e Grenadines, S. Tomé e Príncipe, Seychelles, Trindade e Tobago, Tuvalu, Vanuatu. DOALOS. 2007. Law of the Sea Bulletin. Cfr. tabela das pp. 81 a 92. 397 CHURCHILL, R. R., e LOWE, A. V. 1999, pp. 120 e 121. 395
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Referindo-se aos comentários do Departamento de Estado Norte-Americano sobre o traçado das LFBR dos arquipélagos portugueses, PRESCOTT e SCHOFIELD sugerem que poderia ter ser sido argumentado em defesa da solução adoptada que, nalguns casos, em frente a uma ilha maior existem outras ilhas que constituem uma franja na proximidade imediata, o que torna o traçado válido nos termos do artigo 7° da CNUDM<398l. Este entendimento é sustentado pelo TIJ no Maritime Delimitation and Territorial Questions between Qatar and Bahrain ao referir que "O facto de um Estado se considerar insular, ou Estado arquipelágico, não permite que se afaste das regras normais para a determinação das linhas de base salvo se se verifiquem as condições relevantes"<399 l. Parece, assim, clara a aplicabilidade das regras do artigo 7° da CNUDM às formações insulares, tendo este aspecto especial relevo no caso dos arquipélagos portugueses. Relativamente ao regime das águas encerradas pelas LFBR traçadas entre as ilhas dos arquipélagos dos Açores e da Madeira existe um último aspecto que importa relevar. O facto de as linhas rectas traçadas entre ilhas serem qualificadas na lei portuguesa como "linhas de base recta e linhas de fecho" vem adicionar um peso importante, aparentemente mais gravoso, relativamente a um traçado potencialmente desconforme com as disposições da CNUDM já mencionadas. Tratando-se de "linhas de base recta e linhas de fecho", as águas por elas encerradas são, nos termos do artigo 8°, n. 1, da CNUDM, águas interiores. Os poderes do Estado costeiro nas águas interiores são, em conformidade com o artigo 2°, n. 1 (ab initio), da CNUDM, poderes soberanos equivalentes aos exercidos na parte emersa do território. Apesar de, na prática, no caso português não corresponder a poderes materiais acrescidos ao Estado, tratam-se, teoricamente, de poderes mais intensos que os conferidos pela CNUDM relativamente às águas arquipelágicas. A cronologia inerente à fixação do traçado pelo Direito Interno face ao Direito Internacional positivo torna essa diferença menor, como adiante é referido. 0
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12. Aplicação dos artigos 7° e 10° da CNUDM ao traçado português Partindo da realidade factual inerente à costa de Portugal continental, e de cada um dos arquipélagos, importa agora comparar as características físicas próprias do traçado de LFBR português com as posições doutrinárias e jurisprudenciais anteriormente apresentadas. Como foi diversas vezes referido, não existe nenhum critério internacionalmente aceite que se possa retirar dos conceitos vagos e indeterminados constantes no artigo 7° da CNUDM. Mesmo assim, considera-se esta comparação como um exercício importante, uma vez que per-
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PRESCOTT, J. R. V. 1987, pp. 38 a 51; PRESCOTT, J. R. V., e SCHOFIELD, C. 2005, p. 169. Versão original: "The fact that a State considers itself a multiple-island State ora de Jacto archipelagic State does not allow it to deviate from the normal rules for the determination ofbaselines unless the relevant conditions are met".
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mite avaliar quais as partes do traçado português que cumprem minimamente os referidos critérios.
12.1. Aplicabilidade dos critérios às fozes do Tejo e do Sado Tendo em conta as características fisiográficas da costa portuguesa do continente e dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, bem como o traçado das LFBR definido pelo DL 485/95, propõe-se o início da análise das LFBR que fecham as embocaduras dos rios Tejo e Sado, confrontando as respectivas características geográficas com as disposições pertinentes da CNUDM contidas no artigo 10° da CNUDM. Mesmo que, porventura, os testes contidos no artigo 10°, nos 1 a 5, não forem dados como verificados, a baía poderá ser qualificada como "histórica" se estiverem verificados os respectivos pressupostos, conforme seguidamente se expõe. O estudo sobre a aplicabilidade do artigo 10°, n'" 1 a 5 da CNUDM impõe uma análise em concreto à realidade física correspondente a estas duas formações naturais tendo por base a interpretação anteriormente indicada, conforme aos textos da CNUDM nas versões originais nas línguas inglesa e francesa( 400 ), no sentido de considerar a linha de costa até onde se faz sentir o efeito da maré, desde que coberta por cartas náuticas. Para esse efeito é fundamental ter presente a diferença entre o termo "costa" mencionado nos artigos 5° e 10°, n. 3, da CNUDM na versão em língua em língua portuguesa, com os correspondentes termos nas versões oficiais em língua inglesa( 401 ) e francesa( 402 ), representados também na Figura 38. 0
12.1.1. Critério do semicírculo Pesando a proveniência e as circunstâncias em que parte da doutrina internacional é produzida, esta aponta claramente no sentido de considerar os rios e estuários para o cálculo da superfície das baías, quando a superfície da reentrância principal não seja suficiente considerar como verificado o teste do semicírculo(403 ). Segue, assim, uma interpretação literal das disposições da CNUDM anteriormente analisadas, no sentido de incluir na superfície da baía as águas até onde se façam sentir os efeitos das marés( 404 ). Tendo em consideração as condições necessárias para a qualificação de uma baía como jurídica, a respectiva aplicação às LFBR traçadas nas fozes dos rios Tejo e Sado originam os resultados que adiante se descrevem e que se baseiam na
°Cfr. 4.2.2.2 supra.
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"Coast", artigo 5° da CNUDM; "shore", artigo 1° n. 3, da CNUDM. "Côte", artigo 5° da CNUDM; "rivage", artigo 1° n. 3, da CNUDM. 403 Ibid .. 404 Cfr. argumentação em 4.2.2.2. supra.
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representação gráfica apresentada na Figura 38. Traçando o semicírculo 1 tendo como diâmetro o segmento de recta traçado entre o Cabo Raso e o Cabo Espichel, que constituem os pontos naturais e entrada, e calculando a respectiva área chega-se ao valor de 171,7 M 2 (588,8 km2). A área compreendida entre a linha de baixa-mar ao longo da costa, considerando a costa como os locais até onde se fazem sentir os efeitos da maré, e a linha que une os pontos naturais de entrada, tem o valor de 177,3 M 2 (608,0 km 2). Como se pode verificar na referida figura, a área que contribui para este valor é não só a área que tradicionalmente tem sido considerada para este efeito, i.e., a área que vai da linha entre os Cabos Raso e Espichel e a linha de costa até Entre-Torres (linha que une o Forte de S. Julião da Barra e o Farol do Bugio), mas contando também com a superfície correspondente a todo o estuário do Tejo até aos pontos onde se fazem sentir os efeitos da maré. Apesar de os efeitos da maré se fazerem sentir para lá de Vila Franca de Xira, a área tem expressão relevante até próximo de Alverca. Face a estes valores verifica-se que o teste do semicírculo constante artigo 10°, n. 0 2, in fine, da CNUDM é cumprido de modo favorável relativamente ao rio Tejo. A distância entre cada um dos pontos naturais de entrada é 21,5 M, valor que fica abaixo da distância máxima admissível entre as linhas de baixa-mar dos pontos naturais de entrada, que é 24M, constante no n. 5 do mesmo artigo. Os pontos naturais de entrada da baía do Sado, nos quais é traçada a linha de baixa-mar que serve de base ao traçado do semicírculo 2, situam-se no Cabo Espichel e no Cabo de Sines. A área do semicírculo traçado a partir desta linha é 355,8 M 2 (1.220,3 km2). A superfície total contada a partir da linha entre os Cabos Espichel e de Sines, até à linha de baixa-mar ao longo da costa, considerando também o estuário do Sado e algumas das áreas a montante, onde se façam sentir os efeitos de maré, tem o valor de 401,0 M 2 (1.375,4 km 2). Apesar de os efeitos de maré se fazerem sentir para lá de Alcácer do Sal, a área da superfície molhada apenas tem expressão significativa até próximo de Vale de Judeus e Monte Vil. Deste modo, à semelhança do que sucede com a baía do Tejo, também a baía do Sado cumpre o teste do semicírculo. No entanto, a distância entre a linha de baixa-mar dos pontos naturais de entrada é 31,7 M, valor acima do máximo de 24M permitido pelo artigo 10°, n. 4, da CNUDM. Tendo em conta estes factos, a o comprimento da LFBR entre Cabos Espichel e de Sines, na embocadura do rio Sado excede um dos critérios estabelecidos, o que prejudica a respectiva qualificação como baía jurídica. Para que a baía do Sado pudesse ser qualificada como baía jurídica seria necessário que, em conformidade com o estabelecido na parte final do preceito anteriormente referido, fosse traçada uma nova linha de fecho com 24M de modo a incluir a maior superfície de água possível. Tendo por base os elementos analisados conclui-se que a baía do Tejo é uma baía jurídica nos termos do artigo 10° da CNUDM. Esta conclusão resulta do próprio texto do artigo e da linha seguida pela doutrina internacional citada que vai no sentido de interpretar a expressão "linha de baixa-mar ao longo da costa", 0
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mencionado no n. 0 3, do referido artigo, de modo a compreender toda a superfície de água até ao pontos em que se fazem sentir os efeitos das marés. Isto permite o cumprimento do teste do semicírculo com uma margem de 3,2%. O comprimento de 21,5 M da LFBR situa-se, igualmente, abaixo do valor máximo permitido pela Convenção. Com base no mesmo pressuposto, a reentrância que compreende a foz do rio Sado cumpre o teste semicírculo com uma margem de 12,8%, mas o comprimento da LFBR ultrapassa as 24 M, o que faz com que a LFBR situada na embocadura do rio Sado não possa, face ao texto do artigo 10° da CNUDM, ser qualificada como uma linha de fecho de uma baía jurídica.
12.1.2. Águas do domínio público marítimo Embora se trate de uma matéria com repercussão internacional evidente e de relevo, é importante relembrar que o traçado das LFBR é uma competência exclusiva do Estado costeiro. Afigura-se, por isso, importante aferir se a legislação portuguesa se articula com a doutrina internacional anteriormente indicada que defende a inclusão dos rios e estuários para a contabilização da área total das águas encerradas pelas LFBR traçadas à embocadura das fozes do Tejo e do Sado. À data da publicação do DL 495/85, o regime dos diferentes espaços hídricos estava estabelecido no Decreto-Lei n. 468/71, de 5 de Novembro (DL 468/71 <405l. Este diploma estabelecia como parte integrante do domínio público do Estado os leitos e margens das águas do mar e de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis, bem como os leitos e margens das águas não navegáveis nem flutuáveis que atravessem terrenos públicos do Estado< 406l. A parte referente à tipificação do domínio público hídrico constante no DL 468/71 veio posteriormente a ser regulado pela Lei n. 0 54/2005, de 15 de Novembro (Lei 54/2005)<407l, que estabelece a titularidade dos recursos hídricos. Nos termos desta Lei, o domínio público marítimo pertence ao Estado, é parte integrante do domínio público hídrico e compreende, entre outros, as águas costeiras e territoriais, bem como as interiores sujeitas à influência das marés<408l. Seguindo uma terminologia algo afastada da normalmente utilizada nas convenções internacionais, esta Lei refere que o domínio público marítimo compreende também o mar territorial e as águas interiores até aos locais onde se fazem sentir as marés, compreendendo, naturalmente, o respectivo leito e subsolo. A Lei n. 0 54/2005 fornece ainda um elemento fundamental em apoio, do entendimento defendido. Na definição de leito do mar, o artigo 10°, n. 0 2, da referida 0
Publicado no Diário da República, 1" Série, N. 0 260, de 5 de Novembro de 1971. Regime jurídico dos terrenos incluídos no domínio público hídrico. 406 Ibid., artigo 5°, n. 0 1. 407 Publicado no Diário da República, 1" Série-A, N. 0 219, de 15 de Novembro de 2005. Estabelece a titularidade dos recursos hídricos. 408 Lei 54/2005, artigos 2°, n. 1, 3°, alíneas a) e b), e 4°. 405
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Lei dispõe que "O leito das águas do mar, bem como das demais águas sujeitas à influência das marés, é limitado pela linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais. Essa linha é definida, para cada local, em função do espraiamento das vagas em condições médias de agitação do mar, no primeiro caso, e em condições de cheias médias, no segundo". A parte final do preceito citado qualifica como leito do mar não só as partes do leito sujeitas à influência das marés, como também aquelas que, acima da mais alta preia-mar, compreendem também a altura correspondente às cheias médias. Tendo em conta o anteriormente referido verifica-se que, de acordo com a legislação nacional, existe uma unidade quanto ao modo de demarcação das áreas pertencentes ao domínio público do Estado, que vão desde a plataforma continental, passando pelo mar territorial e compreendendo as águas interiores, tal como definidos na CNUDM. Apesar de poder parecer irrelevante por a questão de base, que é saber se as águas de um estuário podem contar para o teste do semicírculo nos termos do artigo 10°, n. 2 in fine, da CNUDM, ter uma natureza internacional que se sobrepõe ao Direito Interno, a não existência de uma continuidade no regime de definição dos limites das águas em causa enfraqueceria a argumentação no que respeita à aceitação das posições doutrinárias favoráveis. Exemplo disso poderia ser a eventual definição do domínio público fluvial< 409l, no que respeita aos rios que desaguam no mar, até à linha de baixa-mar dos pontos que definem a foz. No que respeita à cobertura cartográfica das baías do Tejo e do Sado, e das respectivas águas interiores, à data de publicação do DL 495/85 existia cobertura até Vila Franca de Xira, no que respeita ao Tejo, e até Alcácer do Sal no querespeita ao Sado, correspondendo-lhes respectivamente as cartas 14 (Rio Tejo- Foz a V. F. de Xira- escala 1:60.000), 81 e 82 (Barra e Porto de Setúbal, Rio Sado- escala 1:25.000), todas elas publicadas pelo Instituto Hidrográfico< 410l. A cobertura cartográfica continua a existir actualmente<411 l. 0
12.1.3. As Fozes do Tejo e do Sado como Baías Históricas A doutrina portuguesa não é uniforme no que respeita à qualificação das ba-
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De acordo com as disposições conjugadas constantes nos artigos 3°, alínea e) e 5°, da Lei n. 0 54/2005, o domínio público fluvial, na parte respeitante aos rios até à respectiva nascente ou fronteira, se o rio for internacional, tem uma natureza residual relativamente ao domínio público marítimo. No exemplo apresentado, que constitui uma mera suposição, o limite interior do domínio público marítimo seria a linha de baixa-mar da costa e das linhas de fecho dos rios. 410 MARINHA. 1982. Catálogo de Cartas e Publicações Náuticas, 9a ed .. Lisboa: Instituto Hidrográfico. 4 ]] MARINHA. 2010. Cartas Náuticas e Cartas Electrónicas de Navegação de Portugal. Lisboa: Instituto Hidrográfico. Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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ías do Tejo e do Sado corno históricas<412 l. Mesmo opiniões mais recentes mantêm essa divergência assumindo, as que vão no sentido positivo, que se encontram reunidos os pressupostos que resumidamente se identificaram na breve referência anteriormente efectuada às águas históricas<413 l. Os factos que poderão sustentar e dar corno demonstrado que relativamente às referidas baías existe urna prática contínua e sem oposição, desde o início do século passado, no que respeita aos poderes efectivamente exercidos por Portugal relativamente às respectivas águas, apontam no sentido de dar corno demonstrados os requisitos contido no estudo do Secretariado anteriormente referidoHHl. Assim, no memorandum enviado em 22 de Janeiro de 1929 à Sociedade das Nações a posição nacional ia no sentido de defender, entre outras matérias, que as linhas de fecho das baías do Tejo e do Sado eram contadas a partir do alinhamento das respectivas pontas< 415 l. Em 1949 a embaixada dos EUA solicitou informações ao MNE no sentido de conhecer a posição portuguesa no que respeita, entre outras matérias, à jurisdição territorial sobre as grandes baías [territorial jurisdiction over large bays] e à prática do Estado português a este respeito<416 l. Questões idênticas foram recebidas posteriormente, provenientes da Dinamarca e da Noruega. O parecer da Comissão Permanente de Direito Internacional Marítimo (CPDMI) a estas questões, que nada leva a crer que se possa considerar corno um protesto, ou outra forma de oposição, foi no sentido de reiterar as posições assumidas nas Conferência de Viena, de 1926, e Haia, de 1930<417l. A questão do acesso às áreas de pesca da baía do Sado foi submetida porEspanha às autoridades portuguesas, pela nota verbal de 3 de Novembro de 1967, invocando a proibição do exercício da pesca aos seus nacionais em virtude da entrada em vigor do DL 47771/67<418l. A referida nota verbal sustentou corno fundamentação para o protesto o facto de as novas LFBR virem" [c]errar determinadas bahías y ensenadas y com su puesta en vigor han quedado afectados intereses pesqueros
412
Cfr. entre outros, QUADROS, Fausto de, OTERO, Paulo. e GOUVEIA, J. Bacelar. 2004,
pp. 53. BAPTISTA, E. Correia. 2006, pp. 371 a 383; ANTUNES, N. M .. 2004, pp. 59 a 68 413
Cfr. 429 infra. Cfr. nota 53. 415 COMISSÃO PERMANENTE DE DIREITO MARÍTIMO INTERNACIONAL. 1964. Águas Territoriais Portuguesas. Parecer. Lisboa: Ministério da Marinha, p. 110; COMMISSÃO PERMANENTE DE DIREITO MARÍTIMO INTERNACIONAL. 1964. Delimitação de Espaços Marítimos Adjacentes ao Território Metropolitano e Ultramarino Português. Parecer. Lisboa: Ministério da Marinha, p. 110. 416 COMISSÃO PERMANENTE DE DIREITO MARÍTIMO INTERNACIONAL. 1964. Águas Territoriais Portuguesas. Parecer. Lisboa: Ministério da Marinha, p. 82. 417 Ibid. pp. 86 e 87. 418 COMISSÃO PERMANENTE DE DIREITO MARÍTIMO INTERNACIONAL. 1978. Aplicação da Linha de Fecho da Baía de Setúbal à Frota Espanhola. Parecer. Vol. II. Lisboa: Ministério da Marinha, pp. 173 a 278. 414
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espaiioles"<419 >, pondo em causa regimes convencionais existentes entre os dois Estados, datados de 1885 e 1893<420 >. O modo como a questão foi apresentada pelas autoridades espanholas sugere desconhecimento no que respeita às reivindicações portuguesas relativamente às baías do Tejo e do Sado como baías históricas. De facto, tal não será de estranhar uma vez que Espanha era parte interessada na questão, pelo que, se o fizesse, ficaria com a sua posição muito enfraquecida. Em consequência deste protesto apresentado em 1967, CORREIA Baptista sugere que Portugal não terá exercido poderes soberanos sobre a zona<42 1), possivelmente porque se o tivesse feito teriam existido outros protestos. Com base nos mesmos factos também teria sido possível concluir pela inexistência de actividade pesqueira naquelas águas. Efectivamente, nenhuma das conclusões parece corresponder à realidade. Desde o início do século passado até aos dias de hoje, embora actualmente mais atenuada devido à política comum da pesca, sempre existiu grande pressão por parte dos pesqueiros espanhóis nas águas portuguesas. Não se acompanha, assim, o entendimento anteriormente indicado que parece fazer depender a evidência do exercício efectivo da autoridade do Estado no mar à existência de protestos diplomáticos por parte dos Estados de bandeira dos navios cuja actividade se exerce nessas áreas. Actualmente são efectuadas cerca de 10.000 vistorias por ano<422> nas águas sob soberanias e jurisdição nacional, tanto a embarcações nacionais como estrangeiras, o que representa uma intensa actividade no que respeita ao exercício de poderes do Estado português, não existindo qualquer correspondência entre esta actividade e protestos diplomáticos. Parece, por isso, excessivo inferir o não exercício de poderes, ou direitos exclusivos, sobre determinada zona apenas pela inexistência de protestos. Pelo anteriormente descrito, a nota verbal espanhola anteriormente mencionada não punha em causa o exercício dos direitos históricos na baía do Sado, facto reconhecido expressamente pela CPDMI ao referir "O que a Espanha contesta é que estas linhas de base recta e de fecho de baías sejam aplicáveis às embarcações de pesca espanholas, dado que, em seu entender (e só no seu entender, pode dizer-se desde já), continuam em vigor os convénios de pesca luso-espanhóis de 1885 e, 1893, os quais, nos seus artigos n. 0 2 não admitem outras linhas de base recta e de fecho que não sejam as de fecho das baías cujas pontas de entrada distem, entre si, menos de 10 milhas"<423>. 419
Ibid .. Anexo 2, p. 205. lbid, pp. 205 e 206. O Parecer vem, posteriormente, demonstrar que os referidos convénios já não se encontravam em vigor à data dos factos. 421 BAPTISTA, E. Correia. 2006, pp . 371 a 383. 422 RIBEIRO, A. Silva, et. al. Estratégia Naval Portuguesa - O Processo, o Contexto e o Conteúdo. Cadernos Navais, n. 34- Julho-Setembro de 2010. Lisboa: Edições Culturais da Marinha, pp. 104 e 125. 423 COMISSÃO PERMANENTE DE DIREITO MARÍTIMO INTERNACIONAL. 1978. Aplicação da Linha de Fecho da Baía de Setúbal à Frota Espanhola. Parecer. Vol. II. Lisboa: Ministério da Marinha, p. 175. 420
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Três anos depois, em 9 de Novembro de 1970, o Departamento de Estado Norte Americano, veio reconhecer expressamente a soberania portuguesa sobre as baías do Tejo e do Sado. Referindo-se às respectivas linhas de fecho, à época as únicas existentes no continente, o documentol 424l dizia totalizarem apenas 52,95 M de uma costa com um total de cerca de 400 M e que, no sentido mais rigoroso (strictest sense) as linhas não constituem LFBR, sendo antes linhas de fecho de estuários que compreendem as recortes que lhes estão associados. Até àquela data, o Departamento de Estado Norte-Americano não se coibiu de comentar e considerar negativamente os traçados de LFBR que entendem não se conformar com as disposições convencionais vigentes<425l. A não contestação do traçado das linhas de fecho das baías do Tejo e do Sado, quando o fez noutras circunstâncias relativamente a outros países, não podem deixar de ser considerada como uma aceitação do traçado, que é o actual independentemente da respectiva qualificação, considerando preenchidos os requisitos correspondentes estabelecidos no Direito Internacional. Do texto acima reproduzido ressaltam ainda dois aspectos da maior importância. O primeiro tem a ver com o uso da expressão "no sentido mais restrito". A análise, ou interpretação, não é genérica, lata, vaga, ou restrita, é a mais restrita e o sentido determinado o mais estrito, o que pressupõe que foram considerados todos os elementos e factores que contribuíram para a qualificação seguindo a via interpretativa menos permissiva. O outro aspecto tem a ver com a qualificação das reentrâncias efectuada pelo Departamento de Estado ao designá-las por linhas de fecho de estuários. Tendo em conta o texto do artigo 13° da CGMTZc<426l, vigente em 1970 à época do documento Limits in the Sea, n. 0 27, respeitante a Portugal, utilizando um argumento a contrario pode referir-se que esta disposição não é aplicável naqueles termos aos rios com estuário. À falta de disposição que expressamente se refira a rios com estuário deve ser aplicado o artigo 7° da CGMTZC (baías)<427l, Limits in the Seas n. 0 27: 5, "[T]he straight baselines ar closing /ines for Continental Portugal total a mere 52.95 nautical miles. ln the strictest sense, the decree /ines do not Jorm straight base/ines; rather, they are estuary closing /ines which included associated coastal indentations". 425 Cfr., entre outros, Limits in the Seas n. 5. Straight Base/ines - Dominican Republic; Limits in the Seas n. 0 8. Straight Base/ines - Mauritania; Limits in the Seas n. 0 13. Straight Baselines-Faeroes. Limits in the Seas n. 0 20. Straight Baselines-Saudi Arabia. Limits in the Seas n. 0 21. Straight Base/ines-Venezuela. Limits in the Seas n. 0 22. Straight Base/ines - United Arab Republic. 424
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CGMTZC, artigo 13° "Se um rio desagua directamente no mar sem formar estuário, a linha de base será uma linha recta traçada através da foz do rio entre os pontos limites da maré baixa sobre as margens" (sublinhado do autor). Tradução livre do autor. Versão original em língua francesa: "Si un fleuve se jette dans la mer sans former d'estuaire, la ligne de base est une ligne droite tracée à travers l'embouchure du
fleuve entre les points limites de la marée basse sur les rives". 427
O texto dos trabalhos preparatórios levados a cabo pela CDI correspondentes ao artigo
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por recurso ao princípio do efeito útil' 428), de modo a incluir também os rios com estuário. Também não foi esta a via seguida nesta altura pelo Departamento de Estado Norte Americano, afastando a aplicação do artigo 7° da CGMTZC e acabando qualificar as baías do Tejo e do Sado como baías históricas. Em 1992 o Departamento de Estado Norte-Americano incluiu as baías do Tejo e do Sado na listagem mundial das baías que aceita como históricas<429 ). Não deixam de ser curiosos os seguintes factos sucessivos, relativos a entendimentos dos EUA face a estas baías portuguesas. Em 1970, não levantou objecções à respectiva validade. Em 1986, quando protestou várias partes do traçado, incluiu as baías do Tejo e do Sado<430 ). Em 1992, estas baías aparecem numa lista de baías reclamadas como históricas, mas sem indicação de data de protestos por parte dos EUA. Tendo por base os factos anteriormente mencionados, apesar de não se considerar fundamental a existência de títulos históricos para que as LFBR do Tejo e do Sado sejam consideradas válidas à luz do Direito Internacional, conforme se pretendeu demonstrar supra, subscreve-se o entendimento apresentado por Marques ANTUNES ao considerar como verificados os indícios apresentados que apontam no sentido de as linhas de fecho traçadas por Portugal nas embocaduras dos rios Tejo e Sado serem válidas à luz do Direito Internacional qualificando as respectivas águas como históricas<431).
12.2. Recortes profundos e reentrâncias Tendo em conta o traçado de LFBR portuguesas, tanto do continente, como dos arquipélagos dos Açores e da Madeira, bem como a fisiografia da costa por ele coberta, considera-se que a única parte da costa passível de ser qualificada como um local onde existem recortes profundos corresponde à zona que vai do Cabo Raso ao Cabo de Sines, cujo racional será apresentado infra. Na Figura 29 verifica-se que as LFBR a que correspondem as áreas de águas 13° da CGMTZC previa um n .0 2 (If the river flows into an estuary the coasts ofwhich belong to a single State, article 7 shall apply) que no sentido de aplicar aos rios com estuários o regime das baías. Tal não veio a acontecer por ter sido considerado não existir informação geográfica suficiente para todos os estuários do mundo (WATTS, A. 1999. The International Law Commission -1949-1998. Vol. 1-The Treaties. Oxford: Oxford University Press, p. 45). 428 No sentido definido por PEREIRA, André Gonçalves, QUADROS, Fausto de. 2005. Manual de Direito Internacional Público. 3" ed. 6" reimpressão. Coimbra: Almedina, p. 241, e FITZMAURICE, M. 2006, p . 199. 429 Limits in the Seas n. 0 112. Straight Baselines - United States Response to Excessive National Maritime Claims, p. 11. 43 °Cfr. nota 389 supra. 431 ANTUNES, N. M .. 2004, pp. 59 a 68. Lusíada. Direito. Lisboa, n .0 8 I 9 (2011)
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interiores com os números 1, 5 e 6, encerram troços da costa que não constituem mais que meras inflexões da costa. Não cumprem claramente os testes do semicírculo no que respeita à área de água encerrada, nem a razão de penetração, qualquer que seja o método indicado no capítulo 5.4.3 supra. Não pode dizer-se, por isso, que aquelas partes da costa constituem locais que apresentem recortes profundos ou reentrâncias, nem que qualquer uma das inflexões constitui por si uma baía jurídica. Conforme se verifica nas Figura 30 a Figura 33, o mesmo é válido no que se refere às costas dos arquipélagos dos Açores e da Madeira. As baías do Tejo e do Sado voltam a constituir, novamente, um caso de relevo para a análise da questão em apreço. Em 12.1 supra concluiu-se que a baía do Tejo constitui uma baía jurídica nos termos do artigo 10° da CNUDM e que a baía do Sado não podia ser considerada uma baía jurídica por não cumprir o requisito relativo ao comprimento máximo da linha de fecho na respectiva embocadura. Importa agora saber se as referidas baías em conjunto podem ser consideradas como um local em que existem recortes profundos ou reentrâncias para efeitos da aplicação do artigo 7° da CNUDM. Tendo em consideração o referido em 5.4.3 supra, da aplicação à baía do Tejo do terceiro critério apontado por HODGSON e ALEXANDER, representado na Figura 38 por (3), resulta a razão de penetração com o valor de 0,87, claramente superior aos 0,5 (1 :2) exigidos seguindo uma interpretação literal das disposições pertinentes contidas nos artigos 7° e 10° da CNUDM, e mesmo aos 6:10 (0,6) propostos pelo Departamento de Estado Norte-Americano. Para além de baía jurídica, a baía do Tejo pode também ser considerada como um recorte profundo para efeitos da aplicação do artigo 7°, n .0 1, da CNUDM. Seguindo idêntico raciocínio para a baía do Sado verifica-se que a razão de penetração segundo os primeiro e segundo critérios de HODGSON e ALEXANDER são, respectivamente, 0,67 e 0,56 ambas acima dos 0,5 (1:2), uma delas superando os 0,6 (6:10). Estando verificados os testes do semicírculo e da razão de penetração pode concluir-se que a baía do Sado constitui, igualmente, um recorte profundo nos termos exigidos na CNUDM. Uma vez que as baías do Tejo e do Sado cumprem individualmente os requisitos que lhe conferem a qualificação como recortes profundos, existem ainda dois aspectos que importa esclarecer no que respeita à consideração do troço da costa entre o Cabo Raso e o Cabo de Sines como um local onde podem ser traçadas LFBR. O primeiro tem a ver com o número de recortes profundos e reentrâncias que devem de existir, o segundo com o facto de a linha de fecho (LFBR) da baía do Sado ter um comprimento de 31,7 M, superior às 24M estabelecidos como o máximo admissível para as baías jurídicas. Considerando o acima referido, em 5.4.1 e 5.6.4, apesar de não constituir um entendimento maioritário na doutrina internacional, que defende a existência de pelo menos três recortes profundos ou reentrâncias para que em determinado local se possa traçar LFBR, o requisito de pluralidade que resulta da interpretação literal da primeira parte do n. 0 1 do artigo 7° da CNUDM leva a que se possa con-
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siderar com uma segurança aceitável a existência de apenas duas daquelas características fisiográficas como suficientes para dar este requisito como cumprido. No que respeita às 31,7 M como comprimento da LFBR da baía do Sado, trata-se, como já referido, de um valor perfeitamente aceitável na doutrina internacional num contexto de traçado de LFBR em determinado local da costa, pelo que este aspecto não suscita quaisquer dúvidas. No entanto, se tivermos em conta a parte inicial do texto do artigo 7°, n. 0 1, nas línguas portuguesa e espanholaC432l, verificamos que tanto "recortes profundos" como "reentrâncias" são substantivos que se encontram no plural, ligados pela conjunção "e". Para que a condição se possa dar como verificada deve existir mais que um recorte profundo e mais que uma reentrância. Sendo as condições para a qualificação de determinada característica geográfica como "recorte profundo" mais exigente que para a qualificação como "reentrância", a verificação do requisito para os primeiros engloba necessariamente as segundas. Deste modo, seguindo uma interpretação literal do texto, para que aquela condição se possa dar como verificada são necessários pelo menos dois recortes profundos e pelo menos duas reentrâncias, ou pelo menos três recortes profundos e uma reentrância. Esta conclusão parece igualmente poder ser defendida na versão oficial em língua espanhola, a qual a nossa parece seguir de modo mais próximo. Como consequência prática do anteriormente referido, aos dois recortes profundos que são as baías do Tejo e do Sado deveriam juntar-se duas reentrâncias para que as condições impostas pelo artigo 7°, n .0 1, se pudessem dar como verificadas. No traçado português este requisito poderá ser satisfeito com recursos às reentrâncias adjacentes nas quais estão traçadas LFBR. Como se pode verificar na Figura 29, essas reentrâncias poderiam ser as definidas pela LFBR entre o Cabos de Sines e de S. Vicente, embora este último apresente um comprimento que pode ser considerado como excessivamente longo pela doutrina internacional C433l .
12.3. Franja de ilhas ao longo da costa na sua proximidade imediata 12.3.1. Portugal continental
Na costa continental portuguesa as ilhas Berlengas constituem as únicas formações insulares integradas no sistema de LFBR, cujas distâncias a terra variam entre as 9,4 M (17,4 km) e as 5,5 M (10,2 km). Para aferir da aptidão destas ilhas para gerar zonas marítimas importa, inicialmente, avaliar a respectiva natureza e determinar se esta se enquadra nas disposições pertinentes da CNUDM. No que respeita à sua natureza as ilhas Berlengas constituem uma reserva natural, ten432 433
Cfr. 5 .4.1 supra. Cfr. parágrafo 5.6.4 infra.
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do sido estabelecida uma área a evitar para a navegação mercante com mais de 300 toneladas<434 ). Não obstante, o arquipélago tem moradores em permanência, com actividades económicas próprias, designadamente, de âmbito turístico, o que pode ser facilmente verificado nos sítios da especialidade na Internet. Tendo em conta o disposto no artigo 121 o da CNUDM, os factos anteriormente mencionados levam a crer que as Berlengas são juridicamente uma ilha com capacidade para gerar zonas marítimas nos mesmos termos que as outras formações terrestres. Mesmo que existissem hesitações relativamente a esta qualificação, que não parece ser o caso, os artigos 7°, n. 0 4, e 13°, n. 0 1, da CNUDM, dissipam definitivamente qualquer dúvida que ainda pudesse existir sobre a possibilidade de as ilhas do arquipélago das Berlengas poderem integrar um sistema de LFBR, como já referido anteriormente. A aptidão intrínseca resultante das características físicas próprias que as ilhas do arquipélago das Berlengas (e das Formigas, no arquipélago dos Açores) possam ter para integrarem um sistema de LFBR por si só parece não chegar para que o traçado nelas existente seja válido. É necessário também que, para cada um daqueles grupos, se verifiquem os outros pressupostos do traçado contidos no artigo 7° da CNUDM. As 5 ilhas que constituem o arquipélago das Berlengas apresentam um desenvolvimento relativamente perpendicular à costa. Tendo em conta o aspecto meramente quantitativo e as referências doutrinárias anteriormente citadas, 5 parece ser um número aceitável, que poderia satisfazer o pressuposto numérico para uma franja de ilhas. O mesmo se passa relativamente ao conceito de "proximidade imediata" visto que, segundo os entendimentos apresentados, os valores tidos como aceitáveis iam das 12 M às 48 M. Das cerca de 93 M de costa coberta pelas LFBR de e para as ilhas Berlengas, apenas cerca de 3 M poderão corresponder à respectiva projecção relativamente à linha de costa. Com uma diferença numérica tão acentuada tudo leva a crer que esta parte do traçado não cumpre os requisitos propostos pela doutrina internacional que permitem a qualificação do arquipélago das Berlengas como uma franja de ilhas para efeitos da aplicação do artigo 7°, n. 0 1, da CNUDM. A condição objectiva proposta pelo Departamento de Estado Norte-Americano segundo a qual a franja de ilhas deve cobrir pelo menos 50% da costa principal, dificilmente pode ser dada como verificada relativamente ao arquipélago das Berlengas<435). O mesmo se verifica relativamente à doutrina citada. Apesar do referido, é com alguma surpresa que se constata que esta é a única parte do traçado das LFBR do continente relativamente ao qual os EUA nada referem no protesto apresentado, facto que o leva a crer que poderá ter sido considerado como aceite<436 ).
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Decreto-Lei n. 198/2006, de 19 de Outubro, publicado no Diário da República Série I-A, N. 202, de 19 de Outubro de 2006. Estabelece o regime jurídico dos esquemas de separação de tráfego a vigorar nos espaços marítimos sob jurisdição nacional. 435 Cfr. parágrafo 5.5.3 supra. 436 Cfr. parágrafo 10.3 supra. 434
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12.3.2. Arquipélago dos Açores Tendo em conta a configuração das ilhas do grupo oriental do arquipélago, representado na Figura 30, mesmo considerando que apenas a existência da ilha de Santa Maria poderia ser entendida como um local coberto por uma franja de ilhas que cobre a costa Sul da ilha de S. Miguel, verifica-se que a projecção das ilhas de Santa Maria e das ilhas FormigasC437l na costa Sul da ilha de S. Miguel, não atinge 50% de cobertura. A distância de 43 M que existe entre as ilhas de Santa Maria e S. Miguel supera os valores defendidos por parte da doutrina, mas fica aquém das 48 M propostas pelo Departamento de Estado Norte-Americano. Comparativamente com a área terrestre correspondente, o grupo oriental do arquipélago dos Açores é que apresenta maiores áreas acrescidas de jurisdição em resultado do traçado de LFBR. Em consequência disso, e na ausência de uma verificação rigorosa dos critérios que habilitem tal traçado, parece ser o que mais se afasta do espírito do artigo 7° da CNUDM. A razão entre as superfícies de terraC438l e de mar entre as ilhas encerradas pelo traçado de LFBR é 1:45C439l, valor substancialmente inferior ao que corresponde no Caso das Pescas, à razão entre as áreas de terra e mar encerradas pelas LFBR da NoruegaC440l. O grupo central do arquipélago dos Açores, representado na Figura 31, é de todos os grupos insulares o que oferece menores dúvidas quanto ao respectivo traçado. Considerando a ilha do Pico como a principal do grupo que é envolvido pelo traçado das LFBR, uma percentagem muito grande das costas Norte e Oeste são cobertas por outras ilhas, designadamente S. Jorge e Faial. O mesmo raciocínio é válido se for considerada como principal, para este efeito, a ilha de S. Jorge. Esta ilha, cuja costa virada a Sul é integralmente coberta pelas ilhas do Pico e Faial, constitui em conjunto, e com as águas que encerram, uma unidade. Tendo ainda em conta a proximidade a que as ilhas se encontram umas das outras, 3,3 Me 9,5 M, fica assim cumprido o critério da existência de uma franja de ilhas na proximidade imediata, em conformidade com o artigo 7°, n .0 1, da CNUDM. A razão entre as superfícies de terraC441l e de mar entre as ilhas encerradas pelo As ilhas Formigas não são habitadas, nem se prestam, pelo menos aparentemente, à vida económica. Face ao texto do artigo 121°, n. 0 3, da CNUDM, parece difícil atribuir-lhe outra qualificação que não seja a de rochedo, sem aptidão para gerar ZEE e plataforma continental. Por outro lado, uma vez que nas referidas ilhas existe um farol (Nac. - LL670; Int. D-2038) o texto do artigo 7°, n. 0 4, da CNUDM, vem conferir-lhe aptidão intrínseca para integrar um sistema de LFBR. 438 As superfícies emersas das ilhas de S. Miguel e Santa Maria são, respectivamente, 768,8 e 99,6 km2 . 439 Valor obtido dividindo a área de mar encerrada pelas LFBR pela área correspondente à ilha que se considera projectada (Santa Maria) sobre a principal (S. Miguel). 44 °Cfr. 5.6.2 supra. 441 As superfícies emersas das ilhas de S. Jorge, Pico e Faial são, respectivamente, 246,0, 448,9 e 175,3 km2 . 437
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traçado de LFBR é 1:3,4<442), valor mais favorável que os 1:3,5 de referência, acima citados<443). Ao já mencionado acresce ainda o facto de, no que respeita ao mar territorial e zona contígua, o padrão originado pelo desenho do limite exterior destas zonas marítimas ser complexo e o do traçado resultar um acréscimo de áreas de jurisdição pequeno e apenas respeitante ao "suavizar" do traçado. Pelas áreas envolvidas, as LFBR existentes nas ilhas Terceira e Graciosa não tem qualquer expressão no traçado geral não sendo, por isso, dignas de relevo. Apesar de não prejudicarem a apreciação geral relativamente a este grupo, estas LFBR, embora desprezáveis e de utilidade nula, também não encerram recortes profundos, reentrâncias de relevo nem englobam franjas de ilhas. Seguindo um raciocínio idêntico aos outros grupos, no grupo ocidental, apresentado na Figura 32, verifica-se que a projecção da ilha do Corvo sobre o lado Norte da ilha das Flores cobre-a numa percentagem muito significativa. Embora, em bom rigor, possa parecer difícil de aceitar que apenas uma ilha possa constituir uma franja de ilhas, o certo é que não existe a nível internacional um valor com aceitação alargada para este critério, relembrando-se o Departamento de Estado Norte-Americano como proponente de um critério de cobertura da costa principal, em vez de um número de ilhas. Considerando o traçado em si, com os factos numéricos que lhe estão associados, parece estar verificada a finalidade do artigo 7° da CNUDM, uma vez que o padrão correspondente ao limite exterior das zonas marítimas fica mais simples, apenas com o acréscimo de áreas de soberania e jurisdição correspondentes a essa simplificação. Neste grupo a razão entre as áreas de mar e terrestré 444) envolvidas no traçado é 1:11 <445), sendo neste aspecto claramente insatisfatório por ficar significativamente abaixo do valor 1:3,5 anteriormente referido< 446).
12.3.3. Arquipélago da Madeira
Dos dois traçados das LFBR no arquipélago da Madeira, representado na Figura 33, apenas o correspondente às ilhas da Madeira e Desertas é digno de relevo. O traçado ao redor da ilha de Porto Santo não encerra recortes profundos nem reentrâncias, não liga quaisquer ilhas na proximidade imediata, nem tem 442
Valor obtido dividindo a área de mar encerrada pelas LFBR pela área correspondente às ilhas que se consideram projectadas (S. Jorge e Faial) sobre a principal (Pico). Sendo considerada como principal a ilha de S. Jorge por possuir uma costa de projecção superior e como ilhas projectadas o Pico e o Faial, a razão é 1:2,3 sendo ainda mais favorável. 443 Cfr. parágrafo 5.6.2 supra. 444 As superfícies emersas das ilhas das Flores e do Corvo são, respectivamente, 142,5, 17,5 km2 • 445 Valor obtido dividindo a área de mar encerrada pelas LFBR pela área correspondente à ilha que se considera projectada (Corvo) sobre a principal (Flores). 446 Cfr. parágrafo 5.6.2 supra.
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qualquer interesse em termos de simplificação do padrão correspondente aos limites exteriores das zonas marítimas. Em contrapartida, também não implica um aumento perceptível de áreas de jurisdição. Como argumentos para a justificação do traçado entre as ilhas da Madeira e das Desertas pode ser mencionado que as ilhas Desertas constituem uma franja de ilhas ao longo da costa Sueste da ilha da Madeira, na sua proximidade imediata, tendo em conta os valores propostos pela doutrina. Este argumento pode ser reforçado pela distância de apenas 10,1 M entre as referidas ilhas. Apesar de envolver um acréscimo de áreas de soberania e jurisdição, o traçado simplifica os padrões correspondentes aos limites exteriores do mar territorial e da zona contígua. A razão entre as áreas de mar e terrestre< 447l envolvidas no traçado é 1:50<448), sendo neste aspecto claramente insatisfatório por ficar significativamente abaixo do valor 1:3,5 anteriormente referido' 449) .
13. Eventual responsabilidade internacional resultante do traçado de linhas de base recta portuguesas 13.1. Pressupostos da responsabilidade internacional
O regime da responsabilidade internacional do Estado é, presentemente, regulada pelo costume internacional<450). BROWNLIE refere que "responsabilidade internacional" pode ser entendida genericamente como um conjunto de princípios de Direito Internacional, de regras substantivas e de acções ou omissões que podem ser qualificadas como ilícitas face às regras que definem direitos e deveres<451). A responsabilidade internacional constitui uma área do Direito Inter-
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As superfícies emersas das ilhas da Madeira e Desertas são, respectivamente, 745,0 e 16,4 km2 . 448 Valor obtido dividindo a área de mar encerrada pelas LFBR pela área correspondente à ilhas que se consideram projectadam (Desertas) sobre a principal (Madeira). 449 Cfr. parágrafo 5.6.2 supra. 450 AUST, A. 2005, Handbook of International Law, Cambridge: Cambridge University Press, p. 407; BRITO, Waldimir. 2008 . Direito Internacional Público. Coimbra: Coimbra Editora, pp. 456 a 463; GOUVEIA, J. B. 2004, Manual de Direito Internacional Público, 2" ed., Coimbra: Almedina, pp. 696 a 708; BAPTISTA, E. Correia. 2004, Direito Internacional Público - Sujeitos e Responsabilidade, Coimbra: Almedina, Vol. II, pp. 447 a 553; MIRANDA, Jorge. 2006. Curso de Direito Internacional Público. 3" ed. reimpressa em 2008. Cascais: Principia, pp. 331 e 332.; DINH, N. Q ., DAILLIER, P., e PELLET, A. 2002, Droit International Public, 7a ed., Paris: Librairie Général de Droit et Jurisprudence, pp. 762 a 819; CASSESSE, A. 2001, International Law, New York: Oxford University Press, pp. 182 a 211; SHAW, M. N. 2008. International Law. 6'h ed. Cambridge: Cambridge University Press, pp. 785 a 789. 1 ' BROWNLIE, I.. 2003. Principies of Public International Law. 6' 11 ed. Oxford: Oxford University Press, p. 420. Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
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nacional em rápida evolução, para o qual muito têm contribuído os trabalhos da CDI(452 ), através de um projecto de codificação(453 ) designado, normalmente, por Articles on the Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts (ARSIWA). A ARSIWA constitui uma compilação do que de mais relevante existe nesta matéria relativamente ao costume internacional(454 ). É unanimemente aceite pela doutrina internacional que a responsabilidade internacional surge com a prática de um acto internacionalmente ilícito [internatíonally wrongful act]. Para que um acto seja internacionalmente ilícito é necessária a existência de uma conduta que consubstancia uma acção ou omissão que reúna simultaneamente duas condições: seja imputável a um Estado, nos termos do Direito Internacional; e que constitua uma violação das obrigações internacionais desse Estadd455 ). À existência de um acto internacionalmente ilícito por parte de um Estado poderá estar, naturalmente, associada uma eventual reparação de danos, independentemente da natureza destes. Assim, o artigo 31° ARSIWA(456 ), respeitante a indemnização, dispõe que o Estado faltoso tem o dever de indemnizar na íntegra os danos causados pelo acto internacionalmente ilícito, sendo que essa compensação deve abranger qualquer dano seja ele material ou moral. Contextualizando às LFBR o anteriormente referido, importa agora fazer uma análise, ainda que muito breve no sentido de avaliar a possibilidade de o Estado português poder vir a ser responsabilizado internacionalmente pelo traçado das LFBR, tanto no continente, como nos arquipélagos dos Açores e da Madeira. Se for entendido que o traçado português é inválido no seu todo, ou em parte dele(457), a consequência poderá ser, pelo menos em teoria, que os actos praticados com base em poderes dele resultantes venham a constituir Portugal em responsabilidade internacional. Para esse efeito há que analisar os efeitos que podem resultar do traçado à luz dos pressupostos da responsabilidade internacional. 152 '
Cfr. INTERNATIONAL LAW COMMISSION. 2001. Draft articles on Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts, with commentaries. New York: United Nations 453 CRAWFORD, J.. 1989. Islands as Sovereign Nations. The International and Comparative Law Quarterly. Vol. 38. 2"d Series, pp. 277 a 298. 454 AUST, A .. 2005. Handbook ofinternational Law. Cambridge: Cambridge University Press, p. 408. 455 ARSIWA, artigo 2 (Elements of na internationally wrongful act of a State). T71ere is an internationally wrongful act of a State when conduct consisting of an action or omission: (a) is attributable to the State under internationallaw; and (b) constitutes a breach of an international obligation of the 5 ta te. 456 Artigo 31 (Reparation). 1. The responsible State is under an obligation to make full reparation for the injury caused by the international wrongful act. 2. Injury includes any damage, whether material or moral, caused by the internationally wrongful act of a State. 457
Por violação dos artigos ~ ou 10° da CNUDM, entendidas aqui como normas primárias segundo a classificação de Correia BAPTISTA (BAPTISTA, E. Correia. 2004, Direito Internacional Público- Sujeitos e Responsabilidade, Coimbra: Almedina, Vol. II, pp. 449 e 450.
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Como referido anteriormente a delimitação das fronteiras e limites das zonas marítimas é uma competência exclusiva dos Estados costeiros, mas que deve ser efectuada em conformidade com o Direito Internacional. É uma manifestação da igualdade soberana do Estado, em conformidade com o estabelecido na Constituição da República Portuguesa (CRP)(458l. O aspecto internacional desta competência foi referido supra, não apenas no que respeita a Portugal, mas também a alguns dos casos de maior relevo da comunidade internacional, através dos protestos apresentados. Como se verifica nas Figura 29 à Figura 33 existe uma área significativa correspondente ao acréscimo de mar territorial e zona contígua originados pelo traçado das LFBR que não existiria se a linhas de base consideradas fossem as linhas de base normal, i.e., a linhas de costa. Abstractamente, e num plano meramente teórico, todas as infracções nestas áreas teriam um regime potencialmente menos intenso se não existissem as referidas LFBR. É neste aspecto, no âmbito da natureza dos actos praticados, que existe maior espaço para que, eventualmente, possam vir a ser ofendidos direitos passíveis de vir a constituir o Estado português em responsabilidade internacional. No Caso das Pescas, para além dos pedidos efectuados ao TIJ relativos às regras de Direito Internacional aplicável aos factos, foi pedida uma indemnização pelo Reino Unido à Noruega não pelo traçado em si, mas com base nas consequências dos actos praticados pelas autoridades norueguesas nas áreas acrescidas de mar territorial norueguês(459l. A eventual invalidade do traçado português, que constitui o suporte espacial à comissão de actos internacionalmente ilícitos, primeiro pressuposto para a responsabilidade internacional, não é analisada autonomamente na presente parte, mas ao longo de todo o texto. Por agora importa apenas identificar eventuais danos que podem advir de actos praticados nas áreas acrescidas de jurisdição.
13.2. V ali da de internacional do traçado português
Um dos aspectos que se pretendeu demonstrar ao longo do presente texto foi a inexistência de uma interpretação internacionalmente aceite relativamente aos conceitos indeterminados contidos no artigo 7° da CNUDM. Perante este facto, será possível afirmar com segurança que o traçado português, ou outro traçado qualquer, viola o disposto nos vários números daquele preceito? Parte significativa da doutrina refere-se aos vários exemplos internacionais apontados qualificando-os como ilegais, embora haja quem adopte qualificativos menos
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Artigos 5°, n. 0 2; 84°, n.os 1, alínea a) e 2; 164°, alínea g. Caso das Pescas, pp. 121, 123 e 126.
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concretos, tais como "excessivos"<460l, "extravagantes"<461 l ou "excepcionais"<462l. A prática generalizada que vem sendo seguida a nível internacional desde a segunda metade do século passado aponta consistentemente em dois sentidos. O primeiro afasta o entendimento defendido por parte da doutrina, e mesmo do TIJ, que o traçado de LFBR deve revestir uma natureza excepcional, a ser aplicado apenas em circunstâncias geográficas muito específicas. A realidade aponta para uma adesão muito significativa a este procedimento por parte dos Estados costeiros, prevendo-se que no final do processo possam vir a existir cerca de cem Estados com LFBR traçadas nas respectivas costas. É muito difícil de sustentar com base no mapa de 2007 da DOALOS<463l, num universo de pouco mais de cento e cinquenta Estados, 90 Estados a traçarem LBR estão a seguir um procedimento que é um procedimento excepcional. Parece óbvia a necessidade de uma reflexão sobre qual das situações pode, de facto, ser considerada como regra ou como excepção< 464l. O segundo sentido consiste no facto de parte significativa dos traçados ser efectuada de modo tão afastado do texto do artigo 7° que dificilmente nele poderá encaixar, mesmo seguindo uma interpretação extensiva. As reacções internacionais a esta prática vieram, de modo sistemático, apenas dos EUA, fruto da política do FONP e PDD-32. O comportamento da comunidade internacional poderá ter relevância tanto na demonstração de uma prática subsequente para efeitos de interpretação dos conceitos indeterminados em causa, como na eventual emergência de costume internacional, se vier a ser considerado como existente a necessária opínío jurís. Um retrocesso neste processo internacional e nos métodos empregues não se afiguram de todo como prováveis, facto que poderá contribuir de modo significativo para a formação da referida opinio juris. Sendo procedentes os argumentos indicados com base nos factos referidos, parece poder inferir-se que um traçado considerado excessivo
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DZUREK, D. J.. 2004. Maritime and Space Borders. ln GANSTER, P. e DAVID, E. L. (eds.). Borders and Border Politics in a Globalizing World. Lanham: Rowman & Littlefield Publishers, pp. 301 a 316; BLAKE, G .. 1999. Boundary Disputes. ln PACIONE, M. (ed.). Applied Geography: Principies and Practice. New York: Routledge, p. 364; ROACH, J. A. e SMITH, R. W.. 1996, pp. 15 e ss. 461 CHARNEY, Jonathan e ALEXANDER (eds.), Lewis. 1996, Intemational Maritime Boundaries, Dordrecht; Boston; London: Martinus Nijhoff Publishers, Vol. I, p. 1137; CARLETON, C. e SCHOFIELD, C.. 2001. Developments in the Technical Determination of Maritime Space: Charts, Datums, Baselines, Maritime Zones and Limits. Durham: International Boundaries Research Unit, p. 40; AUST, A.. 2005. Handbook of International Law. Cambridge: Cambridge University Press, p. 301; FRIEDHEIM, R. L.. 1992. Negotiating the New Ocean Regime. Columbia: University of South Carolina Press, p. 278. 462 FORBES, V. L. 1995, The Maritime Boundaries of the Indian Ocean Region, Singapore: Singapore University Press, p. 90. 463 DOALOS. 2007. Law of the Sea Bulletin n. 63. 464 Importa ainda ter em conta as características geográficas dos cerca de 40 Estados que não traçaram LBR nem LBA nas respectivas costas. Cfr. nota 249. 0
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face ao texto artigo 7° da CNUDM não significa, necessariamente e apenas por si isso, que seja contrário ao Direito Internacional. A aceitação das práticas vai contribuindo para a respectiva consolidação. Quanto às águas encerradas pelos traçados, o passar do tempo vai consolidando a formação dos títulos históricos. No que respeita ao traçado português, após a análise efectuada face ao disposto nos artigos 7° e 10° da CNUDM, seguindo uma interpretação restritiva quanto aos conceitos contidos no primeiro daqueles artigos, considera-se justificado o traçado de LFBR entre os Cabos Raso e de Sines(465l, por se situarem num local onde existem recortes profundos ou reentrâncias, e os traçados dos grupo central e ocidental do arquipélago dos Açores(466l . Relativamente a este arquipélago, o primeiro grupo por existir uma franja de ilhas na proximidade imediata, ao passo que no segundo as LFBR simplificam o limite exterior das zonas marítimas sem aumentar indevidamente as respectivas áreas. Mesmo avaliada fora do respectivo contexto geográfico, a baía do Tejo constitui uma baía jurídica nos termos do artigo 10° da CNUDM. As restantes partes do traçado português, ou seja, as LFBR entre A Ver-o-Mar e a foz do rio Vouga, do Cabo Mondego às ilhas Berlengas e destas para o Cabo da Roca, do Cabo de Sines ao Cabo de S. Vicente e da Ponta de Sagres ao Cabo de Santa Maria, as LFBR do arquipélago da Madeira e, em particular, as LFBR entre as ilhas do grupo oriental do arquipélago dos Açores pelas áreas em causa, poderão ser qualificadas como excessivas face ao supra referido preceito quando interpretado restritivamente. De notar, igualmente, que algumas destas LFBR ao anular os padrões complexos da costa não aumentam significativamente a largura das zonas marítimas a elas referenciadas e, acima de tudo, não subtraem, como adiante se verá, direitos significativos à comunidade internacional. Não parece, por isso, prudente concluir-se que, apenas por esse facto, não são válidas face ao Direito Internacional. Os próximos anos poderão ser decisivos para o esclarecimento desta afirmação, tanto pela via da confirmação por parte dos restantes Estados costeiros que ainda não traçaram as LFBR no que concerne à interpretação que vão seguir relativamente ao artigo 7°, como pela eventual confirmação da existência de regra costumeira, designadamente, através de uma decisão do TIJ. Uma vez que o traçado é uma competência exclusiva do Estado costeiro, embora sujeita às regras internacionais, o ónus da demonstração da invalidade impenderá sobre quem a invoca. Para esse efeito não basta a referência aos vários números do artigo 7° da CNUDM, sendo indispensável um estudo comparado da doutrina e práticas internacionais e das respectivas consequências jurídicas. Tendo em conta tudo o anteriormente referido, fica por saber se a melhor argumentação jurídica e técnica será suficiente para demonstrar a invalidade de algumas partes do traçado de LFBR português, mesmo nos locais em que as ca465 466
Sem prejuízo do referido em 12.1.3. supra, relativamente à existência de título histórico. Considera-se de afastar a qualificação das LFBR traçadas entre as ilhas de cada um dos arquipélagos como "arquipelágicas", pelas razões apresentadas em 11 supra.
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racterísticas geográficas levam a uma justificação menos robusta do traçado, de modo a poder originar responsabilidade internacional por actos praticados em áreas acrescidas de soberania ou jurisdição. Os elementos existentes tendem a apontar para uma resposta negativa.
13.3. Dano
Tendo em conta a Figura 29 à Figura 33, verifica-se que, presentemente, à soberania e jurisdição portuguesa são acrescentadas as áreas indicadas a vermelho e a azul resultantes do traçado das LFBR. Importa agora sabe1~ face ao Direito Internacional, que utilidades(467)poderá a comunidade internacional ficar privada em consequência dos poderes que acrescem ao Estado português em razão desse aumento. Considera-se que estas limitações podem situar-se em dois níveis mais significativos. O primeiro, em prejuízo do exercício do direito de passagem inofensiva, cuja expressão mais acentuada poderia corresponder à não existência daquele direito na faixa de mar interior às ilhas Berlengas, no espaço entre ilhas do grupo oriental do Arquipélago dos Açores e na imposição de restrições às liberdades de navegação e sobrevoo nas áreas a vermelho pelo facto de virem a ficar incluídas no mar territorial. O segundo, tem a ver com a inclusão sob domínio português de recursos naturais, que de outro modo ficariam à disposição da comunidade internacional tanto por via das liberdades de alto-mar como pelos mecanismos estabelecidos para a Área.
13.3.1. Exercício de direitos de navegação 13.3.1.1. Direito de passagem inofensiva nas águas interiores
Para uma melhor compreensão sobre o efeito das LFBR definidas no DL 495/85 no exercício do direito de passagem inofensiva exercido pela navegação internacional nas águas por elas encerradas, importa regressar à decisão do Caso das Pescas, de 1951. A decisão do TIJ, no Caso das Pescas de 1951, veio trazer grandes preocupações às potências marítimas de época que viam na possibilidade de serem traçadas LFBR uma restrição grave ao princípio de liberdade de navegação. No decurso das reuniões da CDI, que tiveram lugar no âmbito dos trabalhos preparatórios das Convenções de Genebra, de 1958(468 ), foi defen467
Seguindo a designação (utilidades) usada por QUADROS, Fausto de, OTERO, Paulo. e GOUVEIA, J. Bacelar. 2004, p. 49. No presente texto utilizado como compreendendo a universalidade de benefícios ou vantagens que estão à disposição da comunidade internacional em conformidade com os diferentes regimes das zonas marítimas. 468 Cfr. entre outros YBILC. 1952. Vol. I. New York: United Nations, pp. 171-178; Ibíd., pp. 32 a 34; YBILC. 1953. Vol. II. New York: United Nations, pp. 78 a 85; YBILC. 1954. Vol. I.
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dida por alguns Estados, em particular pelo Reino Unido, a necessidade de vir a constar no texto final uma fórmula que salvaguardasse o direito de passagem inofensiva nas águas que, antes do estabelecimento das LFBR, faziam parte do mar territorial ou do alto-mar. O texto discutido ao longo das sessões da CDI variou entre uma fórmula mais restritiva e outra mais permissiva relativamente ao exercício do direito de passagem inofensiva. A primeira, que previa o direito de passagem inofensiva apenas nos casos em que as águas fechadas pelas LFBRfossem anteriormente usadas pelo tráfego internacional, foi a que obteve a maioria dos votos<469l, tendo constituído o texto final aprovado pela CDI< 470l e a base de trabalho para a I Conferência. A outra fórmula, mais permissiva, previa o direito de passagem inofensiva em todas as águas que viessem a ser fechadas pelas LFBR quando, anteriormente, essas águas fizessem parte do mar territorial ou do alto-mar. Foi esta a fórmula que veio a constar na CGMTZC e que, mais tarde, foi adoptada no texto da CNUDM. O regime das águas interiores no que respeita ao regime do exercício do direito de passagem inofensiva conheceu, assim, influência directa da decisão do Caso das Pescas, que veio a constar no texto de ambas as Convenções. Por regra, o direito de passagem inofensiva não existe nas águas interiores. Tanto a CGMTZC como a CNUDM referem que as águas situadas no interior da linha de base do mar territorial fazem parte das águas interiores do Estado<471>, sendo as respectivas leis e regulamentos aplicáveis nestas águas do mesmo modo que o são no território emerso. Não estão previstas, igualmente, quaisquer regras que permitam a utilização dessas águas pela navegação internacional em trânsito. Porém, o artigo 5°, n. 0 2, da CGMTZC, bem como o artigo 8°, n. 0 2, da CNUDM referem que, quando o traçado de uma LFBR encerrar como águas interiores, águas que anteriormente não eram consideradas como tais, aplicar-se-á o direito de passagem inofensiva. Deste modo, o direito de passagem inofensiva pode continuar a ser exercido pela navegação internacional da mesma maneira que o New York: United Nations, pp. 65 a 86; Ibid., pp. 154 e 155; YBILC. 1955. Vol. I. New York: United Nations, pp. 98, 99, 145, 198 e 199; YBILC. 1956. Vol. I. New York: United Nations, pp. 8 a 11 e 188 a 190; Ibid., pp. 8 a 9. 469 WATTS, A .. 1999, p. 37. 470 YBILC. 1956. Vol. II, p. 257: <<Where the establishment of a straight baseline has the effect of enclosing as internal waters areas which previously had been considered as part of the territorial sea or of the high seas, a right of innocent passage, as defined in article 15, through those waters shall be recognized by the coas tal State in all those cases where the waters have normally been used for international traffic.». <<Onde o traçado de uma linha de base recta tiver como consequência a inclusão nas águas interiores de áreas anteriormente consideradas como fazendo parte do mar territorial ou do alto-mar, o direito de passagem inofensiva, tal como definida no artigo 15°, deverá ser reconhecido pelo Estado costeiro nos casos em que essas águas tivessem normalmente sido usadas pelo tráfego internacional>>. (Tradução livre do autor). 471 Artigos 5°, n. 0 1, e 8°, n .0 1, respectivamente. Lusíada. Direito. Lisboa, n .0 8 I 9 (2011)
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era antes do traçado das LFBRC472 >. Tendo em conta o anteriormente referido, a existência do direito de passagem inofensiva nas águas interiores de um Estado costeiro não depende apenas do traçado das respectivas LFBR. É fundamental saber o momento em que tais LFBR entraram em vigor, de modo a que seja possível aferir a aplicabilidade dos regimes previstos nos artigos 8°, n. 0 2, da CNUDM, ou 5°, n. 0 2, da CGMTZC. Esse momento é determinante para a fixação do regime jurídico substantivo aplicável às referidas águas, no que respeita ao exercício do direito de passagem inofensiva por parte da navegação internacional. O depósito das Convenções de Genebra de 1958, designadamente da CGMTZC, foi efectuado em Portugal em 19 de Dezembro de 1962<473 >. Por ocasião da publicação do primeiro diploma que continha a definição de LFBR (DL 47771/67), Portugal já estava vinculado ao estabelecido nesta matéria na CGMTZC, pelo que lhe seria aplicável o disposto no artigo 5°, n. 0 2 desta Convenção<474>. Posteriormente, o DL 495/85 veio revogar o DL 47771 I 67, mantendo-se a situação anterior no que respeita ao exercício do direito de passagem inofensiva relativamente às águas então fechadas pelas LFBR. A CNUDM entrou em vigor relativamente a Portugal em 3 de Dezembro de 1997<475 >, prevalecendo, na matéria em apreço, sobre as disposições pertinentes contidas na CGMTZC< 476l que, como já se referiu, são idênticas. Deste modo, no que respeita ao exercício do direito de passagem inofensiva nas águas interiores, existem duas circunstâncias especiais que devem ser tomadas em consideração. A primeira respeita às águas interiores no sentido mais estrito, ou seja, as existentes anteriormente ao traçado das LFBR, ou quando estão Artigo 5°, n. 2, da CGMTZC: "Quando a definição de uma linha de base recta, de acordo com o disposto no artigo 4°, tiver como consequência a inclusão nas águas interiores de áreas anteriormente consideradas como fazendo parte do mar territorial ou do alto-mar, vigorará nestas áreas o direito de passagem inofensiva, prescrito nos artigos 14° e 23°". Artigo 8°, n. 0 2, da CNUDM: "Quando o traçado de uma linha de base recta, de conformidade com o método estabelecido no artigo 7", encerrar águas interiores, águas que anteriormente não eram consideradas como tais, aplícar-se-á a essas águas o direito de passagem inofensiva, de acordo com o estabelecido na presente Convenção". 473 Aviso de 24 de Janeiro de 1963. Publicado no Diário da República la Série, N. 29, de 4 de Fevereiro de 1963. Depósito junto do Secretário-Geral das Nações Unidas dos instrumentos de ratificação das Convenções de Genebra de 1958. 474 Na parte referente às LFBR do continente, que continha apenas as LFBR nas fozes do Tejo e do Sado, parte a doutrina nacional defende que as águas encerradas por estas linhas são históricas, constituindo assim baías históricas. Cfr. 12.1.3. 475 Aviso n. 0 81/98, de 21 de Abril de 1998. Publicado no Diário da República 1a Série-A, N.o 93, de 21 de Abril de 1998. Torna público ter, segundo comunicação do Secretário-Geral das Nações Unidas de 24 de Fevereiro de 1998, Portugal depositado, em 3 de Novembro de 1997, o instrumento de ratificação da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Ma1~ de 10 de Dezembro de 1982, e do Acordo Relativo à Aplicação da Parte XI da Convenção, adoptado em 28 de Julho de 1994. 476 CNUDM, artigo 311°, n. 1. 472
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em causa águas históricas, nas quais não existe o direito de passagem inofensiva. A segunda refere-se às águas interiores sujeitas ao regime de passagem inofensiva, nos termos acima referidos, isto é, são as águas que passaram a ser consideradas águas interiores por efeito de um diploma legal que define as LFBR, mas que antes faziam parte do mar territorial, nas quais o Estado costeiro tem o dever de salvaguardar o exercício do direito de passagem inofensiva à navegação internacional. O direito de passagem inofensiva não existe no primeiro caso, devendo ser assegurado pelo Estado costeiro no segundo caso<477l.
13.3.1.2. Direito de passagem inofensiva no mar territorial
Apesar de o direito de passagem inofensiva estar assegurado nas águas interiores portuguesas resultantes do traçado de LFBR<478l, que anteriormente não eram consideradas como tais, existem actividades que estarão interditas nas áreas acrescidas de mar territorial, representado a vermelho nas Figura 29 a Figura 33. O direito de passagem inofensivo está assegurado por via dos artigos 17° e seguintes da CNUDM, mas as actividades que sejam prejudiciais à paz, à boa ordem ou à segurança do Estado costeiro, designadamente as mencionadas no n. 0 2 do artigo 19° da CNUDM são interditas, uma vez que fazem com que a passagem não seja inofensiva. Acontece, porém, que o impedimento por parte de Portugal de qualquer das referidas actividades dificilmente originará um dano que lhe possa ser imputável em termos de responsabilidade internacional, uma vez que a maioria das referidas actividades lhe seriam, elas próprias, potenciais causadoras de danos. Entre as várias alíneas do artigo 19°, n. 0 2, da CNUDM verifica-se que, relativamente às alíneas a), c), d) e k), não se afigura como possível o Estado português vir a ser responsabilizado internacionalmente por impedir naquelas águas qualquer actividade que consista numa ameaça ou uso de força contra a sua soberania ou integridade territorial, proibir a obtenção de informações que lhe sejam prejudiciais, evitar actos de propaganda hostis destinados a atentar contra a sua defesa ou segurança, bem como evitar a perturbação dos sistemas de comunicação, serviços ou instalações. O mesmo se passa relativamente ao embarque ou desembarque ilícito de pessoas, moedas ou produtos. No n. 0 2 do mesmo artigo são ainda referidas actividades cujo regime jurídico é susceptível de regulação mais intensa por parte do Estado costeiro no mar 477
Bacelar GOUVEIA refere como razão para este regime, que qualifica como excepcional, a necessidade de preservação de situações já consolidadas em ordem a não instabilizar a prática sedimentada no tempo. GOUVEIA, J. B.. 1993. O Direito de Passagem Inofensiva no Novo Direito Internacional do Mar. Lisboa: Lex- Edições Jurídicas, pp. 61 e 62. Cfr. também QUADROS, Fausto de, OTERO, Paulo e GOUVEIA, J. Bacelar. 2004, pp. 50 e 51. 478 Sem prejuízo da possível qualificação de as baías do Tejo e do Sado serem qualificadas como baías históricas.
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territorial, do que na ZEE, parecendo manifesta a irrelevância desta especificidade para o elenco de possíveis danos para a comunidade internacional decorrente do traçado português. Entre estas conta-se o regime de protecção de meio marinho, no qual as medidas contra actos intencionais e graves de poluição podem ter consequências diferentes, em especial no que respeita a medidas cautelares e de investigação a bordo, consoante a infracção seja cometida no mar territorial ou na zona económica exclusiva<479l. A lei portuguesa relativa à poluição do meio marinho não distingue, no que respeita à aplicação de coimas, a zona marítima na qual os factos foram cometidos, referindo o artigo 3°, n. 0 3, do Decreto-Lei n. 0 235/2000, de 26 de Setembro<480l "O disposto no presente diploma aplica-se aos factos praticados por agentes poluidores nos espaços marítimos sob jurisdição nacional independentemente da nacionalidade dos mesmos, sem prejuízo do disposto em tratado, convenção ou acordo internacionais que vinculem o Estado Português" . Perante um caso intencional e grave de poluição
marítima nas áreas acrescidas de mar territorial, também se afigura como muito pouco provável uma situação em que do exercício da autoridade do Estado possa originar uma situação de responsabilidade internacional para o Estado português, que tenha como causa directa uma diferença de regime jurídico originado por uma parte do traçado de LFBR que venha a ser considerado inválido à luz do Direito Internacional.
13.3.1.3. Esquemas de separação de tráfego Um facto que desvaloriza ainda mais a importância de eventuais efeitos adversos do traçado de LFBR portuguesas no exercício das liberdades de navegação na proximidade da costa resulta da existência de EST, criados pelo Decreto-Lei n. 0 198/2006, de 19 de Outubro<481l, cuja definição está sujeita a aprovação da Organização Marítima Internacional (OMI)<482l. As costas portuguesas, em especial no continente, são das que tem tráfego mais intenso a nível mundial. A existência dos EST ao largo da costa portuguesa impõe aos navios que transportam 479
CNUDM, artigo 220°. Publicado no Diário da República, 1" série-A, N . 223, de 26 de Setembro de 2000, "Regime das contra-ordenações no âmbito da poluição do meio marinho nos espaços marítimos sob jurisdição nacional". 481 Publicado no Diário da República, 1• Série, N. 0 202, de 19 de Outubro de 2006. As coordenadas dos EST constam na Portaria n. 0 136612006, publicada no Diário da República N. 0 233, de 5 de Dezembro de 2006. 482 O Sub-Committee on Safety ofNavigation (NAV), da OMI, na sua 55• sessão, que decorreu de 27 a 31 July 2009, aprovou uma alteração aos EST portugueses. http: I I www.imo.orgiMediaCentreiMeetingSummaries lN AV IPages INAV-55th-session.aspx Esta decisão ainda não foi objecto de publicação na legislação nacional. 480
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cargas perigosas ou poluentes a granel a obrigatoriedade de seguir pelas linhas nele estabelecidas, situadas em zonas tradicionalmente sujeitas ao regime do alto rnar<483l. Note-se na Figura 39 e Figura 40<484l que os limites interiores das lanes, i.e., os limites mais perto de terra, se situam para lá do mar territorial a cerca de 14 e 15 M da costa, respectivamente. O limite mais afastado do corredor exterior da navegação descendente situa-se a urna distância da costa cerca de 10M para lá do limite exterior da zona contígua. De acordo o Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar, de 1972<485 ) (normalmente conhecido por COLREG), as zonas de tráfego costeiro devem ser evitadas pela navegação directa que pode utilizar com segurança o corredor de tráfego apropriado ao esquema de separação de tráfego adjacente<486l. Isto significa que, mesmo a navegação que não transporte cargas perigosas ou poluentes a granel, deve evitar as zonas de tráfego costeiro e seguir, na medida do possível, os EST. Os EST são ilustrativos das limitações que o exercício do direito de passagem inofensiva vai conhecendo nos dias de hoje, pelo que as rotas a seguir pela navegação marítima perto das costas cada vez menos estão sujeitas à livre descrição dos capitães dos navios ou dos armadores. Verifica-se ainda que os EST obrigam parte muito substancial da navegação mercante a seguir rotas que se situam para fora de todas as áreas acrescidas de mar territorial e zona contígua da costa Oeste de Portugal continental. Tendo em conta o anteriormente referido relativamente ao regime de passagem inofensiva face ao traçado de LFBR, configura-se, assim, corno mínima, ou mesmo nula, a possibilidade de poder vir a existir um incidente que constitua Portugal em responsabilidade internacional.
CNUDM, art. 0 58°, n. 0 2 refere "Os artigos 88° a 115° [pertencentes à Parte VII, alto mar] e demais normas pertinentes de direito internacional aplicam-se à zona económica exclusiva na medida em que não sejam incompatíveis com a presente parte". 484 Portaria 1366/2006, de 5 de Dezembro, Anexo I. 485 Aprovada para ratificação pelo Decreto n. 0 55/78, de 27 de Junho, publicado no Diário da República, 1" Série N. 0 145, de 27 de Junho de 1978. A versão em vigor relativa à Regra 10 foi aprovada para ratificação pelo Decreto n. 0 56/91, de 21 de Setembro, publicado no Diário da República, la Série N. 0 218, de 21 de Setembro de 1991. 486 COLREG, Regra 10, alínea d) refere" (i) A vessel shall not use an inshore traffic zone [zona de mar que se situa entre a linha de costa e os EST] when she can safely use appropriate traffic lane within the adjacent traffic separation scheme. However, vessels ofless than 20 meters in length, sailing vessels and vessels engaged in fishing may use the inshore traffic zone. (ii) Notwithstanding subparagraph (d)(i), a vessels may use an inshore traffic zone when en route to or from a port, offshore installation or structure within the inshore traffic zone, or to avoid immediate danger". 483
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13.3.2. Exploração de recursos naturais 13.3.2.1. Recursos vivos
Os regulamentos para o exerc1c10 de algumas das artes de pesca mais significativas(487l têm como referência para a respectiva actividade uma distância a terra, que deve ser contada a partir da linha de costa( 488l. Para esse efeito, deve entender-se como linha de costa a linha 1 da Figura 1, que é a representada nas cartas náuticas como sendo a linha a partir da qual nunca se fazem sentir os efeitos das marés. É excepção a esta regra o previsto no artigo 8°, n. 0 2, do Regulamento da Pesca por Arte de Arrasto (RPAA) ao mencionar que a distância a terra para o exercício da arte (6 M) seja contada a partir das LFBR entre os cabos Raso, Espichei e Sines, para as embarcações que operem naquela área. Importa deixar, neste âmbito, duas breves notas ao facto de no RPAA os limites interiores ao largo das fozes do Tejo e do Sado serem definidos pelas respectivas LFBR. A primeira tem a ver com o âmbito de aplicação subjectivo dos regulamentos, que é válido tanto para armadores nacionais, como de Estados da UE, ou mesmo de outros Estados, caso venham, eventualmente, a ser firmados acordos nesse sentido. É, por isso, um regulamento que se aplica a quem esteja 487
Regulamento da Pesca por Arte de Armadilha (aprovado pela Portaria ll02-DI2000, de 22 de Novembro, publicada no Diário da República, 1" Série-B, 2" Suplemento, N." 270, de 22 de Novembro de 2000). As várias alterações ao diploma podem ser consultadas em http:l I digesto.dre.ptl digesto I (S( cxxl43qmtafkzfyrhlmza445)) IPaginasiDiplomaDetalhado.aspx?claint=20003614@sl Regulamento da Pesca por Arte de Arrasto (aprovado pela Portaria 1102-EI2000, de 22 de Novembro, publicada no Diário da República, 1a Série-B, 2" Suplemento, N." 270, de 22 de Novembro de 2000). As várias alterações ao diploma podem ser consultadas em http: I I digesto.dre.ptl digesto I (S(uh2uln3keog033acexy23p55)) IPaginasiDiplomaDetalhado.aspx?claint=20003615@sl Regulamento da Pesca por Arte de Cerco (aprovado pela Portaria 1102-GI2000, de 22 de Novembro, publicada no Diário da República, la Série-B, 2" Suplemento, N." 270, de 22 de Novembro de 2000). As várias alterações ao diploma podem ser consultadas em http:l I digesto.dre.ptl digestol (S(jsowsu45t31eül55pltrlt3j)) IPaginasiDiplomaDetalhado.aspx?claint=20003617@sl Regulamento da Pesca por Arte de Emalhar (aprovado pela Portaria 1102-HI2000, de 22 de Novembro, publicada no Diário da República, 1" Série-B, 2" Suplemento, N." 270, de 22 de Novembro de 2000). As várias alterações ao diploma podem ser consultadas em http:l I digesto.dre.ptl digesto I (S(jgc3rozcurid2rnzjhhctd45)) IPaginasiDiplomaDetalhado.aspx?claint=20003618@sl 488 Regulamento da Pesca por Arte de Armadilha, artigos 5" e 8"; Regulamento da Pesca por Arte de Arrasto, artigos 8°, n." , e 11°, alínea c); Regulamento da Pesca por Arte de Cerco, artigo 11°, n." 4; Regulamento da Pesca por Arte de Emalha1~ artigos 4°, n"s 1, 2 e 3, e 5°, nos 2 e 3.
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licenciado para pescar naquela área, independentemente da nacionalidade. A segunda nota tem a ver com o facto de aquele regulamento de pesca constituir o exercício de um direito soberano do Estado costeiro no mar territorial e na ZEE, nos termos dos artigos 2°, n. 0 1, e 56°, n. 0 1, alínea a) da CNUDM( 489l. O âmbito de aplicação espacial destes regulamentos, nomeadamente no que respeita às restrições neles contidas, são as zonas marítimas nacionais onde se pode desenvolver a actividade pesqueira, cujo limite exterior é o da ZEE. Os recursos vivos a que Portugal tem, presentemente, acesso com o actual traçado de LFBR são os mesmos se a referência para a delimitação das zonas marítimas fosse a linha de base normal, i.e., a linha de costa. Tendo em conta o quadro legal presentemente em vigor, não existe prejuízo para a comunidade internacional no que respeita à exploração por Portugal dos recursos vivos, nas respectivas áreas de soberania e jurisdição'490l. Esta situação pode alterar-se ligeiramenté491 l em função da opção futura do legislador, quando for regulamentado o artigo 12°, n .0 1, da Lei 4/2006. Mesmo nesta situação hipotética, importa voltar à frieza dos números para tomar consciência que, ainda assim, o valor de área acrescida continua desprezível(492l. Não se afigura, por isso, como possível que, no âmbito da exploração dos recursos vivos, o exercício da autoridade do Estado nessas áreas possa vir a constituir Portugal em responsabilidade internacional.
13.3.2.2. Recursos não-vivos
O regime jurídico de revelação e aproveitamento de bens naturais existentes na crosta terrestre, genericamente designados por recursos geológicos, está contido no Decreto-Lei n .0 90/90, de 16 de Março (DL 90/90)( 493l . Os artigos 2° e 8° deste diploma estendem o âmbito de aplicação espacial do respectivo regime 489
Neste contexto, o exercício dos direitos soberanos na ZEE não é prejudicado pelo facto de a competência exclusiva para a gestão dos recursos biológicos do mar, no âmbito da política comum das pescas, ter sido transferida para a União Europeia (artigo 3°, n. 0 1, alínea d) do Tratado da União Europeia, publicado no Jornal Oficial da União Europeia, C 83, de 30 de Março de 2010), disponível para consulta em http: I I eur-lex.europa.euiLex UriServ ILexUriServ.do ?uri=OJ:C:2010:083:FULL:PT:PD F 490 As LFBR actuais implicam um aumento de cerca de 12 km2 na subárea da ZEE do continente. Tendo em conta a dimensão total da ZEE portuguesa, 1.700.000 km 2, a referida área acrescida representa cerca de 0,0007% da área total. 491 Cfr. 9.2.1 e 9.2.2 supra. 492 Quando a ZEE for futuramente referenciada às LFBR, como o determina a Lei 3412006, essa área será acrescida de 5.918 km20. Ainda assim, a área acrescida representa apenas cerca de 0,35% da área total. 493 Publicado no Diário da República, 1a Série, N. 0 63, de 16 de Março de 1990. Disciplina o regime geral de revelação e aproveitamento dos recursos geológicos.
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jurídico ao território nacional e à ZEE(494 ). As áreas acrescidas de jurisdição resultantes do traçado das LFBR nesta matéria são as correspondentes à ZEE, ou seja, praticamente nulas(495 ). Relativamente à plataforma continental, as partes do limite exterior que são definidas pela fórmula restritiva das 350M não sofre, como se referiu anteriormente, influência por parte do traçado das LFBR.
13.3.3. Investigação científica marinha No que respeita à investigação científica marinha, importa referir que existe um direito à sua realização por parte de todos os Estados(496), sujeito às regras previstas no Direito Internacional( 497 ). Correspondentemente, sobre os Estados costeiros impende o dever de facilitar as referidas actividades(498 ). No que respeita à possibilidade de outros Estados realizarem actividades de investigação científica nas águas de um Estado costeiro, existe uma diferença de regime no que respeita ao mar territorial ou à ZEE. Apesar dos deveres genéricos antes indicados, para que as actividades sejam possíveis no mar territorial é preciso autorização expressa do Estado costeiro( 499 ). Na ZEE, o Estado costeiro deve, por regra, dar o seu consentimentd500 ), mas existem circunstâncias nas quais esse consentimento pode ser recusadd 501 ). 494
As ocorrências minerais existentes no leito e subsolo marinhos nas áreas sob soberania ou jurisdição nacional para lá das LFBR estão, consoante a respectiva localização geográfica, sujeitos ao regimes do mar territorial ou da plataforma continental, nos termos dos artigos 2°, 76° e ss, da CNUDM. Não é, para este efeito, correcta a referência efectuada no DL 90/90 à ZEE que, como se pode verificar na Figura 36, tem um limite exterior que se situa muito aquém do indicado na submissão portuguesa apresentada em 11 de Maio de 2009 à CLPC. 495 Cfr. 9.2. supra. 496 CNUDM, artigo 238°. 497 Inter alia CNUDM, artigos 240", 241°,244°,248°,249°. 498 CNUDM, artigo 239°. 499 Ibid., artigo 245°. 500 Ibid., artigo 246°, n. 3. 501 Ibid., artigo 246°, n. 0 5. Uma das condições que fundamentam a recusa do consentimento consiste numa influência directa da actividade científica na exploração e aproveitamento dos recursos naturais, vivos e não vivos. A importância crescente que os recursos genéticos vêm assumindo na economia mundial e a ausência de regulamentação tanto a nível nacional, como nível internacional, em particular nas áreas para lá das jurisdições nacionais, pode constituir uma ameaça séria à economia nacional pela perda de oportunidades que pode representar. Sendo os recursos genéticos um recurso de qualidade, por oposição à pesca, que é um recurso de quantidade, pode bastar a identificação de uma molécula para a criação de uma patente e a exploração comercial de um produto, que pode ter aplicações que podem ir desde a medicina à cosmética. Cfr. INSTITUTE OF ADVANCED STUDIES. 2005. Biosprospecting of Gene ti c Resources in the Deep Seabed: 0
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À semelhança do que sucede nas situações anteriores, também à investigação científica marinha se configura como muito baixa, ou mesmo nula, a probabilidade de, ao serem proibidas estas actividades nas zonas acrescidas de mar territorial, Portugal poder vir a incorrer em responsabilidade internacional.
14. Decreto-Lei n. a 495/85: requiem pro defunctis? 14.1. Linhas de fecho e de base recta ou linhas de base normal? Algumas partes do traçado posto em vigor pelo DL 495/85 podem não se conformar integralmente com o texto do artigo 7° da CNUDM, mas ainda assim são das menos "excessivas" a nível global, a avaliar tanto pelas áreas acrescidas de soberania, pelos direitos/benefícios subtraídos à comunidade internacional, como pelo número de protestos recebidos. Importa referir que, excepto no caso em que o traçado fosse revogado, mantendo-se apenas as LFBR das fozes do Tejo e do Sado, qualquer outra alteração ao traçado actual constitui sempre uma oportunidade para novo protesto diplomático. Recorde-se que mesmo as baías do Tejo e do Sado, que tinham sido aceites em 1970 pelo Departamento de Estado Norte Americano sem comentários desfavoráveis, foram protestadas em 1986. Não é, por isso, previsível a reacção internacional que poderá vir a ser tomada em caso de modificação do traçado. Importa relembrar SCOVAZZI quando refere que, para além do traçado da Noruega, provavelmente não existirá nenhum outro que se conforme em absoluto com as regras internacionalmente estabelecidas para o traçado de LFBW502 ). Não existindo certezas quanto a uma possível invalidade de algumas partes do traçado de LFBR português e face a uma quase impossibilidade de Portugal poder vir a ser constituído em responsabilidade internacional por actos cometidos em áreas acrescidas de soberania ou jurisdição, a revogação de parte, ou da totalidade, do traçado posto em vigor pelo DL 495/85 não significa necessariamente a reposição de uma situação de absoluta conformidade com a CNUDM. Caso seja revogado o traçado contido no DL495/85, os limites interno e externo das zonas marítimas passariam a ser considerados em relação à linha de base normal, isto é, à linha de baixa mar ao longo da costa, tal como indicada nas cartas náuticas de grande escala<503 ). Acontece porém que, tal como anteriormente Scientific, Legal and Policy Aspects. New York: United Nations. É, por isso, fundamental o maior rigor possível na concessão por parte das entidades competentes nacionais das autorizações das licenças para a realização de investigação científica nas zonas marítimas sob soberania e jurisdição nacionais, que passa necessariamente pelo envolvimento dos órgãos do Estado competentes e pelo envolvimento da comunidade científica nacional. 502 SCOVAZZI, T.. 1999, pp. 445 a 456. 503 CNUDM, artigo 5".
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mencionadd504l, não existe nas cartas náuticas portuguesas, nem nas de muitos outros Estados, a representação de uma linha de baixa-mar efectivamente existente. Embora situações semelhantes a esta não possam ser consideradas para justificar traçados eventualmente excessivos, em rigor, no caso português, a revogação do traçado de LFBR não nos leva a uma situação de absoluta conformidade com o artigo 5° da CNUDM. Nessa caso, as distâncias à costa passariam a ser representadas em relação ao zero hidrográfico, que é uma linha fictícia (linha 2 da Figura 1), em vez de o ser em relação à linha de baixa-mar mínima, como consta no artigo 5° da CNUDM. No plano interno o processo não se afigura isento de potenciais dificuldades políticas, uma vez que retirar alguns dos traçados que possam ser considerados excessivos numa das regiões autónomas, mantendo-os noutra e/ ou no continente, não será um processo isento de fricções entre os governos regionais e central. Do ponto de vista internacional haverá, igualmente, que avaliar com prudência o alcance e as consequências que a revogação do traçado de LFBR poderá ter para Portugal, visto que este influencia significativamente o traçado da linha mediana a Sul de Portugal continental. Apesar de ter passado praticamente despercebido, a entrada em vigor do DL 495/85 veio trazer novas bases de cálculo para a determinação da linha mediana com Marrocos, sendo mais um elemento a ter em conta na futura delimitação das zonas marítimas com aquele Estado. O artigo 83° da CNUDM refere que a plataforma continental entre Estados com costas adjacentes deve ser feita por acordo a fim de se chegar a uma solução equitativa. Independentemente dos diversos factores que poderão contribuir para a referida solução equitativa, a linha mediana é sempre o ponto de partida<505l, pelo que descurar este aspecto corresponderia a uma má opção estratégica para Portugal, entrando a perder num processo negocial que, seguramente, não será fácil. Importa ainda referir que a questão da procura de uma solução equitativa na delimitação das zonas marítimas com os Estados vizinhos, Espanha e Marrocos, dever ser resolvida bilateralmente entre Portugal e cada um deles, pelo que os eventuais danos resultantes do traçado de LFBR português, tal como analisados em 13.3 infra não devem ser considerados neste âmbito.
504
Cfr. 3.4. supra. ANTUNES, N. M .. 2003, p. 205. "Maritime Delímitation in the Area between Greenland and Jan Mayen, Judgment, I.C.J. Reports 1993, p. 38", 1993 Na página 61 é mencionado que" [í]t is in accord with precedents to begin with the median line as a provisionallíne and then to ask whether special circumstances require any adjustment or shifting of that line". Caso da Fronteira Marítima entre os Camarões e a Nigéria [Land and Maritime Boundary between Cameroon and Nigeria (Cameroon v. Nigeria: Equatorial Guinea intervening), Judgement, I.C.J. Reports 2002, p. 303], julgamento de 10 de Outubro de 2002. O parágrafo 288 refere " [i]nvolves first drawing an equidistance line, then considering whether there are factors calling for the adjustment or shifting of that line in arder to achieve an equitable result". 505
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14.2. Problema do rigor geodésico
Um dos problemas apontados ao traçado português tem sido a imprecisão das respectivas coordenadas<506l . Para além da questão respeitante a cada datum de referenciação geodésica correspondente aos pontos do traçado existentes no continente e em cada um dos arquipélagos, as listas de coordenadas publicadas no DL 495/85 contêm, de facto, imprecisões. Mesmo com as correcções introduzidas posteriormente pela Declaração publicada em 28 de Fevereiro de 1986, persistem ainda aspectos técnicos que carecem de aperfeiçoamento. O problema da correcção do datum não se afigura, por si só, de dificuldade de maior, uma vez que é possível referenciar cada uma das coordenadas ao da tum geodésico em vigor para a área em causa, mantendo uma margem de erro aceitável face à ordem de grandeza das dimensões das zonas marítimas<507 l. Aplicando os vectores de transformação a cada da tum referido supra< 508l, é possível obter as coordenadas referenciadas ao datum em vigor. O traçado de LFBR contém ainda outras imprecisões que importa corrigir. Nalgumas localidades os vários segmentos de recta não constituem um polígono fechado relativamente à linha de costa, o que pode levantar dificuldades na identificação do regime aplicável às águas na zona não fechada . Noutras localidades, os segmentos de recta da LFBR não coincidem rigorosamente com a referência geográfica adequada. A existência de imprecisões técnicas no traçado de LFBR português, elaborado nos tempos em que os SIC davam os primeiros passos, não constitui um elemento que ponha em causa a validade do traçado em geral, face ao Direito Internacional. Os meios técnicos actuais permitem com facilidade ultrapassar as referidas deficiências, permitindo a republicação do traçado contido no DL 495 I 85 com uma lista de coordenadas corrigida, mantendo o traçado tal como ele foi inicialmente definido.
14.3. A questão da inconstitucionalidade
Vários autores portugueses consideram o traçado de LFBR inconstitucional por violação de preceito constante em convenção internacional regularmente ratificada e que vincula internacionalmente o Estado português, tal como dispõe o artigo 8°, n .0 2, da CRP<509l. Na maioria das situações em que este vício é apresen-
506
GUEDES, A. M. 1998, p . 134. Para Portugal continental é usado, presentemente, o datum ETRS89 (European Terrestrial Reference System, de 1989). Para os arquipélagos dos Açores e da Madeira, o datum de referência geodésica é o ITRF93 (International Terrestrial Reference Frame, de 1993). 508 Cfr. nota 344. 509 Cfr. GUEDES, A. M .. 1998, pp. 133 e 134; SILVA, J. L.Moreira da. 2003, p . 74. 507
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tado, o raciocínio subjacente parte do pressuposto que as linhas rectas traçadas entre as ilhas dos arquipélagos dos Açores e da Madeira são LBA. A verificar-se, estaríamos perante uma inconstitucionalidade material, entendida como a colisão do conteúdo de um acto jurídico-público com o conteúdo dos princípios ou normas constitucionais com as quais aquele se deveria conformarCsJo)_ No caso concreto, estaria em causa uma violação implícitacsn) dos artigos 46° e 47° da CNUDM, cuja recepção plenaC512 ) na ordem jurídica portuguesa resulta ex vi artigo 8°, n. 2, da CRP, a impede de, validamente, editar normas que sejam discrepantes com as de Direito InternacionalC513 ). Em 11 supra foi apresentada argumentação no sentido de afastar a qualificação das referidas linhas rectas traçadas entre as ilhas como arquipelágicas que, a proceder, distancia o referido vício de inconstitucionalidade material. Existe, no entanto, um outro aspecto que não tem merecido especial atenção por parte da doutrina nacional. Em 9 supra foi demonstrado que o traçado de LFBR tem influência directa na definição do limite exterior da águas interiores, nos limites interior e exterior do mar territorial e, consequentemente, nos correspondentes limites da zona contígua e da ZEE. Essa influência faz-se sentir de modo significativo, nos limites do mar territorial e da zona contígua, sendo quase residual no que respeita ao limite exterior da ZEEC51 ')· Isto significa que o DL 495/85 ao definir as LFBR está, implicitamente, a definir os limites interiores e exteriores das águas interiores, do mar territorial e da ZEE. O artigo 164°, alínea g), da CRPC515 ) refere que constitui reserva absoluta de competência da Assembleia da República (AR) a «definição dos limites das águas territoriais, da zona económica exclusiva e dos direitos de Portugal aos fundos marinhos contíguos». Este preceito constitucional tem conteúdo rigorosamente idêntico ao artigo 167°, alínea b) da CRP, conforme estabelecido na Lei Constitucional n. 1/82, de 30 de SetembroC516 ), vigente à data da entrada em vigor do DL495/85. Tendo em conta o que representa efectivamente a definição das LFBR, 0
0
510
MORAIS, Blanco de. 2006. Justiça Constitucional- Tomo I- Garantia da Constituição e Controlo da Constitucionalidade. 2a ed. Coimbra: Coimbra Editora, p. 138. 511 Ibid, p. 145. 512 RIBEIRO, Marta C. 2001. O Direito Internacional, o Direito Comunitário e a Nossa Constituição - Que Rumo?. ln FDUP (ed.). Estudos em Comemoração dos Cincos Anos (1995-2000) da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Coimbra: Coimbra Editora, pp. 939 a 963. 513 CANOTILHO, J.J., MOREIRA. 2007. Constituição da República Portuguesa Anotada. Vol. I. 4." ed. Revista. Coimbra: Coimbra Editora, p. 259. 514
Na plataforma continental essa influência faz-se sentir, essencialmente, no limite interior. 515 Versão actualmente em vigor: Lei Constitucional n. 1/2005, de 12 de Agosto. Publicada no Diário da República, la Série-A, N. 0 155, de 12 de Agosto de 2005. 516 Lei Constitucional n. 1/82, de 30 de Setembro. Publicada no Diário da República, 1" Série, N. 227, de 30 de Setembro de 1982. Primeira revisão da Constituição. 0
0
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bem como as respectivas implicações, e o preceito constitucional anteriormente mencionado, parece que se trata de matéria que constitui reserva absoluta de competência da AR. Sendo válido este raciocínio, estaremos perante uma inconstitucionalidade orgânica, visto existir a violação de uma regra constitucional de competência(517l e, consequentemente, uma inconstitucionalidade formal, uma vez que foram também violadas as regras respeitantes à produção e à revelação de um acto jurídico-público(sJS)(sJ 9l. Enquanto que a inconstitucionalidade material anteriormente mencionada prejudicaria apenas as partes sobre as quais o alegado vício poderia existir, a inconstitucionalidade orgânica e formal acabam por prejudicar integralmente o DL 495 I 85. Caso venha a ser considerada a necessidade de manter o actual traçado de LFBR, tal como se encontra presentemente definido no DL 495/85, uma solução possível para ultrapassar as dificuldades anteriormente apontadas consiste na republicação do traçado actualmente existente, com as correcções geodésicas necessárias, através de lei da AR. Esta lei deverá invocar, expressamente, o uso das competências conferidas pelo artigo n. 164°, alínea g), da CRP. Esta via permite separar dois aspectos distintos: o traçado propriamente dito e o diploma que o coloca em vigor. O caminho apresentado constitui uma possível via no sentido de salvaguardar o primeiro, afastando os vícios do segundo. Conclusões 0
O traçado dos limites exteriores das diversas zonas marítimas é, de acordo com a CNUDM, efectuado em relação a uma referência relativamente à qual as correspondentes distâncias são medidas. Essa referência é, por regra, as linhas de base a partir das quais se mede a largura do mar territorial. As linhas de base compreendem três subtipos: as linhas de base normal, as linhas de base recta e linhas de base arquipelágicas. Existem ainda as linhas de fecho que, não cabendo directamente na tipologia das linhas de base, têm natureza e finalidade equivalente a estas, correspondendo às linhas que unem os limites exteriores das fozes dos rios, das baías e dos portos. A CNUDM define linha de base normal como sendo a linha de baixa-mar ao longo da costa, devendo ser representada nas cartas marítimas de grande escala oficialmente reconhecidas pelo Estado costeiro. A informação contida nas cartas náuticas está orientada, essencialmente, para a segurança da navegação, não existindo uniformidade a nível mundial relativamente à representação da referência vertical que poderá dar origem à linha de baixa-mar. Existem Estados que usam a linha da baixa-mar mínima como referência para a indicação das sondas reduzidas (profundidades). Outros Estados, por uma questão de segurança,
517
MORAIS, Blanco de. 2006, p. 154.
518
Ibid., p. 149.
519
O "acto legislativo próprio" mencionado na parte final do n." 2 do artigo 5° da Lei 34/2006 deve, assim, ser entendido como lei da Assembleia da República.
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definem como referência um plano abaixo da baixa-mar mínima. Enquanto o valor da baixa-mar mínima é um valor real, obtido através de medições ao longo de um período de tempo, as referências verticais artificiais são estabelecidas discricionariamente pelo Estado costeiro. Os Estados que usam uma referência hidrográfica artificial não têm, por regra, uma linha de baixa-mar real, mínima ou outra, marcada nas cartas náuticas. É este último o caso de Portugal. A referência vertical adoptada para a medição das profundidades designa-se por "zero hidrográfico", sendo a diferença entre esta referência e a baixa-mar mínima designada por "pé do piloto". A CNUDM confere aos Estados costeiros, cuja costa reúne determinadas características, a faculdade de substituir a linha de base normal por linhas de fecho ou por LBR. Quando os Estados são constituídos apenas por ilhas e se verificam, igualmente, determinadas condições, a CNUDM prevê a possibilidade de os pontos extremos das ilhas mais exteriores serem unidas por LBA. As disposições da CNUDM que contém as regras que permitem qualificar as características da costa como baías jurídicas e os Estados como arquipelágicos, permitindo o traçado de linhas de fecho e de LBA, respectivamente, baseiam-se essencialmente em testes geométricos e aritméticos de aplicação objectiva, contidos nos artigos 10°, 46° e 47° da CNUDM. Contrariamente, as regras para o traçado de LBR contidas no artigo 7° da CNUDM são de difícil interpretação uma vez que contém inúmeros conceitos vagos e indeterminados, relativamente aos quais não existe um entendimento uniforme a nível internacional. Existem partes relevantes do texto actual do artigo 7° da CNUDM, em língua inglesa, que é igual ao correspondente artigo 4° da CGMTZC, que por sua vez absorve quase integralmente aspectos relevantes da decisão do Caso das Pescas, de 1951, entre a Noruega e o Reino Unido. Este facto permite à doutrina mais conservadora colar os traçados actualmente existentes à realidade geomorfológica da costa norueguesa, esquecendo que o contexto da época, tanto social como geopolítico é substancialmente diferente dos dias de hoje. Obter jurisdição sobre a projecção de 4 M adicionais de espaço de mar, equivalente na época à largura do mar territorial, tinha um significado completamente diferente do actual, em que as zonas marítimas podem atingir pelo menos 200 M. Em boa parte dos Estados as actividades nas várias zonas marítimas estão hoje fortemente reguladas, em particular no que respeita à protecção ambiental, à conservação, gestão e exploração dos recursos vivos e não vivos na ZEE ou nas zonas de pesca, e mesmo no que respeita ao exercício do direito de passagem inofensiva no mar territorial. No caso português o exercício do direito de passagem inofensiva por via dos EST é mesmo deslocado para zonas tradicionalmente sujeitas ao regime do alto mar, o que seria impensável há poucas décadas atrás. Esta realidade não deixa de sugerir que uma interpretação literal e historicista dos conceitos indeterminados do artigo 7° da CNUDM não é adequada aos dias de hoje. As regras relativas ao traçado de linhas de fecho e de base recta, apesar de
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claramente jurídicas, contêm também uma componente aritmética e geométrica que lhes está implícita. Isto significa que, ao traçar uma LBR numa carta náutica, é sempre possível fazer quantificações objectivas, cuja avaliação dificilmente se compadece com regras que não sejam, também elas, objectivas. Esse tipo de regras estão ausentes no artigo 7°, pelo que a procura do sentido a atribuir aos conceitos indeterminados é muito difícil, senão mesmo impossível. Este motivo parece estar na base da não existência de entendimento internacionalmente aceite para cada um dos conceitos indeterminados aplicáveis. Neste contexto, uma via possível para uma avaliação global de um traçado de LBR poderá consistir em avaliar se este cumpre a respectiva finalidade, tal como proposta por vários autores e pelo Office for Ocean Affairs and Law of the Sea ainda antes da entrada em vigor da CNUDM, i.e., evitar traçados complexos para os limites exteriores do mar territorial e restantes zonas marítimas, sem aumentar indevidamente a área de mar territorial. Tendo em conta que a substituição de uma curvatura da costa por uma linha recta implica sempre uma área acrescida de águas interiores e de mar territorial, o problema da quantificação inerente à expressão "sem aumentar indevidamente" fica igualmente por resolver. A prática generalizada seguida pelos cerca de 90 Estados costeiros que já criaram sistemas de LBR tem mostrado, de modo muito consistente, que este tipo de traçados não reflecte, de facto, a existência de um regime excepcional, tal como defendida pelo TIJ e por parte da doutrina, e que os conceitos jurídicos contidos no artigo 7° da CNUDM têm sido aplicados seguindo uma interpretação extensiva. O exemplo mais claro desta situação é o traçado de Myanmar, por muitos considerado "extravagante", que contém uma LBR com 222M de comprimento. Tendo em consideração o contexto em que surgiu a decisão Caso das Pescas, a prática dos Estados que vem sendo seguida e a evolução que o Direito do Mar conheceu desde então vem suscitar a questão de saber se o Direito Internacional aplicável ao traçado das LBR está hoje ainda confinado ao texto do artigo 7° da CNUDM. Existem Estados que não são parte da CNUDM nem da CGMTZC e que têm traçados de LBR considerados excessivos por parte importante da doutrina internacional e que já foram objecto de protestos. Fica por saber que práticas gerais poderão, nestas circunstâncias, ser consideradas aceites como direito e que constituem costume internacional, caso venha a existir uma disputa com um Estado que não tenha ratificado nenhuma das duas Convenções. O único Estado que tem sistematicamente protestado os traçados que considera excessivos, independentemente da respectiva localização geográfica, tem sido os EUA. Foi o que sucedeu relativamente a Portugal, em 1986. Esta acção por parte dos EUA é condicionada por dois factores. O primeiro tem a ver com uma questão, de ordem interna, relativa à titularidade dos recursos naturais, contrapondo a Federação e os Estados federados. Este assunto, que tem sido polémico, tem estado na base de muitas decisões por parte do Supremo Tribunal de Justiça dos EUA. Presentemente, os EUA não têm traçado na sua costa um sistema de LBR, existindo apenas linhas de fecho em partes específicas da costa, normal-
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mente encerrando baías. Tendo em conta as relações normalmente difíceis nesta matéria entre a Federação e os Estados federados, dificilmente se configurará uma alteração da situação actual. O segundo factor tem a ver com a política externa Norte-Americana. A política externa dos EUA têm prosseguido uma finalidade muito clara, indispensável para a manutenção da posição hegemónica que tem assumido desde os tempos da Guerra Fria, e que consiste em assegurar na máxima extensão do possível a FONP, e os consequentes direitos e liberdades de navegação e sobrevoo. À parte deste caso particular, a esmagadora maioria dos restantes protestos são fundados em interesses regionais ou locais que determinados traçados, por vezes excessivos, ofendem. Apesar de não existir um sistema de LBR na costa dos EUA, este Estado tem oferecido à comunidade internacional um valioso contributo doutrinário resultante dos litígios internos e como suporte à política da FONP. O Departamento de Estado Norte-Americano publicou um conjunto de regras que permite uma quantificação dos vários elementos geográficos de modo a tornar concretos os conceitos vagos e indeterminados contidos no artigo 7° da CNUDM. No entanto, estas regras não têm reconhecimento internacional, constituindo apenas uma interpretação unilateral do referido artigo. Não existem, assim, regras claras que consubstanciem uma base sólida que permita uma avaliação objectiva do traçado de LFBR português. Não é, por isso, possível afirmar com rigor que o mesmo é inválido face ao Direito Internacional por violação dos textos dos artigos 7° e 10° da CNUDM. Por outro lado, existem partes do traçado português que se podem considerar como justificados face ao artigo 7°, designadamente, entre os que se situam entre os Cabos da Raso e de Sines, como sendo um local em que existem recortes profundos e reentrâncias, e os grupos central e ocidental do arquipélago dos Açores, suavizando um padrão complexo do mar territorial sem aumentar indevidamente a área do mar territorial. As restantes LFBR do continente e do arquipélago da Madeira não cobrem um padrão especialmente complexo da linha de costa. Por outro lado, à excepção do grupo oriental do arquipélago dos Açores, de pequenas parcelas a Norte das Ilhas Berlengas, na baía do Sado, e ainda a LFBR que une os pontos mais a Sul da Ilha da Madeira com a Ilhas Desertas, o traçado não se afasta da linha de costa uma distância superior ao mar territorial, nem acrescenta ao mar territorial áreas particularmente significativas, tendo por comparação a prática internacional. O grupo oriental dos Açores consubstancia o traçado que se poderá considerar mais excessivo face a uma interpretação literal dos conceitos contidos no artigo 7° da CNUDM. Ainda assim, quando comparado com outros traçados de todas as regiões geográficas o traçado português é dos que menos ultrapassa o texto do referido artigo 7°. Por outro lado, as LFBR traçadas entre as ilhas dos arquipélagos dos Açores e da Madeira não devem ser entendidas como LBA, mas antes como LFBR sujeitas ao regime do artigo 7° da CNUDM. Não se encontra na CNUDM, na prática
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internacional, nem no próprio texto do DL 495/85, sustentação que permita concluir que todas as linhas traçadas entre ilhas para servir como referência para a medição da largura do mar territorial são necessariamente LBA. São inúmeros os Estados com ilhas, ou constituídos só por ilhas, que têm LBR entre elas sem que sejam qualificadas como arquipelágicas. A decisão do TIJ, no Caso Qatar/ Bahrain, vem dar um contributo inequívoco neste sentido ao defender a necessidade de o estatuto de águas arquipelágicas ser especificamente invocado pelo Estado costeiro para que aquele regime jurídico lhe seja aplicável. A ausência de tal qualificação no DL 495/85 faz com que fique afastado um elemento essencial que permita a qualificação dos traçados das linhas traçadas entre as várias ilhas nos arquipélagos portugueses como LBA, e das águas por ele encerradas, como arquipelágicas. Nessa conformidade, o traçado de LFBR português não aparece com a qualificação de arquipelágico no Law of the Sea Bulletin publicado pela DOALOS em 2007. O facto de o traçado português não retirar utilidades ou benefícios aos restantes Estados e organizações internacionais, não deixa antever situações que possam vir a constituir Portugal em responsabilidade internacional por actos praticados em áreas acrescidas de soberania ou jurisdição resultantes do traçado. Em 1986 a Espanha protestou o traçado de LFBR português posto em vigor pelo DL 495/85. Posteriormente, entre 2006 e 2009, durante as negociações para a definição da Área de Interesse Comum entre Portugal e Espanha, no âmbito do processo de extensão da plataforma continental, o traçado de LFBR português foi tacitamente aceite por Espanha e utilizado na definição da referida Área. A última referência vai para o DL 495/85 enquanto instrumento legal que definiu o traçado de LFBR português. Uma vez que não se afigura como possível a qualificação de algumas das linhas rectas traçadas entre ilhas nos arquipélagos portugueses como "arquipelágicas", fica afastada, neste âmbito, uma possível inconstitucionalidade material da parte do diploma que as define. No entanto, uma vez que o traçado de LFBR tem influência directa na definição dos limites interior e exterior das zonas marítimas, ao serem definidas as LFBR estão indirectamente a ser definidos os limites das referidas zonas marítimas. Esta matéria constitui reserva absoluta de competência da Assembleia da República, nos termos da alínea g) do artigo 164° da Constituição. A dar-se como verificada esta situação, o DL 495/85 enfermará de uma inconstitucionalidade orgânica e de uma inconstitucionalidade formal, cujos efeitos acabam por prejudicar integralmente o referido diploma legal. As imperfeições geodésicas, e de traçado propriamente dito, inerentes às LFBR definidas pelo DL 495/85 podem, facilmente e sem custos significativos, ser corrigidas com recurso à tecnologia actual, não constituindo, por isso, motivo justificativo para revogar o traçado de LFBR tal como se encontra presentemente definido. Esta dificuldade e os possíveis vícios apontados no parágrafo anterior podem ser ultrapassados com a republicação de uma lista de coordenadas corrigida, que corresponda ao traçado actualmente existente, através de lei da As-
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sembleia da República, habilitada pelo artigo n. 0 164°, alínea g), da Constituição. No entanto, caso o traçado venha a ser revogado, ou redefinidas partes do traçado nele contido, a referência para a definição dos limites horizontais de algumas zonas marítimas nessas áreas passa, de acordo com o artigo 5° da CNUDM, a ser a linha de base normal, i. e., a linha de baixa-mar ao longo da costa. Neste caso, em rigor, também as disposições convencionais não são integralmente cumpridas, visto que a linha de baixa-mar cartográfica, o zero hidrográfico, é artificial, não correspondendo a nenhum dos níveis de baixa-mar efectivamente existentes.
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Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos da América:
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LEGISLAÇÃO PORTUGUESA 0
Decreto-Lei n. 44.490, de 3 de Agosto de 1962, publicado no Diário do Governo, la Série, N.o 177, de 3 de Agosto de 1962. Aprova, para ratificação, a Convenção sobre o mar territorial e a zona contígua, a Convenção sobre o alto mar, a Convenção sobre a pesca e a conservação dos recursos biológicos do alto mar, a Convenção sobre a plataforma continental e o Protocolo de assinatura facultativa relativo à regularização obrigatória das divergências, aprovados na 1a Conferência de Direito do Mar, realizada em Genebra em 1958, e assinados em 28 de Outubro de mesmo ano.Aviso de 24 de Janeiro de 1963. Publicado no Diário da República la Série, N. 29, de 4 de Fevereiro de 1963. Depósito junto do Secretário-Geral das Nações Unidas dos instrumentos de ratificação das Convenções de Genebra de 1958. Lei n. 0 2130, de 22 de Agosto de 1966. Publicada no Diário do Governo 1a Série, N. 0 194, de 22 de Agosto de 1966. Define as bases sobre a jurisdição do mar territorial e a zona contígua. Decreto-Lei n. 47771, de 27 de Junho 1967. Publicado no Diário da República 1a Série, N. 148, de 27 de Junho de 1967. Define as linhas de fecho e de base recta que, na costa continental europeia e nas províncias da Guiné, Angola e Moçambique, suplementam a linha de base estabelecida no n. 0 1 da Base I da Lei n. 0 2130, de 22 de Agosto de 1966. Decreto-Lei n. 0 468/71, de 5 de Novembro. Publicado no Diário da República, la Série, N. 0 260, de 5 de Novembro de 1971. Regime jurídico dos terrenos incluídos no domínio público hídrico. Lei n. 0 33/77, de 11 de Março de 1977. Diário da República, la Série, N. 0 124, de 28 de Maio de 1977. Fixa a largura e os limites do mar territorial e estabelece uma zona económica exclusiva de 200 milhas do Estado Português.Decreto Lei n. 0 119/78, de 1 de Junho. Publicado no Diário da República, 1a série, N. 0 125, de 1 de Junho 1978 Define a Zona Económica Exclusiva e fixa os seus limites geo0
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gráficos.Decreto n. 55/78, de 27 de Junho, publicado no Diário da República, 1a Série, N. 0 145, de 27 de Junho de 1978. Aprova para ratificação a Convenção sobre o Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar. Lei Constitucional n. 1 I 82, de 30 de Setembro. Publicada no Diário da República, 1a Série, N. 0 227, de 30 de Setembro de 1982. Primeira revisão da Constituição. Decreto-Lei n. 0 495/85, de 29 de Novembro. Publicado no Diário da República 1a Série A, N. 275, de 29 de Novembro de 1985. Define as linhas de fecho e de base recta nas costas do continente e das ilhas das Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores. Decreto-Lein. 0 90/90, de 16 de Março. Publicado no Diário da República, la Série, N. 0 63, de 16 de Março de 1990. Disciplina o regime geral de revelação e aproveitamento dos recursos geológicos. Decreto n. 0 56/91, de 21 de Setembro, publicado no Diário da República, 1a Série N. 0 218, de 21 de Setembro de 1991. Aprova para ratificação as emendas à Regra 10 do Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar. Resolução da Assembleia da República n. 0 60-B/97, de 14 de Outubro. Publicado no Diário da República, 1a Série A, N. 238, de 14 de Outubro de 1997. Aprova, para ratificação, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar e o Acordo Relativo à Aplicação da Parte XI da mesma Convenção. Aviso n. 81/98, de 1 de Abril. Publicado no Diário da República, la Série-A, N. 93, de 21 de Abril de 1998. Depósito do instrumento de ratificação da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982. Aviso n. 0 81/98, de 21 de Abril de 1998. Publicado no Diário da República, 1a Série A, N. 0 93, de 21 de Abril de 1998. Torna público te1~ segundo comunicação do Secretário-Geral das Nações Unidas de 24 de Fevereiro de 1998, Portugal depositado, em 3 de Novembro de 1997, o instrumento de ratificação da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 10 de Dezembro de 1982, e do Acordo Relativo à Aplicação da Parte XI da Convenção, adoptado em 28 de Julho de 1994. Decreto-Lei n. 0 235/2000, de 26 de Setembro. Publicado no Diário da República, 1a Série A, N. 223, de 26 de Setembro de 2000. Regime das contra ordenações no âmbito da poluição do meio marinho nos espaços marítimos sob jurisdição nacional. Portaria 1102 D/2000, de 22 de Novembro, publicada no Diário da República, la Série B, 2° Suplemento, N. 0 270, de 22 de Novembro de 2000. Aprova o Regulamento da Pesca por Arte de Armadilha. Portaria 1102 E/2000, de 22 de Novembro, publicada no Diário da República, 1a Série B, 2° Suplemento, N. 0 270, de 22 de Novembro de 2000. Aprova o Regulamento da Pesca por Arte de Arrasto. Portaria 1102 G/2000, de 22 de Novembro, publicada no Diário da República, 1a Série B, 2° Suplemento, N. 0 270, de 22 de Novembro de 2000. Aprova o Regulamento da Pesca por Arte de Cerco. Portaria 1102 H/2000, de 22 de Novembro, publicada no Diário da República, 1a 0
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Série B, 2° Suplemento, N. 0 270, de 22 de Novembro de 2000. Aprova o Regulamento da Pesca por Arte de Emalhar. Decreto-Lei n. 0 112/2002, de 17 de Abril, publicado no Diário da República, 1a Série, N. 0 90, de 17 de Abril de 2002. Aprova o Plano Nacional da Água. Decreto-Lei n. 0 289/2003, de 14 de Novembro, publicado no Diário da República, la Série, N. 264, de 14 de Novembro de 2003. Define os requisitos para a emissão do certificado de operador aéreo e regula os requisitos relativos à exploração de aeronaves civis utilizadas em transporte aéreo comercial. Lei n. 0 54/2005, de 15 de Novembro. Publicada no Diário da República, 1a Série A, N. 0 219, de 15 de Novembro de 2005. Estabelece a titularidade dos recursos hídricos. Lei n. 0 58/2005, de 29 de Dezembro, publicada no Diário da República, la Série, N. 0 249, de 29 de Dezembro de 2005. Aprova a Lei da Água. Resolução do Conselho de Ministros n. 9/2005, de 17 de Janeiro, publicada no Diário da República, la Série, N. 0 11, de 17 de Janeiro de 2005. Cria a Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental. Lei Constitucional n. 1/2005, de 12 de Agosto. Publicada no Diário da República, 1a Série A, N. 0 155, de 12 de Agosto de 2005. Sétima revisão da Constituição. Decreto-Lei n. 198/2006, de 19 de Outubro. Publicado no Diário da República, 1a Série, N. 202, de 19 de Outubro de 2006. Estabelece o regime jurídico dos esquemas de separação de tráfego a vigorar nos espaços marítimos sob jurisdição nacional. Lei n. 0 34/2006, de 28 de Julho. Publicada no Diário da República 1a Série, N. 0 145, de 28 de Julho de 2006. Determina a extensão das zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional e os poderes que o Estado Português nelas exerce, bem como os poderes exercidos no alto mar. Portaria n. 0 1366/2006, publicada no Diário da República N. 0 233, de 5 de Dezembro de 2006. Aprova as coordenadas dos esquemas de separação de tráfego para representação gráfica. Resolução do Conselho de Ministro n. 0 26/2006, de 14 de Março, publicada no Diário da República, 1" Série, N. 0 52, de de 14 de Março de 2006. Prorroga o mandato da Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental até 30 de Abril de 2007. Resolução do Conselho de Ministros, n. 0 55/2007, publicada no Diário da República, la Série, N. 0 67, de 14 de Março de 2007. Prorroga o mandato da Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental até 13 de Maio de 2009. Resolução do Conselho de Ministros n. 32/2009, publicada no Diário da República, la Série, N. 74, de 16 de Abril de 2009. Adiciona novos objectivos à Estrutura de Missão para a Extensão da Plataforma Continental e prorroga o respectivo mandato até 31 de Dezembro de 2010. 0
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Anexo 1 Figuras
Linha de costa representada na carta náutíca
Território emerso
/
Preia-mar máxima ...!,------,;,..,.--.,.,;.------~- Híghestastronomica/tide Preia-mar (marés-vivas) - Mean high water springs Mean high water neaps Preia-mar (marés-mortas) Nível médio do mar
Mean sea leve/
Mean /ow water neaps Baixa-mar (marés-mortas) Baixa-mar (marés-vivas) Mean low water springs Baixa-mar mínima --_;~---+--~------,~-- Lowestastronomical tide Zero hidrogridlco ,----~~----_,'!em--,~=-~---~,;;"=---" Chcu t duturn
Sonda reduzida
Cartas náuticas de
Cartas náuticas de outros Estados
Figura 1 -Exemplo de carta náutica e referências cartográficas verticais.
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Situação 1: A1 < A2
~\ --Pontos naturais de entrada
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I
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ro : A1 ;t• n' :T'
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Adaptado de lHO TALOS Manual, 2006
Situação 2: A 1 > A2
Figura 2 - Baías. Teste do semicírculo Lusíada. Direito. Lisboa, 11.0 8 I 9 (2011)
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>24M
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Figura 3 - Baía. Linha de fecho.
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Argentina
65°W
60°W
Figura 4- Linhas de fecho da Argentina.
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60°W
Figura 5 -Linha de fecho da Venezuela-Guiana.
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Sahara Ocidental
Mauritânia
17°W
Figura 6- Linha de fecho da Mauritânia
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Figura 7- Linhas de base recta da Noruega.
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Estado costeiro Linha de fecho da baía
.....~-----X
Razão de penetração em relação ao compnmento da linha de fecho:
x/2x
= 1/2 = 1:2 = 0,5
Figura 8 - Razão de penetração.
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Nicarágua
Costa Rica
'
'
I \
12
Figura 9 - Linhas de base recta da Costa Rica.
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Irão
Arábia Sáudita
Golfo Pérsico
14
Irão
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Figura 10- Linhas de base recta do Irão.
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'
'\ \
I I I
Colômbia
80°W
78°W
Figura 11 - Linhas de base recta da Colômbia. Costa do Oceano Pacífico.
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Colômbia I
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,Venezuela
75°W Figura 12 - Linhas de base recta da Colômbia. Costa do Mar das Caraíbas.
Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
427
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ltália
35°N~----~----~----------------~----------------~ 10° E Figura 13 - Linhas de base recta de Itália
428
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Arábia Sáudita Egipto
Figura 14 - Linhas de base recta do Egipto
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429
Paulo Coelho
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Figura 15 - Linhas de base recta de Espanha continental.
430
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O Traçado das Linhas de Base. O Caso Particular das Linhas de Fecho e de Base .. . Pág. 259-456
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Madagascar
19
25
26
Figura 16- Linhas de base recta de Madagascar
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431
Paulo Coelho
Figura 17- Linhas de base recta das ilhas HĂŠbridas Ocidentais, (Reino Unido)
432
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Tailândia
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105° E
Figura 18 - Linhas de base recta do Vietname
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8
128° E
I 130° E
Figura 19 - Linhas de base recta da Coreia do Sul
434
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100° E
Figura 20 - Linhas de base recta da Tailândia
Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 I 9 (2011)
435
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Myanmar •.
Tailândia
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95° E
100° E
Figura 21- Linhas de base recta de Myanmar
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Possíveis traçados de linhas de base recta
2 ---------3 ---------· 4 -----5
--- ---
(Adaptado do TALOS, figura 2.1 O)
Figura 22 - Diferentes interpretações de direcção geral da costa e escolha de linhas de base recta.
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LBA antigas
LBA.
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Cabo Verde I
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24"W
24"W
24°W
Figura 23 -Arquipélago de Cabo Verde
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Reino Unido
Ambergri!\
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Big Sand Cays 1
Seal Cays
Reino Unido
12
60°W Figura 24- Linhas de base recta das ilhas Falkland e Turks e Caicos (Reino Unido)
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EQUADOR
Fronteira Equador/Perú 80°W Figura 25- Linhas de base recta do Equador (continental).
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6
Arquipélago dos Galá pagos
9
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51 MN
11
90°W Figura 26- Linhas de base recta do Equador (Ilhas Galápagos).
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Ilhas Faeroe
7°W Figura 27 - Linhas de base recta das Ilhas Faeroe (Dinamarca)
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O Traçado das Linhas de Base. O Caso Particular das Linhas de Fecho e d e Base ... Pág. 259-456
Figura 28 Erros técnicos relativos à localização de alguns pontos indicados na lista de coordenadas contida no Quadro I do Decreto Lei n .0 495/85, de 29 de Novembro
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Areas (M I Km )
Ag uas interiores: 1 - 147,7 I 506,6 2 - 717,812.461,9 3- 103,81355,9 (I) 4 - 364,611.250,6(2) 5-267,21916,6 6 - 282,1 1967,7 Total AI: 1.883,2/6.459,3
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Zona Contí ua: 15-104,31357,6 16-224,41769,8 17 - 79,0 1270,9 18-17,6160,4 19 - 56,91 195,0 20- 169,7 I 582,2 21- 172,21590,5 Total ZC: 824,0 / 2.826,4 (I) N:to romklera a i rea di bKiadoTejo (2 )N ào ronsiden a i read;~
Possfvel dlre<ç3o geral
bKiadoSido
da costa entre os cabos
Mondego e Raso
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Figura 29 -Linhas de fecho e de base recta de Portugal continental
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Linhas de fecho e d e base recta · ' Limite exterior do mar te rritorial Limite exterio r da zona co ntigua
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25° W A!Jl!a.únterior~s_ffill: (1 +2) 1.327,1 I 4.55.1,8
MarTerritorial (MT). 3 - 437,6 I 1.500,9 4 - 30,0 I 1 02,8 5 - 197,5 I 677,3 6 - 50,2 I 1 72,3
Zon_ª Con1f9.Y.ª (ZQ:
Total AI- 1.327,1 I 4.551,8
Total MT - 715,3 / 2.453,3
Total ZC - 472,0 / 1.618,8
7 - 333,8/ 1.145,0 8 - 22,0 /75,5 9 - 93,9 I 32 1,9 10 - 22,3 I 76,4
Figura 30 - Linhas de base recta do arquipélago dos Açores. Grupo oriental.
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'· ' Linh as de fecho e de base recta Limite exterior do mar territorial Limite exte rior da zona contíg ua
28°00'W ÁREAS (M2 I Km2): Águas interiores (AI): 1 - 420,6 I 1.442,5 2 - 10,5 I 36,1 3 - 2,9 I 9 8
Zona contígua (ZCl: 14 - 12,8 I 43,9 15- 0,0 I 0,1 16 - 0,210,6 17-512/17,8 18-0,6 I 2,2 19 - 1,414,9 20-5,5 /1819 21-0,1 1013 22-013/1,0
1
Total AI - 434,0 I 1.488,4
Total MT- 52,7 I 180,9
Total ZC- 48,4 I 89,7
Figura 31 -Linhas de base recta do arquipélago dos Açores. Grupo central.
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Linhas de fe cho e de base recta Limite exterior do m ar territorial Limite exterior da zona contígua
AREAS (M2 /Km2) :
Águas interjores !Ail: 1 - 58,5 I 200,5
Zona Contígua CZCl: 4 - 6,2 I 21,4 5-5,4/ 18,6
Total AI- 58,5/200,5
Total ZC -11,7 /40,0
Figura 32 - Linhas de base recta do arquipélago dos Açores. Grupo ocidental.
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32°
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Linhas de fecho e de base recta Limite exterior do mar territorial Limite exterior da zona contígua
ÁREAS (M2 I Km2):
17° OO'W
Águas interiores (AI): 1 - 243, 7 /835,9 2 - 19,4 I 66,6
Mar Territorial (MT): 3-92,0/315,5 4-7,7 I 26,3 5-4,9 I 16,9 6-0,7 I 0,2 7-0,3/1,0 8-0,210,8 9-0,812,8 1o- 3,1 /1 0,6
Zona Contígua: 11 - 55,0/188,6 12- 4,0 I 13,7 13-0,110,3 14-0,1 I 0,4 15- o, 1 I 0,3 16-0,210,6
Total AI- 263,1/902,5
Total MT- 109,2/374,6
Total ZC- 59,4/203,9
Figura 33 - Linhas de base recta do arquipélago da Madeira
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Unha rnedial'a
Figura 34 - Área acrescida de soberania e jurisdição para lá das 200 milhas náuticas.
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200M
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Acrésdmo 1.722 (5.906
Figura 35- Área acrescida de soberania e jurisdição resultante de um novo traçado de linhas de base recta.
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Profundidade Omatros
c::::::J c::::::J DIX1D
-
6500n-mros
Nota: Adaptado da Figura 1 do sumário executivo da submissão portuguesa h!!J~://www.un.org/DeRts/losl.cl_cs
60
"' ""N.liutlcas M ~ Ms
Território emerso de Portugal Plataforma continental exterior (>200M) Limite exterior da plataforma continental de Portugal Linhas de fecho e de base recta de Portuga l
-=<
200M a contar das linhas de fecho e de ba se recta de Portuga l 200M a contar das linhas de fecho e de base recta de Espanha Limite norte da área de interesse comum (Portuga l-Espanha) Limite sul da área de interesse comum (Portuga l-Espanha)
new/submissions fil es/Rrt44 09/ rt2009executivesummary.Rdf
Figura 36 - Limite exterior da plataforma continental portuguesa. Sectores limitados pelo fórmula restritiva das 350 milhas náuticas a contar das linhas de base.
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10°W
Linha 1 - Mediana a contar da linha de costa -- Linha 2 - Mediana a contar da LFBR
Figura 37- Linhas medianas referidas à linha de base normal e às linhas de fecho e de base recta no Sul de Portugal
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CNUDM,art-5• ...linha de baixa-mar ao longo da costa... ... low-water line along the coast... ... laisse de basse mer le long de la cl)te ...
Semicírculo 1 Area: 171,7 M 2 (588,8 km 2)
CNUDM,art•loo,n• 3 ...linha de baixa-mar ao longo da costa ... ... low-water mark around the shore... .. . laisse de basse mer le long du rlvage ..
Área encerrada de água: 177,3 M2 (608,0 km2) I
I
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I
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21.5 M
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I (39,8km)
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I
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I
Área encerrada de água:
I I I I
401,0 M2 (1.375,2,3 km2)
I
,'Semicírculo 2 /'
Area: 355,8 W (1.220,3 km2J
h oo da SirwtS
Figura 38 -Baías do Tejo e do Sado.
Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 8 / 9 (2011)
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Figura 39 - Esquema de separação de tráfego do Cabo da Roca
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Figura 40 - Esquema de separação de tráfego do Cabo de São Vicente
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Anexo 2 Versões nas línguas portuguesa e inglesa do artigo 4°, n"s 1 e 3, da Convenção de Genebra sobre o Mar Territorial e Zona Contígua, de 1958, e preceitos correspondentes no artigo 7° da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982 Artigo 4° da CGMTZC 1. Nas zonas em que a linha de costa apresenta recortes profundos e reentrâncias ou se existe um grupo de ilhas ao longo da costa na proximidade imediata desta, poderá adoptar-se o método das linhas de base recta ligando os pontos apropriados para o traçado da linha de base, a partir da qual é medida a lar-
Artigo 7° da CNUDM 1. Nos locais em que a costa apresente recortes profundos e reentrâncias ou em que exista uma franja de ilhas ao longo da costa na sua proximidade imediata, pode ser adoptado o método das linhas de base recta que unam os pontos apropriados para traçar a linha de base a partir da qual se mede a largura do mar territorial
2.
3. O traça o essas i as e ase recta não deve afastar-se consideravelmente da direcção geral da costa e as zonas de mar situadas dentro dessas linhas devem estar suficientemente vinculadas ao domínio terrestre para ficarem submetidas ao regime das águas interiores
traça o estas i as e ase não deve afastar-se de forma apreciável da direcção geral da costa e as extensões de mar situadas dentro dessas linhas devem ser suficientemente ligadas ao domínio terrestre para serem submetidas ao regime das águas interiores.
Artigo 4° da CGMTZC(1l 1.
In localities where the coastline is deeply indented and cut into, or if there is a fringe of islands along the coast in its immediate vicinity, the method of straight base/ines joining appropriate points may be employed in drawing the baseline frorn which the breadth of the territorial sea is rneasured.
2. The drawing of such base/ines rnust not depart to any appreciable extent from the general direction of the coast, and the sea areas lying within the lines must be sufficiently closely linked to the land domain to be subject to the regime of internal waters.
Artigo 7° da CNUDM(2l 1.
In localities where the coastline is deeply indented and cut into, or if there is a fringe of islands along the coast in its immediate vicinity, the method of straight baselines joining appropriate points may be employed in drawing the baseline from which the breadth of the territorial sea is
3. The drawing of straight baselines must
not depart to any appreciable extent from the general direction of the coast, and the sea areas lying within the lines must be sufficiently closely linked to the land domain to be subject to the regime of internal waters.
1 http:/ /untreaty.un.org/ilc/texts/instruments/english/conventions/8_1_195S_territorial_ sea.pdf. 2 http:/ /www.un.org/Depts/los/convention_agreements/texts/unclos/unclos_e.pdf.
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