n serie, n. 1 Oaneiro- Junho 2003)
Direito
Universidade Lusiada Editora Lisboa • 2003
Lusiada. Direito
Mediateca da Universidade Lusiada - Catalogayao na Publicayao LUSIADA. DIREITO. Lisboa, 2003 Lusiada. Direito I propr. Universidade Lusiada ; dir. Jose Duarte Nogueira. - I! serie, n. I (Janeiro-Junho 2003)- Lisboa : Universidade Lusiada, 2003ISSN 08 72-2498 CDU CBC ECLAS
34 K l 2.U7 04 .01.00
FICHA T拢CNICA Titulo
Lusiada. Direito
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Sub路Director
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2003 Un lversidade Lusfada de Llsboa
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0 contetido desta obra Universidade Lusiada.
e da cxcluslva responsabllidade dos scus autores e niio vincula a
SuMARIO Nota de abertura ............................................................................. 7 I- Doutrina ................................................................................. .. ... 9 Pressupostos da desvincula~ao desportiva do jogador Albino Baptista ................... ... .. .. .. .......... .. ..... ...... .... ..... .... .............. 11
A justi~a penal internacional na transi~ao de seculos Almiro Rodrigues ... .. ... ............................................................... .... 33
As rela~oes entre Portugal, a Europa e o m undo lus6fono e as suas repercussoes no piano juridico Ant6nio Marques dos Santos ..... .... .. ........ ... ......... .......... .. .............. 73
0 perdao das penas em Portugal na Idade Media Filomena Delgado ..................................................................... .... 91
A familia na Constitui~ao da Republica Portuguesa de 1976 Jose Joiio Gon9alves de Proen9a ................................................ 127 Conven~ao
sob re o Futuro da Europa
Maria Eduarda Azevedo ........................................................ .. .... 149
A unica revisao necessaria Miguel Nogueira de Brita ............ .... .... .......... .. .... ...... .................. 155 Documentos electronicos e assinatura digital: as novas leis portuguesas Miguel Pupa Correia .... .... ....................... ... ...... ......................... .. 173
11- Jurisprudencia anotada ........................................................ 195 Supremo Tribunal de Justh;a- Acordao n.o 3/99 Anotm;ao de Jose A. R. L. Gonza1ez ............................................ 197 Ill- Vida interna ......................................................................... 255 Licenciados em Direito na Universidade Lusiada de Lis boa (2000-2001) ................................................................ 257 Doutoramentos e mestrados na Universidade Lusiada de Lis boa ..................................................................................... 263 Conferencias e coloquios ............................................................ 271
NOTA DE ABERTURA
Retoma-se corn este primeiro volume da segunda serie, a publica9ao da Revista da Faculdade de Direito da Universidade Lusiada de Lis boa. E inten9ao da actual Direc9ao da Revista promover a saida de do is volumes por ano, admitindo, todavia, amnentar este mimero se as circunstancias o justificarem. Em vez de run Unico volume, de maior rolego, chi-se preferencia asaida de do is ou mais. 0 que eventualmente se perdeni em numero de paginas, ganha-se em agilidade e actualidade, pois decorreni menos tempo entre a elaborayao dos artigos ou a ocorrencia dos eventos, e o momento da sua divulga9ao ao publico. Nacontinuidade da serie anterior, aRevistamantem como objectivo primordial a divulga9ao de textos cientificos de natureza juridica. Encontra-se, por is so, aberta a todos os que se interessam pela Ciencia do Direito nas suas multiplas vertentes, independentemente de serem ou terem sido docentes da escola, relevando apenas criterios editoriais e de qualidade. Enquanto publica9ao oriunda de uma institui9ao universitaria pretende tambem servir de 6rgao de divulgayao da vida intema, no que respeita aos eventos de natureza cientifica e outra, ocorridos no seu ambito. Para atingir estes objectivos contamos corn o apoio de todo o corpo docente, a quem solicitamos desde ja colabora9ao. Contamos, naturalmente, tambem corn o apoio daDirec9ao daFaculdade de Direito, bem como da Universidade Lusiada e da respectiva Entidade Instituidora. Corn estes apoios estamos convictos que o esfor9o nao sera em vao.
A Direc9ao da Revista
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I DouTRINA
Pressupostos da desvincula91iO desportiva do jogador, p. 11-32
PRESSUPOSTOS DA DESVINCULA<;AO DESPORTIVA DO JOGADOR
Albino Baptista Assistente da Universidade Lusiada
Lusiada. Direito, II serie, n. I (Janeiro - Junho 2003)
!I
Albino Baptista
1. Nos termos do n. 1 do art. 52. do CCT para os futebolistas 1 2, sem 0
0
0
prejuizo da extin<;:ao do vinculo contratual no funbito das rela<;:oes juridico-laborais, a participa<;:ao de umjogador em competi<;:oes oficiais ao servi<;:o de urn Clube terceiro na mesma epoca em que, por sua iniciativa, foi rescindido o contrato de trabalho desportivo depende do reconhecimento de justa causa da rescisao. Assim, ainda que o vinculo contratual se extinga, o jogador so pode participar em competi<;:oes oficiais ao servi<;:o de outro Clube na mesma epoca em que, por sua iniciativa, foi rescindido o contrato de trabalho desportivo, se lhe for reconhecida justa causa. Para o jogador e, por isso, fundamental a obten<;:ao da desvincula<;:ao desportiva. Na verdade, se nao lhe for reconhecida justa causa, o jogador sofreni san<;:oes desportivas, nao podendo participar em competi<;:oes oficiais na epoca em que faz operar a rescisao. Lembre-se que o jogador pode obter a desvincula<;:ao desportiva, mesmo sem justa causa, fazendo operar uma hipotetica cl<iusula de rescisao, o que tern, sob este prisma, obvias vantagens3 â&#x20AC;˘ Por outro lado, o jogador pode participar em competi<;:oes oficiais ao servi<;:o de outro clube na epoca desportiva seguinte, sem necessitar do reconhecimento da justa causa desportiva, o que equivale a dizer que ha autonomia da justa causa desportiva relativamente ajusta causa laboral4 â&#x20AC;˘
1
Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre a Liga Portuguesa de Futebol Profissional e o Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol (Boletim do Trabalho e Emprego, 1.â&#x20AC;˘ serie, n. 0 33, de 8/9/1999, pp. 2778 e ss.). 2 Todos os artigos citados sem qualquer referencia legal ou convencional referem-se ao CCT para os futebolistas. 3 ALBINO MENDES BAPTISTA, "Breve Apontamento sobre as Chiusulas de Rescisao", a publicar na Revista do Ministerio Publico. 4 Recorde-se que a epigrafe do art. 0 52. 0 e "Pressupostos da Desvinculavao Desportiva do Jogador em caso de rescisao unilateral por sua iniciativa".
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Pressupostos da desvincula9iio desportiva do jogador, p. 11 -32
2. Ocorrendo justa causa, o jogador deveni comunicar aentidade empregadora a vontade de rescindir o contrato, por carta registada corn avi so de recep<;ao, no qual se invoquem expressamente os motivos que fundamentam a rescisao (art. 0 52. 0 , n. 0 2). Para nos, ao contnirio do que foi sustentado no Acordao da Comissao Arbitral Paritaria, de 23 de Fevereiro de 2001 (Proc. n. 0 60-CAP/2000), a exigencia de carta registada corn avi so de recep<;ao constitui uma formalidade ad probationem5 â&#x20AC;˘ Como se sabe, o n.0 2 do art. 0 34. 0 da LCCT 6 basta-se corn a forma escrita para a declara<;ao rescisoria. Por sua vez, o n.0 1 do art. 0 2. 0 deste mesmo diplomadispoe o seguinte: "Salvo disposi<;ao legal em contrario, nao pode o presente regime ser afastado ou modificado por instrumento de regulamenta<;ao colectiva de trabalho ou por contrato individual de trabalho." E o n. 0 1 do art. o 59.o da LCCT determina: "Os valores e criterios de defmi<;ao de indemniza<;oes consagradas neste regime, os prazos do processo disciplinar, do periodo experimental e de aviso previo, bem como os criterios de preferencia na manuten<;ao de emprego nos casos de despedimento colectivo, podem ser regulados por instrumento de regulamenta<;ao colectiva de natureza convencional." Neste contexto, nao se ve como ultrapassar a natureza imperativa do diploma, expressamente afirmada no art. 0 2. 0 , e reafirmada no art. 0 59. 0 , preceito este que, como e natural, nao abre qualquer porta apossibilidade de a contrata<;ao 5
Refira-se que, entretanto, a CAP inflectiu a sua posi9ao em ac6rdao proferido em 11 de Junho de 2001 (Proc. n. 0 3-CAP/2001), entendendo agora que a carta registada corn aviso de recep9ao nao constitui uma formalidade ad substantiam. 6 Regime Juridico da cessa9ao do contrato de trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n° 64-A/89, de 27 de Fevereiro.
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Albino Baptista
colectiva intervir em materia de forma das declarayoes negociais. 0 que bem se compreende se tivermos em conta que quando a lei exige uma determinada forma para a declarayao negocial fa-lo, em principio, por razoes de substancia (arts. 0 364. 0 e 220.0 , ambos do Codigo Civil). De resto, as normas relativas aforma legal assumem natureza imperativa7 â&#x20AC;˘ Por outro lado, nos termos do art. 0 223. 0 , n. o 1, do CC, podem as partes estipular uma forma especial para a declarayao; presume-se, neste caso, que as partes se nao querem vincular senao da forma convencionada. Obviamente que esta presunyao e juris tantum (art. 0 350. 0 do CC), o que se julga consentaneo corn o facto de se estar perante uma forma convencional. Como escreve J. CASTRO MENDES, "o negocio juridico concluido corn preteri9ao de forma convencionalmente determinada nao pode ser nulo"8â&#x20AC;˘ Assim, para nos a forma a que alude o n. 0 2 do art. 0 52. 0 do CCT para os futebolistas so pode ser ad probationem, atendendo asua origem convencional. Efectivamente, a voca9ao de uma conven9ao colectiva de trabalho nao e conter exigencias de forma determinadas por razoes de ordem publica, como sempre sao as formaHdades ad substantiam. Por outro lado, qualquer pretensao de atribuir natureza de formalidade ad substantiam ao referido preceito convencional, tese que nao subscrevemos, esbarraria corn a natureza imperativa da LCCT, sendo portanto nula a disposi9ao do CCT.
7
Assim, tambem, e entre outros, L. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, 3." ed., Lisboa, 2001, pp. 239 e ss. 8 Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, Lisboa, 1995, p. 94.
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Pressupostos da desvinculayao desportiva do jogador, p. 11-32
Niio nos parece, todavia, necessario ir tiio longe, ate pm-que reconhecemos virtualidades numa maior exigencia de forma, desde que naturalmente a mesma seja determinada por razoes de prova. Quanto ainvoca<;iio express a dos motivos que fundamentam a rescisiio, a mesma tern correspondencia no art. 0 34. 0 , n. 0 2, da LCCT, nos termos do qual, a rescisiio deve ser feita por escrito, corn indica<;iio sucinta dos factos que a justificam, dentro dos quinze dias subsequentes ao conhecimento desses factos 9 â&#x20AC;˘
3. Quando para a rescisiio tenha sido invocado como fundamento a falta de pagamento da retribui<;iio nos termos previstos na alinea a) do artigo 43. 0 , o jogador devera notificar a Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP), por carta registada corn aviso de recep<;iio, da sua vontade de por termo ao contrato (art. 0 52. 0 n. 0 3). Na alinea a) do n. 0 1 do art. 43. 0 procede-se a distin<;iio de duas formas de rescisiio por iniciativa do jogador, corn direito a indemniza<;iio, tendo por fundamento a existencia de salarios em atraso. A l.a ea falta culposa do pagamento pontual da retribui<;iio na forma devida, independentemente do periodo de atraso. A 2.a eo atraso do pagamento da retribui<;iio na forma devida, por mais de 30 dias, independentemente de culpa, situa<;iio em que 0 fundamento so e procedente se o jogador comunicar a sua inten<;iio de rescindir o contrato, por carta registada corn aviso de recep<;iio e o clube ou sociedade desportiva niio proceder, dentro do prazo 3 dias uteis, ao respective pagamento (n. 0 2 do art. 0 43. 0 ). Portanto, o CCT para os futebolistas estabelece urn regime especialmente oneroso
9
0 prazo de 15 dias para fazer operar a rescisao e manifestamente exiguo. Remete-se, a prop6sito, para o nosso trabalho, "Prazo para o exercicio do direito de rescisao do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador", a publicar na Revista Questoes Laborais .
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Albino Baptista
para o j ogador quando a falta de pagamento pontual da retribui<;ao se prolonga por periodo superior a 30 dias e, consequentemente, mais protector do clube ou sociedade desportiva j a que a rescisao esta dependente da falta de pagamento da retribui<;ao no prazo de 3 dias uteis contados a partir da comunica<;ao do jogador. Como se sabe, a LCCT nao contem qualquer exigencia semelhante. No dominio de aplica<;ao deste diploma, o trabalhador que pretenda cessar o contrato corn invoca<;ao de retribui<;oes em atraso tern apenas de comunicar a empresa a sua vontade de por fim ao contrato, nos termos do art.0 34. 0 desse mesmo diploma. Mas, a Lei n. 0 17/86, de 14 de Junho (Lei dos salcirios em atraso- LSA), consagra, como se sabe, urn regime especial de rescisao corn fundamento em falta de pagamento da retribui<;ao 10 • Assim, quando a falta de pagamento pontual da retribui<;ao se prolongue por periodo superior a 30 dias S()bre a data do vencirnento da primeira retribui<;ao nao paga, podem os trabalhadores, isolada ou conjuntamente, rescindir o contrato corn justa causa ou suspender a sua presta<;ao de trabalho, ap6s notifica<;ao a entidade patronal ea Inspec<;ao-Geral do Trabalho, por carta registada corn aviso de recep<;ao, expedida corn a antecedencia minima de dez dias, de que exercem urn ou outro desses direitos, corn eficacia a partir da datadarescisao ou do inicio da suspensao (art. 0 3. 0 , n. 0 1, daLSA).
Eirrelevante que no periodo de 10 dias previsto no art. o 3.o da LSA, a entidade patronal satisfa<;a o pagamento dos salarios em divida. 0 direito nasce corn a comunica<;ao efectuada pelo trabalhador. A fun<;ao do referido prazo de 10 dias ea de dar a entidade patronal urn avi so previo para que possa tomar providencias no sentido de organizar a eventual substitui<;ao do trabalhador 11 • 0 prazo de 10 dias e, assim, uma condi<;ao de eficacia e nao de validade da
rescisao 12 • 10
ALBINO MENDES BAPTISTA, Jurisprudencia do Trabalho Anotada, 3." ed. (reimpressao), Lisboa, 2000, pp. 845 e ss. 11 Neste sentido, RL, 8.11.95. (CJ, 1995, V, 185). 12 Como defendemos na nossa Jurisprudencia do Trabalho Anotada, 3.• ed. (reimpressao), cit. , p. 846.
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Pressupostos da desvinculafi:aO desportiva do jogador, p. 11 -32
No CCT para os futebolistas, o atraso da retribui<;ao por mais de 30 dias, constitui tambem urn caso de responsabilidade objectiva, que muito o aproxima do regime legal dos sahirios em atraso. Poder-se-a dizer que toda a materia da cessa<;ao do contrato de trabalho e imperativa, por for<;a do mencionado art. 0 2. 0 da LCCT, e que, portanto, todo o regime da extin<;ao do vinculo laboral, mesmo que operando no dominio de urn outro diploma, e inderrogavel pela vontade das partes. Neste sentido, ao estabelecer-se que, se a entidade empregadora proceder no prazo de tres dias uteis ao pagamento das retribui<;oes em atraso, 0 direito de rescisao e paralisado, poder-se-ia sustentar que estamos perante a viola<;ao de urna nmma imperativa, sendo a clausula do CCT nula. Nao se deve, todavia, deixar de levar em conta que existem re gras especificas em materia de contrato de trabalho desportivo, reguladas em diploma aut6nomo - Lei n. 0 28/98, de 26 de Junho (Lei do Contrato de Trabalho DesportivoLCTD). Ora neste diploma nao encontramos nenhuma afirma<;ao de imperatividade semelhante a do art. o 2. o da LCCT, corn limites a negocia<;ao colectiva identicos aos do art. 0 59. 0 do mesmo texto legal.
Ecerto que o att.
0
3. 0 LCTD, determina que as rela<;oes emergentes do contrato de trabalho desportivo se aplicam, subsidiariamente, as regras aplicaveis ao contrato de trabalho.
Mas, ainda que nao o diga expressamente, essa aplica<;ao subsidiaria implica que as normas juridico-laborais nao sejam incompativeis corn a natureza especial do contrato de trabalho desportivo 13 â&#x20AC;˘ Acontece que as "especificidades do desporto" determinam urna amplitude da
13
Como, alias, a lei espanhola afirma expressamente (ati. 0 21. 0 do Real Decreto 1006/85). V d. J. LEAL AMADO, Contrato de Trabalho Desportivo Anotado, Coimbra, 1995, p. 22, aplaudindo a solw;:ao adoptado pelo legislador espanhol.
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negocia9ao colectiva sem analogia noutras rela9oes de trabalho, corn a consagra9ao de regras pr6prias, como seja o caso da "indemniza9ao por forma9ao", da "desvincula9ao desportiva", ou das "san9oes desportivas" (ou ainda, da cedencia temponma, da redu9ao da retribui9ao para os casos de descida de divisao, das chiusulas de rescisao, etc.). 0 mesmo se pode dizer da negocia9ao individual, em grau naturalmente diferente, uma vez que os jogadores dos escaloes principais, normalmente representados por empresanos experientes, tern urn poder negocial que os coloca nurna posi9ao contratual que nao tern paralelo em nenhurna outra rela9ao laboral. Ora as "especificidades do desporto", desde que e nos termos aceites pelos parceiros outorgantes da conven9ao colectiva respectiva, podem justificar a consagra9ao de urna situa9ao de favor para os clubes ou sociedades desportivas, fazendo depender a existencia da justa causa de rescisao do pagamento das retribui9oes devidas, dentro do prazo 3 dias uteis. Ate porque se o Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol (SJPF) aceitou determinadas concessoes, e natural que os clubes ou sociedades desportivas tenham aceite outras que compensem aquelas. Temos sustentado que a conven9ao colectiva de trabalho deve ser configurada como urn bloco normativo'\ urna vez que expressa urn equilibrio, constitui urna unidade organica, e eo resultado das mutuas concessoes das partes, pelo que nao pode ser compreendida de maneira parcial. Entendemos mesmo que a interpreta9ao proposta e a mais consentanea corn o principio da autonomia colectiva consagrado non. 0 3 do art. o 56. 0 da Constitui9ao da Republica Portuguesa. Pelo exposto, nao aceitamos limita9oes de igual teor ao exercicio do direito de rescisao por parte do jogador se a sua fonte foro contrato individual do trabalho.
14
Jurisprudencia do Trabalho Anotada, 3." ed. (reimpressao), cit., pp. 483-484.
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A soluvao convencional nao nos choca, nem afronta, na nossa 6ptica, qualquer criterio de proporcionalidade. De resto, e pelas raz5es referidas, o "principio do tratamento mais favonivel ao trabalhador'' nao assume na relavao laboral desportiva o relevo que tern na relavao laboral cornurn, devido aexistencia de urn autentico "principio do tratamento mais favonivel aos clubes" 1516 â&#x20AC;˘ 0 ponto e, todavia, controverso, e, confessamos que necessitariamos de mais tempo para fazer uma ponderavao mais demorada. Em todo o caso, o prazo de tres dias uteis e de tal modo exiguo que podeni ser "falacioso" para os clubes ou sociedades desportivas. Eque importa atentar no disposto no art. 0 2. 0 do Decreto-Lei n. 0 69/85, de 18 de Marvo, que estabelece a mora da entidade patronal se o trabalhador, por facto que nao lhe seja imputavel nao puder dispor do montante da retribuivao, em dinheiro, na data do vencimento, don de decorre que a entrega de urn cheque pode nao ser suficiente. Uma coisa, porem, nos parece certa: o julgador nao pode ser complacente corn pniticas dos clubes que sistematicamente ao abrigo do n. 0 2 do art. 0 43.0 procedam ao pagamento das retribuiv5es em divida, dentro do prazo ai referido. A licitude daquela chiusula pressup5e urn exercicio excepcional da faculdade nela contida. 0 seu exercicio normal constituiria urn comportamento manifestamente contrano aos limites impostos pela boa fee ao fllll social ou econ6mico desse direito, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 0 334. 0 do C6digo Civil. Como afirma A. VAZ SERRA, ha abuse de direito "quando o direito, legitime (razoavel) em principio, e exercido, em determinado caso, de maneira a constituir
Ou para sermos mais correctos devido a existencia de urn "principio do tratamento mais favonivel aos praticantes desportivos e aos clubes". Numa outra formular;:ao, poder-se-a dizer que a partir do momento em que as partes por via da negociar;:ao colectiva acordam num determinado regime ele e, do seu ponto de vista, favoravel a ambas. 16 Materia a desenvolver no trabalho em fase de elaborar;:ao dedicado ao tema: "Principio do tratamento mais favorave l ao trabalhador na relar;:ao !aboral desportiva". 15
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Albino Baptista
clamorosa ofensa do sentimento juridico socialmente dorninante; ea consequencia ea de 0 titular do direito ser tratado como se nao tivesse tal direito". 17
4. Exige-se no n.
0
3 do art.0 52. 0 que o jogador notifique a LPFP, por carta registada corn avi so de recep9ao, da sua vontade de por termo ao contrato. Ou seja, a rescisao que o jogador faz operar interessa a LPFP para efeitos de apuramento da existencia de justa causa desportiva. Assim, recebida a comunica9ao referida no n. 0 3 do art. 0 52. o, a LPFP procedeni, em 48 horas, anotifica9ao do clube ou sociedade desportiva para, no prazo de tres dias uteis, produzir prova documental do pagamento das retribui95es cuja falta lhe e imputada (art. 0 52. 0 , n. 0 4). Esta chiusula consagra o canicter urgente do processo corn vista adesvincula9ao desportiva. Aponta-se, por isso, para uma tramita9ao muito celere, que muito aproxima esse processo dos procedimentos cautelares. 0 processo s6 seguini para a Comissao Arbitral Paritaria (CAP) 18 em caso de resposta do clube ou sociedade desportiva corn exibi9ao de prova documental (n. 0 5 do art. 0 52.0 ). Esta clausula deve, todavia, serlida corn a necessaria cautela. Suponha-se que o clube ou sociedade desportiva responde, nao exibindo prova documental, mas dizendo que o jogador nao se apresentou na sua sede para
Abuso de Direito (em materia de responsabilidade civil), Boletim do Ministerio da Justiya, n. 0 85, 1959, p. 253 . 18 Sobre a Comissao Arbitral Paritaria, vd. os nossos estudos: - "Arbitragem Desportiva - Tribunal competente para o conhecimento da acyao de anulayao de decisao arbitral", Revista do Ministerio Publico, n. 0 87, 2001; - "G-18, Tribunal Desportivo e Comissao Arbitral Paritaria", Jornal "Expresso", ediyao de 07.04 .2001.; e -"Novo Modelo de Arbitragem (Seis propostas de alterayao do Estatuto e do Funcionamento da Comissao Arbitral Paritaria)", Jornal "Expresso", ediyao de 17.08.2002. 17
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Pressupostos da desvincu1a.yiio desportiva do jogador, p. 11-32
receber a retribuic;ao 19 ' pelo que 0 nao pagamento nao lhe e imputavel, existindo antes mora do credor.
E6bvio que nesta situac;ao nao pode ser declarada pela LPFP a existencia de justa causa de rescisao. 0 processo tera de ser remetido aComissao Arbitral Paritaria. Devemos, de resto, acrescentar que nao nos parece curial urn sistema em que a justa causa possa ser declarada por urn 6rgao que nao assuma natureza jurisdicional. Tal materia devera ser da competencia exclusiva de urn 6rgao dotado de poderes jurisdicionais.
5. Nao apreciamos por isso o n.
0
5 do art. 0 52. 0 , ao determinar que em caso de resposta do clube ou sociedade desportiva corn exibic;ao de prova documental o processo sera remetido a Comissao Arbitral Paritaria do CCT prevista no artigo 55. 020 para reconhecimento da existencia de justa causa de rescisao para efeitos desportivos, sem prejuizo das consequencias que delaresultarem no piano juridico-laboral. Afirma-se expressamente neste artigo que o reconhecimento da existencia de justa causa de rescisao para efeitos desportivos nao prejudica as consequencias que dai resultarem no plano juridico-laboral.
Nos termos do n. 0 3 do art. 0 36. 0 do CCT para os futebolistas, a retribuiyao deve ser satisfeita na localidade onde a entidade patronal tiver a sua sede, salvo acordo em contnirio. 20 0 conteudo do art.0 55. 0 eo seguinte: Durante a vigencia deste CCT e constituida uma Comissao Arbitral, que sera composta por seis membros, sendo tres nomeados pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional e tres pelo Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol, cujo funcionamento esta previsto no Anexo II do presente CCT, tendo fundamentalmente as seguintes atribuiyoes: a) Dirimir os litigios de natureza !aboral existentes entre os jogadores de futebol e os clubes ou sociedades desportivas; b) Interpretar a aplicayao das clausulas do presente CCT; c) Vigiar o cumprimento do regulamentado; d) Estudar a evolu91io das relayoes entre as partes contratantes; e) Outras actividades tendentes amaior eficacia pratica deste CCT. 19
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A maneira como lemos o artigo e que essa decisao pode ter consequencias laborais, mas como a apreciac;ao foi feita para efeitos desportivos o seu alcance e, de imediato, e tao so, desportivo. A apreciac;;ao das consequencias laborais pressupoe necessariamente urn outro processo, este para apreciac;ao das consequencias laborais. A utilizac;ao da expressao "consequencias laborais" indicia que a justa causa nao pode ser novamente apreciada, tratando-se antes de apreciar num outro processo as implicac;oes laborais da decisao que reconheceu justa causa ao jogador. Esta e, todavia, uma materia aqual teremos de voltar.
6. A falta de resposta nos termos don. o 5 do art. o 52. o equivaleni aconfissao tacita do fundamento rescisorio invocado pelo jogador, valendo como reconhecimento da existencia de justa causa de rescisao para efeitos desportivos (art. 0 52. 0 , n. 0 6). Estabelece-se aqui uma especie de efeito cominatorio pleno. Se o clube ou sociedade desportiva nao contesta exibindo prova documental do pagamento da retribuic;ao, a situac;ao e tratada como se existisse justa causa para a rescisao.
7. Para os casos em que o fundamento invocado para a rescisao nao ea existencia de salaries em atraso, mas outro 2122 , o clube ou sociedade desportiva pode Por exemplo, violar;ao das garantias do jogador, aplicar;ao de sanr;oes abusivas; ofensa aintegridade fisica, honra ou dignidade do jogador praticada pela entidade patronal ou seus representantes legitim os; conduta intencional da entidade patronal de forma a levar o trabalhador a por termo ao contrato (art. 0 43 .0 , n. 0 1). 22 Urn dos fundamentos mais invocados para a rescisao do contrato eo afastamento do grupo normal de trabalho. Sobre este ponto, vd. os nossos estudos: - Razoes Tecnicas e Dever de Ocupar;ao Efectiva do Praticante Desportivo, Prontuario de Direito do Trabalho, Centro de Estudos Judiciarios, Actualizar;ao n. 0 61, 2001; e - Grupo Normal de Trabalho, Equipas "B" e Dever de Ocupar;ao Efectiva do Praticante Desportivo, 21
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opor-se ao reconhecirnento da justa causa, rnediante peti<;iio escrita dirigida a Cornissao Arbitral Paritaria, a apresentar no prazo de cinco dias uteis, contados desde a data da recep<;iio da cornunica<;ao da rescisao operada pelo jogador (art. 0 52. 0 , n.0 7). 0 prazo para o clube ou sociedade desportiva se dirigir a CAP e urn prazo rnanifestarnente curto- 5 dias uteis. Refira-se que o prazo para o trabalhador requerer a suspensao judicial do despedirnento e tarnbern de 5 dias uteis contados a partir da recep<;iio da cornunica<;ao da decisao patronal (art.o 14.o da LCCT)23 â&#x20AC;˘ Efectivamente, a aproxima<;iio aos procedimentos cautelares volta a ser flagrante.
8. A peti<;ao prevista non. 7 do art. 52. deveni conter as razoes de facto e de 0
0
0
direito que fundarnentern a oposi<;ao, bern corno a indica<;ao de todos os rneios de prova a produzir (art. 0 52. 0 , n. 0 8). A apresenta<;iio de todos os rneios de prova corn a peti<;ao e uma caracteristica do processo do trabalho (art. 0 63. 0 do CPT) 2\ rnarcado por urna particular irnplernenta<;iio do principio da celeridade processuaP.
9. A falta de oposi<;iio no prazo referido no n. 0 726 do art. o 52.0 , equivale aaceita<;ao tacita da existencia de justa causa para fins desportivos (art. 0 52. 0 , n. 0 9).
Boletim da Faculdade de Direito de Lisboa, Estudos em Homenagem a Raul Ventura, 2002 (no prelo); 23 Sobre os procedimentos cautelares em sede de processo !aboral, vd. ALBINO MENDES BAPTISTA, C6digo do Processo do Trabalho Anotado, 2.â&#x20AC;˘ ed., Lisboa, 2002, pp. 91 e ss. 24 C6digo do Processo do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n. 0 480/99, de 9 de Novembro. Sobre a materia, vd. a nosso C6digo do Processo do Trabalho Anotado, 2." ed., cit., pp. 159 e ss . 25 Relativamente aos principios do processo !aboral, vd. o nosso C6digo do Processo do Trabalho Anotado, 2." ed., cit., p. 33 . 26 Embora do texto publicado no BTE conste por lapso "numero seis".
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Albino Baptista
Estabelece-se, tambem aqui, uma especie de efeito cominatorio pleno. Se o clube ou sociedade desportiva nao se opoe arescisao do contrato de trabalho, tudo se pas sa como se aceitasse o fundamento invocado pelo jogador, valendo como reconhecimento da justa causa invocada.
10. 0 processo de desvinculac;ao desportiva do jogador teni natureza urgente e sera organizado, processado e decidido em conformidade corn as normas constantes do Anexo II do C.C.T., que regula o funcionamento da Comissao Arbitra1Paritaria(art. 0 52. 0 ,n. 0 10)27 â&#x20AC;˘ A afirmac;ao da natureza urgente do processo volta a aproximar o processo de desvinculac;ao desportiva dos procedimentos cautelares caracterizados igualmente pela natureza urgente. Nos termos do art. 0 22. 0 do Anexo II do CCT para os futebolistas, a decisao deveni ser proferida no prazo maximo de 40 dias a contar da recepc;ao do processo pela Comissao Arbitral Paritaria. Diga-se, de passagem, que estes 40 dias representam, em muitos casos, urn prazo manifestamente insuficiente, bastando para o efeito que haja necessidade de proceder aos normais actos e diligencias processuais. Trata-se, consequentemente, de urn prazo notoriamente irrealista e desfasado da realidade.
11. 0 art. 52. do CCT para os futebolistas suscita muito mais interrogac;oes. 0
0
A primeira e a de saber a natureza do processo nele previsto, e as re gras de tramitac;ao processual que lhe sao aplicaveis.
27
Segundo o art. 0 21. 0 do Anexo 1I do CCT para os futebolistas, os processos remetidos a Comissao Arbitral Paritiria para reconhecimento da existencia de justa causa de rescisao para efeitos desportivos terao natureza urgente e serao organizados, processados e decididos em conformidade corn as normas do presente regulamento e as do regimento que por esta vier a ser aprovado.
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Trata-se de uma questao fimdamental para o correcto enquadramento do principio da igualdade das partes e das regras do contradit6rio. Irnporta, por exernplo, saber quando e que se considera iniciado o processo. Corno verificarnos, existern do is procedirnentos conforme o fimdamento invocado pelo jogador para a rescisao do contrato: 1. 0 Sall:irios ern atraso. 2. 0 Outros fimdarnentos. No 1. 0 caso, o processo pode terrninar na propria Liga Portuguesa de Futebol Profissional. Basta para o efeito que o clube ou sociedade desportiva nao responda anotificavao feita pela LPFP ou responda, rnas sern jun9ao de prova documental do pagarnento das retribuiy6es cuja falta lhe e irnputada. Se clube ou sociedade desportiva exibe prova documental o processo e rernetido
aCornissao Arbitral Paritaria. Inicia-se assirn urn processo junto da CAP, sern peti9ao inicial, o que e absolutarnente an6rnalo e pouco cornpreensivel. Urn processo que pode decorrer corn viola9ao do disposto no art. 0 13. 0 do Anexo II do CCT para os futebolistas, segundo o qual as partes devern estar representadas por advogado. A CAP recebe assirn urn processo a rneio, que nao acornpanhou desde o inicio, rnas agora corn re gras processuais pr6prias, corno seja, desde logo, o referido art. 0 13. 0 do Anexo II do CCT para os futebolistas . Depois ha urn outro problerna. Suponharnos que o clube ou sociedade desportiva alega que nao pagou a retribui9ao reclarnada porque o jogador nao se apresentou, para o efeito, na sua sede. Suponharnos que esta alega9ao foi feita dentro do prazo de 3 dias uteis a que se refere 0 n.0 2 do art.0 43. 0 ' 0 que nao e contestado pelo jogador naquela "fase pre-judicial", de fei9ao "adrninistrativa".
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Albino Baptista
Parece-nos 6bvio que estes factos nao constituem o "processo" para efeitos de decisao a proferir pela CAP. Ou seja, parece-nos indiscutivel que o jogador tern de ter oportunidade de deduzir a sua posi<;ao em sede de aprecia<;ao da materia pela propria CAP. 0 que se pas sou no "processo" previo a"aprecia<;ao judicial" nao releva para efeitos da decisao que teni der ser tomada apenas e exclusivamente corn os factos que as partes levaram ao conhecimento e a aprecia<;ao do julgador. De resto, o jogador no "processo" pre-judicial nao tomou posi<;ao sobre a materia de direito, nem foi (processualmente) acompanhado por advogado para o efeito. Assim, se nao for dada oportunidade ao jogador de deduzir a sua defesa, em particular de direito, julga-se que existini viola<;ao grave do principio do contradit6rio28 â&#x20AC;˘
12. Discute-se o alcance da decisao da Comissao Arbitral Paritaria que reconhece a existencia justa causa desportiva. A posi<;ao da CAP e a de que essa decisao constitui caso julgado, para efeitos de reconhecimento da justa causa laboraF9 â&#x20AC;˘ Ou seja, uma decisao tomada em sede de aprecia<;ao da justa causa desportiva vale para efeitos de justa causa laboral. A materia levanta igualmente inillneros problemas. No art. 0 52. 0 do CCT para os futebolistas, determina-se a separa<;ao clara da esfera desportiva da esfera laboral. Nao existem duvidas de que a decisao que reconhece ao jogador justa causa desportiva nao decide da existencia de eventuais creditos salariais que este julga em divida. Esta materia tera de ser 28
Em sentido diferente, vd. o Acordao da Comissao Arbitral Paritaria, de 13 de Agosto de 2002 (Proc. n. 0 71-CAP/2002) . 29 V d., por todos, o Acordao da Comissao Arbitra1 Paritaria, de 11 de Maio de 2001 (Proc. n.0 56CAP/2000).
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necessariamente objecto de uma nova ac9ao. Por outro lado, se o clube ou sociedade desportiva nao contesta a justa causa desportiva, nao fica inibido de, por exemplo, reclamar quantias que julgue devidas pelo jogador, seja atraves da propositura da correspondente ac9ao seja por via da dedu9ao do respective pedido reconvencional. Finalmente, pergunta-se: a justa causa desportiva e apreciada nos casos em que nao existe cla.usula compromiss6ria?
E que nos termos do art. o 9.
0
do Anexo II do CCT para os futebolistas, a competencia da Comissao Arbitral Paritaria depende de chiusula compromiss6ria.
Se se entender que a justa causa desportiva pode ser decidida mesmo sem cla.usula compromiss6ria, o que e muito duvidoso, ainda que os respectivos efeitos sejam exclusivamente desportivos, a decisao nao pode ter qualquer consequencia laboral atento o disposto no referido art. 0 9. 0 â&#x20AC;˘
13. Acresce que nos casos em que o fundamento invocado para a rescisao nao e a existencia de retribui96es em divida, mas outro, o clube ou sociedade desportiva pode opor-se ao reconhecimento da justa causa, mediante peti9ao escrita dirigida aComissao Arbitral Paritaria, a apresentar no prazo de cinco dias uteis, contados desde a data da recep9ao da comunica9ao da rescisao operada pelo jogador. Como ja tivemos oportunidade de afmnar, trata-se de urn prazo curto que muito aproxima este processo das providencias cautelares previstas nomeadamente no C6digo de Processo do Trabalho. A falta de oposi9ao do clube naquele prazo equivale a aceita9ao tacita da existencia de justa causa para efeitos desportivos (art. 0 52. 0 , n.0 6). Para o exercicio do direito de ac9ao o prazo costuma ser bem mais longo. Por
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exemplo, para reclamar creditos laborais o prazo e de urn ano a contar do dia seguinte acessac;:ao do contrato (art. 0 38. 0 daLCP 0) .
E evidente
que no processo a que se refere o art.0 52. 0 do CCT para os futebolistas nao se apreciam creditos laborais, mas a decisao proferida nessa sede e determinante para 0 apuramento da eventual existencia desses creditos. Ou seja, a falta de oposic;:ao, se gundo a jurisprudencia da CAP, implicando o reconhecimento da justa causa tambem laboral determina que o clube ou sociedade desportiva fica doravante impedido de demonstrar, num prazo mais razmivel, que, aceitando a justa causa desportiva, por, exemplificando, nao ter interesse na continuidade do jogador, ou ate para nao dificultar a sua carreira profissionaP 1, pretende discutir a existencia de justa causa laboral, dada a sua expressao patrimonial. 0 prazo que o clube ou sociedade desportiva tern para se opor e de tal modo exiguo para consequencias tao pesadas que se pode discutir se o mesmo nao compromete o exercicio do contradit6rio, que constitui, como se sabe, travemestra do nos so ordenamento juridico-processual, e expressao do principio da igualdade das pattes. Na verdade, tal prazo nao choca se estiver em causa apenas a vertente desportiva, uma vez que a participac;:ao de urn jogador em competic;:oes oficiais nao se compadece corn demoras. Efectivamente, o art.0 52. 0 parece estar pensado de acordo corn esses valores, exclusivamente desportivos. A aproximac;:ao aos procedimentos cautelares e, por is so, natural.
14. Vejamos outra situac;:ao.
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Lei do Contrato de Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei n. 0 49 408, de 24 de Novembro de 1969. Lembre-se que a participa<;ao de urn jogador em competi<;oes oficiais ao servi<;o de urn Clube terceiro na mesma epoca em que, por sua iniciativa, foi rescindido o contrato de trabalho desportivo depende do reconhecimento de justa causa da rescisao.
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Como ja tivemos oportunidade de dizer, nos casos em que o fundamento invocando para a rescisao e a existencia de salarios em atraso, a Liga Portuguesa de Futebol Profissional notifica o clube ou sociedade desportiva para, no prazo de 3 dias uteis, produzir prova documental do pagamento das retribui<;oes cuja falta lhe e imputada. Suponhamos que o clube ou sociedade desportiva alega que tern contra-creditos a reclamar do jogador e que, portanto, nao faz a prova do pagamento dessas retribui<;oes. A justa causa sera logo reconhecida ou avaliar-se-a antes a posi<;ao do clube? Se da justa causa desportiva se pretende afrrmar a justa causa laboral, nao restara
aCAP outro caminho que nao seja apreciar a defesa do clube ou sociedade desportiva, sob pena de este ser onerado corn uma consequencia laboral sem ter podido contesta-la, 0 que nao e admissive!.
15. Repare-se que s6 se discute a existencia de caso julgado para efeitos laborais se houver ac6rdao anterior da CAP que apreciou a justa causa desportiva. Como ha situa<;oes em que a justa causa desportiva e declarada pela propria LPFP, a saber, as situa<;oes em que o clube ou sociedade desportiva no prazo de 3 dias uteis nao produziu prova documental do pagamento das retribui<;oes cuja falta lhe e imputada, entao nessas situa<;oes a CAP ver-se-a obrigada, se tal lhe for pedido, a apreciar a existencia aut6noma de justa causa laboral, o que pode conduzir a cenarios absurdos. Podemos ter a justa causa desportiva declarada pela LPFP e a justa causa laboral nao reconhecida pela CAP. Entendemos, por isso, que haja ou nao haja resposta do clube ou sociedade desportiva arescisao corn fundamento em salarios em divida, o processo deveria ser sempre remetido aCAP. Ate porque, importa sublinhar, nao sendo a Liga Portuguesa de Clubes Profissionais urn 6rgao jurisdicional, nao lhe deve ser reconhecida a competencia para declarar a existencia de justa causa, mesmo
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que unicamente para efeitos desportivos. Isto para ja nao discutir a posiyaO da LPFF como organismo representativo dos clubes, e, consequentemente, de uma das partes em conflito, o que nao e abonat6rio em termos da necessaria "aparencia do direito" 32 â&#x20AC;˘ Em todo o caso, a intervenyao da LPFF a este nivel vem demonstrar que ha fortes razoes para afirmar que a justa causa de que cuida o art. 0 52. 0 do CCT e declarada apenas para efeitos desportivos, 0 que nao prejudica a apreciayao da justa causa para efeitos laborais.
16. Alias, repare-se que, abstractamente, pode suceder que haja fundamento para justa causa desportiva e nao haj a fundamento para justa causa laboral. Pense-se, por exemplo, no "Regulamento da FIFA relativo ao Estatuto e Transferenciade Jogadores", aprovado em 15 de Julho de 2001. Nos termos do seu art. 0 24. 0 , para alem da rescisao corn justa causa, sera possivel ao jogador rescindir o contrato corn fundamento em razoes v:ilidas de natureza desportiva (justa causa desportiva). A justa causa desportiva sera determinada caso a caso, de acordo corn o art. 0 42. 0 do mesmo Regulamento. Cada caso sera avaliado especificamente, tendo em considerayao todas as especificidades pertinentes (lesao, suspensao, idade do jogador, posiyao do jogador em campo, etc.). Para alem disso, os fundamentos da "justa causa desportiva" nao poderao ser apreciados senao no fim de cada epoca e antes de terminado 0 periodo de inscriyoes. Quando ocorrer uma rescisao corn justa causa desportiva, devera ser determinado se deve ser paga compensayao e qual o valor da mesma.
32
Sobre o valor das aparencias, vd. o Ac6rdao do Tribunal Constitucional n. 0 345/99, publicado no Diario da Republica, 11 - Serie, de 17 de Fevereiro de 2000.
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Por sua vez, o art. o 12.o do "Regulamento de Aplica<;ao do Regulamento relativo ao Estatuto e Transferencia de Jogadores", aprovado igualmente em 15 de Julho de 2001, determina que urn j ogador tern justa causa desportiva para rescindir o seu contrato corn urn clube se puder provar, no fmal de urna epoca, que patticipou em menos de 10% dos jogos oficiais disputados pelo seu clube. Esta justa causa desportiva sera estabelecida caso a caso e dependera de circunstancias especificas do jogador (como por exemplo, mas nao s6: lesao, suspensao, posi<;ao do jogador em campo (ex.: guarda-redes suplente), idade do jogador, expectativas razoaveis corn base na carreira passada do jogador, etc.) 33 â&#x20AC;˘ A justa causa nao assenta aqui necessariamente num comportamento culposo do clube ou sociedade desportiva. N este contexto, a justa causa desportiva tern autonomia em rela<;ao a justa causa laboral. 0 jogador bem pode ter justa causa desportiva para a rescisao, mas nao ter justa causa laboral para o mesmo efeito. Dizer-se, por exemplo, que o jogador tern justa causa desportiva para rescindir o seu contrato corn urn clube se puder provar, no final de uma epoca, que participou em menos de 10% dos jogos oficiais disputados pelo seu clube, nao equivale naturalmente a dizer que tern justa causa laboral. A previsao e estabelecida no interesse do jogador e para proteger a sua carreira desportiva e nao para criar urn mecanismo de rescisao corn justa causa laboral corn o consequente direito a indemniza<;ao, que, no nosso caso, seria a resultante do n. 0 1 do art. 0 48. 0 do CCT para os futebolistas, a saber, correspondente ao valor das retribui<;oes que lhe seriam devidas se o contrato de trabalho tivesse cessado no seu termo, deduzidas das que eventualmente venha a auferir pela mesma actividade a partir do inicio da epoca imediatamente seguinte aquela em que ocorreu a rescisao e ate ao termo previsto para o contrato.
33
Remete-se para o nosso texto, Grupo Normal de Trabalho, Equipas "B" e Dever de Ocupayao Efectiva do Praticante Desportivo, Boletim da Faculdade de Direito de Lisboa, Estudos em Homenagem a Raul Ventura, 2002 (no prelo ).
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17. Por tudo o exposto, sugere-se a altera9ao do art.
0
52. 0 do CCT para os
futebolistas, clarificando a clausula convencional.
e
0 que nao deve acontecer uma decisao assumida por essa clausula, desde a epigrafe passando pelos seus varios nllineros, como sendo tomada para efeitos desportivos, onere depois os clubes ou sociedades desportivas corn uma decisao cujos efeitos extravasam os desportivos, sem tempo processualmente razoavel para deduzir uma defesa conveniente e eficaz. Nao se contesta que pode nao fazer sentido duas aprecia96es da justa causa. A questao que tern de ser respondida ese o CCT para os futebolistas nao torna essas aprecia96es inevitaveis, por mais paradoxal que isso nalguns casos possa parecer. Tenha-se presente, em todo o caso, que a justa causa desportiva apreciada de forma sumaria.
e
Depois, ha a confian9a dos sujeitos processuais. To mando por base uma clausula que se refere a pare pas so a justa causa para efeitos desportivos, os sujeitos processuais podem ser surpreendidos corn uma decisao corn que eles eventualmente podiam nao contar. A nao ser que eles sejam expressamente advertidos para as consequencias laborais da decisao 34 â&#x20AC;˘ 0 que na economia do art. 0 52. 0 do CCT para os futebolistas parece nao acontecer, ainda que no seu n. 0 5 (nao se ignora) se utilize a expressao "sem prejuizo das consequencias que de la resultarem no plano juridico-laboral".
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Situa<;:ao em que todos os prazos processuais teriam de ser alterados.
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A justiya penal internacional na transiyao de seculos, p. 33-72
A JUSTICA PENAL INTERNACIONAL NA TRANSI<;AO DE S:ECULOS Almiro Rodrigues 1 Ex-Juiz do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslavia e Presidente da Camara I do mesmo Tribunal.
I
Para alem das funyoes normais de Juiz, presidiu aprimeira Ciimara de Julgamento, integrou 0 Comite do Regulamento de Procedimento e de Prova (composto por 5 juizes), presidiu ao Grupo de Trabalho sobre as Pniticas Judiciarias (composto por Juizes, Procurador, Secretaria e Advogados de defesa) e foi membro do "Bureau" (6rgao gestor do tribunal). Alem disso, conduziu o inquerito sobre as duas mortes ocorridas na Unidade de Detenyao das Nayoes Unidas e, na sequencia, presidiu o Grupo de Trabalho sobre as condiyoes de detenyao, o qual deu origem a reformas no sistema de detenyao.
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Almiro Rodrigues
l.INTRODU<;AO Este artigo tern como objectivo analisar o processo de desenvolvimento da justi9a penal intemacional corn vista amellior compreensao de algumas realidades actuais, como as do Tribunal Penal Intemacional para a ex-Jugoslavia (TPIJ) e do Tribunal Penal Intemacional (TPI). Para tanto, propomo-nos viajar urn pouco na transi9ao do seculo XIX, XX e XXI, observando-a o mais perto possivel para ganhar essa compreensao operativa da justi9a penal intemacional. Essas questoes focalizam-se e resurnem-se essencialmente no TPIJ e no TPI, na medida em que ambos constituem ponto de chegada e de partida nesse processo de desenvolvimento e em que urn tera influenciado o outro. Do ponto de vista da observa9ao proxima e da organizavao da justi9a penal intemacional, e oportuno trazer aqui a hist6ria que Francisco Carvallio conta no seu livro "Os principios de Gestao Aplicados asua Empresa". "Era uma vez urn mandarim que, em tempos muito antigos, administrava corn reconhecida sabedoria os seus invejados domini os. A sua govemavao assentava na competencia operacional do Ministro em quem delegara todas as tarefas executivas, reservando o seu tempo para a reflexao filos6fica e artistica. Eo seu mandarinato era govemado corn invejada eficiencia ... Aconteceu, porem, que, subita e inesperadamente, o Ministro executivo mon路eu. 0 sabio mandarim pensou, entao, que a govemavao inteligente s6 poderia ser assegurada por urn Ministro aaltura do desaparecido. Mandou, pois, colocar editos por todo 0 mandarinato, aprocura do subdito mais capaz de desempenhar a dificil rnissao. Todos os subditos se poderiam candidatar, na condi9ao de se submeterem a urna clausula: os que nao fossem escolliidos sujeitar-se-iam a urna pena severa, a perda total dos bens e da liberdade. 0 que, e necessaria que se diga, limitou as
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A justic;:a penal intemacional na transic;:ao de seculos, p. 33-72
candidaturas a tres. 0 mandarim preparou-se para a opera<;ao de selec<;ao ... No atrio do seu belo e requintado palacio, adomado corn flores ex6ticas e lago cristalino, mandou colocar o seu trono. Ao primeiro candidato formulou a seguinte pergunta: • "0 que e que esta naquele lago ?" • "Uma laranja! " respondeu, corn o soniso da facilidade da questao. • "Retirem-no e enclausurem-no para sempre", ordenou o mandarim. Para o segundo candidate a mesma pergunta. • "Meia laranja", propos o subdito, ap6s uma observa<;ao adistancia. Resposta diferente, mas igual senten<;a. Por fim, o terceiro candidate. • "Da-me licen<;a, Alteza?" Levanta-se, dirige-se ao lago, pega no volume flutuante e diz: "Uma cascade laranja!" Este foi o sucessor escolhido. Tratar o tema "A Justi<;a Penal Intemacional na Transi<;ao dos Seculos" exige a postura do referido terceiro candidate a Ministro do mandarinato. Parece-nos, pois, pertinente fazer essa viagem, nao para observar a justi<;a penal intemacional naquilo que supostamente ela e, mas antes para perconer o seu processo dinamico atraves do qual ela se tomou. "Da-me licen<;a, Alteza? Levanta-se, dirige-se ao lago, pega no volume flutuante ediz:
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Almiro Rodrigues
a
Uma cascade laranja!". Esta ea atitude chave. Dirijamo-nos hist6ria, olhemos esta justi9a e vejamos, desde ja, que foi urn processo lento, penoso, muitas vezes adiado, mas tambem corn algum sucesso. Nesta viagem, teremos que estabelecer urn rumo. Em primeiro lugar, convira ver o que se passa najusti9a intemacional em geral; depois, seguir o trajecto da justi9a penal intemacional a pare passo corn o direito intemacional humanitario. Dentro desta orienta9ao, convira reter alguns passos para observar, designadamente, o que aconteceu nos fins do seculo XIX, no XX e o que esta a acontecer, hoje, mesmo diante de nos, corn o TPI.
2. JUSTI<;A INTERNACIONAL Seria fastidiosa a descri9ao pormenorizada das diferentes e variadas institui96es que integram a justi9a intemacional. .. Mas, no que toca asua organiza9ao, tres conclusoes gerais 2 se impoem e, a seguir, se mencionam. â&#x20AC;˘ Ajusti9a intemacional constitui urn "sistema anarquico". 0 agrupamento ou sub agrupamento das diferentes entidades e mecanismos da justi9a intemacional numa classificayao nao significa a existencia dum sistema de justi9a intemacional. "Sistema" na medida em que existe urn conjunto de entidades judiciarias intemacionais. "Anarquico" porque esse conjunto nao e urn conjunto de elementos em interac9ao ordenada corn vista a urn objective ou "urn grupo de elementos fimcionalmente relacionados". â&#x20AC;˘ Ajusti9a intemacional apresenta-se, tambem, no seu dinamismo e fluidez. E possivel ver instituiyaes judiciirias que existiram3, que existem permanentemente4 , 2 Este
trabalho tern na sua base a informa91io obtida no "Suplement to the NYU Journal oflnternational Law and Politics, vol.31,n.4" e reunida por "The Project on International Courts and Tribunals". 3 Tribunal de Justi9a Centro :i.mericana ( 1908-1918), o Tribunal Permanente Internacional de Justi9a (1919-1945), o Tribunal Internacional Arabe de Justi9a, o Tribunal Inter americano de Justi9a Internacional. 4 0 Tribunal Internacional de Justi9a (1946-... ), Tribunal Centro americano de Justi9a (1994- ... ), Tribunal Internacional para o Direito do Mar (1996-... )
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que existem provisoriamente5, outras que, existindo nos Tratados, nunca foram instaladas 6 e outras que acabam de ser dadas aluz 7. • Justi9a intemacional significa, ainda, institui9oes judiciarias e quase judiciarias. "Judiciarias" sao as que devem reunir (e retinem) certos criterios fundamentais: • sao compostas por juizes independentes 8 ; • decidem litigios ou conflitos entre duas ou mais entidades, em que, pelo menos, uma delas e urn Estado ou urna organiza9iio intemacional; • trabalham na base de re gras processuais predeterminadas e • emitem decisoes obrigat6rias, que vinculam as partes. "Quase judiciarias" sao as institui9oes que, nao reunindo alguns, ou mesmo todos, dos criterios fundamentais apontados, desempenham, mesmo assim, urn papel de aplicayao, interpreta9iio e implementa9iio do direito intemacional. Encontramos dezassete9 institui9oes judiciarias que podem ser agrupadas, segundo a sua competencia em razao da materia, em sete domini os: geral 10 , direito do mar 11 , direito penal intemacional/direito intemacional hurnanitario 12 , ambiente 13 ,
5
0 Tribunal Penal Intemacional para a ex-Jugoshivia (1993-... ) eo Tribunal Penal Intemacional para
o Ruanda (1995-... ). 0 Tribunal Europeu da Energia Nuclear (OSCE) (1957), Tribunal da Uniao Europeia Ocidental (1957). 7 0 Tribunal Penal Intemacional, criado pelo Tratado de Roma, em Julho de 1998. 8 Seguindo a chamada teoria dos tres i, devem tambem ser imparciais e integros 9 Vinte e quatro ja existiram, o que, entre o passado e o presente, nos leva ao numero total de quarenta e uma instituir;:oes judiciarias. 1 °Consideramos apenas os tribunais existentes: Tribunal Intemacional de Justir;:a e Tribunal Centro americano de Justir;:a. 11 0 ja mencionado Tribunal Intemacional para o Direito do Mar, a funcionar desde 1996 em Hamburgo. 12 Neste dominio, encontramos, a funcionar, os dois Tribunais Penais Intemacionais para a exJugoslavia e Ruanda. Estao propostos identicos tribunais para o Camboja, Serra Leoa e Timor. No passado, funcionaram os Tribunais Militares Intemacionais de Nuremberga (1945-1946) e T6quio (1946-1948). Como e sabido, esta prevista, para Abril de 2002, a instalar;:ao do Tribunal Penal Intemacional, cujo Tratado, assinado em Julho de 1998 em Roma, ja foi ratificado por Portugal. 13 Esta proposta a criar;:ao dum Tribunal Intemacional para o Ambiente. 6
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comercio e investimento 14, direitos hmnanos 15 e acordos de integrayao econ6mica regionaP 6â&#x20AC;˘ Juntamente corn as institui96es judiciarias, as entidades quase judiciais, de controle de implementayao e de arbitragem de disputas formam o si sterna judiciario intemacional. Dai que, para compreender as razoes do rapido aumento das entidades judiciais intemacionais, a extensa transformayao das suas competencias eo sucesso de certas jurisdiyoes materiais sobre outras, seja necessario darlhes algmna atenyao. Se colocarmos estas entidades judiciais intemacionais nmn contexto hist6rico e analitico mais largo, encontraremos, pelo menos, cinquenta e cinco entidades e mecanismos. 17
14
Neste dominio, existe, desde 1995, o "World Trade Organisation Settlement Understanding". Esta institui<;:ao e urn 6rg1i.o ad hoc. Hi uma instancia de recurso que e permanente. Apenas esta se insere na categoria de "judiciiria"; a outra entra na categoria de "quase-judiciiria". Esti proposta para este dominio urn Tribunal para os Emprestimos Intemacionais. 15 Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (1959-1998/ 1998- ... ), Tribunal Inter americano dos Direitos Humanos (1979-... ). Esti em gesta<;:1i.o, desde 1998, o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos e esti proposta a cria<;:ao dum Tribunal Internacional dos Direitos Humanos 16 I) Na Europa, o Tribunal de Justi<;:a das Comunidades Europeias (1952-... ), o Tribunal de Primeira Instancia das Comunidades Europeias (1988-... ), o Tribunal da EFTA (1994-.. .), o Tribunal de Justi<;:a da Uniao Econ6mica Benelux (1974-... ); apesar de terem sido adoptados os respectivos instrumentos constitutivos, nunca chegaram a ser instalados o Tribunal da Energia Nuclear Europeia (OSCE) (1957), o Tribunal Europeu da Imunidade do Estado (Conselho da Europa) (1972) e o Tribunal da Uniao Europeia Ocidental (1957) . 2) Na Africa, o Tribunal de Justi<;:a para o Mercado Comum da Africa Oriental e Meridional, o Tribunal Comum de Justi<;:a e Arbitragem da Organiza<;:1i.o para a Harmoniza<;:ao do Direito das Sociedades em Africa (1997-... ). Foram extintos o Tribunal de Recurso da Comunidade Oriental Africana ( 1967 -1997) e o Tribunal do Mercado Comum da Comunidade Oriental African a ( 19671977). Nunca Chegaram a ver a luz do dia, apesar de terem sido adoptados os respectivos instrumentos constitutivos, o Tribunal de Justi<;:a da Comunidade Econ6mica dos Estados da Africa Central (1983), o Tribunal de Justi<;:a da Comunidade Econ6mica Africana ( 1991 ), o Tribunal da Comunidade de Desenvolvimento da Africa Meridional (1992) eo Tribunal da Comunidade Econ6mica da Africa Ocidental ( 197 5) . 3) No Medio Oriente/Paises Arabes, encontramos o Tribunal de Justi<;:a da Uniao Arabe do Magrebe (1989-...) ea Comissao Judicial da OAPEC (1980-... ). 4) Na America Latina, existe o Tribunal de Justi<;:a da Comunidade Andina (1984-... ) e esti proposto o Tribunal de Justi<;:a do MERCOSUR 17 Cuja enumera<;:ao se dispensa por demasiado longa ...
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3. JUSTI<;A PENAL INTERNACIONAL Gostaria, agora, de contar uma hist6ria! Urn dia 18 recebi urn convite 19 para pmticipar num debate sobre as rela<;oes euroamericanas, sendo-me pedido para focar, mais precisamente, a posi<;ao dos EUA sobre o TPI. Nao me sendo possivel dizer nao, a altemativa foi ficar corn algumas dores de cabe<;a. De facto, os meus neur6nios entraram em sinapses freneticas e assim passaram a noite em tao grande agita<;ao que, por diversas vezes, apelaram ao estado vigil, na busca de uma pista de organiza<;ao de ideias para esse momento. Ainda mal refeito de tantas interrup<;oes do sono e ja no metropolitano a caminho do local de trabalho, ajustei-me ao lugar estreito em que ia sentado para o partilhar corn uma outra pessoa. A negritude de tal pessoa suscitou-me uma tempestade de ideias que sempre desaguavam nos direitos humanos, no estado de direito, na justi<;a e no TPI. Eis senao quando, deitando urn olhar de soslaio ao jomal, que entretanto esta pessoa abrira, pude ler, inserido num pequeno rectangulo, o seguinte: "Muitas vezes, o que se cala causa mais impressao do que aquilo que se diz". De repente, dei conta que tinha ali a solu<;ao para acalmar a actividade frenetica dos meus neur6nios ja dificilmente em sinapse e quase a entrar em colapso. Alguns momentos de acalmia foram interrompidos pela curiosidade de saber quem era o autor do que, na circunstancia, considerava ser uma prenda inesperada e imerecida. "Pindaro Cinoscefalo, 518 AC": pude ler corn alguma dificuldade. Fiquei corn a cabe<;a aroda quando me dei conta que Cinoscefalo significa etimologicamente "movimento de cabe<;a". "Movimento de cabe<;a" (de nega<;ao, de duvida, de incredulidade, de espanto, de hesita<;ao, de ansiedade e mesmo ... de medo) eo que mais encontramos no trajecto de analise do desenvolvimento operacional da hist6ria da justi<;a penal intemacional.
18 19
Por alturas de Maio de 2002. Do Instituto de Estudos Estrategicos e Intemacionais para o Gremio Litenirio, em Lisboa.
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3.1 0
TRIBUNAL PENAL I NTERNACIONAL
Vamos, pois, continuar esta viagem e elencar algumas questoes. Porque nao come<;ar ja pelos nossos dias? Designadamente: â&#x20AC;˘ 0 que e que alguns paises, nomeadamente os EUA, calam relativamente ao TPI ("Muitas vezes, o que se cala causa mais impressao do que aquilo que se diz'')? â&#x20AC;˘ Que movimentos de cabe<;a nas suas rela<;oes corn a justi<;a intemacional eo TPI? Apenas Cinoscefalo pode responder, porquanto so ele e movimento de cabe<;a!. .. Mas tentemos encontrar, ao menos, urn esbo<;o de compreensao. Do ponto de vista da questao, a data de 11 de Abril de 2002 e muito significativa, porquanto entao se atingiu a sexagesima ratifica<;ao do Tratado de Roma, assim se estabelecendo o Ga passado) dia 1 de Julho de 2002 como data do nascimento legal do TPI. Em 11 de Abril de 2002, a Presidencia da Uniao Europeia fez a seguinte declara<;ao 20 : "Hoje, na sede das Na<;oes Unidas em Nova Iorque, foi preenchido o requisito das 60 ratifica<;oes para que o Estatuto de Roma entre em vigor. A Uniao Europeia sauda este acontecimento, que e urn pas so de grande importancia para a defesa dos direitos fundamentais dos seres humanos e para a afrrma<;ao do Direito e da Justi<;ano mundo. A Uniao Europeia felicita os Estados cujas ratifica<;oes tomaram possiveis a cria<;ao do Tribunal Penal Intemacional e faz urn apelo aos outros Estados se juntem ao Estatuto e assim o Tribunal prontamente atinja a universalidade.
20
Madrid, 11 de Abril de 2002
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A Unia.o Europeia, que activamente contribuiu para a redacya.o, desenvolvimento e entrada em vigor do Estatuto de Roma, reafmna o seu compromisso em apoiar a nipida entrada em funcionamento do Tribunal Penal Intemacional na sua sede emHaia. 0 Tribunal Penal Intemacional, a primeira grande institui9a.o a nascer no novo milenio, sera urn componente essencial na luta contra a impunidade de actos de genocidio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, que sao serios crimes que preocupam a comunidade intemacional. 0 Tribunal merece o apoio de todos nos. Os paises da Europa Central e de Leste associados aUniao Europeia, os paises associados de Chipre e de Malta, e os paises da EFTA, membros da Area Economica Europeia alinham-se eles proprios corn esta declara9ao". Entretanto, numa breve cerimonia, ocorrida, no mesmo dia 11 de Abril, na sede das Na96es Unidas, foram produzidas outras importantes declara96es. Por exemplo, "finalmente chegou o tempo em que a humanidade nao mais tern que ser uma testemunha impotente das piores atrocidades, porque aqueles que tentarem cometer tais crimes saberao que ajusti9a os espera" (Kofi Annan); "muito da Historia sao historias de guerras ganhas e de paz perdida; hoje, a paz ganhou e a guerra perdeu" (William Pace, Presidente da Coliga9ao intemacional para o TPI). Apesar de o entao Presidente Clinton ter assinado o Tratado de Roma, a cadeira dos EUA, nesta cetimonia, estava vazia. A administra9ao Bush tinha boicotado a cerimonia. Nesta altura, Pierre Richard Prosper21 reafmnou a oposi9ao do Presidente Bush ao Tratado de Roma e a recusa da sua ratifica9ao. Os Estados Unidos ternem que cidadaos americanos sejam sujeitos a acusa96es frivolas ou politicamente motivadas. "0 objectivo e nobre e nos estamos de acordo corn aresponsabiliza9ao pelos crimes de guerra. 0 que nao merece o nosso acordo e o mecanismo para
21
Embaixador dos EUA para os crimes de guerra e, anteriormente, membro do gabinete do Procurador do Tribunal Penal Intemacional para o Ruanda.
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efectivar o objectivo". Nos principios de Abril de 2002, Prosper havia dito que os EUA estavam a considerar "desassinar" (to unsign) o Tratado para sublinhar que nao estariam submetidos as suas normas. No dia da referida cerim6nia, apesar deter declarado que nenhuma decisao seria tomada nas semanas seguintes, os seus comentarios indicavam que Bush retiraria a assinatma dos EUA. "N6s nao queremos causar confusao ou criar expectativas de que seremos parte neste processo; n6s acreditamos que se nao somos parte do Tratado, nao estamos sujeitos a jmisdi9ao do Tratado", disse Prosper.
0 TPI preenche uma falha no sistema de justi9a intemacional, reconhecida pela primeira vez pela Assembleia Geral das N a96es Unidas em 1948, depois dos julgamentos de Nmemberga e T6quio, em que os EUA participaram. Tambem corn o apoio EUA, foram criados tribunais para lidar corn situa96es especiais, como os conflitos nos tetTit6rios da ex-Jugoslavia eo genocidio do Ruanda. Mas nenhum outro mecanismo22 existia para responsabilizar criminalmente outros individuos de outros territ6rios. Nos passados 50 anos, morreram mais de 86 milhoes de civis em alguns 250 conflitos em todo o mundo e mais de 170 milhoes de pessoas foram privadas dos seus direitos essenciais, da sua propriedade e da sua dignidade de pessoas humanas. A maior parte destas vitimas foram simplesmente ignoradas esquecidas e poucos autores dessas viola96es foram julgados ou responsabilizados.
0 TPI tern caracter subsidiario, isto e, actuara apenas quando os Estados nao quiserem ou nao puderem fazer justi9a eles pr6prios, relativamente aos crimes de genocidio, contra a humanidade, crimes de guerra ou eventualmente aos crimes de agressao. Ele terajmisdi9ao apenas sobre os crimes cometidos depois da sua entrada em vigor (isto e, depois do dia 1 de Julho de 2002). Os casos podem chegar ao Tribunal atraves dum Estado que ratificou o Tratado, do Conselho de Segman9a das Na96es Unidas e do Procmador do Tribunal. Para haver processo, o caso tern que ter a aprova9ao dum painel de tres juizes e em diferentes etapas. 22
De momento, o Tribunal Internacional de Justic,:a das Nac,:oes Unidas lida corn as disputas entre Estados, enquanto sujeitos de Direito Internacional.
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Washington tenta, a todo o custo, que os soldados americanos, bem como outros seus fimciomirios, sejam subtraidos ajurisdi9ao do TPI, arguindo que as garantias contra acusa96es politicamente enviesadas nao sao suficientes e que so os tribunais americanos podem, segundo a sua Constitui9ao,julgar os cidadaos americanos. "0 Procurador e uma mao cheia de Juizes podem tomar uma decisao politica de acusar urn soldado ou urn fimciomirio americano. Esta e uma possibilidade que tomamos muito seriamente", disse Prosper. Phillippe Kirsch23 disse que acredita que os EUA vao eventualmente cooperar corn o Tribunal. Tambem David Sheffer24 se referiu acria9ao do TPI como sendo "urn momento extremamente significativo da hist0ria da humanidade". Acrescentou que "desassinar" o Tratado de Roma seria enviar urn "poderoso sinal a outros paises que ainda nao ratificaram outros tratados importantes para os EUA25 , v.g. mmas quimicas, tortura e conven96es anti-terroristas. Alguns dias depois 26 , Douglas Davidson27 fez uma declara9ao ao Conselho Permanente da OSCE, comentando a decisao dos EUA relativamente ao Tribunal Penal Intemacional. "Eu gostaria de aproveitar esta oportunidade para clarificar tres pontos (... ).0 primeiro e para conigir a ma impressao de que a acyaO que nos tomamos e uma que bra da anterior politica dos EUA. Nao e isso. Existe apenas uma posi9ao sobre o Tratado do Tribunal Penal Intemacional. Esimples e e esta: nos opomo-nos a ele. Quando o Presidente Clinton autorizou a assinatura dos EUA, ele declarou naquela altura que o tratado era :fluido e que nao seria submetido aapreciayaO do Senado, a nao ser que as preocupayoes fimdamentais americanas fossem primeiro resolvidas. Isto traz-me ao meu segundo ponto, que consiste em saber se tal facto significa que os EUA estao de alguma maneira a desassinar o tratado. Permitam-me que 23
Embaixador canadiano, presidente da Comissao Preparatoria da entrada em funcionamento do TPI. Predecessor de Prosper na administra<;ao Clinton. 25 Lembre-se que, por seu !ado, os EUA tambem nao ratificaram outros importantes tratados, como a Conven<;ao sobre o genocidio, a Conven<;ao dos Direitos da Crian<;a, Protocolo Adicional as Conven<;oes de Gene bra, etc .. 26 Viena, 16 de Maio de 2002 27 0 Encarregado de Negocios americano. 24
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diga que os EUA nao esHio de facto a fazer isso. Os EUA assinaram o Tratado em Dezembro de 2000. Uma assinatura nao pode desassinar urn Tratado; a sua assinatura e, no fim de contas, urn facto hist6rico. Assim, a nossa nota neste caso pretende simplesmente tornar claro que nao tencionamos ser parte nesse Tratado e que, por isso, nao temos qualquer obrigayaO decorrente dessa anterior assinatura. Finalmente, eu sei que alguns Estados estao preocupados que esta nossa ac9ao crie urn novo precedente. Eu gostaria de dizer, em resposta a estas preocupa((oes, que os EUA ja anteriormente tomaram uma medida semelhante. Em 1986, por exemplo, os EUA notificaram o Governo Sui9o de que nao tencionavam tornarse parte no Protocolo I das Conven((oes de Genebra". Gostariamos de terrninar esta observa9ao, sob a inspira9ao de Cinoscefalo, como come((amos, perguntando:
• 0 que faz mover a cabe9a da administra((ao americana? • Que verdadeiras razoes estao por detras das explica((oes dadas? • Que "razoes de Estado" justificam tal posi9ao? "Justice will be done" 28 nao sera uma razao de estado? Porque nao ainda: "justice shall be done" 29 ? • Porque eque tanto se apoiou a justi9a de Nuremberga e de T6quio e se apoia ajusti9a para a ex-Jugoslavia eo Ruanda e se resiste ao TPI? 0 mesmo e perguntar: porque eque tanto se apoiou e apoia uma justi9a "ad hoc" e se recusa uma justi9a permanente e universal (ou, pelo menos, corn tendencia para a universalidade? • Porque defender (pelo menos aparentemente) uma justi9a internacional apenas 28
"Justi9a seni feita": declarayiio feita pelo Presidente Bush, a seguir aos acontecimentos do 11 de Setembro de 200 1. 29 "Justiya deveni ser feita" . Existe, a nosso ver, uma pequena grande diferenya entre "Justiya sera feita" e "Justi9a deveni ser feita" .
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para os outros? Para esbo9o de compreensao aceitemos a ajuda de duas grandes figuras universais: Dom Quixote que disse "cegos sao os que veem apenas a realidade" e Martin Luther King que declarou "injustice anywhere is a treat to justice everywhere". Camoes e Vieira nao conheceram Martin Luther King, mas seguramente concordariam corn ele, se dissesse "injusti9a em qualquer lado e uma amea9a para ajusti9a em todo o lado". Corn este panorama de fundo, venhamos ao trajecto hist6rico da justi9a penal intemacional para tentar surpreender as suas rela96es corn o direito intemacional humanitario.
3.2 0
DIREITO INTERNACIONAL HUMANITARlO
0 Direito Intemacional Humanitario e o conjunto de re gras que, numa situa9ao de conflito armado, visa proteger as pessoas que nao participam, ou ja nao participam, nas hostilidades e, ainda, que regula os meios e metodos de conduzir uma guerra30 â&#x20AC;˘ A hist6ria da justi9a penal intemacional esta intimamente ligada a elabora9ao do direito intemacional humanitario. De facto, nascido corn a primeira Conven9ao de Genebra de 186431 , o direito intemacional humanitario contemporaneo desenvolveu-se no decurso das guerras para responder, muitas vezes depois, as necessidades humanitarias resultantes da crescente evolu9ao dos armamentos e dos tipos de conflitos.
Esta definiviio engloba o que econhecido por direito de Gene bra (direito humanitario propriamente dito que tende a proteger as pessoas que (ja) nao participam nas hostilidades, em especial as populav5es civis) eo direito da Haia (ou o direito da guerra, que estabelece as obrigav5es e os direitos das partes beligerantes na conduviio das operav5es militares e na escolha dos meios a utilizar). Alias, os Protocolos Adicionais (de 1977) as Convenv5es de Genebra (1949) unificaram estes dois ramos do direito e, hoje, a distinviio tern apenas valor hist6rico e didactico. 31 Convenviio de Genebra para melhorar a sorte dos militares feridos em campanha. 30
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Corn efeito, a defini<;:ao, designadamente dos crimes contra a humanidade, de guerra e de genocidio, exigiu paralelamente uma reflexao sobre as modalidades de san<;:ao de tais crimes. Vejamos algumas datas ea sua importancia no processo de desenvolvimento da justi<;:a penal intemacional. 0 aparecimento dos conflitos de massa, na segunda metade do seculo XIX, e o aumento do poder de fogo dos beligerantes incitaram os Estados a introduzir o direito na guerra. De facto, como disse Jean Pictet32 "nao podendo pretender quebrar a corrente da guerra, tentou-se em primeiro lugar atenuar-lhe os efeitos inuteis. 0 interesse reciproco dos beligerantes levou-os tambem a observar uma certa "regra do jogo" na condu<;:ao das hostilidades". Assim, mencionando apenas as mais importantes, surgiram as Conven<;:oes de Haia de 189933 e 190734 , codificando as le is e costumes da guerra. De seguida, em 1919, o Tratado de Versalhes estabeleceu o principio da persegui<;:ao dos criminosos de guerra e previu (artigo 227) que Guilherme 11 fosse julgado por urn tribunal intemacional, mas tal julgamento nunca aconteceu, porque a Holanda, onde o ex-imperador se refugiou, recusou a sua extradi<;:ao 35 . Tais disposi<;:oes nunca foram, pois, aplicadas. Entretanto, no fim da Segunda Guerra Mundial, os aliados decidiram36 criar a primeira jurisdi<;:ao penal intemacional da Hist6ria. Trata-se do Tribunal de Nuremberga, corn competencia para julgar os grandes criminosos de guerra das potencias europeias do Eixo. 0 Tribunal de Nuremberga foi o primeiro tribunal a julgar crimes de guerra e o artigo 6 al c) do seu Estatuto defmiu o crime contra
32
Alto Funciom1rio do Comite da Cruz Vetmelha Internacional que muito contribuiu para a divulgayao do direito internacional humanitario, designadamente atraves da criavao do Concurso (formavao e competivao) que tern o seu nome. Faleceu recentemente, em Abril de 2002. 33 Ainda antes de 1899, ha que mencionar a Declaravao deS. Petersburgo, de 1868,que proibiu a utilizavao de certos projecteis em tempo de guerra. 34 Em 1906, tinha havido uma Revisao e Desenvolvimento da Convenvao de Gene bra de 1864. 35 Note-se que ja entao existiam alguns dos problemas de cooperavao que hoje se discutem. 36 No Acordo de Londres, de 8 de Agosto de 1945.
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a humanidade. Urn Tribunal semelhante foi criado em T6quio 37 para julgar os criminosos de guerra japoneses.
e
Ainda no ambiente de p6s-guerra, adoptada a Conven<;ao intemacional sobre o genocidio 38 . 0 artigo 6° desta conven<;ao preve que os crimes de genocidio poderao ser conhecidos por urn tribunal intemacional. 0 projecto de tal tribunal foi, em 1957, adiado "sine die" pelaAssembleia Geral das Na<;oes Unidas. Em 1949 39 , surgem as Quatro Conven<;oes de Genebra40 • Estas Conven<;oes definem, designadamente, a qualidade de combatente, a protec<;ao dos feridos e prisioneiros de guerra, assim como a protec<;ao das popula<;oes civis. As conven<;oes preveem a responsabilidade penal dos autores de infrac<;oes cometidas. 37
Em 1946. Em 9 de Dezembro 1948. 39 Entre 1907 e 1949, seria de considerar outros instrumentos legislativos. E o caso do Protocol a de Gene bra que proibe, em tempo de guen·a, a utiliza91io de gases asfixiantes, t6xicos ou similares e de meios bacteriol6gicos, de 1925, e Duas Conven96es de Genebra, de 1929, sendo uma Revisao e Desenvolvimento da Conven91io de Gene bra de 1906 ea outra a Conven91io de Gene bra relativa ao tratamento dos prisioneiros de guen·a. Ja depois de 1949, havera que ter em conta ainda: em 1954, a Conven91io da Haia para a protec91io dos bens culturais em tempo de conflito armada; em 1972, a Convetwao sabre a interdi91io da prepara91io, fabrico, e armazenagem de armas bacteriol6gicas (biol6gicas) ou t6xicas e sua destrui91io; em 1977, Do is Protocol os Adicionais as Quatro Conven96es de Gene bra, que refor9am a protec91io das vitimas dos conflitos armadas internacionais (Protocol a I) e nao internacionais (Protocol a II); em 1980, a Conven91io sabre a interdi91io ou limita91io da utiliza91io de certas armas classicas consideradas como produzindo efeitos traumaticos excessivos ou sem discrimina91io, a qual contem tres Protocolos; em 1993, a Conven91io sabre a interdi91io da prepara91io, fabrico, armazenagem de atmas quimicas e sua destrui91io; em 1995, Protocolo relativo as armas laser e que constitui o Protocolo IV da Conven91io de 1980; em 1996, Revisao do Protocol a II da Conven91io de 1980; em 1997, Conven91io sabre a interdi91io da utiliza91io, armazenamento, produ91io e transpotie de minas anti pessoais e sua destmi91io. 40 As Quatro Conven96es de Genebra de 1949: I Melhoria da sorte dos feridos e doentes em campanha; II Melhoria da sorte dos feridos, doentes e naufragos das for9as armadas no mar; III Tratamento dos prisioneiros de gueiTa; IV Protec91io das popula96es civis. As Conven96es de 1949, sendo uma revisao das conven96es anteriores ea adop91io de medidas de protec91io das popula96es civis, constituem uma resposta ao balan90 tragico da Segunda GueiTa MundiaL Os seus Protocol os Adicionais, de 1977, sao a resposta as consequencias humanitarias da descoloniza91iO, nao totalmente cobetias pelas Quatro Conven95es. 38
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4. A CRIA<;AO DOS TRIBUNAlS AD HOC A historia da justi<;a penal intemacional esta nao soligada a elabora<;ao do direito intemacional humanitario (law in books), mas tambem a sua aplica<;ao (law in action), designadamente coerciva ea posteriori. Neste dominio, relevam as varias experiencias dos diferentes tribunais ad hoc, a come<;ar por Versalhes, passando por Nuremberga e Toquio e chegando a ex-Jugoslavia e Ruanda.
4.1 0
SUPOSTO TRIBUNAL DE VERSALHES
N ada melhor do que transcrever, na parte mais pertinente e na sua genuinidade, o artigo 227 do Tratado de Versalhes ... "As potencias aliadas e associadas deduzem acusa<;ao contra Guilherme de Hohenzollem, ex-imperador da Alemanha, por ofensa suprema a moral intemacional ea autoridade sagrada dos tratados. Urn tribunal especial sera criado para julgar o acusado dando-lhe as garantias essenciais do direito de defesa. Ele sera composto por cinco juizes, nomeados por cada uma das potencias, a saber: Estados Unidos da America, Gra-Bretanha, Fran<;a, Italia e Japao. 0 tribunaljulgara de acordo corn os motivos inspirados nos principios mais elevados da politica entre as na<;oes, corn o cuidado de assegurar o respeito pelas obriga<;oes solenes e pelos compromissos intemacionais bem como pela moral intemacional. Caber-lhe-a determinar a pena que ele julgue dever ser aplicada. As potencias aliadas e associadas endere<;arao aos Paises Baixos urn requerimento solicitando a entrega do antigo imperador nas suas maos a fim de ser julgado". A primeira pedra estava lan<;ada, mas ficara a primeira pedra ... De facto,
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Os Paises Baixos recusaram, como se disse, a entrega do ex-imperador e, assim, o artigo 227 do Tratado de Versalhes jamais foi aplicado. No entanto, os autores do Tratado nunca imaginaram a amplitude do progresso que acabavam de alcan9ar, nao so quanto a uma nova concep9ao juridica, segundo a qual os autores de crimes de guerra deviam responder perante a justi9a, mas tambem quanto a universalidade do pensamento que ela contern. Pouco tempo depois de Versalhes, aAssocia9ao Intemacional de Direito Penal propos, em 1927, a Sociedade das Na9oes a cria9ao de uma ca.mara criminal no Tribunal Permanente de Justi9a Intemacional. 41
4.2 0
TRIBUNAL DE NUREMBERGA
Entretanto, ocorreu a Segunda Guerra Mundial. Face as enormes atrocidades cometidas pelo regime nazi, nasceu a ideia de criar urn tribunal militar intemacional, como indispensavel aos Aliados para sancionar, por outros meios que nao apenas pelas armas, as atrocidades dos que tiveram como objectivo exclusivo o de eliminarum povo. Em 8 de Agosto de 1945, os Acordos de Londres criaram o tribunal de Nuremberga, composto por quatro juizes titulares e quatro substitutes, vindos de cada urn dos paises aliados. 42 Se o "estatuto" do tribunal criado pelo tratado de Versalhes tinha apenas urn artigo, a Carta do Tribunal de Nuremberga tern 30 artigos. A Carta estabelece a competencia material do Tribunal, conferindo-lhe a missao de julgar os crimes contra a paz, os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade, tres conceitos que nela sao definidos. 0 Procurador deduz o acto de acusa9ao que e recebido
41 42
Revista Internacional de Direito Penal, vol5, 1928 EUA, URSS, Gra-Bretanha e Franl(a.
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pelos jufzes sem qualquer interven9aO judicial. As decis5es43 sao tomadas por maioria e, no caso de empate, o voto do presidente e determinante. Nao esta previsto o recurso das decisoes finais 44 â&#x20AC;˘
4.3 0
TRIBUNAL DE TOQUIO
Do outro lado do mundo, ap6s a capitula9ao do Japao, e criado, em 19 de Janeiro de 1946, o tribunal militar para o Extremo Oriente45 â&#x20AC;˘ 0 tribunal e composto por onze jufzes vindos de onze pafses aliados 46 â&#x20AC;˘ 0 Procurador e americano e cada urn dos outros pafses designa urn adjunto. E conferida competencia para julgar os crimes contra a paz, os crimes de guena e os crimes contra a humanidade. Como em Nuremberga, a instancia de recurso nao e prevista e tambem os actos de acusa9ao sao recebidos sem qualquer interven9ao judicial previa. 4.4
TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA A EX-JUGOSLAVIA
0 Conselho de Seguran9a das Na9oes Unidas, pela resolu9ao 808 e 827, de 22 de Fevereiro de 1993, criou urn Tribunal competente parajulgar os autores
43
Foram deduzidas acusa.;;oes contra vinte e quatro individuos e seis organiza.;;oes. Doze individuos foram condenados pena de morte, nove a prisao perpetua e tres foram absolvidos; tres organiza.;;5es foram declaradas como associa.;;5es criminosas. 0 julgamento come.;;ou efectivamente em 20 de Novembro de 1945 e terminou em 1 de Outubro do ano seguinte. Durou 2 I 8 dias de audiencia e ne le foram ouvidas 360 testemunhas e revistos 200 000 affidavits (declara.;;5es escritas de testemunhas). 44 S6 o Conselho de Controle para a Alemanha tinha a possibilidade de modificar as penas, lembrando assim o peso politico sobre estajurisdi.;;ao e privando, de facto, os condenados duma verdadeira via de recurso. 45 0 julgamento em T6quio come.;;ou em Mar.;;o de 1946 e terminou em Novembro de 1948, tendo durado dois anos e meio. Foram acusados 28 individuos, tendo sido ouvidas 400 testemunhas, revistos 800 affidavits e 1000 documentos. Dos acusados 25 foram condenados pena de morte, do is morreram antes de terminar o julgamento e outro foi hospitalizado corn graves problemas mentais tendo falecido pouco depois. 46 A! em dos EUA, URSS, Gra-Bretanha e Fran.;;a, tambem a Australia, o Canada, a China, as Filipinas, a India, a Nova Zeliindia e os Paises Baixos.
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de infrac<;:oes do direito intemacional humanitario cometidas nos territ6rios da ex -Jugoslavia depois de Janeiro de 1991. Mais adiante, desenvolveremos urn pouco alguns aspectos relativos a este tribunal.
4.5
TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA A RUANDA
0 Conselho de Seguran<;:a, pela resolu<;:ao 995, de 9 de Novembro de 1994, criou urn tribunal penal intemacional para perseguir e julgar os autores do genocidio ruandes cometido a partir de 6 de Abril de 1994.
4.6 TRIBUNAL DA SERRA LEOA Outros tribunais estarao em perspectiva? Esta criado urn tribunal para a Serra Leoa e discute-se a possibilidade de cria<;:ao de outros, nomeadamente para o Camboja e, eventualmente, para Timor Leste. Estes tribunais, pelo menos o tribunal para a Serra Leoa, situam-se entre o modelo dos tribunais intemacionais para a ex-Jugoslavia e para o Ruanda e o TPI, porquanto sao tribunais nacionais de coopera<;:ao intemacional. Efectivamente, o TPIJ eurn tribunal intemacional ad hoc corn primazia sobre os tribunais nacionais (o julgamento cabe em primeiro lugar ao tribunal intemacional); o TPI urn tribunal intemacional permanente corn caracter subsidiario (o julgamento cabe em primeiro lugar as jurisdi<;:oes nacionais ); o tribunal para a Serra Leoa eurn tribunal nacional (o julgamento cabe exclusivamente a jurisdi<;:ao nacional), mas de coopera<;:ao intemacional, isto e, em que a comunidade intemacional esta envolvida. Para completar o quadro: os tribunais de Nuremberga e de T6quio eram tribunais de algum modo nacionais, porque nao criados pela comunidade intemacional, mas sim pelos paises vencedores, para, corn os juizes nomeados por esses paises, aplicarem o direito nacional desses paises; os tribunais intemacionais (ex-Jugoslavia, Ruanda e TPI) sao verdadeiramente intemacionais porque criados pela comunidade intemacional para, comjuizes eleitos pela comunidade intemacional, aplicarem o direito intemacional. Para completa compreensao das rela<;:oes entre estes tribunais, ha que ter em conta que o TPI s6 tern competencia para o julgamento de crimes cometidos depois de 1 de Julho de 2002, ou seja nao tern competencia retroactiva.
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5. TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PARA A EXJUGOSLAVIA (TPIJ) 5.1 APRESENTA<;:AO Urn dos maiores desafios que se colocam, hoje, acomunidade intemacional ea realizavao dum mundo corn face humana. Este objective, mais do que uma miragem visiomiria, deve constituir urn imperative, ao mesmo tempo, morale juridico. Os conflitos mais recentes, independentemente do lugar em que aconteceram, apresentam-se corn algumas caracteristicas comuns: tern na sua origem diferenvas culturais, religiosas e, sobretudo, etnicas; geralmente barbaros e crueis, opoem combatentes dum mesmo Estado mais do que Estados diferentes e, na maioria dos casos, as populav5es civis nao sao, de facto, suficientemente protegidas pelos tratados intemacionais que regem as relav5es dos Estados em tempo de guerra. Parece, pois, claro que a comunidade intemacional deve encorajar o reforvo do direito intemacional humanitalio corn vista a melhor garantir nao s6 a seguranva das pessoas, como tambem o respeito dos direitos humanos e do direito humanitario. Assim, e essencialassegurar uma plena e eficaz aplicavao do direito intemacional humanitario existente, seja ele convencional ou costumeiro. A cliavao dum tribunal penal intemacional para julgar os autores de infracv5es graves ao direito humanitario, os climes contra a humanidade, as violav5es das leis e costumes da guerra e os climes de genocidio, representa, sem duvida, urn acontecimento importante. De facto, atraves da resoluvao no 808, de 22 de Fevereiro de 1992, o Conselho de Seguranva criou "o tlibunal intemacional para julgar as pessoas presumidas responsaveis por violav5es graves do direito humanitario intemacional cometidas no territ6rio da ex-Jugoslavia depois de 1991 ".Nessa altura, ninguem poderia prever que, apenas decorrido urn ano, seria necessaria urn segundo tribunal
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para o Ruanda. A cria<;ao e o sucesso destes tribunais facilitaram a assinatura, em Julho de 1998, do Tratado de Roma, que criou o Tribunal Penal Intemacional, como se disse, entrado em vigor em 1 de Julho de 2002. 5.2
0RGANIZA(:AO E GESTAO
Como Juiz do TPIJ, tive a excepcional oportunidade de conhecer os te1mos e as condi<;oes do seu desenvolvimento e nele participar. 0 tribunal come<;ou exactamente do zero em Novembro de 1993; hoje, euma institui<;ao judiciaria creditada e prestigiada. Do ponto de vista da organiza<;ao e gestao teve, no entanto, que enfrentar e resolver muitos problemas. N a jurisdi<;ao nacional, ha uma tradi<;ao de organiza<;ao judici:iria que constitui urn repositorio de experiencia onde se pode reconer para resolver algumas dificuldades; o TPIJ foi o primeiro tribunal penal criado pela comunidade intemacional e, por isso, dada a sua especificidade e novidade , nao tinha qualquer referencia. De algum modo foi necessario reconer bem ahistoria do mandarim. A historia do mandarim sugere que gerir implica: rodear-se de colaboradores capazes; basear as decisoes em factos e nao em suposi<;oes; tocar a realidade, as tarefas, corn as proprias maos. Ha muitos gestores, sobretudo de institui<;oes publicas (como eo caso dos tribunais ), que pensam que os princfpios de gestao nao se lhes aplicam e que sao apenas para as empresas privadas. Ora, os principios da gestao sao gerais e universais, aplicam-se a todas as actividades de grupos humanos que, independentemente da sua dimensao e finalidade, devam prosseguir em interac<;ao ordenada a satisfa<;ao de determinadas necessidades colectivas. Por isso, a essencia da gestao consiste em coordenar a energia de diferentes recursos materiais, financeiros e humanos, tendo em vista objectives especificados.
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De salientar que os tribunais para a ex-Jugosl<ivia e para o Ruanda consomem 15% do on;amento das Nac;:oes Unidas e ate por isso exigem urna gestao cuidada, mas adaptada a uma organizac;:ao judiciaria e penal. Assim, gerir e conseguir resultados corn a colaborac;:ao das pessoas e a coordenac;:ao de recursos. Para tanto o gestor precisa de: planear (defmindo objectivos, tomando decisoes relativas aos objectivos, fazendo previsoes, estabelecendo estrategias corn vista aos objectivos, inovando ); organizar (agrupando actividades afins segundo os objectivos, estruturando equipas interdependentes, delegando autoridade); controlar (medindo a relac;:ao resultados/plano, verificando os desvios e tomando as medidas convenientes para corrigir os mesmos); motivar (satisfazendo as necessidades das pessoas e dos grupos, criando a vontade de fazer mais e melhor); liderar (dinamizando pessoas e equipas, de modo a que se identifiquem corn os objectivos da instituic;:ao, desenvolvendo urn sistema de relac;:ao de poder hierarquico que facilite a comunicac;:ao). Como Presidente duma das camaras e como membro do Bureau, tive, muitas vezes, que assumir a postura do gestor, inclusivamente tentando (e, algumas vezes, conseguindo!) "desonusizar"47 o funcionamento do Tribunal. Hoje48 pode dizer-se que, nurna decada, o Tribunal conseguiu ser urna instituic;:ao judicial a funcionar em pleno. Os primeiros quatro anos foram essencialmente dedicados aimplementac;:ao da sua estmtura organizacional: pessoas, instalac;:oes e equipamentos e orc;:amento. Tudo comec;:ou corn 11juizes eleitos pela Assembleia Geral das Nac;:oes Unidas em Maio de 1993, urn Secretario e urn Procurador, que, corn urn pequeno staff administrativo, reuniam nurna pequena sala do Palacio da Paz, nas instalac;:oes
Na maioria das situa9oes, as normas de gestao das Na9oes Unidas nao eram adequadas agestao do tribunal. Dai termos que "desonusizar". 48 Outubro de 2002 47
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do Tribunal Intemacional de Justi<;a. Hoje, o tribunal esta instalado em tres edificios, alberga mais de 1 400 pessoas (de 77 diferentes nacionalidades) e funciona corn urn or<yamento de (+ ou -) 100 milhoes de do lares. 0 anode 1998 (o seu 5째 anode existencia) marcou o fun da era da sua instala<;ao eo inicio do seu pleno funcionamento. De facto, nesse ano, o nillnero de detidos triplicou. Em 1998, foram construidas mais duas salas de audiencia, das 3 agora disponiveis. 0 Regulamento de Procedimento e de Prova foi revisto, corn o objective de garantir urn processo rapido e equitavel, criando-se novos mecanismos processuais, incluindo o juiz da prepara<yao do julgamento e conferencias preparat6rias do julgamento. Actualmente49 , o Tribunal tern 45 detidos na Unidade de Deten<yao das Na<yoes Unidas, corn 10 acusados em liberdade provis6ria. Foram confirmadas publicamente 75 acusa<yoes e existe urn nillnero desconhecido de acusa<yoes confidenciais. Assim, o tribunal esta hoje envolvido numa actividade judicial extraordinariamente activa, diria mesmo frenetica: onze processes findos, corn os condenados em cumprimento de pena; quatro processes terminaram definitivamente corn total execu<yao da pena; seis processes por dia em audiencia de julgamento e dezassete processes em prepara<yao para julgamento. A ca.mara de recurso tern pendentes cinco recursos de decisoes fmais. Segundo o Estatuto e o Regulamento do tribunal, o Procurador, logo que tenha elementos de prova necessaries para a incrimina<yao, deduz a acusa<yao. No entanto, o acto de acusa<yao e todos os elementos de prova em que se baseia sao revistos por urn juiz corn vista a concluir "prima facie" pela viabilidade do processo. 0 processo s6 existira see quando esse juiz decidir confirmar o acto 49
Referencia ainda a Outubro de 2002.
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de acusa<;ao. Por outro lado, ao contnirio dos tribunais de Nuremberga e de T6quio, esta prevista uma instancia de recurso. A camara de recurso do Tribunal da Haia tambem funciona como camara de recurso para o Tribunal do Ruanda.
5.3 0
EFEITO PREVENTIVO
0 tribunal tern como objectivo essencial fazer justi<;a e prevenir futuras infrac<;oes. A vingan<;a satisfaz aparentemente uma necessidade; mas, na realidade, perpetua o ciclo da intolerancia e, na pior das hip6teses, da vioH~ncia. "Se procru路as vingarte, cava duas sepulturas", diz urn proverbio chines. 0 Tribunal de Nuremberga foi criado, no seguimento da Segunda Guerra Mundial, para avisar o mundo de que a comunidade intemacional nao toleraria que a repeti<;ao de tais atrocidades ficasse sem castigo. "Never again" foi a palavra de ordem entao proferida. Mas, "ever again and ever again", tais barbaridades se repetiram. 0 seculo XX foi o mais sangrento da hist6ria da humanidade; porem, a comunidade intemacional foi esquizofrenica na sua resposta: por urn lado, adoptou a Declara<;ao Universal dos Direitos Humanos (cujo 50掳 aniversario celebramos ha pouco tempo), a Conven<;ao sobre o Genocfdio e numerosos tratados, proscrevendo tais actos ilegais; por outro lado, tolerou frequentes e ferozes conflitos nacionais e intemacionais, em que os alvos foram civis inocentes. Nao e possivel assistir a tais atrocidades, sem nada fazer. Os crimes cometidos pelo regime nazi ocorreram porque muitos dos que sabiam da sua existencia fmgiram ignorar, sabiam mas nada fizeram, era mais facil e seguro para eles nao saberem. A comunidade intemacional tern que demonstrar, nao somente por palavras, mas tambem por ac<;oes, o seu renovado compromisso de transformar os Direitos Humanos numa ferramenta eficaz de preven<;ao. Erwin Straub 50 adverte que o real perigo de viola<;oes dos Direitos Humanos nao e quem viola esses direitos, 50
Autor de "As Rafzes do Inferno".
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mas aqueles que assistem passivamente de perto, porque sabem e nada fazem. Condenar urn comportamento e depois toleni-lo enao s6 urn exercicio de hipocrisia, mas tambem etomar aqueles instrumentos urn mero "tigre de papel''. Seria melhor simplesmente nao o condenar. Quem esta em posi9iio de agir e falha nessa ac9iio sera tao culpado como quem viola esses Direitos. Tal falta de ac9iio, a persistir, continuara a justificar, na melhor das hip6teses, o desabafo de muitos sobreviventes: "o meu medo de esquecer emais forte do que o meu medo de me lembrar de muitas coisas". 0 tribunal, fazendo justi9a e contribuindo para a paz, eurn dos recursos da comunidade intemacional para evitar este penoso dilema do esquecimento. Quando em 1993, o Conselho de Seguran9a criou o TPIJ, muitos duvidaram que este Tribunal pudesse responder aos objectives para que foi criado; outros ja se preparavam para lhe passar a certidao de 6bito. De facto, apesar dos esfor9os do Procurador, decorridos tres anos sobre a sua cria9iio, somente sete acusados se encontravam em deten9iio. Mas, em 1997, este nillnero triplicou. Na altura em que foi decidido o primeiro caso do tribunaP 1, varios acusados se encontravam em deten9iio. Apesar de Mladi e Karadzic estarem ainda em liberdade, o processo do General Blaski encontrava-se em curso e urn outro 52 tinha ja terminado. 0 maior desenvolvimento, nesta altura, tera sido a deten9iio de do is suspeitos, na Bosnia-Herzegovina, por unidades da For9a de Estabiliza9iio Multinacional ("SFOR") e outra deten9iio, na Croacia, pelas tropas das Na96es Unidas. Estas deten96es vieram melhorar a reputa9iio do Tribunal perante a comunidade intemacional e, de algum modo, acalmar certa inquieta9iio de que cooperar corn o Tribunal nao seria a prioridade das for9as intemacionais estacionadas na ex -Jugoslavia. 0 facto de a eficacia do Tribunal ter melhorado acentuou a importancia que a jurisprudencia do Tribunal adquiriu. Especialmente, porque as decisoes proferidas nos processes constituem, de algum modo,
51
Caso Tadi, em 7 de Maio de 1997.
52
Erdemovic que aceitou ser julgado como culpado.
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precedente nos casos futuros. E, pois, compreensivel que a jurisprudencia do Tribunal tenha urn impacto muito grande no desenvolvimento do direito intemacional humanitario. Uma forma de avaliar a hist6ria do TPIJ sera ver como o Tribunal foi estabelecido e qual o seu lugar no direito intemacional.
5.4 0
CONSELHO DE SEGURAN<;A E 0 ESTABELECIMENTO DO TRIBUNAL
0 TPIJ e muitas vezes comparado corn os Tribunais de Nuremberga e de T6quio. No entanto, a criac;:ao destes Tribunais aconteceu em situac;:oes diferentes: o Tribunal de Nuremberga foi criado imediatamente a seguir ao fim da Segunda Guerra Mundial, logo ap6s os reus terem sido detidos e ja quando os poderes multinacionais exerciam controle completo sobre a Alemanha, designadamente sobre os arquivos documentais e corn pleno acesso as testemunhas. 0 Tribunal Penal Intemacional para a ex-Jugoslavia foi criado enquanto deconia o conflito na ex-Jugoslavia e dependia totalmente da cooperac;:ao dos Estados, especialmente na detenc;:ao e entrega ao Tribunal de pessoas acusadas de violac;:oes graves do direito intemacional humanitario, no acesso aos arquivos documentais e as testemunhas que, tendo em conta as caracteristicas do conflito, tiveram, muitas vezes, que ser objecto de medidas de protecc;:ao corn vista a garantir o seu depoimento . Mais ... o Tribunal de Nuremberga foi criado para julgar acusados nacionais de uma das paties envolvidas na Grande Guerra (Alemanha), ao passo que o Tribunal para a ex-Jugoslavia temjurisdic;:ao sobre todas as pessoas envolvidas no conflito e, por isso, temjulgado tanto Servios, como Croatas e Muc;:ulmanos B6snios. A criac;:ao do TPIJ pelo Conselho de Seguranc;:a representou urn profunda e antigo desejo da comunidade intemacional. Este Tribunal foi criado ao abrigo dos poderes que o mesmo Conselho pode exercer ao abrigo do Capitula VII da Cruia das Nac;:oes Unidas. 53 0 Secretatio-Geral das Nac;:oes Unidas esclareceu54 53
Atraves de Resolut;:iio 827 (1993). Antes da adopt;:iio desta resolut;:iio, varias outras foram passas pelo Conselho: Resolut;:oes 764 (1992), 771 (1992), 780 (1992) e 808 (1993). Atraves da resolut;:iio
780, uma Comissiio de Peritos foi criada. 0 Relat6rio produzido por esta Comissiio foi crucial no estabelecimento do Tribunal. 54 No seu relat6rio de apresentat;:iio do Estatuto do Tribunal (UN Doe. S/25704).
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entao que o procedimento normal para a cria<;ao de urn Tribunal Intemacional e atraves de urn Tratado. No entanto, neste caso, urn Tratado teria atrasado a cria<;ao nipida e oportuna do Tribunal. A cria<;ao do Tribunal ao abrigo do Capitula VII da Carta "teria a vantagem de ser mais nipido e imediatamente eficaz, uma vez que todos os Estados teriam uma obriga<;ao de adoptar medidas necessarias aexecu<;ao de uma delibera<;ao tomada ao abrigo do Capitula VII".55 Ao contrario do Tribunal de Nuremberga, que dependia da vontade dos Estados que possuiam jurisdi<;ao sobre os crimes em questao, a autoridade do Tribunal vem de urn 6rgao das N a<;oes Unidas (o Conselho de Seguran<;a) que nao tern jurisdi<;ao criminal. Uma das vantagens de o Tribunal para a ex-Jugoslavia ter sido criado pelo Conselho de Seguran<;a eo facto de que a sua cria<;ao, atraves da Resolu<;ao do Conselho de Seguran<;a, significa que a justifica<;ao juridica da cria<;ao do Tribunal e baseada nao no valor inerente de aplicar uma lei, mas sim no restabelecimento da paz e seguran<;a intemacional, atribui<;oes que cabem ao Conselho de Seguran<;a nos termos do Capitula VII da Carta. A cria<;ao deste Tribunal, nos termos apontados, representa em si urn avan<;o civilizacional significativo, na medida em que a comunidade intemacional adopta, pela primeira vez, a justi<;a como solu<;ao para por termo a urn conflito armado e prevenir a repeti<;ao de viola<;oes do direito intemacional humanitario. Apesar deter si do criado pelo Conselho de Seguran<;a, o trabalho do Tribunal depende da coopera<;ao dos Estados e do facto de que essa coopera<;ao estar directamente ligada aos poderes conferidos ao Conselho de Seguran<;a pela Carta das Na<;oes Unidas. 5.5 0
CONSELHO DE SEGURAN<;A E A LEGITIMIDADE DO TRIBUNAL
No caso Tadi, alegou-se, porum lado, que o Conselho de Seguran<;a ultrapassara os seus poderes, uma vez que a Carta nao o autoriza a criar urn Tribunal como meio de lidar corn uma amea<;a apaz e seguran<;a intemacional e, por outro, que, segundo o principio geral dos direitos humanos, o Tribunal teria que ter sido criado por lei ("established by law"). 55
UN Doe. S/25704, para. 19-21.
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A Camara de Recurso, ao analisar estas questoes, concluiu que o Capitulo VII da Carta, em especial o Artigo 41, confere ao Conselho de Seguran9a liberdade para tomar as medidas mais convenientes e apropriadas para lidar corn qualquer amea9a a paz ou seguran9a intemacional. De facto, o Conselho de Seguran9a reconheceu que as viola96es do direito hurnanitario, cometidas nos conflitos na ex-Jugoslavia, estavam a amea9ar a paz e seguran9a intemacional e que a responsabiliza9ao criminal individual eurn meio de que o direito intemacional dispoe para por fim as actividades criminosas ou para evitar a sua repeti9ao. Nao pode, assim, afmnar-se que o Conselho de Seguran9a violou os seus poderes ao estabelecer o Tribunal. Amea9as a paz e seguran9a mundial nao se limitam somente ao territorio da ex-Jugoslavia; por isso, o trabalho do Tribunal evisto como uma possivel preven9ao de futuras viola96es do direito humanitario e igualmente contribui para a diminuiyao de amea9as a paz que possam ocorrer no futuro. 0 Artigo 29 da Carta das Na96es Unidas confere poderes ao Conselho de Seguran9a para criar "orgaos subsidiarios, como achar necessaria", de modo a contribuir para a realiza9ao das suas fun96es. A Camara de Recurso baseou-se num parecer do Tribunal Intemacional de Justi9a (TIJ). 56 Neste caso, o TIJ aceitou como legal a ctiayao pela Assembleia Geral de urn tribunal para apreciar e decidir os casos dos seus funcionarios e, assim, assistir a Assembleia Geral a regular as rela96es entre os seus funcionarios ea Organiza9ao das Na96es Unidas. Neste caso, a Assembleia Geral agiu no foro intemo das Na96es Unidas, pelo que nenhurn tribunal nacional tetia qualquerjurisdi9ao. Em contraste, a cria9ao pelo Conselho de Seguranya de urn Tribunal corn primazia sobre tribunais nacionais foi necessaria para a realizayao eficaz das suas fun96es de manter o respeito pela paz e seguran9a mundial. A Camara de Recurso pronunciou-se ainda sobre o facto de urn acusado ter o direito a urnjulgamento justo e publico nurn Tribunal competente, independente e imparcial estabelecido por lei, direito reconhecido por varios instmmentos de direitos humanos. A Camara fez referencia ao Atiigo 14 (1) da Conven9ao
56
No caso "Effect of Awards case", Relat6rio do TIJ, 1954, p. 47.
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Intemacional dos Direitos Civis e Politicos, ao Artigo 6 (1) da Conven<;ao Europeia dos Direitos Humanos e ao Artigo 8 ( 1) da Conven<;ao Americana dos Direitos Hurnanos. No entanto, este requisito s6 e aplicavel ern tribunais nacionais e nao intemacionais, urna vez que nao existe nenhurn 6rgao legislativo na sociedade intemacional. A Oirnara de Recurso considerou que o irnportante eo facto de o Tribunal ter sido criado corn base no direito e corno tal oferece todas as garantias contidas nos instrurnentos fundarnentais dos direitos humanos. Igualrnente, o Tribunal foi estabelecido por urna Resolu<;ao do Conselho de Seguran<;a tornada de acordo corn a Carta das Na<;5es Unidas e, por isso, c1iado por lei. A decisao da Carnara de Recurso estabeleceu assirn a legitirnidade da cria<;ao do Tribunal pelo Conselho de Seguran<;a.
5.6 0
TRIBUNAL E A COOPERA<;:AO DOS ESTADOS
Parece claro, na decisao da Carnara de Recurso no caso Tadi ', por urn lado, que o Tribunal rnantern a sua independencia ern rela<;ao ao 6rgao que o criou e preserva o Tribunal contra qualquer tentativa de o Conselho de Seguran<;a intervir no seu trabalho; por outro lado, o Tribunal depende, para a execu<;ao das suas decis5es, do Conselho de Seguran<;a e da coopera<;ao dos Estados. De facto, o Tribunal depende especialrnente da coopera<;ao dos Estados na deten<;ao e entrega de acusados e, igualrnente, na recolha da prova e no desenvolvirnento das investiga<;5es. Esta obriga<;ao de coopera<;ao esta prevista na Resolu<;ao 827, paragrafo 4, que refere que " ... to dos os Estados devern adoptar todas as rnedidas necessanas nos seus sisternas legais nacionais a frm de por ern pratica os requisitos previstos nesta resolu<;ao e no Estatuto". Por for<;a do Artigo 25 da Carta das Na<;5es Unidas, esta resolu<;ao e obrigat6ria para todos os paises rnernbros das Na<;5es Unidas e, para isso, nao e necessaria que exista legisla<;ao nacional para o efeito. Esta obriga<;ao aplica-se, igualrnente, a nao-Estados corno eo caso da Republica Srpska. A rnaior dificuldade no trabalho do Tribunal tern sido o obstaculo que especialmente os paises rnais envolvidos no conflito da ex-Jugoslavia tern criado, urna vez que se tern constanternente recusado a curnprir as suas obriga<;5es para
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corn o Tribunal. Urn Estado, nestas condi<;oes, encontra-se imediatamente numa situa<;ao de viola<;ao da resolu<;ao do Conselho de Seguran<;a, que podeni tomar as medidas necessarias se considerar que tal viola<;ao foi seria. San<;oes so poderao ser emitidas pelo Conselho de Seguran<;a; para tanto, o Tribunal podera declarar o Estado como infractor e transmitir essa decisao ao Conselho de Seguran<;a. 5. 7
JURISDI<;AO DO TRIBUNAL
Analisemos urn pouco a jurisdi<;:ao do Tribunal, no contexto do direito humanitario. 0 Estatuto confere ao Tribunal jurisdi<;ao sobre quatro categorias de graves viola<;oes de direito humanitario cometidas por individuos no territorio da exJugoslavia desde 1991 . As quatro categorias estipuladas nos Artigos 2, 3, 4 e 5 do Estatuto sao: Artigo 2, Graves Viola<;oes das Conven<;oes de Genebra de 1949; Artigo 3, Viola<;:oes das Leis e Costumes de Guerra; Artigo 4, Genocidio; Artigo 5, Crimes Contra a Humanidade. Cabe claro ao Tribunal aplicar as leis existentes do direito intemacional humanitario. 0 Estatuto nao considera ilegal uma conduta que antes nao fosse considerada legal, nem cria responsabilidade criminal individual por ac<;oes que antes nao requeressem essa responsabilidade. Consequentemente, o Estatuto nao criou novos crimes, nem alterou a defmi<;ao dos crimes ja existentes em direito intemacional humanitario. 0 Tribunal tern por fun<;ao avaliar se a conduta do arguido e ilegal dentro das regras do direito intemacional humanitario e, se sim, se essa mesma conduta envolve responsabilidade individual criminal de acordo corn o direito intemacional e, fmalmente, se a conduta e tal que o Tribunal tern jurisdi<;ao sobre ela. Finalmente, uma das particularidades do Estatuto, segundo o artigo 21 (4), e de que o arguido so podera ser julgado encontrando-se presente, consequentemente o Tribunal excluiu julgamentos in absentia, cuja eventual exisrencia seria considerada contraria ao Artigo 14 da Conven<;ao Intemacional dos Direitos Civis e Politicos.
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5.8 0
PROCESSO MILOSEVIc 57
â&#x20AC;˘ Algumas pessoas tern entendido que o Tribunal se deveria ocupar essencialmente dos grandes responsaveis a das graves viola<;oes, reservando para as jurisdi<;oes nacionais o julgamento dos pequenos executantes e das viola<;oes menos graves. Esta visao parece-nos correcta58 . Senao vejamos: se o Tribunaljulgarvinte mil (passe o exagero!) pequenos executantes59, mas nao julgar Milosevic, Karadzic e Mladic sera visto como bem sucedido? A resposta parece ser nao. Ao contrario, se julgar pelo menos Milosevic, Karadzic e Mladic, a resposta a mesma questao parece ser afirmativa. Quer isto dizer que nao e importante julgar os pequenos executantes? Nao. E importante julga-los. Se tivermos em conta os objectivos do Tribunal de fazer justi<;a, de dar satisfa<;ao as vitimas e de contribuir para a paz, ve-se bem que mesmo os pequenos executantes, que residam numa pequena aldeia, poem seriamente em risco tais objectivos. De facto, as pessoas conhecem-nos bem de perto e sao obrigadas a conviver corn eles diariamente; a maioria dos grandes responsaveis nao cometeu directa e pessoalmente as infrac<;oes e estao longe das popula<;oes que, por vezes, os conhecem apenas atraves da televisao. De algum modo, poderia fazer-se a distin<;ao entre os responsaveis das decisoes politicas e militares e os responsaveis pela execu<;ao dessas decisoes. Na medida em que Milosevic esta no grupo dos (primeiros) responsaveis politicos, o seu processo atinge grande importancia, designadamente hist6rica, enquanto p1imeiro Presidente acusado ainda em exercicio. Ou seja, o seu processo esta intimamente ligado a razao de ser do Tribunal.
0 conteudo deste n. 0 l 0 corresponde, corn algumas adaptayoes, a urn texto publicado sob a designayi'io de "0 Processo Milosevic: razoes para ter esperanya", na Revista "0 Mundo em Portugues", Numero 31 , abril de 2002, do Instituto de Estudos Estrategicos e Intemacionais. 58 Ha diligencias no sentido de activar a competencia concorrente (art 11 o do Estatuto do Tribunal). Neste sentido, o Tribunal recebeu, no passado dia 6 de Maryo a visita dos Embaixadores dos EUA em Haia, nos Balci'is e itinerante para as questoes relativas aos crimes de guerra. 59 Este numero ni'io e totalmente inventado: ele foi mencionado como possivel pela Procuradora Carla del Ponte. 57
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â&#x20AC;˘ Como se sabe, o Tribunal come<;ou por julgar pequenos executantes 60 , quase sempre guardas ou visitantes de campos de concentra<;ao. Tambem e verdade que foram julgados acusados corn algum nivel de responsabilidade politica e militar. 61 Nao sei por que razao tal aconteceu. Mas e possivel vislumbrar algumas, se tivermos em conta que o Tribunal foi criado em 1993 eo conflito terminou formalmente corn os acordos de Dayton em 1995, isto e, o conflito e o Tribunal co-existiram pelo menos durante do is anos ( o que, como ja se disse, e tambem inovador). Por outro lado, a deten<;ao dos acusados dependia, e depende ainda hoje, da coopera<;ao dos Estados, sobretudo dos envolvidos no conflito. Normalmente, para cada Estado os seus nacionais, mesmo que tenham cometido infrac<;oes, sao her6is e nao criminosos62 e, sendo criminosos para os outros Estados, estes nao podiam invadir o territ6rio soberano de outro Estado para deter os que consideravam criminosos. â&#x20AC;˘ Uma coisa e certa: corn a actividade assim desenvolvida, o Tribunal, que nasceu do zero e sem precedentes directos na hist6ria, adquiriu uma experiencia e criou uma jurisprudencia que lhe pennitem agora julgar os grandes responsaveis corn mais seguran<;a e rapidez. Por isso, mesmo as questoes que aparecem ao publico como sendo novas, elas nao 0 sao de facto. 0 exemplo mais claro e a questao da legitimidade e da legalidade do Tribunal suscitada por Milosevic. A mesma questao fora ja colocada, conforme acima referido, por Tadic63 , o primeiro acusado a ser julgado pelo Tribunal, e sobre ela ja tinha si do proferida decisao. Tera sido por isso que Milosevic nao levou por diante a alega<;ao?
°Como por exemplo, Tadic, Erdemovic, Aleksovski, Kvocka, Radic, Kos, Prcac e outros
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Respectivamente, Kordic e os Generais Blaskic e Krstic. 0 facto de a mesma pessoa poder ser simultaneamente vista como criminoso e como her6i, por exemplo numa situa91io de conflito interno, pode conferir melhor compreensiio asitua91io em que urn Estado niio queira ou niio possa julgar urn seu nacional e, assim, defira a competencia de julgamento ao TPI, nos term os do principio da complementaridade ou subsidiariedade previsto no Tratado De Roma. 63 Recorda que o General Blaskic, o General Ademi e Kordic suscitaram identica questiio 62
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Ate agora, o Tribunal tern julgado acusados de crimes locais64 ou regionais. 65 0 processo de Milosevic e nacional66 e intemacional67 ; como e 6bvio, e muito mais abrangente, nao s6 no espayo, como no tempo, porquanto, na medida em que o processo contem tres actos de acusa9iio 68 , abrange todo o conflito da exJugoslavia e a sua dinamica. 0 processo Milosevic eo primeiro julgamento dum Chefe de Estado por viola96es graves do direito intemacional humanitario. Mas Milosevic nao esta no banco dos reus como simbolo duma Na9iio 69 , nem como Presidente da Republica Federal da Jugoslavia (Servia e Montenegro ). Milosevic esta a ser acusado enquanto individuo presumido responsavel de ter ordenado ou fomentado os crimes de genocidio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e viola96es graves da Conven96es de Genebra. Depois de Nuremberga e T6quio, o direito intemacional penal desenvolveu-se muito lentamente na busca de criterios de responsabilizayao penal individual dos chefes militares e politicos. Ainda ha oito anos, o falecido Telford Taylor70 dizia numa entrevista estar muito pessimista quanto apossibilidade de alguma vez ser criado urn Tribunal para os Balciis. Se o pessimismo releva do estado do humor, o optimismo releva da vontade. E basta ver que nos mesmos oito anos, o processo de desenvolvimento da justi9a penal intemacional ganhou uma velocidade totalmente inesperada. 71
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Por exemplo, Kaonik, Omarska, Keraterm, Tmopolje. Regiao da B6snia Central, regiao de Srebrenica ... 66 Republica Federal da Jugoslavia - Servia e Montenegro. 67 Servia e Montenegro (Republica Federal da Jugoslavia) e ainda a Eslovenia, a Croacia, a B6snia e Herzegovina e o Kosovo. 68 A Croacia (1991-92), a B6snia (1992-95) eo Kosovo (1999). 69 Como e sabido Milosevic alegou perante o tribunal que "uma Na9ao inteira estava a ser acusada". 7 째Foi procurador no Tribunal de Nuremberga. 71 Dois Tribunais Penais Intemacionais (ex-Jugoslavia e Ruanda), os previstos para a Serra Leoa e Camboja, o esperado para Timor eo ja criado Tribunal Penal Intemacional, cuja instala9ao ocorreu em 11 de Abril de 2002 (corn a sexagesima ratificayao) e entrada em vigor em 1 de Julho de 2002. 65
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Neste movimento, o processo de Milosevic constituini urn marco sem precedentes. â&#x20AC;˘ Finalmente, este processo e muito importante para o futuro da justic;a intemacional. A criac;ao do Tribunal, e o processo de Milosevic, constituiu urn passo gigantesco da comunidade intemacional na luta contra a impunidade. 0 processo de Milosevic confirma e reacende o entusiasmo ea esperanc;a face a proxima entrada72 em funcionamento efectivo do TPI. Os Tribunais Penais Intemacionais para a ex-Jugoslavia e para o Ruanda (tribunais ad hoc) ajudaram definitivamente a convencer os 139 paises que assinaram o Tratado de Roma, em Julho de 1998, de que o m undo precis a dum Tribunal Penal Intemacional permanente para julgar as atrocidades cometidas em nome da guerra. 0 m undo conhece hoje, urn pouco por toda a parte, muitos e variados conflitos e a ameac;a do terrorismo. 0 processo de Milosevic, se outra vantagem nao tiver, vem fazer-nos abrir os olhos para a realidade. Eque frequentemente tais conflitos nao sao, como propagandeado, devidos as tensoes etnicas, linguisticas, culturais ou religiosas, mas (e e aqui que e necessaria ver para alem da realidade !) causados por chefes politicos que deliberadamente inflamam tais tensoes para obter ganhos de ordem politica e eleitoral intemos. Como se sabe, o fen6meno nao se circunscreve aos Balcas; ele pode ser observado, entre outros, no Ruanda (conflito entreHutus e Tutsis) eno Sri-Lanka(entre Sinhalas e Tamils). 0 caminho e, pois, claramente no sentido da afmnac;ao da justic;a intemacional e do consequente estreitamento da impunidade. Embora o optimismo parec;a prevalecer, o pessimismo ainda tern os seus adeptos. Nestes se inclui os Estados Unidos. A administrac;ao Clinton assinou o Tratado de Roma; a administrac;ao Bush e fortemente contra a ratificac;ao do Tratado e desencadeia uma campanha contra o Tribunal, atraves da negociac;ao de acordos bilaterais corn Estados
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Prevista para meados do ano de 2003.
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parte no Tratado de Roma. Aguardemos os ulteriores desenvolvimentos. Mas, o pre<;o para ja e que a America esta de fora. Provavelmente ate que definitivamente compreenda que e mais curial estar dentro do processo para ne le participar, ate que sintam que o Tribunal pode ser importante na luta contra o terrorismo e se cansem de serem eles proprios a julgar os maus da fita do terrorismo e que concluam que nem sempre e possivel conduzir opera<;oes militares cirUrgicas, como opera<;oes dissuasoras.
6. 0 TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL (TPI) A recusa da impunidade e sempre mencionada como razao para o julgamento dos crimes de genocidio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, cometidos ao longo do seculo XX. Robert Jackson73 declarou, na audiencia de abertura do processo de Nuremberga: "os crimes que tentamos condenar e punir foram tao premeditados, perversos e devastadores que a civiliza<;ao nao pode tolerar que eles sejam ignorados pois nao seria possivel sobreviver se reiterados". De facto, Robert J ackson explica que uma vitoria militar apenas nao seria uma resposta suficiente aos actos imputaveis aos chefes nazis. Ela seria apenas uma vitoria duma for<;a contra outra for<;a, das armas contra as armas, quando seria necessaria impor uma san<;ao e a supremacia da lei sobre a for<;a brutal e cinica corn dois grandes objectives: impedir o esquecimento e evitar o sentimento de impunidade. Impedir o esquecimento e evitar a impunidade sao, pois, preocupa<;ao essencial e omnipresente sempre que se aborda a questao da justi<;a penal intemacional. A proposito, convem ter tambem presente a lucidez da pratica criminal, expressa por Louise Arbour74, ela propria convencida da utilidade da justi<;a como meio para uma paz duravel, ao dizer: "os tribunais nunc a irnpediram o crime e o risco da san<;ao incita o seu autor a ser mais habil". 0 efeito preventive dum tribunal, como o TPI, nao e mensuravel, pois que nao e possivel saber o que se passaria se ele nao existisse. Alias,ja hoje se coloca a
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Procurador junto do Tribunal de Nuremberga. Procuradora junto dos Tribunais Penais Intemacionais para a ex-Jugoshivia e para o Ruanda, de 1996al999.
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questao de saber se o Tribunal e(in)util se, entretanto, nao tiver casos para julgar... A comunidade intemacional, ao criar o TPF 5, deu urn enorme passo em frente na luta contra a impunidade e contra o esquecimento daqueles crimes. 0 Estatuto entrou em vigor no dia 1 de Julho de 2002, porquanto, de acordo corn o seu art. 126, sessenta estados o tinham ratificado em 11 de Abril do mesmo ano.
Egeralmente admitido que o aparecimento do TPI deve muito ao sucesso dos tribunais para a ex-Jugoslavia e para o Ruanda, na medida em que sao considerados como laboratories experimentais do TPI. Embora nao seja o memento de desenvolver este aspecto, sempre diremos que em parte everdade, havendo outros aspectos que sao caracteristicos do TPI, mesmo que ai ainda haja algumas li96es a aprender por parte do TPI. Uma das criticas normalmente feitas aqueles tribunais ea de que sao institui96es de justi9a parcial, nao na medida em que sao parciais nas suas decisoes, mas no sentido de que se trata de tribunais "ad hoc", criados para uma justi9a selectiva de conveniencia e de oportunidade no tempo e no espa9o quando a justi9a e, por defmivao, universal e permanente. Efectivamente sempre se podera perguntar corn toda a propriedade: porque para a ex-Jugoslavia e para o Ruanda e porque nao para o Camboja, para a Tchechenia, para Timor Leste, etc.? A instituivao do TPI, de algum modo, responde a tal reparo, tentando amenizalo. No entanto, corrige apenas urn dos aspectos e fa-lode formaimperfeita. De facto, o TPI nao euniversaF 6 e, sendo permanente, apenas tern competencia
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Em 17 de Julho de 1998, na Conferencia Diplomatica de Roma, 120 estados votaram o Estatuto do TPI, urn tribunal penal intemacional permanente corn competencia parajulgar os crimes de genocidio, contra a humanidade e de guerra, quando os estados nao sejam capazes ou nao queiram investigar e julgar tais crimes. 76 Ha ainda muitos estados que, nao tendo ratificado o Tratado que instituiu o TPI, nao estao sujeitos asuajurisdir;:ao No entanto, pode dizer-se que, tern tendencia para a universalidade, pode vir a ser universal, na medida em que outros estados virao a ratificar e epossivel estabelecer acordos ad hoc corn determinados em certas circunstancias previstas no Tratado.
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para o futuro 77 â&#x20AC;˘ Sej a como for, numa negocia<;ao ha sempre concessoes e se m estas o TPI nao teria visto a luz do dia. Em certo sentido e nalguns pontos, a institucionaliza<;ao do TPI constitui, como se disse urn grande avan<;o para a hurnanidade, mas constitui tambem urn recuo relativamente aos tribunais para a ex-Jugoslavia e para o Ruanda, designadamente quanto a rela<;ao corn as jurisdi<;oes nacionais e quanto a autonomia e independencia da iniciativa processual do Procurador. Dominio em que, a nosso ver, ha progressao eo da confirma<;ao do acto de acusa<;ao deduzido pelo Procurador e que tern a ver corn a dimensao politica e juridica que poderao motivar a acusa<;ao. No estatuto do TPI, preve-se que em tres momentos do decurso processual o acto de acusa<;ao seja controlado por urn painel de tres juizes. Recorde-se que tal controle nao existia nos tribunais de Nuremberga e de T 6quio e que nos tribunais para a ex-Jugoslavia e para o Ruanda esse controle se resume a urn momento em que o juiz de confirma<;ao valida ou nao o acto de acusa<;ao. Outro momento de controle de legalidade das decisoes ea instancia de recurso que, como tambem se disse, nao existia nos tribunais de Nuremberga e de T6quio.
7. CONCLUSAO â&#x20AC;˘ 0 TPIJ tern demonstrado alguma eficacia em submeter os criminosos aac<;ao da justi<;a, especialmente aqueles criminosos que, tendo cometido atrocidades durante o conflito da ex-Jugoslavia, se encontravam em posi<;oes oficiais e se encontram agora sob jurisdi<;ao do Tribunal. â&#x20AC;˘ 0 seu julgamento contribui para a paz e seguran<;a internacional, conforme previsto na Resolu<;ao 827, e para o desenvolvimento do direito penal e
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Parece haver uma contradis;ao entre afirmar a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade e afirmar que e competente apenas para os crimes cometidos depois da sua entrada em vigor. No entanto, tendo em conta que o Tratado e o resultado de dificeis negocias;oes entre os estados, teremos que considerar que houve que fazer muitas cedencias para obter urn resultado que de outro modo nao seria passive! e que, em si mesmo, constitui urn avans;o de civilizas;ao ha muito ambicionado pela comunidade intemacional.
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humanitano intemacional e da lei dos conflitos armados. • Pode igualmente afirmar-se que a situa9ao em rela9ao ao nivel de coopera9ao da parte dos Estados, que se m os tram agora mais abertos ao trabalho levado a cabo pelo TPIJ, melhorou consideravelmente. • Os EUA sempre apoiaram entusiasticamente as experiencias de justi9a intemacional oconi.das ao longo do seu desenvolvimento e corn a participa9ao que oportunamente referimos; embora tenham assinado o Tratado que cria o TPI, recusam a sua ratifica9ao. • As anteriores experiencias constituem uma justi9a ad hoc ( selectiva e de oportunidade), o que nao significa necessariamente que tais tribunais tenham decidido ou decidam ainda parcialmente; corn o TPI pretende-se instaurar uma justi9a diferente (universal e permanente), istoe, para to dos e para sempre. • Os argumentos aduzidos pelos EUA para a nao ratifica9ao do Tratado nao colhem do ponto de vista juridico. • De facto, nesta fase de desenvolvimento da justi9a intemacional, e muito mais dificil (para nao dizer impossivel) o risco de acusa96es politicamente enviesadas, dado o apertado controle judicial do acto de acusa9ao e a possibilidade de recurso das decis5es. 0 que vimos na nossa analise e que existe uma rela9ao inversa entre motiva9ao politica e motiva9ao juridica: o politico tern diminuido em favor dum crescente controle judicial. • Por outro lado, esta claramente estabelecido o caracter subsidiario ou complementar da jmi.sdi9ao do TPI, no sentido de este apenas ter competencia se os estados nao puderem ou nao quiserem investigar e julgar os crimes que caem na competencia material do TPI, assim se assegurando que nao ha situa96es de impunidade. • Os EUA tern as suas razoes de estado soberano, e como tal deverao ser respeitadas, depois de compreendidas, porquanto e muito importante poder
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contar corn a adesao e participac;ao dos EUA nesta fase de desenvolvirnento da justic;a intemacional, corno eo TPI, nos rnesrnos term os ern que sernpre corn ela se pode contar noutras anteriores experiencias. E para terrninar, parece-nos bern faze-lo corn a relatividade tao bern descrita por Ant6nio Gedeao:
Estava agora a lembrar-me, Galilr!u, daquela cena em que estavas sentado num escabelo e tinhas atua frente um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo a olharem-te severamente. Estavam todos a ralhar contigo, que parecia impassive! que um homem da tua idade e da tua condi9ao se estivesse tornando um perigo para a Humanidade e para a civiliza9ao. Tu, embara9ado e comprometido, em silencio mordiscavas os labios, e percorrias, cheio de piedade, os rostos impenetraveis daquelafila de sabios. Teus olhos habituados aobserva9ao dos satelites e das estrelas, desceram das alturas e poisaram, coma aves aturdidas - parece-me que estou a ve-las nas faces gravidas daquelas reverendissimas criaturas. E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tale qual coriforme suas eminencias desejavam, e dirias que o sol era quadrado e a lua pentagonal e que os astros bailavam e entoavam ameia noite louvores aharmonia universal. Ejuraste que nunca mais repetirias nem a ti mesmo, na propria intimidade do teu pensamento livre e calmo, aquelas abominaveis heresias
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que ensinavas e escrevias para eterna perdic;ao da tua alma. Ai, Galileu! Mal sabiam os teus doutos juizes, grandes senhores deste pequeno m undo, que assim mesmo, empertigados nos seus cadeiroes de brac;os, andavam a correr e a rolar pelos espac;os razao de trinta quil6metros par segundo.
a
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As RELA<;6Es ENTRE PoRTUGAL, A EuROPA Eo
M UNDo Lus6FONO E AS suAs
REPERcussoEs NO PLANO JuRiDico1 Ant6nio Marques dos Santos Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
1
Texto elaborado a partir das notas corn base nas quais o autor proferiu a sua comunica<;:1io na Universidade Lusiada de Lis boa em 19 de Novembro de 1999. Este trabalho esteve para vir aluz na Revista da Universidade Lusiada, mas, em virtude do atraso na publica<;:1io, foi objecto de algumas pequenas actualiza<;:5es.
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Ant6nio Marques dos Santos
INTRODU<;AO 1. Tendo si do amavelmente convidado para participar no col6quio "0 Direito Nacional- Perspectivas na entrada do seculo", organizado pelo Departamento de Direito da Universidade Lusiada de Lisboa, e tendo ficado integrado na 3.a sessao, em que se versava o tema geral "Portugal ea Uniao", como entendo que no novo seculo que se avizinha Portugal nao pode descurar, para alem da sua insen;ao no espa<;o europeu, os la<;os que o unem aos falantes da lingua portuguesa, que ja sao hoje cerea de duas centenas de milhoes, espalhados pelos quatro cantos do mundo, escolhi tratar urn assunto em que fiquem abrangidos, numa primeira parte (I), alguns aspectos juridicos das rela<;oes entre Portugal ea Europa, em sentido lato, e em que sejam focadas, numa segunda parte (II), algumas influencias no piano do direito que resultam das rela<;oes seculares estabelecidas entre Portugal e os paises de lingua oficial portuguesa, assim como corn outros territories onde chegou a influencia do direito portugues, fmdo o que se procurara tirar algumas breves conclusoes.
I - PORTUGAL E A EUROPA - A INFLUENCIA DO DIREITO EUROPEU NO DIREITO PORTUGuES ACTUAL 2. Na primeira parte, serao focados, muito sucintamente, varios pianos em que se traduziu a influencia da Europa no direito portugues, designadamente em materia de Direito Fiscal (1), de Direito das Sociedades (2), de Direito Intemacional Privado (3 ), de Direito Processual Civil Intemacional (4), de Direito daNacionalidade (5) e de Direito daArbitragem (6).
1-
D IREITO FISCAL
3. 0 imposta sabre o valor acrescentado (IVA) foi cri ado, na perspectiva da adesao de Portugal as Comunidades Europeias, na sequencia da Sexta Directiva do Conselho das Comunidades Europeias, de 1977, em substitui<;ao do imposto de transac<;oes, e corn base na autoriza<;ao legislativa conferida pela Lei n. 0 42/ 83, de 31 de Dezembro, pelo Decreto-Lei n. 0 394/B/84, de 26 de Dezembro, tendo o C6digo do IVA, aprovado por este ultimo diploma legal, entrado em
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vigor em 1 de Janeiro de 1986, data oficial da adesao de Portugal as Comunidades Europeias. Nessa mesma data foram abolidos o imposto de transacyoes, bem coma outros impostos menos relevantes, cuja incidencia passou a ficar abrangida pelo IVA. Desde entao, o C6digo do IVA foi objecto de multiplas alterayoes, que nao cabe aqui considerar2â&#x20AC;˘
2-
DIREITO DAS SOCIEDADES
4. 0 C6digo das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.0 262/ 86, de 2 de Setembro, que entrou em vigor em 1 de Novembro de 1986, salvo o artigo 35. 0 , foi, tambem ele, comae bem sabido, urn resultado directo da adesao de Portugal as Comunidades Europeias; coma se diz, alias, non. o 2 do preambulo do referido Decreto-Lei n. 0 262/86, "[a] necessidade urgente de adaptar a legislayao portuguesa as directivas da CEE, a que Portugal aceitou ficarvinculado, tomou inadiavel a publicayao do C6digo ... ".
3- DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO 5. Limitar-me-ei a assinalar aqui a elaborayao ea aprovayao da importantissima Convenyao sabre a Lei Aplicavel as Obligayoes Contratuais, aberta a assinatura em Roma em 19 de Junho de 1980, que entrou em vigor em 1 de Abril de 1991 , a que Portugal e a Espanha aderiram posteriormente atraves da Convenyao Relativa a Adesao do Reino de Espanha e da Republica Portuguesa a Convenyao sabre a Lei Aplicavel as Obligayoes Contratuais, assinada no Funchal em 18 de Maio de 1992, convenyao esta ratificada por Portugal em 30 de Junho de 1994, tendo a Convenyao de Roma entrado em vigor para Portugal em 1 de Setembro
2
Cf. P. SOARES MARTINEZ, Direito Fiscal, 7.â&#x20AC;˘ edi91'io, Coimbra, Almedina, 1993, pp. 618-619; P. de PITTA E CUNHA, Ajiscalidade dos anos 90 (Estudos e Pareceres), Coimbra, Almedina, 1996, pp. 46, 315 ss.; J. L. SALDANHA SANCHES, Manual de Direito Fiscal, Lisboa, LEX, 1998, p. 265 ss.; L. M. T. de MENEZES LEITAO, Estudos de Direito Fiscal, Coimbra, Almedina, 1999, p. 188.
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Ant6nio Marques dos Santos
de 1994 em rela<;ao aos Estados que ratificaram a Conven<;ao do Funchal 3 â&#x20AC;˘ Esta Conven<;ao tern canicter universal (artigo 2. 0 ), o que significa que constitui o Direito Intemacional Privado comum em materia de obriga<;5es contratuais de cada urn dos paises que a ratificaram, que sao os paises da Uniao Europeia, cabendo hoje em dia aos artigos 41. 0 e 42. 0 do Codigo Civil urn ambito de aplica<;ao muito reduzido, ou seja, que apenas abarca as materias nao abrangidas pela Conven<;ao de Roma nem por outra legisla<;ao especial. Sem entrar numa amilise muito pormenorizada da Conven<;ao de Roma, que seria descabida aqui, assinale-se que, entre as inova<;5es juridicas que ela consagrou, conta-se a teoria da presta<;ao caracteristica (artigo 4. 0 , n. 0 2), desenvolvida na Sui<;a pelo grande jurista A Schnitzer e pela jurisprudencia do Tribunal Federal Sui<;o4 â&#x20AC;˘
4- DIREITO PROCESSUAL CIVIL INTERNACIONAL 6. Tambem aqui me limitarei a citar a elabora<;ao, no ambito dos Estados membros das Comunidades Europeias, da Conven<;ao Relativa aCompetencia Judici<ilia e aExecu<;ao de Decis5es em Materia Civil e Comercial, assinada em Bruxelas em 27 de Setembro de 1968 e do Protocolo Relativo asua Interpreta<;ao pelo Tribunal de Justi<;a, assinado no Luxemburgo em 3 de Junho de 1971, que entraram em vigor em 1 de Fevereiro de 1973, aos quais Portugal aderiu, na versao resultante das altera<;5es introduzidas pelas Conven<;5es de Adesao da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido, por urn lado, e da Grecia, por outro
3 Cf.
A. MARQUES DOS SANTOS, Direito Internacional Privado- Colectiinea de textos legislativos defonte interna e internacional, 2." edi91io, Coimbra, Almedina, 2002, p. 964 ss. 4 Sobre a teoria da presta91io caracteristica, cf., na doutrina portuguesa, R. M. MOURA RAM OS, Da lei aplicavel ao contrato de trabalho internacional, Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1991, p. 545 ss.; E. GALVAO TELES, "Apresta91io caracteristica: urn novo conceito para determinar a lei subsidiariamente aplicavel aos contratos intemacionais - 0 artigo 4. 0 da Conven91io de Roma sobre a Lei Aplicavel as Obriga96es Contratuais", 0 Direito, ano 127. 0 , 1995, I-ll, pp . 71-183; L. LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado- Parte especial (Direito de conjlitos), Coimbra, Almedina, 1999, p. 182 ss. [Cf., por ultimo, Marie-Elodie ANCEL, La prestation caracteristique du contrat, Paris, ECONOMICA, 2002- Outubro de 2002].
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lado, bem como das alterac;oes introduzidas pela Convenc;ao Relativa aAdesao do Reino de Espanha e da Republica Portuguesa, concluida em Donostia, San Sebastian, em 26 de Maio de 1989, que entrou em vigor para Portugal em 1 de Julho de 19925 • Cabe mencionar igualmente, neste contexto, a Convenc;ao paralela de Lugano (Convenc;ao Relativa aCompetencia Judiciaria e aExecuc;ao de Decisoes em Materia Civile Comercial, celebrada em Lugano em 16 de Setembro de 1988), que entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1992 (e em Portugal em 1 de Julho de 1992), e que estendeu aos paises membros daAssociac;ao Europeia de Comercio Livre (AELE/EFTA) o regime privilegiado em materia de competencia intemacional directa e de reconhecimento e execuc;ao de decisoes em materia civile comercial, que tern precedencia, no seu ambito material e espacial de aplicac;ao, sobre o direito comum de Portugal e de cada urn dos demais paises nos quais vigoram ambas as Convenc;oes (que sao, alem dos quinze Estados membros da Uniao Europeia, a Islandia, a Noruega ea Suic;a) 6 •
5-
DIREITO DA NACIONALIDADE
7. Para alem do conceito de cidadania da Uniiio, introduzido nos artigos 8. 0 e 8. 0 -A a 8. 0 -E do Tratado que Institui a Comunidade Econ6mica Europeia, por forc;a do artigo G do Tratado da Uniao Europeia, assinado em Maastricht em 7 de
5 Cf.
A. MARQUES DOS SANTOS, Direito Internacional Privado- Colectiinea de textos legislativos defonte interna e internacional, 2.• edi9ilo, Coimbra, Almedina, 2002, p. 1276 ss. [Cf., por ultimo, o Regulamento (CE) n. 0 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo a competencia judiciaria, ao reconhecimento ea execu9ilo de decisoes em materia civil e comercial, que entrou em vigor em 1.3.2002 e que "comunitarizou" a Conven9ilo de Bruxelas, excepto nas rela9oes corn a Dinamarca: cf. ibidem, p. 1541 ss.- Abril de 2002]. 6 Cf. A. MARQUES DOS SANTOS, Direito Internacional Privado- Colectiinea de textos legislativos defonte interna e internacional, 2.• edi9ilo, Coimbra, Almedina, 2002, p. 1323 ss. Para urn estudo pormenorizado da Convenyao de Bruxelas, corn algumas referencias igualmente a Conven9ilo de Lugano, cf., na doutrina portuguesa, M. TEIXEIRA DE SOUSA-D. MOURA VICENTE, Comentario a Conven9iio de Bruxelas, Lis boa, LEX, 1994; cf. igualmente Eduardo dos SANTOS, Sobre a Conven9iio de Bruxelas Relativa a Competencia Judiciaria ea Execw;iio de Decisoes em Materia Civile Comercial, Lisboa, Rei dos Livros, sem data.
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Fevereiro de 19927, refira-se tao-somente o ac6rdao Micheletti, proferido pelo Tribunal de Justi<;a das Comunidades Europeias, em 7 de Julho de 19928, que, em materia de direito de estabelecimento (pelo menos), diferentemente do que acontece entre n6s, em tese geral, corn o artigo 28. 0 da Lei n. 0 37/81, de 3 de Outubro (Lei da Nacionalidade)- o qual recorre ao criteria da nacionalidade efectiva -, veio solucionar o concurso de nacionalidades estrangeiras, dando prevalencia a uma nacionalidade comunitaria sobre a( s) nacionalidade( s) nao comunitaria(s), independentemente de ela ser ou nao a nacionalidade mais efectiva ou, por outras palavras, entendendo que, pelo simples facto de se tratar da nacionalidade de urn dos Estados membros da Uniao Europeia, ela e irrefragavelmente uma nacionalidade mais efectiva do que a cidadania de urn pais terceiro9 â&#x20AC;˘
6- DIREITO DA ARBITRAGEM 8. Nos termos do artigo 32.0 daLei daArbitragem Voluntaria (Lein. 0 31/86, de 29 de Agosto), cuja epigrafe e "Conceito de arbitragem intemacional", "[e]ntendese por arbitragem intemacional a que poe em jogo interesses de comercio intemacional''. Esta defmi<;ao inspirou-se, designadamente, no artigo 1492.0 do Novo C6digo de Processo Civil Frances 10 , em vigor desde 1 de Janeiro de 1976, o qual, por sua vez, se limitou a reproduzir a formula<;ao da jurisprudencia francesa dos anos 30: corn efeito, os ac6rdaos Mardete c. Muller et Cie e Dambricourt c. Rossard, 7
Cf. A. MARQUES DOS SANTOS, Direito Intemacional Privado - Colectanea de textos legislativos de fonte intema e intemacional, Coimbra, Almedina, 1999, p. 767 ss. Cf. hoje os artigos 17. 0 a 22. 0 do Tratado que Institui a Comunidade Europeia, na versao resultante do Tratado de Amesterdao, assinado em 2 de Outubro de 1997 e que entrou em vigor em 1 de Junho de 1999 : A. MARQUES DOS SANTOS, ibidem, 2.a ediyao, p. 844 ss. 8 Ac6rdao proferido no processo C-369/90, M V. Micheletti e o./Delegaci6n del Gobierno en Cantabria, Colectanea de Jurisprudencia, 1992, p. I-4239 ss. 9 Cf. a este respeito, na doutrina portuguesa, A. MARQUES DOS SANTOS, "Naciona1idade e efectividade", in Estudos de Direito da Nacionalidade, Coimbra, Almedina, 1998, p. 306 ss. 10 "Est intemationa1l'arbitrage qui met en cause des interets du commerce international": sobre este texto, cf. Ph. FOUCHARD-E. GAILLARD-B .GOLDMAN, Traite de l'arbitrage commercial international, Paris, Litec, 1996, pp . 38, 59 e 1030.
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As rela.;:oes entre Portugal, a Europa e o mundo lus6fono e as suas repercussoes no piano jurfdico, p. 73-89
ambos proferidos pela Cour de cassation (Chambre civile) em 19 de Fevereiro de 1930 e em 27 de Janeiro de 1931, respectivamente, admitiram a validade do ajuste da cl<iusula compromiss6ria nos contratos intemacionais, entendendo como tais os que poem em joga interesses de comercio internacionafl 1â&#x20AC;˘ A influencia do direito europeu pre-comunitario, mais concretamente do direito frances, sobre o direito portugues e, por conseguinte, inquestionavel neste caso. 9. Passados assim em rapida revista alguns casos em que se revelou a influencia do direito europeu lata sensu no direito portugues recente, cabe agora passar a II parte do presente trabalho e tentar determinar se houve algurnas repercussoes - e quais elas foram- deste movimento de transferencias juridicas da Europa para Portugal igualmente sobre o mundo da lingua portuguesa.
11 - AS INFLUENCIAS DO DIREITO PORTUGUES NO MUNDO LUSOFONO 10. Segundo o Professor Erik Jayme, da Universidade de Heidelberga, eminente conhecedor e divulgador do direito portugues no estrangeiro, ha uma "familia juridica lusitana" ("lusitanische Rechtsfamilie"), cujas soluv5es, se bem que influenciadas pelos direitos dos paises latinos (Fran9a e Italia) ou da Alemanha, revelam, designadamente em materia familiar, uma profunda originalidade, ligada atradi9ao portuguesa, corn implicav5es sobre o sistemajuridico brasileiro e sobre as ordensjuridicas das antigas "provincias ultramarinas portuguesas" 12 â&#x20AC;˘ 11
Cf. A. MARQUES DOS SANTOS, As normas de aplicar;O.o imediata no Direito lnternacional Privado - Esbor;o de uma teoria gera!, vol. I, Coimbra, Almedina, 1991, p. 626 e nota 2061. 12 Cf. Erik JAYME, "Betrachtungen zur Reform des portugiesischen Ehegiiterrechts", in Festschrift fiir Imre Zajtay- Melanges en l 'honneur d'lmre Zajtay, Tiibingen, J.C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1982, pp. 262-264. 0 Prof. Erik Jayme e urn dos fundadores e o actual presidente da Deutsch-Lusitanische Juristenvereinigung (DLJV), associa91io cientifica corn sede em Heidelberga, que reune juristas alemaes, brasileiros, portugueses, hem como dos demais paises de expressao oficial portuguesa. A DLJV realiza cada ano uma sessao cientifica numa cidade diferente e procede a publicav1io dos trabalhos apresentados nas varias sessoes: cf., designadamente, Deutsch-Lusitanische Rechtstage-
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Extrapolando urn pouco, poderia dizer-se que ha uma familiajuridica lusitana mais chegada dentro da grande familia romano-germanica de direito, que se contrapoe ao mundo anglo-saxonico da common law. Nas paginas que se seguem, dar-se-ao algumas breves indica<yoes sobre as rela<yoes juridicas de Portugal corn o Brasil ( 1), corn os paises africanos de lingua oficial portuguesa (2), corn Go a (3 ), corn Macau (4) e corn Timor-Leste (5). 1-
RELA<;OES ENTRE PORTUGAL E 0 BRASIL
11. Como e sabido, a vigencia das Ordena<yoes Filipinas manteve-se no Brasil ate 1917, data da entrada em vigor do Codigo Civil Brasileiro 13 , enquanto em Portugal elas so vigoraram ate ao inicio da vigencia do Codigo de Seabra em 1868, e muitas solu<;oes actuais do direito brasileiro so sao explicaveis pelo perdurar ao longo dos tempos da influencia do direito portugues. Para ah6m dos exemplos dados pelo Prof. E. Jayme em materia de regime de bens 1\ bastara citar, neste contexto, o artigo 1.132 do Codigo Civil
Symposium in Heidelberg, 29.-30.11.1991, Baden-Baden, Nomosverlagsgesellschaft, 1993; 2. Deutsch-Lusitanische Rechtstage- Seminar in Heidelberg, 20.-21 .11 .1992, Baden-Baden, Nomosverlagsgesellschaft, 1994; Auf dem Wege zu einem gemeineuropiiischen Privatrecht- 100 Jahre BGB und die lusophonen Liinder- Symposium in Heidelberg, 29.-30.11.1996, Baden-Baden, Nomosverlagsgesellschaft, 1997; Das Recht der lusophonen Liinder- Tagungsreferate, Rechtsprechung, Gutachten, Baden-Baden, Nomosverlagsgesellschaft, 2000; Rechtsentwicklungen in Portugal, Brasilien und Macau, Baden-Baden, Nomosverlagsgesellschaft, 2002. Como exemplos adicionais do interesse do Prof. Erik Jayme pelo direito portugues, cf. ainda, v.g., do mesmo autor, Luis Cabral de Moncada und Car! Schmitt- Brie.fwechse/1943-1973, Heidelberg, C.F. Muller Verlag, 1997; "Machado Villela (1871-1956) und das Intemationale Privatrecht", Festschriftfiir Ulrich Drobnig zum siebzigsten Geburtstag, Tiibingen, J.C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1998, pp. 289-297; "Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) und seine Beziehungen zu Car! Mittermaier - Betrachtungen zur Rechtsvergleichung im 19. Jahrhundert", in Rechtsentwicklungen ..., op. cit., pp. 11-18. 13 Cf. J. OLIVEIRA ASCENSAO, 0 Direito - Introdu{:iio e Teoria Geral- Uma Perspectiva LusoBrasileira, 1.â&#x20AC;˘ edit;:ao, Lisboa, Fundat;:ao Calouste Gulbenkian, 1978, p. 116. 14 Cf. Erik JAYME, "Betrachtungen ...", p. 263, nota 11 [o regime matrimonial de bens supletivo no direito brasileiro ate 26.12.1977 foi o regime da comunhao geral, tal como aconteceu em Portugal ate 1967 (cf. artigos 1098. 0 , 1108.0 ss. do Codigo de Seabra), e isto desde as Ordenac;:oes Manuelinas]:
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As rela96es entre Portugal, a Europa e o mundo lus6fono e as suas repercuss5es no piano jurfdico, p. 73-89
Brasileiro 1S, que corresponde, mutatis mutandis, ao actual artigo 877. 0 do C6digo Civil Portugues e ao artigo 1565. 0 do C6digo de Seabra 16 , que estabelecia uma proibi9ao que, no entender de Cunha Gon9alves, "teve por fonte, decerto, a Orden[a9ao] Filip[ina], liv. IV, tit. XII, que ajustificavacom o argumento de 'evitar muitos enganos e demandas'" 17 • A proximidade e o parentesco entre o direito portugues e o direito brasileiro nao impedem, porem, uma evoluyao recente em sentido divergente, que se traduz, muitas vezes, em diferen9as terminol6gicas significativas para designar os mesmos conceitos juridicos em Portugal e no Brasil, o que revela, alem da existencia de fortes influencias centrifugas concorrentes nos do is paises, urn fen6meno de afastamento cultural progressive entre os dois povos e os respectivos juristas 18 •
2-
RELA<;:OES ENTRE PORTUGAL E OS PAISES AFRICANOS DE LiNGUA OFICIAL
PORTUGUESA
12. Ap6s a descolonizayao, o direito portugues manteve-se, em principio, em vigor nos paises africanos de lingua oficial portuguesa, desde que nao fosse incompativel corn os principios fundamentais e corn os valores subjacentes as novas ordens juridicas surgidas corn a independencia.
cf. J.M. ANTUNES VARELA, No9oesjundamentais de Direito Civil- Segundo as li9oes do Prof Doutor Fernando Pires de Lima ao 1. 0 ana da Faculdade de Direito , vol. II, 3.• edi9ao, Coimbra, Coimbra Editora, 1955, p. 199, nota 1. 15 "Os ascendentes nao podem vender aos descendentes, sem que os outros descendentes expressamente consintam". 16 Na versao original, antes da alterayao introduzida pelo Decreto n. 0 19.126, de 16 de Dezembro de 1930, que acrescentou uma referencia a hipoteca, o corpo do artigo rezava assim: "Nao podem vender a filhos, ou netos, os pais ou av6s, se os outros filhos ou netos nao consentirem na venda". 17 Cf. Luiz da CUNHA GONCALVES, Tratado de Direito Civil em comentario ao C6digo Civil Portugues, vo lume VIII, Coimbra, Coimbra Editora, 1934, p. 482 (sublinhado no original). 18 Cf. A. MARQUES DOS SANTOS, "Revisao e confirmayao de sentenyas estrangeiras no novo C6digo de Processo Civil de 1997 (alterayoes ao regime anterior)", in Estudos de Direito Internacional Privado e de Direito Processual Civil Internacional, Coimbra, Almedina, 1998, pp. 322-323, nota 55 . [Cf. por ultimo, do mesmo autor, "Algumas Considerayoes sobre o Direito ea Lingua ou A Ignoriincia dos Juristas nao Aproveita a Ninguem", Scientia lvridica, Tomo L - n. 0 291, SetembroDezembro de 2001, pp. 36-37, 38-39 - Outubro de 2002].
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Salvo a elaborayao e a edi9ao de novas leis nacionais nesses paises em determinadas materias especificas- por exemplo, no que toca ao direito da familia 19 -, o direito portugues foi objecto de recepyao material a data da independencia, mantendo a sua vigencia, tal como era nesse memento, mas agora em virtude de uma nova vis legislativa em cada urn desses Estados. N a pnitica, essa situayao suscita, porem, problemas e dificuldades de varia indole, na medida em que, por vezes, e dificil saber qual o direito que esta efectivamente em vigor, dada a falta de c6digos ou de compilayoes adequadas 20 , pelo que este estado de coisas deveria ser atentamente considerado pela cooperayao juridica portuguesa relativamente a cada urn desses Estados.
3-
RELA<;:OES ENTRE PORTUGAL E GoA
13. Como e sabido, as materias de direito da familia do C6digo de Seabra, bem como outros diplomas (a Lei das Sociedades por Quotas de 1901 ), ou as disposi96es relativas ao processo de inventario do direito portugues anterior a 196 1, continuam em vigor em Goa, apesar de terem passado quatro decadas
Cf., v.g., o C6digo de Familia de Cabo Verde, aprovado pelo Decreto-Iei n. 0 58/81, de 20 de Junho (cf. G. da CRUZ ALMEIDA, Da uniiio de facto- Convivencia more uxorio em Direito lnternacional Privado , Lis boa, Pedro Ferreira Editor, I 999, p. 66). 20 Por iniciativa do entao Mestre - e hoje Doutor - Jorge Bacelar Gouveia, foram recentemente publicados varios C6digos em Moc;ambique, corn o patrocinio de entidades privadas: cf. Susana BRITO-J. BACELAR GOUVEIA-A . FEIJAO MASSANGAI, C6digo Civil e Legisla9iio Complementar, Maputo, 1996; J. BACELAR GOUVEIA-L. da LUZ RIBEIRO, C6digo Comercial e Legisla9iio Complementar, Maputo, 1996; J. BACELAR GOUVEIA-E . RICARDO NHAMISSITANE, C6digo Penal e Legisla9iio Complementar, Maputo, 1996. Tambem em Angola o Dr. V. GRANDA.O RAM OS, docente da Faculdade de Direito de Luanda, organizou e anotou uma edic;ao do C6digo de Processo Penal e Legisla9iio Complementar, Luanda, Colecc;ao Faculdade de Direito - U.A.N., 1994, e, na Guine-Bissau, o Mestre L.BARBOSA RODRIGUES organizou e publicou uma edic;ao da Constitui9iio e Legisla9iio Complementar, [Bissau], INACEP- Imprensa Nacional E.P., 1994. Saliente-se, por ultimo, a publicac;ao das seguintes colectaneas de legislac;ao em Moc;ambique: AGUIAR MAZULA-A. GAMITO-F. MACAMO-J. BACELAR GOUVEIA-J .M. ELIJA GUAMBE-V. GUIMARAES-V. CANAS, Autarquias locais em Mo9ambique- Antecedentes e regime juridico, Lisboa/Maputo, 1998, e U. ALY DAUTO, Legisla9iio eleitoral, Maputo, BIPBureau de Inforrnac;ao Publica, 1999. 19
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sobre a cessa9ao da administravao portuguesa naquele territ6rio (hoje Estado da Uniao Indiana): pode, pois, dizer-se que o direito portugues continua em vigor em Goa imperio rationis e ja nao ratione imperii, sendo certo que determinadas institui96es juridico-familiares portuguesas, como o regime matrimonial da comunhao geral de bens (regime supletivo no C6digo de Seabra) tern urn forte apoio popular em Goa, designadamente entre as mulheres, sendo, alias, objecto de estudo e de grande aten9ao em outros Estados da Uniao lndiana21 • Como, porem, o conhecimento da lingua portuguesa pelas novas gera96es e escasso, surge a dificuldade de aplicar urn direito escrito em portugues por juristas que nao conhecem essa lingua, nem estao familiarizados corn os conceitos pr6prios de urn sisterna juridico da familia romano-germanica, da civil law, ja que os seus estudos de Direito se processam num sistema fortemente influenciado pela common law. Cabe dizer, no entanto, que tern sido feitos esfor9os no sentido de superar ou, pelo menos, de minorar essas dificuldades, quer procedendo atradu9ao dos textos legislativos22 , doutrinais 23 ou outros24 em lingua inglesa, quer levando a
21
Cf., neste sentido, o artigo do Doutor CARMO D'SOUZA, Professor na Escola de Direito de Panjim (Goa), "Evolu9ao do direito portugues em Goa", que corresponde ao texto da conferencia proferida pelo autor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa em 20 de Maio de 1998, publicado na Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lis boa, vol. XL, n. 05 I e 2, 1999, pp. 275-286; a tese de doutoramento do Doutor CARMO D'SOUZA intitula-se Legal System in Goa- Vol. I - Judicial Institutions (1510-1982) - Vol. 11- Laws and Legal Trends (1510-1969), Panjim, New Age Printers, [1994 e 1995]. 22 Cf. M.S. USGAOCAR, Family Laws of Goa, Daman and Diu, vol. I, 2.• edi9ao, Goa, Vela Associates, 1992; vol. 11, 2• reimpressao, idem, 1994. 23 Cf. [F. A.] PIRES DE LIMA-J.M. ANTUNES VARELA, Fundamental Concepts of Civil LawLectures to the 1" year Law Course 1944-45 (Family Law and Sucession) I No96es fundamentais de Direito Civil- Li96es ao curso do 1. o ano juridico de 1944-45 (Familiae Sucessoes), English24
Portuguese Bilingual Edition, tradu9ao de Mark ROBERTSON, [Lisboa], Funda9ao Oriente, [ 1997]. Cf., para ah\m dos textos publicados na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, n.0 1, Janeiro de 1998, p. 7 ss., citados na nota seguinte, Femando Jorge COLA<;O, The Goa Law Reference, Mapu9a, The Goa Foundation, 1997, e, do mesmo autor, "The Notarial Institution (Communication addressed to the All India Notaries Conference held on 16-2-1997 at Panjim, Goa, India)", Revista
da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XXXIX, n. 0 1, 1998, p. 229 ss.
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cabo iniciativas, como a realiza<;ao em Panj im em 1997 da Conferencia sobre o C6digo Civil de Go a (em que participaram juristas goeses, juristas indianos de outros Estados e juristas portugueses )25 , quer fomentando o intercambio de professores e estudantes entre Portugal e Goa, de modo a nao se perderem esses vinculos hist6ricos entre as duas culturas juridicas.
4- RELA<;OES ENTRE PORTUGAL E MACAU 14. Macaudeixoude ser, em20 deDezembro de 1999, urn territ6rio chines sob administra<;ao portuguesa ap6s o ter sido durante mais de quatro seculos e meio. Para alem da grande diversidade de opinioes sobre o significado eo alcance da presen<;a portuguesa nessa terra chinesa26 , nao parece haver duvidas de que, se alguma influencia lusa vier a perdurar em Macau, ela ocorreni certamente no terreno do Direito,ja que a elabora<;ao de varios diplomas fundamentais - entre os quais avultam o novo C6digo Civil, o novo C6digo Comercial e o novo C6digo de Processo Civil, elaborados sob a orienta<;ao do Dr. Jorge Noronha e Silveira27 , antigo Secretario-Adjunto para a Justi<;a- foi uma obra notavel que 25
Cf. "C6digo de Seabra em Goa - Nota introdut6ria", pelo Prof. Doutor J. OLIVEIRA ASCENSAO, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 57, n.0 3, Dezembro de 1997, p. 909 ss., bem como os estudos do mesmo autor e do Prof. Doutor M. J. de ALMEIDA COSTA, ibidem, p. 913 ss . e p. 943 ss., e os trabalhos publicados na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, n. 0 1, Janeiro de 1998, p. 7 ss., de I. da VEIGA COUTINHO, F.E. NORONHA, M.S. USGAOCAR, F.J. COLA CO, N.B. SARDESSAI, D. MEHTA [ja publicados em Souvenir Dedicated to Dr. Luiz da Cunha Gonr,:alves (24-08-1875/24-03-1956) a conference on The Civil Code ofGoa organised by Centra de Estudos Indo-Portugueses Voicuntrao Dempo (Vaikuntrao Dempo Centre for Indo-Portuguese Studies) in collaboration with Ordem dos Advogados de Portugal (Bar Council ofPortugal) and in association with The Bar Council ofMaharashtra and Goa On 14'", 15'" & 16'" May 1997 at Cidade de Goa, Goa) , ea "Nota de encerramento", de J. CASTRO CALDAS, p. 105 ss. A Procuradoria-Geral da Republica publicou tambem e difundiu nesta ocasiao uma Memoria de Cunha Gonr,:alves/Memory ofCunha Gonr,:alves, bilingue portugues-ingles, Maio de 1997, corn uma Apresentac;:ao do Dr. Cunha Rodrigues, Procurador-Geral da Republica. Pode ainda assinalar-se o interessante trabalho de D. OTTO, "Das Weiterleben des portugiesischen Rechts in Goa- Entwicklung und kollisionsrechtliche Probleme vom deutschen Standpunkt", in 2. Deutsch-Lusitanische Rechtstage ... (supra, nota 12), pp. 124-141 (corn discussao, pp. 142-146). 26 Para uma visao invulgarmente lisonjeira da secular presenc;:a portuguesa em Macau, cf. o belissimo livro de Ph. PONS , Macao, un eclat d'eternite, Paris, Gallimard, 1999. 27 Por gentileza do Dr. Jorge Noronha e Silveira, tivemos acesso a versao portuguesa dos respectivos projectos: cf. Projecto do C6digo Civil de Macau, Govemo de Macau, 1998, corn uma "Nota de
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os Portugueses deixaram em Macau28 â&#x20AC;˘
5-
RELA<;:OES ENTRE PORTUGAL E TIMOR- LESTE
15. Timor-Leste, ap6s urn quarto de seculo de brutal ocupa<;ao indonesia e a total destrui<;ao do territ6rio, pede finalmente exercer o seu direito a autodetermina<;ao, merce da luta abnegada do seu povo e tambem, pelo menos em parte, gra<;as agrande mobiliza<;ao diplomatica de Portugal, que culminou corn uma manifesta<;ao de quase unanimidade nacional no ano de 199929 â&#x20AC;˘ N a tare fa de reconstru<;ao de Timor em que Portugal deve participar, juntamente corn os demais paises de lingua oficial portuguesa, certamente que os juristas
abertura" do Dr. Jorge Noronha e Silveira (pp. I-VI) e urn a "Breve nota justificativa" do Dr. Luis Miguel Urbano, Coordenador do projecto (pp. VII-XL); Projecto do C6digo Comercial de Macau, Governo de Macau, 1998, corn uma "Nota de abertura" do Dr. Jorge Noronha e Silveira (pp. I-IV) e uma "Notajustificativa" do Dr. Augusto Teixeira Garcia, Coordenador do projecto (pp. V -XLV); Projecto do C6digo de Processo Civil de Macau, Governo de Macau, 1998, corn uma "Nota de abertura" do Dr. Jorge Noronha e Silveira (pp. I-IV) e uma nota sobre "0 novo C6digo de Processo Civil de Macau" do Dr. Jose Manuel Borges Soeiro, Coordenador da Comissao de Reforma do Processo Civil de Macau (pp. V-XXII). [Todos os projectos foram posteriormente aprovados, corn algumas altera<;oes, convertendo-se nos virios C6digos de Macau, que deverao vigorar, segundo o que esti previsto, ate 2049 - Outubro de 2002]. 28 Cf. ainda, sobre o direito de Macau, Erik JAYME, "Zur Anwendung des Rechts von Macau durch deutsche Gerichte", in 2. Deutsch-Lusitanische Rechtstage ... (supra, nota 12), pp. 146-151. [Cf. , por ultimo, sobre o Direito Internacional Privado de Macau, R.M. MOURA RAMOS, "The Private International Law Rules of the New Special Administrative Region of Macau of the People's Republic of China", Louisiana Law Review, vol. 60, Summer 2000, n. 0 4, pp. 1282-1295, e reproduzido em Estudos de Direito Internacional Privado e de Direito Processual Civil Internacional, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, pp. 301 -321; A. MARQUES DOS SANTOS, "The New Private International Law Rules ofMacao", Yearbook of Private International Law Vol. II, 2000, Kluwer Law International, published in association with Swiss Institute of Comparative Law, pp. 133-151 + tradu<;ao para Ingles do Capitula Ill, do Titulo I, do Livro I, do C6digo Civil de Macau, ibidem, pp. 343-356- Outubro de 2002]. 29 Cf. P.J. CANELAS DE CASTRO, "Das demokratische Portugal und das Selbstbestimmungsrecht der VO!ker- Der Fall Ost-Timor", in 2. Deutsch-Lusitanische Rechtstage ... (supra, nota 12), pp. 152- 170 (corn discussao, pp. 171 -175). [Cf. tambem, por ultimo, Jorge MIRANDA (organizador), Timor eo Direito, Lis boa, AAFDL, 2000, corn contribui<;oes de Fausto de QUADROS, Ana Maria GUERRA MARTINS, Paulo OTERO, M. GALV A.o TELES, J.M. SERVULO CORREIA, Jorge MIRANDA, Maria Fernanda PALMA, Maria Leonor ASSUN<;:Ao- Outubro de 2002].
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portugueses nao deixarao de estar presentes, colaborando na elaborayao da nova legislayao timorense, a comeyar corn a redacyao de uma Lei Fundamental.
CONCLUSOES 16. Nos termos do artigo 100.0 e seguintes do Tratado que Institui a Comunidade Econ6mica Europeia (na versao anterior ao Tratado de Amesterdao- hoje, trata-se do artigo 94. 0 e seguintes do Tratado que Institui a Comunidade Europeia), procedeu-se a aproximayaO das legislayoes dos Estados membros da Comunidade, ou seja, contribuiu-se para a harmoniza9iio dos respectivos direitos atraves da ediyao de directivas, ao passo que, nos te1mos do antigo artigo 220. 0 (hoje artigo 293. 0 ) do mesmo Tratado, se operou uma verdadeira unijormiza9iio, em materia de normas de conflitos de leis e de re gras de conflitos de jurisdiyoes, respectivamente, atraves da adopyao da Convenyao de Roma sobre a Lei Aplicavel as Obriga9oes Contratuais, de 19 de Junho de 1980, e da Convenyao de Bruxelas, de 27 de Setembro de 1968, Relativa a Competencia Judiciaria e a Execuyao de Decisoes em Materia Civile ComerciaP 0 • No piano te6rico, algumas doutrinas provenientes de certos sistemas juridicos europeus- como a teoria do acto claro do direito frances, baseada no velho brocardo in claris non fit interpretatio (os actos claros nao carecem de interpretayao) -, embora sejam, de certo modo, acolhidas najurisprudencia do Tribunal de Justi9a das Comunidades Europeias nao sao, porem, aceites na ordem juridica portuguesa3 1, que revela, assim, a sua irredutibilidade quanto a determinadas questoes juridicas ftmdamentais. Em sentido inverso, ja se viu que a Lei Portuguesa da Arbitragem Voluntaria (Lei
30
Sobre a diferen9a entre uniformizm;iio e harmonizar,:iio de direitos, cf. C. FERREIRA DE ALMEIDA, Introdut;iio ao Direito Comparado, 2.• edi9ao, Coimbra, Almedina, 1998, pp. 17- 18. 31 Sobre a inadmissibilidade do principio in claris non fit interpretatio, como, alias, resulta claramente do artigo 9.0 do C6digo Civil Portugues, cf. J. OLIVEIRA ASCENSA.O, 0 Direito- Introdur,:iio e Teoria Geral- Uma Perspectiva Luso-Brasileira, 11• edi9ao, Coimbra, Almedina, 2001, pp. 377378.
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As rela9oes entre Portugal, a Europa e o mundo lus6fono e as suas repercussoes no piano juridico, p. 73-89
n. 0 31/86, de 29 de Agosto) foi influenciada pela jurisprudencia e pela legislac;:ao francesas 32 ; see certo que ela nao parece ter exercido grande influencia sobre a Lei Brasileira daArbitragem (Lei n.o 9.307, de 23 de Setembro de 1996), nao e menos verdade que ela influenciou profundamente a Lei Moc;:ambicana relativa a Arbitragem, a Conciliac;:ao ea Mediac;:ao (Lei n. 0 11/99, de 8 de Julho): assim, para dar urn so exemplo, nos termos do artigo 52.0 , n.0 1, desta Lei, " ... uma arbitragem seni de natureza intemacional quando ponha emjogo interesses de comercio intemacional ... ". Deste modo, a influencia do direito da Europa sobre o direito portugues repercutiu-se num pais africano de expressao oficial portuguesa - neste caso, Moc;:ambique. Outro exemplo que vai no mesmo sentido e o seguinte: o grande jurista grego Phocion Francescakis elaborou a sua teoria das normas de aplica9lio imediata em Direito Intemacional Privado em 1958 num livro publicado em Franc;:a33 eo autor do presente trabalho baseou-se ne la na sua dissertac;:ao de doutoramento publicadaem 199P4 . Cabe agora salientar, a este proposito, que nao so o artigo 3.o do recente Codigo dos Valores Mobiliarios adopta o conceito ea propria terminologia de normas de aplica9lio imediata 35 , mas tambem que ela foi adoptada no artigo 21. o do 32
Cf. supra, notas 10 e 11 e texto correspondente. La theorie du renvoi et les conjlits de systemes en droit international prive, Paris, Sirey, 1958, p. 11 ss . 34 Cf. A. MARQUES DOS SANTOS, As normas de aplica9iio imediata no Direito Internacional Privado- Esbo9o de uma teoria geral, 2 volumes, Coimbra, Almedina, 1991; cf. ja antes, entre nos, J. BAPTISTA MACHADO, Ambito de efica cia e dmbito de competencia das leis (Limites das le is e conjlitos de leis), reimpressao da edi91io de 1970, Coimbra, Almedina, 1998, p. 279 ("'normas de aplicayao necessaria' ou imediata"); A. FERRER CORREIA, Li9oes de Direito Internacional Privado , Coimbra, Universidade de Coimbra, 1973, copiografado, p. 24:"normas de aplicayao imediata ou necessaria"; R. M. MOURA RAM OS, Direito Internacional Privado e Constitui9iio - Introdu9iio a uma analise das suas rela9oes, Coimbra, Coimbra Editora, 1980, p. 112 ss.: "normas de aplicayao necessaria ou imediata"; este ultimo autor adoptou posteriormente a formu la "normas de aplicayao necessaria e imediata": cf., v.g., Da lei aplicavel ao contrato de trabalho internacional, Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1991 , p. XXII, rubrica n.0 94; para uma apreciayao critica, cf. A. MARQUES DOS SANTOS, Direito lnternacional Privado - Introdu9iio , I volume, Lisboa, AAFDL, 2001 , p. 31 , nota 51. 35 Cf. o novo Codigo dos Valores Mobiliarios, aprovado pelo Decreto-Lei n. 0 486/99, de 13 de 33
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Ant6nio Marques dos Santos
C6digo Civil de Macau, que entrou recentemente em vigor36 â&#x20AC;˘ J a acima se chamou a atenc;ao para a grande importancia de que se reveste a uniformizac;ao da terminologia juridica entre todos os juristas falantes da lingua portuguesa37 â&#x20AC;˘ A este respeito, e essencial que se crie urn mecanismo permanente em que participem todos os paises de lingua oficial portuguesa a fim de procederem atraduc;ao comum em lingua portuguesa dos tratados e convenc;oes intemacionais, como, alias,ja foi feito no que diz respeito aCarta das Nac;oes Unidas e ao Estatuto do Tribunal Intemacional de Justic;a, bem como aConvenc;ao das Nac;oes Unidas sobre o Direito do Mar, de 10 de Dezembro de 1982 38 e deveria continuar a se-lo , v.g., relativamente a Convenc;ao do UNIDROIT sobre os Bens Culturais Roubados ou llicitamente Exportados, assinada em Roma em 25 de Junho de 1995, e em cuja elaborac;ao participaram delegac;oes de Angola, do Brasil e de PortugaP 9, ou no que tange a Convenc;ao da Haia sobre a Protecc;ao dos Menores e a Cooperac;ao em Materia de Adopc;ao Intemacional, de 29 de Maio de 1993, que ja esta em vigor, a qual foi ratificada
Novembro, rectificado pela Declarac;:ao de Rectificac;:ao n.0 23-F/99 (Diario da Republica, 2.0 Suplemento, I Serie-A, n. 0 303, de 31.12.1999), cujo artigo 3. 0 tern por epigrafe "Normas de aplicac;:ao imediata". 36 Artigo 21. 0 do C6digo Civil de Macau, que entrou em vigor em Novembro de 1999: "(Normas de aplicac;:ao imediata) - As normas da lei de Macau que pelo seu objecto e fim especificos devam ser imperativamente aplicadas prevalecem sobre os preceitos da lei exterior designada nos termos da secc;:ao seguinte". 37 Cf. supra, nota 18 e texto correspondente. 38 Cf. A. MARQUES DOS SANTOS, "A criac;:ao de urn Instituto de Direito Intemacional Privado e de Direito Comparado e suajustificac;:ao", Revista Juridica, AAFDL, n. 0 23, Nova Serie, Novembro de 1999, p. 85 e notas 25 e 26. 39 Sobre esta Convenc;:ao, cf. A. MARQUES DOS SANTOS, "Projecto de Convenc;:ao do UNIDROIT sobre a Restituic;:ao dos Bens Culturais Roubados ou Ilicitamente Exportados", in Direito do Patrim6nio Cultural, [Oeiras], Instituto Nacional da Administrac;:ao, 1996, pp. 61-94 [reproduzido em Estudos ... (supra , nota 18), pp. 221-252]. [A Convenc;:ao foi aprovada para ratificac;:ao pela Resoluc;:ao da Assembleia da Republica n.0 34/2000 e ratificada pelo Decreto do Presidente da Republica n. 0 22/2000, publicados no Diario da Republica, I Serie-A, n. 0 80, de 4.4.2000; Portugal depositou o respectivo instrumento de ratificac;:ao em 19.7.2002, entrando a Convenc;:ao em vigor para Portugal em 1.1.2003 (Aviso n. 0 80/2002, DiCtrio da Republica, I Serie-A, n.0 186, de 13.8.2002, rectificado pela Declarac;:ao de Rectificac;:ao n. 0 27-B/2002, DiCtrio da Republica, I Serie-A, n. 0 201, Suplemento, de 31.8.2002) - Outubro de 2002].
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pelo Brasil (que tern, por conseguinte, uma versao oficial propria em lingua portuguesa) e ja foi assinada, mas ainda nao ratificada, por Portugal. Fala-se bastante ultimamente em certos meios juridicos muito influentes do Velho Continente de urn "ius commune modernum (europeum) "40 , mas, em meu modesto entender, ainda que tal ideia venha a ter alguma perspectiva de concretizac;ao a medio prazo, tal nao nos devera fazer esquecer, a nos, juristas portugueses, as nossas profundas ligac;oes no plano juridico e no piano cultural corn os juristas de todos os continentes que falam a nossa lingua cornurn.
Lis boa, Marc;o de 2000
째 Cf., por ultimo,
4
S. GRUNDMANN, "General Principles of Private Law and Ius Commune Modemum as Applicable Law?", trabalho inedito amavelmente comunicado pelo autor, destinado
ao Festschriftfor Richard Buxbaum, 2000, p. 216 .
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0
PERDAO DAS PENAS EM PoRTUGAL NA IDADE MEDIA
Filomena Delgado Assistente da Universidade Lusiada
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Filomena Delgado
Propriae regis virtutes sunt duae: iustitia et pietas. Sic rex tuus iustus est, quoad iustitiam, reddens unicuique secundum opera sua. Mansuetus et redemptor, quoad pietatem. Santo Antonio, Dominica in "Ramis Palmarum Ill", 9
1. INTRODU(:AO 1.1 A primeira dificuldade ao tentarmos abordar a evolu9ao da gra9a em Portugal prende-se corn a periodiza9ao. Sendo hoje uniformemente reconhecido que o processo de dividir a historia em perfodos tern sempre algo de artificial e de arbitnirio, o mesmo sucedera corn a periodiza9ao da historia do Direito e corn urn especifico ramo desse mesmo Direito.
Mas, como pergunta Nuno Espinosa Gomes da Silva 1, "sera, em absoluto, impossivel, dado o diferente pulsar dos virios ramos do Direito, uma periodiza9ao geral da Historia juridica? Sera apenas viavel uma periodiza9ao de cada urn desses ram os?" Perguntas a que este Autor responde negativamente, concluindo que: "0 historiador observa a evolu9ao da experiencia juridica de uma sociedade e dividea em periodos, na medida em que algumas zonas dessa experiencia revelam caracteristicas comuns, provenientes da for9a expansiva de certas concep96es dominantes"2 â&#x20AC;˘ Mario Julio de Almeida Costa3 refere os diversos criterios que tern sido seguidos na nossa historiografia do Direito, integrando-se no grupo de Autores que perfilha
'Nuno J. Espinosa Gomes da Si1va- Hist6ria do Direito Portugues- Pontes do Direito - Funda9ao Ca1ouste Gu1benkian, 2â&#x20AC;˘ ed., 1991 , pag.33 2 Idem, ibidem 3 Mario Julio de A1meida Costa- Hist6ria do Direito Portugues- Livraria A1medina, 3â&#x20AC;˘ ed., 1996, pag. 173, nota (1)
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uma orienta9ao ')uridico - intema", na qual igualrnente engloba Espinosa Gomes daSilva. Para Almeida Costa4, que separa o que designa por "direito peninsular anterior aforma9a0 da nacionalidade portuguesa" do direito portugues propriamente dito, distinguem-se neste os seguintes periodos: 1o - Periodo da individualiza9ao do direito portugues - que decorre do ano em que D. Afonso Henriques come9ou a intitular-se rei- 1140 - aos come9os do reinado de D. Afonso Ill (1248). 2째 - Periodo do direito portugues de inspira9ao romano - canonica, que se inicia em meados do seculo XIII e se encerra na segunda metade do seculo XVIII. N este periodo devem considerar-se do is sub - periodos: a) epoca da recep9ao do direito romano renascido e do direito can6nico renovado (direito comum)ate 1446 ou 1447; epoca das Ordena96es - a partir desta data. 3째- Periodo da forma9ao do direito portugues modemo, que se inicia corn o consulado do Marques de Pombal, e que deve ser subdividido em tres sub periodos: a) epoca do jusnaturalismo racionalista, desde a segunda metade do seculo XVIII ate aRevolu9ao Liberal - 1820; b) epoca do individualismo, desde aquela data ate 1914-18; c) epoca do direito social- a partir daquela data. Seguindo a mesma orienta9ao, Espinosa Gomes da Silva5 divide o Direito portugues em quatro periodos: "-Urn primeiro periodo, que vai desde a independencia de Portugal, ate ao come9o do reinado de D. Afonso Ill, periodo que se pode denominar de direito consuetudinario e foraleiro;
4
op. Cit. pags. 174 a 177
s op . Cit. pag. 34
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Filomena De lgado
- Urn segundo periodo, que vai desde o come<;o do reinado de D. Afonso Ill, por volta da metade do seculo XIII, ate meados do seculo XVIII (reinado de D. Jose), e que se podeni chamarperiodo de influencia do direito comum; -Urn terceiro periodo, que se estende desde os meados do seculo XVIII ate ao momento da Revolu<;ao de 1820 e que se pode designar de periodo de influencia iluminista; - Urn quarto periodo, que vai desde a Revolu<;ao Liberal de 1820 ate cerea dos nossos dias, ate urna data que, urn tanto convencionalmente, se pode fixar em 1926, e que se pode denominar de periodo de influencia liberal e individualista."
1.2 Marcello Caetano6, separando o que designa por antecedentes do Direito Portugues da hist6ria do Direito Portugues, "que se inicia corn a independencia de Portugal (+- 1140)" e distinguindo a hist6ria das fontes da hist6ria do Direito Publico, considera, quanto a esta, a existencia de cinco periodos: 1o_ Forma<;ao do Estado (1140-1248); 2째- Consolida<;ao do Estado (1248- 1495); 3째- Estabiliza<;ao do Estado (1495- 1750); 4째- Reformas da Ilustra<;ao (1750- 1820); 5째- Revolu<;ao liberal (1820- 1926). Verificamos que o criterio adoptado por Espinosa Gomes da Silva difere do criterio proposto por Marcello Caetano por considerar como urn unico periodo aquele que vai do inicio do reinado de D . Afonso Ill ate ao reinado de D. Jose. Marcello Caetano considera que corn D. Manuel I (1495) -periodo em que se iniciou a difusao das leis pela imprensa, permitindo urn maior conhecimento e aplica<;ao do direito - o fortalecimento do poder real derivado da independencia financeira originada pela expansao ult:ramarinarevela uma situa<;ao de estabiliza<;ao do Estado, que vai durar ate ao fim do reinado de D. Joao V.
6
Marcello Caetano - Hist6ria do Direito Portugues (1140-1495) - Editorial Verbo - 3" ed., 1992, pag.3 I
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1.3 Taipa de Carvalho 7, no que especificarnente se refere ao Direito Penal, veio a considerar os seguintes periodos: - 1°- A Alta Idade Media (seculos VIII a XII);- 2°-ABaixaldade Media(seculosXII a XIV) e Idade Modema;- 3°- A Idade Contemporanea (da segunda rnetade do seculo XVIII aos nossos dias ).
1.4 Ant6nio Hespanha8, ern rnonografia elaborada sob a perspectiva da hist6ria dos sisternas de controlo e rnarginalizavao sociais, dividiu o estudo ern dois periodos: o direito penal da rnonarquia corporativa, englobando o seculo XVII e a prirneira rnetade do seculo XVIII, e o direito penal da rnonarquia "estatalista", que cornevaria corn o ilurninisrno e seus reflex os no projecto de c6digo criminal de Pascoal de Melo; Nurn outro trabalho adoptaria, porern, criteria algo diferente9•
1.5 Ruy de Albuquerque e Martirn de Albuquerque na sua Hist6ria do Direito Portugues dividern a evoluvao do direito nacional ern do is grandes periodos separados pela data de 1415. Denorninarn o prirneiro "periodo pluralista" eo segur~do "periodo rnonista". Abrern ainda duas epocas no periodo rnonista.
2. ANTECEDENTES 2.1 Na abordagern do perdao irernos seguir urn criteria cronol6gico que nao se afastani dos que acaba.rnos de enunciar, nao esquecendo que tarnbern a hist6ria institucional se foi transformando, corno reflexo das novas tendencias da historiografia, e, por isso, tentando fugir a rnera acurnulavao de factos artificialrnente ordenados. Corn F oucauld, reconhecernos a necessidade "do abandono da irnagern continuista e progressiva da hist6ria" 10 , prestando atenvao aos cartes, rupturas e 7
Americo A. Taipa de Carvalho - Condicionalidade S6cio - Cultural do Direito Penal - Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LVIII - Il - 1982, pag. 1039 e segs. 8 Ant6nio Manuel Hespanha - Justi<;:a e Litigiosidade : Hist6ria e Prospectiva _ Funda<;:ao Calouste Gulbenkian, 1993, pag. 381 9 Ant6nio Manuel Hespanha - Panorama Hist6rico da Cultura Juridica Europeia - Publica<;:oes Europa - America, 2• ed. , 1998 10 Alfredo Ferreira Meireles - A Questao do Poder - Revista Portuguesa de Filosofia - Braga - Tomo LIII - Fasc. 2 - 1997, pag. 295
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descontinuidades. Corn ele tarnbern, procunirnos seguir o principio prograrnatico de que o saber nao tern que ser abordado segundo a 16gica do "conhecirnento perfeito", " ...rnas segundo urna perspectiva problernatica, rnostrando as condiv5es que, ern cada periodo hist6rico, constituirarn a sua condivao de possibilidade" 11 â&#x20AC;˘ Indissociavel seria, pois, tentar abordar a hist6ria do perdao ern Portugal sern aflorar a hist6ria do Direito Penal; e sern abordar esta nurna perspectiva de analise dos rnecanisrnos ou tecnologias de poder que determinararn a sua forma. Por outro lado, seria dificil entender a evoluvao do perdao a partir do inicio da nacionalidade sern urna referencia tao breve quanta possivel ao condicionalisrno hist6rico anterior 12 â&#x20AC;˘ 2.2 A adrninistravao rornana na peninsula cornevou efectivarnente corn o firn da Segunda Guerra Punica, ern 201 a. C., rnas s6 ern 107 a C. surge o prirneiro projecto de adrninistravao provincial. As prirneiras confrontav5es de que ha noticia entre Rornanos e Lusitanos rernontarn a 194 a C., rnas a prirneira grande carnpanha rnilitar rornana no actual tenit6rio pmtugues s6 tera tido lugar ern 13 8 a C .. A partir de 81 a C. instala-se urna situavao de guerra generalizada, que rnais nao e do que o reflexo peninsular das guerras civis rornanas. Esta fase, denorninada geralrnente, de fase da conquista, apenas termina entre os an os de 29 e 19 a C .. S6 entao corneva verdadeirarnente a fase da rornanizavao, ernbora, corno e evidente, esta absorvao das formas de vida rornanas, da lingua, cultura, etc., se tenha processado paulatinarnente e tenha tido logo o seu inicio corn o contacto prolongado das populav5es aut6ctones corn as legioes rornanas.
11 12
Idem, pag. 296 Tomou-se como obra de referencia fundamental para este periodo o texto 0 Passado Proto Hist6rico e Romano, da autoria de Carlos Fabii'io, incluido na Hist6ria de P01tugal - Direc<;i'io de Jose Mattoso - Circulo de Leitores - Primeiro Volume - Antes de Portugal. E, na parte mais estritamente juridica, a obra de Mario Julio Almeida Costa citada na nota (3)
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lgualmente e de sublinhar a ac<;ao de colonos e funciomirios administrativos ea importancia das transac<;oes comerciais que, corn a constru<;ao de estradas, pontes e viadutos, foram gradualmente progredindo. A introdu<;ao do sistema romano de administra<;ao local, nomeadamente do regime municipal, inicialmente circunscrito a localidades constituidas por cidadaos romanos, mas posteriormente estendido as popula<;oes indigenas, bem como a unifica<;ao do culto religioso, foram igualmente factores importantes da romaniza<;ao. No campo juridico e de salientar que as popula<;oes peninsulares continuavam a reger-se pelas institui<;oes primitivas e nao tinham aces so as liberdades e regalias politicas dos cidadaos romanos, salvo algumas pessoas ou centros populacionais a quem tinha sido concedida a cidadania romana ou a latinidade. Em 73 ou 74 o Imperador Vespasiano outorgou o direito latino ou latinidade (ius latii) aos habitantes da Hispania, que adquiriram assim a situa<;ao juridica de latinos coloniais. As regalias inerentes a tal estatuto 13 , se nao eram muito significativas no campo do direito publico, eram muito importantes no ambito do direito privado e correspondiam ao reconhecimento da dignidade das elites locais. Por outro lado, a latinidade facilitava a obten<;ao da cidadania romana e, como tal, acarretava tambem uma desqualifica<;ao do antigo privilegio. Todo aquele que desempenhava uma magistratura local ascendia automaticamente, no frm do mandato, a qualidade de cidadao romano, abrangendo essa qualidade a sua mulher, os seus pais e os seus filhos e netos porviamasculina 14 â&#x20AC;˘ A cidadania romana era tambem concedida isoladamente a individuos que serviam no exercito ea cidades inteiras que tinham ajudado a ac<;ao politica e administrativa deRoma.
13
Que niio se ir:i, obviamente, tratar no texto, limitando-nos a recordar que, dentro das pessoas livres, s6 o cidadiio romano tinha uma capacidade juridica plena em face do "ius civile" 14 Mario Julio de Almeida Costa, op. cit. pag. 93
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Quando Caracala, no ano de 212, generalizou a cidadania romana a todos os habitantes do Imperio de condi<;ao livre, atraves da Constitutio Antoniniana, cerea de metade da popula<;ao da Peninsula deveria ter ja o direito de cidadania. Dada a escassez das fontes, existe urn conhecimento reduzido do direito romano geral aplicado a Peninsula e tambem do direito romano- hispanico, ou seja, das normas juridicas criadas pelos romanos para aplica<;ao especifica aos povos peninsulares. Parecem, no entanto, incontroversas duas realidades: nem aqui nem em qualquer outra provincia foi aplicado o direito romano puro, mesmo depois de generalizada a cidadania; a receptividade ao romanismo foi maior nos centros urbanos do que nas popula<;oes rurais. 0 sistema jwidico hispanico na altura das invasoes germanicas encontrava-se longe da perfei<;ao do direito romano classico. Vigorava o chamado direito romano vulgar (Vulgarrecht), cuja diferencia<;ao em rela<;ao aquele e objecto ainda de muitas inc6gnitas, masque resultou sem duvida da interferencia de elementos aut6ctones- o que, alias, nao e urn aspecto exclusivo da esfera do direito mas urn fen6meno cultural generalizado. Pode dizer-se, no entanto, que nao possuia a estrutura eo apuro dogmatico do direito romano classico, designadamente quanta as formula<;oes, aos esquemas processuais de base ea conceptualiza<;ao das figuras juridicas, sobretudo em materia de contratos. A sua simplifica<;ao e adapta<;ao as realidades sociais existentes facilitou, no entanto, a sua aplica<;ao e, mais tarde, o encontro corn o direito visig6tico. 0 direito romano vulgar- ou, mais propriamente, o direito romano vulgar vigente na Peninsula Iberica- tern na sua genese nao s6 a descaracteriza<;ao do direito romano classico como a persistencia dos direitos locais ou regionais. A difusao do direito romano classico foi dificultada pela imprepara<;ao dos jurisconsultos e dos 6rgaos judiciais peninsulares, e tambem pela propria decadencia do Imperio desde o seculo Ill, que abandonou a si pr6prias e aos acontecimentos hist6ricos locais as institui<;oes romanas vigentes na Peninsula.
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A falta de cultura juridica dos povos das provincias nao lhes permitiu apreender em toda a sua subtileza as obras do direito cl<issico, que passaram a ser substituidas por comentarios, resumos ou antologias que necessariamente as corrompmm. Por outro lado, esta transforma9ao local do direito romano foi acompanhada pela revivescencia de institui96es e principios juridicos locais, maxime de indole popular e consuetudinaria, pelo que as regras vi gentes ao tempo da chegada dos povos germa.nicos nao diferiam substancialmente das que os invasores traziam cons1go. Quanto as institui96es judiciais, cabe referir que as competencias dos curiales,ja de si diminuidas pela concorrencia do defensor plebis, dos bispos e ate dos grandes proprietarios, que tinham os seus exercitos particulares e julgavam os crimes menores dos seus dependentes, passaram ainda a sofrer a concorrencia dos villici, que administravam os latifiindios do Estado, e que come9aram a exercer fun96es semelhantes dentro das suas circunscri96es. 2.3 Vandalos, Suevos e Alanos entraram na Hispania no seculo V, instalandose, por acordo corn Hon6rio, nas provincias da Galecia, da Lusitania e da Cartaginense, mantendo os Romanos a Tarraconense. A mudan9a profunda que tal origina na Peninsula Iberica tern a ver corn a dissociayao do poder militar e do poder politico - administrativo, face a incapacidade daquele. Nos seculos seguintes verificam-se sucessivos pactos e conc6rdias entre os dois poderes, corn uma progressiva assun9ao de responsabilidades politicas pelos chefes militares, e que veio a culminar corn o surgimento das diversas monarquias europeias. Foi durante o reinado de Alarico II, que sucedeu a Eurico em 484, que os Visigodos se estabeleceram em for9a na Hispania. Em 506 Alarico II reconciliase corn os bispos cat6licos reunidos no Concilio de Agde e promulga a Lex Romana Visigothomm, que esta na base do c6digo juridico que perdurou na Hispania ate ao seculo XIII.
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Durante a lenta decadencia do reino visig6tico(585-711) 15 , pouco se sabe do que vai acontecendo na Galecia e na Lusitania, dada a escassez das fontes, o que tambem revela que o ocidente da Peninsula se tomou zona periferica em rela<;:ao aos p6los do poder civil e eclesiastico. Em rela<;:ao ao direito propriamente dito, existe a opiniao generalizada de que os Germanos conservaram os seus costumes juridicos durante a sua migra<;:ao atraves do Imperio; e, tambem, de que nao os teriam imposto as popula<;:oes em que se integraram. Assim, para a maioria dos Autores 16 , a situa<;:ao corresponderia ao principio da nacionalidade ou da personalidade do direito: dentro do mesmo territ6rio coexistiam sistemas juridicos diversos, devendo cada pessoa reger-se pelo direito da sua ra<;:a 17 â&#x20AC;˘ Alguns monarcas germanicos promoveram mesmo codifica<;:oes em que, ao lado de colectaneas de preceitos germanicos ou romano - vulgares existiam outras formadas de "iura" devidos aos juristas classicos e de "leges" dos imperadores. No entanto, nao tera realmente havido urn nacionalismo juridico absoluto, uma vez que, embora as popula<;:oes germanica e romana vivessem, cada uma delas, de acordo corn as institui<;:oes juridicas pr6prias, em geral as suas rela<;:oes seriam regidas pelas re gras consuetudinarias nascidas da convivencia entre si. Dai que as autoridades romanas e germanicas, sempre que necessaria, criassem re gras aplicaveis a ambos os povos. Tambem no ramo do direito publico a fixa<;:ao dos Germanos no territ6rio do Imperio nao determinou mudan<;:as significativas na organiza<;:ao vigente, sobretudo quando essa fixa<;:ao assentou num pacto corn os Romanos. Verificouse, assirn, uma dualidade de organiza<;:oes politico- administrativas. Entretanto, a queda do Imperio Romano do Ocidente (476) refor<;:ou a autoridade dos monarcas germanicos sobre toda a popula<;:ao.
15
Jose Mattoso- A Epoca Sueva e Visig6tica- Hist6ria de Portugal- Circulo de Leitores- Volume Primeiro, pag. 301 e segs. 16 M. J. de A1meida Costa, op. cit. pags. 106 e 107 e notas 17 Idem, ibidem
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No entanto, desde cedo os Germanos comevaram a adoptar e a adaptar institutos e conceitos juridicos de origem romana, nomeadamente no direito privado, no campo da propriedade mobiliaria e dos contratos; enquanto que o direito romano vulgar adoptava tambem urn ou outro principio germanico. Esta simbiose, que pode considerar-se como urn segundo processo de vulgarizavao, ocorria sobretudo a nivel da pnitica juridica, e veio a constituir urn "lastro juridico unificado" 18 , embora corn variantes locais, pelo qual se regeram os povos da Europa ocidental ate ao renascirnento do direito romano justinianeu, produzido sobretudo a partir do seculo XII. 2.4 Corn a morte do rei Vitiza, ocorrida em 710, os nobres visig6ticos dividiramse na escolha entre Rodrigo e Aquila como seu sucessor. A intervenvao dos Muvulmanos, que pouco tempo antes tinham conquistado o Norte de Africa, foi negociada corn a mediavao do Govemador de Ceuta.
0 vali de Marrocos enviou uma expedivao que denotou o rei Rodrigo na batalha de Guadalete (711 ), tomou Toledo sem combate e apoderou-se do tesouro regio. Os Muvulmanos fizeram urn pacto corn Aquila e seus filhos, a quem prometeram os domini os do fisco, mas a quem nao reconheceram a coroa. Numa sucessao rapida, entre 711 e 716, ocuparam Medina Sid6nia, Sevilha, Merida, Huelva, Faro, Beja, Sarago9a, Burgos, Leao, Astorga, Lugo; e, posteriormente, Evora, Santarem, Coirnbra e, fmalmente, a Catalunha. Esta rapidez demonstra a fragilidade do Imperio Visig6tico, devida sobretudo a descoordenayao da autoridade, a dificuldade de comunicayoes e a falta de capacidade militar ap6s a denota do exercito real. Os flux os e refluxos da Reconquista, sempre condicionados pela fronteira natural constituida pelo macivo montanhoso que vai da sena do Guadarrama ate asena 18
Idem, pag. 108
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da Lousa e pelas quatro passagens que a permitem transpor 19 , vao prolongar-se ate meados do seculo XIII.
3. 0 DIREITO PENAL NA ALTA IDADE MEDIA 3.1 Ea este periodo- seculos VIII a XII - , designado comummente por Alta Idade Media, que nos iremos referir em seguida, procurando ja estabelecer caracteristicas do seu direito penal. Taipa de Carvalho, na obra ja referida20 , e na esteira da generalidade dos Autores que se dedicaram ao estudo desta epoca hist6rica21, aponta como caracteristica fimdamental deste periodo a sua instabilidade, gerada pela necessidade da defesa militar das terras e popula<;:oes ja reconquistadas aos Arabes e pela conquista de novos territ6rios. Esta instabilidade esta, pois, relacionada corn a rarefac<;:ao da popula<;:ao e o atrofiamento das cidades, que deixaram de poder controlar os territ6rios que delas dependiam, bem como os lugares habitados. Ressurgem os antigos habitos de depreda<;:ao e rivalidades entre povoados, emergindo caudilhos encarregados da sua condu<;:ao ou da defesa, corn a consequente inseguran<;:a generalizada. Tambem o abandono das "villae" pelos senhores, corn a sua consequente desagrega<;:ao como grandes unidades de explora<;:ao, levou a urn refor<;:o dos vinculos de solidariedade parental, o reaparecimento de instancias de decisao colectivas, como os "concilia", eo regresso a praticas arcaicas de subsistencia: intensifica<;:ao da pecuaria e da ca<;:a, redu<;:ao da agricultura sedentaria corn 19
20 21
Chiudio Torres- 0 Garb- AI - Andaluz - Hist6ria de Portugal- Circulo de Leitores - Volume Primeiro, pags. 364 e 368 Supra, nota 7 Ver, por todos, Jose Mattoso- Portugal no Reino Asturiano - Leones- Hist6ria de Portugal Circulo de Leitores - Volume Primeiro, pag., 444 e segs. - Taipa de Carvalho, op. cit. pag. 1051
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a
retorno recolec9ao de produtos silvestres. Sendo este o quadro geral, pensamos, porem, que na abordagem deste periodo e para uma melhor compreensao do mesmo, nao devem ser esquecidos os importantes ajustamentos que Jose Mattoso tern vindo a apresentar e que tentaremos, na medida do possivel, resumir. Convem nao esquecer, desde logo, o perigo de se fazerem amilises generalizantes quando se podem distinguir zonas em que as caracteristicas apontadas como mais relevantes sao bastantes distintas, devido a uma maior romanizayao e a maior densidade populacional relacionada, por exemplo, corn a maior fertilidade dos solos. Assim, se o quadro apresentado sera inteiramente valido para o Alto-Minho e para as zonas montanhosas do Geres e do Marao, ja nao o sera para as popula96es reunidas em tomo de Braga, Viseu, Lamego, Idanha e, sobretudo, Coimbra. Corn efeito, mesmo atrofiadas, estas antigas cidades episcopais mantiveram boa parte da sua popula9ao, persistindo, embora reduzidas, as suas actividades econ6micas. Abandonadas a si pr6prias, viram-se obrigadas a reforyar as suas defesas corn os meios de que podiam dispor. A volta destas cidades mantiveram-se tambem comunidades subsidiarias, cujo modo de vida assentava sobretudo na agricultura sedentaria. Este quadro de inseguranya e isolamento levou, pois, a que" ... duas institui96es assumissem urn papel fundamental nesta sociedade politicamente desagregada, papel este que o direito haveria de reconhecer. Primeiro, a familia; depois, o municipio"22 â&#x20AC;˘ Qualquer sociedade assente na solidariedade entre os seus membros tern como principio fundamental a fidelidade dentro do grupo social. Os elementos desse grupo tern que estar unidos entre si por urn la9o de fidelidade, tern que ser fieis ao chefe imediato ou ao senhor. Logo, qualquer ofensa feita ao individuo lesa a
22
Idem, ibidem
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comunidade inteira, urna vez que fere os principios fundamentais da vida social. E, como tal, qualquer membro dessa comunidade pode vingar-se, nao como mero desforvo instintivo mas como forma juridica de repressao, considerada legitima pelo sentimento colectivo. Assim, e no que toca asolidariedade familiar, a ofensa feita a urn membro da familia era considerada como urn agravo a toda a comunidade domestica23 â&#x20AC;˘ Deste modo, a obrigayao de reparar a ofensa sofrida recaia nao s6 sobre o ofendido mas sobre todos os seus farniliares; e os efeitos do direito de vinganva reconhecido pelo direito aos familiares da vitima podiam, por vezes, estender-se apropria familia do criminoso. Dado o papel desempenhado pelo municipio a partir do seculo XI, tallavo de solidariedade - fidelidade passa tambem a existir no seu interior. Quanto a solidariedade activa, varias fontes da epoca, como os foros e costumes da Guarda, consagram o dever de auxilio mutuo dos convizinhos e referem a proibiviio de advogar causas de estranhos contra conterraneos24 â&#x20AC;˘ No que diz respeito a solidariedade passiva, os foros de Braganva e de Trancoso mencionam uma certa responsabilidade colectiva dos concelhos pelos actos delituosos cometido por urn dos seus membros, os "vicini" 25 . A personalizaviio das relav5es hurnanas, nurna epoca de guerra e de inseguranvas de toda a ordem, reflecte-se tambem necessariamente entre o homem desprotegido e aquele que lhe assegura a paz. Assim, se o chefe protege o seu subordinado, este deve-lhe fomecer os meios, tanto na guerra como na paz. Por todo o exposto, nao e de admirar que nesta epoca a pena aplicavel aos que violassem a fidelidade ea paz fosse, precisamente, a perda da paz juridica. 0 mais grave de todos os crimes era a traiviio. Este "crime dos crimes" consistia
23
Idem, pag.1053 Idem, pag. 1054 25 M. Caetano, op. cit. pag. 249
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na viola9ao de uma especial rela9ao de fidelidade existente entre o criminoso e a vitima mediante a pnitica de homicidio. Mas, como refere M. Caetano 26 , os termos "homicidium" e homizio, aplicados originariamente amorte de horn em, generalizaram-se aos crimes graves, que produziam os mesmos efeitos, designadamente as ofensas a honra, como a viola9ao eo rapto e, nalguns concelhos, as ofensas corporais que produzissem feridas. "Traidor era, pois, urn homicida qualificado, is toe, alguem que matava outrem, quando entre ambos existia urn especial vinculo de fidelidade e lealdade reciprocos" 27 â&#x20AC;˘ RelayaO especial de fidelidade que podia derivar de qualquer urn dos layOS j a referidos- familiar, municipal, econ6mico, de seguran9a- , ou de quaisquer outras rela96es impostas pela ordem juridica por motivos socialmente relevantes. 0 traidor- ou aleivoso- sofria, pais, e coma ja foi dito, a pena mais grave de todas: a perda absoluta da paz ("Friedlosigkeit"). Esta pena tinha as seguintes consequencias: "o traidor era destituido da sua personalidade juridica" 28 , "colocava-se fora da comunidade juridica"29 , considerado "friedlos", "ex lege", "hors la loi", "out law", pelo que qualquer membra da comunidade ( cidade ou reina, consoante se tratasse de trai9ao municipal ou regia), o podia, impunemente, matar. A sua casa era "derribada" - a casa, neste periodo de inseguran9a individual e colectiva, constituia o melhor bastiao de rerugio reconhecido pelo direito; a sua destrui9ao significava que o direito deixava de conceder qualquer protec9ao ao traidor. Todos os seus bens eram confiscados, revertendo para o concelho- havendo forais que determinavam que parte deles revertesse para os ofendidos.
26
Taipa de Carvalho, pg. 1057 Idem, ibidem 28 Idem, ibidem 29 idem, ibidem 27
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Em conclusao, podemos considerar o direito penal desta epoca como urn sistema penal de justi9a privada, sendo o crime considerado como ofensa individual excepto o crime de trai9ao- e cabendo aos particulares o exercicio da justi9a penal.
4. 0 DIREITO PENAL NA BAIXA IDADE MEDIA (SECULOS XII-XV) Como refere J. Mattoso30 , e no principio do seculo XII que surgem manifestayoes de efectiva solidariedade politica no seio da nobreza senhorial portuguesa. Rejeitada a tese da homogeneidade do reino de Leao, do qual Portugal se teria separado por cisao causada por factores extemos, deve por-se igualmente em causa a imagem de urn Portugal de ha muito dotado de identidade propriae corn tendencias auton6micas,ja que o espa9o que se veio a tomar independente incluia unidades regionais menores corn poucos vinculos entre si. S6 no seculo XII surgem condi96es para que esses vinculos adquiram uma expressao social e politica que permitiu a uniao- facilitada, alias, pela situa9ao periferica em rela9ao ao poder monarquico, pela proximidade da fronteira e pelos vinculos de parentesco que uniam a maior parte das familias. Durante todo este seculo a rela9ao que une o poder politico corn as comunidades locais e distinta aN orte e a Sul. NoN orte, pass a pela media9ao de uma nobreza senhorial, que ea verdadeira detentora do poder local. No Centro e no Sul, passa por uma ocupayao militar apoiada em centros estrategicos. Em ambos os cas os, pore m, o rei surge como o garante ideal da paz e da justi9a, corn o qual e necessaria pactuar, ate por uma questao de subsistencia. N a fase seguinte, o rei e os senhores - leigos, eclesiasticos ou das m路dens militares - disputam entre si o controlo das comunidades do Centro e do Sul, surgindo os concelhos integrados no senhorio directo do monarca, tomando-se seus aliados
30
J. Mattoso - A Formar;ao da Nacionalidade No Espar;o Iberico - Circulo de Leitores - Segundo
Volume, pag.l4 e segs.
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na defesa contra as incessantes tentativas de apropria<;ao do seu espa<;o pelos senhores leigos e eclesiasticos 31. A classe dominante em todo o territ6rio ea aristocratica, a qual esta agregada a eclesiastica. Apoiando-se no Norte em poderes senhoriais sobre a terrae no Centra e no Sul directamente dependente da monarquia ou integrada em estruturas clericais, e linica pela natureza da sua supremacia social. Corn efeito, conseguiu sobrepor-se a todo o pais ao apropriar-se dos seus recursos naturais, o que conseguiu pelo controlo directo ou indirecto dos circuitos comerciais que se estendem de norte a sul paralelamente a costa atlantica. Estes circuitos percorrem uma linha de cidades que vai de Valen<;a a Silves, passando por Guimaraes, Porto, Aveiro, Coimbra, Leiria, Santarem, Lisboa, Alcacer, Evora, Beja e Mertola, e e nelas que se vai implantar "o sistema nervosa do corpo nacional" 32 . E delas, corn efeito, que parte o controlo judicial, administrativo, fiscal e militar, detido pelo rei; e nelas que se apoia o sistema de trocas comerciais, canalizando os produtos regionais para os centros urbanos e os artesanais para os campos. Por urn lado, e certo que neste periodo ainda o rei partilhava corn outros senhores, ordens militares ou institui<;oes, determinados poderes publicos, estando impossibilitado de actuar em certas zonas do seu territ6rio. Foi para impedir que o pod er senhorial alastrasse as terras do rei que D .Afonso II mandou os funcionarios regios proceder a confirma<;oes noN orte do Pais 33 â&#x20AC;˘ 0 rei come<;a a chamar a si a tarefa de legislar para todo o territ6rio nacional e, simultaneamente, inicia tentativas de publiciza<;ao do "ius puniendi", ate como meio de sofrear os abusos da vindicta privada. Na Curia de 1211 o rei D.Afonso II procurou disciplinar as formulas dajusti<;a privada. E, assim, uma das leis gerais de entao proibe aos ofendidos que, uma vez prestada fian<;a pelo ofensor para ir a juizo, derrubem a casa deste, cortem as suas vinhas ou destruam as suas arvores. Determina ainda que se o ofensor
31
Idem, pag. 16 Idem, ibidem 33 Idem, ibidem 32
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declarar diante de dois homens bons que o quer "correger", seja obrigat6rio para os ofendidos aceitar a composic;ao 34 . Para acabar corn as mortes em cadeia que as vezes eram desencadeadas por urn homicidio, D.Afonso II determina que se urn homizio foi levantado por morte e dele resultou a morte de algum responsavel, seja "morto por morto". Deve procurar-se por termo a vinganc;a por "corregimento"' que e obrigat6rio nao sendo o homfzio por morte. Cabe aqui a intervenc;ao dos jufzes do rei. Quem prosseguir indevidamente na inimizade fica sujeito a ira do rei: tera de pagar urna multa de 500 soldos de ouro eo rei podera "deita-lo fora da terra" 35 â&#x20AC;˘ Nos casos em que o homfzio comec;ava por morte imputavel a urn bando, e dentro de urn ano nao estivesse morto algum dos responsaveis, os parentes do morto ficavam obrigados a escolher urn dos elementos do bando contra o qual a inimizade continuaria, ficando todos os outros "quites do homfzio"36 â&#x20AC;˘ Outra forma de combater a vindicta privada era o estabelecimento de urna "paz" especial para certa instituic;ao ou para certo lugar, privilegio que nas cartas regias muitas vezes se designa pelos termos "coutar" ou "encoutar". Essa paz implicava normalmente a proibic;ao de perseguir os inimigos nesses locais privilegiados ea punic;ao mais gravosa dos crimes que af se cometessem37â&#x20AC;˘ E este aspecto nao ficara completo sem urna referencia as treguas, quer as impostas pelas autoridades regias quer pela lgreja; e ao direito de asilo concedido a muitos concelhos pelos respectivos forais, hem como ao asilo dalgreja. Alem disso competia ao rei castigar as malfeitorias de que tivesse conhecimento, por si ou por seus alcaides. Este castigo consistia na aplicac;ao da pena que ja estivesse prevista para aquele tipo de crime ou ficava a merce do monarca no proprio momento da decisao: "accipiam vindictam in suis corporibus et in suis 34
M. Caetano, op. cit. pag. 254 Idem, ibidem 36 Idem, pag.255 37 Idem, ibidem 35
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haberes qualen videro pro directo", diz D. Afonso II mun docurnento de 122238 â&#x20AC;˘ Nesta epoca as institui<;oes judiciarias cobriarn ja o Pais. A rnais irnportante era a Curia Regia, presidida pelo rei, perante a qual erarn debatidas as causas que envolvessern senhores ou outras ern que tivesse havido queixa ou querirnonia dirigida ao rnonarca. Nos julgados, nas honras e coutos, nos concelhos, existiarn os juizes regios, os juizes senhoriais e os juizes rnunicipais, que julgavarn sozinhos ou assistidos pelos hornens-bons do lugar reunidos ern assernbleia judicial.
Ede sublinhar que estes tribunais nao estavarn hierarquizados e que o apelo ao rei, quando este estava de pas sag em por urna terra, destinava-se sobretudo a obter urnjulgarnento rnais rapido, a irnpedir urna denega<;ao de justi<;a ou a reparar urna irregularidade formal do processo. A persegui<;ao oficiosa dos crimes era rara rnas existia nos casos de rnoeda falsa ou de trai<;ao. Corno refere Marcello Caetano 39 , a circunsta.ncia de os juizes e rnordornos estarern interessados na cobran<;a das coirnas devidas pela pratica de delitos levava-os, legal ou ilegalrnente, a prornover a sua repressao. Cornpreende-se assirn que Taipa de Carvalho40 considere que o direito penal vigente no periodo que vai do seculo XII ao seculo XV e urn direito penal rnisto: ao lado de urn direito penal de auto-tutela, de cariz germa.nico, que ainda perdura, surge urn direito penal publico que, sob a influencia do direito justinianeu e do direito can6nico, atribui aautoridade real o "ius puniendi", pas sa a considerar o crime corno ofensa feita a toda a cornunidade nacional, corne<;a a recorrer a pena de rnorte e evolui para a consagra<;ao do processo inquisit6rio. Este direito penal publico nao se imp os sern resistencias, corno o dernonstra a oposi<;ao que ern Portugal foi feita, norneadarnente pela nobreza, alei de D. Afonso IV (inserta nas Ordena<;oes Afonsinas, Livro V, titulo 53) que proibia a "todo o fidalgo ou vilao que acoirne, tome vindicta ou se despique por si", exigindo, 38
Idem, pag.258 Idem, ibidem 40 Taipa de Carvalho, op. cit. pag. 1067 39
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pelo contnirio, que se recorresse a justi9a41 â&#x20AC;˘ Podemos, pois, considerar corn Marcello Caetano que, neste periodo, e no que conceme ao direito criminal, se acentua a intervenyao do monarca na defini9ao e puni9ao de certos crimes, atraves de leis gerais , embora nao deixe de vigorar o costume consagrado nos forais. Este Autor considera que tal intervenyao se deve fundamentalmente a tres ordens de razoes: a) Punir actos que os costumes nao consideravam puniveis ou cmTigir o costume reputado mau; b) Unificar as penas aplicaveis a actos que tinham penas variaveis conforme os concelhos; c) Corresponder a necessidade de clareza nas decisoes dos juizes da corte, ao julgarem em primeira instancia ou em recurso sob a influencia das novas formulas de inspira9ao romano- can6nica e segundo o chamado "direito comum"42 â&#x20AC;˘ As leis gerais intervieram nos crimes contra a religiao, nos crimes contra a fidelidade devida ao monarca e a autoridade da coroa, nos crimes contra a moralidade e os crimes contra a propriedade. Quanto aos crimes contra a religiao, e de notar que a Igreja tinha poderes para reprirnir os crimes contra a disciplina ea ortodoxia, sobretudo mediante san96es can6nicas que as autoridades civis, constituindo o chamado bra9o secular, deviam respeitar e, quando solicitadas pelo poder eclesiastico, ate executar. D. Dinis, por lei de 1312 (ou 1315)43 , determinou que descrer de Deus ou de Sua Mae, ou doesta-los, por quem quer que fosse, era crime a que correspondia a seguinte pena: o criminoso seria queimado depois de se lhe tirar a lingua pelo pescoyo. Nos crimes contra a fidelidade devida ao monarca ea autoridade da coroa, continuou a observar-se a lei de D. Afonso II sobre aleivosia ou trai9ao, da Curia de 1211. EsignificativaamensagemqueoreiD. Dinis dirige em 1321 aos concelhos do reino acerca de seu filho, o infante D. Afonso, em que considera este e todos os que o acompanham na rebeldia traidores e inimigos, podendo qualquer pessoa mata-los onde os encontrar sem sofrer pena alguma, e nao
41
M. Caetano, op. cit. pag. 369 e segs. M. Caetano, op. cit. pag. 360 43 Idem, ibidem 42
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sendo licito a ninguem acolhe-los ou fomecer -lhes sej a o que for4 4 . 0 crime de moeda falsa foi punido por D. Afonso IV corn a pena de corte das maos e o confisco de todos os seus bens, incorrendo nas mesmas penas os ourives que falseassem o ouro ou a prata. Quanta aos crimes contra a moralidade regista-se que quer D. Afonso Ill, quer D. Dinis, quer D. Afonso IV publicaram leis tendentes a impor determinadas normas morais, cuja infrac<;ao, em certos casos, era punida corn a morte 45 . Tambem os jogos de azar foram perseguidos por D. Dinis, D. Afonso IV e D. Femando. Quanta aos crimes contra a propriedade e de sublinhar que D . Afonso IV, nas Cartes de Santarem de 1331, providenciaraja quanta apuni<;ao do crime de furto; e, como as popula<;5es se queixassem da inobservancia dessas disposi<;5es, introduziu formas de as revigorar e p6r em pnitica. D. Dinis legislou sobre o crime de burla e tambem em rela<;ao ao encobrimento de malfeitores. Era nos crimes contra as pessoas, sua honra e reputa<;ao que mais perduravam os costumes locais. D. Dinis cominou a pena de morte para o homicidio ou para os ferimentos quando o autor do facto nao tivesse ten<;om, ou seja, inimizade, pendente corn a vitima, ou nao lhe dizendo porque a agredia ou estando ela segura. Quer isto dizer que se respeitava o costume no caso de haver inimizade entre ambos e de existir seguran<;a dada pela justi<;a local avitima. Porem, onde o rei estivesse impunhase regime especial, que se sobrepunha ao direito foraleiro ou costumeiro e garantisse a paz do rei nas localidades, quer para os habitantes do lugar, quer para aqueles que acorriam de outras partes do reino pedir gra<;as e justi<;a ao monarca.
44 45
Idem, pag. 361 Idem, pag. 362
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As penas eram pesadas, mas era frequente na sua aplicavao serem graduadas segundo a categoria social do delinquente. Distinguem-se duas classes de penas: a) a morte e as "penas sofridas no corpo" ou penas corporais; b) o degredo, o desterro, a multa, a prisao. A morte era cominada corn frequencia, podendo ser executada por enforcamento - talvez a modalidade mais comum- , por decapitavao ou degolavao, ou pela fogueira e precedida ou acompanhada de actos crueis- tortura, mutilav5es, etc. Tambem era corrente a pena de mutilavao - amputavao dos pes, das maos, dos dedos, das orelhas, da lingua, de arrancamento dos olhos ou de castravao. Outra pena corporal era a flagelavao publica, que consistia na aplicavao de avoites no pelourinho ou enquanto o delinquente era obrigado a percorrer as ruas da povoavao, para que o seu castigo fosse bem conhecido. Esta pena de avoites podia ser agravada porpregao, ou seja, pelo anuncio publico da razao do castigo, e pelo porte do bara9o, corda que prendia os bravos do justivado ou simbolicamente lhe rodeava o pescovo para significar a perda de liberdade. Na segunda classe das penas incluiam-se a pena de prisao, o degredo ou deportavao do lugar de residencia para outra povoavao onde o condenado passava a ser obrigado a morar e permanecer, o desterro do reino corn a privavao da protecvao juridica, as multas, o confisco, a in:ffimia ou degradavao civica, que impedia o exercicio de funv5es publicas. Nao se pode, porem, considerar que a funvao politico-social do direito penal, nesta epoca, fosse efectivar por si mesmo urn controlo social, ate porque para isso faltam-lhe os meios. 0 seu objectivo seria, isso sim, afmnar, tambem aqui, o sumo poder do rei como dispensador da justiva e da graya. Faltando os meios, os dispositivos de aplicavao da ordem penal careciam de eficiencia. Acontecia isso, por exemplo, corn a pena de degredo, em que por vezes se esperavam anos pela sua execuvao. Todas as penas que exigissem a
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existencia de meios logisticos estavam sujeitas a dificuldades semelhantes. As unicas penas facilmente executaveis eram as penas corporais de execu<;ao instantanea como os a<;oites, a mutila<;ao ou a pena de morte. Esta ultima muitas vezes nao era concretizada, considerando-se que bastava a manuten<;ao da sua amea<;a para se obter o efeito dissuasor.
5. 0 PERDAO Sublinhe-se que nas leis se refere a possibilidade de as penas serem comutadas: em certos casos uma pena corporal podia ser substituida pelo pagamento de certa quantia, em consequencia de composi<;ao das partes que chegavam a acordo sobre o corregimento do delito. Mas tambem se dava a inversa. 0 delito podia logo de inicio ser corrigido mediante o pagamento pelo criminoso da soma fixada na lei ( caso de furto anoveado ), mas se o condenado nao pudesse ou nao quisesse pagar teria entao de sofrer "no seu corpo". Nos costumes de Evora, comunicados a Terena em 1280, le-se que a agressao ajuiz no exercicio de fun<;oes era punida corn amputa<;ao da mao, mas o ofendido podia permitir ao agressor que "comprasse a mao", evitando o corte pela composi<;ao pecuniaria46 . No entanto, nao estamos aqui perante a faculdade ou poder de perdoar como manifesta<;ao da "plenitudo potestatis" que o rei se come<;a a arrogar a partir da Baixa Idade Media. 0 poder real de perdoar esta, segundo alguns Autores 47 , relacionado corn o poder de legislar. Se apenas o rei pode legislar, apenas ele pode excepcionar a aplica<;ao da lei. Embora tambem apare<;a, corn menos frequencia, a ideia contniria: se o rei faz a lei, nao faz sentido que seja ele proprio a introduzir-lhe excep<;oes.
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Luis Miguel Duarte - Justi9a e Criminalidade no Portugal Medievo - Funda91io Calouste Gulbenkian, 1999 47 Taipa de Carvalho e Luis Miguel Duarte, op. cit.
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De qualquer modo, e no cemirio politico - juridico atras descrito, nao surpreende que duas das caracteristicas do perdao real sejam a arbitrariedade e a voluntariedade. E que, consequentemente, nos Capitulos das Cortes, ora srujam solicitac;:oes de perdoes reais ora criticas afacilidade corn que os mesmos eram concedidos. 0 rei, como representante de todo 0 povo, s6 perdoa a sua justic;:a depois de as partes ofendidas terem perdoadQ. Se elas nao o quiserell) fazer, o rei, em principio, nao perdoa. Isto se vera, corn mais pormenor, no capitula 9as cartas de perdao. Este poder seria, no entanto, ilimitado relativamente aos delitos contra a pessoa do rei, que incluiam a feitura ou gas to de moeda falsa, a desordem, o perjUrio, a peita ou subomo, o atacar urn oficial do rei, o ajudar a fugir urn preso, etc. No periodo medieval, como agora, tambem a grac;:a contem em si algumas contradic;:oes, decorrentes do seu caracter de poder gracioso. Apercebemos nela uma componente altmista de perdao, uma componente de func;:ao correctiva de urn eventual erro judiciario e, muito importante nesta fase, uma feic;:ao de substituta da justic;:a. Era frequentemente concedida por razoes politicas mas tambem para festejar datas ou acontecimentos felizes para o rei, sua familia ou para todo o reino. Luis Miguel Duarte48 aponta para o reinado de D. Pedro I como o primeiro em que se terao concedido cartas de perdao, embora admita que tal possa ter acontecido mais cedo. Refere como a primeira que se conhece uma datada de 10 de Junho de 1368, portanto do reinado de D. Femando. A sequencia nao e transparente mas pensa-se que, criado o precedente, elas se tenham multiplicado.
48
Op. cit. pag. 460
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Houve urn perdao geral para a conquista de Ceuta- e tarnbern para a ida a Tanger-e corn D. Duarte a pnitica tomou-se habitual. Corn D. Afonso V o seu nillnero aurnenta de tal modo que ha livros da respectiva chancelaria praticarnente rnonopolizados por perdoes. 0 Autor calcula que D. Afonso V tera outorgado, durante o seu reinado, perto de 15000 cartas de perdao; ritrno que sera rnantido por D. Joao II e D. Manuel. Este rnonarca prornulga, ern Junho de 1517, urn "Regirnento dos Perdoes", corn o objectivo de dar aos desembargadores maior autonornia e regularidade no despacho das petic;:oes de grac;:a. Os perdoes passam a ser registados na chancelaria regia ern livros separados. Na segundarnetade do seculo XV o instituto estajadivulgado em todo o reino, mormente por razoes relacionadas corn a rnorosidade e despesas do processo judicial. Luis Miguel Duarte exemplifica o processo seguido por urn imaginario habitante de Ponte de Lima que toma conhecimento que urn vizinho apresentou a urn dos tabelioes da vila urna querela formal contra ele, acusando-o de agressao. 0 prirneiro passo a dar sera tentar inteirar-se dos termos da querela junto do referido tabeliao. Depois, auxiliado por este ou por outro pratico nas coisas judiciais - urn advogado, urn procurador - redigira a suplica a levar aCoroa, relatando os factos segundo urna deterrninada 6ptica, urna vez que ha quase urna norma para a respectiva redacc;:ao. A petic;:ao tera que ser acornpanhada de urn documento atesta:p.do o perdao do ofendido, sem o que nao chegara aos desernbargadores. Para a obtenc;:ao deste era rnuitas vezes necessaria a intervenc;:ao de urn "avindor", de urn "hornem de fala", ou seja, de urn arbitro considerado na comunidade e aceite por arnbas as partes: poderia ser urn vizinho de prestigio, urn sacerdote, urn amigo comurn. Por vezes o acordo envolvia condic;:oes da parte ofendida ou urna compensac;:ao material porparte do agressor, rnas, para valer, tinha de ser formalizado perante o tabeliao, que lavravao respectivo instrurnento publico. 0 rascunho ficava no livro de notas do tabeliao eo original nas rnaos do interessado. Este teria entao de se deslocar aCorte- ou, se a sua situac;:ao perante as justic;:as locais e perante o ofendido nao fosse insustentavel, esperar que a Corte se deslocasse ate perto
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dele- e dirigir-se ao porteiro da Corte. Este, por iniciativa propria ou por conselho de urn distribuidor, encaminha-lo-ia para urn dos escrivaes da Corte, o qual procederia a urn interrogatorio seguindo o formulcirio imposto pelo rei. Apresentado o perdao da patte ofendida, a peti9ao, devidamente resurnida, podia juntar-se ao rol. Este e submetido ao Desembargador que, corn urn parceiro ou em reuniao da Relavao, propoe urna decisao: perdao total, perdao corn multa, degredo, etc. A peti9ao resumida no rol mais o parecer do( s) Desembargador(es) sao lidos ao Rei, que confrrma ou corrige. 0 rol,ja despachado, passa para o chanceler, que providencia no sentido de ser passada ao suplicante uma carta de perdao rigorosamente conforme o teor do desembargo. 0 docurnento fmal, redigido por urn escrivao, conferido e selado pelo chanceler, e entregue ao peticionante mediante o pagamento ao recebedor dos emolurnentos devidos. Regressado a casa devera guardar toda a sua vida o documento, depois de o exibir aos juizes locais ou ao tabeliao que registou a querelae, eventualmente, ao queixoso. Depois da morte geralmente a familia desfazia-se do documento e dai a quase inexistencia de noticias sobre os mesmos. Como ja se disse, em teoria, o rei so pode perdoar o crime se os ofendidos o tiverem feito previamente. Dai a exigencia processual da prova de que a parte agravada perdoou. Nas negociav5es participarao os proprios protagonistas, ou, mais provavelmente, familiares, vizinhos, clerigos, senhores e eventualmente arbitros, como os alvidradores oujuizes alvidros49 . Muitas vezes o acordo esta dependente do pagamento de uma indemnizavao mais ou menos vultuosa. L. M. Duarte, ao contrario de outros Autores que refere, discorda da opiniao de que, nesta fase, seria a vitima quem ditaria as condiv5es. Lembra que, sendo o delinquente perigoso e, sobretudo, quando esta inserido num bando e tern urn 49
Op. cit. pag. 466, nota 1774
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patrono mais perigoso ainda, o ofendido pode ser coagido a dar o seu perdao mesmo contra a sua vontade e sem qualquer especie de compensac;ao. Uma das primeiras exigencias da vitima era a de que o ofensor "se amorasse", ou seja, fugisse, abandonasse a sua casa. Esta atitude, alem de urn assumir publico da culpa, constituia uma forma de respeito para corn os ofendidos e uma demonstrac;ao da vontade de pedir perdao.
L. M. Duarte refere que cerea de 60% dos suplicantes de perdao declaram ao rei que andam amorados 50 â&#x20AC;˘ Logo ap6s o crime, a fuga deveria ser bem patente e para longe, de modo a interromper o ciclo de vinganc;a. Depois comec;aria uma aproximac;ao da casa, gradual e nao ostensiva. 0 amorado acabaria por andar bem perto da terra, tendo o cuidado de nao se deixar ver pela vitima ou seus parentes e vindo muitas vezes dorrnir a casa51 â&#x20AC;˘ Em casos muito graves o amoramento era por muito tempo e para bem longe, nao sendo raros os cas os em que o criminoso passava para Caste la. Quanto ao texto do perdao, refere o Autor que, na maior parte dos casos, apenas se diz "que a parte a que a acusac;ao do dito feito pertencia lhe perdoava se gundo over poderiamos por urn publico instrumento que parecia ser feito e assinado por fulano, publico tabeliao por nos na dita vila, aos tantos dias domes de tal do anode ... etc.". Noutras vezes e feito urn resumo do perdao, detectando-se nele, por vezes, pequenas diferenc;as no teor das versoes do peticiomirio e da vitima. As razoes apontadas para conceder o perdao sao multiplas. A compaixao- perdoou tudo por am or de Deus - , a convicc;ao de que se estava enganado quanto a identidade do autor da ofensa; os lac;os de amizade ou familiares; o ter-se recuperado o que fora furtado; e, muitas vezes, para nao ter que se ir a juizo. Quanto as pessoas que deviam perdoar, temos, em primeiro lugar, a vitirna ou as
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Op. cit. pag. 466 Op. cit. pag. 467
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vitimas, se a vitima for menor, os seus pais ou tutor; se for mulher, o seu marido. Porem, se se tratar de urn homicidio, o acusado teni de obter perdao de todos os parentes do morto aquem do quarto grau. 0 interessado numa carta de perdao teria de inf01mar-se primeiro de quem eram os parentes aquem do quarto grau do morto, como se chamavam e onde viviam e depois cuidar que todos fossem c<,mtactados e dessem o seu perdao. Por vezes isso era facil, outras era dificil e moroso. Quando ha prazo para apresentar os perdoes, como acontece em todos os perdoes gerais adstritos a expedi<;:oes militares, alguns suplicantes nao o conseguem cumpfir52â&#x20AC;˘ A dificuldade em contactar todos os ofendidos podia ser contomada atraves da afixa<;:ao de editos. Como ja se disse, o perdao das partes e normalmente vertido num documento publico redigido por urn notario ou tabeliao. Os agravados podem comparecer pessoalmente perante o monarca a declarar a sua inten<;:ao de perdoar ou fazela emjuizo. Neste caso, o juiz inteirar-se-a do perdao por instrumento publico ou mediante uma carta dos juizes, vereadores e homens-bons do concelho, corn o respective selo. Da recolha que efectuou, L. M. Duarte conclui: - que a maior parte das pessoas directa ou indirectamente afectadas concederam o perdao, corn mais ou menos delongas, sob maiores ou menores pressoes, ate por chegarem aconclusao que mais teriam a ganhar corn isso ; - dos casos de recusas manifestas nao ha, obviamente, documentos, embora em algumas cartas de perdao se fa<;:am referencias a pessoas que nao queriam perdoar; - nos casos em que o peticionante nao consegue reunir todos os perdoes das partes, ha casos em que a primeira carta de perdao nao lhe e aceite e em que tera de pedir uma segunda, jade posse dos perdoes que lhe faltavam. Ha muitos casos em que os suplicantes sao multiples, ignorando-se quais as circunstancias em que era autorizado que varias pessoas recebessem em conjunto
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Op. cit. pag. 4 71
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uma carta de perdao, reduzindo desse modo os custos da chancelaria53 â&#x20AC;˘ Ao contnirio do que se pass a noutros rein os, sao raros os casos em que nao eo proprio acusado quem pede a carta mas alguem por ele. Urn procurador, urn pai por urn filho ou urna filha, urn irmao por outro. No seculo XV a gra<;:a regia convertera-se num acto rotineiro de govemo, existindo perdoes regios datados de dias sucessivos e formando longas sequencias. Ha, depois, momentos especiais em que o rei se mostra particularmente generoso, aligeirando o processo eo castigo. Isso acontecia por regra na quinta-feira santa. Aparecem dezenas de perdoes concedidos "por Endoen<;:as" e outros outorgados "como se fosse por Endoen<;:as". Mas os casos de grandes concessoes de perdoes ocorreram corn as expedi<;:oes militares. Pensa-se que a primeira experiencia foi a da armada sobre Ceuta em 1415 e que a pratica se repetiu na expedi<;:ao a Tanger de 1437. Em 1449 D. Duarte decreta "perdao geral" avista da batalha de Alfarrobeira, tendo respondido pelo menos 219 homiziados. Em 1458 ha homiziados perdoados pela sua participa<;:ao na conquista de Alcacer Ceguer; e, depois dessa data, varios que participaram na defesa da pra<;:a contra os cercos do rei de Fez. N as expedi<;:oes levadas a cabo em Marrocos entre 1463 e 1464 foi decretada urna "grande perdoan<;:a", da qual beneficiaram muitas dezenas de homiziados. A maior "perdoan<;:a gerall" da altura teve lugar aquando da armada de 1471, 53
Op. cit. pag. 477 e segs.
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que conquistou Arzila e Tanger. Porque a prepara<;ao foi cuidada e os homiziados avisados por todo o reino, muitas centenas se alistaram e resolveram os problemas que tinham corn a justi<;a. Mais algumas dezenas de homiziados beneficiaram do perdao decretado para a guerra corn Castela, em 1475; uns acompanham o rei ate Toro e outros distribuemse pelas fronteiras de acordo corn as ordens que para tal recebem. Alem destes perdoes gerais ha outros concedidos caso a caso, mas tambem relacionados corn a participa<;ao em expedi<;oes rnilitares. Esta politica e prosseguida por D. Joao II, que continuara a enviar degredados para Arzila e Ceuta e, no fim do seu reinado, refor<;ara as condena<;oes para Tanger. Em 1488, uma armada que pmtira para tentar construir uma fortaleza a norte de Arzila e cercada pelo rei de Fez, o que motiva o envio de uma missao de socorro do reino. 0 cerco apenas e levantado em 27 de Agosto de 1489, tendo recebido perdao nurnerosos homiziados que participaram nestes combates. Em Pmtugal, como em outros reinos, era elevada a percentagem de criminosos nos exercitos do rei, os quais eram bem vindos ate pela grande dificuldade que havia habitualmente em mobilizar corn rapidez urn born nllinero de combatentes. Ao contrario da maior parte dos seus conterraneos, os homiziados dirigiam-se voluntariamente para os portos de embarque ou para os locais de reuniao do exercito. â&#x20AC;˘ Tudo come<;ava corn os editos ou pregoes anunciando por todo o reino urn proximo perdao geral, os requisitos a satisfazer para o obter - as vezes ate era necessaria depositar fian<;a -,as datas e locais de embarque. Depois de tudo tratado o homiziado tentava incorporar-se num contingente de urn poderoso e dirigia-se para urn dos portos de embarque: Lisboa, Porto, Lagos ouTavira.
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Chegado ao local das opera9oes o homiziado deveria inscrever-se no "livro dos homiziados", de posse de urn dos escrivaes da Corte, indicando o nome, a proveniencia eo crime ou crimes que lhe eram imputados. A "verba" extraida desse livro constituiria a prova da sua participa9ao na expedi9ao. Quando precisava de perdoes de parte no reino podia solicitar a urn dos desembargadores que sempre acompanhava o rei urn "alvani de espa9o e seguran9a por tres meses", que lhe daria tempo e tranquilidade para conseguir aqueles docurnentos. Regressado ao reino e reunidos os perdoes de partes e a prova fomecida pelo livro dos homiziados, o criminoso podia entao pedir o perctao. Muitas vezes perde o prazo, pelos motivos mais diversos. Outras vezes nao se inscreveu no livro dos homiziados- teni, nesse caso, de provar a sua participa9ao atraves de testemunhas "boas e dignas de fe". Oun路as vezes nao consegue obter os perdoes das partes. Mas a magnanimidade do rei e ainda maior nos "perdoes gerais". Desculpa quase sempre a apresenta9ao fora de prazo, a falta de documentos. E, muito mais importante, a carta de perdao aos que participam nas expedi9oes militares e sempre outorgada sem pena alguma, ao contrario do que aconteceu corn a expedi9ao a Tanger. Ultrapassados todos os obstaculos, o rei ira decidir. Teoricamente, decide corn total arbitrariedade, isto e, de acordo corn o seu "poder aussoluto". Em grande parte dos cas os perdoa sem pena alguma; noutros, faz depender o perdao do pagamento de urna multa. Esta podera consistir em multa simples para a Area de Piedade, multa simples para a Chancelaria, multa simples para outros destinatarios, multa condicionada aobrigatoriedade de o suplicante requerer carta de seguranya, comuta9ao de degredo ou de pena corporal para multa, degredo agravado corn multa, ou degredo ou multa em altemativa. A esmagadora maioria das multas e a totalidade das mais elevadas reverte a favor da Area de Piedade, fun do que esta aguarda dos esmoleres e confessores do monarca, assessorados, quase sempre, por urn escrivao das malfeitorias, e que deveria ser utilizado para obras pias mas que o rei utiliza para aquilo que bem entender. 0 valor das multas oscila entre cem e oito mil reais, sendo este ultimo numero absolutamente excepcional. Ha urn largo predominio das multas de mil reais,
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faltando elementos para se avaliar se tal montante era muito elevado para a epoca. Ha noticia, no entanto, de o rei ter perdoado parte da multa estipulada por incapacidade do suplicante para reunir o total da mesma. A Chancelaria e a Rela<;:ao sao regularmente contempladas corn multas de pequeno valor, o que sucede normalmente quando o suplicante causou estragos ao fugir da cadeia. Alem disso, ha urn longo rol de pessoas ou institui<;:5es contempladas corn o dinheiro das multas, ao sabor dos desejos e das estadias do rei: igrejas, conventos, hospitais, obras pias diversas e pessoas singulares. Em varias das cartas que L. M. Duarte examinou concede-se comuta<;:ao da pena inicial, comuta<;:ao que pode assumir varios aspectos: pode-se comutar urn degredo em Africa por urn degredo num couto da metr6pole :- caso em que o periodo do degredo normalmente duplica, pode haver uma simples troca de coutos no reino, de urn mais longinquo para "hum outro couto mais comarquao donde elle vyvia"; os desterros e os degredos podem ser remidos a dinheiro . Sao muito pedidas as comuta<;:5es de penas corporais- que sao infamantes como os a<;:oites, em dinheiro e ate em degredo, pela humilha<;:ao que aquelas representavam. Muitas vezes o rei limita-se a perdoar urn castigo que anteriormente ele proprio aplicara, ou que fora imposto pelos tribunais superiores ou por outros magistrados; ou entao limita-se a garantir ao suplicante que nao sera preso pela acusa<;:ao que contra ele pende e que quem o quiser acusar o devera fazer perante o rei. Em periodo posterior come<;:am a surgir casos em que se da ao suplicante a possibilidade de optar por degredo ou por multa. Tambem e frequente que o rei coloque condi<;:5es para a comuta<;:ao da pena, que podem ir desde presta<;:ao de trabalhos para institui<;:5es, o casamento corn a ofendida, a devolu<;:ao dos bens subtraidos, a proibi<;:ao de voltar a ser rendeiro, etc. Como ja se disse, o rei faz sempre depender o perdao das condi<;:5es impostas pelas partes, havendo numerosas catias de perdao em que o rei perdoa mas
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"salvaguardando as partes" 0 direito de demandarem 0 ofensor civilmente "por sua emenda". As condi<;oes colocadas por aquelas incidem quase sempre na obriga<;ao de o ofensor nao voltar a residir, nem sequer voltar a entrar, na povoa<;ao onde o crime foi praticado e respectivo termo. Sublinhe-se que o rei nunca ordena uma pena corporal numa cmia de perdao"a gra<;a real conserva-se afastada dessas manifesta<;oes crueis e vergonhosas que a justi<;a ordinaria executa corn grande eficacia"54 , e que sao consideradas incompativeis corn a imagem do rei justiceiro e misericordioso. Em conclusao, Luis Miguel Duarte discorda da aprecia<;ao geralmente feita de que a concessao massiva de perdoes regios seja sintoma de fraqueza do poder real ou da particular fragilidade do monarca em exercicio, considerando que se tratou, na maioria dos casos, da utiliza<;ao de urn meio que permitiu a Coroa alcan<;ar alguns objectivos importantes: Minimizar as suas fortissimas limita<;oes no que toca ao policiamento do reino e a aplica<;ao da justi<;a; Devolver a condi<;ao de "bons e leais subditos" aqueles que a pratica de urn crime ou a suspeita do mesmo atirara para fora de suas casas e incitara a marginalidade; Possibilitar a reintegra<;ao dessas pessoas nas respectivas redes de solidariedade familiar, profissional e local; Obrigar gentes desavindas a fazerem as pazes, melhorando as hip6teses de a pessoa ofendida conseguir uma repara<;ao que dificilmente obteria pelo curso normal da justi<;a e sufocar espirais de violencia vingativa; Conseguir uma liga<;ao mais directa, quase pessoal, corn muitos dos seus subditos, liga<;ao tanto mais preciosa quanto a complexifica<;ao administ:rativa e govemativa 54
Op. cit. pag. 488
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tende a afastar o rnonarca do seu povo; Minorar os inc6rnodos de urna rnaquina judicial pouco eficiente, lenta, parcial e cara, Fomecer as gales corn rernadores vigorosos, as pra<;as africanas corn soldados, as ilhas ou povoa<;oes semi - desertas da raia corn povoadores; Alirnentar corn fundos nao despiciendos a Rela<;ao, a Chancelaria e, sobretudo, a Area de Piedade; Refor<;ar a irnagern de urn rei rnisericordioso, que os subditos arnarn tanto rnais quanto receiarn o rei vingativo.
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A fa milia na Constituic,:ao da Repub lica Portuguesa de 1976, p. 127- 147
A FAMiLIA NA CoNSTITUI<;A.o DA REPUBLICA PoRTUGUESA DE 1976
Jose JoCio Gom;alves de Proenr;a Professor Catedratico da Universidade Lusiada
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1. Reflexos da Constituivao da Republica Portuguesa de 1976 no estatuto juridico da familia portuguesa.
A guiza de introduvao, comevarei por esclarecer que a expressao "estatuto juridico da familia" e tomada aqui no sentido de conjunto de "normas e principios" que presidem a regulamentavao das "rela96es familiares", considerando como tais as "rela96es" que tern por fonte factos que a lei indica como susceptiveis de dar origem a esse tipo de situa96es, designadamente: 0 casamento, quanto as "rela96es familiares" que atraves dele se constituem entre os conjuges (rela96es conjugais) ou entre cada conjuge e os parentes do outro conjuge (relavao de afinidade ); a filiavao quanto as rela96es que, por forva dela, surgem entre as pessoas que descendem umas das outras ou que, sem descenderem umas das outras, descendem de urn tronco comum (rela96es de parentesco na linha recta ou na linha colateral); e, finalmente, a adop9ao quanto as rela96es que se estabelecem entre o adoptante e o adoptado, ou entre cada urn deles e os parentes do outro. 2. E sabido que estes diferentes tipos de "rela96es jurfdicas" (no sentido de rela96es sociais reguladas pelo direito) delirnitam o ambito do chamado "agregado familiar" ou familia "tout court". Em plincipio, a "familia", em sentido juridico, e formada apenas pelas pessoas que entre si estao ligadas por "rela96es familiares", que como tais sejam reguladas pelo direito. E assim, consoante o direito considerar ou nao como "rela96es familiares", estas ou aquelas rela96es sociais, assim maior ou menor sera o ambito da "familiar. Seja, por exemplo, o caso das chamadas rela96es de afinidade. A lei apenas considera como tais (s6 da relevancia) as rela96es entre cada conjuge e os parentes do outro conjuge. Nao atlibuindo qualquer significado as rela96es que, em virtude do casamento, surgem entre os parentes de urn dos conjuges corn os parentes do outro conjuge (v.g. entre os chamados "concunhados"). Isso significa que nao ha entre esses "parentes" de cada conjuge uma "relavao familiar". Nao
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fazem parte juridicamente da mesma "familia". Ao contnirio do que sucede no direito canonico que, para certos efeitos, considera existente uma relac;:ao familiar entre os irmaos de urn conjuge e os irmaos do outre conjuge. De igual modo, quando a lei deixa de dar relevancia, a partir de certo grau, ao parentesco na linha cc lateral (pessoas que descendem de urn tronco comum), (entre nos, por exemplo, a partir do 6째 grau) pretende corn isso dizer que entre as pessoas que se situam para alem desse grau nao existe uma "relac;:ao familiar" legalmente relevante. 3. Ora, igualmente sabido e, que quando o direito qualifica uma determinada "relac;:ao" como "relac;:ao familiar'' quer corn isso significar que, entre os respectivos sujeitos passa a existir urn determinado "vinculo" que se traduz em "direitos e deveres reciprocos ou bilaterais" (de urn para corn o outre). Ou vice-versa. Ao atribuir determinados direitos ou deveres reciprocos, de determinado tipo, a certas pessoas, o direito esta a afirmar a existencia entre elas de uma "relac;:ao familiar". Como, por exemplo, quando da direitos sucessorios aos parentes no 4 째 grau da linha cc lateral, a lei esta a dizer que considera subsistente entre eles uma relac;:ao familiar (para efeitos sucessorios). Pretendemos corn isto concluir que, no fundo, depende do "direito" a determinac;:ao do ambito das "relac;:oes familiares", na medida em que so o serao aquelas que por ele como tais forem consideradas. E dai a importancia que na definic;:ao da "familia" tern a propria evoluc;:ao do direito. Isto nao quer dizer que, para nos, o direito e que cria a familia. A familia em si mesma, como agregado social, nao e uma criac;:ao inteiramente juridica. 0 direito limita-se a reconhecer a sua existencia e a delimitar a sua extensao. A familia precede o direito e existia antes dele. Ede origem natural e anterior ao proprio Estado (que "cria" o direito ). Em contraste corn o que sucede corn outros agregados sociais, juridicamente relevantes, como, por exemplo, as "sociedades
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comerciais", ou os "agrupamentos profissionais", cuja fundamentayao assenta exclusivamente na ordemjuridica (sao criav5es do direito ). Por outras palavras, enquanto a familia "nasceu" naturalmente, a generalidade dos demais agregados juridico-sociais sao cria9ao dos horn ens para sua defesa ou salvaguarda de interesses comuns. Tern uma fundamentavao politica. 0 que desde ja nos permite avanyar a conclusao de que, a capacidade de interven9ao do Estado, na regulamentavao juridica da familiae sem duvida muito menor do que a que lhe assiste na regulamentavao dos demais agregados sociais, ja que, enquanto estes sao criayaO sua, aquela nao 0 e, 0 que logo a partida impoe a seu respeito maior conten9ao nas determinav5es normativas que se lhe dirijam. 4. Paralelamente, porem, corn a maior ou menor importancia do "direito" na defini9ao e estrutura9ao da familia, ha que considerar tambem a inversa: A influencia que a evoluyao da propria familia como agregado social (natural), merce da dinamica propria dos factores sociologicos em que se insere e a caracterizam (de natureza religiosa, politica, economica) tern sobre a evoluvao do direito que a pretenda regulamentar. Ha assim aqui, como noutros domini os, urn fenomeno de interac9ao reciproco, geralmente expresso por etapas: A "realidade" sociologico tern a sua marc ha propria, que a leva a evoluir num certo sentido, acontecendo, porem, que, em determinados mementos, o direito e utilizado para foryar essa evoluvao (criando novas estruturas); outras vezes, o "direito" limita-se air a "reboque" da evoluyao sociologico, procurando acompanha-la, adaptando-se-lhe. 0 que e comum a generalidade dos fenomenos sociologicos juridicamente relevantes, mas pode manifestar-se de modo muito mais expressive no ambito do direito da familia. Fala-se a este respeito em personalidade social do direito familiar.
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Basta ver, por exemplo, o que se passou desde a chamada "familia patriarcal" romana ate a"familia nuclear" dos nossos dias. 0 direito romano, ao regular as "relac;:oes familiares" (as relac;:oes entre os membros da familia) tinha em considerac;:ao a "estrutura politico-sociol6gica" da "familia de entao" que Ulpiano assim defmia: ')ure proprio dicimus familiam est plures personas quae sunt unius potestate aut natura aut iure subjectae". Era a estrutura politico-sociol6gica da familia romana que determinava a regulamentac;:ao pelo direito das relac;:oes entre os seus membros. Dai os poderes do "pater" em relac;:ao aos restantes familiares (que iam ate ao "ius vitae ac necis"); dai a situac;:ao da mulher no agregado familiar ("in loco filiae"); dai a diminuta relevancia da uniao conjugal, toda ela dominada e condicionada pela "patria protestas" do chefe; dai a extensao do agregado familiar (defmida pela amplitude da hegemonia politico-religlosa do "pater"; e, finalmente, dai a insignificancia juridica do div6rcio. Corn a evoluc;:ao da estrutura familiar, consequencia, por sua vez, de numerosos factores, de natureza politica, uns, econ6mica ou sociol6gico, outros, a regulamentac;:ao juridica da familia evoluiu tambem, acompanhando-a. A medida que a familia, como agregado social, foi perdendo forc;:a e importancia no contexto socio-politico romano, merce da criac;:ao de outras estruturas politicoadministrativas, que distribuiram, por forma diferente, func;:oes e poderes antes exercidos pelas "familias" originarias, estas passaram a assistir tambem ao esvaziamento progressive da sua influencia e coesao, dando lugar a fen6menos de cissiparidade e multiplicac;:ao preanunciadores de novas estruturas juridicas. Evoluc;:ao identica se operou corn a chamada "familia comunitaria medieval, ela tambem :fruto natural das estruturas econ6mico-politicas da epoca, consequencia, por sua vez, dos factores religiosos, econ6micos e politicos entao dominantes, entre os quais sobressaiam o cristianismo e a instabilidade e inseguranc;:a caracteristicas do periodo feudal. Ninguem ignora, que foi exactamente por influencia do primeiro que a familia
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medieval se estruturou a partir do "sacramenta do matrim6nio, que o cristianismo elevou a fonte exclusiva da "familia legitima", e a quem competia colaborar corn o Criador na obra da multiplica<;ao da especie humana (ao contnirio da concep<;ao meramente politica da fanulia romana); como tambem ao cristianismo se ficou a dever a profunda altera<;ao introduzida na posi<;ao da mulher dentro do agregado familiar, elevada por influencia do dogma mariano aposi<;ao de "rainha do lar"; o mesmo se passando, outrossim, quanto aposi<;ao dos filhos e fun<;ao educativa atribuida a ambos os progenitores, de sentido e alcance muito diferentes do cariz politico da "patria potestas" do chefe familiar romano. Como foi tambem a instabilidade e inseguran<;a da epoca, corn as suas lutas feudais e dimisticas, que levou a familia medieval a fechar-se sobre si mesma, em ins tinto de defesa, para melhor salvaguardar a sua propria sobrevivencia e dos seus membros, dando origem a verdadeiras cidadelas sociol6gicos, a que correspondiam unidades de produ<;ao e consumo, centradas sobre o agregado familiar de base consanguinea (pais, filhos e parentes pr6ximos). Estrutura esta que se manteve durante seculos, enformando nas suas exigencias todo o direito que se lhe referia, e onde predominavam os institutos do matrim6nio indissoluvel, do poder marital, da hierarquiza<;ao das fun<;oes conjugais, e todas as demais figuras destinadas a preservar a unidade e estabilidade do patrim6nio familiar (garantia da sobrevivencia econ6mica da familia), como a reserva hereditaria, o direito de troncalidade, os vinculos, os direitos de morgalio, os prazos hereditarios, os pactos sucess6rios, etc. Tudo figuras que o direito criou ou consagrou em fun<;ao das exigencias socioecon6micas, caracteristicas do agregado familiar a que se destinavam Dois acontecimentos, vieram, porem, nos seculos XVIII e XIX perturbar profundamente a estabilidade de tais estruturas, sendo urn de origem puramente s6cio-econ6mica e outro de fundamenta<;ao essencialmente ideol6gica ou politica. Foram eles a Revolu<;ao Industrial e a Revolu<;ao France sa, ambos corn marcada repercussao no ambito do direito da familia.
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A primeira, ao impor a concentra<;ao industrial dos openirios (a volta das novas fabricas ), tomou impossivel a manuten<;ao dos agregados familiares tal como existiram ate entao. Em sua substitui<;ao surgiram, pelas exigencias proprias da vida urbana (desloca<;ao para os grandes centres, dificuldades de habita<;ao), os pequenas agregados familiares quase exclusivamente constituidos pelos pais e seus filhos menores, situa<;ao que se reflectiu, naturalmente, na moldura juridica da propria familia, corn o esbatimento progressive da relevancia dos la<;os familiares colaterais e das fun<;oes colectivistas e previdenciais do agregado familiar como urn todo. Da grande unidade de produ<;ao e consume que era, corn fun<;oes de defesa e protec<;ao social alargadas a todos os seus membros, identificados pelos la<;os de sangue que a troncalidade comum determinava, a familia viu-se assim reduzida, na era industrial, ao micleo essencial da sua configura<;ao minima, sem quaisquer outras fun<;oes que nao fossem o "mutuo adjutorio" ea propaga<;ao da especie. Situa<;ao fortemente agravada pelos ventos do liberalismo economico, ati<;ados pelos ideais individualistas da Revolu<;ao Francesa, por forma tal que, o que ainda podia res tar da concep<;ao colectivista e comunitaria da familia medieval, a breve trecho se viu destruido, pelo endeusamento do individuo e sua "liberta<;ao" de quaisquer peias ou vinculos de sentido gregario, politico ou religiose. Ora, see certo que na evolu<;ao ate entao operada, o "direito" se limitara, sobretudo, a acompanhar e sancionar a propria evolu<;ao sociologico, moldando progressivamente as figuras ou institutes juridicos que melhor a podiam servir, obrigatorio e reconhecer que na transforma<;ao verificada nos Seculos XVIII e XIX, o direito ja nao se limitou a servir fielmente a evolu<;ao estrutural das realidades sociais, na medida em que, em grande parte, passou a ser da sua propria responsabilidade essa evolu<;ao. ' Todos conhecemos o papel que o direito desempenhou' como instrumento "activista", no movimento revolucionario de 1789, impondo pela for<;a normativa dos seus preceitos, institutes ou configura<;oes juridicas, a que a evolu<;ao natural
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das coisas eventualmente nao conduziria ou pelo menos tardaria em aceitar, mas que, como objectivo "urgente" dos ide6logos ou politicos de entao, se impunha obter rapidamente, pois que, dai eventualmente poderia depender o exito e a obtenr;ao dos demais objectivos "libertadores" da Revolur;ao. Basta, por exemplo, referir o que se passou corn a laicizaryao do casamento, legalmente imposta pela Constituir;ao Francesa de 1791 (Artigo 70째) atraves da simples proclamaryao do principio de que, "La loi ne considere le mariage que comme contrat civil" e, por isso mesmo, como todos os demais contratos, livremente dissoluvel em vida dos conjugas (pelo div6rcio). Atingida no seu ceme e na sua estabilidade, a familia naturalmente perdeu forr;a e capacidade de resistencia pass ando a assistir passivamente ao desaparecirnento de todas as funr;oes que assentavam naquela unidade e estabilidade, designadamente de caracter educacional, previdencial e econ6mico, como os acima referidos, direitos de troncalidade, vinculos, morgadios, etc.
0 que restou foi praticamente a familia que ainda hoje ternos, pequena (la picola famiglia) instavel e desfuncionalizada. 5. Mais, porem, do que fazer a hist6ria do agregado familiar atraves dos tempos, e nossa intenr;ao acentuar a imporHl.ncia do papel do direito nessa evoluryao, consagrando-a ou provocando-a, e aproveitar a "deixa" que tal perspectiva nos permite, para abordar a questao "quente", da influencia dos textos fundamentais saidos da Revolur;ao de 1974, sobre a actual estrutura juridica da familia portuguesa. Observar;ao para que nos sentirnos particularmente colocados, pois que fomos e somos personagens do processo "laboratorial" que conduziu a tais transformar;oes, de resto ainda em curso. 6. Para simplificar as coisas e indo desde ja directamente ao assunto, diremos que to do o processo revolucionario portugues, de 1974, foi marcado pela intenr;ao confessada de socializar;ao da vida portuguesa, no sentido literal do termo, isto
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e, de progressivo alargamento das fun96es do Estado no ambito das demais estruturas socio-politicas. Inten9iio, em grande parte consumada nos textos que se seguiram imediatamente a Revolu9ao, muitos dos quais se mantiveram ate hoje, embora ja muito desgastados pela erosao de ventos aliseos que, em sentido contrano, come9aram a soprar, pouco tempo decorrido depois do movimento revolucionario. Ora, se ha sector que possa seduzir urn prop6sito socializante, esse e, sem sombra de duvida, o que se refere as chamadas "estruturas sociais" de base, ou intermedias, na medida em que, constituindo essas estruturas centros aut6nomos de poder, a sua existencia e maior ou menor consistencia, tambem representam obstaculo maior ou menor ao progressivo alargamento e difusao da interven9iio estatal. Sob este aspecto, aproximam-se, curiosamente, os ideais individualistas liberais e os ideais colectivistas, ambos contrarios as "bolsas de resistencia" formadas pelos "corpos sociais". Os primeiros, em nome da liberdade dos individuos, que se considera nao dever ser coartada pela disciplina dos grupos sociais que integram; os segundos, em nome do chamado interesse colectivo, esse tambem, no seu entender, incompativel corn os interesses "menores" dos individuos e dos grupos ou corpos sociais por eles constituidos. Dai, certamente, o arreganho corn que a Revolu9iio Francesa arremeteu contra as "corpora96es" medievais e demais organiza96es profissionais, bem como contra a "familia" fortemente comunitaria de entiio, e tambem a luta sem treguas que as revolu96es comunistas, empreendidas nos Paises de Leste (hoje em franca extin9iio) moveram e movem contra a estrutura familiar de tipo unitario, considerando-a contraria aos ideias colectivistas de concentra9iio no Estado de todos os poderes e fun96es. Voltemos, porem, ao caso portugues da Revolu9ao de 1974, na 6ptica exclusiva da sua influencia sobre as estruturas juridicas familiares.
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7. Para nao deixar quaisquer duvidas sobre o proposito de intervir em tao delicada materia, moldando-a pelos ideais revoluciomirios socializantes, o Estado Portugues, aboa maneira socialista, decidiu, logo apos a Revolu9iio, fixar no texto constitucional que dela emergiu os principios que, em seu entender, deviam presidir aregulamentado ordinaria da estrutura familiar. Encontram-se esses principios consagrados, fundamentalmente, nos Artigos 67°, 68°, 69°, 70° e 36° da Constitui<;:iio da Republica Portuguesa de 1976, e de cuja analise facilmente ressaltara a tonica doutrinaria eo sentido impulsionador dos respectivos preceitos. Numa primeira aproxima<;:iio, podemos classificar tais principios associando-os em tres grupos fundamentais: Justifica<;:iio da interven<;:iio do Estado; Estrutura<;:iio da familia; Estatuto individual dos seus membros. Tomemos cada urn desses aspectos separadamente. 8. Justifica<;:iio da interven<;:iio do Estado. Para justificar a sua interven<;:iio neste dominio, o Estado come<;:a, naturalmente, por acentuar a importancia da institui<;:iio familiar no contexto social. Exactamente porque a familiae uma institui<;:ao importante, cuja fun<;:iio nao pode ser ignorada, e que o Estado entende que nao lhe pode ficar indiferente e que, ao contrario, deve intervir na sua estrutura<;:iio e desenvolvimento, orientando-os em conformidade corn os interesses superiores que lhe cabe, a ele, Estado, salvaguardar, logicamente dentro da concep<;:iio que tern desses mesmos interesses. E dai a afmna<;:iio paradigmatica do Artigo 67° da Constitui<;:iio que proclama a familia como "elemento fundamental da sociedades; apos o que, a propria Constitui<;:iio se encarrega de esclarecer o sentido que tal proposi<;:iio deve revestir, toda ela de acentuada marca intervencionista. A saber: a) Efectiva9iio pelo Estado das condi<;:oes que permitam a realiza<;:iio pessoal
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dos seus membros; b) Promo<;ao pelo Estado da independencia social e econ6mica dos agregados familiares, designadamente por meios fiscais e concessao de beneficios sociais; c) Desenvolvimento da assistencia matemo-infantil do Estado e de apoio a terceira idade; d) Coopera<;ao do Estado corn os pais na educa<;ao dos filhos; e) Divulga<;ao e aplica<;ao pelo Estado dos metodos de planeamento familiar; f) Execu<;ao pelo Estado de uma politica de familia, corn caracter global e integrado. Sem por em causa as eventuais boas inten<;oes do legislador constituinte, no quadro doutrimirio das suas concep<;oes, nao podemos deixar de reconhecer a sua manifesto convic<;ao de que sem a "protec<;ao" do Estado, a familia nao podeni cumprir cabalmente as suas fun<;oes. Is to, por urn lado, e por outro a sua desconfian<;a de que se essa "protec<;ao" nao existisse, a familia poderia, "como elemento fundamental da sociedades, usar a sua "importancia" em sentido contnirio ou nao ajustado aos interesses colectivistas que ao Estado compete salvaguardar. Tais preocupa<;oes revelam-se sobretudo no cuidado corn que se afirma a necessidade da interven<;ao do Estado na assistencia matemo-infantil, na educa<;ao dos filhos e no planeamento familiar. Isto e: 0 Estado entende que deve estar presente em todos os momentos essenciais do chamado processo demografico: na concep<;ao, na forma<;ao e na educa<;ao dos cidadaos. Preocupa<;oes que aparecem, ainda mais evidenciadas, nos preceitos constitucionais que se seguem ao texto citado, isto e, nas disposi<;oes dos Artigos 68째, 69째 e 70째, relativos a protec<;ao a conceder a "Patemidade e Matemidade, a "lnfiincia" ea "Juventude". Em qualquer dos casos, o Estado atribui-se papel relevante e "insubstituivel" na educa<;ao dos filhos, na forma<;ao integral da juventude e na sua integra<;ao civica,
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chamando a si especiais responsabilidades em dominios como o da forma<;ao profissional e ensino, do acesso ao trabalho, da educa<;ao fisica e do aproveitamento dos tempos livres. Quadro em que, afinal, a tal importancia social da familia" quase se esbate por completo, reduzida como fica ade simples colaboradora do grande Senhor, que tudo dini, desde o nllinero de filhos a "fazer", ate aforma de os educar, ensinar edivertir. Mais, porem, do que expor os t6picos fundamentais da politica de interven<;ao do Estado nas estruturas familiares, aqui pretendemos apenas acentuar o cuidado corn que o legislador constituinte desenhou o quadro dessa interven<;ao, possibilitando ao Estado participar depois, pela via da legisla<;ao ordinaria, em todos os aspectos referidos, abrangentes, pela sua amplitude, da totalidade da vida familiar. Ou seja: Em nome da protec<;ao que lhe compete constitucionalmente conceder, nenhum recanto da vida familiar ficara vedado ainterven<;ao do Estado, sob a capa da "protec<;ao".
Eessa, de resto, a fun<;ao das normas constitucionais: Fixar os principios gerais a que devem subordinar-se as leis ordinarias, para que estas depois explorem o quadro desenhado pelos referidos principios. 0 que, se porvezes tern fmalidades restritivas (limitar a intervenc;ao do legislador), noutras propoe-se alargar o campo de acc;ao da lei comum, designadamente quando se deseja criar, para alt:~m da evoluc;ao normal do direito. Intenc;ao esta que claramente se advinha subjacente aos principios constitucionais referidos, todos eles orientados no sentido de chamar ao Estado, sob a forma de "deveres de protecc;ao social", direitos claros de interven<;ao em areas confiadas tradicionalmente afamilia. 9. Ao referir, a cima, o criterio aglutinador dos principios constitucionais, em materia do direito da familia, dissemos que,justificada pelo legislador constituinte a ampla possibilidade de interven<;ao do Estado, nesse dominio, logo ele mesmo procurou, tambem, definir o conceito de familia pelo receio natural de que, no
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horizonte de urna tao ampla liberdade de interven<;ao, o legislador comurn viesse mais tarde a usar essa liberdade em sentido eventualmente contnirio ao dos proprios ideais que se pretendiam impulsionar. Tal a explica<;ao que encontramos para os preceitos que, na propria Constitui<;ao, e por forma pouco usual, delimitam os conceitos indispensaveis aestrutura<;ao da "familia", tomando assim inconstitucionais todas as disposi<;oes legais que, no futuro, desrespeitem ou nao se ajustem a esses conceitos. Tarefa confiada fundamentalmente ao Artigo 36째 da Constitui<;ao, cuja epigrafe logo o denuncia: "familia, casamento e filia<;ao". Posto o que, pode perguntar-se, que conceito tinha de familia o nosso legislador constitucional? Manda a verdade que se diga que o nosso legislador constitucional nao tinha urn conceito bem defmido de "familia" ou se o tinha nao o revelou expressamente... Eo que resulta do amontoado de re gras constantes do citado Artigo 36째, que passamos a analisar, primeiro pelo que respeita apropria estrutura do agregado familiar e depois pelo que toca ao estatuto individual dos seus membros. Que o legislador nao tinha ou nao se preocupou em expressar urn conceito preciso de "familia", resulta logo da forma como encara a possibilidade da sua constitui<;ao, consagrando, como realidades autonomas, o direito de casar eo direito de constituir familia, direitos, urn e outro, que a todos os cidadaos devem ser assegurados. Pondo de lado o absurdo de pensar que o direito de contrair casamento se contrapoe ao direito de constituir familia, por forma tal que o casamento possa deixar de ser encarado como urna das fontes de rela<;oes familiares, o que parece claramente resultar do texto legal eque, para o legislador constitucional, a familia tanto se pode constituir pela via do casamento como por outras vias, legalmente admitidas, designadamente a procria<;ao ea adop<;ao. Sendo todas elas igualmente
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legitimas porque resultantes do exercicio de urn direito constitucionalmente consagrado. Assim, para a Constitui9ao portuguesa de 197 6, tanto e legitima a "familia" constituida pelos conjuges atraves do casamento, como aquela que se constitui entre pais e filhos pelo vinculo da filiayao, ou entre adoptante e adoptado pelo "neg6cio juridico" da adop9ao. A maneira como o texto foi "trabalhado", pode ate suscitar a duvida sobre se para o legislador constituinte a familia conjugal pode igualmente realizar-se atraves da simples "uniao de facto". Duvida que, no entanto, se esvai, em certa medida, face aos demais preceitos que integram o normativo do Artigo 36°. Efectivamente, depois da referencia aos "direitos", de constitui9ao da familiae de matrim6nio, contido no n° 1, o legislador afmna, no n.0 2, que ao Estado, em exclusivo, compete aregulamentayao dos requisitos e efeitos do casamento, no sentido de que s6 pode ser considerado como tal, o acto que a lei civil assim defmiu. Ea lei civil nao inclui a ''uniao de facto" entre as "fontes da familia". Ou seja, nao ha rela9ao conjugal fora do casamento e este s6 existira nos termos em que a lei civil o regulamenta. Ao contrario, porem, do que pode parecer, nao foi a inten<;:ao de esclarecimento conceitual que presidiu aredacyao do n° 2 do Artigo 36° . Foi outra e muito diversa, ligada apreocupayao do Estado de deixar hem claro que a partir da entrada em vigor da nova Constituiyao cessava, por inteiro, a competencia da ordem can6nica na regulamentayao "substancial" da mais importante das fontes das relayoes familiares: 0 casamento. Competencia que, dadas as caracteristicas essenciais do matrim6nio can6nico, nao podia agradar ao Estado. Sem o afmnar expressamente, o que o legislador pretendeu de facto dizer, non o 2 do Artigo 36° da Constitui9ao, foi que, s6 o casamento civil pode conduzir a
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constituivao da familia, pelo que, para alcanvar esse objective, o matrimonio canonico tern de se comportar praticamente como se fosse civil, respeitando todos os requisites substanciais para este exigidos. Trata-se, de uma disfarvada forma de laicizavao do casamento. A falta de precisao do legislador, porem, esta tambem na origem de outras duvidas que a este respeito continuam a inquietar os juristas.
Assim: Sera efectivamente correcto persistir em afnmar que o acto matrimonial canonico, para produzir efeitos civis, tern de respeitar integralmente os preceitos substanciais da lei civil? Ou seja: Vigorara, entre nos, o sistema do institute juridico matrimonial linico? Urn Unico conjunto de normas para a regulamentavao dos requisitas substanciais do acto juridico matrimonial, para que dele resulte a constituivao de uma familia legalmente existente? So sera assim, se apenas a face da lei civil puderem ser apreciadas todas as questoes respeitantes a validade essencial e eficacia dos casamentos. 0 problema da forma, para 0 efeito, e irrelevante. Ora, acontece que, ao tempo em que entrou em vigor a Constituivao de 197 6, vigorava entre nos urn sistema cumulative de competencias quanto a regulamentavao do "consentimento matrimonial", que eo aspecto essencial da validade dos casamentos. Estabelecia-se, por urn lado, que para produzirem efeitos na ordem juridica do Estado, os casamentos canonicos deveriam respeitar o sistema de impedimentos prescritos pela lei civil, mas que, quanto as causas respeitantes a validade do consentimento e a "dispensa do casamento rato e nao consumado", aos
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casamentos can6nicos dev,eria aplicar-se apenas o direito da Igreja. 0 que equivalia a dizer que, o consentimento matrimonial, nos casamentos religiosos, era regulado pela lei can6nica e nos casamentos civis era-o pela lei civil, considerando-se uns e outros corn igual eficacia na constitui9ao da familia, tal como e entendida e protegida pela ordem juridica estadual. Orienta9ao que, tendo resultado da Concordata celebrada entre Portugal ea Santa Se, em 1940, recebeu acolhimento nos Artigos 1625째 e 1626째 do C6digo Civil de 1966 (anterior a actual Constitui9aO). E a questao surge, precisamente, porque as referidas disposi96es nao foram expressamente revogadas aquando da entrada em vigor da Constitui9ao, ao contrario do que aconteceu corn muitas outras, que o legislador nao teve logo duvidas em considerar inconstitucionais. Sem entrar a fundo na questao, o que nos levaria muito longe, pretendemos apenas evidenciar aqui a caracteristica da imprecisao doutrinaria do direito matrimonial portugues contemporanea, em grande parte consequencia do exagerado uso que dele se pretendeu fazer como instrumento de evolu9ao politicadoutrinaria. 10. As demais disposi96es do Artigo 36째, da Constitui9ao de 1976, integram outras tantas afmna96es subjacentes as inten96es "proteccionistas" do Estado, na vida familiar. A come9ar pelo radicalismo da afirma9ao, tambem contido no n째 2, quanto a competencia exclusiva da lei civil em materia de div6rcio, aplicavel a todos os casamentos "independentemente da forma de celebra9ao". A formula usada, por si s6, denuncia a convic9ao do legislador de que a celebra9ao can6nica nao e mais do que uma formalidade que em nada deve afectar a estabilidade da sociedade conjugal. Isto e, ao legislador civil e praticamente indiferente que as pessoas casem pela
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Igreja ou pelo Registo Civil, o que ja nao lhe e indiferente e que, pelo facto de o fazerem segundo o rito canonico, a estabilidade da familia possa constituir problema para o exercicio das fun<;:oes de que o Estado se arroga na materia. E dai a urgencia corn que, logo a seguir aRevolu<;:ao de 7 4, o Estado celebrou corn a Santa Se o Protocolo Adicional aConcordata, de 15 de Fevereiro de 1975, que abriu a porta do divorcio civil aos casamentos canonicos, e a "generosidade" revelada na regulamenta<;:ao do proprio divorcio, atraves das altera<;:oes introduzidas no Codigo Civil, pelo Decreto-Lei n째 496177, de 25 de Novembro, construindo urn sistema dos mais alargados do direito civil contemporiineo e em que, para alem do aumento considerlivel das causas de divorcio litigioso, avulta a introdu<;:ao do divorcio consensual, desconhecido em muitos dos sistemas legislativos ocidentais. No fundo, sempre a mesma ideia: Quanto menos estavel for a "familia", mais forte e actuante podera ser o poder intervencionista do Estado. Ideia que, de resto, apresentada embora corn vestes mais moderadas e de forma mais defensavel, se nos afigura estar igualmente presente nas afirmac;:oes subsequentes do texto constitucional, ao proclamar a plena igualdade de direitos e deveres dos conjuges dentro do casal e a equipara<;:ao dos filhos nascidos fora e dentro do casamento. Nao sendo, como e evidente, legitimo, negar a tais disposi<;:oes propositos de sentido etico, for<;:oso e, no entanto, reconhecer que a sua proclama<;:ao, em texto constitucional, ultrapassa a propria concep<;:ao etica das situa<;:oes visadas, para entrar em domini os de clara inten<;:ao politica e corn alcance mais amplo do que a simples protec<;:ao juridica dos interessados. Assirn e em resumo: 11. Em 1974, o estatuto juridico da familia portuguesa assentava fundamentalmente nos compromissos assumidos entre o Estado Portugues e a Santa Se, atraves da Concordata celebrada em 1940, praticamente aceites na
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sua integralidade pelo Codigo Civil promulgado em 1966. Eram aspectos essenciais desse estatuto, os seguintes: a) A constituivao do "estado de casado" podia ter lugar tanto atraves do casamento civil como do matrimonio canonico; b) A Igreja, no entanto, comprometia-se a nao celebrar casamentos canonicos que 0 nao pudessem ser a face da lei civil, em virtude da existencia de impedimentos dirimentes por esta previstos, distintos dos que eram estabelecidos pela lei canonica; c) Em relayao aos demais aspectos do acto matrimonial, relacionados quer corn as formalidades a observar, quer corn os requisites a respeitar, em materia de consentimento, aplicava-se, quanto aos casamentos canonicos, o direito da Igreja. Vigorava, portanto, entre nos, o sistema do regime matrimonial duplo; d) 0 institute do divorcio so se aplicava, em principio, aos casamentos civis, considerando-se indissoluveis, em vida dos c6njuges, os casamentos canonicos, salvo nos casos em que a propria Igreja aceita essa dissoluvao, como, em certa medida sucede, na chamada "dispensa do casamento rato e nao consumado"; e) Pelo que respeita asociedade conjugal constituida, quer pela via canonica, quer pela civil, vigorava entre nos o si sterna da sociedade institucional, em que, sem quebra da igualdade juridica dos c6njuges, se estabelecia uma certa complementaridade nas funv5es de urn e outro, cabendo essencialmente ao marido a representa9ao e manutenyao da familia e a mulher o govemo domestico e fundamental intervenyao na educayao dos filhos; No caso de desacordo entre os c6njuges, em aspectos essenciais avida conjugal, competia a sua resoluvao, em principio, ao c6njuge varao ou, em certos casos,
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ao conselho de familia; g) 0 institute do div6rcio, apenas aplica.vel aos casarnentos civis, revestia essencialrnente a forma litigiosa, corn individualiza<;:ao bastante precisa das causas que o poderiarn justificar, todas elas relacionadas corn o incurnprirnento de deveres conjugais (div6rcio-sansao ). 12. Ern virtude dos principios fundarnentais consagrados na Constitui<;:ao de
1976 e do Protocolo Adicional a Concordata, celebrado ern 197 5, foi o legislador ordinaria obrigado a adaptar a tais principios as norrnas do direito da familia entao vigente, o que fez pelo Decreto-Lei no 496177, de 25 de Novernbro. Por for<;:a de tal diploma, o regime juridico familiar passou entao a apresentar as seguintes caracteristicas que, ern alguns aspectos, subvertern por inteiro o regime enunciado. A saber: a) A sociedade conjugal continuou, corno no regime anterior, a poder ser constituida tanto pela via can6nica corno pela via civil, tendo, no entanto, o Estado charnado a si, salvo quanto as rneras forrnalidades a observar no acto do casarnento, toda a cornpetencia regularnentar, passando a vigorar entre n6s urn sisterna rnais proximo do institute matrimonial Unico, de natureza civil, do que do institute matrimonial duplo, saido da Concordata de 1940; b) 0 institute do div6rcio passou a ser aplicavel tanto a sociedade conjugal constituida atraves do casarnento civil corno a resultante do casarnento can6nico. Dada, porern, a nao revoga<;:ao expressa do Artigo 1625째 do C6digo Civil, entende-se que continua a vigorar para os casarnentos can6nicos a "dispensa do casarnento rato e nao consurnado"; c) A sociedade conjugal assurniu, ap6s o Decreto-Lei n째 496177, urna estrutura igualitario e nao institucional, por for<;:a da qual, para alern da equipara<;:ao juridica dos conjuges, ja existente, foi tarnbern introduzida urna plena
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equiparac;ao funcional, passando ambos os conjuges a ter iguais func;oes dentro do casal, tanto pessoais corno patrirnoniais, salvo naturalrnente aquelas que pela sua natureza estao reservadas a cada urn dos conjuges. Designadarnente ern materia de exercicio do poder paternal (relativarnente aos filhos ), da adrninistrac;ao dos bens (que ambos exercern ern termos de plena igualdade) e de representac;ao, que passa a caber a ambos os conjuges. Refere-se, a prop6sito, quase corno curiosidade, que no regime anterior s6 a rnulher tinha o direito de adoptar os apelidos do rnarido, aquando do casarnento, passando tal direito, corn a publicac;ao do Decreto-Lei n째 496/77, a poder ser exercido tarnbern pelo rnarido relativarnente a adopc;ao dos ape lidos da rnulher, o que clararnente pretende elirninar a representatividade social do casal apenas pelo norne do conjuge varao; d) Ern conformidade corn a equiparac;ao funcional dos conjuges, cessou tarnbern a cornpetencia, ern principio atribuida ao rnarido, para dirirnir os diferendos farniliares, passando essa func;ao a ser atribuida ao proprio Estado, atraves dos Tribunais, rnaxirne, ern materia de escolha da residencia conjugal, norne dos filhos, exercicio do poder paternal etc .. Aspecto, este ultimo, que constitui urna das dernonstrac;oes rnais aparentes do sentido intervencionista das reformas introduzidas no actual direito da familia; e) 0 instituto do div6rcio pas sou a revestir a partir de entao, tarnbern, indole diversa da anterior, deixando de ser urna forma de dissoluc;ao apenas destinada a garantir o curnprirnento dos deveres conjugais (div6rcio-sansao) para assurnir natureza rnais amp la e liberal, a utilizar quando de facto se verifique ruptura da vida conjugal por dernencia superveniente, separac;ao de facto, etc. (div6rcio-rernedio) Ou sernpre que os conjuges consensualrnente desejern por-lhe termo (div6rcio por rnutuo consentirnento). No rnesrno sentido depoe ainda a reforma recenternente introduzida, permitindo o div6rcio consensual corn substituic;ao da via judiciaria pelo rnero recurso as Conservat6rias do Registo Civil;
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f) Embora nao relacionada directamente corn a estrutura familiar pode ainda apontar-se como urn a manifesta<;ao mais das tendencias centralizadoras das reformas introduzidas em 1977, a redu<;ao do circulo familiar para efeitos sucess6rios, levada a cabo pelo Decreto-Lei no 496/77, por for<; a do qual deixaram de ser atribuidos direitos sucess6rios aos parentes colaterais a partir do 4 째 grau, diversamente do sistema anterior que mantinha esses direitos ate ao 6째 grau. Redu<;ao corn vantagem manifesto para o Estado que viu assim a sua posi<;ao sucess6rio muito fortalecida, como herdeiro que e, logo ap6s o termo da sucessao familiar (4 째 grau). E mais nao e preciso acrescentar, cremos, para bem caracterizar o sentido essencial das reformas introduzidas no direito matrimonial portugues pela Constitui<;ao de 197 6.
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CoNVEN<;A.o soBRE o FuTuRo DA EuROPA
Maria Eduarda Azevedo Deputada do PSD Membra Titular em representQ(;iio da Assembleia da Republica na Conven9iio sabre o Futuro da Europa Professora da Universidade Lusiada
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1. A Convenc;ao foi concebida como uma assembleia politica de reforc;ado tonus parlamentar, corn uma missao indissociavel da analise critica requerida pelas contingencias do tempo hist6rico que marca o presente deste complexo processo de cinquenta anos de integrac;ao europeia. Pelo modelo escolhido, na senda da experiencia pioneira ensaiada para a Carta dos Direitos Fundamentais da Uniao Europeia, combinando o executive e o legislative, as vertentes comunitaria e nacional e associando ainda representantes dos paises candidates, a Convenc;ao procura exprimir a sua plena legitimac;ao democratica. No tocante ao mandato, conferido pela Declarac;ao aprovada na Cimeira de Nice e reafirmado pela Declarac;ao de Laeken, e da reforma das instituic;oes europeias e do lanc;amento de urn Tratado Constitucional que se trata, a aprovar pela Conferencia Intergovemamental de 2004. Assim, e atraves da promoc;ao de urn amplo e aprofundado debate sobre as opc;oes politicas fundamentais da Uniao do seculo XXI que a Convenc;ao pretende posicionar-se como pedra-angular de urn processo de refundac;ao da Europa aberto, transparente, participado pela sociedade civil e credor de urn lugar na Hist6ria. Quanto a oportunidade do seu lanc;amento, a Convenc;ao sobre o Futuro da Europa surge, declaradamente num momento em que a Europa se ve confrontada corn grandes desafios e apostas politicas que marcam o novo ciclo da integrac;ao europe1a. De facto, a Europa chegou ao fim do seculo XX corn o designio econ6mico praticamente realizado. Nos anos 60 foram lanc;adas, irreversivelmente, as bases da Uniao Aduaneira, do Mercado Comum e da primeira Politica Comum. Nos anos 80, foi a vez do projecto do Mercado Intemo, enquanto Objectivo/92. Na decada de 90 chegou a integrac;ao monetaria corn o Tratado de Maastricht e a retoma do Plano Wemer e corn a criac;ao do Euro, poderoso factor de consolidac;ao da cidadania europeia e reflexo da solidariedade entre os povos,
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cumpriu-se a profecia "aMercado Unico, Moeda Unica". Entretanto, corn a Queda do Muro de Berlim, o alargamento as jovens democracias emergentes do Leste reunificac;ao da Europa tomou-se um desafio irrecusavel e, assim, desde 1989 que a adesao dos jovens regimes democraticos emergentes do Centro e Leste europeu anunciou-se como uma das maiores apostas politicas da construc;ao europeia. Sem precedentes, dado o nUm.ero de candidatos ea exigencia da respectiva adaptac;ao politica e economica a matriz comunitaria, o alargamento ganhou compreensivelmente a dimensao ea dignidade de grande designio politico da Uniao no seculo XXI. Alargamento que traz de novo a ribalta o consagrado binomio alargamentoaprofundamento, embora ja nao em termos dilematicos. Entre os multiplos desafios que envolve, o proximo alargamento esta ainda condenado a sera mola impulsionadora de urn teste decisivo a dinfunica comunitaria. Muito em particular, urn teste a real vontade politica e a efectiva vitalidade dos Estados membros para continuarem a caminhada conjunta para novos patamares da integrac;ao, agora no contexto geopolitico e geoestrategico da Europa reunificada. Nesta medida, a Europa esta hoje, claramente, numa encruzilhada. Corn a agravante de ao suscitar novos problemas e criar novas fracturas a que os Estados membros procuraram responder corn meias e inconclusivas soluc;oes, ter contribuido defmitivamente para adensar ainda mais este clima. 0 Tratado de Amsterdao adiou decisoes institucionais importantes corn os seus "leftovers" e, em seguida, o Tratado de Nice brindou a Comunidade eo M undo corn urn exercicio de pura partilha de poder, subvertendo principios e valores fundamentais da integrac;ao como a igualdade entre os Estados, a solidariedade ea coesao. Num ambiente de grande dramatizac;ao, a negociac;ao do Tratado de Nice constituiu um claro alerta para os riscos dessa indefmic;ao que grassava. Dai que o acordo alcanc;ado para realizac;ao de uma amp la reflexao sobre o Futuro da
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Uniao previamente a nova Conferencia Intergovemamental de 2004 represente o melhor legado do Tratado aos cidadaos europeus. Mas para ser realmente util e marcar a mudanc;a, o processo reformista em 2004 nao podia ficar circunscrito a acc;ao dos Govemos e a proverbial reserva e opacidade das Conferencias Intergovemamentais. Por isso, a palavra-de-ordem foi encontrar urn novo modelo, mais operativo, mais democnitico, mais transparente e, sobretudo, mais participado, capaz de dar voz as opinioes publicas nacionais e ao sentir dos povos europeus. Neste particular, a Convenc;ao sobre o Futuro da Europa tern potencial para responder a este multiplo desafio.
2. Encetados a 28 de Fevereiro de 2002 e tendo o termino marcado para 30 de Julho de 2003, os debates da Convenc;ao centraram-se, naturalmente, na afirmac;ao e defesa dos valores nucleares da paz, da democracia, da igualdade, da solidariedade e da coesao, constitutivos da base minima de confianc;a entre os parceiros europeus e entre a Europa e os seus cidadaos. Uma vez assumida esta plataforma de entendimento, a Convenc;ao identificou como primeira prioridade saber que papel os cidadaos desejam para a Europa neste mundo globalizado, quais as suas expectativas, qual a razao das suas criticas, quais os motivos do afastamento, senao mesmo da rejeic;ao, sensivel em largas franjas da populac;ao comunitaria em relac;ao ao projecto europeu.
0 combate as fragilidades na origem desse mal-estar ditou uma estrategia que tern numa legislac;ao comunitaria inteligivel e num processo decis6rio mais democratico, mais transparente, mais celere e mais eficaz uma condic;ao necessaria, se bem que nao suficiente, para promover e assegurar essa renovac;ao de atitudes. Que encontra numa distribuic;ao de competencias entre os diversos agentes
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comunitarios no respeito pelos princ:fpios da subsidiariedade e da proporcionalidade urn apoio vital. Ate porque corn a evoluc;ao do processo comunitario, a Comunidade passou a intervir de forma crescente em praticamente todos os dominios da vida quotidiana dos cidadaos. E a par de areas em que a intensidade e a valia dessas intervenc;oes sao questionadas pelas opinioes publicas nacionais, outras ha em que, inversamente e ainda a ausencia de acc;oes comunitarias o objecto da reivindicac;ao social. Todos os estudos de opiniao tao unanimes em apontar os domini os da Justic;a e da Seguranc;a, da luta contra a criminalidade transfronteiric;a, do controlo dos flux os migrat6rios e do asilo como aqueles em que s6 uma actuac;ao cornurn e passivel de responder aos desejos e aos sentimentos dos cidadaos. Por is so que se toma imperio so que a subsidiariedade deixe de ser urn mero principio te6rico e constitua o criterio para o efectivo apuramento das responsabilidades dos varios agentes europeus. Estrategia que tambem nao pode passar amm路gem do envolvimento mais activo e petmanente dos Parlamentos Nacionais no processo politico e legislativo da Uniao, ate como meio de prevenir a recentragem do deficit democratico no plano nacional.
3. Hoje, a Convenc;ao tern a rolar, corn urn ritmo e harmonia auspiciosos, todas as componentes da sua estrategia. Ea componente politica centrada nos debates que realiza em sessoes plenarias e a que acresceu ate agora o funcionamento de urn primeiro pacote de 6 Grupos de Trabalho- sobre o Principio da Subsidiariedade, sobre a Carta dos Direitos Fundamentais, sobre a Personalidade Juridica da Uniao, sobre os Parlamentos Nacionais, sobre as Competencias Complementares, sobre a Govemac;ao Econ6rnica.
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Neste momento estaja lanvada uma segunda vaga de 4 Grupos de Trabalho sobre a Acvao Externa, sobre a Defesa, sobre a Simplificavao de Procedimentos e Instrumentos e sobre a Justiva e Seguranva -, esperando-se para o inicio do proximo ano a terceira vaga de Grupos de Trabalho sobre as Instituiv5es. Tambem a componente social, traduzida nos Encontros ja organizados corn a Sociedade Civil, que mobilizaram organizav5es corn voz numa multiplicidade de areas como a Cultura, os Meios Academicos, os Direitos Humanos, o Ambiente, o Desenvolvimento eo Sector Social. E, ainda, a Convenvao dos Jovens, realizada em Julho, que constituiu urn claro investimento nos leaders e opinion-makers do amanha. Independentemente do acolhimento das propostas finais que sairem da Convenvao, a dinamica que esta soube ganhar fadam-na inevitavelmente para o sucesso, estando j a inscrita na hist6ria da integrayao europeia.
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A UNICA REVISAO NECESSARIA (Comentario ao artigo 284째 da Constituic;ao da Republica Portuguesa)*
Miguel Nogueira de Brito Assistente da Universidade Lusiada e da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
' Este texto foi inicialmente pensado como contribui<;ao para uma Constitui<;ao anotada, projecto colectivo que nao chegou, todavia, a realizar-se. 0 intuito inicial deixou, de qualquer modo, o seu rasto descritivo e informativo no texto final.
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l.INTRODU<;AO 0 artigo 2 84째 da Constituic;;ao consagra a existencia de limites temporais ao exercicio do poder de revisao, ao estabelecer que uma revisao s6 pode ocorrer decorridos cinco anos sobre a data da publicac;;ao da ultima lei de revisao que haja sido efectuada na sequencia do decurso de urn quinquenio anterior, como se le no n.0 1 do artigo, salvo se a Assembleia da Republica assumir poderes de revisao por maioria de quatro quintos dos Deputados em efectividade de func;;oes, caso em que a revisao pode ocorrer em qualquer momento, segundo decorre do n. 0 2. No primeiro caso a revisao diz-se ordinaria, no segundo extraordinaria. A revisao extraordinaria efectuada nos termos do n. 0 2 do artigo 284째 nao interrompe o prazo de cinco anos que o n. 0 1 impoe como intervalo de tempo entre a realizac;;ao das sucessivas revisoes ordinarias, como decorre corn toda a clareza da parte final do citado n. 0 1. A chave para a compreensao do sistema instituido pelo artigo 284째 da Constituic;;ao reside, pois, nos conceitos de revisao ordinaria e revisao extraordinaria. Tais conceitos, asemelhanc;;a dos limites temporais ao poder de revisao sobre os quais os mesmos se articulam, nao sao, no entanto, exclusivos da actual Constituic;;ao da Republica, antes repousando, como nao podia deixar de ser, na experiencia constitucional anterior. Antes de se proceder aanalise de tal experiencia importa, todavia, fazer desde logo urn reparo de ordem terminol6gica: a doutrina refere genericamente que o regime previsto no artigo 284째 da Constituic;;ao estabelece limites temporais ao poder de revisao. Seria talvez mais correcto falar em dimensao temporal do poder de revisao, uma vez que o objectivo da definic;;ao do tempo da revisao nao e, pelo menos actualmente, o de a restringir, mas precisamente o de criar condic;;oes para urna reforma peri6dica do texto constitucional. Corn efeito, atraves da definic;;ao do tempo da revisao consegue-se que o processo de revisao seja desencadeado corn a simples apresentac;;ao de urn projecto de revisao, urna vez completado o prazo de cinco anos. A nao existir esta dimensao puramente temporal, o mais 16gico seria fazer depender o inicio do processo de revisao de urna deliberac;;ao da Assembleia da Republica tomada por maioria qualificada,
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como sucede em grande numero de textos constitucionais (e, nesse caso, o decurso de urn periodo de tempo sobre a data de urna anterior revisao seria urn verdadeiro limite ao poder de revisao, como sucedia corn a maioria das nossas constituic;oes anteriores a 1911 ).
2. OS LIMITES TEMPORAIS NO CONSTITUCIONALISMO PORTUGuES Corn excepc;ao da Constituic;ao de 1838, todas as demais constituic;oes portuguesas consagram limites temporais ao poder de revisao constitucional. a) Constituic;ao de 1822 e Carta Constitucional de 1826. 0 artigo 28° da Constituic;ao de 1822 prescrevia que a Constituic;ao apenas poderia ser reformada ou alterada depois de passados quatro an os sobre a data da sua publicac;ao, devendo este prazo, relativamente aos artigos cuja execuc;ao dependesse de le is regulamentares, ser contado desde a data de publicac;ao de tais leis. A proposta de alterac;ao, formulada apos o decurso do referido prazo de quatro anos, deveria ser lida tres vezes corn intervalo de oito dias e seria reduzida a decreto se fosse admitida adiscussao e aprovada por do is terc;os dos deputados presentes. Atraves deste decreto seria ordenado aos eleitores dos Deputados para a seguinte legislatura que nas procurac;oes, a que se refere o artigo 58°, lhes conferissem especial faculdade para poderem fazer a pretendida alterac;ao, obrigando-se a reconhece-la como constitucional no caso de chegar a ser aprovada. A legislatura munida corn as referidas procurac;oes discutiria novamente a proposta e se esta fosse aprovada por do is terc;os dos Deputados, seria havida como lei constitucional, incluida na Constituic;ao e apresentada ao Rei, nos termos do artigo 109°, para ele a fazer publicar e executar em toda a Monarquia. Nos termos do artigo 112°, I, nao dependiam de sanc;ao Real "A presente Constituic;ao, e as alterac;oes que nela se fizerem para o futuro (art. 28)." A Carta Constitucional instituia urn sistema semelhante. 0 artigo 140° prescrevia que decorrido o prazo de quatro an os contados da data em que foi jurada a
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Constitui9ao do Reino podia ser feita uma proposta para a respectiva reforma, a qual teria origem na Camara dos Deputados e carecia de ser aprovada por uma maioria de dois ter9os. Nos artigos 141° a 143° regula-se o procedimento respeitante aaprova9ao dos actos adicionais (assim designados porque o artigo 143° re feria que uma vez aprovada a proposta de alterayao, a mesma "prevaleceni para a mudanya, ou adiyaO Lei fundamental, e juntando-se ConstituiyaO sera solenemente promulgada"), em term os que nao divergem substancialmente do disposto no artigo 28° da Constitui9ao de 1822.
a
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b) Constitui9ao de 1911 ea Constitui9ao de 1933 A Constitui9ao de 1911 pode considerar-se verdadeiramente a matriz do sistema de limites temporais darevisao constitucional subjacente ao artigo 284°. 0 artigo 82° da primeira constitui9ao republicana prescrevia que a revisao poderia ocorrer de dez em dez an os, a contar da promulga9ao da Constitui9ao, tendo para esse efeito poderes constituintes o Congresso cujo mandato abrangesse a epoca da revisao. 0 § 1o estabelecia que a revisao poderia ser antecipada de cinco anos caso fosse aprovada por dois ter9os dos membros do Congresso em sessao conjunta das duas Camaras (sem esclarecer se esta maioria respeitava ainiciativa da revisao, como parece ter de ser, ou arespectiva aprova9ao ) 1• Pela primeira vez, surgem dissociadas na nossa hist6ria constitucional as questoes do limite temporal para o exercicio do poder de revisao e da exigencia de uma maioria para a iniciativa de revisao, distinta da maioria exigida para a respectiva 1
Sobre as origens do regime de revisao da Constituiyao de 1911, cfr. Aetas da Assemb1eia Naciona1 Constituinte de 1911, pp. 34, 127, 500-502. Em anexo aobra citada sao publicados os projectos de constituiyao apresentados a Assemb1eia Constituinte, cuja consulta permite concluir que o texto e1aborado pe1a comissao da Constituiyao se baseou 1argamente, no que conceme a questao da revisao, no projecto da autoria do Sr. Jose Barbosa, Deputado pe1o Circu1o n.0 35 - Lisboa Ocidenta1 (cfr. ob. cit., p. 559). A Jose Barbosa, funciomirio publico (cfr. ob. cit., p. 647), ficamos pois devendo a essencia do sistema de 1imites temporais da revisao que desde 1911 tern caracterizado o nosso constituciona1ismo. Urn outro aspecto corn interesse que se retira da aetas da Assemb1eia da Constituinte e a importancia atribuida a ideia de revisao decena1 como urn dos "principios fundamentais do programa do partido republicano", principio esse que a possibi1idade de antecipayao de cinco anos visava atenuar [cfr. ob. cit., p. 500 e ainda pp. 551, 614, 634; Joaquim Madureira, A Forja da Lei, pp. 640-641; o programa aqui referido e, certamente, o Programa Republicano de 1891: cfr. A. H. de Oliveira Marques (ed.), Hist6ria da Primeira Republica Portuguesa, p. 542].
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aprova9ao. Corn efeito, a Constitui9ao de 1822 e a Catia Constitucional estabeleciam urn prazo de quatro anos como limite para a reforma da Constitui9ao, mas nem por isso deixavam de exigir que a proposta de revisao fosse objecto de uma maioria qualificada. Corn a Constitui9ao de 1911, a assun9ao de poderes de revisao constitucional por parte do parlamento passa a ser urn sirnples efeito do decurso do tempo. E a institui9ao de urn verdadeiro regime de "cio constitucional" 2• Para alem desta inova9ao, a Constitui9ao de 1911 introduz tambem os conceitos de revisao ordinaria e revisao extraordinaria: a primeira seria aquela que se realizava de dez em dez an os a contar da promulga9ao da Constitui9ao; a segunda seria aquela que antecipava de cinco anos a realiza9ao de urna revisao ordinaria. 0 artigo 13 3 o ( correspondente ao artigo 17 6° ap6s a revisao de 19 51 e ao artigo 13 7° ap6s a revisao de 1971) da Constitui9ao de 193 3 reproduz o si sterna de limites temporais consagrado na Constitui9ao de 1911, mas corn urna precisao, que a doutrina j a vinha estabelecendo por via interpretativa3 : no caso da revisao ser antecipada de cinco an os, o novo periodo de dez anos para a realizayao da proxima revisao ordinaria contar-se-ia da data da revisao antecipada. Para alem desta precisao, a Constitui9ao de 1933 atribuiu ainda urn novo sentido ao conceito de revisao extraordinaria: esta deixava agora de ser a revisao antecipada, para passar a sera que tinha lugar por iniciativa do Presidente da Republica, podendo ser efectuada em qualquer altura (cfr. artigo 134°, correspondente ao artigo 177° ap6s a revisao de 1951 e ao artigo 138° ap6s a revisao de 1971). A revisao de iniciativa presidencial nao interrompia o decenio previsto no artigo 133°, urna vez que o artigo 134° expressamente ressalvava o preceituado em tal artigo e a revisao por ele regulada nao era qualificada como uma antecipa9ao das revisoes ordinarias.
2
Cfr. Antonio de Araujo e Miguel Nogueira de Brito, "Argumentar e Negociar em Debates Constitucionais: A Revisao Constitucional de 1997", in Jorge Miranda (org.), Perspectivas Constitucionais, Nos 20 Anos da Constitui9ao de 1976, vol. Ill, p. 194. 3 Cfr. Mamoco e Sousa, Constitui9ao da Republica Portuguesa, Comentario, pp. 616-617.
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c) Constitui9ao de 1976 A actual Constitui9ao e, sem duvida, aquela que corn maior perfei9ao delineou o processo e limites da revisao constitucional e tambem aquela que levou mais longe a dependencia do poder de revisao (ordinaria) do simples decurso do tempo. Na parte que respeita aos limites temporais ao poder de revisao, cabe sublinhar que o sistema instituido resulta da conjuga9ao dos sistemas previstos nas Constitui9oes de 1911 e 1933. Por urn lado, a revisao ordinaria e aquela que se realiza em interval os de tempo de cinco anos, contados desde as datas das publica9oes das leis constitucionais, sem que para o efeito a Assembleia da Republica necessite de deliberar assumir poderes de revisao. Mas, por outro lado, a revisao extraordinaria nao e aquela que se limita a antecipar a proxima revisao ordinaria num determinado prazo; e antes a revisao que a Assembleia pode efectuar em qualquer altura (a semelhan9a do que acontecia corn a revisao de iniciativa presidencial da Constitui9ao de 1933), desde que para o efeito assuma poderes nos termos previstos no artigo 284°, n.0 2, da Constitui9ao. Apesar desta configura9ao propria do conceito de revisao extraordinaria, a doutrina entendia4 que a realiza9ao de uma revisao extraordinaria tinha o efeito de interromper o decurso do quinquenio previsto para as revisoes ordinarias, em face da redac9ao do artigo 284°, n. 0 1, constante das versoes anteriores da norma, a que correspondiam os artigos 287°, n.0 1, no texto original, 286°, n. 0 1, apos a revisao de 1982, e 284°, n. 0 1, apos a revisao de 1989. Corn efeito, em tais versoes, e diferentemente do que ficou estabelecido a partir da revisao de 1992, era referido que a Assembleia pode rev er a Constitui9ao decorrido cinco anos sobre a publica9ao de "qualquer lei de revisao", nao se distinguindo entre revisoes ordinarias e extraordinarias5 •
4
Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituil(iio da Republica Portuguesa Anotada, Il, 2• ed. , p. 556; Oliveira Martins, La Revision Constitucional y el Ordenamimento Portugues, p. 389. 5 Para a melhor compreensiio da evolu91io a que se refere o texto indicam-se os lugares de publicayiio dos debates constituintes que incidiram sobre a norma do actual artigo 284° da Constituil(iio: Constituil(iio de 1976 - Diario da Assembleia Constituinte, n. 0 121, de 18 de Mar9o de 1976, pp. 4002-4017 e 4067, n. 0 128, de 30 de Mar90 de 1976, pag. 4252. Revisiio de 1982 - Diario da Assembleia da Republica, II Serie, Suplemento ao n. 0 36, de 8 de Janeiro de 1982, p. 766(5)
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Gomes Canotilho e Vital Moreira sustentam que a resolu9ao da Assembleia da Republica que delibere a assun9ao de poderes de revisao extraordimiria deve indicar as materias sobre que M-de incidir a revisao, pois nao seria logico considerar imprescindivel e inadiavel alterar a Constitui9ao, considera9ao essa que subjaz a ideia de revisao extraordinaria, sem uma defini9ao das materias objecto de altera9ao6• Todavia, como os proprios autores reconhecem, a Constitui9ao nao estabelece tal exigencia. Por outro lado, a propria possibilidade de se alcan9ar uma maioria tiio exigente como a prevista no n. o 2 do artigo 284o pode depender da possibilidade de uma indefmi9ao, pelo menos previa, da agenda da revisao. Importa ainda salientar que, ao contrario do que sucedia corn as Constitui9oes de 1911 e 1933 (ou, quanto a esta ultima, corn o respectivo texto inicial, pois a Lei n.0 2048, de 11 de Junho de 1951 , estabeleceu que para efeitos de revisao ordinaria teria "poderes constituintes a Assembleia Nacional cujo mandato abranger o ultimo ano do decenio ou as que se lhe seguirem ate ser publicada a lei de revisao"), a actual Constitui9ao nao limita a atribui9ao de poderes de revisao ordinaria aAssembleia cujo mandato abranger a epoca da revisao 7• Corn efeito, conforme decorre do proprio texto do n. 0 1 do artigo 284°, a Assembleia da Republica pode rever a Constitui9ao em qualquer momento apos o decurso do quinquenio. Foi este, alias, o entendimento que esteve subjacente arevisao de 1997, pois apesar de a assembleia ter assumido poderes de revisao,
6
7
(Subcomissao ); Diario da Assembleia da Republica - Diario da Assembleia da Republica, II Serie, 2° Suplemento ao n.0 77, de 14 de Abril de 1982, pp. 1456(36)-1456(39), Suplemento ao n.0 93, de 21 de Maio de 1982, p. 1762(19) (Comissao Eventual para a Revisao Constitucional); Diario da Assembleia da Republica, I Serie, n. 0 128, de 28 de Julho de 1982, pp. 5413-5414 (Plenario). Revisao de 1992 - Diario da Assembleia da Republica, II Serie, n. 0 7, de 10 de Outubro de 1992, pag. 122, e n.0 14, de 13 de Novembro de 1992, pp. 202 e 203 (Comissao Eventual para a Revisao Constitucional) ; Diario da Assembleia da Republica, I Serie, de 18 de Novembro de 1992, p. 459 (Plenario ). Problema interessante colocado pela alterar;ao do texto do artigo 284°, n. 0 1, na revisao de 1992, foi o de saber qual a data a partir da qual se devia contar o prazo de cinco anos para efectuar a revisao ordinaria subsequente a de 1992: sobre isto, cfr. Miguel Nogueira de Brito, "Tragedia e Erro na Revisao Constitucional de 1997", in POLlS, Revista de Estudos Juridico-Politicos, Ano VI, n. 0 7/8, Dezembro de 1999, pp. 3 e ss . Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituir;ao da Republica Portuguesa Anotada, 33 ed. , p.l052. Sobre esta questao, cfr. Afonso Oliveira Martins, ob. cit., pp. 260-26 1 e 282.
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de acordo corn o entendimento prevalecente, em 1994, a realiza9ao de elei96es em 1995 em nada os afectou. Uma vez expostos, em linhas gerais, os sistemas de limites temporais sucessivamente consagrados nas diversas Constitui96es portuguesas, algumas conclusoes se impoem. A principal caracteristica que pode ser notada n~ evolu9ao das sucessivas normas constitucionais sobre os limites temporais do poder de revisao consiste na progressiva dissocia9ao entre o simples decurso do tempo e a exigencia de uma maioria qualificada como condi96es da realiza9ao da revisao constitucional. N a Constitui9ao de 1822 e na Carta Constitucional, para alem da revisao s6 poder ser efectuada ap6s o decurso do prazo de quatro anos sobre a data da publica9ao da Constitui9ao (ou do juramenta, no caso da Carta), a proposta de revisao necessitava ainda de ser aprovada por uma maioria qualificada para que pudesse ser discutidana legislatura subsequente e ai novamente sujeita a vota9ao por maioria qualificada para aprova9ao como lei constitucional. A partir de 1911, o simples decurso do tempo atribui aos deputados o poder de formular propostas de revisao que nao carecem de ser aprovadas enquanto tais, pass ando a exigir-se uma maioria qualificada apenas para a assun9ao de poderes de revisao extraordinaria (sem prejuizo, obviamente, da maioria exigida para a aprova9ao das altera96es, que aqui nao esta em discussao). Afonso OliveiraMartins entende quenas constitui96es de 1822 e 1826 o limite temporal estabelecido era aplicavel simplesmente a primeira revisao da Constitui9ao, podendo as revisoes seguintes ser efectuadas a todo o tempo 8 . Sem prejuizo de ser, sem duvida, essa a interpreta9ao mais conforme corn a letra dos artigos 28° e 144o da Constitui9ao de 1822 e da Carta Constitucional, respectivamente, o certo e que os autores desde cedo se inclinarain no sentido de considerar que o limite temporal de quatro anos seria aplicavel a todas as revisoes futuras, entendimento este que veio a ser consagrado, quanto aCarta Constitucional, pelo Acto Adicional de 1885 9 â&#x20AC;˘ 0 mesmo entendimento, escusado
8 9
Cfr. Oliveira Martins, La Revision Constitucional y el Ordenamimento Portugues, pp. 194 e 215. Cfr. Lopes Praya, Direito Constitucional Portuguez, vol. I, pp. XXX-XXXI; Afonso Oliveira Martins, ob. cit., p. 216 e nota 455 .
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sera dize-lo, esteve na base, a partir da Constitui9ao de 1911, do proprio conceito de limite temporal ao poder de revisao. Como refere Jorge Miranda, as Constituiyoes monarquicas distinguiam, na sequencia da Constituiyao francesa de 1791, o momento em que se reconhece a necessidade de proceder arevisao e o momento em que se faz propriamente a revisao, exigindo assim a intervenyao do povo que, olhando ao merito da alterayao proposta, confere urn mandato especial aos novos Deputados 10 • A intervenyao popular parece estar tambem subjacente ao sistema de limites temporais instituido pelo artigo 284°, pois tendo a legislatura a dura9ao de quatro anos e s6 podendo a revisao ordinaria efectuar-se decorridos cinco an os sobre a anterior revisao ordinaria, esta ira sempre recair sobre uma nova assembleia 11• Identicas considerayoes poderiam ser tecidas a prop6sito dos sistemas de lirnites temporais previstos nas Constitui9oes de 1911 e 1933. Em conclusao, pode afirmar-se que os limites temporais ao poder de revisao constitucional visam, por urn lado, reagir contra a ideia de imutabilidade da Constituiyao, criando condi9oes para a sua alterayao peri6dica, e, por outro lado, procuram assegurarumamaiorproxirnidade entre arevisao constitucional e o corpo eleitoral.
3. ORIGENS DA IDEIA DE LIMITES TEMPORAIS NO PENSAMENTO POLITICO-CONSTITUCIONAL Como atras se referiu, a existencia de lirnites temporais ao poder de revisao tern sido uma constante no constitucionalismo portugues, tomando-se dificil encontrar outras experiencias constitucionais onde a coordenada temporal na defmiyao da competencia do legislador constituinte revele identica presenya.
°Cfr. Jorge Miranda, A Constitui91io de 1976, Formayao, Estrutura, Principios Fundamentais, p.
1
11
225, nota 20. Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constitui91io da Republica Portuguesa Anotada, 3• ed., p. 1051; Afonso Oliveira Martins, ob. cit., p. 387.
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A especificidade dos limites temporais nas constitui<;:oes portuguesas suscita desde logo a questao de determinar a respectiva origem. Tal origem pode ser identificada, ere-se, corn precisao: a ideia da defmi<;:ao do tempo da revisao resulta da influencia exercida por Jeremy Bentham sobre as Cortes portuguesas, influencia essa que deixou rasto em varias disposi<;:oes do texto da Constitui<;:ao de 1822 12 • Na sua carta aos portugueses, datada de 5 de Novembro de 1821, Bentham expoe os principios que segundo ele deveriam nortear a redac<;:ao da constitui<;:ao portuguesa, chamando particularmente a aten<;:ao para alguns erros da Constitui<;:ao de Cadis de 1812. Como e sabido, a Constitui<;:ao de Cadis estabeleciano seu artigo 375° que "Somente oito anos depois de a Constitui<;:ao, em todas as suas partes, ter sido posta em pratica podera propor-se qualquer altera<;:ao, aditamento ou reforma de algum dos seus artigos" 13 • Eprecisamente contra esta solu<;:ao que Bentham se insurge, aconselhando os constituintes portugueses a afastarem esta "clausula de imutabilidade, que pressupoe que os legisladores silo infaliveis, e proibe qualquer tipo de revisao durante nove anos". E Bentham prossegue: ''Nove anos! Sinto vergonha pela Espanha. ( ... )Pretender que a sua obra nao sofra qualquer altera<;:ao e pretender ser infalivel. Aqui os legisladores que ousaram at:ribuir-se a si pr6prios esta infalibilidade temeraria, tiveram corn dificuldade o tempo necessaria para pensar nesta obra que pretendem tomar inalteravel. E eu que passei mais de meio seculo a reflectir sobre estas materias, tanto ousaria dar urn anode existencia imutavel as minhas cria<;:oes politicas, como tomar-me a mim proprio por aquele Ser supremo, que apenas e imutavel porque infalivel" 14 • Mais adiante, Bentham revela ainda aquilo que considera ser urn efeito das clausulas de imutabilidade. Tais clausulas proibem "altera<;:oes legais: assim elas causam as modifica<;:oes ilegais. Nao se pode rever a Constitui<;:ao: ela sera violada" 15 • 12
Cfr., a este prop6sito, Maria Helena Carvalho dos Santos, "«A Maior Felicidade do Maior Numero.» Bentham ea Constitui91io Portuguesa de 1822", pp. 91 e ss . 13 Cfr. Jorge Miranda ( organizayao e traduyao ), Textos Hist6ricos de Direito Constitucional, 2a ed., p. 135. 14 Cfr. Oeuvres de Jeremy Bentham, t. Ill, p. 207 . 15 Cfr. Oeuvres de Jeremy Bentham, t. Ill, p. 209.
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Tambem Thomas Jefferson se insurgiu contra a ideia de imutabilidade das constitui<;oes, embora em moldes diversos. Para ele, o que estava em causa era urn problema de justi<;a entre gera<;oes: "De acordo corn as tabelas europeias de mmtalidade, a maioria dos adultos que vive em cada momento estani morta num periodo de dezanove anos. No fim desse periodo, existini, entao, uma nova maioria; ou, por outras palavras, uma nova gera<;ao. Cada gera<;ao e independente da que a precedeu, tal como de todas as anteriores. Cada gera<;ao tern o direito de escolher por si a forma de govemo que considere mais adequada apromo<;ao da sua felicidade" 16• No entanto, para J efferson, a mudan<;a constitucional implica, mais do que uma simples revisao, uma repeti<;ao, no espa<;o de cada gera<;ao, do processo que caracterizou a propria Revolu<;ao e, consequentemente, uma repeti<;ao do proprio processo constituinte. Por isso, sustentava a realiza<;ao de referendos que determinassem a forma de govemo e estabelecessem leis fundamentais todos os vinte ou trinta anos, ou seja, cada vez que se encontrasse formada uma nova gera<;ao. Deste modo, o constitucionalismo deveria obedecer a urn principio de auto-suficiencia das gera<;oes 17 • Estes dois modos de reagir contra a imutabilidade das constitui<;oes tern obviamente raizes teoricas muito distintas. No caso de Bentham, a critica da imutabilidade conduz arecusa das declara<;oes de direitos e tern sobretudo reflexos ao nivel do processo de revisao constitucional, nao pondo em causa a ornnicompetencia do corpo legislativo no ambito da constitui<;ao de urn Estado democnitico, uma vez que toda a limita<;ao da competencia legislativa contradiz, segundo Bentham, o principio da maior felicidade do maior mimero 18 • Pelo contrario, a critica da imutabilidade levada a cabo por Jefferson destina-se nao
16
Cfr. carta de Jefferson a Samuel Kercheval de 12 de Julho de 1812, in Thomas Jefferson, Writings, p. 1402; ideias semelhantes se poderiam colher no pensamento de Thomas Paine. 17 Este entendimento teve reflexos na Constituiy1io francesa de 1793, cuja Declarayao dos Direitos do Homem e do Cidadao proclamava, no respectivo artigo 28°, que "Uma gerayao nao pode sujeitar as suas leis as gerayoes futuras"; cfr. Jorge Miranda (organizafi:1io e tradufi:1io), Textos Historicos de Direito Constitucional, 2• ed., p. 78. 18 Cfr. Elie Halevy, Le Radicalisme Philosophique, vol. Ill, pp. 119 e ss .
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tanto a permitir rever a constitui9ao quanto a permitir faze-la de novo. Nao deixa de ser sintomatico, a este prop6sito, o facto de o principio da auto-suficiencia constitucional de cada gera9ao surgir, na Constitui9ao francesa de 1793, contemplado na Declara9ao de Direitos, previamente ao Acto Constitucional.
4. BREVE REFERENCIA AO DIREITO COMPARADO Ja atras foi referido que a defmi9ao de urn tempo da revisao constitucional e uma caracteristica do constitucionalismo portugues. Mas podemos ir mesmo mais longe e afirmar que tal defini9ao representa uma caracteristica especifica do nosso constitucionalismo no ambito do direito comparado. Corn efeito, para alem da primeira constitui9ao brasileira, gemea da Carta Constitucional, poucos sao os exemplos de textos constitucionais que apresentam uma defini9ao temporal do poder de revisao constitucional. Sem preocupa9oes de exaustao, nao se deixara, no entanto, de apontar duas constitui9oes em que e tratado, em moldes diversos, o tempo da revisao constitucional. Alias, estes do is exemplos reflectem tambem de algum modo as duas origens, atras mencionadas, da ideia de limites temporais no pensamento politico-constitucional. Assim, no seguimento da linha de influencia exercida por Bentham, o artigo 11 oo, n. o 6, da Constitui9ao da Republica da Grecia de 9 de Junho de 197 5, estabelece que "Nenhuma revisao da Constitui9ao e permitida antes de decorrido o prazo de cinco anos a contar do termo da revisao precedente." 19 â&#x20AC;˘ A semelhan9a do que acontece corn a Constitui9ao portuguesa, o espa9o de tempo que medeia entre duas revisoes e superior adura9a0 da legislatura, a quale de quatro an os, ao abrigo do artigo 53°.
19
E nao deixa de ser curioso notar que a influencia de Bentham se fez tambem sentir nos alvores do constitucionalismo da Grecia modema: cfr. Elie Halevy, Le Radicalisme Philosophique, vol. II, p. 182.
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Como decorre do proprio texto do nllinero 6 citado e da respectiva articula<;ao corn os restantes numeros do mesmo artigo 11 oo, o tempo e aqui claramente apresentado como urn limite ao poder de revisao e nao como urn elemento defmidor desse mesmo poder. Ao contnirio do que acontece corn a Constitui<;ao portuguesa, 0 simples decurso do tempo nao e suficiente para a atribui<;ao de poderes de revisao constitucional, tomando-se ainda necessaria, nos termos do artigo 11 oo, n.o 2, a verifica<;ao da necessidade de revisao atraves de delibera<;ao da Camara dos deputados tomada sob proposta de pelo menos cinquenta deputados e por maioria de tres quintos do nllinero total de membros da mesma Camara. Por outro lado, a Constitui<;ao grega estabelece uma clara distin<;ao entre o momento em que se decide proceder a revisao e o momento em que esta e levada a cabo, uma vez que estes momentos sao atribuidos a parlamentos sucessivos, como decorre do artigo 11 oo, n.o 3. 0 sistema de limites temporais da revisao previsto na Constitui<;ao grega parece assim aproximar-se mais daquele que era estabelecido pelas constitui<;5es monarquicas portuguesas do que daquele que veio a prevalecer a partir de 1911. Mas esta maior dificuldade veio a ser compensada pelo entendimento de alguma doutrina, segundo a qual a interdi<;ao da revisao constitucional, antes de expirado o prazo de cinco sobre o fim da revisao precedente, respeita apenas as disposi<;5es que hajam sido objecto de revisao 20 • 0 segundo texto constitucional que interessa aqui indicar ea Constitui<;ao polaca de 17 de Mar<;o de 1921, cujo artigo 125° preve, em paralelo corn urn processo de revisao normal exigindo maiorias qualificadas, urn processo de revisao que deveria ser levado a cabo pelas duas camaras, reunidas em Assembleia Nacional e deliberando por maioria simples, todos os vinte e cinco an os a contar da data da aprova<;ao da Constitui<;ao 21• Parece estar aqui subjacente a influencia de Jefferson e da ideia de auto-suficiencia constitucional de cada gera<;ao.
°Cfr. Antoine M. Pontelis, Les Grands Problemes de la Nouvelle Constitution Hellenique, p. 205 .
2
21
Cfr. Mirkine-Guetzevitch, Les Constitutions de !'Europe Nouvelle, p. 275.
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5. CONCLUSAO FINAL Como resulta do que atras ficou dito, as duas matrizes da ideia de limites temporais no pensamento constitucional conduzem a resultados opostos entre si. A matriz benthamiana visa facilitar a revisao da constituic;ao, a partir do seu interior; pelo contrario a matriz jeffersoniana pretende, de forma mais radical, criar condic;oes para a propria reelaborac;ao da constituic;ao. Disciplinar formalmente o impulso constituinte e urn objectivo que se afigura rutil, ao contrario do que sucedera corn a disciplina do poder constituido de revisao. Nao admira, pois, que a matriz jeffersoniana tenha tido escasso seguimento na historia do constitucionalismo. A matriz benthamiana nao deixa, no entanto, de encerrar perigos bem visiveis. Esses perigos consistem, muito simplesmente, em fazer da revisao constitucional urn mero exercicio de retorica da classe politica22 , urn expediente destinado a preencher ciclicamente uma agenda politica depauperada23 , em permitir o "nego~ialismo partidario" do debate constitucional amargem dos cidadaos 24 â&#x20AC;˘ Ora, o risco de tais perigos e aumentado pela progressiva dissociac;ao, verificada na nossa historia constitucional desde 1911 ate 1992, entre o simples decurso do tempo ea exigencia de uma maioria qualificada como condic;oes da realizac;ao da revisao constitucional, atraves da consagrac;ao daquele que atras se chamou urn regime de "cio constitucional". Essa dissociac;ao deve ser afastada, reintroduzindo-se a exigencia de uma votac;ao parlamentar qualificada (ainda que inferior amaioria de quatro quintos prevista para a assunc;ao de poderes de revisao extraordinaria) exprimindo o juizo sobre a propria necessidade de se proceder arevisao, como condic;ao de realizac;ao de qualquer revisao ordinaria25 â&#x20AC;˘ Cfr. as criticas arevisao de 1997 de Jorge Miranda, "A Quarta Revisao Constitucional", in Broteria, Janeiro de 1998, pp. 30-31. 23 Cfr. Ant6nio de Araujo e Miguel Nogueira de Brito, ob. e loc. cit. 24 Cfr. Gomes Canotilho, "Pela Mao de Mariana - A Prop6sito do Negocialismo Partidario na Revisao Constitucional, in Seara Nova, n. 0 56, Abril de 1997; cfr., ainda, Paulo Otero, 0 Acordo de Revisao Constitucional: Significado Politico e Juridico, Lisboa, 1997. 25 Tal alterayao induziria, naturalmente, algumas outras. Assim ter-se-ia de discutir, em primeiro lugar, se faz sentido manter o sistema segundo o qual, ap6s a assunyao de poderes de revisao, qualquer legislatura pode aprovar a revisao, se, pelo contrario, apenas a Assembleia cujo mandato abranger a epoca da revisao devera deter poderes de revisao (como sucedia na versao inicial da 22
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Eesta, actualmente, a unica revisao verdadeiramente necessaria, julga-se, da Constitui<;:ao de 1976, atraves da qual se alcan<;:aria o desiderata de tomar o sistema de limites temporais de revisao mais conforme aos principios que verdadeiramente o justificam: reagir contra a ideia de imutabilidade da Constitui<;:ao, criando condi<;:5es para a sua altera<;:ao periodica, e assegurar uma maior proximidade entre a revisao constitucional e o corpo eleitoraF6 â&#x20AC;˘
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Constituic;ao de 1933 e na Constituic;ao de 1911), ou, ainda, se se deveria estabelecerque aaprovac;ao de urn qualquer projecto de revisao ea aprovac;ao do texto final da revisao fossem efectuadas em legislaturas diferentes e sucessivas (como sucedia corn os sistemas previstos na Constituic;ao de 1822 e na Carta Constitucional). Julgo que pelo menos o primeiro sistema, actualmente vigente, sera de afastar, uma vez que propicia uma banalizac;ao da politica constitucional, associada ao "negocialismo pattidario" referido no texto. Por outro !ado, reconhec;o alguma dificuldade de conciliar o segundo sistema corn a reintroduc;ao da exigencia de uma aprovac;ao parlamentar do proprio projecto de revisao. Enfim, a morosidade do terceiro sistema poderia ser atenuada pela possibilidade de recurso arevisao extraordinaria. Uma segunda questao que se tomaria necessaria esclarecer seria a de saber se a votac;ao exprimindo o juizo da necessidade de revisao ordinaria deveria ter apenas esse mesmo conteudo ( como sucede corn a assunc;ao de poderes de revisao extraordinaria, prevista no artigo 284°, n. 0 2), ou deveriaja incidir sabre urn concreto projecto, ou projectos, de revisao. Qualquer destas opc;oes teria reflexos na redacc;ao do artigo 285°, n. 0 2, da Constituic;ao: a primeira envolvendo urn alargamento, pelo menos, do prazo ali previsto; a segunda inviabilizando o respective regime. Urn proposta semelhante foi, de resto, ja formulada por Miguel Galvao Teles na Assembleia da Republica, perante a Comissao Eventual para a Reforma do Sistema Politico, em Setembro de 2002.
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1. 0 influxo das telecomunicayoes na transforma<;iio do mundo do Direito ganhou uma dinamica impanivel sobretudo a partir dos anos 80 deste seculo, corn a introdu<;iio de tecnologia informatica nos equipamentos e servi<;os de telecomunica<;oes, criadora de progressiva diversifica<;iio e redu<;iio de custos e pre<;os dos respectivos meios e servi<;os. E tal evolu<;ao acentuou-se drasticamente a partir de meados dos anos 90, gra<;as ao explosivo crescimento da acessibilidade aInternet, que significou a transi<;iio de uma concep<;ao "fechada " das telecomunica<;oes para uma concep<;iio "aberta", caracterizada pela generaliza<;ao da acessibilidade aos respectivos servi<;os ou aplica<;oes, ate ao nivel dos pr6prios utilizadores domesticos. Esta nova realidade, geradora de redefini<;ao das estrategias dos Estados e das empresas, de desafios e oportunidades econ6micas e culturais, de qualidade de vida, e, porem, tambem fonte de urn born numero de temas criticos, entre os quais algumas questoes significativas na 6ptica dos seus reflexos sobre o Direito. Dessas problematicas, uma das principais diz respeito acontrata<;ao electr6nica: ou seja, autiliza<;ao dos meios de telematica ou tele-informatica no ambito das transac<;oes comerciais, como via para a transmissao das declara<;oes de vontade que consubstanciam a celebra<;ao de contratos comerciais e materializam a execu<;ao das presta<;oes por eles geradas. Realmente, embora a pessoa cornurn associe a ideia de contrato a urn documento escrito e assinado por duas ou mais partes, a verdade e que s6 numa pequena minoria de casos a celebra<;ao de contratos da origem a instrumentos escritos e subscritos pelos cont;raentes. Ao inves, nas transac<;oes comerciais entre empresas ou entre estas e os consumidores, para alem da imensa maioria de casos em que a transac<;ao e puramente verbal, mesmo os contratos escritos sao geralmente celebrados, na pratica habitual, pela troca de algumas mensagens distintas fisica e temporalmente, que materializam as declara<;oes de vontade pelas quais as partes reciprocamente se obrigam: consulta, oferta, aceita<;ao, factura, pagamento, recibo. Ora, como a nossa cultura negocial e juridica se achava tradicionalmente construida em tomo do uso de supmtes escritos em papel para tais mensagens,
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toda essa base cultural ficou posta em questao quando elas passaram a ser trocadas por via telematica. Ecerto que, a primeira vista, as mensagens trocadas entre participantes em transac9oes por meios electr6nicos nao divergem essencialmente dos documentos escritos em papel que tradicionalmente serviam para transmitir as comunica9oes de vontade negociais. 0 suporte e diferente, mas o conteudo e identico. Por isso, poem-se em rela9ao a esses documentos electr6nicos problemas semelhantes aos que o Direito enfrentou quanto aos documentos em papel. Eque a eficacia juridica dos documentos depende da confian9a que possam merecer como reprodu9oes fidedignas de factos ou objectos, em especial de manifesta9oes de vontade contratual de determinadas pessoas. Ora, sucede que a corpunica9ao telematica e muito celere, mas e impessoal quando nao implica a transmissao de voz e/ou imagem dos participantes: num contexto de transmissao telematica de mensagens escritas, e critica a possibilidade de o destinatario verificar a identidade do remetente, o que coloca em causa a aplica9ao de todas as regras legais e sociais que dependem da identifica9ao de uma pessoa em comunica9ao corn outra. 0 risco de alguem se fazer passar por outrem na emissao de mensagens telematicas faz emergir a ponta de urn "iceberg" que comporta mUltiplos aspectos, o principal dos quais reside na necessidade de confian9a dos parceiros em transac9oes de comercio electr6nico, ou em procedimentos administrativos conduzidos por via telematica, quanto a identidade real da outra parte corn quem visam relacionar-se. No caso do jovem mercado que a Internet abriu, emboraja se manifeste a dinamica irresistivel da sua expansao, existem fundados motivos para receio de fraudes, das quais boa parte poderao basear-se na simula9ao de identidades pessoais por terceiros de ma fe. Dai que se tome imperioso adoptar mecanismos que confiram as transacyoes teleinaticas 0 grau necessaria de seguran9a, j a que esta sempre foi o fundamento essencial do desenvolvimento das rela9oes econ6micas. Nesta perspectiva, suscitam-se em rela9ao aos documentos electr6nicos os olassicos tres tip os de problemas em tema de seguran9a:
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a) autenticidade, ou sej a, a correspondencia entre o autor aparente ·e o autor real do documento, que se comprova normalmente atraves de uma assinatura; b) integridade, isto e, a preserva<;ao dos documentos electr6nicos contra altera<;oes que lhes modifiquem o conteudo; c) enfllTI, a confidencialidade dos documentos, ou seja, a sua preserva<;ao contra o acesso por pessoas nao autorizadas, corn recurso a tecnicas de criptografia.
2. Epor isso que, no panorama do mais recente direito comparado, avulta a tomada por parte de varias organiza<;oes internacionais (Uniao Europeia, UNCITRAL, OCDE, CCI) e em multiplos paises (ja existem leis nos EUA, Alemanha, Italia, Espanha, Argentina, Colombia, entre outros; e sao conhecidos projectos legislativos em muitos mais) de varias iniciativas corn vista aformula<;ao de textos legislativos no sentido de criar condi<;oes de base favoraveis ao desenvolvimento em seguran<;a do Comercio Electr6nico. E reconhece-se que, entre essas condi<;oes, os alicerces fundamentais consistem na defini<;ao dos requisitos para que os documentos electr6nicos possam ser considerados como meio seguro de formaliza<;ao e de prova dos contratos e outros actos juridicos que atraves deles sejam formalizados. Dai, tambem, a importancia do requisito da assinatura dos documentos electr6nicos, sendo certo que a maior parte das experiencias legislativas ja empreendidas ou em projecto adoptam como processo tecnico a assinatura digital, a tecnologia mais actualizada e experimentada. Portugal integrou-se no grupo de paises que publicaram leis nesse sentido, atraves da publica<;ao do Decreto-Lei no 290-D/99, de 2 de Agosto, cujo projecto foi elaborado no quadro da "Iniciativa N acional para o Comercio Electr6nico", aprovada pela Resolu<;ao do Conselho de Ministros n° 114/98, a par de outro importante diploma sobre facturas electr6nicas: Decreto-Lei n° 375/99, de 18.9. Desde ja se faz notar que o Decreto-Lei no 290-D/99 foi publicado antes da Directiva 1999/93/CE, de 13.12.1999 (J.O.C.E. n°L 13, de 19.1.2000), relativa a urn quadro legal comunitario para as assinaturas electr6nicas, pelo que nao
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constitui formalmente illll diploma de transposivao desta Directiva para a ordem juridica intema portuguesa. Contudo, as versoes preparatorias da Directiva foram tidas em conta na elaboravao daquele Decreto-Lei e, nessa medida, este antecipa em larga medida a consagra9ao no direito intemo nacional da generalidade das soluv5es da Directiva.
0 regime instituido pelo Decreto-Lei no 290-D/99 nao se lirnita, porem, a conferir validade juridica aassinatura digital, abrangendo outros aspectos de grande importancia para o desenvolvimento dos aspectos economicos e politicoadministrativos da ~ociedade de Informavao. Tentarei, em seguida, dar uma ideia sumaria das principais disposiv5es des se diploma.
3. 0 primeiro tema a que o Decreto-Lei no 290-D/99 dedica atenvao e, precisamente, o da defmivao de regras bases sobre os documentos electronicos. 3.1 Desde logo, o art. 2°, al. a), define documento electronico como o docillllento elaborado mediante processamento electronico de dados. Note-se que nao se define aqui o que seja documento, fazendo-se, assim, uma remissao implicita para a definivao constante do art. 362° do Cod. Civil, que e tecnologicamente neutra, conforme entendimento corrente da doutrina juridica.
0 documento electronico e basicamente 0 docillllento formado mediante 0 uso de illll computador, realidade que e acessivel aexperiencia comillll de illlla pessoa media dos nossos dias. Esta categoria dos documentos nao e completamente homogenea, podendo classificar-se, de acordo corn os seguintes criterios: a) Corn base no modo de introduvao na memoria do computador, temos: documentos originarios, que sao introduzidos na memoria do computador atraves da reproduvao mecanica de urn facto extemo, em particular de urn precedente documento escrito; e documentos derivados, cuja introduvao na memoria do computador se faz atraves de equipamentos memorizadores a ele conexos: leitores opticos, voice recognizers, ou sensores .
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b) Consoante o modo como os documentos sao produzidos pelo computador, podem distinguir-se: documentos electronicos em sentido estrito, que sao recolhidos em forma digital na memoria do computador, ou em fitas magneticas, ou em discos magneticos ou opticos, e sao destinados apenas a ser lidos pelo computador, pelo que nao podem ser lidos ou apercebidos pelo hornem a nao ser atraves de equipamentos tradutores que tornem perceptiveis e compreensiveis os sinais digitais pelos quais sao constituidos; e documentos electronicos em sentido amplo, ou simplesmente documentos informaticos, que sao todos os gerados pelo computador atraves dos seus equipamentos perifericos - impressora, "plotter", bra9o dum robot, etc.-, de modo a serem lidos ou interpretados pelo homem sem necessidade de utiliza9ao de equipamentos tradutores. 3.2 0 artigo 3° do Decreto-Lei n° 290-D/99 visa essencialmente resolver as questoes fundamentais de direito probatorio material respeitantes ao valor dos documentos electronicos como meios de prova dos factos por eles revelados ou indiciados, introduzindo assim certas limitayoes no principio geral·da livre aprecia9ao desses documentos pelo julgador. Eo que sucede, p. ex., quando se atribui o valor de prova plena aos documentos que preencham certos requisitos, ou relativamente aos quais se verifiquem certas vicissitudes. Ora, a lei civil distingue entre o valor probatorio dos documentos escritos, aos quais se referem os arts. 363° a 367° do Cod. Civil; e dos documentos que, nao revestindo forma escrita, constituam uma "reprodu9ao medinica de factos ou coisas", tais como "as reprodu9oes fotognificas e cinematognificas, os registos fonognificos" e outros, na linguagem tecnologicamente datada do art. 368° do Cod. Civil.
0 no 1 deste artigo 3° do Decreto-Lei no 290-D/99 toma claro que o documento electronico que contenha uma declarayao escrita e, para todos os efeitos, urn documento escrito; ou seja, que a m era circunstancia de o texto estar acessivel ao leitor apenas no monitor de urn computador ou num terminal video, antes e a margem da sua impressao em papel, nao retira a esse texto o canicter de urn escrito. Assim, se o acto documentado estiver legal ou convencionalmente sujeito
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ao requisito de forma escrita, esse requisito sera para todos os efeitos de considerar como preenchido por urn docurnento electronico que contenha urna declaravao escrita. 3.3 A assinatura dos docurnentos e requisito de enorme importa.ncia, porque urn documento nao assinado nao tern legalmente valor superior a qualquer outro meio de prova comum, isto e, nao pode de modo nenhum atingir a forva probatoria plena que cabe aos docurnentos autenticos (art. 371°, 1, Cod. Civil) e autenticados (art. 377° Cod. Civil), bem como aos documentos particulares assinados cuja letra e assinatura, ou so assinatura, sejam consideradas verdadeiras (art. 376°Cod. Civil). Ora, se os documentos electronicost: podem e devem considerar-se como documentos escritos, e preciso todavia examinar a questao do seu valor probatorio. E e ela que ono 2 do artigo 3° visa resolver. Desde logo, notar-se-a que o artigo 3° se mantem neutro face aclassificavao dos docurnentos em autenticos e particulares, constante do n° 1 do art. 363° do Cod. Civil. Mas a conjuga9ao do disposto no presente artigo corn o art. 5° viabiliza a emissao de docurnentos electronicos autenticos, desde que estes sejam exarados por urn agertte da autoridade ou oficial publico revestido de competencia legal para esse fim (art. 369° do Cod. Civil) e este neles aponha a sua assinatura digital. Reconhece-se, no entanto, que, no estado actual do nosso direito notarial, existem obstaculos ao preenchime.nto pelos docurnentos electronicos de todas as formalidades legais exigidas para os actos notariais, em especial as relativas ao formalismo dos respectivos livros e apresencialidade da assinatura dos outorgantes e do funcionario (cfr. o art. 363°,2, Cod. Civile o arts.7° a 34° e 46°, 1, al. n, do Cod. do Notariado). Ja a exigencia legal, para determinados actos ou contratos, de forma escrita de documento particular assinado (cfr. os arts. 363° e 364° do Cod. Civil) passa a ficar inequivocamente satisfeita se ela constar de documento electronico corn assinatura digital do( s) respectivo(s) outorgante( s), por forva do disposto no no 2 do artigo 3°.
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Importa, todavia, ter presente que o confronto dos n°s 2 e 5 deste mesmo artigo conduz a uma distin9ao importante. So o documento electronico portador de uma assinatura digital exarada ao abrigo de urn certificado de assinatura emitido por uma entidade certificadora que se ache credenciada ao abrigo do presente diploma e que gozani da for9a probatoria prevista no art. 3 7 6° do Cod. Civil (vd. o n° 2). Ja se a entidade certificadora emitente do certificado de assinatura nao se achar credenciada em conformidade corn a lei portuguesa (arts. 9° e segs. do presente diploma) ou nao beneficiar de uma equipara9ao nos termos do art. 37°, embora ela esteja admitida ao exercicio da actividade de certifica9ao por for9a do principio de livre aces so constante do art. 9°, o documento assinado ao abrigo desse certificado tera apenas o valor probatorio que resultar da sua aprecia9ao nos termos gerais de direito. Ou seja: nao deixara de serum documento escrito e assinado, mas nao tera em principio for9a probatoria plena, antes sera apreciado segundo o livre criterio do julgador. 3.4 Por seu tumo, ono 3 do citado artigo 3o disciplina o valor probatorio dos documentos electronicos que nao revistam forma escrita, submetendo-o ao regime dos arts. 368° do Cod. Civile 167° do Cod. de Processo Penal, desde que aos documentos em causa seja aposta uma assinatura digital certificada por uma entidade credenciada nos termos deste diploma e que reuna os demais requisitos neste formulados. 3.5 0 n° 4 do mesmo artigo 3° ressalva ainda urn outro importante aspecto relativo afor9a probatoria dos documentos electronicos, permitindo que, ao abrigo da autonomia da vontade (art. 405° do Cod. Civil) seja conferido especifico valor probatorio a documentos desta natureza, que recebam uma assinatura ou outra forma de identifica9ao do autor, ou de comprova9ao da sua integridade, em conformidade corn urn meio tecnico eleito mediante uma conven9ao sobre prova ou aceite pela pessoa perante a qual se pretenda fazer valer o documento. Em especial, poderao assim tomar-se admissiveis outras modalidades de assinatura electronica (cfr. o art. 2°, al. b), como forma de identificar os autores dos documentos onde forem apostas, se forem assumidas atraves de uma
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convenvao sobre prova. Tal tipo de convenvao e, no nosso ordenamento, perfeitamente compativel corn os termos do art. 345° do C6d. Civil,ja que dela nao parece, em principio, poder resultar uma inversao do 6nus da prova 1, nem a exclusao ou admissao de urn meio de prova, ou a violavao de determinav5es legais fundadas em razoes de ordem publica2 • Fica, assim, explicitamente consagrada na lei a validade, p. ex., de convenv5es em contratos de uso de PIN para utilizavao de cartoes bancarios, ou para uso de password para acesso a certos servivos de telecomunicav5es, etc. 3.6 0 artigo 4° do Decreto-Lei no 290-D/99 vem clarificar o valor juridico das c6pias dos documentos electr6nicos, de modo a eliminar as duvidas que se poderiam opor a uma mera interpreta9ao extensiva ou actualizadora das normas do art. 387° do C6d. Civil - que alude especificamente a "c6pias fotograficas"e 168° do C6d. de Processo Penal- que se refere a "reproduvao mecanica" de documentos.
0 regime legal aplica-se tanto as c6pias que constituam documento electr6nicos em sentido estrito como tambem as c6pias consistentes em documentos informaticos. 3. 7 Tern particular importancia o artigo 5° do Decreto-Lei no 290-D/99, que clarifica a viabilidade da emissao de documentos electr6nicos pelos servivos e organismos publicos de qualquer natureza, designadamente para a formalizavao dos respectivos actos administrativos, desde que tais documentos sejam digitalmente assinados pelos agentes competentes. Esta norma situa-se, alias, na linha de orientavao travada ja no "Livro Verde
1
Alias, mesmo sobre o onus da prova si'io, em principio, admissiveis conveni;5es deste tipo, a menos que versem sobre direito indisponivel ou dificultem excessivamente o exercicio do direito (n° 1 do art. 345°). 2 A adopi;i'io de uma conveni;i'io sobre a prova pode ser solui;i'io adequada em qualquer meio de comercio electr6nico e mesmo no que toca avida intema de uma empresa, como forma de conferir valor probat6rio aos documentos electr6nicos stricto sensu ne la gerados.
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para a Sociedade da Informa<;ao em Portugal", na "Iniciativa N acional para o Comercio Electr6nico", aprovada pela Resolu<;ao do Conselho de Ministros n° 114/983, e, mais concretamente, na Resolu<;ao do Conselho de Ministros n° 60/ 98 4 eo art. 26° do Decreto-Lei n° 135/99, de 22.4, que vieram estabelecer o dever de as direc<;oes-gerais, servi<;os equiparados e institutes publicos disponibilizarem endere<;os de comercio electr6nico para efeito de contactos pelos cidadaos e entidades publicas e privadas e divulga-lo de forma adequada e equipararam o valor da correspondencia transmitida por essa via electr6nica a trocada em suporte de papel, ressalvando apenas os efeitos que dependam de assinatura ou autentica<;ao dos documentos, ate a adop<;ao de urn diploma regulador da autentica<;ao dos documentos electr6nicos (que e, precis?-mente, 0 Decreto-Lei no 290-D/99). 3.8 Alguns problemas especificos poderao suscitar-se no tocante a possibilidade de certos tipos de documentos revestirem forma electr6nica. Porventura o merecedor de mais destaque e a factura electr6nica (art. 476° do C6d. Comercial), regulada pelo Decreto-Lei n° 375/99, de 18.9, cujaautonomiza<;ao resulta claramente do intuito do legislador de preservar especificamente as necessidades de fiscaliza<;ao da Administra<;ao Fiscal.
0 art. 1o deste diploma, ap6s permitir expressamente a transmissao por via electr6nica da factura ou documento equivalente (no 1), estabelece o principio fundamental da equivalencia das facturas electr6nicas a facturas em papel, desde que aquelas seja aposta uma assinatura digital, nos termos do Decreto-Lei no 290-D/99. Criou-se, assim, uma conexao entre o regime dos dois diplomas, corn urn requisite de seguran<;a- a assinatura digital - que pode parecer excessive face as necessidades da dinamica comercial, mas se podera justificar numa primeira fase de implanta<;ao do sistema de valida<;ao da factura electr6nica, corn o escopo de impedir fraudes. Esta mesma perspectiva de politica legislativa parece justificar tres outras linhas
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"Diario da Republica", I Serie-B, n° 201, de 1.9.1.1 998 "Diario da Republica", I serie-B, no 104, de 6-5- 1998.
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de condicionamento da validayao da factura electr6nica estabelecidas no DecretoLei no 375/99. Assim: 0 art. 2° impoe aos sujeitos passivos fiscais que pretendam utilizar factura9ao electr6nica o dever de solicitar autorizayao aDirecyao-Geral dos Impostos, a qual deveni responder ao pedido num prazo de tres meses, considerando-se tacitamente concedida a autoriza9ao se nao houver resposta dentro desse prazo, a menos que ocorra a suspensao do prazo por solicita9ao de documentos ou esclarecimentos ao requerente. A autoriza9ao caduca se, urna vez atribuida, nao for iniciada pelo requerente a emissao de factura9ao electr6nica dentro do prazo de urn ano a contar da data que comunicar aDGI como sendo aquela em que tenciona iniciar essa pnitica. Urn outro meio de controlo resulta do art. 3°, cujo no 1 obriga aconserva9ao das facturas, corn o seu conteudo original acessivel por ordem cronol6gica da sua emissao pelo emissor e da sua recep9ao pelo receptor nos prazos e condi9oes fixados na legisla9ao fiscal aplicavel aconserva9ao das facturas em suporte papel (em geral, 10 anos ). Mas o n° 2 deste artigo obriga a urn requisite suplementar de seguran9a, denunciador de uma clara hesita9ao na passagem a "idade informatica'': exige-se a conserva9ao em suporte papel durante os prazos referidos no nlimero anterior de urna lista sequencial das facturas, docurnentos equivalentes e outras mensagens emitidas e recebidas e das correc9oes ou eventuais anomalias, podendo a administra9ao fiscal fundamentadamente determinar a conserva9ao de c6pias digitais em suportes independentes. Como bem observou o Dr. M. LOPES ROCHA, «parece aqui imiscuir-se claramente o temor do legislador (e da Administrayao) de que as empresas mantenham urna contabilidade ad usurn fisci», pretendendo a administra9ao fiscal «ter urn retrato fiel do funcionamento real do sistema, uma contraprova ao sistema "desmaterializado" que possa ser accionado em caso de duvida». E mais : o legislador «para alem desta reconstituiyaO "em papel'' permite aadministrayao fiscal exigir, discricionariamente, urna outra reconstitui9ao desta vez em "c6pia digital" em suporte indepenqente». Enfim, uma derradeira linha de meios de controlo reside nos poderes de
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fiscaliza<;:ao atribuidos aDGI, em do is tipos de momentos distintos: Por urn lado, nos termos do no 5 do art. 1o, duraq.te o procedimento de outorga de autoriza<;:ao para emissao de factura<;:ao electr6nica a DGI podeni realizar as verifica<;:oes nos estabelecimentos e equipamentos do requerente, do prestador de servi<;:os de camara de compensa<;:ao de mensagens ou de outra entidade que preste servi<;:o de recep<;:ao, registo, guarda e encaminhamento de mensagens5 • Por outro lado, o art. 4° confere a DGI o poder de, em qualquer momento, verificar nas instala<;:oes dos contribuintes, bem como nas dos prestadores dos servi<;:os de camara de compensa<;:ao de mensagens ou nas de outras entidades que prestem servi<;:o de recep<;:ao, registo, guarda e encaminhamento de mensagens, se o sistema cumpre os requisitos legalmente exigidos, mediante as opera<;:oes tecnicas necessarias para constatar a sua fiabilidade. A recusa, resistencia ou obstru<;:ao a estas ac<;:oes fiscalizadoras sera punida corn a cessa<;:ao automatica da autoriza<;:ao de utiliza<;:ao do sistema de factura<;:ao electr6nica. Alias, estas normas mais nao fazem do que reiterar poderes que a DGI ja detem, por for<;:a do art. 76° e seguintes do CIVA. E tambem deter em conta, a este respeito, o regime do Decreto-Lein° 413/98, de 31 de Dezembro, que aprova o regulamento da inspec<;:ao tributaria. 3.9 0 artigo 6° do Decreto-Lei no 290-D/99 resulta do reconhecimento de que, para criar condi<;:oes seguras para o desenvolvimento do comercio electr6nico, importa estabelecer tambem a disciplina legal da transmissao dos documentos electr6nicos por meios de telecomunica<;:oes, ou seja, da sua comunica<;:ao telematica. Trata-se, pois, de regular a eficacia das declara<;:oes de vontade comunicadas adistancia, entre sujeitos ausentes, poise delas que essencialmente se formam os contratos e outros actos juridicos electr6nicos. 0 que implica uma revisao das regras legais basicas sobre o processo de forma<;:ao de contratos.
5
Sobre estas de compensac;ao" cfr. MIGUEL PUPO CORREIA - JOSE MARIANO, Introduc;ao Prob1ematica Juridica do Edi, 2• Edic;ao, Marconi, Lis boa, 1991.
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Geralmente, tern sido reconhecido que os contratos formados por meios telematicos sao contratos como outros quaisquer, dotados da mesma fon;:a juridica. Sob este aspecto, portanto, basicamente o que resulta do artigo 6° e urn ganho de certezajuridica, pois ele confirma apenas aquilo que pareciaja plenamente sustentavel em face do direito antecedente. Mas as normas dos diversos nillneros deste artigo vem tambem clarificar alguns aspectos de suma importancia para o desenvolvimento das rela9oes de comercio electr6nico, porquanto: Do no 1 resulta a necessidade da conven9ao, expressa ou tacita, de urn endere9o electr6nico (expressao que a al. 1do art. 2° define como a «identifica9ao de urn equipamenton informatico adequado para receber e arquivar documentos electr6nicos») do destinatario da declara9ao de vontade, para que esta produza o seu efeito negocial. Claro esta que, na maior parte dos casos, esta conven9ao se fara de forma tacita, mediante o fomecimento pelo proponente do seu endere9o electr6nico- p. ex., do seu endere9o de correio electr6nico - ea resposta, pelo aceitante, confirmativa deter recebido a proposta no seu respectivo endere9o. Mas, em outros casos, a conven9ao sera expressa, como acontecera, p. ex., num relacionamento contratual por EDI, em que as partes deverao estabelecer os respectivos endere9os electr6nicos no respectivo Interchange Agreement. Por seu lado, o n° 2 regula o valor juridico da valida9ao cronol6gica (que a al. j do art. 2° define como a «declara9ao de entidade certificadora que atesta a data e hora da cria9ao, expedi9ao ou recep9ao de urn documento electr6nico» ), no tocante acomprova9ao da data e da hora dos factos de cria9ao, expedi9ao ou recep9ao de urn documento electr6nico, permitindo assim fixar corn extrema precisao o momento de produ9ao dos respectivos efeitos. 0 n° 3 tern por principal escopo integrar as normas, abundantes na lei positiva e em contratos de execu9ao continuada, que exigem ou preveem comunica9oes por carta registada e por carta registada corn avi so de recep9ao, estabelecendo que tais comunica9oes obedecerao a esses requisitos quando sejam feitas por meio telematico corn os requisitos indicados.
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3.10 Importa realc;ar que as disposic;oes sobre documentos electr6nicos sao, na generalidade, imediatamente aplicaveis, nao dependendo, portanto, da regulamentac;ao do Decreto-Lei, a qual s6 se tomara indispensavel para a plena exequibilidade das normas relativas aassinatura digital.
4. Entretanto, dado que a forc;a probat6ria dos documentos electr6nicos esta relacionada corn a aposic;ao de uma assinatura digital, forc;osa e a analise do regime adoptado pelo Decreto-Lei n° 290-D/99 para este tipo de assinatura.
4.1 Como se sabe, a palavra assinatura significa, numa acepc;ao ampla, qualquer sinal ou acto pelo qual o autor de urn documento se identifica e manifesta a sua concordancia corn o conteudo declarativo dele constante, isto e, o meio de autenticac;ao pelo proprio autor do documento por ele gerado. 0 meio tradicional e, como se sabe, a chamada assinatura aut6grafa (ou assinatura stricto sensu). Mas a lei civil e, tambem aqui, tecnologicamente neutra, nao referindo a que modalidade de assinatura se refere, para preenchimento desse requisito de autenticac;ao dos documentos (cfr. o art. 3 73 a do C6d. Civil). Assim, o que o Decreto-Lei no 290-D/99 vem fazer, no seu artigo 7°, e tomar claro que a assinatura digital e uma forma valida de assinatura de documentos, nos termos trac;ados neste artigo. Como decorre do confronto do no 2 do artigo 1o e do confronto das alineas b) e c) do artigo 2° deste diploma, a assinatura digital constitui uma especie dentro do genero assinatura electr6nica, sendo aquela que, por ora, e acolhida legalmente no ordenamento legal portugues. Isto, claro esta, sem embargo de outras modalidades de assinatura electr6nica poderem ter relevancia juridica por via convencional, merce do disposto no ja aludido n° 4 do artigo 3° do diploma de que falamos. A assinatura electr6nica e urn meio de identificac;ao do autor de urn documento electr6nico, resultante de urn processamento electr6nico de dados. Esta designac;ao recobre varios processos tecnicos, designadamente: c6digo secreto
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(p. ex., password ou PIN); assinatura digitalizada (reprodu<;ao da assinatura aut6grafa do autor por urna "scanner"); assinatura digital ou criptografica; chave biometrica (processo de identifica<;ao pessoal, corn base no reconhecimento de caracteristicas fisicas do individuo por equipamento adequado ). Por seu lado, a assinatura digital e uma modalidade de assinatura electr6nica consistente nurn "selo electr6nico"(no impressivo dizer da SIG alema) que e acrescentado a urn docurnento e que e criado atraves de urn sistema criptografico assimetrico, que gera e atribui ao respectivo titular urna chave privada e uma chave publica. ' Dispenso-me de descrever este processo tecnico, sobre o qual existe ja abundante literatura acessivel. Limito-me a assinalar q~e, na economia do Decreto-Lei no 290-D/99, a sua descri<;ao resulta, fundamentalmente: a) das defmi<;oes basicas constantes das alineas c) (assinaturadigital), d) (chave privada), e) ( chave publica), h) (entidade certificadora) e i) (certificado de assinatura) do artigo 2°; b) dos artigos 7°, n° 4, e 8°, no que toca aassinatura digital; c) dos artigos 9° a 24o, no que toca acredencia<;ao das actividades certificadoras; d) dos artigos 25° a 28°, no que toca aactividade das entidades certificadoras credenciadas; e) e dos artigos 29° a 32° no que toca aos certificados de assinatura. 4.2 0 reconhecimento juridico da assinatura digital resulta da ci:mstata<;ao de que este processo tecnico: a) Prova ao destinatario a identidade do subscritor do docurnento e, portanto, prova que o conteudo deste e uma manifesta<;ao da vontade do seu autor; b) Nao pode ser falsificada, pois a chave privada pela qual ela e gerada s6 e conhecida pelo seu titular, o subscritor; c) Nao pode ser repetida em outros documentos, pois cada assinatura em concreto e formada a partir do documento ao qual e aposta e nao pode ser transferida para outro documento;
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d) Impede que o documento seja modificado depois de assinado, pois permite detectar qualquer alterac;ao que nele seja introduzida. A verificac;ao positiva de uma assinatura digital conduz, por conseguinte, a urn elevadissimo grau de certeza juridica da autenticidade da autoria e da integridade da mensagem ou outro tipo de documento ao qual ela seja aposta, porquanto comprova seguramente que a assinatura foi aposta pelo seu titular eo docurnento nao foi alterado desde o seu envio ao destinatario. Ela oferece, assim, urn elevado nivel de seguranc;a, satisfazendo o objective legal da exigencia de assinatura para atribuic;ao de valor probat6rio aos documentos escritos. Sao estes o sentido e os fundamentos do comando contido no n째 1 do artigo 7째 do Decreto-Lei n째 290-D/99, que enuncia enfaticamente o valor juridico da assinatura digital, equiparando-a a assinatura aut6grafa tradicional e enunciando o significado e os efeitos juridicos da aposic;ao de uma assinatura valida. Alias, urn enunciado que, ao que se saiba, ate agora nao fora feito no nosso direito positivo para qualquer tipo de assinatura, o que desde ja traduz urn valor acrescentado assinalavel da presente norma. Convem notar, apenas, que os aspectos focados nas alineas a) e b) do n째 1 deste artigo sao aplicaveis, v.g., a assinatura aut6grafa, mas o mesmo nao sucede corn o constante da al. c).
0 no 1 em aprec;o declara, portanto, uma presunc;ao legal - obviamente ilidivel por prova do contrario- de que no documento electr6nico ao qual foi aposta uma assinatura digital se verificam as tres func;oes desta e os correspondentes efeitos praticos e juridicos: a) Func;ao identificadora, pela qual a assinatura atribui inequivocamente a declarac;ao ao signatario, estabelecendo a autoria deste, ou em seu nome proprio, ou como representante de uma pessoa colectiva; b) Func;ao finalizadora ou confirrnadora, que nao s6 exprime a conclusao espacial do documento escrito, mas tambem o assentimento do signatario quanto as declarac;oes de vontade e/ou de conhecimento dele constantes, assumindo-as como sendo pr6prias dele e estando correcta e completamente expressas no texto precedente;
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c) Fun9ao de inalterabilidade,ja que a verifica9ao positiva de urna assinatura digital pelo destinatario cornprova que o docurnento ao qual ela foi aposta nao foi alterada ap6s a aposi9ao da assinatura, ate asua recepyao pelo destinatario. 4.3 Para alern disso, alguns outros aspectos de grande irnportancia sao focados nos restantes mirneros deste artigo. 0 n째 2 proibe a contitularidade de urna assinatura digital - ou seja, do respectivo certificado e do inerente par de chaves criptograficas - por duas ou rnais pessoas, rnas permite que seja dela titular urna pessoa colectiva. Neste caso, sera de regra a definivao das pessoas singulares habilitadas corn poderes de representayao que lhes permitarn utilizar a chave privada para aposiyao de assinaturas digitais: tal definivao podera constar do proprio certificado da assinatura ou de urn certificado cornplernentar (cfr. o art. 25째, al. c). 0 no 3 equipara a assinatura digital a todos os outros sinais identificadores que sejarn exigidos por lei ou convenvao. Assirn, nos docurnentos assinados por este rneio, deixara de ser necessario o carirnbo de urna sociedade, o selo branco de urn servi9o publico, etc. 0 n째 4 contern urn enunciado de extrerna irnportancia, porque define a regra basica acerca da aposi9ao de urna assinatura digital. Esta regra, pode dizer-se, polariza todos os elernentos constitutivos do regime da assinatura digital, que se desenvolvern ern outras normas do diploma ern aprevo e que sao: a) a existencia de urn par de chaves criptograficas, publicae privada; b) a utiliza9ao da chave privada para geravao da assinatura digital; c) a correspectividade necessaria da chave privada achave publica; d) a ernissao de urn certificado que contenha a chave publica, por urna entidade ce1tificadora credenciada nos term os deste diploma; e) a validade do certificado, quer quanto a sua ernissao, quer por nao estar suspenso, nern revogado, nern caduco por ultrapassagern do seu prazo de validade.
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0 n° 5 comina a consequencia juridica da inexistencia da assinatura, se esta se basear nurn certificado revogado, caduco ou suspenso. 4.4 0 artigo 8° completa o artigo anterior e estabelece conexao corn o regime do art. 29°, definindo a necessidade de obter urn par de chaves criptograficas e respectivo certificado, emitido por urna entidade certificadora credenciada, para que se possam apor assinaturas digitais validas e eficazes nos termos do presente diploma. Os pares de chaves poderao ser criados pelas entidades certificadoras, ou corn meios proprios do proprio titular o.u de terceiro, devendo, neste caso, a entidade certificadora verificar a sua adequa<;ao tecnica e, perante conclusao positiva, emitir o certificado de assinatura respectivo.
5. 0 valor probatorio pleno de urn docurnento electronico corn assinatuia digital depende, face ao regime do art. 7°, n° 4, do Decreto-Lei n° 290-D/99, da emissao a favor do seu titular de urn certificado de assinatura por uma entidade certificadora.
Enos artigos 9° e seguintes (Sec<;ao I do Capitulo Ill) que se contem a disciplina legal do acesso aactividade de certifica<;ao, que se pauta pelos seguintes pontos fimdamentais:
5.1 Em primeiro lugar - na esteira do regime da Directiva comunitaria estabelece-se no art. 9° a liberdade de acesso aactividade de certifica<;ao e o caracter facultativo da respectiva credencia<;ao no ambito intemo. Logo, qualquer pessoa singular ou colectiva pode exerce-la, corn ou sem credencia<;ao. Como ja dissemos, a proposito do no 5 do artigo 3°, o requisito legal da credencia<;ao - pelo Instituto das Tecnologias de Informa<;ao na Justi<;a, do Ministerio daJusti<;a (Decreto-Lei n° 234/2000, de 25.9)- constitui apenas urn pressuposto para que os documentos electronicos portadores de tal tipo de assinatura gozem do especial valor probatorio que as disposi<;oes deste Decreto-
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Lei lhe conferem. E e de notar que sao equiparadas as entidades certificadoras credenciadas no Pais as que forem reconhecidas por qualquer Estado-membro da Uniao Europeia (art. 37°). No entanto, os documentos portadores de assinaturas digitais baseadas em chaves criptognificas emitidas por entidades nao credenciadas nao sao destituidos de valor probat6rio, embora de menor grau, pois apenas serao livremente apreciados nos termos gerais de direito.
Etambem livre a escolha da entidade certificadora, nao podendo condicionarse a celebra<;ao de urn dado neg6cio juridico a escolha de urna dessas entidades determinada (artigo 10°). Tal como induz a Directiva comunitaria, a credencia<;ao de uma entidade certificadora nao depende de autoriza<;ao previa, isto e, de urn acto dependente de urna vontade discricionana da Administra<;ao PUblica portuguesa, mas sim e somente da reuniao de urn conjunto de requisitos subjectivos e devidamente docurnentados (artigos 12° a 17°), os quais, se verificados, darao automaticamente origem ao deferimento da credencia<;ao, que podera ser tacito se nao for comunicado no prazo de tres meses ( artigo 18°) e s6 podera ser recusado corn fundamento na inobservancia de tais requisitos (artigo 19°). Tern tambem o mesmo caracter vinculado as hip6teses legais de caducidade (artigo 20°) e de revoga<;ao (artigo 21 °) da credencia<;ao. 5.2 Esta liberdade de acesso nao significa, porem, urn desinteresse do legislador e da Administra<;ao publica pelo correcto exercicio da actividade de certifica<;ao, em termos que legitimem a indispensavel confian<;a porparte dos sujeitos juridicos. Assim, as normas contidas na Sec<;ao II do Capitula Ill defmem urn estatuto do exercicio da actividade pelas entidades certificadoras, no qual avulta urn conjunto de importantes obriga<;oes que elas deverao observar. No artigo 25°, contem-se o elenco geral desses deveres, aos quais o artigo 26°
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adita aqueles que especificamente se relacionam corn a recolha e utiliza<;:ao de dados pessoais por aquelas entidades. 0 artigo 27° acrescenta a advertencia da responsabilidade civil em que tais entidades incorrem, insusceptivel de exonera<;:ao ou limita<;:ao. Eo artigo 28° completa esta materia corn normas acauteladoras das consequencias da cessa<;:ao da actividades das entidades certificadoras. Acrescem, ainda, as obriga<;:oes relativas a colabora<;:ao corn a actividade fiscalizadora da entidade credenciadora, impostas pelo artigo 33° e seguintes. 5.3 A certeza da titularidade da assinatura digital obtem-se atraves de urn certificado emitido pela entidade certificadora, que e urn docurnento electr6nico, acessivel em ambiente informatico a qualquer interessado na sua consulta, cuja fonte oficial cria a certeza de que a pessoa que apoe uma assinatura digital ea titular da respectiva chave publicae, por conseguinte, tambem da respectiva chave ptivada. Trata-se de urn documento dotado de urn especial valor probat6rio, cujos emissao, conteudo e condi<;:oes de validade, revoga<;:ao e suspensao sao detalhadamente especificados pelos artigos 29° a 32° do Decreto-Lei n° 290D/99. No tocante aemissao, avulta no regime do artigo 29° a preocupa<;:ao de que seja cuidadosamente vetificada pela entidade certificadora a identidade da pessoa a favor de quem emitir o certificado de assinatura (no 1), bem como em que seja assegurada a inalterabilidade dos dados constantes deste (n° 3). E tambem enfatizado o dever de fomecimento aos titulares dos certificados das informa<;:oes necessalias para urna utiliza<;:ao con·ecta e segura do sistema de assiantura digital (n° 4). Reveste-se de extrema importancia a obliga<;:ao da entidade certificadora elaborar e manter actualizado e disponivel aconsulta de qualquer interessado urn registo ou reposit6rio dos certificados por ela emitidos, suspensos e revogados (no 5 do artigo 29°). Ea esse registo que se deverao dmgir todas as pessoas que pretendam verificar a autenticidade de urna assinatura digital constante de urn documento
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electr6nico, emitida por urn titular de urn certificado, j a que a chave publica que permite tal verificac;:ao eurn dos elementos fulcrais da informac;:ao constante do certificado. A esta luz, bem se compreende a importancia da enumerac;:ao dos elementos minimos que os certificados devem conter (artigo 30째), bem como as regras sobre a suspensao e revogac;:ao dos certificados, que essencialmente tern aver corn a eventual perda ou suspeita de perda de confidencialidade da chave privada (artigo 31 째).
Eesta eventualidade que constitui o fulcro das fundamentais obrigac;:oes do titular do certificado de assinatura e, concomitantemente, do respectivo par de chaves, enunciadas no artigo 32째 do diploma em aprec;:o: ele deve fundamentalmente tomar todas as medidas necessarias para preservar a confidencialidade da chave privada; se suspeitar da sua perda, pedir de imediato a sua suspensao e, se confirmada tal perda, a sua revogac;:ao; e, a partir de alguma destas medidas, respeitar a proibic;:ao de utilizar a chave privada para gerar assinaturas digitais.
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11 JURISPRUDENCIA ANOTADA
Acordao n. 0 3/99, p. 197-253
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTI(:A
Ac6RDA.o N. o 3/99* Sumario. Terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5. o do C6digo do Registo Predial, sao os adquirentes, de boa fe, de urn rnesrno transrnitente cornurn, de direitos incornpativeis, sobre a rnesrna coisa. Processo n. 0 1050/98- 2.a Secyao. - Acordam em pleno das secyoes civeis do Supremo Tribunal de Justiya: Maria Femanda de Jesus Contente Felicio e marido, Joaquim Roldao Felicio, deduziram contra o Banco Nacional Ultramarino, S. A. , embargos de terceiro. Alegaram, em sintese: • Sao donos da fracyao autonoma designada pela letra K, correspondente ao resdo-chao, B, do predio sito na Rua de Cesario Verde, 12, Costa da Caparica, descrito na 2.a Conservatoria do Registo Predial de Almada sob o n. 0 0042/ 070185 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2691; • Adquiriram a fracyao por escritura publica de 22 de Junho de 1987; • So vieram a registar a aquisiyao em 10 de Setembro de 1996; • A dita fracyao foi penhorada em 9 de Maryo de 1995 e a penhora foi registada provisoriamente, por duvidas, em 8 de Novembro de 1995, sendo o registo convertido em definitivo em 15 de Julho de 1996. Pediram, consequentemente, que os embargos fossem recebidos e julgados provados e procedentes, dando-se sem efeito a penhora ofensiva do seu direito. Os embargos foram recebidos e contestados, prosseguindo os autos ate ao despacho saneador sentenya. Deram-se como assentes os factos alegados pelos embargantes e acima resumidos, uma vez que se consideraram provados no processo pelos ' Publicado in D.R. n.0 159, 1-A, de 10 de Ju1ho de 1999.
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competentes documentos autenticos, cuja autenticidade o embargado nao pos em causa. Naquele despacho foram os embargos julgados totalmente improcedentes, mantendo-se a validade da penhora, corn base nos seguintes fundamentos: ÂŤDe acordo corn o disposto no n.0 1 do artigo 5. 0 do C6digo do Registo Predial, os factos sujeitos a registo s6 produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo. A aquisi9ao do direito de propriedade sobre im6veis esta sujeita a registo, nos termos do disposto no artigo 2. 0 , n. 0 1, alinea a), do CRP. 'Terceiros', para efeitos de regis to predial, sao to dos os que, tendo obtido registo de urn direito sobre determinado predio, veriam esse direito arredado por facto juridico anterior nao registado ou registado posterimmente (v. Ac6rdao, corn for9a obrigat6ria geral, do STJ n. 0 15/97, de 20 de Maio, in Diario da Republica, 1.a serie, de 4 de Julho de 1997). Este conceito amplo de 'terceiro' era ja o defendido por vasta doutrina e jurisprudencia (v., por todos, o referido ac6rdao) e o mais consentaneo corn a finalidade do registo (v. artigo 1. 0 do CRP). Do exposto concluo que o embargado e terceiro (para efeitos do disposto no mtigo 5. 0 do CRP), pelo que o direito nao registado dos embargantes nao lhe e oponivel.Âť Recorreram os embargantes e, nas suas alega9oes de recurso, solicitaram a subida directa do recurso a este Supremo, nos term os do mtigo 725. o do C6digo de Processo Civil (CPC), facto que nao mereceu oposi9ao por parte do reconido. Concluiram, deste modo, as alega9oes recursivas:
1- Diz a sumula do ac6rdao uniformizador dajurisprudencia invocado: 'Terceiros, para efeitos de registo predial, sao todos os que, tendo obtido registo de urn direito sobre determinado predio, veriam esse direito arredado por urn facto juridico anterior nao registado ou registado posteriormente.' 2 - 0 ac6rdao supoe que ha urn direito registado que, por isso, nao deve ser anedado por facto juridico, ainda que anterior, mas nao registado ou registado posterimmente, sendo este o seu entendimento correcto, pela sua sumula perante
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o caso concreto que o provocou. 3 - No caso dos presentes ernbargos a situa9ao e diferente, pois aqui M urn contrato de cornpra de frac9ao, feita pelos ernbargantes, nao registada oportunarnente, isto e, antes da sua penhora, ernbora o registo da penhora seja anterior ao registo daquela cornpra. 4 - A penhora, diligencia judicial no arnbito da execu9ao, nao confere qualquer direito, nao constitui direito a favor do exequente, constituindo urn onus, rnas nao o direito que o ac6rdao supoe. 5 - Por outro lado, a cornpra da frac9ao transfere a propriedade dela para os ernbargantes por efeito do contrato [artigo 879. 0 , alinea a), do CC], nao sendo o registo predial constitutivo. 6- Nao havendo qualquer direito resultante da penhora, nao sendo esta urn direito, nao se verifica o pressuposto: direito registado de que fala o ac6rdao, susceptivel de ser anedado pela cornpra anterior, nao registada oportunarnente, feita pelos ernbargantes. 7 - A decisao reconida faz enada aplica9ao do ac6rdao uniformizador, ao supor que M urn direito registado oponivel a cornpra da frac9ao pelos ernbargantes e consequente aquisi9ao da propriedade. 8 - Por outro lado, a senten9a violou os citados dispositivos do CC: artigo 408. 0 , n. 0 1, e artigo 879. 0 , alinea a), pois nao conternplou o facto da transferencia da propriedade a favor dos ernbargantes por for9a do contrato da cornpra e venda, independenternente do registo. 9 - Os ernbargantes, ora reconentes, tern a posi9ao de terceiros, ex vi do artigo 351. 0 , n. 0 1, do CPC, nao sao parte na causa. 10 -A execu9ao estao sujeitos apenas os bens do devedor - artigo 821. o do CPC, sendo a venda judicial urna venda for9ada efectuada pelo Estado que, assirn, se substitui ao dono da coisa objecto de penhora, e, nos termos do artigo 892. 0 , e nula a venda de bens alheios sernpre que o vendedor care9a de legitirnidade para a realizar e, urna vez que o irn6ve1 penhorado nao pertence ao patrirn6nio do executado (pertence aos ernbargantes), o Estado carece de legitirnidade para efectuar a venda e, entao, a venda enula, nulidade que ede conhecirnento oficioso. 11 - Nao deve o tribunal colocar-se na posi9ao inc6rnoda de praticar acto da venda nula e, rnantendo-se a penhora, propondo-se vender a frac9ao, o tribunal a quo viola os citados dispositivos do n.0 1 do artigo 351. 0 e do artigo 851. 0 do CPC e do artigo 892.0 do CC. 12 - Caso a penhora se rnantenha, os ernbargantes - cujo direito de propriedade sobre a frac9ao esta provado docurnentalrnente - terao de perconer o cornplicado
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ou, pelo menos, mais demorado caminho do protesto, anulac;ao da venda, reivindicac;ao, etc., para obterem o resultado substancial que nos embargos se pretende e que no processo de embargos pode ser obtido corn seguranc;a, mandando o p1incipio da economia processual, subjacente ao artigo 351. 0 , n. 0 I, citado, que os embargos sejam julgados procedentes e levantada a penhora e tambem por aqui este artigo se mostra violado pela sentenc;a recorrida. 13 - Tanto bastani para que a sentenc;a recorrida seja revogada, julgando-se procedentes os embargos e levantada a penhora. 14 - Acresce que ao Estado compete garantir a efectivac;ao dos direitos fundamentais dos cidadaos (artigo 2.0 da Constituic;ao da Republica) eo direito a propriedade privada e garantido pela Constituic;ao (artigo 62. 0 ) e tern dignidade constitucional, nesta medida tendo natureza amiloga aos direitos fundamentais (artigo 17.0 ) . 15 - Quando o Estado penhora, mantem a penhora, e depois, substituindo-se ao devedor, vende o hem penhorado que sabe ser de terceiro (os ora embargantes), apesar de o artigo 851. 0 do CPC dizer que s6 os bens do devedor respondem pelas dfvidas, viola os citados dispositivos da Constituic;ao (artigos 2. 0 , 62. 0 e 17.0 ) p01路que entao estamos perante uma nova forma de privac;ao forc;ada da propriedade, privac;ao que nao se esgota nas figuras da requisic;ao e de expropriac;ao referidas non.o 2 do artigo 62. 0 da Constituic;ao ea sentenc;a recorrida nao contemplou estes textos da Constituic;ao, violando-os. 16 - Caso se considere que o ac6rdao uniformizador em referencia e aplicavel ao caso, entao tambem, na sumula, ele nao contempla os artigos 2. 0 , 62. 0 e 17. 0 da Constituic;ao, nos mesmos termos referidos corn relac;ao a sentenc;a recorrida, violando-os. 17 - Conclusoes anteriores levam a que, caso se entenda aplicavel aqui o ac6rdao uniformizador em referencia, se considere que e viavel a sua revisao e substituic;ao por outro ac6rdao que, na uniformizac;ao da jurisprudencia, fixe o conceito tradicional de terceiros, unico capaz de assegurar a protecc;ao do direito de propriedade privada garantida na Constituic;ao e entao a alterac;ao do ac6rdao uniformizador de vera ser no sentido de que a expressao ' terceiros' para efeitos do registo predial tern o alcance restrito tradicional, de adquirentes, do mesmo autor, de direitos incompatfveis sobre certa coisa. 18 -A possibilidade de revisao do ac6rdao uniformizador, a pedido dos interessados, esta prevista no n.0 2 do artigo 732. 0 do CPC e sublinhada no preambulo do Decreto-Lei n.0 329-A/95, de 18 de Agosto. 19 - Finalmente, a titulo acess6rio, invoca-se a nulidade derivada do facto de a
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senten<;:a recorrida ser omissa quanto a posse dos embargantes e seus factos alegados - omissao de questao que o Tribunal devia conhecer- artigo 668 .0 , n. 0 1, do CPC e que aqui pode ser invocada - artigo 722 .0 , n. 0 3, do mesmo C6digo, nulidade que deve ser declarada, corn as consequencias legais. 20 - No presente recurso s6 ha questoes de direito a decidir e, considerando isto, requerem, ao abrigo do artigo 725. 0 , n .0 1, do CPC, que o presente recurso seja enviado directamente ao Supremo Tribunal de Justi<;:a. 2 1 - Requerem tambem que, se for entendido que o ac6rdao uniformizador em referencia e aqui aplicavel e que e viavel a sua substitui<;:ao por outro, o julgamento se fa<;:a corn interven<;:ao do plenario das sec<;:oes civeis - cf. artigo 732 .0 -A do CPC . Em contra-alega<;:oes, o recorrido pronuncia-se pela manuten<;:ao do decidido. Por despacho de fls . 68 e 69, o Exmo. Juiz reconheceu haver omissao de pronuncia e supriu a nulidade, pronunciando-se sobre a materia em questao, mas mantendo, na integra, a parte decis6ria da senten<;:a.
0 recurso foi admitido para ser processado como revista, nos te1mos do artigo 725. 0 , n. 0 5, do CPC. Remetidos os autos ao Exmo. Conselheiro Presidente, a fim de ajuizar da conveniencia de julgamento ampliado, para eventual altera<;:ao do ac6rdao unificador vigente, obteve-se decisao no sentido de se viabilizar a eventual revisao da jurisprudencia. Nos termos do artigo 732. 0 -B, n. 0 1, do CPC, os autos foram ao Ministerio Publico para emissao de parecer. 0 Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto concluiu do seguinte modo: ÂŤFace ao exposto, somos de parecer que, como resultado do julgamento ampliado do presente recurso de revista, se devera decidir, alem do mais, pela manuten<;:ao e confirma<;:ao da jurisprudencia uniformizada atraves do Acordao deste Supremo Tribunal datado de 20 de Maio de 1997, publicado no Diario da Republica, l.a serie-A , de 4 de Julho de 1997, bem como no Boletim do Ministerio da Justi<;:a, n. 0 467, pp. 88 e segs.Âť Corridos os vistos, cumpre decidir.
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Objecto do recurso: a) Inaplicabilidade do acordao unificador vigente ao caso presente; b) Responsabilidade apenas dos bens do devedor; c) Nulidade da venda de bens alheios; d) Ac9ao de reivindica9ao; e) Inconstitucionalidade da forma de priva9ao da propriedade; f) Inconstitucionalidade do proprio acordao unificador; g) Revisibilidade do referido acordao unificador h) Omissao de pronuncia. Emerge dos autos a situa9ao factica ja acima arrolada e que se resume no seguinte: • Os recorrentes compraram uma frac9ao autonoma e nao a registaram; • 0 recorrido, credor do vendedor da frac9ao, obteve a penhora desta e registou-a; • A referida compra so depois foi registada. Consequencias. -Para a analise da questao fundamental , objecto do recurso, que se situa no ambito do conceito de terceiro para efeitos de registo, vamos mencionar, em primeiro lugar, duas posi9oes basicas contrastantes sobre a materia em causa e, em seguida, procuraremos tomar a posi9ao reputada mais consentanea corn a ortodoxia juridica actual. Alinha em tese proxima da tradicional Orlando de Carvalho e, corn reservas, no encal9o da tese dissidente adoptada no Acordao unificador de jurispmdencia de 20 de Maio de 1997 1, Carvalho Femandes.
I - POSI<;AO DE ORLANDO DE CARVALH02 • Pressupostos: 0 direito portugues e, nos terrnos do artigo 408. 0 do Codigo Civil, urn sistema rigorosamente de titulo, na medida em que nao so nao incorpora urn modo no titulo, mas tambem nao acolhe a regra «posse vale titulo». E, assim, urn sistema
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In Diario da Republica, 1." serie-A, de 4 de Julho de 1997. Expressa in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, n.0 70 (1994), pp. 97 e segs .
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rigorosamente causal e, em principio, consensual. Pelo que e indispensavel uma publicidade suficiente para afastar os enormes riscos para o publico, donde a importancia do principio da publicidade como compensador da causalidade e consensualidade, salvaguardado por urn onus de registo, a cargo dos conservadores do registo predial. 0 registo predial portugues e urn registo: • De aquisiyoes ou de muta9oes 3 ; • Declarativo4 ; • Facultativo 5 • • Bases do sistema: Emerge o caracter declarativo: a verdade material nao substitui a registal ou tabular, mantendo-se as duas verdades, cada uma corn o seu regime e esfera especificos. Citando-se Coviello: «a transcriyaO e uma f01ma externa que nao exerce nenhuma influencia sobre a substancia do neg6cio: se este e nulo ou anulavel, fica tal como era mesmo depois de transcrito. Aquela nao sana os vicios do titulo, nao cria direitos, apenas os conserva. Havendo colisao entre o direito fundado num titulo valido mas nao trans-crito, e urn titulo transcrito mas nulo ou anulavel por razoes de forma ou de substancia, e sempre o primeiro que tera a prevalencia». A transcriyao constitui, porem, urn alet1a para os interessados, ja que o registo proporciona tres especies de efeitos: • Efeito imediato ou automatico, inerente ao registo defmitivo: presun9ao iuris tantum da titularidade do direito, conforme o registo o define 6 ; • Efeitos laterais: todos os que se produzem independentemente dos outros dois 7 ; • Efeito essencial ou central: inoponibilidade a terceiros dos factos sujeitos a registo enquanto este se nao fizer, acompanhada da substitui9ao, em materia de
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0 que se regista s1io as vicissitudes do dominio, as mudan9as da sua titularidade. Mera condi91io de eficacia da aquisi91io, n1io condi91io da validade. S6 nas hipotecas pode ser constitutive. 5 Na medida em que a sua falta, embora possa ter consequencia, nao infringe nenhum dever. 6 Artigo 7. 0 do CRP. 7 Artigos 291. 0 , 435. 0 , 1294. 0 e 1295. 0 do CC. 4
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prevalencia, da regra da prioridade da aquisi9ao pela da prioridade da inscri9ao 8• 0 registo dirige-se, pois, mais apublicidade do que aplenitude da garantia, 0 que se reporta ao seu canicter declarativo, buscando-se a publicidade da aquisi9ao, competindo aos interessados tomar as respectivas precau9oes. 0 instrumento da precau9ao assenta em ser o registo condi9ao de oponibilidade do direito, conf01me o registo o demarcou, perante terceiros corn pretens5es colidentes ou contradit6rias. Portanto, age acautela-damente quem regista, sob pena de consequencias que sibi imputant. Ora, sendo este o sistema portugues, o que devem ser terceiros para este fim? Adapta-se, em principio, a tal situa9ao o conceito tradicional, segundo o qual, nos termos de Manuel Andrade, terceiros sao «os que do mesmo autor ou transmitente recebem sobre o mesmo objecto direitos total ou parcialmente incompativeis». lsto pressup5e que 0 transmitente ou causante e urn dos adquirentes e a domino 9 •
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mesmo, pois, nao
0
sendo, s6
Assim, conclui-se que o conceito de terceiro e o delineado por Manuel Andrade, substituindo-se, porem, o adjectivo «incompativeis» por «conflituantes». lsto para nao excluir os cas os de concurso de direitos reconhecidos por lei (direitos reais de garantia, direitos reais de aquisi9ao ) 10 • E conclui este ilustre professor: «A 16gica do mecanismo fica perfeitamente clara. Se A vende validamente a B, B nao regista, e A vende, em seguida, a C e C regista, a venda a B, sendo embora venda a domino, perante C e como se nao existisse. Por isso, a venda a C, sendo uma venda a non domino, funciona como uma venda a domino e, porque C regista, prevalece sobre a de B, fazendo o direito deste decair. 0 registo, mediante o efeito central, cobre a ilegitimidade do tradens que resulta da aliena9ao feita aB: ou seja, que resulta de uma anterior disposi9ao valida, ao inves da tutela da boa fe, que s6 permite cobrir a ilegitimidade do tradens
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Artigos 5. 0 e 6. 0 do CRP. Esta doutrina comet;ou a ser questionada a partir de 1960 pela posit;ao de Gama Vieira e pela de Oliveira Ascensao e Meneses Cordeiro, corn base no artigo 17. 0 , n. 0 2, do CRP, para a! em da que na alinea (beta)) abordaremos. 0 ' V. g., hipoteca e consignat;ao de rendimentos.
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(o vicio suprivel e sempre este), mas que resulta de uma anterior disposi9ao invalida.»
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POSI<;::AO DO ACORDAO REFERIDO E DE CARVALHO
FERNANDES 11 • Foram os seguintes a delibera9ao jurisprudencial unificadora eo teor do respectivo aresto, actualmente em vigor: «Terceiros, para efeitos de registo predial, sao todos os que, tendo obtido registo de urn direito sobre determinado predio, veriam esse direito ser arredado por qualquer facto juridico anterior nao registado ou registado posteriormente.» Sua fundamenta9ao: «Transferindo-se a propriedade da frac9ao predial em causa para o embargante, por mero efeito do contrato de compra e venda, nos termos dos artigos 408. 0 , n. 0 1, e 879. 0 , alinea a), do C6digo Civil, dir-se-ia que a posterior penhora de tal frac9ao em execu9ao instaurada contra o vendedor e ineficaz em rela9ao ao comprador, de todo estranho ao processo executivo. As coisas nao podem, porem, ser vistas corn esta simplicidade. Ha que considerar, no caso, as regras do registo predial. A transmissao da titularidade do direito de propriedade e apenas urn efeito essencial do contrato de compra e venda. Simplesmente, a eficacia nao pode ser vista somente num piano intemo (entre vendedor e comprador, ou seus herdeiros), mas tambem num piano exterior (em rela9ao a terceiros). E neste piano ha que tomar em conta os principios do regis to predial. A aquisi9ao do direito de propriedade sobre im6veis esta sujeita a registo- artigo 2. 0 , n. 0 1, alinea a), do C6digo do Registo Predial. Como o esta igualmente a penhora - alinea m) do n. 0 1 do mesmo artigo 2.0 •
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Expressa na Revista da Ordem dos Advogados, ano 57, Dezembro de 1997, pp. 1303 e segs.
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Os factos sujeitos a registo s6 produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo - artigo 5. 0 , n. 0 1, do citado C6digo do Registo Predial. Assim, pretendendo-se que a eficacia do contrato de compra e venda de bens im6veis nao fique confinadaaoplano intemo (artigo 4. 0 , n. 0 1, do C6digo do Registo Predial), ha que o levar ao registo, pois este e pressuposto da sua eficacia relativamente a terceiros. Enquanto o acto nao figurar no registo, o alienante aparece, em rela9ao a terceiros, como titular do direito que transferiu por mero efeito do contrato de aliena9ao. 0 que deve, porem, entender-se por terceiros para efeitos do registo predial? Num conceito mais restrito, terceiros sao apenas as pessoas que, relativamente a determinado acto de aliena9ao, adquirem do mesmo autor ou transmitente direitos total ou parcialmente incompativeis. Trata-se da defini9ao de Manuel de Andrade, Teoria Geral da Rela9ao Juridica, vol. II, p. 19, considerando-se apenas a hip6tese da dupla aliena9ao do mesmo direito real. Nao e, porem, exacto que s6 possa falar-se de terceiros quando o transmitente ou alienante seja comum. Como e referido por Oliveira Ascensao, Efeitos Substantivos do Registo Predial na Ordem Juridica Portuguesa, pp. 29 e 30, citado no Ac6rdao deste Supremo de 18 de Maio de 1994, in Colectil.nea de Jurisprudencia, ano II, t. 2. 0 , p. 113, 'pm路ecenos seguro que semelhante concep9ao [a concep9ao restrita] e incompativel corn dados actuais da lei sobre registo. Porque existem hoje textos categ6ricos a estabelecer a aquisi9ao por meio de registo, em termos que nao temja nada aver corn as hip6teses de dupla disposi9ao de direitos incompativeis sobre a mesma coisa. Essas hip6teses sao a da aquisi9ao de urn direito em consequencia da disposi9ao realizada pelo titular aparente, por for9a de registo formalmente invalido [hoje o n. 0 2 do artigo 17. 0 ] ea da aquisi9ao de urn direito de invalidade substancial, que vem prevista no C6digo Civil [efeita aqui referencia ao artigo 291 .o des se C6digo]. Assim sendo, o conceito de terceiros tern de ser amplo, de modo a abranger outras
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situa<;oes que nao somente a dupla transmissao do mesmo direito'. Terceiros, como referem Antunes Varela e Henrique Mesquita, Revista de Legisla<;ao e de Jurisprudencia, ano 127.0 , p. 20, 'sao nao s6 aqueles que adquiram do mesmo alienante direitos incompativeis mas tambem aqueles cujos direitos, adquiridos ao abrigo da lei, tenham esse alienante como sujeito passivo, ainda que ele nao haja intervindo nos actos juridicos (penhora, arresto, hipoteca judicial, etc.) de que tais direitos resultam' . Este entendimento e tambem o defendido por Vaz Serra, Revista de Legisla<;ao e de Jurisprudencia, ano 103.0 , p. 165, quando escreve: 'Pode dizer-se que, se urn predio for comprado a determinado vendedor e for penhorado em execu<;ao contra este vendedor, o comprador e o penhorante sao terceiros: o penhorante e terceiro em rela<;ao a aquisi<;ao feita pelo comprador, e este e terceiro em rela<;ao apenhora, pois os direitos do comprador e do penhorante sao incompativeis entre si e derivam do mesmo autor.' E, de seguida, acrescenta o mesmo professor: 'A no<;ao de terceiro em regis to predial ea que resulta da fun<;ao do registo, do fim tido em vista pela lei ao sujeitar o acto a registo, e, pretendendo a lei assegurar a terceiros que o mesmo autor nao dispos da coisa ou nao a onerou senao nos termos que constarem do registo, esta inten<;ao legal e aplicavel tambem ao caso da penhora, ja que o credor que fez penhorar a coisa carece de saber se esta se encontra, ou nao, livre e na propriedade do executado.' Defendendo-se este conceito amplo de terceiros, para efeitos de registo predial, pronunciaram-se Pires de Lima e Antunes Varela, C6digo Civil Anotado, vol. II, 3.a ed., n. 0 4 do artigo 819. 0 , e Anselmo de Castro, A Ac<;ao Executiva Singular, Comum e Especial, 3.a ed., p. 161. S6 este conceito amplo de terceiros tern em devida conta os fins do registo e a eficacia dos actos que devam ser registados. Na verdade, se o registo predial se destina essencialmente a dar publicidade a situa<;ao juridica dos predios, tendo em vista a seguran<;a do comercio juridico imobiliario (cf. artigo 11. 0 do C6digo do Registo Predial), tao digno de tutelae aquele que adquire urn direito corn a interven<;ao do titular inscrito (compra e venda, troca, doa<;ao, etc.) como aquele a quem a lei permite obter urn registo sobre o mesmo predio sem essa interven<;ao (credor que regista uma penhora,
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hipoteca judicial, etc.). No caso que nos ocupa, o credor embargado eo embargante sao terceiros. Por assim ser, e porque a compra efectuada pelo embargante nao foi levada ao registo antes de a penhora ter sido registada, e aquela ineficaz em relas;ao a esta, devendo a execus;ao prosseguir os seus termos. Nao importa apurar se o credor exequente agiu de boa ou ma fe ao nomear a penhora a fracs;ao predial em causa. E que a eficacia do registo e independente da boa ou ma fe de quem regista. Como ensinaram Antunes Varela e Henrique Mesquita, Revista de Legislas;ao e de Jurisprudencia, ano 127. 0 , p. 23: 'o registo destina-se a facilitar ea conferir segurans;a ao trafico imobiliario, garantindo aos interessados que, sobre os bens a que aquele instituto se aplica, nao existem outros direitos senao os que o registo documenta e publicita. Os direitos nao inscritos no registo devem ser tratados como direitos "clandestinos", que nao produzem quaisquer efeitos contra terceiros. Se os efeitos do registo fossem impugnaveis pelo facto de o titular inscrito ter sabido ou ter podido saber, antes de requerer a inscris;ao, que havia direitos incompativeis nao registados, o instituto do registo deixaria de proporcionar a segurans;a ea comodidade que constituem as suas finalidades principais' .Âť Consideras;oes, em sintese, de Carvalho Fernandes: A questao nao se coloca exclusivamente na escolha entre duas conceps;oes, uma amp la e outra restrita, de terceiros para efeitos de registo, mas antes na configuras;ao de dois regimes diferentes de tutela de terceiros. Caracterizas;ao do sistema do registo predial portugues: Conjugas;ao do disposto no artigo 408. 0 do C6digo Civile no n. 0 1 do artigo 5. 0 do C6digo do Registo Predial. Para tal desiderato importa invocar o disposto nos artigos 7. 0 e 6. 0 do CRP. A presuns;ao emergente do disposto no artigo 7. 0 cria uma situas;ao registal
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desconforme corn a substantiva, mas insusceptivel de ser ignorada por respeito func;:ao consignada no artigo 1. 0 do CRP 12 â&#x20AC;˘
a
Por outro lado, o principio da prioridade contido no artigo 6. 0 da prevalencia ao direito primeiramente inscrito, nao obstante a eventual mais-valia no aspecto substantivo. Corolarios no plano da eficacia normal consolidativa: Efeito aquisitivo (constitutivo). Embora o disposto no citado artigo 5.0 , n.0 1, nao possa ser entendido em termos absolutos, pois nem sempre a eficacia externa dos actos registaveis depende do regis to, e certo que, em relac;:ao a determinados terceiros, a sua eficacia nao opera enquanto nao forem registados . Neste sentido o regis to consolida as situac;:oes juridicas emergentes desses actos, ao assegurarlhes eficacia interna e externa. Este efeito opera nao s6 quando ocorre uma dupla alienac;:ao sucessiva por alguem que e titular inscrito do direito alienado, quando 0 segundo adquirente inscreva antes do primeiro, mas tambem quando, inexistindo qualquer registo, urn terceiro adquira e registe urn direito de outra natureza incompativel 13 corn o neg6cio nao inscrito. De qualquer modo, o efeito do registo e sempre aquisitivo. Este efeito (aquisitivo), porem, nao ocorre em casos de ma fe 14 â&#x20AC;˘ Assim, e nos tetmos referidos, perfilha-se o conceito amplo de terceiros. Noutro piano situa-se a tutela dos direitos de terceiros resultantes do disposto no artigo 291. 0 do C6digo Civile dos artigos 17.0 , n. 0 2, e 124.0 do CRP. Trata-se dos casos de terceiros que adquirem de quem nao tinha legitimidade para alienar, por motivo de vicio substantivo ou de regis to, que inquina a situac;:ao juridica do alienante. Tambem, por forc;:a das referidas disposic;:oes, se pode verificar uma aquisic;:ao tabular, situac;:ao nao englobada da doutrina do mencionado ac6rdao. 12
Publicidade para seguran<;a do comercio juridico imobiliario. Incompatibilidade absoluta no primeiro exemplo e relativa, no segundo. 14 Para outros, s6 se verifica havendo aquisi<;ao a titulo oneroso e de boa fe; outros s6 a titulo oneroso; outros ainda quando a incompatibilidade resulta de actos juridicos sucessivos do mesmo alienante.
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Esta e, pois, na sua essencia, a posic;:ao do referido anotador.
III - VEJAMOS. 1 - Os factos suj eitos a registo, ainda que nao registados, podem ser invocados entre as pr6prias partes ou seus herdeiros, corn a situac;:ao especifica da hipoteca 15 • Aqueles factos , porem, e salvo algumas excepc;:oes, s6 produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo 16 • Isto na perspectiva do escopo regis tal essencial: dar publicidade asituac;:ao juridica dos predios, tendo em vista a seguranc;:a do comercio juridico imobiliario 17 • Por isso se entende que tal publicidade constitui condic;:ao de eficacia dos actos registaveis, relativamente a terceiros. S6 que, a partir desta base teleol6gica, sem duvida, de grande relevo para a tranquilidade do comercio juridico, depara-se corn inarredaveis escolhos geradores de efeitos perversos, eles pr6prios genese de intranquilidade e que levam a compreensao da fractura da jurisprudencia e da doutrina quanto a esses efeitos. Perante a doutrina do referido aresto unificador, Isabel Pereira Mendes 18 afirma que:«[ ... ] esta de parabens o registo predial, porque foi substancialmente fortalecida a sua importancia e dignidade no mundo do direito. Fez-se ajustic;:a que se impunha. Dedicou-se a atenc;:ao a este assunto e evidenciou-se o valor da seguranc;:a juridica que constitui o grande trunfo desta instituic;:ao». Mas a que prec;:o? 2 - Numa perspectiva conceptual assente, como se viu, fundamentalmente, na autoridade do saudoso mestre, Manuel Andrade 19», seguida tradicionalmente pela jurisprudencia, terceiro, como se constatou, eo que adquiriu20 , de urn autor comum,
Artigo 4. 0 , n.0 2, do CRP. Artigo 5.0 do CRP. As excep9oes sao: usucapiao, servidoes aparentes, factos relativos a bens indeterminados. 17 Artigo 1. 0 do CRP. 18 Citada no referido parecer do Ministerio Publico . 19 Teoria Geral da Rela9ao Juridica, II, n. 0 57. No mesmo rumo, entre outros, Manuel Salvador, in Terceiros e os Efeitos dos Actos ou Contratos, p. 209. 20 Quer a aquisi9ao resultasse de acto voluntario, quer for9ado. Exemplo: arremata9ao em hasta publica. Esta arremata9ao nao e, na verdade, uma venda feita espontanea e voluntariamente pelo exequente. A determina9ao da sua natureza juridica tern oscilado entre a venda feita pelo juiz em 15 16
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direitos incompativeis. Para o Ac6rdao do STJ de 17 de Fevereiro de 199421 , «terceiro e aque1e que tenha a seu favor a inscric;ao registal dum direito e, por isso mesmo, nao possa ser afectado pela produc;ao dos efeitos de urn acto que esteja fora do registo e corn ele seja incompativel». Tal conceito ultrapassa, assim, a restritividade do posicionamento tradicional. A este respeito, Antunes Varela22 entende que, se e certo o conceito de terceiro, para efeitos de registo predial, nao abranger quem, sobre determinada coisa, adquiriu direitos incompativeis de sujeitos diferentes, <~a nao e exacto que s6 deva falar-se de terceiros quando exista urn transmitente ou alienante comum». Assim, ainda no entender deste ilustre professor, no conceito de terceiro devem incluir-se aqueles que sobre uma coisa alienada pelo seu titular «adquiram contra este, mas sem o concurso da sua vontade, direitos de natureza real atraves de actos permitidos por lei, em regra actos judiciais ou que assentem numa decisao judiciaF 3». Tal posic;ao envolve, obviamente, uma ampliac;ao do conceito tradicional, vindo ao encontro de certezas registais, meta efectivamente desejavel e indispensavel para a tranquilidade dos cidadaos envolvidos no comercio imobiliario, que sao milh5es, ja que, praticamente, quase toda a gente, durante o percurso vivencial, mais cedo ou mais tarde, se envolve em actos desta natureza. Tambem Vaz Serra24 entendia que o penhorante e terceiro para efeitos de registo nome do Estado, no exercicio da sua funt;ao jurisdicional executiva (M. Andrade, N or;oes Elementares de Processo Civil, p. 172) e o acto misto de direito privado em relar;ao ao adquirente e de direito publico quanto ao vendedor (Ans. de Castro, A Acr;ao E. S. C. e Esp., p. 255). De qualquer modo, o que realmente ocorre e verdadeiramente caracteriza tal venda forr;ada e a inerente coerr;ao: o vendedor (executado) e obrigado a vender ao comprador (arrematante) que ofereceu o melhor prer;o, procurando-se dar satisfar;ao aos creditos do exequente e eventuais reclamantes. Trata-se, porem, de uma verdadeira venda em que a propriedade passa directamente do executado para o comprador, embora por intermedio do juiz (Estado ), normalmente subordinada como tal a regra nemo plus juris re aliena transferre potest quam ipse habet. Tal resulta, alias, do disposto no artigo 909. 0 , n. 0 1, alinea d), do C6digo de Processo Civil, assim se devendo interpretar o disposto no artigo 824. 0 , n. 0 1, do C6digo Civil (BMJ, n.0 381, p. 655) . 21 CJ- S., ano II, t. 1. 0 , p. 107. 22 Revista de Legislar;ao e de Jurisprudencia, ano 127.0 , p. 10. 23 Relembre-se o conteudo da nota 5. 24 RLJ, ano 109. 0 , p. 22.
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predial, tal como qualquer titular de urn direito real de garantia. Assim, se entre urn credor corn hipoteca judicial (sujeita a regis to, como e evidente) eo comprador do mesmo im6vel prevalece o direito primeiramente registado, ÂŤpela mesma razao, as alienac;oes ou onerac;oes sujeitas a registoe registadas depois do regis to da penhora nao devem prevalecer sobre o direito do penhorante que podeni ser pago pelo produto da coisa penhorada corn preferencia a qualquer titular de direito sobre esta registado ap6s o registo da penhoraÂť.
3 - Sem duvida, o ac6rdao unificador (assento) acima transcrito recolhe plenamente a intenc;ao expressa no ja referido artigo 1. 0 do CRP: publicitar a situac;ao juridica dos predios, para alcanc;ar seguranc;a no comercio juridico imobiliario. Essa e, porem, uma meta ideal que o presente estado legislativo nao permite alcanc;ar. E que a seguranc;a resultante de urn acto que a generalidade das pessoas nao assimila bem, sobretudo desconhece, ou conhece vagamente, os efeitos da falta do registo, e contrariada pela inseguranc;a e intranquilidade do reverso da situac;ao: ap6s se comprar, pagar e cumprir a formalidade, essa sim, ritologia bem assimilada e integrada no acervo cultural das populac;oes, consubstanciada em escritura no notario, depara-se, surpreendentemente, corn o objecto da compra a pertencer a outrem, por efeito (constitutivo) de urn registo, corn a agravante de poder perderse o valor do prec;o escrupulosamente pago. Quer dizer: a doutrina do ac6rdao unificador, radical e provocat6ri.a, intrinsecamente apelativa de uma esperada actuac;ao urgente por parte do legislador, complementarse-ia desta forma prontamente interventiva, assim se colmatando os inerentes e intoleraveis inconvenientes. 0 ac6rdao foi subscri.to na convicc;ao25 de que os 6rgaos legislativos se moveriam naquele sentido. As desvantagens desvanecer-se-iam, por exemplo, legislando-se de forma a tornar o registo obrigat6rio e a estabelecerse a obrigatoriedade de imediata comunicac;ao pelo notario ao conservador do registo predial, de que uma escritura publica acabara de ser celebrada. Ja muito tempo decorreu e nao se vislumbra qualquer intenc;ao legislativa26â&#x20AC;˘ Reconhecemos, e certo, as dificuldades que sempre resultariam da falta de urn cadastro predial (geometrico) devidamente elaborado e actualizado. Mesmo assim, porem, corn o estabelecimento da obrigatoriedade do registo, a maior parte das questoes conexionadas corn o conceito de terceiro, e que emergem precisamente do processo
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Foi, pelo menos, a do relator do presente acordao . Nao obstante a iniciativa referida no referido parecer.
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executivo respeitante a bens anteriormente alienados, esfumar-se-iam, nomeadamente quanta a predios urbanos 27 • Alias, a falta de tal cadastro e os seus inerentes efeitos sempre se atenuariam corn a salvaguarda do caracter presuntivo do registo (juris tantum). 4 - Deste modo, afigura-se, para ja, imperativo repensar a doutrina expendida no referido aresto e considerar os seus efeitos praticos, como eo caso dos autos 28 • E depressa. Corn efeito, tern-se assistido a uma autentica corrida ao registo de penhoras ea precedente ca9a da inexistencia de registo de escrituras publicas de transferencia de propriedade, por vezes conhecendo o registador, perfeitamente, a venda anterior. Tal e evidenciado pelos inumeros processos entrados nos tribunais, por esse pais fora, e que vao chegando a este Supremo. Nesta base hci que considerar: Natureza do registo predial: Cremos ser aceitavel a tese de que o registo predial nao tern, no estado legislativo vigente, natureza constitutiva. Quanta a is so, mostra-se bastante explicito o teor do artigo 7. 0 do Codigo do Registo Predial: «0 registo definitivo constitui presunyao de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.» Trata-se de presun9ao legal geralmente taxada de juris tantum 29 • Deste modo, em regra, pode ser ilidida mediante prova do contrario30 . 27
Como e sabido, a situa9ao cadastral e particularmente confusa e imprecisa relativamente aos predios nisticos. 28 E outros ainda mais explicitos. Como o seguinte tambem pendente neste Supremo e que, corn a instancia suspensa, aguarda a presente decisao: A vendeu, M anos, a B urn andar que este logo pagou, escriturou a passou a habitar, mas nao registou; o andar continuou registado em nome de A, que contraiu, depois, uma divida corn C. Este bem sabia que o predio ja tinha sido vendido, mas, em processo executivo, obteve penhora sobre o andar, a qual logo registou. B veio embargar de terceiro. Se nao tiver exito, A, vendedor, alem deja ter recebido o pre9o da venda, libertar-se-a, a custa do mesmo predio, de uma divida. Eventualmente, se o pre90 da venda em hasta publica for superior ao montante do credito, ainda vai embolsar o valor sobrante? 29 V., por exemplo, o ac6rdao deste Supremo, in Revista, n. 0 504 (processo de Ansiao). 30 Artigo 350. 0 , n. 0 2, do C6digo Civil.
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A legislac;:ao registal tende a agredir principios fundamentais de natureza substantiva e a agressao e frontal corn a adopc;:ao do conceito alargado de terceiro. Assim, no caso de neg6cio juridico translativo de propriedade imobiliaria, v. g. , de compra e venda, o momento da aquisic;:ao ou da transferencia do direito de propriedade e o da celebrac;:ao da escritura que o formaliza, por via do qual a propriedade efectivamente se transfere 31 • Portanto, o hem respectivo sai da esfera juridica do alienante para entrar na do adquirente. Por outro lado, o possuidor goza da presunc;:ao da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunc;:ao fundada em registo anterior ao inicio da posse. Para alem disso, tambem e certo que o registo merece da lei relevancia especial, mas em que se procura definir uma situac;:ao concreta, nao generalizavel, como refere Carvalho Femandes. Eo caso do artigo 291. 0 do C6digo Civile do artigo 17. 0 , n. 0 2, do CRP32 , que assenta nos seguintes pressupostos: • Direitos adquiridos a titulo oneroso; • Adquirente de boa fe; • Registo da aquisic;:ao anterior ao registo da acc;:ao de nulidade ou de anulac;:ao ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do neg6cio. Alias, daqui pode retirar-se urn argumento no sentido de que a eficacia do registo nao e independente da boa ou ma fe de quem regista. Importa chamar a colac;:ao a argumentac;:ao, em sintese, expendida no referido ac6rdao unificador e que ficou expressa em varios votos de vencido, exarados naquele aresto. Assim: a) 33 Caracter excepcional dos citados artigos 291. 0 e 17.0 , n. 0 2.
Artigos 1327. 0 , alinea a), e 408. 0 , n. 0 1, do Codigo Civile artigo 80. 0 , n. 0 1, do Codigo do Notariado. Para Isabel Pereira Mendes, as duas disposi96es completam-se e o seu campo de aplicayao esta intrinsecamente relacionado - Codigo do Registo Predial, 7.• ed. , p. 105. 33 Conselheiro Roger Lopes.
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Diogo Bartolo, in Efeitos do Registo Predial, afirrna, a p. 19, «que a expressao 'so produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo regis to' nao deveser interpretada a letra porque senao estar-se-ia a legitimar, antes do registo, toda e qualquer ingerencia de terceiros na esfera juridica do verdadeiro titular do pn!dio, o que seria deveras estranho, dado a leija reconhecer o direito do adquirente ainda antes do registo, como se conclui do disposto no n. 0 1 do artigo 4. 0 do Codigo do Registo Predial» e, a p. 20, «Pretende-se, corn a publicidade registral, inforrnar os terceiros acerca das titularidades sabre os pn!dios, a fim de evitar que sejam feitas aquisi9oes a quem nao tenha legitimidade para alienar. Sendo assim, parece legitimo concluir que a letrado artigo 5. 0 , n.0 1, apenas pretendeu proteger os terceiros que, iludidos pelo facto de nao constar do registo a nova titularidade, foram negociar corn a pessoa que no registo (ou fora dele) continuava a aparecer como sendo o titular do direito, apesar deja o nao ser.» Orlando de Carvalho, «Terceiros para efeitos de registo», in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, LXX, 1994, que considera que o registo tern como caracteristica ser urn registo de aquisi9oes, e nao de pessoas facultativo e declarativo (pp. 98 e 99) . Diz ainda este autor (p. 102): «Quem adquiriu a domino, ainda que nao tenha transcrito, e sempre preferido a quem adquire a non domino, se bem que o seu titulo se tome publico. 0 que importa, em suma, e real9ar que terceiros sao apenas os que estao em conflito entre si, o que so se verifica quando o direito de urn e posto em causa pelo outro. Pressupoe isto que o transmitente ou causante e o mesmo, pois, nao o sendo, so urn dos adquirentes e a domino e o direito do outro, mais do que afectado pelo direito daquele, e afectado pelo nao direito do seu tradens.» Alienando-se bens que nao sao do devedor, eles nao constituem garantia comum do credito. A presun9ao derivada do registo deve, pois, ser sempre refutavel. b ) 34 0 exequente que nomeia bens a penhora e 0 seu anterior adquirente nao sao «terceiros», embora sujeita a registo, no caso de imoveis, a penhora nao se traduz na constituiyao de algum direito real sabre o predio, sendo apenas urn dos aetas em
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Conselheiro Martins Costa.
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que se desenvolve o processo executivo ou, mais directamente, urn onus que passa a incidir sobre a coisa penhorada para satisfac;:ao dos fins da execuc;:ao35 • A ineficacia apenas se reporta aos actos posteriores apenhora, pelo que «os actos de disposic;:ao ou onerac;:ao de bens, corn data anterior ao registo da penhora, prevalecem sobre esta» (P. de Lima eA. Varela, C6digo Civil Anotado, vol. 11, l.a ed., p . 67) . Adere-se, portanto, ao conceito restrito de terceiros. c)3 6 Aquela expressao «conceito» (de terceiro) conduz a pensar que este caso parece ser uma situac;:ao em que, por urn lado, estao excessivas re gras conceituais e, por outro, uma realista jurisprudencia de interesses ou, mais do que isso, de valores. E que tudo consiste em viabilizar, ou nao, que urn bem de terceiro, sem qualquer justificac;:ao substantiva, responda por debito de outrem. 0 que transfere a titularidade de urn bem nao e 0 registo, e, designadamente, 0 neg6cio de compra e venda, corn a sua eficacia real [artigos 408. 0 e 879. 0 , alinea a), do C6digo Civil] . Tudo is to a conjugar corn o caracter meramente presuntivo do direito registado, conforme se reflecte no artigo 7. 0 do C6digo do Registo Predial. A maxima suum quique tribuere continua a ser urn muito relevante leit motiv da actividade jurisdicional. d) 37 «Terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5. 0 do C6digo do Registo Predial, sao os que do mesmo autor ou transmitente recebam sobre o mesmo objecto direitos total ou parcialmente conflituantes», conforme ensina Manuel de Andrade, in Teoria Geral da Relac;:ao Juridica, vol. 11, 1960, pp. 19-20, e Orlando de Carvalho, «Terceiros
No ac6rdao unificador de jurisprudencia (processo n. 0 86931), a prop6sito de urn conflito entre o direito de credito de promitente-comprador, destituido de eficacia erga omnes e o direito real de terceiro adquirente da coisa, escreveu-se: «0 artigo 5.0 do CRP nao e convocavel, uma vez que o conflito nao se verifica entre titulares de direitos reais, mas entre o titular de urn direito real e o titular de urn direito de credito. A prevalencia dada por esta norma ao que primeiro registar a aquisiyao pressup5e que duas ou mais pessoas ja tenham adquirido, que ambas sejam titulares de direitos reais conflituantes. E nao e esta a hip6tese emjulgamento: nesta, adata do registo da acyao, o promitente-comprador ainda nada adquiriu e a questao que se coloca e a de saber se pode ou nao adquirir do promitente-vendedor faltoso coisa que ja e alheia a este.» 0 Prof. Almeida Costa produziu anotayao francamente concordante, in RLJ, ano 131 .0 , pp. 244 e segs. Mutatis mutandis, tal posiyao reflecte-se no caso da penhora. 36 Conselheiro Cardona FeiTeira. 37 Conselheiro Sousa Ines. 35
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para efeitos de registo», in Boletim da Faculdade de Direito, ana 70. 0 , 1994, pp. 97 e segs. Continua inteiramente valida a justifica<;ao deste conceito «restrito» de terceiros para efeitos do disposto no artigo 5. 0 do Codigo do Registo Predial que foi dada par Manuel de Andrade: nao existe cadastro geometrico dos predios urbanos, o dos predios rusticos nao abrange todo o Pais e nao e rigoroso, e o que se regista sao aetas de transmissao corn base em titulo que pode ser bem pouco fiavel, nomeadamente pelo que respeita aos casos de justifica<;ao judicial, justifica<;ao notarial (em que se permite que se supere o principio do trato sucessivo) e habilita<;ao de herdeiros. Em consequencia de o registo nao ser constitutivo, pode dar-se o caso de o titular inscrito haver transmitido o seu direito a urn primeiro adquirente, deixando aquele de ser titular do direito. Isto permite que urn terceiro obtenha urn titulo (mediante justifica<;ao notarial, justifica<;ao judicial, habilita<;ao de herdeiros- corn ou sem partilha -, penhora e arremata<;ao e, qui<;a, outras) sem interven<;ao daquele titular inscrito. Este titulo e substancialmente invalido porque representa aquisi<;ao a non domino. A sua cria<;ao so e possivel par o sistema ser imperfeito, par permitir a transmissao independentemente do registo. A posse nao esta sujeita a registo, sendo eficaz erga omnes, independentemente dele, o que sempre prevalece sabre o registo. Se o direito de propriedade e o rei dos direitos reais, entao a posse e a rainha: aquele que pretenda o dominio de uma coisa tern de assegurar-se de ter ambos par si. E: par isto que a«negligencia» do primeiro adquirente que nao logre obter regis to prioritario se podera opor, as mais das vezes, a «negligencia» do segundo adquirente que haja descurado a posse. 5 - Deste modo, e enquanto se mantiver a legisla<;ao de que dispomos, e, pais, demasiado arriscado adoptar o referido conceito amplo. Eclaro que seria desejavel emprestar sempre toda a seguran<;a a urn acto constante do registo, nomeadamente se efectivado par intermedio de processo judicial, mas tal nao pode acontecer a custa da imola<;ao sistematica de principios juridicos substantivos fundamentais.
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Alias, normalmente, essa seguranc;a existe, sempre que a venda, forc;ada embora, corresponde uma compra, de urn mesmo transmitente. Is to sem prejuizo de a venda judicial poder ser anulada, a pedido do comprador, no quadro estabelecido no artigo 908. 0 do CPC, ou de nao produzir efeitos, caso proceda a reivindicac;ao de proprietario ou ocorram as outras circunstancias mencionadas no artigo 909 .0 do CPC. Pode dizer-se: quem nao regista nao merece protecc;ao porque a negligencia ou a ignorancia devem ser sancionadas. Aqueles atributos negativos podem reduzir-se a mera ingenuidade emergente da convicc;ao de que todos os concidadaos agem de forma eticamente correcta, o que merece alguma compreensao. Por outro lado, se a negligencia nao e devida protecc;ao, porque ha-de merece-la a diligencia abelhuda, esperta, oportunista, sobretudo a de ma fe 38 , intencional, dolosa? Tal diligencia assume, ou podeni assumir, aspectos intoleniveis por parecer que, aceitando-a, se instiga ou se premeia a trapac;a rasteira. Afigura-se, pois, prudente e sensato, no contexto delineado, regressar ao conceito tradicional. Os males inerentes supomo-los menos gravosos dos que os da tese oposta. A mudanc;a de posic;ao deste Supremo, a par dos complexos trabalhos de vera arquitectura juridica que tern si do produzidos, sao factores demonstrativos do angustiante esforc;o no sentido de se encontrar uma plataforma correcta. Vero aporismo, esforc;o ingl6rio, pois s6 por via legislativa, repetimo-lo, se podera resolver satisfatoriamente o problema, de modo a afastar-se, de vez, o rol de referidos efeitos malquistos, permitindo-se que da publicidade do registo se extraiam, tanto quanto possivel em plenitude, as respectivas consequencias efectivamente estabilizadoras.
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Integra-se no conceito de ma fe o conhecimento da existencia de compra e venda anterior. Ha que retirar daqui consequencias adequadas, pois, actualmente, tende a entender-se que a interpretac;:ao, na sua expressao concreta, nao pode ignorar a maxima lex scripta, ius non scriptum, e a realizac;:ao do direito e sempre ÂŤuma monodiniimica constitutivo integradora que nao pode prescindir de elementos normativos translegais e transpositivosÂť. C. Neves, RLJ, ano 130.0 , p. 294. 0 In casu, impoe-se a sua considerac;:ao na perspectiva do jus.
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6 - Efeitos da posse. Nos termos do artigo 1268. 0 , n. 0 1, do C6digo Civil, «o possuidor goza da presun9ao da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presun9ao fundada em registo anterior ao inicio da posse». Como e sabido, «posse e o poder que se manifesta quando alguem actua por forma correspondente ao exercicio do direito de propriedade ou de outro direito real» 39 • Tal posse, mantida por certo lapso de tempo, faculta, em principio, ao possuidor a aquisi9ao do respectivo direito real, isto e, verifica-se o substracto genesico da usucapiao 40 • Deste modo, a posse susceptivel de prevalecer contra registo anterior ao inicio da posse, a que o mencionado artigo 1268. 0 se refere, nao seni a que ja produziu usucapione, pois que esta e uma forma concreta de aquisi9ao originaria. Por isso, porque e originaria, mesmo que haja registo anterior ao inicio dessa posse, ele cede perante aquela forma de aquisi9ao. Assim, a posse a que se reporta o mencionado artigo s6 pode sera que, revestindo-se dos requisitos inerentes ao seu conceito41 , entre os quais interessa, neste momento, real9ar o da publicidade, ainda lhe falta capacidade aquisitiva por carencia do decurso de tempo necessario. Potianto, as excep9oes expressas 42 ao principio geral de que os factos sujeitos a resisto s6 produzem efeitos contra terceiros, depois da data do respectivo registo, ha que acrescentar tambem a que resulta da posse ainda nao usucapiente, mas ja em exercicio. Corn uma diferen9a: no caso da usucapiao, como ja se disse, ela sobrepoe-se a qualquer registo, seja qual foro momento - anterior ou posterior da sua efectiva9ao; no caso vertente, a posse relevante, em confronto corn o registo, e apenas a que se iniciou antes deste. Justifica9ao de tal relevancia: Como ja ficou escrito, o registo predial destina-se, essencialmente, a dar publicidade
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Artigo 1251. 0 do CC. Artigo 1287. 0 do CC. 41 Titulada, de boa fe, pacifica, continua, publica, exercida em nome proprio. 42 Artigo 5. 0 , n. 0 2, do CPC. 40
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a situa9ao juridica dos predios, tendo em vista a seguran9a do comercio juridico imobiliario. Ora, a posse referida e naturalmente publica e, portanto, a seguran9a do comercio juridico e inerente apropria forma de exercicio. Dir-se-a43 : conforme o disposto no artigo 2. 0 , n. 0 1, alinea e), do CRP, esta sujeita a registo a mera posse e, portanto, ela so produz efeitos, quanto a terceiros, apos a data do registo. No caso do artigo 1268. 0 , se nao houver registo anterior ao inicio da posse, existe presun9ao de propriedade. Logo, o titular da mera posse, mesmo registada4\ se o for posteriormente ao inicio da posse a que se reporta aquele artigo, sempre ficara corn o onus de impugnar aquela presun9ao, demonstrando, v. g., que a sua posse ja produziu usucapiao. Seja como for, como numa das epigrafes seguintes constataremos, a questao, in casu, assume determinadas particularidades. Note-se, desde ja, que, mera posse, susceptivel de registo e a que se encontra reconhecida por senten9a passada em julgado, nos termos ja referidos na nota 5. Nao e, obviamente, o caso dos autos.
7- Questao dos direitos reais de garantia. Por for9a do condicionamento da eficacia, em rela9ao a terceiros, dos factos sujeitos a registo, e evidente que, se alguem vende, sucessivamente, a duas pessoas diferentes a mesma coisa, e eo segundo adquirente quem, desconhecendo a primeira alienayao, procede ao registo respectivo, prevalece esta segunda aquisi9ao 4S, por ser esse o efeito essencial do registo. Estao em causa direitos reais da mesma natureza. Aqui, a negligencia, ignorfmcia ou ingenuidade do primeiro deve so9obrar perante a agilidade do segundo, conscio, nao so dos seus direitos como dos onus inerentes. Esob este prisma que a primeira venda leva aconstitui9ao de urn direito resoluvel, no dizer de Oliveira Ascensao 46 , cuja resolu9ao ocorre perante a verificayao do facto complexo de aquisi9ao posterior, de boa fe, seguida de registo. lsto, confmme ja resulta do que acima ficou exarado em nota, quer a alienayao seja voluntaria, isto e, livremente negociada, quer coerciva, ou seja, obtida por via 43
Assim o disse, o Exmo. Juiz a quo, na sua decisao. S6 e registavel a mantida por tempo nao inferior a cinco anos, de forma pacifica e publica, e reconhecida por sentenr;a - artigo 1295. 0 , n.0 2, do CC. 45 Sem prejuizo, claro, da responsabilidade civil e criminal em que incorra o vendedor. 46 In Direitos Reais, p. 396 (1971). 44
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executiva. Efectuada a compra, por via de arrematayao em hasta publica, ou por qualquer outro modo de venda judicial, este modo de alienayao, na perspectiva em causa, tern, pelo menos, a mesma eficacia daqueloutra. Tambem aqui a prioridade do registo ultrapassa a incompatibilidade. Situa9ao diferente e a resultante do confronto do direito real de garantia resultante da penhora registada quando o imovel penhorado ja havia sido alienado, mas sem o subsequente registo. Aqui, o direito real de propriedade, obtido por efeito proprio da celebrayao da competente escritura publica, confronta-se corn urn direito de credito, embora sob a protec9ao de urn direito real (somente de garantia). Nesta situayao, mesmo que o credor esteja originariamente de boa fe, isto e, ignorante de que o hem ja tinha safdo da esfera juridica do devedor, manter a viabilidade executiva, quando, por via de embargos de terceiro, se denuncia a veracidade da situayao, seria colocar o Estado, por via do aparelho judicial, a, deliberadamente, ratificar algo que vai necessariamente desembocar numa situa9ao intrinsecamente ilfcita, que se aproxima de subsunyao criminal47, ao menos se for o proprio executado a indicar os bens a penhora. Assim, poderia servir-se a lex, mas nao seguramente o JUS.
Certo que «o dever de obediencia a lei nao pode ser afastado sob pretexto de ser injusto ou imoral o conteudo do preceito legislativo»48 • Nao deixa, porem, de se obedecer a lei, reconhecendo, como efectivamente se reconhece, que o credor tern o direito de executar o patrimonio do devedor4 9 • Sao ineficazes, sem prejufzo das regras do registo, e em relayao ao exequente, os actos de disposi9ao ou de onera9ao dos bens penhorados 50 • Dos bens penhorados, mas pertencentes ao devedor. Artigos 217. 0 e seguintes do C6digo Penal. Estabelece-se, portanto, uma situa9ao semelhante a referida no assento n. 0 4/98, de 5 de Novembro de 1998 (Diirio da Republica, 1." serie-A, de 18 de Dezembro de 1998), onde se reconheceu ser inconcebfvel o Estado a praticar urn ilfcito civil e, eventualmente, criminal, no caso de se substituir ao vendedor quando o bem em causa ja estava vendido antes do registo da ac9ao de preferencia. 48 Artigo 8. 0 , n. 0 2, do CC. E certo, porem, que, actualmente, o preceito ja nao deve ser encarado na perspectiva gelada de uma interpreta9ao dogmatico-catequfstica (cf. a citada RLJ, ano 130. 0 , p. 294). 49 Artigo 817. 0 do CC. 50 Artigo 819. 0 do CC. 47
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Corn efeito, «O direito de execu<;ao pode incidir sobre bens de terceiro, quando estejam vinculados agarantia do credito, ou quando sejam objecto de acto praticado em prejuizo do credor, que este haja procedentemente impugnado» 5 1• E tao-s6. Como ja se verificou, o im6vel penhorado, na caso dos autos, ja havia saido do patrim6nio do devedor. Portanto, nao podia garantir nenhuma das suas dividas. Como bem alheio que e, pode o seu titular embargar de terceiro. A venda em execu<;ao transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida. Portanto, efectuada a venda, e que os bens sao transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerem, bem como os demais direitos reais que nao tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, corn excep<;ao dos que, constituidos em data anterior, produzam efeitos em rela<;ao a terceiros independentemente de registo.5•2• In casu ainda se nao efectivou a venda. Nesta perspectiva, poderia dizer-se que, a conceder-se eficacia ao registo, de alguma maneira estaria a emprestar-se - lhe capacidade impeditiva de o embargante conservar o seu direito de propriedade. No entanto, e certo que ninguem pode ser privado, no todo em ou parte, daquele direito senao por via de expropria<;oes ou requisi<;oes, mediante pagamento de indemniza<;ao 53 , sob pena de inconstitucionalidade54 • De certo modo, estariamos perante a figura do confisco, facto susceptivel de ferir profundamente o senso comum e, portanto, de gerar grande sobressalto sociaP 5• Resta acrescentar que, em casos como o presente, o exequente, perante o conteudo do requerimento inicial de embargos e a sua eventual procedencia, passa a saber que o predio ja nao e do executado, cessando a sua boa fe. A ma fe - conhecimento da situa<;ao juridica de certo predio - neutraliza o requisito da publicidade registal, tomando-o irrelevante, mesmo quando estao em causa actos da mesma natureza, por exemplo, duas aliena<;oes. Corn efeito, a publicidade destina-se a dar
Artigos 818. 0 e 610.0 do CC. N. 0 2 do citado artigo 824. 0 53 Artigos 1308. 0 a 1310. 0 do CC. 54 Artigo 62. 0 da CRP. 55 Ediferente a situa<;ao resultante da existencia de duas aliena<;oes efectivas, ambas baseadas em actos capazes de produzirem a transferencia da propriedade. Entao, urn dos adquirentes tern de sair prejudicado. Como se viu, por via do mecanismo registal, deve ser o primeiro por nao haver registado. 51
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conhecimento. Se este ja existe, inutil se toma aquela. Por isso e por todos os valores acima expostos, toma-se evidente que, mesmo no caso de duas compras/ vendas consumadas, corn registo da segunda, esta nao deve prevalecer se o segundo comprador conhecia a alienac;;ao anterior. De tudo isto ha que retirar as respectivas consequencias. Analisemos, no entanto, antes disso, cada uma das conclusoes que constituem o objecto do recurso. A - Inaplicabilidade do acordao unificador vigente ao caso presente: 1 - Entendem os recorrentes que a doutrina do referido acordao nao se aplica ao caso em apreciac;;ao porque aquele teve na base uma situac;;ao de arrematac;;ao em hasta publica ja efectivada. 2 - Mesmo que assim fosse (e nao sera), e certo que tal doutrina envolve univocamente a hipotese em aprec;;o, constando da sua fundamentac;;ao a referencia express a apenhora e seu regis to. Dai a sua evidente aplicabilidade, se se mantivesse. Note-se que os factos ea propria deduc;;ao dos embargos ocorreram antes da vigencia do aresto em crise. B - Responsabilidade apenas dos bens do devedor: Ja acima se teceram as necessarias considerac;;oes quanto ao presente item. C- Nulidade da venda de bens alheios: Tambem neste aspecto ja e possivel retirar as competentes ilac;;oes, corn base nas considerac;;oes ja acima explanadas. D- Acc;;ao de reivindicac;;ao: 0 contexto das acc;;oes de reivindicac;;ao e o que resulta do que ja se deixou afirmado, sendo certo que nao se mostra pertinente mais qualquer desenvolvimento. E- Inconstitucionalidade da forma de privac;;ao da propriedade: Tambem ja foi feita uma referencia que se afigura bastante. F- Inconstitucionalidade do proprio acordao unificador: Dada a impostac;;ao do problema e as consequencias que se vao retirar, esta epigrafe perdeu interesse. G- Revisibilidade do referido acordao unificador: Obviamente, os assentos hoje sao sempre alteraveis e revisiveis. H - Omissao de pronuncia:
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1 - Segundo os recorrentes, a sentens;a seria nula por ter deixado de se pronunciar sobre uma questao posta: consequencias dos factos relativos a alegas;ao da posse por eles exercida. 2- Tal omissao foi, porem, reconhecida pelo Ex.mo Juiz prolator. Consequentemente, foi proferido o despacho a fls. 68 e 69, a pronunciarse sobre o assunto e a reparar a respectiva nulidade, mas, como ja foi dito, manteve, na integra, a parte decisoria da sentens;a recorrida. Alias, se decisao final dependesse dos factos alegados, certamente a sotte da acs;ao poderia ser diferente, pois a respectiva alegas;ao se afigura inapelavelmente deficiente quanto a factos. Na verdade, pretendendo os recorrentes afirmar a posse da fracs;ao, limitaram-se a alegar: «Adquirida assim 56 a propriedade sobre a fracs;ao autonoma, os embargantes entraram imediatamente na sua posse, alias inerente ao direito de propriedade.» (Artigo 6. 0 do requerimento inicial.) E no attigo 7. 0 : «E, desde entao, exercem a posse sobre ela: ocuparam-na, mobilaram, ali se instalaram e dela tern o gozo e fruis;ao.» Acrescentam no artigo 8. 0 : «E averbaram a compra na repartis;ao de finans;as e na caderneta predial.» 3-
Epatente a insuficiencia factica, tendo em conta a teoria da substancias;ao e a exuberancia de conceitos jurfdicos.
Contudo - e pelo que ja se disse -, a smte da decisao nao depende de tal situas;ao. Os factos comprovados pelo regis to nao podem ser impugnados em juizo sem que simultaneamente seja pedido o cancelamento do registo 57 • No caso, nao foi pedido expressamente o cancelamento do registo da penhora, limitando-se os requerentes a pedir a procedencia do embargo, corn as legais consequencias. Ajurisprudencia
56 57
Por escritura publica. Artigo 8. 0 do CRP.
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tern, porem, justamente, entendido que tal pedido se considera implicito. uma legal consequencia. Nestes termos:
E, alias,
I) Concede-se a revista e, consequentemente, julgam-se os embargos procedentes, ordenando-se o levantamento da penhora sobre a frac<;ao em causa e o cancelamento do respectivo registo. Custas pelo recorrido; 11) Revendo-se a doutrina do mencionado aresto de 20 de Maio de 1997, formulase, pois, o seguinte acordao unificador de jurisprudencia: ÂŤTerceiros, para efeitos do disposto no artigo 5. o do Codigo do Registo Predial, sao os adquirentes de boa fe, de urn mesmo transmitente comum, de direitos incompativeis, sobre a mesma coisa.Âť Lisboa, 18 de Maio de 1999. - Armando Figueira Torres Paulo (vencido)- Roger Bennett da Cunha Lopes - Jose Martins da Costa (votei a decisao, nos termos da declara<;ao que junto) - Antonio Pais de Sousa - Jose Miranda Gusmao de Medeiros - Agostinho Manuel Pontes Sousa Ines- Femando da Costa Soares (vencido) Femando Machado Soares- Jorge Alberto Aragao Seia (faltou)- Joao Femando Femandes de Magalhaes (dispensei o visto) - Ilidio Gaspar Nascimento Costa (vencido)- Rui Manuel Brandao Lopes Pinto (vencido- mantenho o conceito alargado de terceiros do acordao uniformizador anterior, mas temperado pelo principio da boa fe aferido o momento do regis to) - Armando Castro Tome de Carvalho (vencido, nos termos da declara<;ao de voto apresentada pelo Ex.mo Colega Dr. Ferreira de Almeida)- Joao Augusto de Moura Ribeiro Coelho (vencido, pelas razoes expostas pelo conselheiro Ferreira de Almeida)- Jose da Silva Paixao (revendo a anterior posi<;ao) - Jose Manuel Peixe Pelica (pese embora ter sido relator de processo onde defendi opiniao diferente)- Jose Augusto Sacadura Garcia Marques (vencido, por aderir, no essencial, aos fundamentos que levaram a prolac<;ao do anterior Acordao de uniformiza<;ao de jurisprudencia de 20 de Maio de 1997) - Femando Joao Ferreira Ramos (vencido, adiro, no essencial, a argumenta<;ao acolhida no anterior Acordao de 20 de Maio de 1997, admitindo, no entanto, que o entendimento nele perfilhado possa ser temperado pelo recurso ao conceito de boa fe) - Joaquim Lucio Faria Teixeira (vencido, nos termos da declara<;ao que junto) - Femando Jose Matos Pinto Monteiro- Dionisio Alves Correia - Antonio Quirino Duarte Soares (vencido, conforme declara<;ao que junto) - Luis Antonio Noronha do Nascimento (voto favoravelmente o acordao corn a declara<;ao junta) - Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida (vencido, nos
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term os da declaravao de voto que junta)- Herculano Albino Valente Matos Namora - Armando Lopes de Lemos Triunfante - Joao Jose Silva Grava - Francisco Ant6nio Lourenvo- Armando Moita dos Santos Lourenvo (faltou) - Jose Alberta de Azevedo Moura Cruz (vencido, conforme a declarav1io de voto do Ex.mo Conselheiro Ferreira de Almeida)- Abilio de Vasconcelos Carvalho- Joaquim Jose de Sousa Dinis- Abel Simoes Freire - Afonso de Melo (faltou). Declarav1io de voto Entendo hoje que a posiv1io correcta ea do Ac6rdao de 20 de Maio de 1997.Ilidio Gaspar Nascimento Costa. Declarav1io de voto, no processo n. 0 1050/98 Parece-me que o plenario das secv5es civeis pode e deve pronunciar-se sabre o fundamento para revisao da posiv1io assumida em anterior ac6rdao de uniformizav1io de jurisprudencia: trata-se de questao previa ou pressuposto da intervenv1io do plenario e o tribunal competente para o julgamento e tambem competente para apreciav1io dessas questoes; o despacho do Exmo. Presidente deste Tribunal, previsto no artigo 732. 0 -A do CPC, tern a natureza de simples decisao interlocut6ria, epode invocar-se, para o efeito, o disposto nos artigos 687. 0 , n. 0 4, e 689. 0 , n. 0 2, do citado C6digo. Por outro lado, entendo que nao havia fundamento para revisao da posiv1io assumida no Ac6rdao de 20 de Maio de 1997 sabre o conceito de «terceiros» para efeito do regis to predial. A lei nao preve, expressamente, os requisites desse fundamento: nao se aplica o artigo 732. 0 -A, n. 0 1, pois nao se trata de «assegurar a uniformidade da jurisprudencia», mas de urn objective de algum modo oposto, na medida em que pode resultar uma alterav1io da jurisprudencia; on. o 2 des se artigo 732. o -A fala em <~urisprudencia anteriormente firmada» e poderia discutir-se se essa expressao e equivalente as de <~urisprudencia [... ] fixada» ou <~urisprudencia uniformizada», previstas nos n.os 4 e 6 do artigo 678. 0 do citado C6digo, sendo certo que o uso, pelo legislador, de expressoes distintas significa, em principio, a referencia a realidades juridicas diversas. De qualquer modo, resulta do conjunto dessas disposiv5es que o julgamento ampliado
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da revista, para efeito de reaprecia<;ao de <~urisprudencia uniformizada», exige que ele se mostre necessaria ou conveniente ou, como se diz no artigo 446. 0 , n. 0 3, do CPP, que a jurisprudencia anterior esteja <<Ultrapassada». Para tanto, devera atender-se a reac<;oes da jurisprudencia (atraves de declara<;oes de voto ou de decisoes dos tribunais de 1. a ou 2. a instancias) ou da doutrina (pelos mais diversos meios) a posi<;ao anterior, a altera<;oes legislativas corn possivel reflexo nessa posi<;ao ou a quaisquer outros factores que a possam p6r em causa; em suma, devera ocorrer urn conjunto de ponderosas circunstancias supervenientes, nao se afigurando como bastante o simples facto de, em certo momento, poder haver uma vota<;ao favoravel a altera<;ao da jurisprudencia, ao contrario do que parece resultar do disposto no n. 0 2 do citado artigo 732. 0 -A. De outro modo, tera de admitir-se a possibilidade de sucessivas ou repetidas altera<;oes de jurisprudencia, designadamente em curtos periodos de tempo, o que se mostra contrario ao espirito ou finalidade da uniformiza<;ao da jurisprudencia e se traduziria em desprestigio para a administra<;ao da justi<;a e, em especial, para este Tribunal. No caso presente, nao se configura qualquer das aludidas circunstancias supervenientes, tu do se resumindo aos argumentos j a analisados no Acordao de 20 de Maio de 1997, pelo que se nao justificaria a revisao da jurisprudencia entao uniformizada. Noto finalmente que a no<;ao de terceiros «tern de ser depreendida da finalidade das disposi<;oes legais que sujeitam os actos a registo e que ela pode variar consoante essa finalidade» (Vaz Serra, na Revista de Legisla<;ao e de Jurisprudencia, ano 97. 0 , p. 59, em nota). Por is so, e porque a fun<;ao das decisoes judiciais nao e a formula<;ao de conceitos amplos ou genericos, mas a resolu<;ao dos casos concretos, da parte decisoria do presente acordao deveria constar apenas que «O exequente que nomeia bens a penhora e 0 anterior adquirente desses bens nao sao terceiros para efeito do registo predial». Nessa medida, e em coerencia corn a declara<;ao de voto de vencido que juntei ao Acordao de 20 de Maio de 1997, subscrevo a decisao. - Jose Martins da Costa.
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Declaravao de voto Entendo hoje que a posivao correcta e a do Acordao de 20 de Maio de 1997. Ilfdio Gaspar Nascimento Costa. Declaravao de voto Entendo que nao pode nem deve alterar-se a uniformizavao de jurisprudencia havida pelo Acordao n. 0 15/97, de 20 de Maio de 1997. I - Nao pode alterar-se porque tal possibilidade nao tern base legal nem constitucional. Nao o autoriza a simples passagem do texto do n. 0 2 do artigo 732. 0 -A do CPC quando dispoe que o julgamento alargado deve ser sugerido pelo relator, pelos adjuntos ou pelos presidentes das secvoes civeis «designadamente quando verifiquem a possibilidade de vencimento da soluvao juridica que esteja em oposivao corn jurisprudencia anteriormente firmada [... ]». Temos para nos que esta referenda do preceito legal ajurisprudencia firmada nao atinge ajurisprudencia uniformizada nos termos do artigo 732. 0 -A do CPC/97. Em sfntese, sustenta-se este ponto de vista nos seguintes argumentos: a) Desde logo e pelo preciosismo da linguagem empregue - «jurisprudencia anteriormente firmada» - e de entender que se nao esta a falar de <~urisprudencia uniformizada»; b) E de presumir que o legislador sabe exprimir-se e, se quisesse nesse local visar a <~urisprudencia uniformizada», nao se compreende que nao tivesse usado essa precisa linguagem, ate porque e a propria, a tecnica, e a consagrada mesmo no titulo desse normativo- «Uniformizavao de jurisprudencia»; c) Outra tern de ser, pois, a realidade visada corn essa expressao de <~urisprudencia anteriormente fixada» e essa nao pode ser outra que nao seja a jurisprudencia dos «assentos» firmada anteriormente a vigencia deste CPC/97; d) Aos olhos do legislador de 95 urgia retirar natureza «legislativa» aos «assentos» ea primeira e imediata medida sobre tal tomada foi a do n. 0 2 do artigo 17.0 do Decreto-Lei n. 0 329-A/95, de 12 de Dezembro; que os reduziu ao valor do acordao
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de fixa9ao de jurisprudencia dos artigos 732. 0 -A e 732. 0 -B do CPC que aquele diploma introduz. Mas o problema, e sobretudo porque a doutrina dos «assentos» havia sido alcan9ada sem a contradita das partes e, por isso, sem a possibilidade do seu contributo para o enriquecimento da constru9ao subjacente a decisao firmada, podia nao ficar resolvido de todo. Impunha-se constitucionalizar os «assentos», isto e, impunha-se dar-lhes uma estrutura dialectica, permitindo a reamilise da sua doutrina pela submissao aquele debate sempre que tal se mostrasse util e juridicamente sadio. 0 caminho seguido foi, entao, o de que se pudesse alargar a revista a jurisprudencia firmada nos «assentos» sempre que no recurso, em causa agora, houvesse possibilidade de vencimento de solu9ao juridica oposta aquela.
0 legislador de 95 ficou-se por, da doutrina dos «assentos», reter na lei uma sua observancia relativa e periclitante.
E esta a leitura que se pode tambem fazer do preambulo aquele Decreto-Lei n.
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329-A//95, de 12 de Dezembro, quando, focando o «assento» e tao-somente este, nunca o acordao de fixa9ao de jurisprudencia fala da imposi9ao do principio da sua amp la revisibilidade; e) Certo e, pois, que aquele n. 0 2 do artigo 732. 0 -A do CPC/97 nao conduz a possibilidade do alargamento da revista a doutrina dos acordaos de fixa9a0 de jurisprudencia e, assim, no caso concreto, a do Acordao de fixa9ao de jurisprudencia n. 0 15/97, de 20 de Maio de 1997; f) De outro modo, o que de todo recusamos, teriamos de deixar ficar pelo absurdo, senao pelo ludibrio, a for9a impositiva da jurisprudencia uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justi9a consagrada nos artigos 678. 0 , n.os 4 e 6, e 754. 0 , n. 0 2, do CPC ao estabelecerem, ou a admissibilidade sempre de recurso de decisao que nao acate aquela jurisprudencia fixada, ou a conten9ao, e proibi9ao mesmo, de recurso que possa par em causa essa mesma jurisprudencia fixada, e tudo para proteger a estabilidade e a observancia dessa uniformiza9ao jurisprudencial do STJ. Defender a livre modificabilidade dajurisprudencia uniformizada pelo STJ epugnar
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pela sua absoluta inutilidade, porquanto e sustentar que ela apenas regula o caso concreto apreciado na revista simples. Para que, entao, a revista ampliada? Haja algum pudor jurisprudencial e, par outro lado, considere-se ate que a livre modificabilidade da regulamenta<;ao jurisprudencial e que coloca os tribunais no caminho do poder legislativo, na invasao das competencias dos artigos 161. 0 e 198.0 da Constitui<;ao da Republica Portuguesa, afinal o que se pretendeu combater corn a destrui<;ao dos ÂŤassentosÂť; g) Alias, se aquele dispositivo do n. 0 2 do artigo 732. 0 -A do CPC/97 abrangesse os ac6rdaos de fixa<;ao de jurisprudencia proferidos ja no seu ambito, teria de ser julgado inconstitucional.
Eque, entao, ele viola os principios da seguran<;a juridica, da protec<;ao da confian<;a dos cidadaos e da separa<;ao de poderes extraiveis aqueles dos artigos 2. 0 e 9. 0 , alinea b), e definido este pelo artigo 111 .0 , todos da Constitui<;ao da Republica Portuguesa, que, pela via da afirma<;ao do Estado de direito, garantem aos cidadaos, o primeiro e se gundo, a durabilidade e permanencia da ordem juridicae a confian<;a na estabilidade das respectivas situa<;oes juridicas, designadamente, a permanencia ea inalterabilidade do caso julgado, coma se retira de Direito Constitucional, 4.a ed., pp. 311-312, de Jose Joaquim Games Canotilho, e, o terceiro, umaorganiza<;ao do Estado orientada pela eficiencia da especialidade e pela abrangencia da representatividade das suas fun<;oes; h) Pondere-se ainda que s6 este entendimento da realidade juridica em causa tern capacidade para estabelecer a harmonia entre todos aqueles dispositivos legais, is to e, tern possibilidade de surpreender urn verdadeiro si sterna juridico, o fim ultimo de toda a hermeneutica judicial. II - Sempre, nao deve alterar-se a uniformiza<;ao de jurisprudencia havida pelo Ac6rdao do STJ n. 0 15/97, de 20 de Maio de 1997, porquanto: A interpreta<;ao das leis e assim dos varios ramos de direito, de sobremaneira os interpenetrantes, deve fazer-se na base de que ha harmonia entre eles e nao a partir de pressuposi<;oes de antagonismos entre si - artigo 9. 0 do CC.
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Igual deve ser o nosso comportamento perante os «assentos» ou perante os ac6rdaos de fixar;ao jurisprudencial. Para alem do mais exigem-no a propria razao de ser desse instituto e a necessidade de estabilizar;ao de urn minimo de justir;a relativa. Nessa 6ptica, entendo que nao M necessidade de alterar a jurisprudencia fixada pelo Ac6rdao n. o 15/97, de 20 de Maio de 1997, na medida em que a preocupar;ao da protecr;ao da boa fe do adquirente, retirada da publicidade factica da sua aquisir;ao conhecida pelo aproveitador da falta do respectivo registo, agora expressa no novo ac6rdao de fixar;ao de jurisprudencia, pode dispensar-se pelo simples funcionamento das regras do abuso de direito do artigo 334. 0 do CC, alias, mesmo no ambito da anterior fixar;ao de jurisprudencia n. o 15/97. Tanto bastara para evitar o atropelo das leis do registo ou o favorecimento imerecido do adquirente negligente e ate enganador, ainda que as vezes inocente, dos ditos «terceiros». De res to, a lei do regis to como o Ac6rdao de fixar;ao de jurisprudencia n.o 15/97 em questao nao interferem na constituir;ao ou transmissao substantivas do direito de propriedade. 0 seu munus e tao-s6 o de regular a sua eficacia, nada mais. Se, na dinamica desse direito, ocorreram mudanr;as na sua titularidade, o registo respeita-as interna e externamente se registadas, e s6 internamente se nao registadas ou enquanto nao registadas. Nesta harmonia da lei, dos diversos ramos de direito e da jurisprudencia assente se encontra a prevalencia da defesa da seguranr;a do trafego comercial, o grande sustentacula das sociedades modernas.
Eassim que, efectuada a penhora, se o hem seu objecto ja antes havia sido adquirido por outrem ao executado, em tal transmissao nao registada nao toca aquele acto judicial. Apenas lhe cerceia uma das «potestas» em que esse direito se decompoe, o poder de disponibilidade. Apenas, protegendo o credor justamente confiante na garantia patrimonial do seu devedor, deixada a vista por esse adquirente negligente, na acomodar;ao de todas essas leis e jurisprudencia, aquele hem permanecera afecto a sua tipica e legal funr;ao, nao enganosa porque publicada em registo, a da garantia comum do credor que nela confiou e lhe era legitimo confiar- artigos 601. 0 a 604. 0 do CC, artigo 5. 0 , n.0 1, do CRP e artigo 821. 0 do CPC.
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Depois, a subjectiva~ao pela boa fe, agora introduzida no novo ac6rdao de fixa~ao de jurisprudencia, nao serve nem a objectividade do registo nem a fun~ao delimitadora da fixa~ao de jurisprudenciao Por outro lado, o novo caso aqui trazido pelos presentes autos nao coloca circunstancia~ao diferente da que serviu de fundamento ao referido Ac6rdao de fixa~ao de jurisprudencia noo 15/97, isto e, nao ocorre altera~ao dos elementos de facto ou de direito que aquele presidiramo Ainda, em salvaguarda dos principios constitucionais acima delineados da seguran~a juridica, da protec~ao da confian~a, do respeito pelo caso julgado e da separa~ao de poderes, consagrados nos artigos 20°, 90°, alinea b), e 111. 0 da Constitui~ao da Republica Portuguesa, s6 aquela altera~ao objectiva do mundo extemo poderia consentir a modificabilidade da jurisprudencia uniformizadao Ora, nao se verificando no caso dos autos essa altera~ao, como se nao verifica, nao e legitimo sequer tomar-se aqui o <~ulgamento alargado» previsto no no0 2 do artigo 7320°-A do CPC e, menos ainda, proceder-se a modifica~ao do referido Ac6rdao de fixa~ao de jurisprudencia no o 15/97 0 Mas, sempre inconstitucional se toma a norma do noo 2 do artigo 732.0 -A do CPC por viola~ao daqueles principios constitucionais quando, como no caso, e pressupondo-o aplicavel a jurisprudencia uniformizada, nao se contern nos limites daquela objectividade, alem de que, e sempre, a permissibilidade do alargamento do recurso a jurisprudencia anteriormente firmada, no dominio da mesma legisla~ao e sobre a mesma questao fundamental de direito s6 e consentida, mesmo pelo noo 2 do artigo 7320°-A do CPC/97, para a doutrina dos «assentos», como ja vimoso Neste alinhamento,julgaria a revista simples de hmmonia corn o exposto e negaria a revista alargada ao Ac6rdao de fixa~ao de jurisprudencia no 0 15/97, sobreditoo Lisboa, 18 de Maio de 1999 0- Lucio Teixeirao Declara~ao
de voto
1 - Entendi que se deveria rev er o anterior ac6rdao uniformizador de jurisprudencia, de que foi relator o Exmoo Conselheiro Tome de Carvalho, porque a norma ali fixada e demasiado abrangente; corn base nela, deverao ser considerados
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terceiros, tambem, aqueles que adquiram de alienantes diferentes. 0 conceito de terceiros nao deve ter limites tao largos, pois, de outro modo, corremos o risco de criar, por via jurisprudencial, urn sistema de regis to constitutivo, o que nao e, de todo, a intenc;;ao da lei, como e bem evidente do teor do artigo 1. 0 do C6digo do Registo Predial. Figure-se, por exemplo, a hip6tese seguinte: A comprou urn predio ao legitimo proprietario B (e seu titular ins cri to), mas nao registou a aquisic;;ao; C, por seu tumo, comprou o mesmo predio a D (que nao e dono nem goza de inscric;;ao no registo) e, apesar disso, conseguiu inscrever a aquisic;;ao (a possibilidade de inscric;;ao, nestas circunstancias, nao e impossivel, face as normas que consagram os principios da legitimac;;ao - artigo 9. 0 do C6digo do Registo Predial - e do trato sucessivo- artigos 34. 0 e 35 .0 do mesmo C6digo). Num caso assim, C, a ser considerado terceiro (e se-lo-a, a luz do vigente ac6rdao uniformizador) podera ignorar a compra efectuada por A ao legitimo dono e titular inscrito, nao obstante o registo, a data em que contratou corn D, lhe dizer que nao era este ultimo o dono do predio. Isto nao pode ser. 2 - 0 conceito de terceiros deve ser entendido de harmonia corn a func;;ao declarativa e corn as finalidades de seguranc;;a do comercio imobiliario, que sao reconhecidas, entre nos, ao registo predial. Pretende-se, corn o registo dos predios, garantir a quem consulta os livros e as fichas das conservat6rias que aquele que figura ali como titular ainda nao alienou ou onerou o predio. 0 conceito de terceiros deve, por isso, limitar-se aos que, do mesmo titular inscrito, adquiriram direitos conflituantes (conflituantes no todo ou em parte). Mas nao s6.
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As mesmas fun<;ao e finalidades do registo predial impoem que o conceito de terceiros se estenda aqueles cujo direito, adquirido ao abrigo da lei, sem interven<;ao voluntaria do titular inscrito, tenha este mesmo titular como sujeito passivo (isto para abranger os casos, que sao os mais frequentes, da penhora, do arresto, da hipoteca judicial sobre bens que, entretanto, o titular inscrito (contra quem aquelas diligencias foram realizadas) ja havia alienado, sem que o adquirente tenha registado a aquisi<;ao. Em ambas as situa<;oes se justifica o cumprimento das ditas fun<;oes declarativa e de seguran<;a do comercio juridico, reconhecidas ao registo predial. 3 - Afigurou-se-me, tambem, que, atenta a fun<;ao publicitaria do registo, esta doutrina deve ser temperada pelos principios da boa fe de maneira a que nao possam ser considerados terceiros e beneficiar da regra de inoponibilidade consagrada no artigo 5. o do C6digo do Regis to Predial, os que adquiriram o direito sabendo que o titular inscrito ja havia alienado ou onerado o predio. 0 principio da boa fe constitui uma reserva moral do si sterna juridico, que nao pode ser ignorado no dominio de urn direito (o direito regis tal) que assume, como se acaba de ver, fun<;oes substantivas, e nao de mero instrumento burocratico ao servi<;o do direito civil. Veja-se, a prop6sito, o n.0 2 do artigo 17.0 do C6digo do Registo Predial, onde a boa fe avulta como urn principio estruturante do registo predial. Em resumo, e corn ressalva da importancia que atribuo a boa fe, limitei-me a seguir o entendimento de Vaz Serra e de Antunes Varela eH. Mesquita (cf. , a prop6sito, a anota<;ao dos do is ultimos, in Revista de Legisla<;ao e de Jurisprudencia, ano 126.0 , pp. 384 e segs. , onde citam Vaz Serra). 4 - Como, no caso do ac6rdao, nao vem posta em causa a boa fe do exequente (dada a fun<;ao publicitaria do registo, a boa fe daquele que baseia, no registo, os seus actos deve presumir-se), negaria a revista, mas reformularia o ac6rdao uniformizador de jurisprudencia nos seguintes term os: ÂŤTerceiros, nos term os do n. o 1 do artigo 5.o do C6digo de Regis to Predial, sao os adquirentes, de boa fe, de direitos conflituantes, no todo ou em parte, sobre o
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mesmo predio, derivados de actos juridicos que tenham o mesmo titular inscrito como sujeito activo ou sujeito passivo.» Lisboa, 25 de Maio de 1999. - Ant6nio Quirino Duarte Soares. Declara9iio de voto Voto a concep9iio restrita do conceito de «terceiro», aqui em discussao, nos termos propostos pelo Ex.mo Conselheiro Pereira de Gra9a. Defendo a concep9iio restrita de «terceiro» pelas razoes seguintes: 1. o Estamos a importar da Alemanha a concep9iio amp la de «terceiro» sem atentar nas especificidades pr6prias que estiveram na sua origem e sem atentar na diversidade de condi9oes sociais entre os dois pafses, o que nos podeni conduzir a uma coloniza9iio juridica corn efeitos sociais perversos na aplica9iio do ac6rdao uniformizador votado anteriormente sobre a materia; 2. 0 Em Portugal e em Fran9a, entre outros pafses, o contrato de compra e venda tern eficacia real e translativa, ao contrario do que sucedia no direito romano inversamente, na Alemanha o contrato de compra e venda nao tern quaisquer efeitos reais nem transmite a propriedade, tal como sucedia no direito romano; Daqui resulta desde logo uma consequencia: em Portugal e em Fran9a nunca se pensaria, inicialmente, em registar a compra e venda porque esta s6 por si era bastante para que a coisa passasse do vendedor para o comprador, enquanto na Alemanha a compra e venda tinha efeitos simplesmente obrigacionais que se aproximavam do nosso contrato-promessa e que nada tinham a ver corn a transferencia do direito realligado a coisa vendida. A partir daqui, a estrutura translativa dos direitos reais na Alemanha teve de ser diferente da dos pafses latinos; os Alemaes tiveram de recriar urn novo neg6cio que transmitisse a propriedade. Foi o que aconteceu. E, hoje, na Alemanha temos dois actos juridicos diferentes para transferir a propriedade sobre im6veis: urn neg6cio causal celebrado entre vendedor e comprador que nada transfere, que nao tern nenhuns efeitos reais, que apenas tern efeitos obrigacionais entre os contraentes, e urn outro neg6cio juridico
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posterior, celebrado entre as mesmas partes, totalmente abstracto e nao causal, corn efeitos reais, e que tern de ser imediatamente registado. 0 registo, necessaria para a publicidade eo efeito translativo de urn acto abstracto, nao causal, aparece, pois, como elemento constitutivo intrinseco da propria transferencia da propriedade: se esta se transfere por contrato cuja causa se ignora (e porque se ignora, mais dificil se torna ataca-la por vicios estruturais a luz do direito ), necessaria se torna que o registo garanta aquilo que a abstracs;ao de urn acto nao causal nao pode garantir nem legitimar. Significa is to por conseguinte que, neste campo, se desenvolveram duas orientas;oes diferentes: os paises que se desligaram da conceps;ao romana da compra e venda e atribuiram eficacia real aquele contrato jamais concederam ao registo efeito constitutivo porque a transmissao da propriedade provinha do contrato, e nao do registo; a Alemanha que - por razoes peculiares - seguiu a tradis;ao romanista da compra e venda, consagrou o registo constitutivo porque a transferencia da propriedade jamais advinha da compra e venda, mas do contrato abstracto imediatamente registado (cf. Almeida e Costa, Revista de Legislas;ao e de Jurisprudencia, ano 131.0 , n. 0 3893 , pp. 244/246, e Isabel Pereira Mendes, Estudos sobre Registo Predial, pp. 26 e segs.); 3. 0 As consequencias desta dicotomia de sistemas sao 6bvias: a Pnissia (a volta da qual se fez a unificas;ao da Alemanha) comes;a a organizar o cadastro da propriedade a partir do seculo XVII, posteriormente estendido a toda a Alemanha, ja que isso era imprescindivel num pais onde o regis to era constitutivo de direitos reais; nos paises onde os contratos de alienas;ao de im6veis tinham eficacia real e a propriedade se transmitia de imediato o cadastro da propriedade nem e pensado porque o registo e meramente enunciativo ou publicitario. Impor o registo constitutivo, ou atribuir-lhe efeitos vinculativos similares, s6 faz sentido, na verdade, onde o cadastro da propriedade existe e esta organizado. Esse foi, alias, o principal argumento de Manuel de Andrade quando defendeu a conceps;ao restrita de ÂŤterceiroÂť (cf. Teoria Geral da Relas;ao Juridica, II vol. , pp. 18-20 e segs.), mais recentemente defendida tambem por Orlando de Carvalho (Boletim da Faculdade de Direito, vol. LXX, 1994, pp. 97 e segs.). Nao ha em Portugal cadastro dos predios urbanos e o dos predios n1sticos abrange
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tao-s6 parte do territ6rio (cf. Isabel Pereira Mendes, ob. cit., p. 172); alargar assirn o conceito de «terceiro» a urna latitude tao arnpla quanta aquela que foi anteriormente acolhida e contradit6rio, socialrnente perverso, e corresponde a construir a casa pelo telhado. Mas ha tarnbern razoes hist6rico-geognificas ligadas a existencia/inexistencia do cadastro de propriedade. Fazer o cadastro na Europa continental do Norte e facil: da Bretanha a Pol6nia, tudo e - salvo raras excep<;oes - urna vasta planicie. Inversarnente, na Europa rnediterra-nica o desenho da planta cadastral e «Urn puzzle cornplicadissirno, de fragrnentos das rnais variadas utiliza<;oes» corn o seu cortejo de rnontanhas, enseadas, reentrancias, prornont6rios, etc. (cf. Orlando Ribeiro, Portugal, o Mediterraneo eo Atlantico, p. 11). Portugal e urn pais atlantico por posi<;ao rnas rnediterranico por natureza, na formula celebre de Pequito Rebelo citado por Orlando Ribeiro naquela obra (p. 39); e a deficiencia!ausencia da planta cadastral da propriedade irnobiliaria nao foi excep<;ao no nosso pais onde se seguiu corn toda a naturalidade o exernplo dos paises rnediterranicos da Europa do Sul; 4. 0 Portugal copiou, tal corno a Espanha, o sisterna de registo predial germanico, rejeitando o frances (sao estes os dois principais sisternas registrais europeus), rnas tern urn rnodelo de transferencia irnediata de propriedade nos contratos de aliena<;ao cornpletarnente diferente do rnodelo germanico e igual ao frances. E este e o grande busilis de toda esta questao. Copiarnos o registo predial alernao corn os seus principios estruturantes (trato sucessivo, legitirna<;ao, legalidade, identifica<;ao do predio, etc.), rnas nao lhe atribuirnos efeito constitutivo porque ternos contratos de cornpra e venda corn efeitos reais irnediatos e autornaticos; e porque a aliena<;ao de irn6veis se faz por virtude do contrato, conferirnos ao registo o canicter publicitario caracteristico do rnodelo frances. Nesta discrepancia radicarn, a rneu ver, todas as dificuldades corn que nos depararnos hoje na defini<;ao do conceito de «terceiro». Ja no seculo XIX houve tentativas para, rnesrno sern cadastro predial, irnplernentar
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o registo constitutivo em Portugal, coisa que o Codigo Civil de Seabra rejeitou definitivamente; desse tempo ficou-nos porem a regra ainda actual de que a hipoteca so e valida, mesmo entre as partes, se for registada. Guilherme Moreira foi, mais tarde, urn dos primeiros defensores do conceito alargado de «terceiro» (cf. Carlos Rodrigues, Codigo do Regis to Predial Anotado, p. 81) seguido mais tarde por Carlos Ferreira de Almeida, 0. Ascensao e Isabel Pereira Mendes. Mas supomos que, aqui, entra em jogo outro factor. Os povos mediterranicos europeus foram sempre tradicionalmente povos emigrantes e ou colonizadores. Portugueses, Espanhois, Franceses, Italianos, Gregos, Sfrios, etc., emigraram sempre; para povos emigrantes, o registo constitutivo (ou o conceito amplo de «terceiro», sua consequencia logica) e urn onus impensavel. Quem compra e vai embora ou quem emigrou e compra quando vem apenas temporariamente e nao dispoe de tempo para muita coisa, nao da ao regis to o valor absoluto de constituir direitos; ademais se o cadastro da propriedade nao existe ou e insuficiente esse desvalor sobre o registo acentua-se ainda mais. Inversamente, urn povo que nao emigra tern o tempo mais disponfvel para conferir ao registo predial urn valor absoluto, que contende corn a certeza das coisas e a seguran9a negocial. Talvez isto ajude a compreender a concep9ao registral constitutiva dos Alemaes e a concep9ao publicitaria que o registo predial tern tradicionalmente nos povos europeus do Sul, habituados a contratos de aliena9ao onde a transferencia da propriedade se opera de imediato como exigia a sua habitual mobilidade de movimento migratorio; 5. 0 0 conflito de interesses que aqui se desenha e evidente: de urn lado o do credor que confiou na infalibilidade registral; do outro o do verdadeiro proprietario, que nao tern nada que ver corn o diferendo credor-devedor, mas que nao registou em tempo o seu direito.
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Corn a tradi<;ao historica do nosso pais, o seu sistema publicitario de registo, a imperfei<;ao do cadastro predial, os Mbitos sociologicos ainda dominantes no nos so povo, entendemos que o conflito teni de ser resolvido atraves da concep<;ao restrita de «terceiros» que melhor defende o proprietario - nao devedor. E en ten demos assim porque os efeitos sociais da concep<;ao restrita sao bem men os perversos do que os da concep<;ao ampla. Escrevia Barbosa de Melo que «a pondera<;ao das consequencias constitui ainda urn momento de argumenta<;ao juridica pelo menos para todos quantos entendem - e sao hoje muitos- que a inferencia juridica nao pode ficar alheia aos efeitos pniticos da solu<;ao inferida» (citado no Acordao do STJ - Boletim, n. 0 389, p. 547). Sao esses efeitos praticos que para nos sao decisivos por for<;a dos factores acima descritos. Nao rejeitamos a concep<;ao ampla de «terceiro» quando o cadastro predial estiver organizado eo sistema registral for celere; nas actuais circunstancias essa concep<;ao vai levar a«coloniza<;ao» juridica de muitissima gente de diversos estratos sociais do nosso pais corn efeitos qui<;a catastroficos. - Luis Antonio Noronha Nascimento. Declara<;ao de voto Em meu entender, continua essencialmente valida- e de harmonia corn os canones da boa hermeneutica juridica- a doutrina do alias recente Acordao uniformizador de jurisprudencia datado de 20 de Maio de 1997, publicado no Diario da Republica, l.a serie-A, de 4 de Julho de 1997, e no Boletim do Ministerio da Justi<;a, n. 0 467, pp. 88 e segs., no sentido da considera<;ao do conceito amplo ou abrangente da no<;ao de terceiros para efeitos de registo predial. Sendo embora ce11o possuir o registo entre nos uma eficacia meramente publicitaria, que nao constitutiva, nao podendo assim fomecer uma absoluta e efectiva garantia da existencia do direito na titularidade do registrante, deve pelo menos assegurar a qualquer interessado corn legitimidade para inscrever actos no registo - nos quais haja ou nao intervindo o titular inscrito- que, a ter existido esse direito, ele ainda se conserva inte-grado na respectiva esfera juridica, isto e, que nao foi ainda transmitido a outra pessoa- cf. Manuel de Andrade, in Teoria Geral da Rela<;ao Juridica, vol.
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II, pp. 18 e segs. Na esteira de A. Varela e M. H. Mesquita, in Revista de Legisla<;ao e de Jurisprudencia, ano 126.0 , pp. 374 a 384, e ano 127.0 , pp. 19 a 32, e - cuja ret6rica argumentativa em geral subscrevemos - nao se vislumbram razoes plausiveis para discriminar negativamente, para efeitos da regra do artigo 5. 0 , n. 0 1, do CRP/84, todos aqueles que, confiando na situa<;ao publicitada atraves do regis to e exercendo uma faculdade que a lei lhes atribui (de unilateralmente inscreverem direitos a seu favor, v. g., o registo de uma penhora, de urn arresto ou uma hipotecajudicial, sem a vontade ou sem colabora<;ao do titular inscrito), daqueles que, sabre os bens inscritos no registo, adquiram direitos corn o assentimento do titular inscrito, v. g., atraves de neg6cios de aquisi<;ao derivada corn ele realizados. Assim, por exemplo, e na esteira de Vaz Serra, in RJJ, ano 103. 0 , p . 156, ÂŤse urn predio for comprado a determinado vendedor e for penhorado em execu<;ao contra este vendedor, 0 comprador e 0 penhorante sao terceiros: 0 penhorante e terceiro em rela<;ao aaquisi<;ao feita pelo comprador e este e terceiro em rela<;ao apenhora, pois os direitos do comprador e do penhorante sao incompativeis entre si e derivam do mesmo autorÂť (sic). Serao assim ÂŤterceirosÂť relativamente a determinado neg6cio translativo, nao s6 aqueles que adquiram do mesmo tradens direitos incompativeis, mas, outrossim, aqueles cujos direitos hajam sido adquiridos ao abrigo de aetas juridicos unilaterais da autoridade judiciale tenham esse transmitente como sujeito passivo.
E pois de exigir, em ambas as situa<;oes de aliena<;ao ou onera<;ao de urn dado bem, identidade de transmitente,ja que s6 ao titular inscrito do direito transmitido assiste legitimidade - enquando o registo nao for efectuado - para realizar uma segunda aliena<;ao na medida em que a primitiva aliena<;ao, em consequencia da omissao no registo, e inoponivel a terceiros. Deste modo, se A vender o mesmo predio sucessivamente a B e a C, este e terceiro em rela<;ao aB e podeni opor-lhe a aquisi<;ao se o inscrever prioritariamente no registo; mas se a segunda aliena<;ao (a favor de C) for feita, D, C ja nao podera ser considerado terceiro em rela<;ao a B, prevalecendo a aquisi<;ao por este feita, ainda que C consiga regis tar tal compra. E is to porque o neg6cio celebrado entre C e D, como venda a non domino que e, enfermani de nulidade insanavel - cf. artigo
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892. 0 , n. 0 1, do CCIV/66- cf. autores citados, ano 126.0 , p. 384. A tese proposta pelo Exmo. Conselheiro Relator posterga os principios do registo predial e da certeza, seguranva e comodidade ao mesmo intimamente associados - protecvao daqueles que confiaram na aparencia criada pelo registo. E isto ao arrepio das soluvoes adaptadas em termos de direito europeu comparado (v. g., os de raiz latino-mediterranica), das quais se fizeram adequado eco os citados ilustres mestres coimbraos (cf., v. g., os artigos 2644. 0 do C6digo Civilltaliano e 3. 0 , n. 0 1, do Decreto de 4 de Janeiro de 1955, este ultimo no direito frances) . Corn efeito, face a tal tese, os efeitos do registo seriam sempre passiveis de impugnavao em caso de o titular que dele figura ter sabido, ou ter podido saberantes de haver requerido a respectiva inscrivao - que afinal havia direitos incompativeis ainda nao registados sobre o mesmo hem. 0 que reclamaria para o pretendente a aquisiyao de uma determinada propriedade imobiliaria 0 6nus de desenvolver uma penosa actividade indagat6ria acerca, nao s6 da real inscrivao do predio em nome do potencial alienante mas tambem da existencia de outros eventuais actos de transmissao pelo mesmo alienante entretanto efectuados a favor de diferentes adquirentes. E isto fi.cando sempre sujeito a censurajudicial sobre o nao cumprimento eficaz e aturado do seu dever de diligencia! ...
Ecerto que, face ao aresto unificador supracitado, a novao ora proposta no projecto ac6rdao introduz, como ingrediente «temperador e moralizadon>, o conceito de «adquirentes de boa fe» para os fins da protecvao concedida pelo artigo 5. 0 do CRP, de resto na peugada de certa jurisprudencia francesa e ainda de alguma doutrina nacional (cf. Carvalho Femandes, in ROA, ano 57, Dezembro de 1997, pp. 1303 e segs.) lsto como forma de evitar considerar como «terceiros», como tal protegidos face ao conceito amplo supra-referido, os que adquiriram o direito e lograram regista-lo, apesar de cientes de que o titular inscrito ja havia onerado ou transmitido esse direito a outrem que nao procedeu ao respectivo registo. Contudo nao se ignora que tal ressalva- da inoponibilidade do registo restrita aos adquirentes de boa fe- podera surtir, como efeitos praticos perversos - para alem de uma indagayao adicional tomada dependente sobretudo da prova testemunhal adrede produzida, corn a sua consabida falta de fiabilidade -, a afectavao da eficacia
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registral, pois muito dificilmente sera concebivel que aquele que ad quiriu urn direito e nao o registou nao tenda sempre a nao reconhecer a prioridade do adquirente sucessivo registrante, arguindo-o de actuas;ao de ma fe ... A eficacia do registo nao deveria poder, em principio, ficar dependente da boa ou ma fe de quem regista urn determinado direito ou de quem adquire urn determinado hem imovel de urn mesmo transmitente. Pon5m, se o «pres;o a pagan> pela subsistencia do ceme da eficacia registral, vis a vis o conceito amplo de terceiro adoptado no Acordao de uniformizas;ao de 20 de Maio de 1997, foro da limitas;ao aos terceiros de boa fe da protecs;ao conferida pelo registo, entao que se introduza tal restris;ao. Salvo o devido respeito, o projecto consagra uma tese tendencialmente propiciadora do casuismo em materia de tamanha sensibilidade, como e esta do comercio juridico imobiliario e da iniciativa e prioridade registrais, ficando sem se saber para que serve, na pratica, o registo predial e qual a sua real eficacia. 0 que pode surtir consequencias devastadoras ao nivel do investimento estrangeiro no sector do imobiliario, cujos capitais nao deixarao, por certo, de procurar mercados mais «seguros»!. .. E representara, sem duvida, tal tese urn drastico retrocesso em materia de registo e em termos de certeza e segurans;a do comercio juridico a ele sujeito. Temos para nos que as solus;oes de jure condendo, neste dominio, caminharao no sentido do alargamento da eficacia do registo, mormente perante a chamada «globalizas;ao» economica em curso, que nao no da sua restris;ao ou limitas;ao fazendo apelo a ancestrais Mbitos de oralidade, indocumentas;ao e alergia ao regis to no ambito dos direitos reais. Isto para nao falar da perplexidade que certamente gerara a prolas;ao de dois acordaos de sentido amplamente contraditorio no ambito da mesma materia por parte do nosso mais alto tribunal, no curto periodo de menos de dois anos! .. . tudo ao sabor de maiorias de natureza conjuntural ... Em suma, e para a hipotese de vingar a adops;ao de uma nova formula em alteras;ao da ja consagrada pelo citado Acordao unificador de 20 de Maio de 1997, sugeriria,
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como «mal menor», e em sua substituic;:ao, a seguinte: «Terceiros para efeitos de registo predial sao todos aqueles que, tendo obtido de boa fe regis to de urn direito sobre determinado predio - dimanante de acto juridico em que haja intervindo o mesmo titular inscrito ou de acto unilateral de autoridade emitido ao abrigo da lei e que tenha esse titular como sujeito passivo - veriam esse direito ser total ou parcialmente arredado por urn qualquer facto juridico anterior nao registado, ou registado posteriormente.» Em qualquer das hip6teses- e ao contnirio da tese que fez vencimento - , negaria a revista e confirmaria, em consequencia, a decisao recorrida que julgou improcedentes os embargos de terceiro deduzidos pelos ora recorrentes. - Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida.
Comentario: Jose A. R. L. Gonzalez Assistente da Universidade Lusiada 1. Sumariamente, pode dizer-se, passe a expressao, que o Ac6rdao em apre<;o "da urna no cravo e outra na ferradura". Por urn lado, retoma ao tradicional conceito de terceiros para efeitos de registo, originalmente formulado por Manuel de Andrade ', que limita o ambito da fe publica regis tal de urn modo que se julga pouco razoavel. Por outro lado, pela primeira vez, o Tribunal Supremo aceita que a boa fe (subjectiva) eo requisito basico exigivel para a protec<;ao da confian<;a depositada por terceiros na aparencia registal. 0 que, em termos jurisprudenciais, representa urn avan<;o significativo. 2. 0 conceito de terceiros adoptado no presente Ac6rdao, filiado como se
1
"Teoria Geral da Rela<;ao Juridica", vol. II, Coimbra, 1987, pag. 19.
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disse na formula divulgada por Manuel de Andrade, e entendido no sentido que a orientayao tradicional posterior lhe fixou. Terceiros sao, assim, "os que do mesmo autor ou transmitente recebem sobre o mesmo objecto direitos total ou parcialmente incompativeis".
Ecurioso que tal formula, tipicamente pensada para a dupla alienayao, (rectius, dupla venda), do mesmo (pretenso direito), nao possa, no entar!to, ser literalmente aplicada a essa mesma situayao, dado que, por via do principio enunciado no n. 0 1 do art. 408. o do Codigo Civil, a segunda alienayao e efectuada por non domino e, portanto, ea alienayaO de urn nao direito (passe a contradiyaO logica). Ainda assirn, subentende-se o significado da formula: sao terceiros aqueles que apresentam titulos provenientes do mesmo causante dos quais abstractamente resultam, para os pretensos adquirentes, direitos entre si conflituantes.
Eigualmente curioso que a formula proposta por Manuel de Andrade foi muitas vezes interpretada no sentido de que os terceiros somente o seriam se os tais titulos provenientes do mesmo autor irnplicassem a intervenyao da vontade deste. 0 que, em geral, reduziria 0 ambito dos terceiros para efeitos do regis to aqueles que beneficiassem de titulos de natureza negocial. Ora, esta conclusao, (na verdade, esta restri9ao ), nao esta literalmente contida na citada formula2 â&#x20AC;˘ E, no rigor, nem se mostra logicamente compreensivel. Na verdade, nao se ve a razao pela qual, face a determinada aparencia regis tal, o terceiro ha-de ser protegido quando beneficia de urn titulo negocial a seu favor e j a nao ha-de ser protegido quando beneficia de, por exemplo, urn titulo judicial: e que se, por exemplo, A, titular registal, vende a H, este nao regista, eA vende a C que regista, este podera ser protegido pelo regis to; ao inves, se C, em vez de beneficiar de urn contrato de compra e venda celebrado corn A, beneficiar de urna venda executiva,ja nao podera ser protegido. Quer dizer: seria justamente
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Dado que se pode entender que autor e aquele que transmite ou constitui, seja voluntaria, seja foryadamente. Autor pode ser, portanto, sin6nimo de causante, ou, ainda talvez mais latamente, sin6nimo de pessoa que sofre a perda ou a restriyao. Alias, a nao ser assim, uma sentenfi:a de execuyao especifica de urn contrato-promessa parece que s6 teria autor formal - o tribunal.
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quando a aquisic;:ao ate implica a intervenc;:ao de urn 6rgao de soberania, corn a solenidade, formalismo e certeza que deve pautar o processo judicial, que o adquirente estaria mais desprotegido. Entre o tribunal, por urn lado, eo particular, por outro, para terceiro seria mais credivel este ultimo! Dai que o Supremo acertadamente afrrme que tanto importa se o direito provem do mesmo autor a titulo voluntario oua titulo forc;:oso (cfr. Ill. 7., porexemplo), dando precisamente como exemplo da segunda hip6tese a venda judicial. Ja e verdadeiramente incompreensivel o que no Ac6rdao em aprec;:o se diz em Ill. 7.. Eque, pelos vistos, o conceito restrito de terceiros (ainda) abrange o comprador na venda judicial mas Ga) nao abrange o credor exequente que obteve a constituic;:ao da penhora a seu favor. Como se a venda judicial nao fosse, as mais das vezes, consequencia da penhora! Como se houvesse alguma diferenc;:a valorativa essencial entre o conflito que surge quando estiio em causa direitos reais da mesma natureza e o conflito que surge quando esses direitos sao de qualidade distinta. Alias, atendendo ao que resulta exactamente do ponto Ill. 7. do Ac6rdao em causa, parece que se pode retirar o seguinte: se o legitime titular nao registante embargar ap6s a penhora, o credor exequente nao podera ser protegido 3, pois, para suceder o contrario, o Estado deveria praticar urn acto ilicito; ao contrario, se nao embargar, o processo executive prosseguir e desembocar na venda judicial, o comprador sera protegido, (naturalmente se registar). Neste ultimo caso, ao que parece, o Estado ja nao estara a praticar urn acto ilicito! Provavelmente por nao ter sido "avisado" dessa ilicitude atraves do embargo de terceiro e estar, por isso, de "boa fe"! E, de todo o modo: implicara esta tese do Supremo que a doutrina contida no Ac6rdao 98 se deva considerar sem efeito, dado que a execuc;:ao especifica do contrato-promessa tambem da origem a uma transmissao forc;:ada a favor do
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Parece o Supremo sustentar que, neste caso, o erector exequente deixa de estar de boa fe a partir do instante em que a peti<;ao de embargos !he e comunicada. Todavia, o principio e justamente o inverso: mala fides superveniens non nocet.
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promitente adquirente (claramente equipanivel avenda judicial)? 3. 0 Supremo nao reparou, ou nao quis reparar, justamente no problema que, no essencial, esta subjacente afe publica registal nas chamadas situa96es triangulares4 ou de incompleivao do registo 5â&#x20AC;˘ Isto e, quando duas pessoas obteem titulos incompativeis a partir de urn causante comum, o problema que essencialmente se coloca e o da aparencia que do registo resulta para o segundo adquirente e da confian9a que este ne la pode ter fundado. Para o segundo adquirente, dada a nao realiza9ao do regis to a favor do primeiro adquirente (e, obviamente, s6 neste suposto faz sentido invocar a fe publica registal a favor do segundo adquirente), a aparencia registal, aquilo que o registo da a conhecer, ea titularidade do causante comum6, Precisamente por esta razao, as tais situa96es triangulares nao podem ser resolvidas, (pelo menos, exclusivamente), pela perspectiva das regras relativas adetermina9ao do momento e forma de aquisi9ao de urn direito sobre uma coisa(art. 408. 0 /n. 0 1 do C6digo Civil, por exemplo), mas antes (ou tambem) na perspectiva da protec9ao que a confian9a depositada na aparencia registal mere9a7 â&#x20AC;˘ A menos que o investirnento a que o Estado procede na cria9ao e manuten9ao de Conservat6rias de Registo seja absolutamente inutil! Consequentemente, a argumenta9ao expendida pelo Supremo no ac6rdao em causa surge claramente deslocada. 4
Cfr. Heinrich Horster, "A funvao do registo como meio de protecvao do tnifico juridico", Regesta, n. o 70171 , pag. 297 lP. 5 Oliveira Ascensao, "Efeitos substantivos do registo predial na ordemjuridica portuguesa", ROA, 1974, I-IV, pag. 30. 6 Se o proprio causante comum nao tern regis to a seu favor, em regra, nem os titulos que favorecem ambos adquirentes poderiam ser obtidos (art. 9. 0 /n. 0 1 do C6digo do Registo Predial), nem nenhum deles poderia registar sem reatar o trato sucessivo (art.os 34. 0 /n. 0 2 e 116. 0 do mesmo diploma), nem, por fim, haveria, a favor do segundo adquirente, qualquer confianva digna de protec9ao. 7 Por isso, nao parece atinado dizer, como se diz no ac6rdao em apre9o, que nao ha qualquer justifica9ao substantiva para que urn bem de terceiro responda por debito de outrem. E que as normas que definem os requisitos de protecvao da confianva baseada na aparencia registal tambem sao normas substantivas, dado que interferem, pe1o menos, corn a eficacia do facto registavel (so assim nao seria se o registo fosse sempre enunciativo).
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Por urn lado, como se disse, a resoluyao do conflito que se faya basicamente atraves do principio contido no n. 0 1 do art. 408. o do C6digo Civil, olvida por completo aquilo que, no caso concreto, resultava do registo e implica que, em geral, o credor, para estar seguro acerca da legalidade da penhora obtida, deva, antes de nomear bens apenhora, proceder a uma investigayao exaustiva sobre a concreta composiyao do patrim6nio do devedor . Por outro lado, a consequente afirmayao de que o Estado nao pode proceder a apreensao e posterior alienayao de urn bem que j a nao pertence ao devedor, (no caso, o causante comum), dado que este ja antes o havia alienado a favor de outrem, pois em tal caso estaria a alienar bens alheios, tern, ou pode ter, urn alcance manifestamente excessivo. E que entao, quando, por exemplo, o promitente vendedor, na promessa corn eficacia real (art. 413. 0 do C6digo Civil), vende a terceiro e s6 depois o promitente comprador intenta a acyao de execu9ao especifica, se o tribunal proferir a "sentenya que produza os efeitos da declarayao negocial do faltoso" (art. 830. 0 do C6digo Civil), no rigor, esta aalienar afavor do promitente compradorum bem que janao pertence ao promitente vendedorB. 4. Everdade que o Supremo aparentemente avanya urn outro argumento para justificar a afirmayaO de que 0 credor exequente nao e terceiro: "a penhora nao se traduz na constituiyao de algum direito real sobre o predio"9 . Esta conclusao, todavia, alem de contradizer frontalmente a melhor doutrina, esquece que, ap6s a constituiyao da penhora, o credor exequente adquire determinados poderes sobre a coisa penhorada que caso contrario nao teria. 0 que significa que nao se trata apenas de uma mera situayao objectiva dos bens ou de uma m era fase processual, mas antes se trata da concessao de urn poder de actuayao sobre ou em relayao ao hem penhorado. Sirva de exemplo a hip6tese previstano art. 823. 0 do C6digo Civil. Demonstra-se assim que, sejaqual foro conceito de direito subjectivo que se adopte, e indiscutivel que da penhoraresulta 8
Cfr. outro exemplo e outras razoes em Jose A. Gonzalez, "No96es de Direito Registal", 2." edi9ao, Lisboa, 1999, pag. 71 , nota 252. 9 Curiosamente, mais adiante (III.7 .) diz-se expressamente que "situa9ao diferente ea resultante do confronto do direito real de garantia resultante da penhora ... "!
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imediatamente, a favor do credor exequente, a atribui9ao de poderes sobre a coisa que, doutro modo, este nao teria. Qual seria de facto a 16gica de determinar a subroga9ao real se a penhora nao constituisse para o credor exequente uma situa9ao juridica subjectiva? Nada se pode retirar do simples facto de a penhora se constituir e integrar no ambito de urn processo judicial contra a sua qualifica9ao como direito subjectivo. Eque, caso contrario, quase todos os chamados direitos reais de garantia deveriam ser excluidos do ambito do direito subjectivo, dado que quase todos eles estao fundamen-talmente pensados para concederem ao respectivo titular urn privilegio nurn eventual processo executivo. A tinica diferen9a para a penhora resultaria do facto, (insignificativo, para este efeito), de aqueles outros direitos reais de garantia se constituirem fora do processo judicial e, normalmente, antes do mesmo. 5. 0 inconveniente que o "Supremo, no ac6rdao em causa, atribui ao (chamado) conceito alargado de terceiros para efeitos registais adoptado pelo Ac6rdao Uniformizador n. o 15/97 de 20 de Maio, designadamente, a "autentica corrida ao registo de penhoras e a precedente cava da inexistencia de registo de escrituras publicas de transferencia de propriedade, por vezes conhecendo o registador," 10 "perfeitamente, a venda anterior", pode eliminar-se ou, pelo menos, corrigir-se, se se exigir a boa fe como requisito de protec9ao do terceiro que adquire a non domino. 0 que de facto e estranho e que o Supremo tenha acabado por admitir, no ac6rdao em apre9o, que a boa fe e urn requisito de protec9ao do adquirente a non domino, mas sem reparar que isto tanto e verdade perante o conceito restrito como perante o conceito amplo de terceiros para efeitos registais. Acresce que, em qualquer caso, se o adquirente a domino, (ou seja, na situa9ao triangular, o adquirente que nao registou a sua aquisi9ao), tambem obteve a posse da coisa, (tratando-se, pois, de direito que implique a apreensao material da coisa seu objecto), a demonstra9ao da ma fe do adquirente a non domino nem constituira dificuldade de maior, dado 10
Parece, portanto, que mesmo quando o registador desconheya, continua a ser "pecado" proceder ao registo da penhora.
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que nao se pode considerar conforme a natureza das coisas que alguem tenha a titularidade (aparente) de urn direito- maxime, da propriedade- sobre urna coisa, (o causante, na hip6tese do ac6rdao em apre<;o ), sem que simultaneamente tenha a sua posse. 0 que significa, por conseguinte, pelo menos urna coisa: nurn caso como o deste ac6rdao, a relevancia da posse nao esta relacionada corn a hierarquia de presun<;oes estabelecida pelo art. 1268. 0 do C6digo Civil, pois esta disposi<;ao nao pressupoe qualquer aparencia, registal ou possess6ria, e nao tern em vista, portanto, atribuir qualquer protec<;ao superior a confian<;a que possa resultar da posse face aquela que possa resultar do regis to. :E que a presun<;ao e urn meio de prova e, por isso, a prevalencia de urna presun<;ao sobre outra implica apenas que o beneficiario da presun<;ao preterida tenha o 6nus de demonstrar o contrario daquilo que resulta da presun<;ao prevalecente. Mas certamente nao implica que essa prova se nao admita. 11 6. Alias, decorridos mais de tres anos sobre a data de publica<;ao do Ac6rdao 3/99, pode ate constatar-se que a adop<;ao do conceito retrito de terceiro registal permitiu o surgimento de situa<;oes em que o credor exequente e seriamente defraudado, precisamente por causa da uniformiza<;ao de jurisprudencia nesse sentido. De facto, tern sucedido que a aliena<;ao anterior nao registada o nao seja propositadamente para privar o credor do essencial da garantia patrimonial do devedor: A vende simuladamente a propriedade de x aB, que nao inscreve, e, em seguida, contrai urn emprestimo perante C; quando caduca o prazo para a impugna<;ao pauliana - art. 618째 do C6digo Civil- A deixa de curnprir, C executa, mas B, em combina<;ao corn A, embarga de terceiro, e, como C nao e terceiro registal, o bem x e retirado da execu<;ao; se C nao conseguir provar a simula<;ao, ficara autenticamente de "maos atadas". 7. A lei nao e nem pode servir para mais do que para solidificar solu<;oes juridicas de casos concretos que lograram obter urn minimo de consenso, seja na doutrina, seja na jurisprudencia, seja na pratica social. Deve haver, por isso, 11
Pelo menos, nao
eo art. 1268. o/n.
0
1 do C6digo Civil que impede a prodw;:ao des sa prova.
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o cuidado de nao transpor para a letra da lei, solw;:oes que ainda nao apresentam urn grau suficiente de clareza, fmneza e consensualidade. A soluyao juridica do caso concreto e fruto de urna evoluyao social, economica, politica, isto e, em suma, cultural (lato sensu), para a qual contribuem pois as mais diversas circunstancias,juridicas e extrajuridicas. No que toca especificamente aos efeitos do registo predial, a discussao em Portugal esta claramente nurn ponto alto, dado que, as ja tradicionais posiyoes divergentes da Faculdade de Direito de Lisboa e da Faculdade de Direito de Coimbra, (cada qual, intemamente, corn algumas especialidades de autor para autor), acresce agora a propria evoluyao jurisprudencial, a qual, ao ritmo de urn acordao uniformizador por ano, desde 1997, tern introduzido elementos proprios no debate. Significa tudo isto que o que corn certeza neste momento nao existe e consensualidade. Ao arrepio, porem, de todas estas considerayoes, que no fundo nao passam de sensatez, o legislador entendeu, nurn verdadeiro acesso de genio, introduzir urn n. o 4 no art. 5. 0 do Codigo do Registo Predial, por via do qual se recebe formalmente o chamado conceito restrito de terceiros originalmente apresentado por (ou imputado a) Manuel de Andrade. Resta saber que eficacia tera esta (pretensa) soluyao autoritaria 12 tao deslocada no tempo 13 e contraria a propria evolu9ao jurisprudenciaP 4 â&#x20AC;˘ Na verdade, nao pode esquecer-se que a disposi9ao legal em causa: a) somente define o conceito de terceiro no ambito do efeito negativo da fe publica registaP5; 12
Tao autoritaria que nem sequer constava do projecto de reforma do registo predial que esteve em discussao publica. 13 Epreciso nao esquecer que a opiniao de Manuel de Andrade remonta, pelo menos, a 1944, data de publicac;;ao da primeira versao da sua "Teoria Geral da Relac;;ao Juridica". 14 Dado que, ao contr¡ario do que resulta do acordao em aprec;;o, o n.0 4 do art. 5. 0 do Codigo do Registo Predial nao faz qualquer referencia aboa fe . 15 Cfr. Jose A. Gonza!ez, ob. cit., pags. 68 e segs ..
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b) somente diz quem e terceiro sem estabelecer os requisitos de que depende a respectiva protec<;ao quando a aparencia registal nao retrate fielmente a realidade substantiva; 16 c) face ao proprio ac6rdao em apre<;o, nao e liquido o conteudo do chamado conceito restrito de terceiros. 8.a) A fe publica registal consubstancia-se na presun<;ao de veracidade do registo. Is to e, presume-se que o regis to retrata fielmente a realidade juridica a que se refere. Em abstracto, a fe publica registal comporta do is sentidos: negativo e positivo. Pelo primeiro, presume-se a complei<;ao do registo, ou seja, a inexistencia de outros factos registaveis para alem dos registados; pelo segundo, presume-se a exactidao do registo, ou seja, a validade ea eficacia dos factos registados. Ora, somente no ambito do sentido negativo e que se pode inscrever o problema do conceito amplo ou do conceito restrito de terceiro registal colocado pelo Ac6rdao em apre<;o. A verdade, porem, e que tambem no ambito do sentido positivo se pode colocar urn problema de protec<;ao da fe publica; e, quem beneficia da mesma, tambem e terceiro para efeitos de registo. Alias, em rigor, ate e "mais" terceiro, pois, no ambito do sentido negativo, a doutrina dominante tern sustentado que a protec<;ao do segundo adquirente nao depende da existencia de registo a favor do causante comum! 8.b) A adop<;ao do conceito restrito ou amplo de terceiro para efeitos de registo predial, nao irnplica necessariamente que baste alguem ser terceiro registal para
16
Repare-se, por exemplo, que, no ac6rdiio em aprec;:o, se adopta o conceito restrito de terceiros mas exigindo-se a boa fe do adquirente a non domino, ao passo que, tambem por exemplo, Antunes Varela e Henrique Mesquita, Revista 'de Legislac;:iio e de Jurisprudencia, ano 127. 0 , pags. 20 e segs., adoptam o conceito amplo de terceiros mas excluindo expressamente o requisite da boa fe. 0 que significa que os requisites de protecc;:iio do terceiro contra factos registaveis niio registados niio estiio implicitos no conceito de terceiros do qual se parta.
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automaticamente ficar protegido pela aparencia tabular. De facto , e suficiente verificar como no Acordao em apreyo se introduziu o requisito da boa fe como pressuposto de protecyao do terceiro, para se ter noyao de que nao chega ser terceiro para se beneficiar da protecyao regis tal. E, pelo menos, e de aplaudir a opyao tomada por este Acordao, dado que se deve considerar a boa fe como urn principio geral de Direito, pelo que nao faz sequer sentido pensar na protecyao do terceiro registal mesmo estando este de ma fe ou independentemente da sua boa ou ma fe. Cre-se, de resto, que por forya do disposto nos arts. 17° n°2 e 124° do Codigo do Registo Predial e no art. 291° do Codigo Civil, os requisitos de protecyao do terceiro registal devem ser todos os ai discriminados. Eque o problema substancial subj acente protecyao da fe que 0 terceiro pode depositar no registo predial e o mesmo, quer se trate de fe na compleivao, quer se trate de fe na exactidao. Em ambos os casos, o terceiro pretende ser protegido contra a ilegitimidade do seu causante 17 •
a
8.c) Note-se que, por fim, enquanto no Acordao em apreyo se adopta a expressao "transmitente comurn", no n°4 do art. 5° do Codigo do Registo Predial adoptou-se antes a expressao "autor comum". Ora, parecendo expressoes proximas e podendo tratar-se de urna pura diferenya formal, a verdade e que, na primeira versao, verifica-se urn apelo para urn conceito em que o causante comurn intervem voluntariamente nos factos de que beneficiam ambas as pessoas que adquirem a partir desse causante. Assim, o credor exequente, por exemplo, nunca podera caber no referido conceito.
17
Como as disposi96es contidas nos arts . 17°n°2 e 124° do C6digo do registo Predial tern iimbitos de aplicayao muito precisos - nulidades (art. 16°) e inexactidoes registais (art. 18°), respectivamente aprotecyao do terceiro contra a incompleiyao somente econcebivel a extensao do disposto no art. 291° do C6digo Civil.
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Ac6rdao n.â&#x20AC;˘ 3/99, p. 197-253
Ao inves, a segunda versao, ao nao apelar formalmente para a necessidade de intervenc;ao da vontade do causante comum,ja e compativel corn a adopc;ao do conceito amplo de terceiro. Pelo que, neste entendimento,ja possivel integrar o credor exequente no ambito da protecc;ao da fe publica regis tal. Alem disso, mesmo admitindo que a expressao "transmitente comum" tern o sentido que pelo Ac6rdao se lhe pretende incutir, a verdade e que, como ja antes se salientou, neste mesmo Ac6rdao se diz que o comprador na venda executiva e terceiro para efeitos de regis to. Ora, se na realidade este adquire os direitos que o executado tinha sobre os bens penhorados (art. 824° n°l do C6digo Civil), tambem se deve dizer que esta transmissao e forc;ada, ou seja, e imposta por decisao judicial, independentemente da vontade do executado. 0 que, ere-se, destr6i pela base o proprio pressuposto do qual no Ac6rdao em aprec;o se partiu para formular o tal conceito restrito de terceiro para efeitos de registo predial. 9. As razoes invocadas para sustentar o conceito restrito de terceiros vao muitas vezes entroncar na pouca confianc;a que inspiram os nossos cadastros prediais e na falta do habito generalizado e enraizado de proceder ainscric;ao regis tal dos actos juridicos relativos a im6veis (cfr., por exemplo, em relac;ao a este ac6rdao, a declarac;ao de voto do Conselheiro Luis Noronha Nascimento ). Acontece, no entanto, que estes argumentos tanto sao validos perante o conceito restrito como perante o conceito alargado de terceiros para efeitos de registo. E, por isso, a admitir-se a validade da argumentac;ao, seria preferivel considerar que o registo predial tern sempre efeito enunciativo. Por outro lado, o recurso a esta argumentac;ao, que parcialmente e acolhida pelo ac6rdao em causa, fundamenta a linica conclusao segura que do mesmo se pode retirar: nao se pec;a ao Supremo que proceda a alienac;ao de bens nao pertencentes ao executado; mas, se essa alienac;ao for feita por outrem, o Supremo faz como Pilatos.
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Ill VIDA INTERNA
I I
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LICENCIADOS EM D IREITO PELA UNIVERSIDADE LusfADA DE LISBOA
(2000-200 1)
Licenciados em Direito pela Universidade Lusiada de Lisboa (2000-2001)
ADELE JUSTINE PIRES RODRIGUES ALEXANDRA FERREIRA GoN<;::ALvEs LoPES ANA CARLA PEREIRA LAZARO ANA CATARINA BRAs DE CARVALHO ANA CRISTINA BARROSO CORREIA ANA CRISTINA CARITA RENTE ANA FILIPA DA CONCEI(:AO LUCENA ANA FILIPA VIEIRA BALHAU ANA FLA VIA CARVALHO DA CONCEI(:AO ANA IsABEL DE SsousA MARTINS MARQUES CAsTELA.o ANA LutsA DA SILVA PIRES ANA LutsA TAvAREs SANTOS REsoRDA.o MoNTALvo ANA MARGARIDA CoRREIA SEQUEIRA BATISTA ANA
p AULA DA
SILVA
p ALMA
ANA RrTA MENDES ALvE RoDRIGUES ANA SoFIA CRisTo SIM6Es AND RE DuARTE DE MATos F ARIA ANDREA MARIA DE JEsus SILVA RrBEIRO BAPTISTA ANGELA SOFIA MIRANDA MARINHA LUCAS ANT6NIO CARLOS PROEN<;::A SIMAO DE ALMEIDA ANT6NIO JORGE MARQUES DOS SANTOS ANT6NIO Luts JARDIM FERREIRA AuRA CATIA FREITAS MouRA CoRREIA BERNARDO DE SALDANHA PINTO COELHO BRUNO MIGUEL SOEIRO MELO ALVES BRUNO MoRGADO SousA OuvEIRA CARLA lSABEL BRITO RIBEIRO CARLA MARIA LouREIRo RoDRIGUEs CARLOS MANUEL GoN<;::ALVES MoNTEIRo CARLOS MARIA DE ALMEIDA BARBOSA DE CARVALHO CATARINA IsABEL DuARTE MARTINS CATARINA RAQUEL DroNfsio CoELHO JoA.o CmALIA MARIA DA SrLVA MARQUES CmALIA SoFIA Dos SANTOS SILVA CARDOSO
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Licenciados em Direito pela Universidade Lusfada de Lisboa (2000-200 1)
CLARA Rl:BCA LOPES-CARDOSO PIRES TEIXEIRA CLARISSA ARRUDA DE 0LIVEIRA CLAUDIA MARIA NEQUIM LoPES DA SrLVA CLAUDIA SusANA ANTUNES DE SrLvA CONCEI<;:AO MARIA NUNES FERRAZ E COSTA CRISTINA lsABEL CoLA<;:o DA SrLvA D oRA CRISTNA AMADOR DE SousA D uARTE NUNo MrRANDA DA SrLvA MARQUES FERNANDO ALBERTO MARQUES SIMOES FrLIPA DA CoNCEI<;:Ao JER6NIMO LAGES FILIPA MARIA 0 'CONNOR SHIRLEY
Y GLESIAS DE 0LIVEIRA
FILIPA RAQUEL PEREIRA RILH6 FILIPE Jos:E ANTUNES GOULAO FRANCISCO FRAGUEIRO ALVES GoN<;:ALO NUNo RAMos PrREs MANTEIGAS H ELDER JoAO DOS SANTOS DIAS 路 HELENA lsABEL ANT6Nro DA SrLvA HELENA MARGARIDA DOS ANJOS MARQUES HUGO FILIPE LOPES NOGUEIRA IRIS MARLENE DE OLIVEIRA MAR<;:AL lSABEL MARIA MATEUS QUINTELA lSABEL MARIA RODRIGUES ALVES JAIME MANUEL GoN<;:ALVEs DE FREITAS ]OANA DE
V ASCONCELOS CORREIA ALFAIA DE CARVALHO
JoANA IrsABEL MoRArs CERQUEIRA JoAo ALEXANDRE FrALHO RocHA PEREIRA JOAO MANUEL DA COSTA PEDRO JOAO PEDRO MELO MARQUES DE ALMEIDA JOAO TADEU GOMES MIGUEL JOAO
V ARELA MAYORAL ROBLES
JOAQUIM MANUEL DA SILVA JORGE MANUEL DA CRUZ AMARAL J os:E A uousTo Dos S ANTOS P INA A NTUNES J os:E F rLIPE AL<;:ADA BAPTISTA DE A LMEIDA E us:EBio
Lusiada. Direito, I! serie, n. I (Janeiro - Junho 2003)
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Licenciados em Direito pela Univers idade Lusiada de Lisboa (2000-2001)
Jos:E GENTIL HENRIQUES PrMENTEL J OSE MANUEL FIGUEIRA BARRADAS J OSE MIGUEL SUTRE LOUREIRO LARA SUSANA SO ARES AFONSO ALEGRIA RIBEIRO LE6NIA GoN<;ALvEs GRAMACHO NoRTE LEONOR RocHA DE OuvEIRA L ILIANA MARINA DOS SANTOS p ASCOLA L IZA T ANIA RODRIGUES CARDOSO Lufs FruPE GRA<;A Dos SANTos Lufs MANUEL MATOS DE F IGUEIREDO Lufs MrGUEL OuvEIRA ALvEs LufsA MARIA LouREN<;o BRAz DA SrLVA MAFALDA CASTRO ANTUNES MANUEL EDUARDO CAEIRO DA MoTTA VEIGA MARGARIDA A LEXANDRA RoDRIGUEs SrM6Es M ARIA DA CoNcEI<;Ao PINTO BANDOLA M ARIA GABRIELA MARTINS DE ALMEIDA SANTOS MARIA HELENA CouTINHO SrLVESTRE MARIA Jos:E SANTOS SARDINHA MARIANA LINO AL<;ADA DE ALMEIDA RlBEIRO MARLENE DA CONCEI<;AO GUERREIRO AZEITONA MARTA CRISTINA SOBREIRA DA CONCEI<;Ao MARTA PEDREIRA DE BRITO MONTEIRO MARTA SOFIA FERREIRA DA COSTA MELANY ISABEL TEKOCK MrcAELA SusANA DIAS STALTMILLER PRISTA N:EuA MARGARIDA PINTO DE SousA B ENTO NUNo GuiLHERME SrMAo NUNES DE LACERDA NUNO MIGUEL CARREIRO LADEIRAS FERREIRAS JACINTO NUNO MIGUEL FERNANDES PEREIRA ANDRE NUNo MrouEL FERRAo Dos ANJOS RoDRIGUES DA SILVA NUNo RICARDO NABAIS DE HILARio P ATRICIA FILIPA FERREIRA BERNARDES PATRICIA SOFIA TAVARES PINTO
Lusfada. Direito, I! serie, n. l (Janeiro - Junho 2003)
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Licenciados em Direito pela Universidade Lusiada de Lisboa (2000-2001)
P AULA ALEXANDRA DA SILVA MARTINS
p AULA Crus TIN A RrBEIRO CARDOSO PEDRO FERNANDES PINTO MARQUES PEDRO MARIA DE E<;A QUEIROZ DE ANDRADE TEIXEIRA PEDRO MIGUEL BARBOSA P AULINO PEREIRA PEDRO MIGUEL CASTELAO MALTA V ACAS PEDRO MIGUEL DuARTE RoDRJGUES RAQUEL DA CosTA MoRENO BRAs RAQUEL DE JESUS DE JESUS RAQUEL LOPES DE ALMEIDA RAQUEL V ARANDA DA CRUZ NUNES GARRlDO RrcARDO CoRDEIRO BATISTA RICARDO FILIPE BRAs PINTO RITA MENDES DOMINGOS RrsCADO VENANCIO RrTA SoFIA RoDRJGUEs BRANco RuBINA DA SILVA PERESTRELO RuTE MARGARIDA RoDRJGUES BEIRA.o ALvEs ANACLETO RuTE MARJA SARAGGA BISCAYA LoPES CARDoso RuTE SusANA MARQUES CASEIRO SANDRA CRJSTINA DA CRUZ GAMA SANDRA ISABEL MATIAS COELHO SAND RA ISABEL MORAlS P AULOS 0URO SANDRA MARIA NAVALHO DUQUE SANDRA MARJSA DE B R1TO TAVARES SARA D IAS MENDES G OMES S:ERGIO PEDRO PINHEIRO MENDES SOFIA ALEXANDRA DOS SANTOS CUNHA S6NIA BARRoso ToMAz SusANA ALEXANDRA QuEIR6z PINTO CANIZES SusANA CoNDEsso DIOGO SusANA lsABEL MoNTEVERDE PEREIRA SusANA MARIA CALADO T AVARES DE PINA SUSANA MARIA CAMBITA SERRANO DOS SANTOS MARTINS SusANA MAruA EsTEVEs DO PROZIL DE AARAUJO
Lusiada. Direito, II serie, n. I (Janeiro - Junho 2003)
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Licenciados em Direito pela Universidade Lusiada de Lisboa (2000-2001)
TERESA MARGARlDA LoPES NoGUEIRA TIAGO NEVES CARDOSO V ANDA DOS SANTOS BRAZAO GUERREIRO V ANESSA ALEXANDRA SANTOS COELHO V ANESSA RAQUEL DOS REIS CONTREIRAS DE ASSIS VANIA ALEXANDRA ABREU S ILVA VANIA SOFIA DA SILVA D IAS VERA SOFIA DA GAMA FERNANDES PEREIRA
Lusiada. Dire ito , I! serie, n. I (Janeiro - Junho 2003)
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DOUTORAMENTOS E MESTRADOS EM DIREITO NA UNIVERSIDADE LusfADA DE LISBOA
Doutoramentos e Mestrados em Direito na Universidade Lusiada de Lisboa
DOUTORAMENTOS
Luis Solano Cabral de Moncada, "Lei e regulamento" (8 de Maio de 2001 ). Jliri: Professores Doutores, Inocencio Galvao Teles, Rogerio Ehrardt Soares, Diogo Freitas do Amaral, Fausto de Quadros, Afonso de Oliveira Martins, Carlos Blanco de Morais.
MESTRADOS Joao Salvador Velez Pacheco de Amorim, "A liberdade de projissiio ". (27 de Julho de 1995). JUri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Joaquim Gomes Canotilho, Jose Vieira de Andrade, Afonso de OliveiraMartins. Ant6nio Manuel de Almeida Santos Cordeiro, "A proteq:iio de terceiros em face de decisoes urbanisticas ". (29 de Setembro de 1995). Juri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Rogerio Ehrardt Soares, Armando Marques Guedes, Maria da Gl6ria Pinto Garcia. Maria Joao Mimoso Ferreira Baptista, "Ajusti9a arbitral na composi9iio dos litigios do comercio internacional ". (11 de Outubro de 1995). JUri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Ant6nio Marques dos Santos, Joao Mota de Campos, Joao Calvao da Silva. Ant6nio Jose Moreira, "Direito de greve e Constitui9iio ". (16 de Outubro de 1995). JUri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Henrique de Mesquita, Jose Gon9alves de Proen9a, Carlos Pamplona CorteReal. Luis Miguel Serrada de Sousa Tavares, "A aplica9iio interna das conven9oes internacionais face ao controlo do Tribunal Constitucional ". (30 de Outubro de 1995). JUri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao
Lusiada. Direito, II serie, n. I (Janeiro - Junho 2003)
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Doutoramentos e Mestrados em Direito na Universidade Lusiada de Lisboa
Teles, Jorge Miranda, Jose Servulo Correia, Joaquim Gomes Canotilho. Nuno Jorge dos Santos Sebastiao, "Convenr;iio colectiva de trabalho. Natureza, concorrencia e sucessiio ". (14 de Fevereiro de 1996). Juri : Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Francisco Pereira Coelho, Jose Gonvalves de Proen9a, Jose Lebre de Freitas. Manuel Ant6nio Cardoso Lopes Rocha, "Natureza Juridica da Sanr;iio Jus Comunitaria ". (8 de Julho de 1996). Jfui: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Joao Mota de Campos, Jose Gonvalves de Proen9a, Joaquim Marques Ascensao. Isabel Maria Meireles Teixeira, "A subsidiariedade e o artigo 3 oB do Tratado da Comunidade Europeia". (18 de Outubro de 1996). Juri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Francisco Lucas Pires, Joao Mota de Campos, Joaquim Marques Ascensao. Ant6nio Manuel da Cruz Borges Pires, "A concordata. Uma providencia de recuperar;iio de empresas ". (11 de Novembro de 1996). Juri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Augusto de Athayde, Jose Lebre de Freitas, Luis Carvalho Femandes. Joao Jose Pires Duarte Redondo, "0 credito documentario irrevogavel ". (12 de Dezembro de 1996). Juri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Joao Calvao da Silva, Pedro Pais de Vasconcelos, Augusto de Athayde. Jose Gonvalo de Areia Capitao, "Expropriar;iio e ambiente ". (3 de Junho de 1997). Jfui: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Afonso de Oliveira Martins, Joao Caupers, Paulo Otero. Albino Mendes Baptista, "A mobilidade geogra.fica dos trabalhadores ". ( 15 de Dezembro de 1997). Juri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Jose Gonvalves de Proen9a, Francisco Pereira Coelho,
Lusiada. Direito, I! serie, n. I (Janeiro - Junho 2003)
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Doutoramentos e Mestrados em Direito na Universidade Lusiada de Lisboa
Jose Lebre de Freitas. Ricardo Luis Leite Pinto, "0 'momento maquiawHico 'na teoria constitucional norte americana. Republicanismo, hist6ria, teoria politica e Constitui9iio ". (5 de Fevereiro de 1998). Jilli: Professores Doutores, Ant6nio daMota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Joaquirn Gomes Canotilho, Armando Marques Guedes, Afonso de OliveiraMartins. Luis Guilherme Carvalho de Pina Catarino, "A responsabilidade do estado pela administra9iio da justi9a. 0 erro judiciario e o anormalfuncionamento ". (26 de Maio de 1998). Juri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galviio Teles, Armando Marques Guedes, Joaquirn Gomes Canotilho, Paulo Otero. Adelina da Conceic;ao Sa Portela, "Execu9iio especijica". (15 de Julho de 1998). Juri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Mano Jillio de Almeida Costa Joao Calvao da Silva, Henrique de Mesquita. Maria Manuela Bastos de Pinho Ferreira de Lemos, "Considera9oes sabre alguns aspectos relevantes do instituto da propriedade horizontal". (15 de Julho de 1998). JUri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Mario Julio de Almeida Costa, Joao Calvao da Silva, Henrique de Mesquita. Paulo Jorge Duarte Gomes, "Servi9o publico e saneamento basico ". (15 de Outubro de 1998). JUri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Afonso de Oliveira Martins, Joao Caupers. Maria da Conceic;ao Carvalho Pinto Neves, "0 sistema de protec9iio jurisdicional resultante para os particulares dos tratados comunitarios ". (21 de Dezembro de 1998). Juri: Professores Doutores, Jose Gonc;alves de Proenc;a, Rui Moura Ramos, Joaquim Marques Ascensao. Jose Ant6nio Martins Lucas Cardoso, "Autoridades administrativas
Lusiada. Direito, 11 serie, n. I (Janeiro - Junho 2003)
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Doutoramentos e Mestrados em Direito na Universidade Lusiada de Lisboa
independentes e Constituir;:iio ". (17 de Dezembro de 1999). Jliri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Joaquim Gomes Canotilho, Afonso de Oliveira Martins, Carlos Blanco de Morais. Maria Silvina Dias da Silva Valente Seixas Lopes, "Credito ao consumo. Da dependencia contratual no credito ao consumo". (15 de Man;o de 2000). Juri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Joao Calvao da Silva, Carlos Ferreira de Almeida, Augusto de Athayde.
a
Joao Carlos Normanha Salles Junior, "A teoria dafraude lei no Direito Internacional Privado ". (2 de Outubro de 2000). Juri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Jose Gon<;alves de Proen<;a, Ant6nio Marques dos Santos, Joaquim Marques Ascensao. Luis Eduardo Silva de Serpa e 0 liveira, "A flexibilidade funcional na relar;:iio !aboral". (23 de Novembro de 2000). Jliri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Pedro Romano Martinez, Pedro Pais de Vasconcelos. Jose Diogo de Sousa da Camara Horta Os6rio, "Da tomada do controlo de sociedade (takeovers) par leveraged buy-out ea sua harmonizar;:iio cam o direito portugues ". (12 de Dezembro de 2000). Juri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Joao Calvao da Silva, Pedro Pais de Vasconcelos. Nuno Mario Torres Mendes, "Os alimentos no C6digo Civil Portugues. A obrigar;:iio legal de alimentos de naturezafamiliar: enquadramento e regime juridico. (19 de Dezembro de 2000). Juri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Jose Gon<;alves de Proen<;a, Joao Calvao daSilva. Amaldo Gabriel Rico da Costa Neves, "Das contrapartidas no comercio internacional. Countertrade ". (9 de Janeiro de 2001 ). Juri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Diogo Leite de
Lusiada. Direito, I! serie, n. I (Janeiro - Junho 2003)
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Doutoramentos e Mestrados em Direito na Universidade Lusiada de Lisboa
Campos, Joao Calvao da Silva, Augusto de Athayde. Teresa Alexandra da Silva Tavares, " 0 segredo bancario. Fundamentos conteudo e limites ". (9 de Janeiro de 2001 ). JUri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Joao Calvao da Silva, Augusto de Athayde. Maria Luisa de Almeida dos Santos de Sa Gomes, "Algumas rejlexoes sabre os alimentos conjugais ". ( 19 de Junho de 2001 ). Juri: Professores Doutores, Ant6nio da Mota Veiga, Inocencio Galvao Teles, Jose Gon9alves de Proen9a, Carlos Pamplona Corte Real. Margarida Isabel Agostinho da Silva dos Santos, "Seguro de credito ". (31 de Outubro de 2001). Juri: Professores Doutores Inocencio Galvao Teles, Joao Calvao da Silva, Pedro Pais de Vasconcelos. Cristina Maria Rodrigues Frazao de Andrade Biscaya, "Comercio electr6nico na Internet. Aspectos juridicos ". (31 de Outubro de 2001 ). Juri: Professores Doutores Inocencio Galvao Teles, Joao Calvao da Silva, Pedro Pais de Vasconcelos. Manuel Ant6nio do Rosario Nunes, "Da responsabilidade civil par aetas medicos ". (14 de Novembro de 2001). Jliri: Professores Doutores Inocencio Galvao Teles, Jose Gon9alves de Proen9a, Jose Lebre de Freitas. Ant6nio Julio da F onseca Santos Cunha, "Limites subjectivos do casojulgado. Contributo do instituto da interven9Cio de terceiros para o seu estudo ". ( 19 de Dezembro de 2001 ). Juri: Professores Doutores Inocencio Galvao Teles, Joao Antunes Varela, Jose Lebre de Freitas, Miguel Teixeira de Sousa. Gra9a Maria Gomes Barbosa da Penha Gon9alves Rodrigues, "A dissolu9Cio parlamentar. Estudo de Direito Constitucional e de Ciencia Politica" (20 de Fevereiro de 2002). Juri: Professores Doutores Inocencio Galvao Teles, Armando Marques Guedes, Afonso 0 liveira Martins, Maria Lucia Amaral.
Lusiada. Direito, 11 serie, n. I (Janeiro - Junho 2003)
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Doutoramentos e Mestrados em Direito na Universidade Lusfada de Lisboa
Sergio da Concei<;:ao Pires Bras, "Justa causa de despedimento. Evolur;iio hist6rica e situar;iio actual. Contributo para o estudo da justa causa subj ectiva" (1 de Marc;;o de 2002). JUri: Professores Doutores Inocencio Galvao Teles, Ant6nio Jose Moreira, Maria do Rosario Ramalho. Manuel Santos Rodrigues de Almeida, "A competencia do Presidente da Cdmara Municipal" (19 de Marc;;o de 2002). Juri: Professores Doutores Inocencio Galvao Teles, Afonso OliveiraMartins, Joao Caupers, Carlos Blanco deMorais. Rui Miguel Barata Lourenc;;o, "0 recurso em processo penal. Uma nova perspectiva de abordagem e discurso " ( 19 de Abril de 2002). Juri: Professores Doutores Inocencio Galvao Teles, Maria Femanda Palma, Anabela Rodrigues. Maria Ant6nia Prazeres Pereira, "0 direito aos lucros nas sociedades desportivas" (29 de Maio de 2002). Juri: Professores Doutores Inocencio Galvao Teles, Pedro Pais de Vasconcelos, Rui Pinto Duarte.
Lusfada. Direito, Il serie, n. I (Janeiro - Junho 2003)
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CoNFERENCIAS E CoL6Quros
Conferencias e Coloquios
COLOQUIO INTERNACIONAL DE DIREITO PENAL "CRIMINALIDADE ORGANIZADA" (6 e 7 de Novembro de 2002) Silinula COORDENA9A-O
Mestra Maria da Concei9ao Valdagua (Universidade Lusiada). PRESIDENCIA DAS SESSOES
Prof. Jorge Figueiredo Dias (Universidade de Coimbra); Prof. Jose Gon9alves de Proen9a (Universidade Lusiada); Prof. Inocencio Galvao Telles (Universidade Lusiada); Prof. Jose Duarte Nogueira (Universidade Lusiada). CONFERENCISTAS
Prof. Claus Roxin (Universidade de Munique) - Autoria mediata em virtude do dominio da organizac;iio. Prof. Francisco Mufioz Conde (Universidade Pablo Olavide- Sevilha) - Problemas de autoria e participac;iio no Direito Penal Econ6mico. Prof. a Anabela Rodrigues (Universidade de Coimbra) - Criminalidade organizada. Que politica criminal? Prof. Jesus Maria Silva Sanchez (Universidade Pompeu Fabra- Barcelona) - Riscos Permitidos? No limite da Criminalidade organizada. Prof. Santiago Mir Puig (Universidade de Barcelona) -Sabre a responsabilidade das pessoasjuridicas no direito penal espanhol. Prof. Gunter Stratenwerth (Universidade de Basileia) - 0 combate ao branqueamento de capitais cam os meios do direito penal: o exemplo da Suic;a. Prof. Luis Arroyo Zapatero (Universidade de Castilla-La Mancha) - Da territorialidade auniversalidade na persecussiio penal Cons. Jose de Sousa e Brito (Universidade Nova de Lisboa) - 0 11 de Setembro e as motivac;oes do terrorismo.
Lusiada. Direito, !I serie n. I (Janeiro - Junho 2003)
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Conferencias e Col6quios
Prof. a Maria Femanda Palma (Universidade de Lis boa) - Terrorismo e o problema da culpa em direito penal. Prof. Germano Marques da Silva (Universidade Cat6lica de Lisboa) - Meios processuais expeditos no combate ao crime organizado.
IV ENCONTROS DE DIREITO FISCAL CONSTITUCIONAL EUROPEU ( 7 e 8 de Novembro de 2002) Slimula CooRDENA9AO
Prof. Manuel Pires (Universidade Lusiada) CONFERENCISTAS
Dr. Juiz Conselheiro Jose Manuel Moreira Cardoso da Costa (Presidente do Tribunal Constitucional) - Relat6rio introdut6rio. Jurisprudencia constitucional em materia fiscal. Prof. Jose Ramon Ruiz Garcia (Universidade de La Coruiia) - Relat6rio espanhol. Prof. Pierre Beltrame (Universidade de Aix-Marseille Ill)/ Dr. George Mendes Constante - Relat6rio frances. Prof. Roberto Schiavolin (Universidade de Padua) - Relat6rio italiano. Prof. Manuel Pires (Universidade Lusiada) - Relat6rio portugues. Prof. Ant6nio Borges - Segredo bancario: perspectiva econ6mico-financeira. Prof. Jorge Bacelar Gouveia (Universidade Nova de Lisboa) - Conclusoes. Dr. a Maria Celeste Cardona (Ministra da Justi9a) - Discurso de encerramento
Lusiada. Direito, II serie n. I (Janeiro - Junho 2003)
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