Lusíada Direito - 3

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Serie II, n.0 3 (2005)

Direito Universidade Lusfada • Lisboa

Universidade Lusfada Editora Lisboa • 2005


Mediateca da Universidade Lusiada - Catalogac;ao na Publicac;ao

LUSfADA: REVISTA DE CIENCIA E CULTURA. DIREITO. Lisboa, 1998 Lusiada : revista de ciencia e cultura. Direito I propr. Funda<;ao Minerva - Cultura - Ensino e lnvestiga<;ao Cientifica ; dir. Ant6nio . - Lisboa : Universidade Martins da Cruz. - S. 1, n. 1 (1998)Lusiada, 1998- . - 24 cm. - Semestral ISSN 1646-1851 CBC K12.U7 CDU 340(05) ECLAS 04.01.00 Ficha Tecnica Titulo Serie Proprietario Director

Lusiada: revista de ciencia e cultura. Direito 11

N. o

3

Ano

2005

Funda<;ao Minerva - Cultura - Ensino e lnvestiga<;ao Cientifica Prof. Doutor Jose Duarte Nogueira

Sub-Director Mestre Jose Gonzalez Deposita Legal

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Lisboa 2005

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SUMARIO

I - COLOQUIOS I CONFERENCIAS

A - Criminalidade Organizada - Col6quio Internacional de Direito Penal (7 de Novembro de 2002) Polftica criminal - novos desafios, velhos rumos

Anabela Rodrigues ....................................................... ........................... ....... Autoria mediata atraves de dominio da

13

organiza~ao

Claus Roxin ....................................................................................................

39

La superacion del concepto objetivo-formal de autoria y la estructura de las organizaciones empresariales II - Problemas de determinacion de la autoria en el ambito de la delincuencia organizada y economica empresarial

Francisco Muiioz Conde ............. ............................................... .. ..................

55

Meios processuais expeditos no combate ao crime organizado (A democracia em perigo?).

Gennano Marques da Silva............................................................... .............

69

A luta contra o branqueamento de capitais por meio do Direito Penal: o exemplo da Sui~a

Giinter Stratenwerth .......... ............................... ..... ................. .......................

83

L "Pertenencia" o "Intervencion"? Del delito de "pertenencia a una organizaci6n criminal" a la figura de la "participaci6n a travis de organizaci6n" en el delito

Jesus-Maria Silva Sanchez ............................................................... .............

95

De la territorialidad a la universalidad en la persecucion penal

Luis Arroyo Zapatero .................................................................. ................... 0 11 de Setembro, as

motiva~oes

121

do terrorismo e os direitos do homem

Jose Sousa Brito...................... .........................................................................

139


Srumirio

Observac;6es suscitadas pela conferencia do Professor Claus Roxin sobre "Autoria mediata atraves de dominio da organizac;ao" Maria Conceir;iio Valdagua ................................................................ .. ..........

149

Sobre la responsabilidad penal de las personas juridicas Santiago Mir Puig .... ......................................... ....................... .. ...................

155

B - Uma Constitui<;ao para a Europa. Aspectos Pluridisciplinares do Projecto de Constitui<;ao Europeia (Lisboa, 4 de Dezembro de 2003) Os Direitos Sociais no Projecto de Constituic;ao Europeia Albino Mendes Baptista .................................................................................

177

0 Projecto de Constitui<;ao para a Europa e o Direito Processual Civil Jaime Cardona Ferreira ..................................................................................

191

Implica<;6es do Projecto de Tratado que estabelece uma Constitui<;ao para a Europa no Direito Penal Portugues Joiio Ant6nio Raposo .................................................................... .. ............... ..

205

Aspectos Pluridisciplinares do Projecto de Constitui<;iio Europeia Jose Lucas Cardoso ....................................................................................... ..

215

C - Bicentenario do C6digo Civil de Napoleao (Lisboa-Porto 2/3 de Dezembro de 2004) I

C6digo Civil dos franceses, ou C6digo Civil de Napoleao? Diogo Leite de Campos ............................................................................. .. ....

237

Coelho da Rocha eo C6digo Civil Napole6nico Inocencio Galviio Telles ............... ....... .......... ................................. .................

243

Le succes et le rayonnement du Code civil fran<;ais en question Jean Louis Halperin .. .. .. .. ........................... .............. .......................................

249

Le Code Napoleon, Code cameleon? Jean Louis Halperin .... ................................. ...................................................

261

Justifica<;ao da comemora<;iio do Bicentenario do Code Civil des Fran<;ais Jose Gonr;alves Proenr;a ............................. .................. ..................... ..............

271


Sumario

Bicentenario do Code Civil des Fran<;ais Jose Gon~;alves Proen~;a ........................................ .. ..................... ...................

279

No Bicentenario do Code Civil des Fran<;ais Rogerio Ehrhardt Soares .......... ..... ....... ........................... ...............................

293

11

Apresenta<;ao do Catalogo da Exposi<;ao Bibliografica Comemorativa do Bicentenario do Code Civil des Fran<;ais 1804-2004 Jose Duarte Nogueira .....................................................................................

299

11 - DOUTRINA

Casos concretos de desobediencia civil Belizario Neto................. ................ ............... .. ..... ...... ...... .... ......... .. .. ..............

305

Meios alternativos de resolu<;ao de diferendos (ou de litfgios ou de conflitos) Jaime Cardona Ferreira ................................................................. ......... .. ......

317

0 regime do contrato individual de trabalho da administra<;ao publica e a Constitui<;ao portuguesa forge Bacelar Gouveia .... .............. ..................................................................

331

Declara<;ao de Bolonha Jose Gon~;alves Proen~;a ........ ..........................................................................

363

Usucapiao e AUGI's (Areas urbanas de genese ilegal) Jose Gonzalez...... .............................................................................................

371

As concep<;6es polacas de unidade europeia atraves dos seculos Marcos Maciejewsky .. ........... ............... ...................................... ....................

407

Desobediencia civil Marcos Pereira da Silva .................................................................................

419

A Concordata entre a Santa Se e a Republica Portuguesa e a sua incidencia no Direito da Familia Mcirio Ferraz de Oliveira ........................................................... .. .. ................

431

Reflex6es acerca de teorias de justi<;a: algumas criticas a justi<;a coma eqiiidade em John Rawls Paulo Fleury ........................................................... .. ........................................

439


Sumario

Ill - TRABALHOS DE ALUNOS

Contributo para urn contrato de trabalho desportivo - anotado (Lei 28/98 de 26/06)

Lticio Correia ...................................................................................................

459

IV - VIDA INTERNA A- Doutoramentos e Mestrados .........................................................................

529

B - Doutoramentos Honoris Causa .................................................................... I- Doutorandos ............................................................................................ II - Elogio do Doutor Francisco Mun6z Conde

531 531

Jose Duarte Nogueira ..............................................................................

531

C - Conferencias I Co16quios ...............................................................................

539

0- Licenciados .......................................................................................................

545


I

COLOQUIOS E CONFERENCIAS



A) CRIMINALIDADE ORGANIZADA COLOQUIO INTERNACIONAL DE DIREITO PENAL (7 DE NOVEMBRO DE 2002)



POLITICA CRIMINAL - NOVOS DESAFIOS, VELHOS RUMOS

Anabela Miranda Rodrigues



POLITICA CRIMINAL - NOVOS DESAFIOS, VELHOS RUMOS

Anabela Miranda Rodrigues *

I

A "liga<;:ao" entre sociedade e crime evidencia-se na sociedade globalizada dos nossos dias. 0 crime e urn dos sintomas da emergencia da sociedade global que, ao mesmo tempo, deixa perceber a sua evolu<;:ao: nao so do ponto de vista das amea<;:as que a espreitam, corn a infiltra<;:ao da criminalidade nos centros de decisao politicos, economicos e financeiros; mas tambem porque o crime se adapta as novas formas de socializa<;:ao: nesta sociedade "nova" desenvolve-se uma criminalidade "nova". Importa ter presente que as op<;:oes politico-criminais se revelam no contra-luz do crime e da sociedade em que ele se manifesta. A "mesma" sociedade que "explica"- cria o crime, "explica" -legitima a reac<;:ao ao crime. Esta, se importa percebe-la nas manifesta<;:oes concretas que assume, ha que aprecia-la sobretudo - isso e 0 mais importante - a luz da ideologia que a impregna. 1. 0 direito penal como "instrumento de liberdade" ve-se hoje confrontado corn uma crescente demanda de seguranr;a. Falar de luta contra o crime significa assinalar uma finalidade ao direito penal, designadamente a pena. So esta intencionalidade teleol6gica - que tern na realidade social e na protec<;:ao de bens juridicos o seu ponto de referenda - responde aos problemas de legitima<;:ao do direito penal. Cabe a pena o onus de optimizar os resultados. Sem embargo, se nesta afirma<;:ao vai insito o conteudo funcional e dinamico da eficacia, ha que reconhecer que, em materia penal, a tendencia para a maximiza<;:ao dos resultados, logicamente ligada a uma qualquer Folgenorientierung, nao e ilimitada. Os paradigmas ideais da hiper-eficacia preventiva geral e especial, que a literatura descreve corn a sua for<;:a sugestiva, a breve

* Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Directora do Centro de Estudos Judiciarios.

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trecho evidenciaram que, em politica criminal, a optimiza<;ao dos resultados deve ser limitada por garantias que tornem ontologicamente inalcan<;aveis ex ante determinados vertices de eficacia. 0 direito penal e expressao desta evolu<;ao. E tambem na ordena<;ao dos poderes (punitivos) de persegui<;ao penal do Estado em ordem a busca da verdade, do que se trata e de os limitar, para alem do reconhecimento dos direitos das pessoas e, designadamente, do arguido, que esta em causa assegurar e realizar. Numa evidente homenagem que o seculo XIX soube prestar aos direitos fundamentais, projectando-se na consagra<;ao de leis processuais penais como "leis de garantia", que marcaram o sentido da evolu<;ao no seculo XX: pense-se so no caso do direito processual penal portugw?s, cuja estrutura basicamente acusatoria, integrada por urn principio de investiga<;ao, se tern por paradigmatico 1• Hoje, todavia, cresce a demanda de seguran<;a. Criminalidade e medo da criminalidade marcam a contemporaneidade. A globaliza<;ao e o seu cenario2 • A mobilidade das pessoas e dos capitais p6e em causa a logica territorial em que repousava o mundo. Este movimento de fundo - urn pouco retardado pela confronta<;ao Leste-Oeste - produz agora todos os seus efeitos. As grandes constru<;6es institucionais e a concentra<;ao do poder dao lugar ao declinio dos Estados e a urn mundo onde proliferam as redes. 0 aspecto "mais paradoxal" da globaliza<;ao - que unifica o espa<;o das trocas e das comunica<;6es no todo (ou quase) do planeta3 - , "traduz-se sociologicamente por uma dissemina<;ao indefinida e incontrolavel de formas de socializa<;ao. Estas caracterizam-se (... ) por recessos de identidades e comunitarios (... )", que se estendem e multiplicam sem preocupa<;ao de fronteiras. Perante o recuo do Estado, siio a contrapartida da globalizac;iio 4 • Neste contexto, desaparece a "esfera publica", e surgem novos espa<;os de "socializa<;ao". 0 "espa<;o publico" 5 - o espa<;o da liberdade, da igualdade e da laicidade garantido pelo Estado - foi o espa<;o colectivo (social) proprio das sociedades 1 Sobre a conformac;:ao do processo penal e a sua estrutura, vide FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, 1988/1989, Secc;:ao de Textos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra

(Lic;:6es coligidas por M. Joao Antunes), p. 41 s. 2 Sobre a globalizac;:ao, cfr., entre nos, Jose de Faria Costa, "0 fen6meno da globalizac;:ao e o direito penal econ6mico", Estudos em Homenagem ao Prof Doutor Rogirio Soares, Boletim da Faculdade de Direito. Universidade de Coimbra, 61, p. 531 s. Sobre o que se segue, cfr. ANABELA MIRANDA RooRIGUES, "Criminalidade organizada- que politica criminal?", Globaliza~iio e Direito, Studia Iuridica, 73, Boletim da Faculdade de Direito. Universidade de Coimbra, p. 192 s. e bibliografia af citada. 3 Caracteriza-se a globalizac;:ao como uma "compressao do mundo": assim, RoLAND RosERTSON, Globalization: social theory and global culture, 8(1992), apud EoGARDO RoTMAN, "The globalization of criminal violence", Cornell Journal of Law and Public Polict;, vol. 10, Fall 2000, number 1, p. 2. 'Assim, JEAN DE MAILLARD, Le marchi fait sa loi. De /'usage du crime par la mondialisation, Fayard, 2001, p. 39 s. e 89 s .. 5 JEAN DE MAILLARD, L'Avenir du crime, Flammarion, 1997, p. 77 s.; id., Le marchi fait sa loi, cit., p. 98s.

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modernas, que inventaram, ao mesmo tempo, o "espa~o privado", a "intimidade", que escapava ao olhar dos outros membros da comunidade e onde se deviam confinar as diferen~as. Os que nao conseguiam integrar esta norma de funcionamento colectivo eram devolvidos para as margens da sociedade. Eram-lhes "exteriores" - chamavam-se delinquentes e o crime era o resfduo da marginalidade. 0 mundo estava dividido em "bans" e "maus", que se identificavam facilmente, e os "bans" faziam jus a sua bondade dando oportunidade aos "maus" de se tornarem "bans". Assim se conseguiu uma pacifica~ao e urn equilfbrio precarios. Hoje, sob o efeito da globaliza~ao, veem-se proliferar os espa~os colectivos em que nao podem permanecer os indivfduos que sao diferentes. A globaliza~ao nao criou ainda urn novo espa~o social. Ate ao presente, apenas tratou de "desconstruir os quadros sociais existentes" 6 • A organiza~ao social vai fazer-se, por isso, atraves da cria~ao de redes (ou comunidades) de indivfduos que se identificam entre si, nao importando qualquer distin~ao entre rede (ou comunidade) legal e criminosa. Ambas estao, pelo contrario, estreitamente ligadas. A criminalidade deixa de se situar a margem da sociedade, ja que esta em todo o lado. Uma multiplicidade de grupos sociais constitui-se e reconstitui-se, criminosos ou nao, funcionando todos da mesma maneira. 0 que e novo e verdadeiramente preocupante7 e que, do panto de vista estrutural, niio hd diferem;a entre redes quanta a sua fun~ao socializadora de base. Uma rede criminosa desempenha a mesma fun~ao de uma rede nao criminosa. E esta "homologia" que, segundo alguns, permite £alar de "sociedade fractal'', "pais que constitufda por uma multiplicidade de grupos, todos diferentes no seu conteudo e todos semelhantes na sua estrutura. 0 que define a sociedade actual e a porosidade 8 cada vez maior entre a sociedade oficial e a sociedade do crime. A criminalidade e ao mesmo tempo amea9adora e opaca. 0 crime goza de uma dupla opacidade: de urn lado, e invisfvel, banal, "gasoso". Nao e urn comportamento previamente identificavel. Deixou de poder falar-se, em rela~ao a ele, das tres unidades do teatro classico: tempo lugar, ac~ao. De outro lado, a rela~ao imediata crime-estigmatiza~ao social esfumou-se. Esta criminalidade e a principal responsavel por uma polftica criminal que tende a reduzir-se a uma "polftica criminal de seguran~a". 2. Nunca coma hoje foram tao grandes as possibilidades - de que Hassemer ja £ala ha alguns anos - de "dramatizar e de politizar a violencia" 9 • 0 retorno 6 J EAN DE MAILLARD,

Le marche fait sa loi, cit., p. 93. Id., op. ult. cit., p. 100. 8 Assim, J EAN DE M AILLARD, Crimes e leis, Biblioteca Basica de Ciencia e Cultura, 1994, p. 91 s. 9 W. H ASSEMER, "El destino de Ios derechos del ciudadano en un derecho penal "eficaz", Doctrina Penal, 1990, p. 193. Nesta linha, o Autor alerta ainda para que "chegou a hora de conceitos como '!uta', 'eliminac;ao' ou 'repressao' em detrimento de outros como os de 'colaborac;ao' ou 'viver corn'". 7

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a urn "delinquente-inimigo", numa logica de "guerra ao crime" 10 devedora de uma real politik, nao e so a resposta as dimens6es avassaladoras e ao flagelo que constitui a criminalidade organizada. Este retrocesso vem embebido de em uma "cultura de seguran<;a", tipica da "sociedade de risco" e da "sociedade do bem-estar". Aos "novas riscos" e para protec<;ao dos "novas direitos" 11, o Estado, "quebrado o voto" de solidariedade em que se cimentava o pacto social e desobrigado da realiza<;ao de politicas sociais, responde corn o que imediatisticamente satisfaz a "nova seguran<;a" exigida: o direito penaP 2 • A "sociedade de comunica<;ao e aberta" 13 refor<;a a tendencia de os poderes publicos recorrerem ao instrumentarium punitivo, que utilizam tambem coma respasta "simbolica" aos conflitos sociais. Pode ainda afirmar-se, sem grande margem para erro, que a criminalidade de massa e o cadinho de uma politica criminal populista. E conhecida a sua tactica de manipula<;ao do medo colectivo difuso, utilizada corn o objectivo de obter meios e instrumentos para o seu combate mediante restri<;6es da liberdade das pessoas. "As continuas vivencias e descri<;6es da criminalidade de massa condimentam urn clima generalizado de medo ao crime, impotencia do Estado e promessas de que, corn maior repressao, a situa<;ao melhora" 14 • Actualmente vive-se uma dramatiza<;ao e uma politiza<;ao da violencia extraordinariamente grandes. A "oportunidade de perceber a violencia e o seu exercicio" estao extraordinariamente facilitadas. "Uma sociedade que disp6e, por urn lado, de poderosos meios de comunica<;ao e, por outro, esta vivamente interessada, enquanto valora esses meios, na comunica<;ao do fenomeno da violencia, nao precisa ja de a experimentar no seu proprio seio para a perceber

10 0 tratamento de atentados terroristas como "guerras assimetricas" - isto e, guerras nao convencionais- vem legitimar urn tratamento das organiza<;:6es criminosas de pendor terrorista e das mafias internacionais dedicadas aos tn'ificos ilegais como "inimigos do Estado" e, portanto, agentes passfveis de uma resposta "nao convencional», fora do enquadramento jurfdico, mesmo do direito internacional. 0 estabelecimento, assim, de cfrculos concentricos entre "guerras assimetricas" e o "direito penal do inirnigo" (cujas base G. JAKOBS estabeleceu: "Kriminalisierung im Vorfeld einer Rechtgutverletzung", Zeitschrift fiir Strafrechtwissenschaft, 97, 1985, p . 751 s,; vide, tambem, B. MENDOZA BUERGO, El derecho penal en la Sociedade del Riesgo, Civitas, 2001, p. 132 s.) implicam o retrocesso a urn tempo em que o "estranho", o "desviante" eo delinquente-inimigo e quem esta fora do pacto social e alguem contra quem ha que "lutar". Sobre isto, cfr. LAURA ZUNIGA RooRiGUEZ, "Redes internacionales y criminalidad: a prop6sito del modelo de "participaci6n en organizaci6n criminal", El derecho penal ante la globalizaci6n, LAuRA ZGN!GA RooRfcUEz, CRJSTINA MENDEZ RooRfcUEz, M. RosARIO DIEGO DiAz-SANTOS (Coord.), Colex, 2002, p. 53 e 54. 11 As acrescidas expectativas dos cidadaos sao convertidas em "direitos": fala-se de "infla<;:ao de direitos" e de "explosao de direitos". Sobre isto, cfr. LAURA ZGNrGA Roon.fcuEz, Politica criminal, Colex, 2001, p. 266 s. 12 Sobre isto, cfr. infra; tambem ANABELA MIRANDA RooRIGUEs, Novo olhar sabre a questiio penitencidria.

Estatuto juridico do recluso e socializa~iio. Jurisdicionaliza~iio. Consensualismo e prisiio. Projecto de Proposta de Lei de Execu~iio das Penas e Medidas Privativas de Liberdade, 2.' edi<;:ao, Coimbra Editora, 2002, p. 148 s. 13 Sobre isto, LAURA Zur\ircA RooRfcUEz, Politica criminal, cit., p. 269 s. 14 Assim, W. HASSEMER, A seguran~a publica no Estado de Direito (Associa<;:ao Academica Faculdade de Direito de Lisboa, 1995), p. 92.

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em toda a sua omnipresen~a: basta-se s6 corn contemplar o exercicio da violencia no mundo que a rodeia" 15. Paralelamente a esta percep~ao social da violencia, do risco e da amea~a, a atitude social transforma-se: a sociedade nao oferece mais urn direito penal que realmente seja uma garantia de liberdade: a "magna carta do delinquente" a sociedade op6e a "magna carta do cidadao", o reclamo por urn arsenal de meios efectivos de luta contra o crime e de repressao da violencia. 0 requisit6rio e a favor de urn direito penal que alia instrumentos e criterios repressivos a instrumentos e criterios inovadores e modernos, dando lugar, ao lado de urn direito penal "de colarinho azul", repressivo da violencia, a urn direito penal "de colarinho branco", tecnocratico, de orienta~ao pelos fins" 16. Marcado, entretanto, pelo olvido ou afastamento de principios que tradicionalmente vinham ja enriquecendo o patrim6nio penal: o da (necessidade e da) subsidiariedade da interven~ao punitiva e o da defesa da eminente dignidade da pessoa. Esta demonstrado empiricamente que o tema do "comb ate a criminalidade" constitui urn subtil regulador dos sentimentos de amea~a da popula~ao"1 7. Sentimentos poderosos e fortemente enraizados, activados e despertados quando a amea~a e ao mesmo tempo intensa e difusa e a impotencia do Estado para controlar a criminalidade e not6ria. Certos grupos sociais mostram uma "elevadissima sensibilidade ao risco" e uma "obsessao pela seguran~a" 1 8 . Estudos realizados mostram que nao ha rela~ao directa entre taxas de encarceramento e taxas de delinquencia. Verdadeiramente, a rela~ao e entre taxas de encarceramento e "clima moral-social" associado a uma conjuntura econ6mica especifica19 . E o "humor do tempo", revela urn estudo de Zimring e Hawkins 20 • Nao e a lei, defendem os mesmos autores, mas a aplicapio da lei que influencia decisivamente a taxa de encarceramento. 0 que faz deslocar a questao para o contexto culturaP. Exigencias de austeridade e apelo a ordem social e a uma maior estabilidade exprimem urn requisit6rio a favor da disciplina social a que uma politica criminal mais agressiva pode dar corpo. Quando uma economia esta em crise, os conflitos sociais atingem o paroxismo, a sociedade reivindica direitos e nao se preocupa corn a solidariedade. Ja Durkheim o tinha compreendido, quando sustentava 15

W. H ASSEMER, Doctrina penal, cit., p. 193. Id., ibidem, p . 198 s. 17 Id., A seguran~a publica, cit., p. 89. 18 Sobre isto, J. M. SrLVA SANcHEz, A expansiio do direito penal. Aspectos da politica criminal nas sociedades postindustriais, Editora Revista dos Tribunais,S. Paulo, 2002, p.32s. 16

19 Cfr. M. D. MELossr, "Effets des circonstances economiques sur le systeme penal. Crime et economie", Actes - Rapports presentes au 11' Colloque Criminologique, 1994, p. 79 s. 20 F. Z!MR!NG e G. HAWKINS, "The growth of imprisonment in California", British Journal of Criminolog~;, 34 (Special Issue), 1991, The Scale of imprisonment, p. 83 s. 21 Neste sentido, e no que se segue, M. D. MELOSSI, Actes, cit., p. 83 s.

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que a sociedade redefine as fronteiras da moralidade debatendo publicamente o direito, sobretudo o direito penal. Mead mostrou-o atraves da sua teoria do "bode expiatorio", E Foucault, corn a sua amilise da transforma<;ao das "ilegalidades subversivas" em "delinquencia", refor<;ou-o. Par seu turno, a repressao da criminalidade organizada e o apoio na opiniao publica que esta repressao merece caucionam, ao mesmo tempo, uma repressao muito mais abrangente. A mistura de dois tipos de criminalidade, organizada e de massa, vicia os dados da polftica criminal. 0 consenso obtido na luta contra a criminalidade grave permite justificar urn endurecimento cego e generalizado da puni<;ao22 • Por urn lado, o facto de se estar perante uma criminalidade muito grave, de efeitos danosos avultadissimos e cuja violencia e bem conhecida, convoca urn discurso de encurtamento dos direitos, liberdades e garantias do delinquente, pretendendo-se que 0 respeito pelos direitos fundamentais e, em larga medida, inconciliavel corn a eficacia da persegui<;ao deste tipo de criminalidade. Numa analise acutilante da criminalidade organizada, Louise Shelley caracteriza-a coma urn "novo autoritarismo" que amea<;a as democracias, corn em enorme potencial disruptivo e de intrusao nas suas institui<;6es23 • Resta saber se o pre<;o da eficacia na luta contra esta amea<;a da democracia e o de atingir a cerne da propria democracia: os direitos fundamentais da pessoa. Por outro lado, ha uma estreita liga<;ao entre criminalidade organizada e global e a criminalidade locaF4 • A globaliza<;ao exclui segmentos de sociedades e economias das redes de informa<;ao disponfveis para as sociedades e economias dominantes. Desemprego e marginaliza<;ao - criando o que Castells chama "buracos negros" do capitalismo da informa<;ao 25 - fornecem o mercado ideal para o recrutamento de delinquentes. "Soldados rasos das empresas de criminalidade global",

22 "0 grau de legitimidade atingido pelo sistema de justi<;a penal, pelo aparelho judiciario e pelo aparelho policial nao tern precedentes na hist6ria italiana" - escrevia Pavarini, em 1994 (M. PAvARINI, "The new penology and politics in crisis: the italian case", British Journal of Criminologtj, 34 (Special Issue), p. 59). 0 pano de fundo era a Opera.;ao Maos Limpas. Mas, conclufa o mesmo Autor: "Por cada mafioso enviado para a prisao, cem toxicodependentes condenados sao tambem enviados para a prisao; por cada politico corrupto colocado atras das grades, cem imigrantes de rat;a negra sao presos". Denuncia, na mesma linha, A. BARATIA ("Prefazione", SERGIO MocciA, La perenne emergenza. Tendenze autoritarie nel sistema penale. Napoli, Edizioni Scientifiche Italiane, 1997, p. XXIII): a "sobrelota.;ao das pris6es italianas nao e consequencia de estarem cheias de mafiosos, traficantes de droga ou corruptos" - "cerea de 50% da popula.;ao carceraria e toxicodependente e 25% pertence a grupos recrutados nas zonas sociais marginais de mais 'risco' ". 23 LoUISE SHELLEY, "Transnational organized crime: the new authoritarianism", The illicit global economy and State power, 25, p. 32, H. RICHARD FRIMAN, PETER ANDREAS (eds.), 1999, apud EDGARDO RoTMAN, Journal of Law, cit., p. 9 s.: a criminalidade organizada beneficia do vacuum deixado pelo poder estadual centralizado. 24 Cfr. EDGARDO RoTMAN, op. ult. cit., p. 24 s. 25 Manuel Castells, End of millenium, 1998, p. 161, apud EoGARDO RoTMAN, op. ult. cit., p. 24.

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na expressao de Rotman26, que lembra o caso dos delinquentes que servem os traficantes globais de droga. Este e o cadinho em que "crime e castigo" se tornam urn tema dominante da politica. 0 crime tende a estar obsessivamente sobrerepresentado nas campanhas eleitorais e a aten«;ao dos media tornou-o "a metafora preferida para todas as formas de ansiedade social" 27 • A pena, por sua vez, e a metafora que serve para apontar o remedio. Uma auh~ntica "obsessao pela pena" domina a sociedade - obsessao que acaba por dar lugar a uma verdadeira "industria de luta contra o crime" 28 • A prioridade no combate ao crime nos pafses industrializados avan«;ados, especialmente nos Estados Unidos da America, desencadeou o fen6meno que Jonathan Simon chama "governo atraves do crime" ("governing through crime")29 • 0 que quer dizer que o crime eo castigo se tornam 0 contexto preferido de governo - isto e, para orientar 0 comportamento humano em geral. A interven«;ao penal encobre uma eficacia real de exclusao e de confinamento30, ganhando, neste sentido, urn cariz simb6lico. Neste quadro, o apelo a interven«;ao socializadora do Estado sabre o delinquente ou a invoca«;ao de direitos fundamentais deste afigura-se "anacr6nica ou ingenua" 31 • A politica criminal tende (entao) a reduzir-se a uma "polftica de seguran«;a". E certo que as teses crfticas mais relevantes atacam a socializa«;ao corn base na defesa da autonomia do indivfduo face ao Estado. E que o modelo neo-classico que, designadamente nos Estados Unidos da America, pretendeu substituir-se ao modelo socializador nao pas em causa, por si mesmo, a limita«;ao das san«;6es atraves dos prindpios da proporcionalidade ou da culpa. Era urn modelo neo-garantista. A verdade, porem, e que, ao procurar reduzir-se a discricionariedade quase ilimitada corn que eram tomadas decis6es quanta a pena - quer quanta a determina«;ao da sua medida, quer quanta a liberta«;ao do condenado em cumprimento de uma pena de prisao -, gerou-se em muitos pafses, ali sobretudo quando aquela preocupa«;ao e articulada corn objectivos eficientistas de inocuiza«;ao, urn discurso "legalista" da justi«;a, obrigat6ria, completa, fechada, repressiva e potencialmente desumanizante. Por tudo isto, nao e de estranhar que se assista, hoje, a inflexao das polfticas estaduais e a urn redesenhar da fisionomia das sociedades europeias, atingidas por uma especie de "panico moral" importado dos Estados Unidos

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Op. ult. cit.

27 EoGA RDO R o lMAN,

op. cit., p. 34, que apela a JoNATHAN SIMON, "Governing through crime", The crime conundrum: essays on criminal justice, L. M . FRIEDMAN, G. FJSCHER (Eds.), 1997, p. 173. 28 Assim, Nns CHRISTIE, Crime control as industry, London, 1968 (apud M. D. M ELOSSJ, Actes, cit., p. 95). 29 Cfr. supra, nota 27. 30 Assim, A. BARATIA, La perenne emergenza, cit., p. XXIII (que apela a Massimo Pavarini). 31 Assim, JoHN LEE, apud A. BARATIA, op. ult. cit., p. XXI.

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da America 32 • "0 seu objectivo (... ) e a delinquencia dos "jovens", as "violencias urbanas", as desordens de que os "bairros sensiveis" seriam o cadinho e as "incivilidades" de que os seus habitantes seriam os primeiros culpados". Dissimula-se, neste movimento 33, uma redefini<;ao da fun<;ao do Estado, que "se retira da arena econ6mica e afirma a necessidade de reduzir o seu papel socializador e de alargar, endurecendo-a, a interven<;ao penal". 0 "novo senso comum penal" e "a tradu<;ao e complemento, em materia de justi<;a, da ideologia economic a e social baseada no individualismo". E, afinal, a politica de emagrecimento do Estado providencia. As liga<;6es entre o declinio do sector social do Estado e o desenvolvimento do seu bra<;o penal sao evidentes. Em simultaneo corn o pedido de "menos Estado" na ordena<;ao econ6mica e social exige-se "mais Estado" para encobrir e canter as consequencias sociais deleterias onde se verifica a deteriora<;ao da protec<;ao social. 0 Estado individualista deve ser tambem urn Estado punitivo. 0 aumento de demanda de seguran<;a relativiza a demanda de liberdade. A seguran<;a - estritamente definida em termos fisicos e nao de risco para a vida (salarial, social, medica ou educativa) - emerge como prioridade da ac<;ao publica. Em ultima anaJise: dizer que o investimento na socializa<;ao e eficaz, porque pelo menos a medio prazo reduz os custos sociais derivados do cometimento de crimes, nao se compadece corn a polftica de gestiio de riscos - uma das formas de governo atraves do crime - que exige (decis6es e) medidas a curto prazo.

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3. Assistiu-se, nas duas ultimas decadas do seculo XX, sobretudo nos Estados Unidos da America e no Reino Unido, a urn "desenvolvimento autoritario da justi<;a criminal" 34 • Estes dois paises tern "emblematicamente" em comum, neste campo, entre outras coisas, urn limite etario muito baixo para a aplica<;ao do direito penal (dos adultos) e a op<;ao pela inocuizar;iio selectiva (selective incapacitation) como finalidade da execu<;ao da pena de prisao. Perigosidade e seguranr;a sao os conceitos-chave desta "penologia". Que tern razao em se qualificar de "nova" - "nova penologia" 35 - , se bem que 32 Cfr. MALCOM M. FEELEY, "Le origini e le conseguenze del panico morale: gli effetti sulle Corti americane delle leggi 'tre volte e sei eliminato' ", Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, 2, 2000, p. 417 s. (a expressao "paruco moral", que faz hoje parte do lexico sociol6gico, foi cunhada por Stanley Cohen para designar a atitude que se desenvolveu contra dois movimentos juvenis- os mods e os rockers -, protagonistas de desordens e de violencias no anos sessenta e setenta do seculo anterior). 33 Cfr. ANABELA MIRANDA RODRIGUES, Novo olhar, cit., p. 148 S. e bibJiografia af citada. 34 Assim, A. BARATIA, La perenne emergenza, cit., p. XX. 35 Sobre a "nova penologia", cfr. Crime and Risk Sociehj, PAT O'MALLEY (Ed.), Dartmouth, 1998, "Introduction", p. XIs. e JoNATHAN SIMoN, "The emergence of a risk society: insurance, law and the

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prossiga urn desejo ja antigo de irradica<;ao do crime. No fundo, foi a esta preocupa<;ao que procuraram responder todas as elabora<;6es doutrinais sobre os fins das penas36 • Mesmo as que encontravam para estas uma justificafiio retributiva, nao enjeitavam que corn a aplica<;ao das penas se visassem objectivos preventivos: Kant e Hegel, no passado; Welzel, Maurach, Armin Kaufmann ou Eduardo Correia, mais perto de nos, ilustram o que se quer dizer. E, se a defesa da sociedade nao foi alheia a moderniza<;ao e humaniza<;ao do direito penal iniciada por Beccaria, ela passou a fazer parte da historia corn o Programa de Marburgo (1882) de Franz von Liszt, que conferiu a politica criminal o estatuto de disciplina "cientffica" autonoma do direito penaP7 • Neste programa politico-criminal, convem lembra-lo, ja se considerava o crime como reflexo da perigosidade do delinquente e a cren<;a no seu tratamento levava a constitui<;ao de "grupos" de delinquentes ocasionais, corrigiveis e incorrigiveis. Ideias que, fazendo parte do patrimonio do "modelo medica" de interven<;ao punitiva, nao ficaram, todavia, como neste, ligadas a urn movimento expansionista do direito penal, ja que este direito penal nunca deixou de ser invocado por von Liszt como a "barreira intransponivel da politica criminal" 38 . Corn efeito, urn programa politico-criminal orientado pela Zweckrationalitiit, assente na perigosidade e na fe na possibilidade de interven<;ao curativo-terapeutica pede, em coerencia, "flexibilidade" - isto e39, que se desenvolva a margem da legalidade, de acordo corn principios de oportunidade da promo<;ao processual e da aplica<;ao das reac<;6es criminais e de individualizafiio das san<;6es a aplicar. E, se nalgum momento se acreditou que substituir a pena pela medida de seguran<;a e o jurista pelo medica era uma op<;ao humanista e de progresso, a verdade e que a 16gica autoritdria desta interven<;ao

State", ibidem, p. 3 s. Cfr. ainda J. M. SILVA SANCHEZ, "El retorno de la inocuizacion. El caso de !as reacciones juridico-penales £rente a Ios delincuentes sexuales violentos", £studios de derecho penal, Editora Juridica Grijley, 2000, p. 233 s. Entre nos, cfr. as referencias de PEDRO CAEIRO, "Legalidade e oportunidade: a perseguic;ao penal entre o mito da "justic;a absoluta" e o fetiche da "gestao eficiente" do sistema", Revista do Ministerio Publico, 84, 2000, p. 44; tambem FIGUErn.EDo DIAS, "0 direito penal entre a 'sociedade industrial' e a 'sociedade do risco' ", Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogerio Soares, Boletim da Faculdade de Direito. Universidade de Coimbra, 61, 2001, p. 598 e 599. 36 A NABELA Mrn.ANDA RooRIGUEs, A determinariio da medida da pena privativa de liberdade (os criterios da culpa e da prevenriio), Coimbra Editora, 1995, p. 152 s. 37 Sobre o estatuto da polftica criminal, cfr. FIGUEIREDO DIAS, "Os novos rumos da polftica criminal e o direito penal portugues do futuro", Separata da Revista da Ordem dos Advogados, 3, 1983, Lisboa, p. 5 s. 38 FRANZ voN LISZT, "Uber den EinfluB der soziologischen und anthropologischen Forschungen auf die Grundbegriffe des Strafrechts", Strafrechtliche Ausii.tze und Vortrii.ge, tomo ",Berlin, 1905, p. 75 s. (p. 80). Sobre o programa politico-criminal de Franz von Liszt, cfr., entre nos, Eduardo Correia, A influencia de Franz von Liszt sabre a reforma penal portuguesa, Coimbra, 1971, passim; V., ainda, J. M. SILVA SANCHEZ, "Reflexiones sobre !as bases de la politica criminal", £studios, cit., p. 185 s. 39 Assim, FJGUEIREDO DIAS, Direito Penal Portugues. As consequencias juridicas do crime, Editorial Noticias, 1993, p . 59.

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"curativa" 40 encontrou oposi<;:ao e limite nas democracias, ao acolherem prindpios como os da legalidade, da culpa ou da socializa<;:ao nao coactiva. A preocupa<;:ao de eficacia, ligada a seguran<;:a regressa agora, ja o dissemos. E, ligada ao risco, volta a centrar-se na perigosidade. Entretanto, entronizado aquele conceito de seguran<;:a e reinterpretado o de perigosidade a luz da racionalidade econ6mica tipica de urn enfoque neo-liberal, abalam-se os limites que laboriosamente foram erigidos ao totalitarismo dos "programas finais". Corn efeito, a nova penologia 41 nao enjeita a pondera<;:ao dos custos e beneficios econ6micos na discussao sabre os fins da puni<;:ao. E, por isso, reabilita a ideia de inocuizar;iio, alem do mais selectiva42, ja que apresenta significativas vantagens econ6micas perante a inocuiza<;:ao indiscriminada. A inocuiza<;:ao, ou seja, a manuten<;:ao na prisao, pelo maxima de tempo possivel, de urn numero de delinquentes escolhidos em fun<;:ao da sua perigosidade (responsabilidade por certos crimes e previsao de que vao continuar a comete-los) consegue uma redu<;:ao radical da criminalidade e, desta forma, beneficios importantes ao menor custo. 0 que se procura e obter 0 maxima de vantagens sociais corn 0 minima custo possivel, numa 16gica empresarial que domina a actividade estadual de controlo da criminalidade. A identifica<;:ao dos individuos perigosos (risk offenders) e feita por metodos de natureza actuarial (actuarial justice)'13, os mesmos metodos de probabilidades e quantitativos que, no ambito dos seguros, designadamente, se utilizam para a gestao de riscos. Isto supoe recorrer ao metodo estatistico, tomando coma base indicadores cuja quantifica<;:ao e 0 panto de partida para fazer juizos de prognose sabre a perigosidade de certos grupos ou classes de individuos. Alterou-se, pois, substancialmente, o metodo de prognose da perigosidade para identifica<;:ao dos individuos a inocuiza1~ que deixou de se basear na analise psicol6gica individual e concreta da perigosidade. Deixou de interessar conhecer o individuo e saber o que o levou ao cometimento do crime para o "corrigir": passou a interessar o seu perfil, o grupo, a popula<;:ao ou conjunto estatistico a que pertence, para o inocuizar e, assim, impedir de voltar a cometer crimes. Substituida a culpa pela perigosidade, ao Estado pede-se que fa<;:a

4 째Fala em "direito penal curativo" W. HAsSEMER, "Bilder vom Strafrecht", BoLLINGER I LAUTMANN (Hrsg. ), Vom Guten, das no eh stets das Base Schafft. Kriminalwissenschaftliche Essays zu Ehren von Herbert Jiiger, Frankfurt, 1993, p. 69 s. (p. 75 e 76). 41 Cfr. supra, nota 35. 42 Sobre o debate em torno da inocuiza.;ao selectiva, cfr. J. BLACKMORE I J. WELsH, "Selective incapacitation: sentencing according to risk", Crime and DelinquenCJj, Octobe1~ 1983, p. 504 s (disponivel em Risk Society, cit., p. 273 s) e Tooo R. CLEAR I D. M. BARRY, "Some conceptual issues in incapacitating offenders", Crime and Delinquency, 29, 1983, p. 529 s. (tambem em Risk Society, cit., p. 339 s.). 43 Sobre isto, cfr. FEELEY I SI?v!ON, "The new penology: notes on the emerging strategy of corrections and its implications", Criminology, vol. 30, n.Q 4, 1992, p. 449 s.; id., "Acturial justice: the emerging new criminal law", NELKEN (Ed.), The futures of criminology, London, 1994, p. 173 s. (disponiveis em Risk Society, cit., p. 231 s e 375 s.).

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a gestiio dos riscos da reincidencia, no pressuposto de que a sociedade renuncia a suportar qualquer percentagem desse risco. A "eficiencia" do combate ao crime assim o exige, sacralizado o valor seguran<;a: agora urn conceito que se "liga" exclusivamente a "defesa contra o crime" e perde a dimensao social, mas - paradoxalmente, ou talvez nao - se desliga da protec<;ao de bens juridicos e e metonimicamente identificado corn a "santidade dos locais ptiblicos", indispensavel a "qualidade de vida" urbana44 • Quando a culpa define a fronteira absoluta da distribui<;ao de riscos entre individuo e sociedade, recai sobre a sociedade o risco de reincidencia do agente imputavel que cumpriu a pena a que foi condenado pelo crime cometido. Ja na gestao eficientista do risco que a nova forma de abordagem do combate ao crime pressupoe, todo o risco se faz recair sobre o individuo, submetendo-o a uma interven<;ao de seguran<;a de maxima intensidade45 • A luz desta 16gica penal securitaria46 promove-se a ideia de que a "prisao funciona" e inverte-se a estrategia anti-institucional antes delineada na politica criminal47 •

44 A abordagem do crime mediante a 16gica da "gestii.o de riscos reflecte-se nwn aumento do mimero de regras (preventivas) de regula~ii.o dos espa~os publicos. Novas estrah~gias de preven~ii.o do crime para tornar as pessoas seguras ou faze-las acreditar que estii.o seguras sii.o os substitutos da anterior abordagem de socializa~ii.o. Cfr., infra, nota 46. 45 Neste sentido, SJLVA SA.NCHEZ, Estudios de derecho penal, cit., p. 243 s. Fala-se de seguran9a cognitiva por oposi~ii.o a seguran~a contrafcictica. 46 A "cultura securitaria" apresenta varios tra~os caracterfsticos, para alem dos indicados em texto. Refira-se aqui a "privatiza~ii.o da seguran~a", corn o recurso a "empresas privadas de seguran~a", como wn movimento puramente econ6mico, face aos custos que a seguran~a representa para o Estado: actuando no ambiente, as tecnicas de seguran~a "socializam" os custos do controlo, sem necessidade de interven~ii.o directa do Estado (cfr. NANCY REICHMAN, "Managing crime risks: toward an insurance based model of social control", Research in Law, Deviance and Social Control, 8, 1986, p. 151 s. (disponivel no volume Crime and Risk Socieh;, cit, p. 49 s.); mostrando como a privatiza~ii.o da seguran~a viola o princfpio da igualdade dos cidadii.os perante a lei, P.-H BoLLE, "La securite interieure en Suisse: un concept multiforme et proteiforme", Revue Internationale de Criminologie et de Police Technique et Scientifique, Geneve I Suisse, n .Q4, 2001, p. 392 e 393). Neste contexto, fala-se em uma nova proposta preventiva - a "nova preven~ii.o" -, que desloca a perspectiva preventiva para fora do sistema penal, situando-a num momento anterior ao crime: sobre isto, cfr. EDGARDO RoTMAN, "0 conceito de preven~ii.o do crime", Revista Portuguesa de Ciencia Criminal, 8, 1998, p. 319 s. e CRISTINA ZACKSESKI, "Da preven~ii.o penal a 'nova preven~ii.o' ", Revista Brasileira de Ciencias Criminais, Instituto Brasileiro de Ciencias Criminais, 29, 2000, p. 176 s., corn indica~6es precisas sobre os modelos anglo-sax6nico e escandinavo e o frances. Outra caracteristica da "cultura securitaria" dos nossos tempos e a inseguran~a que ela propria cria. 0 Estado perdeu a sua fun~ii.o de "integra~ii.o total da popula~ii.o", de acordo corn a reflexii.o de Jiirgen Habermas, tambem pelo que diz respeito a seguran~a; que, por isso, sofre urn processo de exclusii.o (fala-se de "ghetiza~ii.o"). Nii.o ha "uma seguran~a", mas "varias seguran~as" ou "varios espa~os securitarios", fechados e justapostos, impermeaveis uns aos outros, mesmo incompatfveis, que, por se formarem na ignoriincia recfproca em cada grupo social, geram inseguran~a (sobre isto, cfr. P.-H BOLLE, cit., p. 391, por referencia a F. Sack). Note-se, de resto, que a referida privatiza~ii.o da seguran~a acelera este processo de "desintegra<;:ii.o social". Na linguagem sociol6gica, a "inseguran~a total" eo resultado da soma das "seguran~as totais". 47 Elaboram-se estudos para fundamentar as conclus6es de que "o triplicar da popula~ii.o prisional nos Estados Unidos da America entre 1975 e 1989 teria, unicamente pelo efeito "inocuizador",

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Simultaneamente, restringem-se as possibilidades de aplica~ao de certas medidas de flexibiliza~ao da pena de prisao, tais como a liberdade condicional, ou ensaia-se a sua reconforma~ao, numa perspectiva de "controlo prolongado do individuo" ou de "exito da sua aplica~ao" quando se violam as condi~6es da sua aplica~ao e o individuo deve voltar a prisao. Esta corrente encontra ainda expressao na consagra~ao de urn sistema de "dupla via" em sede de processo penal. Que, no ambito da pequena e media criminalidade, significa a consagra~ao de urn paradigma de oportunidade na actua~ao do Ministerio Ptiblico48, abrindo caminho a formas de justi~a negociada em que esta em jogo a possibilidade de urn beneficio penal; e, quanto a criminalidade mais grave, abre a via a solu~6es que, por vezes, podem colocar em causa, de forma insuportavel, os direitos de defesa do arguido: pense-se, a titulo meramente exemplificativo, em certas hip6teses de utiliza~ao de agentes encobertos ou no aproveitamento das potencialidades de novos meios tecnol6gicos para lograr certas formas de protec~ao de testemunhas (da sua identidade, por exemplo) 49 •

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Num mundo aberto e complexo, "o fen6meno criminal lan~a-nos urn desafio paradoxal: habituarmo-nos a viver corn uma criminalidade inerente ao proprio funcionamento da sociedade e conceber, todavia, replicas que a impe~am de nos submergir" 50 • Que fazer para controlar o "caos"? - se quisermos utilizar uma linguagem cientifica. Que estrategia para o novo milenio"? - se quisermos utilizar uma linguagem politica. Sao dois os desafios que, apoditicamente, podemos enunciar: encontrar formas vertebrantes de uma politica criminal comum e nao dar cobertura a uma "politica criminal securitaria" em detrimento de uma "polltica criminal de liberdade". prevenido 390 mil assassfnios, viola~6es e assaltos violentos s6 durante o anode 1990" e de que "as despesas corn as penitenciarias sao urn investimento ponderado e rentavel para a sociedade" (a este prop6sito, cfr. ANABELA MIRANDA RoDRIGUES, Novo olhar, cit., p. 150 e bibliografia af citada). Nos Estados Unidos Da America, nos anos setenta, s6 10% das condena~6es ultrapassavam urn ano de prisao as restantes ou eram inferiores a urn ano, suspensas corn condi~6es ou o condenado sujeito ao regime da probation; nos anos oitenta, aquele mimero quadruplicou; entre 1980 e 1992, em todos os Estados Unidos, a popula~ao carceraria triplicou (cfr. MALCOM FEELEY, Rivista ltaliana, cit., p. 419). 8 ' Sobre o significado desta "oportunidade" que nao serve interesses imanentes a administra~ao da justi~a penal e, assim, os da interven~ao minima, nao estigmatiza~ao do agente, consenso e economia processual, que devem ser prosseguidos, mas a raison d'Etat ou a conveniencia de servi~o, cfr. PEDRO CAEIRO, Revista do Ministerio Publico, cit., p. 38 s.; tambem, ANABELA MIRANDA RoDRIGuEs, "Celeridade e eficacia - uma op~ao politico-criminal", em curso de publica~ao, Livro de Homenagem

ao Prof Doutor forge Ribeiro Faria. 49 Sobre isto, cfr., ANABELA MIRANDA RoDRIGUES, "A defesa do arguido: uma garantia constitucional em perigo no "admiravel mundo novo"?", Revista Portuguesa de Ciencia Criminal, 12 (2002), p. 553 s. 50 Assim, JEAN DE MAILLARD, Crimes e leis, cit., p. 91.

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4. Urn nivel problematico resulta do facto de a politica criminal estar em processo de "desnacionaliza<;ao" ou "desestadualiza<;ao". E isto, nao so no sentido que ja se assinalou, ao falar de consensualismo, de fazer recuar o Estado na interven<;ao coactiva e chamar a sociedade a participar na luta contra 0 crime: isto e, no sentido que a politica criminal perde 0 seu caracter simplesmente "estadual" e ganha uma "tournure" social. No tempo actual, a politica criminal tornou-se comum - "comunitarizou-se", seja o que for que signifiquem "coopera<;ao" ou "harmoniza<;ao". Ha urn processo de "regionaliza<;ao politico-criminal" em marcha: para alem, inicialmente, do Conselho da Europa, do Benelux e da Uniao Nordica, mais tarde o espa<;o Schengen e agora a Uniao Europeia. Tornou-se evidente que os sistemas penais, individualmente considerados, sao inoperantes para responder ao desafio da nova criminalidade. Esta criminalidade utiliza as logicas e as potencialidades da globaliza<;ao para a sua organiza<;ao, permitindo que grupos criminosos homogeneos "aproveitem as vantagens que oferece o novo espa<;o mundial, corn a cria<;ao de zonas de comercio livre em algumas regi6es do mundo, nas quais se produz uma permeabiliza<;ao economica das fronteiras nacionais e se reduzem os controles" 51 • Neste "mercado gigantesco" para que evoluiu a economia mundial, existe uma procura de bens proibidos que, agora por este motivo, o converte em idoneo para a prolifera<;ao de organiza<;6es criminosas. Para o satisfazer, surge urn mercado de bens e servi<;os ilegais que coexiste corn o mercado legal. 0 crime adquiriu uma enorme capacidade de diversifica<;ao, organizando-se estrutural e economicamente para explorar campos tao diferentes quanto o jogo, o proxenetismo ou a prostitui<;ao, os traficos de armas, de drogas e de pessoas. E bem conhecido o fenomeno de "regionaliza<;ao economica" do mercado global (internacional). Blocos de paises, que come<;aram por configurar uma integra<;ao economica e depois passaram a constituir uma uniao politica, fizeram deslocar os centros de decisao dos "Estados soberanos" para a "comunidade de Estados". Uma serie de politicas comuns exigidas pela integra<;ao (economica) sao postas em funcionamento. As redes criminosas beneficiam das possibilidades que lhes oferecem as redes de mercados livres, usufruindo dos avan<;os tecnologicos para dar urn salto qualitativo na sua actua<;ao. E uma criminalidade corn alto poder de corrup<;ao-contamina<;ao das rela<;6es economicas licitas, bem "organizada" do ponto de vista estrutural. A organiza<;ao criminosa tern de ser vista como uma for<;a essencial do mercado economico globalizado52 • A semelhan<;a corn

51 Assim, I. BLANCO CoRDERO e I. S. GARCIA DEPAZ, "Principales instrumentos intemacionales (de Naciones Unidas e la Union Europea) relativos al crimen organizado: la definici6n de la participaci6n en una organizaci6n criminal y Ios problemas de aplicaci6n de la ley penal en el espacio", Revista Penal, Universidad de Castilla-La Mancha, n.Q6, p. 4. 52 Assim, e no que se segue, cfr. EDGARDO ROTMAN, Journal of Law, cit., p. 5 s.

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a llempresall na forma de conduzir a sua actividade e de se reestruturar em fun~ao das modifica~oes dos mercados mundiais confere-lhe capacidade para se movimentar corn agilidade no mundo econ6mico. Enquanto a empresa criminal na sua forma tradicional (classica) e caracterizada pela hierarquia, a mais moderna e flexfvel, expande-se ou contrai-se de acordo corn as oportunidades ou os riscos. Para alem disso, adopta como referenda o modelo empresarial e dos neg6cios: racionaliza~ao dos meios pessoais e materiais, a voca~ao para a obten~ao de beneffcios de natureza predominantemente econ6mica, a expansao da actividade em diversas areas geograficas, o inter-relacionamento corn outras organiza~oes ou a tendencia para investir uma parte dos lucros. Para lutar contra esta criminalidade baseada naquela nova "uniao que a alimenta e faz expandil~ tornou-se inevitavel libertar a polftica criminal das suas referencias estaduais internas. Independentemente de se ser mais ou menos optimista53 quanta a possibilidade e necessidade de uma europeiza~aoll do direito penal, a Europa, designadamente, tern vindo a dar passos corn vista a constru~ao de urn espa~o comum penal: a cria~ao de urn espa~o de liberdade, de seguran~a e de justi~a~~ foi inscrito, no Tratado de Amesterdao, como urn objectivo claramente identificado da Uniao Europeia. As vicissitudes da constru~ao penal europeia levam-nos a interrogar-nos sobre essa cria~ao" que foge a vontade do criador". 0 que se vem dizer e que os mais recentes desenvolvimentos em materia de iniciativas legislativas ao nfvel europeu ultrapassam a Visao estreita" da soberania nacional e demonstram que se esta perante a emergencia de uma polftica criminal comum54 • Falta, todavia, urn llpensamento" sobre o penal. Falta, dito de outro modo, o travejamento de uma polftica criminal europeia. 0 que e inquietante, ja que, desta forma, as diversas iniciativas surgem isoladas, sem enquadramento em urn qualquer modelo de justi~a penal europeia racionalmente concebido. 0 espac;o de liberdade, de seguran~a e de justi~a e ja, a luz do Tratado de Amesterdao, urn llespa~o comum". Que, entretanto, alimenta uma tensao muito 11

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53 0 optimismo ou pessimismo relativamente a constru~ao europeia tem a ver, entre outros aspectos, com a cria<;ao de um espa~o penal europeu mais garantistico ou mais repressivo ou securitario. A titulo meramente exemplificativo, entre os primeiros, podem citar-se KLAUS TmoMANN, Festschrift fur Lenckne1~ p. 433 s.; id., GA, 1998, p. 107 s.; ULRICH SIEBER, Juristenzeitung, 1997, p. 369 s.; JoHN A. E. VERVAELE, "La Union Europea y su espacio judicial europeu: Ios desafios del modelo Corpus Iuris 2000 y de la Fiscalia Europea", Revista PeHal, Universidade de Castil!a-La Mancha, nY 9, p. 1345.; ou MIREILLE DELMAS-MARTY, "Vers un droit penal europen commun?", Archives de Politique Crimimlle, n.O 19, 1997, p. 95; entre os segundos, WEIGEND, Festschrift fiir Roxin, 2001, p. 1375 s. (p. 1398 s.); ANNE WEYEMBERGI-1, "Le rapprochement des legislations penales au sein de !'Union europeene", L'espace penal europeen: enjeux et perspectives, Editions de l'Universite de Bruxelles, 2002, p. 127 s. ou MARIA LUISA CEsoNr, "Droit penal europeen: une harmonisation perilleuse", op. ult. cit., p. 153 s. 54 Refira-se o exemplo da decisao-quadro relativa ao mandado de deten<;ao europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros, de 13 de Junho de 2002 (JOCE, n.Q L 190, 18 de Julho de 2002, p. 1). Sob re o mandado de deten<;ao europeu, desta perspectiva, cfr. ANABELA MlRANDA RoDRIGUES, "0 mandado de deten<;ao europeu: um passo ou urn sal to?", em curso de publica<;ao, Revista Portuguesa de Ciencia Criminal, e bibliografia ai citada.

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viva entre abordagens par objectivos (abordagens isoladas) e uma abordagem global, tendo sido dada, ate agora, prioridade a cooperac;iio em detrimento de uma politica criminal (mais) integrada. 0 que se salienta e que, pela via da harmonizac;ao - e tambem do reconhecimento mutua -, deu-se o sinal de uma vontade politica de eliminar as fronteiras nacionais em materia penal; e, assim, porventura, urn "salto" qualitativo, de uma cooperac;ao inter-estadual para uma integrac;ao supra-estadual. Qualquer dos dais sistemas referidos se podem inserir na tentativa de por em pnitica urn espac;o "unico" europeu, designadamente, o principio do territ6rio unico. Este processo de construc;ao do espac;o penal europeu desenvolve-se, contudo, na base de urn consenso suposto e na ausencia de urn debate publico e democnitico em torno dos valores e dos meios adequados para os proteger, bem coma sabre as competencias e praticas de decisao. As pec;as de urn puzzle sao dispostas e tendem a tornar-se urn sistema. E grande, pais, o risco de se ter coma resultado urn sistema penal que nao se escolheu consciente e deliberadamente. E em relac;ao ao qual se pode temer pelo canicter securitario. Vem-se denunciando ao projecto da Uniao Europeia, no domfnio da justic;a penal, 0 caracter "prioritariamente repressivo", que faz "primar 0 objectivo da seguranc;a sob re o da liberdade". Exactamente porque falta uma "ideia" que de coerencia as diversas iniciativas, articuladas sabre a realizac;ao do principio do reconhecimento mutua e na perspectiva da harmonizac;ao. Neste "movimento" - pais que so de urn "movimento" se trata -, poder politico e sociedade civil tern estado de costas voltadas. "Fossa" e "ausencia de dialogo": e por certo provocat6rio falar nestes termos e talvez exprima urn jufzo demasiado severo. Mas e este "div6rcio" o responsavel pelo medo de urn "Estado policial europeu" ou pelo discurso do "crepusculo das liberdades". Devem ser dados sinais claros de que a Uniao Europeia nao esta a caminho de se tornar uma "Europa fortaleza". A uma politica criminal europeia cabe responder, corn urgencia, as perguntas sabre a "necessidade, sentido e ambito" do direito penal. 4. Outra questao que se coloca e a de saber se se justifica, no ambito da "luta contra o crime", o endurecimento da repressao penal ao nfvel nacional. 0 que parece observar-se e que a busca de uma eficacia punitiva reforc;ada oferece mais intervenc;ao penal e mais severa. E certo que as recentes transformac;oes do mundo e da vida em sociedade devem ter traduc;ao em modificac;oes importantes da polftica criminal. 0 direito penal tern de estar preparado para dar resposta a perguntas instantes e nao se esconder em "falsos purismos" 55 . Hoje, coma ontem, pede-se eficacia ao sistema de justic;a penal.

55 Assim, W. HASSEMER, "La ciencia juridico-penal en la Republica Federal Alemana", Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, 1993, tomo XLVI, fascfculo I, p. 35 s. (p. 79).

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Entretanto, erigida a seguran<;a a direito fundamental do cidadao, cuja satisfa<;ao pode exigir do Estado, sacrificam-se direitos e liberdades fundamentais no altar do combate a criminalidade. Na resposta ao crime, e preciso romper corn a espiral de vioh~ncia -em que parece nao haver senao uma saida: o recurso ao direito penal e a exaspera<;ao dos recursos punitivos - e experimentar-se a "pacifica<;ao". A "legalidade" penal constitui(u), sem duvida, uma conquista do "individuo", no sentido da delimita<;ao do poder punitivo do Estado (e da igualdade). A "pacifica<;ao" veio corn a "submissao" a lei da reac<;ao ao crime: afirma-se ao nivel material e processual. Mas a "lei" nao pode justificar o endurecimento da resposta penal ou servir respostas puramente securitarias ou repressivas, nem obstruir o caminho a solu<;6es flexiveis na realiza<;ao da justi<;a. Qualquer das vias impede o tratamento "igual" dos cidadaos, que a propria lei, na origem, veio procurar estabelecer. 0 desafio e claro. Factores de peso - a massifica<;ao da criminalidade e uma nova criminalidade - tern vindo a abrir caminho a reformas, que se fazem tendo como pano de ÂŁundo duas for<;as "contraditorias": de urn lado, uma maior enfase das garantias individuais, associada a modelos politicos democraticos; de outro, a necessidade de uma maior eficacia da luta contra o crime. E por isso que hoje e preciso reequacionar os equilibrios do Estado de Direito. Laboriosamente encontrados - entre, de urn lado, exigencias de defesa da sociedade e uma administra<;ao da justi<;a eficaz e, de outro, a protec<;ao dos direitos fundamentais das pessoas, buscando, em cada momento concreto, a sua maxima realiza<;ao possivel56 - , mostraram-se precarios. Perante os novos e grandes riscos da pos-modernidade, de que a criminalidade organizada e (apenas) urn exemplo paradigmatico, o que se pede ao direito penal e que nao seja so urn "ordenamento de liberdade": isto e, urn direito-limite as interven<;6es punitivas estaduais, porque esta seria a melhor forma de protec<;ao dos direitos das pessoas. Pede-se-lhe que seja "tambem" urn "ordenamento de seguran<;a": isto e, urn direito-limite dos direitos das pessoas. Que satisfa<;a, pois, "paradoxalmente", duas ambi<;6es: que limite os poderes do Estado, em nome da protec<;ao do direitos das pessoas; e que amplie os poderes do Estado, tambem em nome dos direitos das pessoas. Eficacia e protec<;ao dos direitos fundamentais continuam a ser polos de uma tensao que alimenta a(s diferentes formas de) realiza<;ao da justi<;a penal. So que a protec<;ao dos direitos fundamentais (obtida) a luz do valor seguran<;a obriga a (re)encontrar novos equilibrios para aquela polariza<;ao. Tudo esta em continuar a fazer a sintese do conflito garantia-eficacia nos quadros do Estado de Direito.

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penal,

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Desde sempre, na senda da "concordiincia pnitica das finalidades em conflito" no processo DIAs, Direito Processual Penal, cit., p. 28.

FIGUElREDO

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0 "segredo" reside em reverter a "formula paradigmatica" que desde ha muito vem enunciando entre nos Figueiredo Dias, e que se traduz em atribuir ao direito penal "a func;ao exclusiva de protecc;ao subsidiaria de bens jurfdicos" 57. Trata-se, corn isto, de assumir os princfpios polftico-criminais da "intervenc;ao minima" e de "ultima ratio" que informam uma "polftica criminal racional". E de retirar daf todas as consequencias. Se o direito penal nao e "a" resposta para os problemas sociais - coma escreveu Figueiredo Dias, "se nao e instrumento de govemo da sociedade" 58 -, a verdade e que ele nao deve demitir-se de intervir perante as novas formas de criminalidade59 . Sob pena de introduzir na realizac;ao da justic;a penal uma selectividade que a poderia aproximar de uma justic;a de "classe" -urn direito penal para os "novos" perigosos60 •

57 Cfr. o enunciado da proposic;ao politico-criminal apresentada em 1983 por FIGUEIREDO DIAS (Os novos rumos, cit., p. 11): "Uma politica criminal que se queira valida para o presentee o futuro proximo e para urn Estado de Direito material, de cariz social e democratico, deve exigir do direito penal que s6 intervenha corn os seus instrumentos pr6prios de actua<;:ao ali, onde se verifiquem les6es insuportaveis das condic;oes comunitarias essenciais de livre realizac;ao e desenvolvimento da personalidade de cada homem". Vide, por ultimo, Estudos em Homenagem ao Prof Doutor Rogerio Soares, cit., p. 586: "Func;ao do direito penal e, exclusivamente, a protecc;ao subsidiaria de bens jurfdicos". 58 Cfr. FIGUEIREDO DIAS, "0 comportamento criminal e a sua defini<;:ao: o conceito material de crime", Questoes fundamentais do Direito Penal revisitadas, S. Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 74; na mesma linha, cfr., por ultimo, Estudos em Homenagem ao Prof Doutor Rogerio Soares, cit. p. 597 e 598. 59 Sobre o "direito penal mfnimo" de protecc;ao de bens juridicos sociais, transindividuais ou colectivos, cfr. FIGUEIREDO DIAS, Estudos em Homenagem ao Prof Doutor Rogerio Soares, cit., p. 602 s. (v. tambem, p. 587 s.). Vide, tambem, na mesma linha, GIORGIO MARJNUCCI-EMiuo DoLcrNI, "Diritto penale "minimo" e nuove forme di criminalita", Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, 1999, 3, p. 802 s. (especialmente, p. 819 s.). 60 Afastam-se as concep<;:6es de urn "direito penal minimo" nas vers6es deW. HASSEMER ("Grundlinien einer personalen Rechtsgutslehre", ScHOLLER-PHILIPPS (hrg), Jenseits des Funktionalismus. Arthur Kaufmann zum 65. Geburtstag, 1989, p. 88 s. e 93 s.), A. BARATIA ("Principi del diritto penal minimo. Per una teoria dei diritti umani come oggetti e limite della legge penale", Dei delitti e delle via del garantismo penale, Bari, 1989, p. 417; "I! diritto penale minimo", Dei delitti e delle pene, 1985, p. 443 s. E p. 466) e FERRAJOLI (Diritto e ragione. Reoria del garantismo penale, Bari, 1989, p.417; «Ii diritto penale minimo», Dei Dellitti e delle pene,1985, p.493s.). Sobre isto, cfr. G. MARINUCCI-E. DULCINI, op. ult. cit., p. 813 s. Destas vers6es do direito penal minimo dizem os autores que teria conota<;:6es corn "o 'velho direito penal de oitocentos' que, como escreveu Klaus Luderssen, 'era sobretudo urn direito de classe ( ... ); nao se dirigia nunca contra os 'grandes', nem no piano econ6mico nem no politico'" (p. 816); v., ainda, p. 820. Neste sentido, tambem, FIGUEIREDO DIAs, Estudos em Homenagem ao Prof Doutor Rogerio Soares, cit., p. 594 s. Cfr. ainda, a versao do "direito penal minimo" de SILVA SANCHEZ, A expansiio do direito penal, cit., p. 136 s. (sobre ela, cfr. FIGUEIREDO DIAS, op. ult. cit., p. 601; tambem, ANABELA MIRANDA RooRIGUEs, Globaliza~iio e direito, cit., nota 32 e p.206; cfr., ainda, infra). Quanto a Silva Sanchez, pretende urn direito penal "no 'ponto medio' da configurac;ao dualista" (p. 145) que, no fundo, pretende identificar em func;ao do "facto>> praticado e das suas consequencias jurfdicas e nao em func;ao do "agente". Sem se discutir esta distinc;ao, o que se afirma e que nao se percebe que, a partir daqui, estabele<;:a "como prindpio" que, para uma certa criminalidade (econ6mica) nao devem ser previstas penas privativas de liberdade (cfr. infra) e ainda que, nao sendo estas aplicadas, possam ser flexibilizadas as regras da aplicac;ao das outras penas, por exemplo, pecuniarias

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A solw;:ao passa, em nosso entender, por uma politica criminal pragmatica e diferenciada, corn contornos bem definidos. A ilusao de "justi<;:a para todos e ja" que a democracia trouxe consigo deve ceder lugar, no dominio da justi<;:a penal, a justi<;:a que, se se quer "realizar" e nao incorrer no risco de ser selectiva "no resultado" da interven<;:ao, tern de ser selectiva "no prindpio" de interven<;:ao. Assim, o sistema punitivo61 , continuando a recusar o endurecimento da puni<;:ao que representam as penas de morte e de prisao perpetua, deve repousar na concep<;:ao basica de que a pena privativa de liberdade constitui a ultima ratio da politica criminal e deve ficar reservada, assim, para a criminalidade mais grave. Corn as consequencias que daqui decorrem: atribui<;:ao a prisao de urn sentido socializador nao coactivo e, no dominio da pequena e media criminalidade, limita<;:ao da aplica<;:ao concreta desta pena, atraves da sua substitui<;:ao por penas nao institucionais. Ao nivel da ac<;:ao penal, por sua vez, e inequivoco o seu significado: a op<;:ao por urn regime processual "diferenciado" - solu<;:6es "diferenciadas", celeres e consensuais, por urn lado, formais e ritualizadas, por outro, para fen6menos criminais "diferenciados", respectivamente, a criminalidade de massa e a criminalidade mais grave, designadamente organizada. Em qualquer dos niveis de interven<;:ao penal, todavia, a solu<;:ao passa pela afirma<;:ao dos direitos fundamentais. Isto e algo que o nosso tempo vai dolorosamente reaprendendo. Ao nivel do sistema punitivo, o sentido socializador da pena privativa de liberdade e fiel aos direitos fundamentais e respeita a vontade do condenado. Na execu<;:ao da san<;:ao, a concep<;:ao autoritaria evola-se, nao admitindo o tratamento corn vista a socializa<;:ao contra a vontade do recluso. A aplica<;:ao de penas de substitui<;:ao, nalguns casos, s6 e possivel corn o consentimento do condenado (e o caso da semi-deten<;:ao e da presta<;:ao de trabalho a favor da comunidade ). A evolu<;:ao do pensamento socializador62 em rela<;:ao aos reclusos pode explicar-se de diversas maneiras: porque os resultados da politica de "justa puni<;:ao" nao sao satisfat6rios ou porque a acumula<;:ao de experiencias permite a concep<;:ao de programas mais precisos e as avalia<;:6es sao realizadas de maneira mais adequada e diferenciada. Mas, em ultima analise, a "relegitima<;:ao" da socializa<;:ao deve procurar-se na "cultura da transac<;:ao, da participa<;:ao e do consentimento" em que se busca hoje a "relegitima<;:ao do penal". E uma nova concep<;:ao que emerge. (p. 147): o que, em ultimo termo, redundaria numa "desdignificas:ao" da sua categoria de verdadeiras penas, que, nem por nao serem privativas de liberdade, sao "menos penas". Como ja se escreveu (op. cit., lac. cit.), e paradoxal pretender malbaratar os direitos e as liberdades fundamentais das pessoas, precisamente quando esta em causa uma acusa<;ao grave e a eventual aplicas:ao de uma pena grave, mesmo que seja nao privativa de liberdade. 61 As considera<;5es que tecemos em abstracto podem testar-se a luz do nosso sistema punitivo. 62 Sobre isto, ANABELA MmANDA RooRIGUES, Novo Olhar, cit., p. 41 s. e 143 s. e bibliografia af citada.

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Tradicionalmente monolitica e autorit<iria, estranha a toda a forma de concertac;ao, de transacc;ao ou de compromisso, a justic;a "imposta", de caracter unilateral e vertical, que encontra legitimac;ao na transcendencia e na autoridade "mistica" de que falava Montaigne, cede o passo a uma justic;a negociada, interactiva e horizontal que procura a composic;ao de interesses utilizando uma racionalidade dialectica. A tendencia consensualista na justic;a penal nao e alheia ao movimento de expansao dos direitos fundamentais, mas obedece a uma logica racionalizadora e de eficacia. Na verdade, nas sociedades actuais, complexas e plurais, o individuo reforc;ou a sua legitimidade em detrimento do Estado, tornando-se a raiz, projecto e limite. Algo contraditoriamente, ja o dissemos - dada a demanda de seguranc;a! -, nesta reivindicac;ao do "eu". Mas a verdade e que o Estado deixou de identificar o individuo pelo lugar que ocupa e pelos papeis que desempenha. Atenuaram-se os lac;os de reciprocidade que o ligavam ao Estado, surgindo, perante este, enquanto tal, pelos simples facto de ser. Esta revalorizac;ao dos direitos fundamentais que afasta, de todo em todo, o sentido coactivo da missao socializadora do Estado, passa tambem pela sua dimensao "solidaria". E esta compreensao dos direitos - direitos que "decorrem de uma certa concepc;ao da vida em comunidade" e "so se podem realizar pela conjugac;ao de esforc;os de todos os que participam na vida social" 63 - que imp6e o "clever de auxilio" ao recluso. Ao homem-isolado substitui-se o homem-pessoa, "em relac;ao de interdependencia e de solidariedade corn todos" 64 • E uma "nova etica nas relac;oes sociais", diferente da etica antropocentrica classica65, como resultado da "tomada de consciencia colectiva das disfuncionalidades da nossa sociedade e da impotencia do Estado-providencia face ao desenvolvimento da pobreza" 66 • Aplicada em relac;ao aos reclusos, desenvolve em relac;ao a eles o conceito de "pertenc;a a comunidade". Ao nivel da acc;ao penal, tambem a diferenciac;ao nao se faz a custa da protecc;ao dos direitos fundamentais da pessoa, designadarnente do arguido. Quer nas respostas "flexiveis" quer nas "conflituais", esta presente a preocupac;ao de garantia dos seus direitos no processo, procurando salvaguardar-se de cada urn o seu "maximo conteudo possivel", em equilibrio corn as restantes finalidades processuais67 • 63 A este prop6sito, falou Karel Vasak de "direitos de terceira gera<;iio", iluminados pelo valor da solidariedade ("Le droit international des droits de l'homme", 1972, p. 45 apud JosE M ANUEL PUREZA (direc<;ao) e JosE M ANUEL P UREZA, CATARINA FRADE e CRJSTINA SJLVA DIAs (equipa de investiga<;ii.o), Tribunais, natureza e sociedade: o direito do ambiente em Portugal, Centro de Estudos Sociais, 1996, p. 13). 64 Cfr. nota anterior 65 Sobre a fundamentac;ao desta nova etica - a "etica d a responsabilida d e"- ao nivel do agir humano e da m etaffsica, e essencial a obra de H ANS JoNAS, Le principe responsabilite. Une ethique pour la civilisation technologique. Flammarion, 1998, p . 15 s, 35 s . e 63 s . 66 N este sentido, ao nivel sociol6gico, S. P AUGAM, La societe fran ~aise et ses pauvres, Paris, PUF, 1993, p. 112. 67 Cfr. supra, nota 56.

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Isto significa68, muito concretamente, na pequena e media criminalidade, dada a sua massifica<;ao, abrir caminho a procedimentos consensuais, acelerados e simplificados, nao so para evitar o bloqueio ou paralisia do sistema, mas ao mesmo tempo como penhor da propria realiza<;ao da "justi<;a". 0 fenomeno de sobrecriminaliza<;ao verificado revelou urn problema de capacidade do sistema de justi<;a penal: a procura cresceu, mas a oferta diminuiu, como ja no final da decada de oitenta Tulkens chamava a aten<;ao. Como consequencia, a justi<;a torna-se arbitraria e parcial (selectiva). Afasta-se dos cidadaos. Quer a justi<;a negociada, quer a celere, a primeira muitas vezes servindo os interesses da segunda, nao obedecem so a "uma logica de produtividade", mas servem tambem uma "logica de justi<;a". A justi<;a negociada - corn limites que a impe<;am de se tornar urn "negocio sabre a pena", em que a igualdade das partes repousa numa "fic<;ao"- aparece como a mais adequada, numa sociedade menos estratificada e mais complexa, que, ao mesmo tempo, rejeita a coloniza<;ao da vida quotidiana pelo direito, na conhecida formula<;ao de Habermas. Neste modelo, o que e novo e a emergencia do privado e do individual. 0 Estado recua, restringe o seu domfnio, para aumentar aquele que reserva a livre determina<;ao do indivfduo. Na justi<;a celere, e a realiza<;ao das finalidades da puni<;ao que avulta: o mandamento da celeridade encontra-se umbilicalmente ligado a obten<;ao do efeito de preven<;ao geral positiva ou de integra<;ao corn a aplica<;ao das san<;6es penais. Para alem disso, salienta-se a maior probabilidade de justeza da decisao proferida pelo tribunal e o interesse do arguido, cuja demora do processo pode significar restri<;6es ilegais dos seus direitos ou esvaziar de sentido e retirar contetido titil ao princfpio da presun<;ao de inocencia. Ao nfvel da justi<;a conflitual69, o respeito pelos direitos fundamentais do arguido imp6e, indiscutivelmente, limites a realiza<;ao da administra<;ao da justi<;a que se consagraram nas leis processuais penais como "leis de garantia". So que, tambem aqui, a compreensao dos direitos fundamentais como direitos solidarios e nao como direitos egofstas impede que a sua utiliza<;ao possa paralisar o sistema: esta em causa nao o que se "pode" fazer, mas o que se "deve" fazer. Nao e a oposi<;ao liberdade-seguran<;a, reduzindo o conflito a uma estrutura binaria, que determina a utiliza<;ao dos direitos fundamentais. 0 que ressalta e a complexidade e interdependencia das rela<;6es sociais, que se exprimem, nomeadamente, na multiplicidade dos direitos em jogo e comprometem o homem - cada homem - na realiza<;ao de urn projecto ao mesmo

68 Sobre o que se segue, cfr. ANABELA MTRANDA RODRIGUES, "Os processos sumario e sumarfssimo ou a celeridade e o consenso no C6digo de Processo Penal", Revista Portuguesa de Ciencia Criminal, 6, 1996, p. 527 s.; id., "A celeridade no processo penal. Uma visao d e direito comparado", ibidem, 8 (1998), p. 223 s.; id., Estudos em Homenagem ao Prof Doutor Ribeiro de Faria, cit., (cfr. bibliografia af citada). 69 Sobre o que se segue, cfr. A NABELA MIRANDA RooRIGUES, Revista Portuguesa de Ciencia Criminal, 12 (2002), cit., p. 550 s.

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tempo individual e colectivo70 • Vai aqui implicado que os direitos que o arguido pode usar para sua proteo;:iio niio sejam instrumentalizados. 0 que significa que, corn vista a realiza<;iio eficaz da justi<;a, tern que se encontrar novos equilibrios em face da protec<;iio dos direitos do arguido (por exemplo, sera permitido avan<;ar no sentido da protec<;iio de testemunhas em face de novos desafios colocados a realiza<;iio da justi<;a por novas formas de criminalidade, designadamente organizada). De acordo corn a· proposta (re)visitada, e uma exigencia o melhoramento do sistema, de acordo corn a linha evolutiva tra<;ada. Desde logo, fomentando, na pratica, o programa politico-criminal diferenciado instituido nos termos legais. A titulo meramente exemplificativo, e necessaria elevar consideravelmente os niveis de aplica<;iio da generalidade das penas de substitui<;iio; potenciar a aplica<;iio da liberdade condicional corn a imposi<;iio de regras de conduta ou obriga<;oes corn o efectivo apoio e vigilancia dos servi<;os competentes; investir em programas de socializa<;iio; incrementar a aplica<;iio da pena relativamente indeterminada; dar aplica<;iio aos mecanismos processuais da diversiio, designadamente, ao arquivamento e suspensiio provisoria do processo; e utilizar, na maior medida do possivel, formas especiais de processo. Ir para alem disto e admitir, para o dominio da nova criminalidade da globaliza<;iio, a flexibiliza<;iio sectorializada de prindpios politico-criminais, substantives e processuais- urn "direito penal a duas velocidades" 71 -, significa uma ruptura politico-criminal que representa graves perigos para os valores e institui<;oes do Estado de Direito. Vamos apenas referir dois pontos, a titulo exemplificativo. Pelo que respeita ao sistema punitivo, advogar a niio utiliza<;iio da pena de prisiio para a nova criminalidade - criminalidade grave, como ja tivemos ocasiiio de ver - significaria uma inversiio do prindpio da utiliza<;iio daquela pena como ultima ratio, subtraindo a sua aplica<;iio precisamente a puni<;iio das condutas socialmente mais graves. Nada haveni a opor a que se apliquem penas pecuniarias ou outras (privativas de direitos, repara<;iio, penas que recaem sobre pessoas colectivas), quando estas penas satisfizerem as exigencias de culpa do agente e de preven<;iio no caso concreto; mas ja niio se justificara a sua aplica<;iio por serem penas "menos graves" do que a pena de prisiio, o que permitiria a flexibiliza<;iio das regras politico-criminais da sua aplica<;iio 72 • 7°Cfr. SERGE DE BIOLLEY, "Liberte et securite dans la constitution de I' espace europeen de justice penale: cristallisation de la tension sous presidence beige", L'espace penal, cit., p. 174 s. 71 Cfr. supra, nota 60 .. 72 Cfr. as considerac;:oes aduzidas a prop6sito supra, nota 60. Acrescente-se que o canicter da "pena" vem do "sofrimento" que esta implica e que hoje, como e geralmente aceite, o "sofrimento" nao esta ligado s6 . a "pessoa em sentido fisico" (o que estava implicito na pena privativa de liberdade), mas a "pessoa mais os seus direitos", o que significou a criac;:ao de "novas penas", de que a pena pecuniaria e 0 exemplo paradigmatico. 0 que tudo nos leva a defender que nao e por ter mudado a "face" da pena que ela e "menos pena" ou pode suportar menos garantias na sua aplicac;:ao. A exigencia de "garantias penais" advem da "dignidade penal" da conduta que o agente e "acusado" deter praticado: garantias materiais e processuais; e nao da "natureza" da "pena" que

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Assim justificada a aplica~ao das penas pecuniarias para a criminalidade grave, estar-se-a a por em causa a premissa politico-criminal de que a pena mais grave - a prisao - deve ser, quando necessaria (como ultima ratio), aplicada exactamente a criminalidade mais grave. Ja quanta a ac~ao penaFJ, se os conflitos legalidade-oportunidade e busca da verdade material- consenso tendem a resolver-se no sentido do segundo termo dos binomios - isto e, oportunidade e consenso -, a verdade e que, nem a oportunidade deve servir interesses que vao para alem dos interesses imanentes ao sistema de justi~a penal, nem o consenso se pode transformar num negocio sabre a pena. E assim, em ambos os casos, nao devem nortear-se por criterios economicistas, em nome do eficientismo. Nao se nega que o discurso penal nao pode persistir na irracionalidade economica que o afasta, em nome dos principios, de uma realidade social cada vez mais exigente em termos de seguran~a e de eficacia. 0 tempo presente (futuro?) e 0 tempo de "devolver 0 conflito as pessoas" e 0 de abertura a inova~6es e progressos capazes de tornar a justi~a mais eficaz e menos dispendiosa. A area da pequena e media criminalidade e, sem duvida, o dominio onde se pode ir mais longe, "reinventando" a puni~ao, na via da repara~ao - que ja Roxin apontava, em 1987, como o terceiro degrau do direito penal, ao lado das penas e das medidas de seguran~a - e na renova~ao de solu~6es de diversao, flexibilizando o principio da legalidade e explorando as virtualidades, designadamente, da media~ao. Mas tambem na criminalidade grave, nos processos penais mais complexos e de grande conflitualidade, as novidades marcam "uma mudan~a de epoca": pense-se, so, na utiliza~ao de meios tecnologicos para protec~ao de testemunhas 75 • 74

E necessaria, ja o dissemos, encontrar novas equilibrios na justi~a

realiza~ao da

penal.

eventualmente !he pode ser aplicada. Nada disto invalida, em nosso entender, a solw;ao "diferenciada" ao nivel punitivo e processual, para que se aponta em texto. 73 Cfr., no que se segue, ANABELA MIRANDA RoDRIGUES, Livro de Homenagem ao Prof Doutor Ribeiro de Faria, cit., Tambem, PEDRO CAEIRO, Revista do Ministerio Publico, cit., p. 43 s. 74 Cfr. KLAUS RoxtN, "Die Wiedergutmachung", Heinz Schi:ich, Wiedergutmachung und Strafrecht, 1987. 75 A polemica esta instalada entre os defensores da revisao das regras tradicionais de investiga~ao penal (assim, B. ScHDNMANN, "Consideraciones criticas sobre la situaci6n espiritual de la ciencia jurfdico-penal alemana", Anuario de Derecho Penal y Ciencias Penales, 49, 1996, p. 202 s.) Criticam-se, assim, designadamente, aqueles que recusam a modemiza~ao tecnol6gica do processo penal - por o converter, dizem, num mecanismo de polfcia do Estado de seguran~a (a chamada tendencia da Verpolizeichung do processo penal- sobre isto, cfr. PAEFFGEN, "'Verpolizeichung' des StrafprozessChimare oder Gefahr?", Theorie und Systematik des Strafprozeflrechts. Symposium zu Ehren van Hans-Joachim Rudolphi (Wolte1; ed.), 1995, p. 13 s.) -, alertando para a inviabiliza~ao da persegui~ao penal efectiva das novas formas de criminalidade.

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Aceitando os desafios da contemporaneidade, a politica criminal nao pode afastar-se das regras do Estado de Direito. E ele proprio que esta em causa quando p6e em funcionamento mecanismos de controle que sup6em a negac;ao dos seus prindpios informadores. E, pois, a "readaptac;ao" da seguranc;a as exigencias do Estado de Direito que se imp6e. No contexto de uma sociedade solidaria, a seguranc;a deixa de ser vista corn urn direito individual que se pode opor ao Estado para protecc;ao de "certos" direitos - perde, neste sentido, autonomia e densifica-se na realizac;ao da generalidade dos direitos e liberdades fundamentais. Desta forma, a seguranc;a pass a a ser "a seguranc;a da protecc;ao de todos os direitos de todas as pessoas" . Impede-se, ao mesmo tempo, a "absolutizac;ao" ou "expansao" do seu valor. N a seguranc;a, cristaliza-se a tensao inevitavel entre a necessidade de protecc;ao dos direitos da pessoa e a tentac;ao de exacerbar essa protecc;ao para reduzir a inseguranc;a. A aceitac;ao da irredutibilidade da "inseguranc;a" e condic;ao de sobrevivencia do proprio Estado de Direito democratico que trouxe para o seu centra "a imagem do Homem" 76 • Esta e a sua contradic;ao. Este e o desafio, hoje, da politica criminal. Apanhada num movimento circular de demanda de eficacia e de exigencia de respeito pela pessoa, respondeu corn a razao tecnico-instrumental ou razao instrumental calculadora. Cabe-nos ultrapassar o seu "imperialismo devastador" 77 e assumir, de forma inovadora, o legado irrenunciavel dos direitos fundamentais. A "nova" justic;a penal deve assumir o "rosto" da Humanidade. «Os novos rumos da politica criminal» - recuperar o escrito de Figueiredo Dias, de 1983, e a Homenagem que presto ao meu Professor. Invocados hoje, perante os novos desafios da criminalidade, encerram a sabedoria de serem «velhos rumos da politica criminal>>. Os principios que o futuro pede que frutifiquem fazem parte desta memoria. Contra o esquecimento, evoco-os hoje - e neles que se cumprem «OS (re)novos rumos da politica criminal».

76 Esta formulac;:ao e de FIGU EIREDO DI AS, Estudos em Homenagem ao Prof Doutor Rogerio Soares, cit. p. 593. 77 Urn ensaio de "superac;:ao" do dogma desta razao, tambem cunhada de "razao instrumental actuarial", pode ver-se em FIGUEIREDO DIAS, op. ult. cit., p. 591 s.

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AUTORIA MEDIATA ATRAVES DE DOMINIO DA ORGANIZA<::AO

Claus Roxin



AUTORIA MEDIATA ATRAVES DE DOMINIO DA ORGANIZA<;AO *

Claus Roxin**

I. A IDEIA FUNDAMENTAL DA CONCEP<;AO

"Factos puniveis no quadro de aparelhos organizados de poder" foi o titulo da minha li<;:ao inaugural em Hamburgo, em Fevereiro de 19631 • Ali propus uma nova forma de autoria mediata. A minha ideia fundamental era de que, erigindo o dominio do facto em criterio determinante da autoria, so se encontram tres formas tipicas ideais pelas quais se pode dominar urn evento sem participar na sua execu<;:ao: pode-se coagir o executante; pode-se engana-lo; ou pode-se - e esta era a nova ideia - dispor sobre urn aparelho de poder que assegure a execu<;:ao de ordens mesmo sem coac<;:ao e engano, pois o aparelho enquanto tal garante a sua realiza<;:ao. 0 ordenante pode dispensar a coac<;:ao ou engano do autor material, pois, mesmo que urn individuo falhe, o aparelho disp6e de urn mimero suficiente de outros para assumir a sua fun<;:ao. E assim tambem caracteristico desta forma de autoria mediata que geralmente o homem de tras nem sequer conhe<;:a pessoalmente o executor material. 0 exemplo historico que tinha presente ao desenvolver esta forma de autoria mediata era o do dominio de poder nacional-socialista. Quando Hitler ou Himmler, ou Eichmann, que fora julgado em Jerusalem em 1961, davam uma ordem de morte, podiam estar seguros da sua execu<;:ao, pois - ao inves do que sucede na instiga<;:ao - a eventual recusa de cumprimento por parte daquele a quem fosse dada a ordem nao podia impedir que o facto ordenado fosse praticado; seria, nesse caso, efectivado por outro. Na minha concep<;:ao e assim autor mediato aquele que esta instalado na alavanca de comando de urn aparelho de poder - qualquer que seja o nivel na respectiva hierarquia -

* Joiio Curado Neves (trad.) ** Universidade de M unique 1

Publicado em GA 1963, 193 ff.

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e que pode provocar, por comando, a pnitica de infrac;oes criminais relativamente as quais nao tenha relevo a individualidade do executante. E assim a "fungibilidade", a possibilidade ilimitada de substituic;ao do autor material, que garante ao homem de tnis a execuc;ao do facto e lhe permite dominar o evento. 0 agente material e apenas uma "rodinha" substituivel no mecanismo do aparelho de poder. Tal nao impede que aquele que no termo pratica o homicidio corn as suas pr6prias maos seja punivel como autor material. Os ordenantes na alavanca de comando do poder nao deixam por isso de ser autores mediatos, pois a realizac;ao do facto nao esta dependente da decisao do autor material, ao inves do que sucede na instigac;ao. Dado que a autoria material do executante e a autoria mediata do homem de tras decorrem de pressupostos diferentes - a do primeiro da execuc;ao por suas pr6prias maos, a do segundo da direcc;ao do aparelho - podem, 16gica e teleologicamente, existir ao lado uma da outra, ao contrario do que defende uma opiniao muito difundida. A forma descrita de autoria mediata e a expressao juridicamente adequada para o fen6meno do "criminoso de secretaria" que, embora tenha o dominio do facto, s6 o pode exercer atraves de urn autor material. 0 modelo exposto de autoria mediata nao se aplica apenas aos crimes de Estado, sendo tambem aplicavel a criminalidade organizada fora do aparelho estadual e a muitas formas de terrorismo. Os conceitos apresentados nao sao facilmente delimitaveis, pois tern fronteiras fluidas. Mas nao esta em causa a designac;ao, mas apenas a presenc;a dos pressupostos descritos do dominio de organizac;ao. Isto pode acontecer corn uma ditadura que ordene a pratica de crimes, tal como corn o chefe de uma mafia ou corn o dirigente de uma organizac;ao terrorista. De seguida abordarei o problema atraves do exemplo da criminalidade ordenada a nivel estadual, apenas porque tern sido estes casos os que mais tern ocupado os tribunais; mas tambem porque os aparelhos estaduais criminosos constituem frequentemente exemplos modelares de criminalidade perfeitamente organizada. 0 fundamento legal da referenda a autoria mediata e 0 mesmo nos direitos alemao e portugues. Ambos os c6digos, corn formulac;ao identica, punem como autor "quem executar o facto por si mesmo ou por intermedio de outrem" (ยง 25, n 9 1, do C6digo Penal alemao [StGB], artigo 269 do C6digo Penal portugues). Caso se queira, como proponho, considerar autores mediatos os homens de tras que comandam aparelhos organizados de poder, tera que se entender que executam o facto "por intermedio de outrem".

11. A RECEP<;AO DESTA JURISPRUDENCIA, NO INTERNACIONAL PENAL

TEORIA NA DOUTRINA E NA ESTRANGEIRO E EM DIREITO

Enquanto a jurisprudencia alema ignorou por 25 anos a nova construc;ao, embora esta pudesse ter sido titil no julgamento da criminalidade violenta

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nacional-socialista, ela foi encontrando apoio progressivo na Literatura, al<;ando-se a doutrina dominante 2• No estrangeiro a nova figura juridica encontrou acolhimento ja nos anos 80, na fundamenta<;ao do Tribunal de Apela<;ao e do Supremo Tribunal de Justi<;a da Argentina ao julgarem os crimes da antiga Junta de Generais 3• Nas conclus6es do Tribunal de Apela<;ao 4 afirma-se que "os arguidos tinham dominio do facto, pois controlavam a organiza<;ao que produziu os factos (... ) Neste contexto o executor concreto do facto perde significado. 0 dominio daqueles que controlam o sistema sobre a consuma<;ao dos factos que ordenaram e total, pois, mesmo que se encontrasse urn subordinado que se recusasse a cumprir, seria automaticamente substituido por outro, do que resulta que o piano tra<;ado nao falha devido a vontade (contraria) do executante, que tern 0 papel de mera roda dentada numa maquina gigantesca. (.. .) 0 instrumento de que o homem de tras se serve eo proprio sistema (... ) composto por mediadares fungiveis do facto (... )" 0 Bundesgerichtshof (Tribunal de Justi<;a Federal) alemao so em 1988, numa decisao da 4 2 Sec<;ao, em obiter dictum mas em tom claramente concordante, referiu a teoria que reconhece que "nos casos de crimes organizados por urn aparelho de poder existe "autoria por tras do autor", independentemente de o agente ser plenamente responsavel pelos seus actos" 5 • A recep<;ao desta figura juridica foi consumada numa famosa decisao da 52 Sec<;ao do Bundesgerichtshof de 1994. Naquele acordao os membros do "Conselho de Defesa Nacional" da ex-RDA foram condenados como autores mediatos de homicidio no muro de Berlim de "fugitivos para a Republica [RFA]". Tinham ordenado, atraves de instru<;6es gerais, os disparos dos soldados fronteiri<;os no muro e a minagem do muro corn explosivos mortais e, segundo a tese do acordao, dominavam o evento atraves do aparelho de poder que dirigiam, embora os executantes imediatos na fronteira tambem fossem responsaveis

2 Bottke, Taterschaft und Gestaltungsherrschaft, 1992, 60 segs., 71 segs.; idem, CoimbraSymposium fur Roxin, 1995, p . 243; LK9-Busch, § 47 I 48; Dierlamm, NStZ 1998, 569 e s.; Ebert, AT3, 198; Eser, StrafR IP , caso 38, Rn. 25; Haft, AT8, 200; Herzberg, Taterschaft und Teilnahme, 1977, 42 ss.; Herzberg., Jura 1990, 23 s.; Hirsch, Rechtsstaatliches Strafrecht, 1996, 22 s.; Hiinerfeld, ZStW 99 (1987), 244; Ingelfinger, Anstiftervorsatz, 1992, 183 s.; Korn, NJW 1965, 1206 ss.; Kiihl, AT3, § 20 I 73 s.; Kiipper, GA 1998, 523 ss.; Lackner/KiihJ24, § 25 I 2; Lampe, ZStW 106 (1994), 743; Maurach/Giissel, AT7, 48188; M.-K. Meyer, AusschluJS der Autonornie durch Irrtum, 1984, 101 ss.; Rotsch, NStZ 1998, 491 ss.; Rotsch, ZStW 112 (2000), 518 ss.; Schmidhiiuser, StuB AT2, 10195; Sch/Sch/Cramer/Heine26, § 25 I 25 s.; Schild, Taterschaft und Tatherrschaft, 1994, 10, 16, 19, 24 e ss.; U. Schulz, JuS 1997, 111; Schumann, Strafrechtliches Handlungsunrecht und das Prinzip der Selbstverantwortung der Anderen, 1986, 75 e s.; Stratenwerth, SchwStrafR, AT F, §13 I . 34; ders., AT4, § 12 I 65 ss.; Vest, ZStW 113 (2001), 492 ss.; Wessels/Beulke, AT3', nQ 541 (Os autores que se ativeram aquele entendimento serao citados pela edi~ap mais recente da obra em causa). 3 As decis6es sao de 1985 e 1986; encontra-se uma sua analise mais detalhada em Ambos, (GA 1998,238 e s.), no sentido de urn resultado semelhante por via da responsabilida acess6ria do homem de tras. 4 Citado em Ambos (nota 3), 238 s. 5 BGHSt 35, 353.

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coma autores (materiais) culposos. Foram considerados "autores por tras do

autor (responsavel)". 0 argumento central para o reconhecimento desta terceira forma de autoria mediata ja tinha sido formulado por mim ha algumas decadas: 6 "Este tipo de organiza<;ao (... ) tern uma vida independente da composi<;ao variavel dos seus corpos. Funciona sem que esteja em causa a individualidade do executante, como que automaticamente". Esta fundamenta<;ao para o dominio do facto do homem de tras foi assumida pelo BGH (BGHSt 40, p. 236): "Ha (... ) grupos de casos nos quais, apesar da plena responsabilidade do agente mediador do facto, o contributo do homem de tras conduz quase automaticamente a realiza<;ao do facto tipico por este pretendida. Tal pode acontecer quando o homem de tras utiliza, atraves de estruturas organizacionais, urn determinado enquadramento que leva a que o seu contributo para o facto desencadeie uma sequencia regular (... ) Se, nestas condi<;6es, o homem de tras actuar corn conhecimento destas circunstancias, e considerado autor na forma de autoria mediata. Tern o dominio do facto." Desde entao a figura juridica da autoria mediata atraves de aparelhos organizados de poder tern sido vivamente discutida em varias partes do mundo 7 • Tambem encontrara, possivelmente, aplica<;ao no julgamento de outros crimes praticados em sistemas totalitarios, e e crescentemente tomada em considera<;ao em Direito Penal Internacional8 . Na doutrina germanica a decisao do BGH come<;ou por encontrar vasto apoio, concordando os autores em grande medida corn o entendimento que desenvolvi, no todo ou em parte9, em menor numero escolhendo outras fundamenta<;6es 10 • Em Portugal o meu ponto de vista foi apoiado, antes de mais, por Figueiredo Dias, numa importante contribui<;ao11. S6 na sequencia desta vaga inicial de apoio surgiu nos ultimos anos urn numero crescente de criticos que recusam a propria constru<;ao e negam simplesmente a autoria mediata, entendendo que, em seu lugar, se verifica co-autoria ou instiga<;ao 12 . Impo-se discutir estas criticas. Roxin, Tiiterschaft und Tatherrschaft, 1963 1, 2000 7, 245. So no livro,Nuevas Formulaciones en !as Ciencias Penales. Homenaje a Claus Roxin", 2001, Cordoba, Argentina, org. por C. Lascano, encontam-se 3 estudos dedicados ao tema do dominio do facto atraves de aparelhos organizados de poder (Dominio del Hecho a traves de Ios Aparatos organizados de Poder, Donna, 295 ss.; Garcia Vitor, 327 ss.; Lascano, 349 ss.). Ambos, (nota 3), apresenta mais doutrina argentina (p. 238, nota 82). Tambem uma obra colectiva organizada em Espanha por Ferre Olivi!Anarte Borallo (Huelva, 1999) contem 3 contribui~6es sabre o tema: Ferre Olive, 85 ss.; Figueiredo Dias, 99 ss.; MuHoz Conde, 151 ss. 8 Assim afirma por exemplo Vest, ZStW 113 (2001), 492 s.: ,Do panto de vista do Direito Penal Internacional, e incontestavel o merito de Roxin de ter reconhecido pela primeira vez um ilicito sistematico-colectivo com o conceito de autoria mediata atraves de aparelhos organizados de poder". Ambos afirma, na sua recentemente publicada obra ,Der Allgemeine Teil des Vi.ilkerstrafrechts" (2002, 594, Fn. 349), que qualquer nova abordagem do tema tem que partir daquela concep~ao. 9 Ambos(nota 3), 226 s.; Bloy, GA 1996, 425 ss.; Gropp, JuS 1996, 13 ss.; Jung, JuS 1995, 173 s.; Kiipper (nota 2), 524; ll. Schulz (nota 2), 109. 111 Murmann, GA 1996, 269 ss.; Schroeder, JR 1995, 177 ss. 11 V. As indica.,6es na nota 7. 12 Indica.;6es mais precisas sobre o estado actual da discussao em Ambos (nota 8), 590 ss. 6

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Ill. OBJEC~OES CONTRA 0 DOMINIO DE ORGANIZA~AO

As objecc;:6es centrais contra o dorninio de organizac;:ao poem em causa o domfnio do facto pelo homem de tras, que fundamento corn a fungibilidade do executante e a automaticidade do cumprimento da ordem obtida por esta forma. 0 BGH exprimiu-o corn a passagem muito citada da "sequencia regular" corn a qual, tambem de acordo corn a sua formulac;:ao, a realizac;:ao do facto tipico decorre "quase automaticamente". Esta argumentac;:ao e contestada por tres vias. Em primeiro lugar, nega-se que o homem de tras possa estar mais seguro da realizac;:ao do facto tipico do que o instigador que tern que deixar ao autor a decisao sobre a execuc;:ao do facto. Assim o diz, p. ex., HERZBERG 13 : "Caso o incumbido da execuc;:ao se decida contra o crime de matar uma pessoa, impede o incumbente de alcanc;:ar o objectivo criminoso por essa via. Isto e particularmente evidente no caso do soldado fronteiric;:o que intencionalmente atira ao lado, deixando assim o fugitivo escapar. Contesto portanto (... )a induc;:ao de que o ordenante pode estar seguro da execuc;:ao da ordem e da realizac;:ao do crime." Corn isto, todavia, demonstra-se apenas que esta forma de autoria mediata, como qualquer das outras, tambem pode nao passar da fase da tentativa, como acontece no exemplo. 0 BGH afirmou corn razao (BGHSt 40, pp. 236 e s.): "( ... ) quando sao utilizados instrumentos em erro ou incapazes de culpa sao frequentes quadros de circunstancias que levam a que 0 autor mediato tenha muito menos controlo sobre a verificac;:ao do resultado do que nos casos da forma descrita." Nao esta assim em causa o funcionamento da "automaticidade" em cada caso. Funciona nos casos norrnais, o que ja nao pode ser afirmado precisamente quanta a instigac;:ao. Os assassinatos do nacional-socialismo e as mortes no muro demonstram corn tragica clareza aquele funcionamento. A fungibilidade dos carrascos era plenamente evidente nos crimes nacinal-socialistas (quem se recusasse a cumprir era simplesmente substitufdo ), mas tambem no caso dos guardas do muro os sectores de fronteira a guardar nao eram, de forma alguma, vigiados apenas por uma pessoa. De resto, o dominio do homem de tras tambem se evidenciava no facto de que pessoas que se negavam a participar em assassinatos nos campos de concentrac;:ao ou homicfdios no muro eram em quaisquer circunstancias substituidas por executores de boa vontade, o que nao seria pura e simplesmente possivel verificando-se apenas instigac;:ao. Afirma-se em segundo lugar contra o domfnio do facto pelo homem de tras que, se a execuc;:ao de uma ordem for assegurada pela troca do agente imediato, o facto praticado ja nao sera o mesmo. Entende ROTSCH14, por exemplo, que caso se argumente que a recusa de urn soldado nao impede o fuzilamento, pois outro ocupara o seu lugar, se esta a esquecer "que o homicfdio 13 Herzberg, in: Amelung (Org.), Individuelle Verantwortung und Beteiligungsverhaltnisse bei Straftaten in biirokratischen Organisationen des Staates, der Wirtschaft und der Gesellschaft, 2000, 39. 14 Rotsch, ZStW 112 (2000), 518 ss. (28 ss.).

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par urn segundo agente imediato em regra ja nao e o mesmo facto" 15 • Nos mesmos termos afirma RENZIKOWSKI 16 que "e certo que o aparelho assegura ao homem de tras possibilidades garantidas de realizar o seu plano, independentemente da pessoa do executante. Esta possibilidade nao pode contudo substituir a falta de dominio efectivo no caso concreto (... )". Por essa forma, todavia, nao e tornado em considera<;ao o que o proprio ROTSCH17 afirma, mas a que nao quer atribuir relevo: que "o homicidio do vitima constitui para 0 homem de tras urn unico crime de homicidio, independentemente do numero de mediadores empregados e de qual o instrumento que acaba por consumar o facto( ... )". Este tinico facto e dominado pelo homem de tras, ainda que, precisamente devido afungibilidade de serventes, nao precise de controlar o seu comportamento individual. Nao e exacto que a existencia de urn unico crime de homicidio pelo homem de tras constitua uma "questao de concurso" que em nada altera a diversidade dos actos materiais de homicidio18; o homem de tras empreende desde logo apenas urn homicidio, ainda que, eventualmente, se sirva de diversas pessoas para a sua efectiva<;ao. RENZIKOWSKI19, ao afirmar que "ac<;6es hipoteticas de terceiros" (isto e, o substituto que toma o lugar do carrasco que falta) nao sao relevantes em Direito Penal, esquece que o funcionamento do aparelho e uma realidade, nao uma hipotese. 0 "dominio da causa substitutiva" 20 assegura a realiza<;ao do facto tipico, podendo perfeitamente ser usada para confirmar o dominio do facto; pois leva a que nao dependa da actua<;ao responsavel do autor material ser a exorta<;ao ao crime seguida ou deixar o facto de ter lugar, ao contrario do que acontece na instiga<;ao. Afirma-se contra o dominio de organiza<;ao, em terceiro lugar, que falha em caso de utiliza<;ao de especialistas nao permutaveis, que nao podem portanto ser substituidos e sao indispensaveis para o sucesso do piano criminoso 21 • Isto e efectivamente verdade. Quando o servi<;o secreto de urn regime criminoso ou o dirigente de uma organiza<;ao terrorista escolhem, para determinado ataque, urn individuo que e 0 unico a dispor do know-how necessario para a sua realiza<;ao, ou e 0 unico a ter acesso a vitima, nao se verifica autoria mediata mas instiga<;ao, na medida em que os homens de tnis nao possam exercer autoria mediata atraves do uso de coac<;ao. Mas o dominio de organiza<;ao tambem nao e talhado para eventos singulares como esses, mas para factos que apresentam caracteristicas semelhantes e que sao realizaveis por pessoas fungiveis, como acontecia corn os assassinatos

s Rotsch (nota 14), 528. Renzikowski, Restriktiver Tiiterbegriff und fahrliissige Beteiligung, 1997, 89. ), 17 Rotsch (nota 14), 530. 1 s Rotsch (nota 14), 530. 19 Renzikowski (nota 16), 89. 20 SK6-Hoyer, § 25 I 90; Ambos (nota 8), 598; ambos consideram aquele ponto de vista inadequado para fundar o dominio do facto. 21 Schroeder (nota 10), 178; Freund, AT, 1998, § 10 I 92; Ambos (nota 8, 598. 1

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do nacional-socialismo e corn os tiros no muro. AMBOS22, ao afirmar que "( ... ) a pretensao de validade geral do criteria da fungibilidade e desmentida por urn s6 caso nao enquadravel no molde", esta a ignorar que o dominio de organiza\=ao nao e uma receita patenteada que reivindique validade em qualquer caso concebivel, independentemente das circunstancias concretas. Tratase antes de urn modelo cujos elementos constitutivos tern que ser comparados corn a realidade em cada caso. Esta figura juridica afasta a possibilidade de co-autoria e instiga\=ao no ambito de aparelhos organizados de poder s6 por via de regra nao tendo que ser assim em todo e qualquer caso. De todo o modo, os argumentos dos que entendem haver geralmente, nao autoria mediata, mas co-autoria ou instiga\=ao, merecem uma aprecia\=aO mais detalhada.

IV. A TEORIA DA CO-AUTORIA Uma serie de autores consideram que o homem de tras que ordena a pratica de factos puniveis no ambito de aparelhos organizados de poder nao e autor mediato, mas antes co-autor 23 . A nega\=ao de autoria mediata decorre da suposi\=ao de que esta forma de autoria nao pode existir se o autor material for plenamente responsavel. Mas isto nao e exacto. Dado que o dominio da ac\=ao do executante e o dominio da vontade do agente anterior decorrem de pressupostos diferentes, podem perfeitamente co-existir, como ja foi afirmado no inicio: 0 executante domina o facto concreto corn a sua propria actua\=ao (dominio da ac\=ao ), e o homem de tras domina-o atraves do dominio sobre a organiza\=ao (dominio de organiza\=ao) que o torna independente da individualidade do executante. Em contrapartida, ha tres razoes fundamentais para negar a co-autoria. Em primeiro lugar, falta a decisao conjunta de pratica do facto que, de acordo corn doutrina vastamente dominante, e pressuposto de qualquer "exeCU\=aO conjunta", na acep\=ao de co-autoria. Homem de tras e executante geralmente nao se conhecem, nao decidem nada em conjunto e tambem nao se consideram responsaveis equiparados pela decisao. A execu\=ao de uma ordem que esta em causa nestes casos decorre de urn comando e nao de uma resolu\=ao comum. Afirmam JESCHECK/WEIGEND: 24 "A comunhao da decisao de pratica do facto e criada pela consciencia de dirigente e executante de que determinado facto ou varios factos do mesmo genera serao realizados de acordo corn as instru\=6es da direc\=ao." Contudo, a consciencia de ser destinatario de instru\=oes nao constitui qualquer decisao conjunta. OTT0 25 entende que "o executante

Ambos I nota 8), 596. Baumann/Weber 10, ยง 29 Ill 2 d, V 3 e; Jakobs, AT2, 21/103 e notas 190, 191; Jescheck, NStZ 1995, 26 f.; Jescheck/Weigend, AT', ยง 62 II 8; Otto, AT6, ยง 21 IV 3 d; SK5-Samson, ยง 25, I 36 (agora no mesmo sentido que o aqui defendido, SK6-Hoyer, ยง 25, I 87 ss.). 24 Jescheck/Weigend (nota 23). 25 Otto (nota 23 ). 22 23

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faz concludentemente seu o piano criminoso". Todavia, este "fazer seu" nao constitui qualquer decisao conjunta. De outro modo, a instiga~ao bem sucedida (a determina~ao a pratica do facto) constituiria uma decisao conjunta de pratica do facto, o que nao e compativel corn o § 26 do StGB. BAUMANN/WEBER26 ensinam que a co-autoria nao imp6e qualquer contacto pessoal entre os intervenientes nem urn planeamento conjunto; basta o "acordo tacito". Mas tal alarga desmesuradamente a co-autoria, quando aplicado a constela~ao de circunstancias aqui em causa. A execu~ao do piano de urn desconhecido, num momento que este desconhece e em local que tambem desconhece nao pode ser considerada execu~ao conjunta. JAKOBS 27 , consequentemente, renuncia inteiramente ao criteria da resolu~ao conjunta de pratica do facto, sacrificando assim, de modo contrario a lei, a exigencia de prcitica "em conjunto" do facto. Em segundo lugar, tambem falta a execu~ao conjunta do facto. 0 "criminoso de secretaria" nao faz nada por si proprio, "nao suja as maos", antes utiliza "instrumentos" para executar a sua vontade. Se e necessaria urn contributo essencial na fase da execu~ao para que possa existir co-autoria, como defendo e e exigido pelo artigo 26Q do Codigo Penal portugues, nao e logo a partida possivel falar de co-autoria nas situa~6es em que o ordenante nao intervem na fase da execu~ao e, na maior parte dos casos, nem sequer conhece o local e o m omento da execu~aa2 8 • M as mesmo que se concordasse corn a jurisprudencia alema, que entende ser suficiente para a co-autoria uma colabora~ao prestada na fase preparatoria, nao seria possivel encontra-la aqui. 0 unico contributo do homem de tras para o facto consiste em planea-lo e desencadea-lo. Mas ai nao se encontra qualquer execu~ao conjunta. De outra forma, a decisao de praticar o facto integraria a sua execu~ao e a instiga~ao seria uma forma de autoria mediata, o que nao e compativel corn a concep~ao legal das formas de comparticipa~ao. Tampouco e possivel £alar de "divisao de trabalho", hoje geralmente considerada elemento central da co-autoria, no caso de o titular do poder deixar aos 6rgaos executivos a totalidade da efectiva~ao da sua ordem. Em terceiro lugar, caso se entendesse existir co-autoria ficaria diluida a diferen~a estrutural entre autoria mediata (a execu~ao "por intermedio de outrem") e a co-autoria (a execu~ao "conjunta"), o que levaria a que a linha de divisao entre as duas formas de autoria se tornasse confusa em termos dubiosamente compativeis corn o prindpio do Estado de Direito. A autoria mediata tern estrutura vertical (no sentido de urn decurso de cima para baixo, do desencadeador para o executante) enquanto a co-autoria esta estruturada horizontalmente (no sentido de uma posi~ao sincrona e paralela dos co-autores). Como afirma acertadamente BLOY29, "A presen~a de comportamentos coordenados de forma indubitavelmente vertical, nos quais o papel dos homens de

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Baumann!Weber 10, § 29 IV 1. Jakobs (nota 23), 27. Tambem neste sentido Figueiredo Dias (nota 7), 102. Bloy (nota 9), 440.

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tras esta orientado a partida para a realiza~ao da totalidade do facto por terceiro, aponta claramente no sentido de se tratar de autoria mediata e nao de co-autoria. " A concep~ao de BOCKELMANN30 constitui uma variante da tese da coautoria. Considera "o assassino de secretaria (... ) e os seus serventes" autores paralelos, pois "urn domfnio do facto mediante domfnio integral do facto" constitui para si "uma representa<;ao dificilmente concebfvel". Mas tambem existem muitas outras variantes do autor por tras do autor que executa integralmente o crime. E o recurso a figura da autoria paralela ignora o facto de que "assassinos de secretaria" e "serventes" nao andam por af desgarrados urn do outro, como acontece corn os autores paralelos, antes se encontram ligados pelo modo caracterfstico da autoria mediata: o "assassino de secretaria" comete o facto "atraves de outro" (§ 25, nQ 1, segunda alternativa), nomeadamente atraves do respectivo, geralmente anonimo, "servente" 31 •

V. A TEORIA DA INSTIGA~AO

Desde a decisao BGHSt 40, p . 218, tern vindo a surgir defensores de nomeada da teoria que considera o homem de tras instigador, que tinha desaparecido do debate. HERZBERG e ROTSCH, em particular, devolveram peso a esta concep~ao em estudos detalhados. "Hitler, Himmler e Honecker nao praticaram como autores os crimes que comandaram, mas provocaram-nos como instigadores", diz HERZBERG32 • ROTSCH33 defende que nos casos de tiros no muro se pode "sem dificuldade" afirmar a existencia de instiga~ao. Tambem KOHLER34 e RENZIKOWSKP5 defendem esta constru~ao. Na realidade, a solu~ao da instiga~ao e preferfvel a da co-autoria. A instiga~ao apresenta, como a autoria mediata, estrutura vertical, e consiste como esta no simples desencadear de urn evento praticado por outro. Mas o elemento distintivo assenta em o instigador nao dominar a execu~ao do facto, a realiza~ao do facto tfpico nao depender da sua vontade. E diferente o que acontece no caso do criminoso de secretaria: este e o elemento central dominante dos crimes que ordena; os carrascos executantes sao tambem responsaveis como autores devido ao domfnio dos seus proprios actos, mas nao podem disputar ao ordenante o domfnio superior da sua vontade, resultante do controlo do aparelho. Quando Hitler ou Estaline mandavam matar os seus opositores, tal era obra sua (embora nao so sua). A afirma~ao de que deixavam aos subordinados a decisao sobre se os factos ordenados seriam efectuados contraria prindpios sensatos de imputa~ao social, historica e, ate, jurfdica. Outras diferen~as na 30

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Bockelmannn/Volk, AT4, § 24. Concordantemente Figueiredo Dias (nota 7), 102. Herzberg (nota 13), 48. Rotsch (nota 14), 562; cfr. ja neste sentido o mesmo autor, em NStZ 1998, 491. Kohler, AT, 1997, 510. Renzikowski (nota 16), 87 ss.

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estrutura de relacionamento confirmam tambem urn dominio do criminoso de secretaria que nao se encontra no instigador: este tern que encontrar urn autor, enquanto o criminoso de secretaria tern apenas que dar uma ordem; o instigador tern que entrar em contacto corn o potencial autor, ganha-lo para o seu piano e, eventualmente, veneer a sua resish~ncia; o ordenante na hierarquia de urn aparelho de poder esta poupado a tudo isso. AMBOS36 sublinha agora tambem corn razao "a impossibilidade, assente nos factos, de comparar o comportamento do organizador e ordenante de crimes em massa corn o de urn simples instigador a pratica de determinado facto". Do mesmo modo observa tambem ROGALU 7, no "Festgabe a us der Wissenschaft", colectanea de estudos dedicados ao BGH, que caso o dirigente de urn aparelho de poder seja punido apenas coma instigad01~ "nao resultara claro que a execw;ao material da violac;ao do direito atraves de instigac;ao tenha sido obra sua". Por esta razao, a imputac;ao a autoria mediata sera "a soluc;ao mais plausfvel". Em termos inteiramente correspondentes observa tambem FIGUEIREDO DIAS38 que nos aparelhos organizados de poder o homem de tras tern urn dominio do facto ainda mais efectivo do que na utilizac;ao de instrumentos induzidos em erro, incapazes de culpa ou coagidos.

VI. 0 ALARGAMENTO DO DOMINIO DE ORGANIZA<;AO A EMPRESAS ECON6MICAS

A figura da autoria mediata atraves de aparelhos organizados de poder nao constitui assim em si de forma alguma urn "alargamento excessivo da autoria", coma entende HERZBERG39 . Todavia, se-lo-a de facto caso a construc;ao seja, sem mais, transferida para o desencadeamento de comportamentos delituosos por dirigentes de explorac;oes econ6micas e outras organizac;oes hierarquizadas, coma tern sido feito crescentemente na jurisprudencia alema recente. Este desenvolvimento tinha ja sido deixado em aberto no ac6rdao BGHSt 40, pp. 218 e ss. As~ Secc;ao merece concordancia quando afirma (op. cit, p. 237) que "uma autoria mediata assim entendida tera de ser ponderada, nao s6 em caso de abuso de competencias do poder central, mas tambem em casos de crime organizado de tipo mafioso". Acrescente-se que, coma ja referido no infcio, o dominio de organizac;ao tern tambem outro vasto campo de aplicac;ao em organizac;oes terroristas que tern a sua disposic;ao numerosos executores substitutiveis. Mas a decisao vai demasiado longe quando prossegue: 36 Ambos (nota 8), 593. Nos casos que, em seu en tender, nao podem ser abrangidos pelo criterio da fungibilidade, Ambos, invocando Murmann (nota 10, 273 s.) pretende recorrer a constru~ao dos crimes de clever que desenvolvi noutro contexto, fazendo decorrer uma autoria dos homens de tnis do clever de protec~ao pelo Estado dos seus cidadaos (nota 8, 599 s.). Parece-me duvidoso que tal constru~ao seja necessaria no funbito do dominio de oraniza~6es. Mas para a responsabilidade de dirigentes em empresas tambem preconizo esta so lu~ao (cfr. Infra, nota 53 e texto adjacente. 37 Rogall, in: 50 Jahre Bundesgerichtshof, Bd. IV, 2000, 338 ss. (427). 38 Figueiredo Dias (nota 7), 102. 39 Herzberg (nota 13), 47.

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Tambem pode ser solucionado deste modo o problema da responsabilidade na explora<;iio de empresas economicas". Na realidade, aqui falta a fungibilidade dos executantes que se encontra em organiza<;6es que funcionam a margem do Direito relativamente aos factos criminosos que praticaram (por exemplo, homiddios ). Este afastamento do Direito40 encontra-se em crimes de Estado, em delitos terroristas e nos casos de criminalidade organizada. Mas quando, numa empresa ¡ que participa na actividade economica no quadro da ordem jurfdica, o dirigente de uma sec<;ao exige a urn empregado que proceda a falsifica<;iio de urn documento, aquele sera apenas, caso esta seja efectuada, instigador do facto praticado como autor pelo empregado. Numa organiza<;iio que funciona no quadro do Direito so se pode esperar que instru<;6es ilfcitas nao sejam seguidas, como expressamente prescrevem, por exemplo, as Beamtengesetze (Estatuto dos Funcionarios). Urn exemplo de tal alargamento excessivo encontra-se na decisao sobre a eutanasia BGHSt 40, p. 25741 • 0 filho e o medica assistente de urn paciente tinham instruido o pessoal auxiliar para suspender o tratamento; foram condenados pelo BGH, apenas por esta razao, como autores materiais do homiddio eventualmente praticado. A passagem determinante e do seguinte teor: "Tendo em considera<;ao (... ) a competencia assumida pelos dois arguidos para dar instru<;6es, urn como filho e curador corn poderes de representa<;iio, o outro como medica assistente, por urn lado, e o papel subordinado do pessoal auxiliar, normalmente actuando apenas em fun<;ao de instru<;6es recebidas, por outro, nao pode subsistir qualquer duvida relativamente aos dois arguidos, quer do ponto de vista subjectivo da vontade de autoria, quer quanta ao pressuposto objectivo do dominio do facto." Todavia, nao existe aqui domfnio de organiza<;iio, nao so por falta de fungibilidade do chefe do servi<;o auxiliar competente para dar seguimento as instru<;6es, mas tambem porque urn Hospital nao funciona a margem do Direito relativamente a proibi<;iio do homiddio, antes o observa estritamente. No caso concreto o chefe do servi<;o auxiliar tambem nao tinha seguido as instru<;6es, mas antes evitado o homiddio. Faltava assim o domfnio do facto pelos homens de tras. Ainda que pudessem ser utilizados outros executantes, tambem se poderia e deveria esperar deles que, apercebendo-se da ilicitude do horniddio, se recusassem a cumprir as instru<;6es. Havia, portanto, apenas instiga<;iio. Outras decisoes tomaram o caminho do acordao da eutanasia42 . Uma decisao de 1997, da 21l Sec<;iio43 pune os gestores de uma sociedade por quotas 40 Quanto ao criterio que tenho por necessario do alheamento do direito e a polemica corn Ambos (nota 3), 243 e ss., cfr. Expressamente Roxin, Griinwald-FS, 1999; sobre Ambos e contra o criterio do alheamento de direito cfr. Rotsch (nota 14), 533 ss. Fortemente no sentido da posic,:ao que defendo Figueiredo Dias, no volume colectivo do Congresso de Huelva (nota 7). Fazendo o ponto da situac,:ao Ambos (nota 8), 606 ff., omnde sao apresentados ainda mais defensores da posic,:ao que sustento. 41 A este respeito v. Ronnau, JA 1996, 108. 42 Mais detidamente quanto as duas decisoes a seguir referidas Roxin (nota 6), 616 f.; Rotsch (nota 14), 553 ss. 43 BGH NStZ 1997, 544.

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coma autores mediatos de uma descarga de residuos perigosa para o ambiente

(§ 326 do StGB). 0 "dominio do facto sustentado pela vontade de autoria" dos gestores e deduzido do facto de terem "aberto e apontado (... ) a via" para a descarga ilegal de residuos. Todavia, abrir e apontar a via para a pratica do facto punivel e 0 tipico papel do instigador (e muitas vezes 0 auxilio tecnico prestado pelo cumplice). De qualquer modo, aquela circunstancia nao basta s6 por si para constituir dominio do facto. Urn ac6rdao da 4~ Sec<;ao, do mesmo ano44, puniu os gestores de uma sociedade por quotas como autores mediatos das burlas praticadas pelos empregados, embora nao pudesse ter sido "verificado qualquer efeito concreto ou mesmo conhecimento actual dos arguidos sobre cada encomenda de mercadorias". "Autor atraves de autoria mediata" pode ser "qualquer pessoa que utilize, atraves de estruturas organizacionais, urn determinado enquadramento que desencadeie uma sequencia regular". Isto foi afirmado pelo BGH "tambem em rela<;ao a actividades empresariais". Nao e, todavia, explicado em local algum como pode existir dominio do facto relativamente a urn evento sobre o qual os arguidos nem sequer puderam influir. 0 dominio do facto e aqui utilizado apenas para imputar a titulo de autoria qualquer responsabilidade ao nivel da direc<;ao de uma empresa, ainda que indirecta. Todavia, o conceito nao se adequa para aquele efeito. Este afastamento da jurisprudencia do dominio de organiza~ao foi possibilitado por o BGH, na sua marcante decisao sobre o "Conselho de Defesa Nacional", ter, para fundamentar a existencia de autoria mediata, recorrido a dois outros pantos de vista: o primeiro de que o homem de tn1s utiliza "a disposi<;ao incondicional do agente material para realizar o facto tipico", o segundo de que quer "o resultado coma produto da sua propria actua<;ao" (BGHSt 40, p. 236). 0 primeiro ponto de vista tern origem em Friedrich Christian SCHROEDER, que ve o fundamento da autoria mediata, nos casos de dominio de organiza<;ao, no aproveitamento da decisao pre-existente no executor de praticar o facto 45 . Mas este entendimento nao e acertado, e e tambem maioritariamente rejeitado pela doutrina 46 • Pois mesmo que o executor se ofere<;a para praticar o facto, estando fora de duvida que esta decidido a faze-lo, nao ha duvidas de que se verifica apenas instiga<;ao. Alem disso, a essencia do dominio de organiza<;ao reside precisamente em, dada a permutabilidade dos executores, nao relevar sequer a decisao de pratica do facto de cada urn. E no ambito de empresas que funcionam dentro do Direito nao ha qualquer ensejo para os empregados serem mais predispostos a aceder a prop6sitos criminosos do que quaisquer outras pessoas•7 •

BGH wistt·a 1998, 148. Schroeder, Der Tater hinter dem Tater, 1965, 152 e passim. 46 Ambos (nota 3), 230; Herzberg (nota 2), 49; Rotsch, Individuelle Haftung in GroiSunternehmen, 1998, 143; Rotsch (nota 14), 525 f.; Roxin, JZ 1995, 51; Stein, Die strafrechtliche Beteiligungsformenlehre, 1988, 186. 47 Encontram-se outros argumentos contra a tese de Schroeder em Rotsch (nota 14), 525 f. 41 45

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organiza~ao,

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0 segundo ponto de vista reconduz a teoria subjectiva, que nao e compativel corn a teoria do domfnio do facto e, de qualquer forma, e inutilizavel devido a sua formalidade sem contetido. Dizer que as pessoas que integram a direct;ao da empresa teriam querido como actuat;ao sua os factos punfveis dos seus empregados e uma expressao que nada diz. Mais apropriadamente formulado seria dizer que teriam querido os factos criminosos como resultado da actuat;ao dos seus empregados. Assim, a tentativa do BGH de resolver o problema da responsabilidade na explorat;ao de empresas econ6micas recorrendo a construt;ao da autoria mediata atraves de aparelho organizado de poder tambem foi rejeitada pela grande maioria da doutrina 48 • Nao obstante, nao se pode negar que subsiste a necessidade de responsabilizar o pessoal dirigente das empresas a titulo de autoria pelas infract;oes praticadas no quadro da empresa pelos seus empregados, caso as tenham desencadeado, proporcionado ou indevidamente nao evitado. Portanto SCHUNEMANN49 e MUNOZ CONDE50, rejeitando a autoria mediata, defendem a exish~ncia de co-autoria, limitada aos casos de criminalidade empresarial, e que SCH0NEMANN51 retira da "dupla contribuit;ao de urn garante (simultaneamente como interveniente na omissao e participante activo )" 52 • A ideia de SCHONEMANN conduz ao caminho certo, ainda que eu nao o siga na adit;ao de omissao e act;ao para chegar a co-autoria. E antes a posit;ao de garante do empresario que faz dele autor segundo as regras dos crimes de dever, quer " sua contribuit;ao para o facto consista num agir, quer consista no simples deixar acontecer o que e responsavel por evitar. Esta "autoria mediata atraves de posit;ao de dever" pode ser considerada uma forma aut6noma de autoria mediata 53 • Ja e presentemente acolhida no artigo 13 do denominado Corpus juris que estabelece disposit;oes penais para a protect;ao dos interesses financeiros da Uniao Europeia, que e do seguinte teor: "Se for praticado urn facto punfvel por conta da empresa por uma pessoa que esteja sujeita a autoridade do director da empresa ou de outra pessoa corn poder de decisao ou controlo na empresa, esta e penalmente responsavel caso tenha tido conhecimento da pratica do facto, tenha dado instrut;oes para a sua pratica, tenha deixado o facto ser praticado ou nao tenha tornado as medidas de controlo

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Ambos (nota 3), 226, 239; Kiihl (nota 2), nQ73 b; Murmrmn (nota 10), 269; Rotsch (nota 46), 144

ff.; Rotsch (nota 2), 491, 493 ss.; Rotsch, wistra 1999, 321, 327; Roxin, JZ 1995, 49, 51; Roxin (nota 6, 682 f.; Schiinemann, in: 50 Jahre Bundesgerichtshof, Volume IV, 2000, 629 ss. No sentido do BGH,

todavia, Ransiek, Untemehmensstrafrecht, 1996, 46 ss. 49 Schiinemann (nota 48), 628 ss.; tambem Dierlamm (nota 2), 569. 50 Muiioz Conde, Roxin-FS, 2001, 623 s.; Muiioz Conde, Revista Penal, 2002, 59. 51 Schiinemann (nota 48), 632. 52 Algo hesitante e a tomada de posi ~ao de Figueiredo Dias (nota 7), 106, que por principio nega a autoria mediata, mas pondera a sua aplica~ao em Direito Penal secundario. 53 Sobre o conjunto do problema v. Tiedemann, Nishihara-FS, 1998, 496 ss., que preve, para um c6digo penal europeu modelo uma forma propria de autoria, a «responsabilidade por comportamento alheio».

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necessarias." Enquanto nao tivermos urn preceito como este no StGB sera possivel retirar uma autoria por omissao da posi<;ao de garante dos membros da direc<;ao; esta nao e exclufda por 0 garante que nao evitou 0 resultado ter ainda participado activamente no delito. Todavia, nao se trata de casos de activo domfnio do facto. Isto conduz-nos a conclusao: a autoria mediata atraves de aparelhos organizados de poder e uma figura jurfdica produtiva, que se afirma contra muitas objec<;6es, que permite punir como autores os agentes anteriores, sobretudo, em crimes de Estado e nos crimes da criminalidade organizada e do terrorismo. Estara, pm路em, a ser puxada para alem dos seus limites caso se queira aplica-la a todas as rela<;6es hierarquicas ou atribuir o domfnio do facto ao pessoal dirigente de empresas econ6micas relativamente a infrac<;6es criminais praticadas por subordinados no quadro da empresa, sem tomar em considera<;ao que forma assumiu a sua contribui<;ao para os factos. Aqui terao que surgir outras constru<;6es que complementem o domfnio de organiza<;ao. Constoume que tambem o Bundesgerichtshof alemao esta a ponderar desenvolvimentos da jurisprudencia actual em rela<;ao a determinadas constela<;6es. Esperemos por elas, e pela continua<;ao do desenvolvimento da discussao internacional!

Munique, Setembro de 2002


LA SUPERACION DEL CONCEPTO OBJETIVO-FORMAL DE AUTORIA Y LA ESTRUCTURA DE LAS ORGANIZACIONES EMPRESARIALES

Francisco Mufioz Conde



LA SUPERACION DEL CONCEPTO OBJETIVO-FORMAL DE AUTORIA Y LA ESTRUCTURA DE LAS ORGANIZACIONES EMPRESARIALES

Francisco Mu:fioz Conde*

Cada vez mas frecuentemente, el moderno Derecho penal tiene que ocuparse de comportamientos delictivos, principalmente de caracter econ6mico, que se cometen normalmente en el seno de grandes empresas. Hechos de este tipo se han dado y se daran siempre, aunque cada vez con mayor profusion en esta epoca en la que la globalizaci6n y el control de la economia estan en manos de algunas pocas empresas multinacionales que dictan sus propias leyes, al margen o incluso claramente en contra de las normas jurfdicas que regulan sus actividades, sin que ello plantee ninguna responsabilidad penal para sus dirigentes y las personas ffsicas que achian en su nombre y representaci6n. Detras de esta impunidad, que algunos, siguiendo a BECK, han llamado «irresponsabilidad organizada», considerandola inevitable, hay causas de todo tipo, politico, econ6mico, y por supuesto tambien jurfdico. Practicamente, los hechos que se cometen en el ambito de estas organizaciones quedan al margen del Derecho penal y, en todo caso, en los pocos casos en los que se llega a exigir una responsabilidad penal, esta recae sobre personajes secundarios y nunca sobre los autenticos y verdaderos responsables. Actualmente parece que hay acuerdo en un importante sector de la doctrina en cuestionar, por lo menos respecto a algunas formas de criminalidad y sobre todo respecto a aquella que se comete en el ambito de una gran empresa, la idea de que el ejecutor material directo del hecho es el principal responsable del mismo. Esta idea esta enraizada en la imagen del autor de los delitos tradicionales contra la vida, la libertad sexual o la propiedad, que son los delitos sobre los que se ha elaborado la Teorfa General del Delito. De acuerdo con esa imagen, la ejecuci6n de la acci6n tfpica del respectivo delito (matar, penetrar sexualmente, apoderarse de la cosa mueble ajena) constituye el omportamiento central, mas importante y, por tanto, mas grave, £rente a otros no estrictamente ejecutivos de ayuda, favorecimiento

• Universidade Pablo de Olavide - Sevilha.

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o induccion. Pero incluso en estos delitos se tuvo que recurrir ya hace tiempo a la figura del autor mediato o la del ÂŤautor tras el autor>> para fundamentar la imputacion como autor de quien sin intervenir en la ejecucion de la accion delictiva se sirve de otra persona como instrumento, en principio, irresponsable, para realizarlo. Pero donde mas se notan las insuficiencias de la teoria objetiva-formal de la autoria es en los ambitos delictivos en los que la realizacion del delito se produce a traves de organizaciones, grupos de personas, aparatos de poder, en los que la verdadera responsabilidad de las acciones que se realizan recae en las persona que las deciden y no en las que la ejecutan, que aunque tambien puedan ser esponsables tienen en todo caso una responsabilidad subordinada y, por tanto, accesoria de los verdaderos responsables. Ello se debe tambien a la irrelevancia que en sf mismas presentan las acciones ejecutivas en los delitos empresariales, principalmente economicos, ya que acciones como anotaciones contables, transferencias de capitales, inversiones en Bolsa, etc, son en sf mismas acciones penalmente irrelevantes, que solo adquieren un significado 0 relevancia penal situadas en un determinado contexto y en la medida en que formen parte de un plan conjunto de decision criminal. Solo asf se explica que en muchos de estos delitos, el ejecutor de las acciones sea un personaje secundario, sin capacidad de decision e incluso sin conciencia clara de la relevancia penal de su comportamiento, por lo que muchas veces queda al margen de la persecucion penal. Ello serfa, por supuesto, impensable en el caso de los ejecutores de delitos contra la vida, la libertad sexual, violentos contra la propiedad, etc, en los que la fase ejecutiva, incluso la realizacion de propia mano de la accion tfpica, es lo decisivo. Parece, pues, que la Dogmatica jurfdicopenal, que con construcciones coma la teorfa del dominio del hecho consiguio superar las insuficiencias de la teorfa objetivo-formal para fundamentar la responsabilidad directa del autor mediato, tiene tambien aquf que llevar a cabo una revision del concepto de autoria, mediata o coautoria, adaptandola a la realidad de la fenomenologfa criminal de la delincuencia cometida en el ambito de grandes grupos u organizaciones. 2,Pero cuales son las peculiaridades de la actuacion de estas organizaciones y grupos de personas y por que no son aplicables en ellas las formas de imputacion de la responsabilidad penal que han sido desarrolladas en otros ambitos de la criminalidad? Para delimitar mejor el problema, nos vamos a referir aquf solo a las peculiaridades de la organizacion de las grandes empresas, que son, por lo demas, las que mejor han sido estudiadas en el ambito de la sociologfa y la economfa. Pero tambien porque, al tratarse de organizaciones que formalmente achian dentro de la legalidad, existen en ellas unas formas de regulacion jurfdica de sus actividades que, aunque no sean automaticamente aplicables para la determinacion de la responsabilidad penal de sus organos de gestion, sirven tambien para delimitarla con mayor precision.

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La: superacion del concepto objetivo-formal de autoria y la estructura de !as organizaciones ..., p. 55-67 Si en el ambito de estas organizaciones, coma por ejemplo cualquier colectivo empresarial de cierta importancia, las actividades se realizan a traves de un complejo organigrama, en el que predominan la division de funciones en el plano horizontal y la relacion jerarquica en el plano vertical, es evidente que no puede situarse el centra de gravedad de la responsabilidad por autorfa exclusiva o principalmente en el ultimo eslabon de la cadena, en la fase ejecutiva, dejando en la periferia o incluso en la impunidad conductas no ejecutivas, pero tan importantes 0 mas que las propiamente ejecutivas. No se trata, sin embargo, de subvertir la distincion tan trabajosamente obtenida, pero ya acreditada y aclimatada en la Dogmatica penal espafi.ola entre autorfa y participacion, ni de volver a un concepto unitario de autor que hace tabla rasa de distinciones y matizaciones en los diferentes grados de responsabilidad, ni de convertir en un problema de determinacion de la gravedad de la pena que merezca cada interviniente en la realizacion del hecho delictivo, lo que es ya previamente un problema de determinacion del centra de la responsabilidad misma. Se trata de algo mas profunda. El >>Cambio de paradigma>> que se ha producido en esta materia antes en la jurisprudencia que en la teorfa, se debe a la necesidad de situar en un primer piano la responsabilidad de los directivos y dirigentes de una organizacion que deciden, organizan y controlan la realizacion de actos delictivos, aunque luego no intervengan en su ejecucion directa. El problema dogmatico consiste solo en hallar el fundamento del criteria material que permite atribuir a estas personas la cualidad de autor en sentido estricto. En mi opinion, el fundamento dogmatico no solo se debe encontrar en la estructura y modo de funcionamiento de las organizaciones en cuyo seno se cometan los delitos, sino tambien en la propia naturaleza del delito en cuestion. Desde luego, no es lo mismo la realizacion de un genocidio a traves de un aparato de poder estatal que la de un delito societario de administracion fraudulenta en el ambito de una sociedad bancaria. Como tampoco es lo mismo el atentado terrorista que lleva a cabo un comando siguiendo las instrucciones, mas o menos genericas respecto a los detalles e identidad de las personas vfctimas del atentado, de la cupula de la organizacion, que el dafi.o medio ambiental o la intoxicacion alimenticia que se produce por defectos d funcionamiento de una instalacion industrial, o en la elaboracion, distribucion o venta de los alimentos. Pero lo que sf tienen todos estos hechos en comun es que, desde el punto de vista de la responsabilidad penal (y no solo desde ella, piensese tambien en la civil o en la administrativa), lo que se trata de fundamentar es coma y por que puede considerarse coma principales autores y responsables de los delitos, no ya solo 0 tambien a los que los ejecutan directamente, sino a los que, desde la lejanfa temporal o ffsica, deciden, organizan y controlan su ejecucion. Este es, a mi juicio, un problema que no puede ser resuelto, o por lo menos satisfactoriamente resuelto, con la aplicacion automatica de una concepcion de la autorfa elaborada sobre formas de criminalidad que presentan una estructura y una forma de realizacion completamente diferentes a las formas de crimi-

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nalidad que caracterizan la delincuencia organizada,o la empresarial economica o medioambiental, o la realizada en el ambito de aparatos de poder organizados de caracter estatal 0 paraestatal. Los casos de los que se tienen que ocupar los Tribunales en esta materia no son ya los clasicos ÂŤA mata a B con la pistola que le dio c,, o ÂŤD,E, F, y G de acuerdo con el plan acordado atracan un Banco y mientras F y G apuntan al empleado de la caja con una pistola, E mete el dinero en una bolsa y D espera en la calle con el coche en marcha>>; sino casos mas complejos que se realizan a traves de varios actos, de forma a veces masiva, durante un lapso de tiempo mas o menos largo y en diferentes lugares, por varias personas, cada una cumpliendo una funcion previamente establecida, dentro de una organizacion, formando parte de una politica o estrategia comun previamente establecida por quienes tienen el control de la organizacion. La Dogmatica jurfdicopenal tiene, por tanto, que esforzarse en fundamentar la inclusion en el concepto de autor a las personas que, sin realizar acciones ejecutivas, deciden y controlan la realizacion de un delito tanto en el ambito de la delincuencia organizada, como en la empresarial, y dentro de esta tanto en los ambitos de la responsabilidad por el producto y de los dafios medioambientales, como en los estrictamente economicos. Para ello, como ya ha sucedido en otros ambitos de la fenomenologfa criminal, tiene que superar el concepto puramente objetivo-formal de la autorfa que se basa en la realizacion de actos ejecutivos. Es, pues, la propia realidad de estas nuevas (a veces no tan nuevas) formas de criminalidad que se dan en el ambito de organizaciones o aparatos de poder, la que obliga a rehacer y revisar el concepto de autor, para incluir en el las conductas de las personas que tienen en estos ambitos la principal responsabilidad. Para analizar hasta que punto la concepcion expuesta anteriormente puede ser utilizada para resolver el problema de c6mo imputar a titulo de autores a las personas que, sin realizar acciones ejecutivas, deciden la realizacion de un delito en el ambito de la actividad economica empresarial, creo que tambien hay que distinguir entre los supuestos que pueden ser resueltos satisfactoriamente con la figura de la autorfa (mediata) y los que mas bien deben ser reconducidos al ambito de la coautorfa, aunque tambien aquf el legislador ha recurrido en algunos casos, como sucede por ejemplo en algunos delitos societarios (cfr. arts. 290 y ss.), a elevar ya a la categorfa de delito autonomo la adopci6n de decisiones o acuerdos colegiados en el seno de Consejos de Administracion e instituciones societarias similares, lo que obviamente resuelve una parte del problema, que en todo caso sigue siendo el de atribuir concretos delitos dolosos de resultado lesivo a los que no han intervenido en su ejecucion, pero sf en su decision y preparacion. El problema a resolver aquf sigue siendo, pues, una vez mas, como imputar a quienes en el seno de un grupo u organizacion, en este caso en el del organo colegiado de un ente empresarial, deciden la realizacion de uno o varios hechos delictivos sin intervenir posteriormente en su ejecucion. Su correcta solucion dogmatica no solo es de gran importancia teorica para una correcta delimitacion

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del concepto de autoria en este ambito de la criminalidad, sino tambh~n practica, porque solo la determinacion de las estructuras que fundamentan en este ambito la autoria, permite atribuir la responsabilidad a los verdaderos autores de los delitos y no a personajes secundarios, que muchas veces no son mas que «hombres de paja>> utilizados precisamente para que los verdaderos responsables evadan su responsabilidad. Pero es que, ademas, en los delitos economicos, y otros de diversa indole cometidos en el ambito empresarial, se da la particularidad de que lo que sin duda constituye el «nticleo» del contenido de injusto del respectivo delito («matar>>, en los delitos contra la vida, «acceder carnalmente>> en los delitos de agresion sexual, «Sustraer o tomar una cosa mueble ajena>> en los delitos patrimoniales de apoderamiento ), es en ell os bastante menos importante o desempefia una funcion casi secundaria. El «ejecutivo>> en el ambito empresarial es, incluso en el lenguaje coloquial, un personaje de secundaria importancia, cuya mision consiste simplemente en llevar a la practica o ejecutar las decisiones tomadas por los altos cargos y directivos de la empresa, en las que ni siquiera ellos participan. La vinculacion del concepto de coautoria al de coejecucion puede tener cierto sentido, aunque aqui tambien la hayamos criticado, en los delitos clasicos contra la vida, contra la libertad sexual o contra la propiedad, por la distinta trascendencia de la fase preparatoria y la ejecutiva del delito y porque en ellos la ejecucion misma («matar>> <<acceder carnalmente>> <<SUstraer>>) tiene un desvalor etico-social especifico o adicional que no tienen las fases de preparacion y decision o las de mera ayuda. Pero dicha fijacion carece de sentido en los delitos que se cometen en el ambito empresarial, en el que las funciones decisorias y organizativas son no solo juridicamente, sino incluso social y economicamente consideradas mas importantes que las ejecutivas propiamente dichas. En este ambito lo que caracteriza la actuacion de las grandes empresas, i:nultinacionales, financieras, fabricantes y distribuidoras de productos, etc., es que los <<Centros de decision>> son mas importantes que los <<Centros de ejecucion>>. Desde este punto de vista, seria absurdo, por tanto, calificar a los que toman las decisiones y organizan la ejecucion de un hecho delictivo, pero no toman parte directa en ella, como meros inductores o cooperadores necesarios y, por tanto, como participes, y a los que de forma subordinada las ejecutan, como verdaderos autores. Y atin mas absurdo seria, e incluso podria abrir peligrosas lagunas de punibilidad que en algunos delitos de los llamados especiales, caracteristicos del mundo empresarial, como son, por ejemplo, las insolvencias punibles, el delito fiscal, o algunos delitos societarios, en los que muchas veces el que realiza las acciones de ejecucion del delito no tiene la cualidad exigida por el tipo (por ejemplo, la de deudor, la de administrador, de hecho o de derecho, la de obligado tributario) y, por tanto, to do lo mas puede ser calificado como cooperador necesario, tampoco pudiera ser calificado de autor el que tiene esas cualidades pero no ejecuta directamente el delito. Curiosa forma de imputacion de un delito seria esta, en la que los verdaderos responsables todo lo mas pueden ser considerados como participes, o en la que todos, directivos de la empresa, sujetos cualificados y meros ejecutivos, son participes y ninguno autor. I

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Noes, por ello, extrafto que en este ambito la jurisprudencia, adelantandose ya en cierto modo a la doctrina, haya provocado un ÂŤCambio de paradigma>> en la teorfa de la autorfa y la participacion y que en la determinacion de la responsabilidad por los delitos que se cometen en el ambito empresarial haya empezado por averiguar la responsabilidad de los que en la cuspide toman las decisiones, y no por la de los que al ejecutarlas producen el dafto. Es verdad que esta consideracion <<top-down>>, es decir, de arriba abajo, se ha producido sobre todo en el ambito de la responsabilidad por el producto , pero se esta extendiendo tambien a otros sectores de la criminalidad caracterfsticos del mundo empresarial, como son los medioambientales y los economicos. En todo caso, parece claro que solo teniendo en cuenta estas particularidades del mundo empresarial, y no desde un apriorismo ajeno a la realidad o, en el mejor de los casos, basado en la estructura individual de delitos mas tradicionales, se pueden abordar con cierta seguridad y realismo los problemas de imputacion que se plantean en su seno. Ahora bien, aunque es cierto que esta problematica de la determinacion de los verdaderos autores se presenta generalmente en todos los delitos que se cometen en el ambito de las grandes empresas, debe tenerse en cuenta, que mientras que en los medioambientales y en la responsabilidad por el producto se ponen en peligro 0 incluso se lesionan bienes jurfdicos de caracter personalfsimo como la vida y la salud de las personas, en los delitos puramente economicos esta posibilidad adicional no se da, y ello explica tambien que la unica forma de comision que se castiga en ellas sea la dolosa, incluso con dolo directo o de primer grado, mientras que en los delitos medioambientales o en la responsabilidad por el producto se castigue tambien su forma de comision imprudente y la infraccion de determinados deberes de control y vigilancia de fuentes de peligro que fundamenta una posicion de garante por parte del empresario o de los cargos dirigentes de la empresa y con ella la posibilidad de una comision por omision de estos delitos. Estas peculiaridades de los delitos economicos son desatendidas muchas veces por quienes pretenden resolver problemas de autorfa en el ambito empresarial de forma apriorista y global, sin diferenciar entre estos delitos y los otros que tambien suelen darse en el ambito empresarial, pero en otras actividades o afectando a otros bienes jurfdicos distintos a los puramente economicos. Pero todavfa mas se escapan a quienes quieren resolver estos problemas con los argumentos tradicionalmente esgrimidos para resolver casos de intervencion de unas pocas personas en la comision de delitos contra la vida o la integridad ffsica. Desde nuestro punto de vista, el problema de la determinacion de la autorfa de los delitos economicos que se cometen en el ambito empresarial (son diffcilmente imaginables en otros ambitos), es mucho menos complicado, salvo que se trate de delitos especiales, en los que la exigencia de determinadas caracterfsticas adicionales que fundamentan la autorfa requiere una determinacion mas minuciosa de quienes pueden considerarse como verdaderos autores (infra b). De ahf que para la exposicion y analisis del problema de la deter-

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minacion de la autoria en los delitos economicos empresariales, haya que distinguir entre los delitos que no requieren ninguna cualidad especial en el sujeto activo o autor en sentido estricto y los que requieran alguna cualidad especial.

I- SEGUNDA PARTE: PROBLEMAS DE DETERMINACION DE LA AUTORIA EN EL AMBITO DE LA DELINCUENCIA ORGANIZADA Y ECONOMICA EMPRESARIAL

La diferenciacion conceptual entre las diversas formas de autoria y entre esta y las diversas formas de participacion en el delito, se hace mas dificil de realizar, e incluso a veces puede quedar gravemente comprometida, cuando el delito es cometido, no ya por varias personas cada una con distinto grado de intervencion o responsabilidad en su realizacion, sino por esas mismas personas integradas en grupos u organizaciones en cuyo seno se ha disefiado - por otros miembros - un plan conjunto, o decidido la realizacion de esas acciones. En estos casos, no solo se plantea la necesidad de castigar a Ios miembros del grupo por su pertenencia al mismo o por ejercer funciones directivas, cuando este ya de por si constituye una asociacion ilicita (arts. 515 ss.), sino el problema de coma hacerlos responsables cuando no intervienen directamente en la ejecucion de los delitos concretos que llevan a cabo otros, sino que simplemente los disefian, los planifican o asumen el control o direccion de su realizacion. Esta es la cuestion que casi siempre se plantea a la hora de decidir la responsabilidad por los hechos concretos realizados por miembros de organizaciones criminales tales coma las dedicadas al terrorismo, el narcotrafico o el blanqueo de capitales. Pero tambien se plantean problemas similares cuando se trata de grandes delitos economicos y fraudes financieros realizados en el ambito de grandes empresas, que si bien en algunos casos pueden ser ya de por si organizaciones criminales, no operan, coma estas, desde un principio fuera de la ley o realizando actividades generalmente constitutivas de delitos. A)

La imputacion de la autoria en el marco de la criminalidad organizada de caracter estatal o paraestatal. Para resolver este problema y en relacion concretamente con los crimenes contra la Humanidad y genocidios cometidos por los miembros, altos cargos y funcionarios del aparato de poder del Gobierno nacionalsocialista aleman en el periodo de 1933 a 1945, Claus ROXIN desarrollo en 1963 una sugestiva teoria, conforme a la cual podia fundamentarse una autoria mediata de quienes, sin haber intervenido directamente en la ejecucion de tan horribles hechos, dominaban su realizacion sirviendose de todo un aparato de poder de organizacion estatal que funcionaba coma una maquina perfecta, desde la cupula donde se daban las ordenes criminales, hasta los meros ejecutores materiales de las mismas, pasando por las personas intermedias que organizaban y controlaban el cumplimiento de estas ordenes.

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Tres son los elementos que, segun ROXIN (Madrid 1998, pp. 268 ss.), deben darse para fundamentar una autorfa mediata de esta clase: el dominio de la organizacion por parte de los autores mediatos, la fungibilidad o sustituibilidad de los ejecutores y que se trate de aparatos de poder que actUen como un todo al margen del Derecho. Contra esta tesis se han formulado algunas objeciones que aducen sobre todo que la figura de la autorfa mediata, que ahora expresamente reconoce el Codigo penal espa:fiol en el art. 28, no es aplicable cuando el ejecutor material es plenamente responsable de lo que hace, sino solo cuando este es inimputable o ni siquiera actUa tfpica o antijurfdicamente, es decir, cuando es un simple instrumento no responsable en manos del hombre de atras que es realmente el autor (media to) de lo que el instrumento realiza sin responsabilidad alguna o con una responsabilidad por lo menos disminuida. Aquf, por el contrario, los ejecutores materiales, sin excluir la posibilidad de que en algun caso concreto actUen en error de prohibicion o coaccionados, son plenamente responsables e incluso cometen los hechos de forma absolutamente voluntaria, mostrando ademas muchas veces un alto grado de adhesion a la causa, entusiasmo o fanatismo, igual o superior al de los superiores que les dab an las ordenes (en contra de que en estos casos exist a autorfa mediata, DONNA, p. 533; HERNANDEZ PLASENCIA, p. 276; masmatizadamente, BOLEA BARD6N, pp. 366 ss.). No obstante, en el ambito de la criminalidad estatal o paraestatal, la autorfa mediata de los dirigentes de las organizaciones es la mejor forma de imputar la responsabilidad principal que corresponde a los mismos. Asf sucede, por ejemplo, con el «Golpe de Estado» generalmente encuadrable en el delito de rebelion (dr. arts. 472 y ss. Cp). Para ello no es preciso recabar ejemplos de la historia de otros pafses. La casufstica espa:fiola no solo es muy amplia al respecto (centenares de <<golpes de Estado» mas o menos relevantes han animado la escena polftica espa:fiola durante los siglos XIX y XX, y la dictadura del general Franco que rigio Espa:fia durante casi cuarenta a:fios se origino en uno contra el Gobierno legftimo de la 11 Republica), sino que ha motivado, en los casos en que los rebeldes no consiguieron sus propositos, importantes decisiones judiciales en las que siempre el problema principal consistfa en determinar quienes eran los principales responsables y, por tanto, verdaderos autores de los mismos. Normalmente, el delito de rebelion se da en el marco de un aparato de poder estatal tan marcadamente jerarquico como es la institucion militar. Tambien aquf hay, ademas de una estructura jerarquica que facilita el manejo del aparato de poder de los que estan en la cuspide del mismo, una fungibilidad de los <<meros ejecutores», como los denomina el art. 480,2 Cp, y una actuacion de los mismos al margen de la legalidad o de los cauces previstos legalmente para conseguir los cambios politicos deseados. El delito de rebelion va normalmente precedido de una serie de actos, reuniones, contactos previos, negociaciones, etc., diffcilmente encuadrables como tales y sin mas aditamento de elementos materiales en las diversas de autorfa.

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Pero ello no excluye que una vez que la rebeli6n llega a materializarse sea necesario deterrninar la responsabilidad de los verdaderos jefes y, por tanto, autores o coautores tambien en sentido estricto, aunque no intervengan directamente en el «alzarniento violento y publico>> que, seglin el art. 472, constituye la acci6n tipica nuclear de la rebeli6n. Recurrir para ello a las figuras de la inducci6n o la cooperaci6n necesaria, por mas que tambien permitan la aplicaci6n de la pena de la autorfa estricta, no solo es una incorrecci6n dogmatica y una mala interpretaci6n de la regulaci6n legal de esta materia, que con raz6n preve incluso una penalidad mas grave para los que denornina «jefes principales>> (art. 473,1), sino una deformaci6n de la verdad hist6rica y de la fenomenologfa peculiar de estos delitos (recuerdese el intento de «Golpe de Estado>> de 23 febrero de 1981, y vease su valoraci6n jurfdica en la STS de 22 de abril de 1983). B) La imputaci6n de la autorfa en el marco de las organizaciones criminales de caracter no estatal: el terrorismo contra el Estado, Mafias y otras formas de criminalidad organizada. Ya desde la primera formulaci6n de su tesis, el mismo ROXIN manifestaba que la misma podia ser tambien aplicable a los delitos que se cometen «en el ambito de los movimientos clandestinos, organizaciones secretas, bandas crirninales y agrupaciones semejantes>> (cfr. tambien ROXIN, RP 1998). Desde luego se puede decir que algunos grupos terroristas funcionan coma un verdadero ejercito, y que tambien en ellos existen sus «hombres de atras>> y que los que ejecutan sus decisiones son meros instrumentos an6nimos intercambiables y sustituibles por otros. Tambien la Mafia siciliana, con sus leyes de la «omerta>>, o los <<yakuzas>> japoneses, con sus c6digos secretos, constituyen grupos muy jerarquizados y con caracterfsticas parecidas al mas disciplinado ejercito o servicio secreta estatal. Pero las semejanzas no van mucho mas lejos. Por lo pronto, su caracter marginal y claramente ilegal hace que sus rniembros tengan entre sf una relaci6n personal mucho mas estrecha que la que se da entre los rniembros de los aparatos de poder estatales. Es verdad que las decisiones se toman por unos pocos, en la cupula, pero tambien son unos pocos los que pueden llevarlas a cabo y eneralmente estos pocos estan en relaci6n directa y personal con los que dan las 6rdenes o planifican los hechos y en cuya ejecuci6n directa no intervienen. Incluso sus formas de vida marginal en autenticos <<ghettos>>, viviendas compartidas, etc., dificultan que fuera del cfrculo reducido de los que pertenecen al grupo haya muchas personas mas dispuestas a realizar el delito y a sustituir al que en principio estaba destinado a realizarlo. Para estos casos, la figura de la coautorfa se adapta mejor que otras categorfas de autorfa y participaci6n a algunas formas de realizaci6n del delito, en las que el cerebra o principal responsable no esta presente en la ejecuci6n, pero sf en inmediata conexi6n con ella, controlandola y decidiendo su realizaci6n. El requisito de la coejecuci6n, que la doctrina dominante en Espafia, siguiendo a ROXIN, exige para la coautorfa (cfr. supra), no es, por lo menos

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estrictamente considerado, mas que la consecuencia de una teorfa objetivo-formal que ya se ha mostrado de un modo general insuficiente incluso para explicar el concepto mismo de autorfa (vease supra); y todavfa es mas insuficiente para explicar el concepto de coautorfa, por lo menos en algunos ambitos de la criminalidad en los que tan importante 0 mas que la ejecucion misma son otras conductas de decision u organizacion relacionadas con ella. Por las razones anteriormente dichas, dentro de la coautorfa no solo cabe una coautorfa ejecutiva, total o parcial, sino tambien otras formas de realizacion conjunta del delito en las que alguno o algunos de los coautores, a veces los mas importantes, no estan presentes en su ejecucion. En estos casos, el fundamento de la coautorfa es el llarnado dorninio funcional del hecho; lo importante no es ya solamente la intervencion en la ejecucion del delito, sino el control o dominio del hecho que un individuo tenga de la realizacion del mismo, aunque no intervenga en su ejecucion estrictamente considerada. Solo asf pueden calificarse tambien como coautores de un delito, por ejemplo, no solo al jefe y dirigentes de una banda que asumen funciones de decision, direccion u organizacion estrechamente relacionadas con la realizacion del delito, sino tambien a los miembros de la misma que, sin intervenir en la ejecucion, realizan durante la misma tareas de apoyo, vigilancia o transporte. Similares problemas suelen plantearse con frecuencia en los atentados terroristas, en los que en base a la tesis aquf defendida del dominio funcional del hecho, intervenciones personales que no se clan exactamente en la fase ejecutiva del delito, bien sea de los rniembros del «cornando», bien de los de la «cupula» de la organizacion que ordenan el atentado, pueden y deben calificarse, sin embargo, con una valoracion global y mas ajustada a la realidad de las mismas, como coautorfa, y no, en base a una consideracion individual, como meras formas de participacion o conspiracion (para mas detalles sobre esta tesis, vease MUNOZ CONDE, los diferentes trabajos citados en bibliograffa y especialmente el publicado en RP 2002, pp. 68 ss.). C) La imputacion de la autorfa en el marco de organizaciones no al margen del Derecho, especialmente las de caracter empresarial. En el ambito de estas organizaciones, como por ejemplo cualquier colectivo empresarial de cierta importancia, sus actividades se realizan a traves de un complejo organigrama, basado en la division de funciones en el piano horizontal y en la relacion jerarquica en el piano vertical. Es, por ello, evidente que no puede situarse el centro de gravedad de la responsabilidad por autorfa solo 0 principalmente en el ultimo eslabon de la cadena, es decir, en la fase ejecutiva, dejando en la periferia o incluso en la impunidad conductas no ejecutivas, pero tan importantes o mas que las propiamente ejecutivas. En este ambito los <<Centros de decision» SOn normalmente mas importantes que los <<centros de ejecucion».

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El problema dogmatico consiste en hallar el criterio material que permita atribuir a los que deciden la ejecuci6n de un hecho delictivo la cualidad de autor, autor mediato o coautor, aunque no intervengan en su ejecuci6n. Para ello no solo se debe tener en cuenta la estructura y modo de funcionamiento de las organizaciones en cuyo seno se cometan los delitos, sino tambie na propia naturaleza del delito en cuesti6n. Los casos de los que se tienen que ocupar los Tribunales en esta materia son muy complejos; normalmente se realizan a traves de varios actos, de forma a veces masiva, durante un lapso de iempo mas o menos largo y en diferentes lugares, por varias personas, cada una cumpliendo una funci6n previamente establecida, dentro de una organizaci6n, formando parte de una politica o estrategia comun previamente establecida por quienes tienen el control de la organizaci6n. Esto hace que la delimitaci6n y la imputaci6n de la autoria presente tambien algunas particularidades en este ambito. Asi, por ejemplo, no es facilmente aplicable aqui la tesis de la autoria mediata sirviendose de un aparato de poder, o, por lo menos, hay que hacer en ella algunas correcciones. El equisito que plantea mayores problemas para ser aplicada en el ambito empresarial es el de la fungibilidad de los meros ejecutores. En estos ambitos, el ejecutor de las acciones concretas que realizan el tipo de un delito no es siempre un an6nimo ejecutor intercambiable arbitrariamente, sino una persona que posee conocimientos especiales sin los que no seria posible la realizaci6n de esos hechos y que, por eso mismo, es dificilmente sustituible (piensese, por ejemplo, en un cualificado especiaUsta en contabilidad o en cuestiones fiscales, .'0 en un buen conocedor del funcionamiento del mercado bursatil o de las~trftl:sferencias o creaci6n de fond os en paraisos fiscales ). Pero posea o no estos conocimientos tecnicos especiales, la mayoria de las veces no es mas que un instrumento que actua sin intenci6n, limitandose a realizar la conducta, siguiendo las instrucciones que se le dan, sin que ello le suponga directamente ningtin provecho personal, ni conciencia de participaci6n en una operaci6n delictiva. En cualquier caso, existe aqui una coautoria de los que en la cuspide de la empresa deciden, organizan o planifican la ejecuci6n de uno o varios delitos, renunciando para ello una vez mas al concepto de coautoria como <<coejecucion>>, que es todavia mas discutible en el ambito de la delincuencia empresarial. Tambien puede decirse, en la medida en que los que ejecuten las acciones delictivas concretas sean meros instrumentos irresponsables (los llama dos <<ejecutivos>> ), que existe una coautoria mediata, combinando el criterio de coautoria aqui mantenido con el de autoria mediata en sentido estricto, es decir, utilizando un instrumento no responsable, y no uno responsable, pero en el ambito de un aparato de poder, pues ya hemos dicho que la organizaci6n empresarial no es equiparable al aparato de poder de una organizaci6n criminal, y mucho menos a una organizaci6n criminal de caracter estatal o paraestatal.

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MEIOS PROCESSUAIS EXPEDITOS NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO (A DEMOCRACIA EM PERIGO?)

Germano Marques da Silva



MEIOS PROCESSUAIS EXPEDITOS NO COMBATE AO CRIME ORGANIZADO (A DEMOCRACIA EM PERIGO?)

Germano Marques da Silva*

I.INTRODU<;::AO 1. Durante muitos anos tenho pugnado pela ideia de que a eficacia do

combate a criminalidade, em qualquer dos seus dominios, ha-de alcant;ar-se sobretudo pelo engenho e arte dos "policias" 1, nunca pela fort;a bruta, pelo artificio, ou pela actuat;ao processualmente desleal, que degradam quem as sofre, mas nao menos quem as usa. E se nao desisti ainda da militancia por esta ideia e porque estou absolutamente convencido que esse e o unico caminho compativel corn os valores da sociedade livre e democratica e que os exemplos de violat;ao de principios e valores em que assenta a sociedade livre, de que a comunicat;ao social frequentemente da conta, nao sao, muito longe disso, indice de eficiencia das fort;as de combate ao crime, e a defesa que ainda muitos fazem dos metodos ditos "expeditos" se me apresenta frequentemente por voluntarismo generoso e militante pela justit;a mais do que por necessidade experimentada. 2. Vem a prop6sito das noticias veiculadas nos ultimos dias por alguns media. A imprensa2 clava-se conta recentemente que uma senhora Juiza teria constatado no decurso de uma instrut;ao, surpreendida e espantada, pareceume, que na investigat;ao policial de urn determinado crime, concretamente de urn crime de trafico, teriam sido utilizados processos paralelos para fazer escutas telef6nicas e que essa tecnica, segundo relatava o jornalista, invocando fonte proxima da Policia, seria relativamente frequente por razoes de eficacia no combate ao crime grave. Ficou a pairar na mente do jornalista e tambem na minha se este procedimento nao constituira urn grave atropelo a etica, se nao constituira uma violat;ao do principio da lealdade processual e em que medida nao podera constituir uma grave violat;ao dos direitos de defesa.

' Universidade Cat6lica Portuguesa. 1 Etica Policial e Sociedade Democrtitica, ISCPSI, 2001, p . 99 ss. 2 Semanario "0 Independente, de 31.10.2002.

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As noticias dos ultimos dias sao perturbadoras porque lan~am graves suspeitas sabre a legalidade de procedimentos investigat6rios e nomeadamente daqueles de cariz excepcional e que por for~a da lei devem ser controlados pelos juizes, mas que se suspeita nem sempre o sejam. Nao tenho informa~ao bastante para ajuizar do que de verdade se passa, e quero crer, quero sinceramente acreditar, que muito do que se diz e desenquadrado do contexto e fruto de especula~ao jornalfstica, mas a freqw?ncia das noticias sabre o assunto perturba-me. Por isso tambem que venho defendendo que o processo penal tern de ser o mais transparente possivel e a fase inquisit6ria, submetida a segredo, limitada ao tempo minima indispensavel e pelo menos a posteriori sempre susceptivel de controlo de legalidade pela defesa para que se possa verificar se nao foram utilizados metodos de obten~ao de prova proibidos. Nao basta acreditarmos no rigor das institui~oes, e eu julgo sinceramente que temos razoes para acreditar; e necessaria que em cada processo se possa comprovar sempre a legalidade de procedimentos para que nao fiquem nunca suspeitas sabre a justi~a das condena~oes. 3. Tenho para mim, e disso estou tambem firmemente convicto, que a democracia, enquanto forma de convivencia cfvico-polftica, enquanto complexo de ideias e institui~oes de urn Estado social de direito, assenta em tres elementos fundamentais e imprescindiveis: a soberania do povo, o reconhecimento dos princfpios do direito natural e o culto da liberdade, nao apenas como direito, mas como virtude pessoal e colectiva3• A soberania do povo e absolutamente indispensavel e imprescindivel para a democracia, mas nao e absoluta e exclusiva norma de democraticidade, exige correlativamente o reconhecimento e o respeito do direito natural, como justifica~ao e fundamenta~ao 4 da integridade e dignidade da pessoa humana. 0 direito natural esta hoje em grande parte positivado nos textos internacionais sabre declara~oes de direitos. Pode dizer-se, empiricamente, que o direito natural e 0 direito das minorias, 0 direito dos fracas, 0 direito dos vencidos, 0 direito dos perseguidos, o direito de toda e cada pessoa ao reconhecimento da sua integridade e dignidade. Os direitos fundamentais, direitos humanos ou direitos naturais, sao direitos morais, i.e, exigencias eticas e direitos que os seres humanos tern pelo facto de serem humanos e, portanto, corn urn direito igual ao seu reconhecimento, protec~ao e garantia por parte do poder politico e do direito; direito igual, baseado na propriedade comum a todos de serem seres humanos, e direito igual de humanidade independente de qualquer contingencia hist6rica ou cultural, caracteristica fisica ou intelectual, poder polftico ou classe socialS. 3

D. Ant6nio Ferreira Gomes, «Democracia, Sindicalismo, Justi~a e Paz>>, Direito e Justira, Vol. 1,

n.Q 1 (1980), p. 7. 4 Idem, idem, p. 10: «Se assim nao for, teremos a confusao do justo e do injusto no mesmo piano, teremos o desaparecimento da propria no~ao de direito e justi~a, teremos a tortura e a morte do inocente por capricho do mais forte ou por via da "razao de Estado">>. 5 Eussebio Fernandez, £studios de Etica Juridica, Madrid, 1990, p. 65.

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0 terceiro elemento que deve entrar sempre na defini~ao da democracia e sua pratica e o culto da liberdade, como direito e como virtude. Mas o que interessa a democracia ao nivel dvico-politico nao e propriamente a liberdade de cada urn, mas a liberdade dos outros6 • Na rela~ao corn os outros a expressao e tutela da liberdade esta na lei, lei legitima e devidamente promulgada. Na lei como expressao temporal do ideal de justi~a, na sua administra~ao e no seu julgamento por tribunais independentes e eficazes. E que a lei promulgada e a sua justa aplica~ao constituem, na contingencia humana, a condi~ao da liberdade. So em Deus e que a liberdade e pura identifica~ao corn o Bem7 • A lei e a garantia da liberdade. Culto da liberdade e em grande parte sinonimo de culto da legalidade. 4. Perdoem V.Exas. esta longa introdu~ao, ainda por cima aparentemente despropositada a proposito do tema anunciado para a minha comunica~ao, mas nao me proponho falar-vos do direito positivo acerca dos meios mais ou menos expeditos do combate ao crime organizado ou dos instrumentos policiais propostos aqui e ali para esse combate, ou nao so nem sobretudo, mas essencialmente reflectir convosco sobre os riscos para a democracia quando a proposito da criminalidade grave e organizada e corn o pretexto do seu combate se sacrificam valores e prindpios instrumentais essenciais da democracia. 0 que pretendo real~ar e que tambem no combate ao crime organizado importa assegurar o mais profunda respeito pelos prindpios e valores do estado de direito democratico e a minha profunda convic~ao, quase certeza, de que o processo penal comum e geralmente bastante para reagir corn firmeza contra esse fenomeno que corroi as sociedades modernas e poe em risco o ideal democratico. E essa, alias, a questao fundamental: o respeito dos prindpios fundamentais do processo penal democratico ou o seu abandono ou restri~ao, e respectiva medida, no combate ao crime organizado.

11. A PRESUN<;:AO DE INOCENCIA

1. A primeira questao que importa colocar, porque condiciona quase todas as outras que se suscitam na problematica do combate a criminalidade organizada, respeita ao principio da presun~ao de inocencia, quer na sua expressao politica, quer na sua expressao logica em materia de decisao sabre a prova, ou seja na formula do in dubio pro reo. Concretamente, e admissfvel a presun~ao de culpa, mais ou menos ilidivel? Consideremos apenas este ultimo aspecto, o do in dubio pro reo.

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Guy Haarscher, AFilosofia dos Direitos do Homem (trad. de Armando Pereira da Silva, Instituto Piaget, p. 135: <<O que os direitos do homem significam, nao e que o individuo tenha doravante uma liberdade sem peias, mas que o respeito pelo outro individuo constitua a norma ultima do politicoÂť. 7 D. Ant6nio Ferreira Games, ob. cit., p . 14.

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2. 0 principio da presun~ao de inocencia e antes de mais urn principio natural, 16gico, de prova. Corn efeito, enquanto nao for demonstrada, provada, a culpabilidade do arguido nao e admissfvel a sua condena~ao. Por isso que o principio da presun~ao de inocencia seja identificado por muitos autores corn o principio in dubio pro reo, e que efectivamente o abranja, no sentido de que urn non liquet na questao da prova deva ser sempre valorado a favor do arguido. A duvida sobre a culpabilidade e a razao de ser do processo. 0 processo nasce porque uma duvida esta na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porem, os limites da possibilidade do conhecimento humano, sucede frequentemente que a duvida inicial permanece duvida a final, nao obstante todo o esfor~o para o superar. Em tal situa~ao, o principio da presun~ao de inocencia impora a absolvi~ao do acusado ja que a condena~ao significaria a consagra~ao de urn 6nus de prova a seu cargo baseado na previa presun~ao da sua culpabilidade, ou seja, prindpio contrario, prindpio de presun~ao de culpa. Sucede que alguns consideram exagerada a importancia deste principio, sobretudo em perfodos de acentuada criminalidade ou relativamente a criminalidade organizada. Sera admissfvel, mesmo naquelas circunstancias, a presun~ao de culpa? Tenho para mim que a condena~ao penal e tambem castigo a resgatar a culpa do delinquente pelo que e de todo inaceitavel a condena~ao sem a certeza moral da culpabilidade a redimir; e inaceitavel que numa sociedade em que 0 valor primeiro e a pessoa humana possa a condena~ao penal ter outra finalidade exclusiva, como a da mera preven~ao geral, alheando-se da culpa do condenado. 3. Mas a questao da presun~ao de culpa nao e pura especula~ao e tern assento, ainda que limitado, no sistema processual penal portugues. Corn efeito, o n.Q 1 do art. 7Q da Lei n.Q 5/2002, de 11 de Janeiro, disp6e que em caso de condena~ilo pela prdtica de crime referido no artigo U (trafico de estupefacientes, de arma e de vefculos furtados, terrorismo, corrup~ao passiva e peculato, branqueamento de capitais, associa~ao criminosa, contrabando, lenodnio e trafico de menores e contrafac~ao de moeda e de tftulos equiparados ), e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem da actividade criminosa a diferen~a entre o valor do patrim6nio do arguido e aquele que seja congruente cam o seu rendimento licito. A nossa lei estabelece a possibilidade de ilidir a presun~ao, impondo esse 6nus ao condenado. Tenho serias reservas quanto a esta medida, porque muitas vezes e de prova impossfvel a origem licita dos bens, nomeadamente que estavam na titularidade do arguido hd pelo menos cinco anos no momento da constituipio coma arguido. Suponhamos que o arguido ao longo da sua vida amealhou urn determinado patrim6nio e o converteu em j6ias, metais e pedras preciosas e o tern guardado num escaninho de sua casa ou mesmo num cofre bancario, como ainda e frequente. Nao sera que tera dificuldades e frequentemente ate estara impossibilitado de provar a origem lfcita desses bens?

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Nao seria muito mais razoavel, mais justo e mais eficaz que, primeiro, em lei tributaria se impusesse a obriga\=ao a todos os cidadaos de terem urn inventario dos seus bens corn o que se preveniria nao so aquele tipo de crimes, mas muitos outros, nomeadamente a fraude fiscal, que consta ser urn mal muito generalizado e certamente nao muito menos grave do que alguns dos crimes indicados no art. P da Lei n.Q 5/2002 (contrabando, por exemplo?). Mas ha outros casos de limita\=ao dos principios democraticos do processo, mesmo na Lei n.Q5/2002. Vejamos.

Ill. INFILTRADOS E PROVOCADORES 1. A lei n.Q101/2001, de 25 de Agosto, trata do regime juridico das acr;oes encobertas para fins de prevenr;iio e investigar;iio criminal, vulgo agentes infiltrados.

A lei disp6e que as ac\=6es encobertas devem ser adequadas aos fins de preven\=ao e repressao criminais identificados em concreto, nomeadamente a descoberta de material probatorio, e proporcionais quer aquelas finalidades quer a gravidade do crime em investiga\=aO e toma providencias de caracter adjective para o respective controlo. E excluido do ambito da lei a figura do agente provocador, conforme consta do seu art. 6.Q. E geralmente admitida a interven\=ao dos agentes infiltrados na investiga\=aO de crimes graves e parece-me ate que a nossa lei e muito cautelosa, das mais equilibradas que conhe\=o, mas nem sempre na pratica e facil distinguir entre a efectiva interven\=aO do agente infiltrado e do agente provocador. Varias decis6es dos nossos tribunais, e relativamente recentes, comprovam-no e em rela\=ao a muitos outros casos ficam muitas duvidas se os agentes actuaram coma infiltrados ou foram mesmo provocadores. Nao sei, nao sei sinceramente, coma se podera garantir que o agente encoberto ou aqueles sob cuja direc\=ao intervem, por excesso de voluntarismo ou por moralismo na luta contra a criminalidade, nao se deixem confundir e actuem algumas vezes na fronteira da provoca\=ao. 2. Alguns pensarao que sao os riscos do instrumento, mas sao graves. Temos entendido que a lealdade e urn principio inerente a estrutura do processo penal. A lealdade pretende imprimir ao processo toda uma atitude de respeito pela dignidade das pessoas e da Justi\=a e nessa perspectiva e fundamento de proibi\=ao de prova. Parece-me, por isso, que o recurso a agentes infiltrados, e tambem a agentes simplesmente informadores, viola o principio da lealdade. E claro que a questao dos agentes informadores e infiltrados nao tern a mesma tensao da dos agentes provocadores e por isso e de admitir que, no limite, se possa recorrer a estes meios de investiga\=ao. Dizemos no limite, ou seja, quando a inteligencia dos agentes da justi\=a ou os meios sejam insuficientes para afrontar corn sucesso a criminalidade e esta ponha gravemente em causa os valores fundamentais que a Justi\=a criminal cabe tutelar. E que uma sociedade organizada na base do respeito pelos valores

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da dignidade humana, que respeite e promova os valores da amizade e da solidariedade, que vise a constru{:iio de um pais mais livre, mais justo e mais fraterno, niio pode consentir que o exercicio de uma fun<;iio soberana possa constituir a causa da quebra da solidariedade entre os seus membros, possa ser motivo de desconfian<;a no proximo, conduzir ao egoismo e ao isolamento8 . 3. A provoca<;iio e de rejeitar em absoluto, e assim o faz a nossa lei. E que a provoca<;iio niio e apenas informativa, e formativa; niio revela 0 crime e 0 criminoso, mas cria o proprio crime e o proprio criminoso. E inaceitavel absolutamente como metodo de investiga<;iio criminal, uma vez que gera o seu proprio objecto. Ha que ponderar que a ordem publica e mais perturbada pela viola<;iio das regras fundamentais da dignidade e da rectidiio da actua<;iio judiciaria, pilares fundamentais da sociedade democratica, do que pela niio repressiio de alguns crimes, por mais graves que sejam, pois siio sempre muitos, porventura a maioria, os que niio siio punidos, por niio descobertos, sejam quais forem os metodos de investiga<;iio utilizados. A capacidade para o bem e para o mal esta em cada urn de nos como uma possibilidade que as circunstancias estimulam- <<a ocasiiio faz o ladriioÂť. Raros merecem a venera<;iio devida aos Santos e as honras aos Herois! Por isso que e de excluir liminarmente COffiO metodo de investiga<;iiO criminal a provoCa{:iiO ao crime. Para o evitar, para que afinal se cumpra a lei que os proibe, e necessaria insistir sempre, sobretudo junto daqueles que deh~m o poder, pelo culto da legalidade e estar atento.

IV. ARREPENDIDOS

1. Outra tecnica muito usada no combate ao crime organizado e o premio concedido aos arrependidos. E dos varios metodos o que mais me repugna. A nossa lei tambem o consagra e tenho noticia que se tern revelado eficaz no combate a algumas categorias de crimes, sobretudo a corrup<;iio passiva e trafico de estupefacientes. Disp6e o artigo S.Q da Lei n.Q 36/94, de 29 de Setembro, que nos crimes de corrup<;iio, peculato e parricipa<;iio economica em negocio e infrac<;6es economico-financeiras de dimensiio internacional ou transnacional, a pena pode ser especialmente atenuada se o agente auxiliar concretamente na recolha das provas decisisivas para a identzfica{:do ou a captura de outros responsaveis. E o art. 9.Q do mesmo diploma vai ainda mais longe ao dispor que no crime de corrupf,:iio activa, o Ministerio Publico, cam a concordancia do juiz de instru{:iio, pode suspender provisoriamente o processo, mediante a imposif,:iio ao arguido de injun{:oes e regras

8 A sociedade que assim se organize, que consinta a dela<;:ao organizada e a estimule, tern na sua propria estrutura os germes da sua destrui<;:ao.

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de conduta, se se verificar, entre outros, o seguinte pressuposto: b) ter o arguido denunciado o crime ou contribuido decisivamente para a descoberta da verdade. 2. Dizia acima que o premia aos arrependidos e dos varios metodos legais de combate ao crime o que mais me repugna e devo justificar. Evidentemente que se o arrependimento e sincero merece o premia; o arrependimento foi sempre uma importante causa de atenua~ao das penas criminais. 0 que me repugna, e mais ate me preocupa, e o premia atribuido em troca do auxilio na investiga~ao e que as mais das vezes de arrependimento nao tern nada. E que a lei exige que o "arrependido ÂŤContribua para a identifica~ao ou captura de outros responsaveis" e assim teremos que o delinquente se pode dispor a colaborar, denunciando os seus parceiros na criminalidade, s6 para obter o premia da atenua~ao ou do arquivamento do processo e pode ate acontecer que este "arrependido" forje provas para obter esse premia. Fiquei muito impressionado ha uns meses atras corn urn filme exibido na televisao em que se tratava precisamente do premia aos arrependidos no tn1fico de estupefacientes. Todos os arguidos receberam premios, pela forma de atenua~ao acentuada das penas, menos uma, a inocente, porque, desconhecendo absolutamente os factos criminosos, nao conhecia nenhum dos seus agentes e par isso nao podia colaborar corn as autoridades, nao tinha nada para denunciar, nao tinha nada para dar em troca. Foi condenada a 20 anos, salvo erro, enquanto o cerebra da organiza~ao, seu namorado, foi apenas condenado em 5 anos. A injusti~a foi mais tarde parcialmente corrigida atraves de urn perdao parcial da pena, gra~as a interven~ao de uma institui~ao que na America luta contra este tipo de injusti~as, contra a lei dos arrependidos I delatores. E esse o risco. 3. No XVI Congresso Internacional de Direito Penal, realizado em Budapeste, em Setembro de 1999, foi aprovada uma resolu~ao quanta aos arrependidos: Niio recomendar o uso de "arrependidos" pelas dificuldades suscitadas par esta instituiriio quanta a legitimidade do sistema penal e ao principio da igualdade perante a lei. Niio obstante, as pessoas suspeitas de pertecerem a uma organizariio criminosa que decidam colaborar cam as autoridades judiciais podem beneficiar de uma reduriio da pena nas condiroes seguintes: a) que o uso de informaroes procedentes de arrependidos se encontre previsto de maneira precisa pela lei (princfpio da legalidade); b) Deve exigir-se a aprovariio judicial (principio da jurisdicidade),' c) os arguidos niio podem ser condenados unicamente cam base nos testemunhos de arrependidos; d) s6 pode recorrer-se a arrependidos para prova de infracroes graves (principio da proporcionalidade); e) o arrependido niio pode beneficiar do anonimato. Parece-me que o nosso sistema nao se afasta destas recomenda~6es, mas e precisa muita cautela na pratica processual para evitar os erros judiciarios induzidos pelos falsos arrependidos. E que quando o "arrependimento" visa apenas o premia, todas as cautelas sao poucas.

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V. TODOS OS SEGREDOS PROFISSIONAIS TUTELAM DETERMINADOS INTERESSES, MAIS OU MENOS VALIOSOS. A SUA QUEBRA PARA EFEITOS DE INVESTIGA<:;AO E PROCESSUAIS PENAIS E UMA QUESTAO DE HIERARQUIA DOS INTERESSES A PROSSEGUIR. 1. Nao me repugna nada que certos segredos, nomeadamente os atinentes ao exercicio da fun<;ao publica, v.g. fiscais, e a actividade bancaria, cedam perante as necessidades de combate a criminalidade organizada, como nao me repugna que cedam, em geral, relativamente ao combate a quaisquer tipos de crime, desde que a sua gravidade o justifique (principio da proporcionalidade ). Nao me perturba sequer que a quebra de determinados segredos, como o fiscal e o bancario, possam ser quebrados por simples ordem da autoridade judiciaria titular da direc<;ao do processo, em despacho fundamentado, como sucede corn a nossa lei, nomeadamente no ambito do combate a criminalidade organizada e econ6mico-financeira (art.s 2Q a 5 2 da Lei n.Q5 I 2002). Trata-se de uma questao de hierarquia de valores a proteger e muitos dos segredos profissionais nao protegem interesses que directamente ou de perto toquem corn direitos atinentes a personalidade. A relevancia que entre n6s tern assumido as discuss6es sobre o segredo, especialmente o segredo bancario, tern explica<;6es hist6ricas relativamente recentes e que foram a razao da sua consagra<;ao; refiro-me a devassa publica das contas bancarias no perfodo revolucionario imediatamente a seguir a Revolu<;ao de Abril. 0 problema dessa devassa publica nao esta totalmente ultrapassada, se tivermos presente a apetencia que tern os media por certo tipo de criminalidade e o risco de devassa para os que se venham a revelar inocentes. E que a investiga<;ao nao respeita apenas aos criminosos, mas aos simplesmente suspeitos. Creio que nos falta ainda encontrar uma forma de filtrar dos processos todos os elementos relativos aos investigados que se venham a revelar inocentes de modo a nao permitir que passem a pra<;a publica informa<;6es irrelevantes para o combate a criminalidade, mas que em qualquer momento do processo for necessaria averiguar em razao das suspeitas suscitadas. 0 direito a reserva e importante e pode nao ter nada a ver corn actividades criminosas por isso que deve ser protegido ate onde nao seja necessaria para 0 combate a criminalidade. 2. A quebra do segredo bancario oferece-me uma reflexao marginal. Nao e tanto a protec<;ao da intimidade que e geralmente invocada para a consagra<;ao deste segredo - e essa intimidade pode efectivamente ser posta em causa, ja que hoje os registos bancarios constituem em grande parte a biografia financeira das pessoas e atraves dessa biografia e a propria vida privada e ate intima que pode ser devassada - mas sobretudo a protec<;ao do sistema econ6mico-financeiro pelo receio da fuga dos capitais para os locais onde o segredo seja mais fortemente tutelado. E precisamente esta explica<;ao que frequentemente e apresentada para a justifica<;ao da consagra<;ao mais ou menos rfgida do segredo bancario a

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nivel nacional que cria uma certa perplexidade. Neste empenhamento a nivel internacional no combate a criminalidade grave nao seria mais curial que os pafses se entendessem para acabar corn as balsas em que os segredos sao quase absolutos, sabido como e que grande parte dos produtos da actividade criminosa passam por esses "paraisos"? Entretanto, enquanto isso nao acontece, compreende-se o cuidado corn que legislador nacional trata o sigilo bancario, mas ele nao e, nao deve ser, urn entrave a investiga~ao criminal. 3. Como referi, os segredos profissionais visam sempre a tutela de determinados interesses, mais ou menos valiosos, e a sua quebra para efeitos de investiga~ao e processuais penais e uma questao de hierarquia dos interesses a prosseguir. Preciso e que em nome de urn interesse imediato nao se sacrifiquem outros interesses de valor mais geral e que podem afectar valores que respeitem aos proprios direitos fundamentais. Penso no segredo medica, muitas vezes tratado em termos de poder afectar gravemente a saude ou a vida de inocentes- v.g., no domfnio do SIDA- mas que se imp6e quase corn valor absoluto para assegurar o direito-dever-interesse publico nos tratamentos da saude, e penso no segredo profissional dos advogados, cuja quebra pode afectar tambem gravemente o proprio exerdcio da profissao e consequentemente a amplitude do direito de defesa que e urn valor essencial do processo democratico. Ha certos segredos que devem ser fortemente preservados ainda que seja necessaria tomar outras medidas para que os conflitos de interesses que possam surgir nao sejam tao agudos e tao prejudiciais para interesses que podem ser sacrificados pela sua quebra.

VI. AS INVESTIGA<;OES PRO-ACTIVAS

A chamada investiga~ao pro-activa, apontada frequentemente como uma forma privilegiada de combate a criminalidade organizada, nao e senao urn modo de actua~ao de preven~ao, consagrada nas nossas leis, em geral, mas especialmente na Lei n.Q 36/94, de 29 de Setembro, que estabelece medidas de combate a corrup~ao e criminalidade economica e financeira. Disp6e o n.Q 3 do art. P da Lei n.Q 36/94 que as ac~6es de preven~ao compreendem, designadamente: a) A recolha de informa~6es relativamente a noticias de factos susceptiveis de fundamentar suspeitas do perigo da pratica de urn crime; b) A solicita~ao de inqueritos, sindicancias, inspec~6es e outras diligencias que se revelem necessarias e adequadas a averigua~ao da conformidade de determinados actos ou procedimentos administrativos, no ambito das rela~6es entre a Administra~ao Publica e as entidades privadas.

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Trata-se, esta bem de ver, de actividades pre-processuais de caracter preventivo em dominios especiais da criminalidade e que s6 merecem destaque porque nos dominios da criminalidade grave e organizada para a sua prossecw;ao pode lan<;ar-se mao de meios que em regra s6 sao usados nas fases processuais. Por isso que a investiga<;ao pro-activa, quando recorre a meios que podem afectar os direitos fundamentais, s6 deva ser usada no dominio das infrac<;6es especialmente graves (principio da gravidade e proporcionalidade), corn recurso a meios previstos na lei (principio da legalidade), de modo subsidiario e sempre corn sujei<;ao a controlo das autoridades judiciarias, nos mesmos termos estabelecidos para a actividade processual. E isso que a nossa lei estabelece.

VII. A ORGANIZA<;AO POLICIAL, ADMINISTRATIVA E JUDICIAL 1. Disse no inicio desta minha comunica<;ao ser minha ideia que a eficacia do combate a criminalidade, em qualquer dos seus dominios, ha-de alcan<;ar-se sobretudo pelo engenho e arte dos "policias", mas e evidente que esse engenho e arte pressup6e tambem meios adequados, desde logo servi<;os especializados nos diversos dominios em que a actividade criminosa se desenvolve. Lembro-me que ha uns anos na Policia Judiciaria havia apenas uma meia duzia de tecnicos contabilistas e provavelmente eram suficientes em fun<;ao do volume de processos que exigiam na sua investiga<;ao conhecimentos contabilisticos. Depois veio a nossa entrada na Uniao Europeia e logo a sair surgiram os crimes de fraude na obten<;ao e de desvio de subsidios e, ao que julgo saber, nem a Policia Judiciaria nem as autoridades judiciarias dispunham de meios tecnicos para analisar o volume de documenta<;ao de natureza contabillstica e similar que a investiga<;ao desses processos implicava. 0 resultado foi o que se sabe: os processos arrastaram-se durante anos pelos servi<;os da justi<;a e grande parte deles acabou por prescrever. Tambem a nossa adesao a Uniao trouxe consigo urn grande numero de opera<;6es comerciais que ate entao eram praticamente desconhecidas neste jardim a beira mar. Estou a pensar nas transa<;6es comunitarias de mercadorias sujeitas a Impostos Especiais e tambem corn isen<;6es ou complexas opera<;6es sobre o WA. Naturalmente que para a investiga<;ao de toda esta nova pan6plia de crimes era necessaria criar servi<;os especializados que dominassem os metodos desse tipo de opera<;6es comerciais e que ao contrario do que e habitual no mundo dos juristas dominassem os numeros, as opera<;6es contabilisticas, os sistemas informaticos, etc., etc. Tudo isto s6 para referir que na luta contra o crime se torna necessaria a cria<;ao de servi<;os de policia e judiciarios altamente especializados, sem o que a investiga<;ao se torna especialmente dificil ou quase impossivel. Tambem o nosso sistema policial e judiciario tern procurado dar resposta a estas necessidades evidentes corn a cria<;ao de departamentos especializados

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na Polfcia Judiciaria e no funbito do Minish~rio Publico, como e, neste ultimo caso, o Nucleo de Assessoria Tecnica da Procuradoria Geral da Republica. Mas nao e tudo. A criminalidade organizada caracteriza-se frequentemente por ser internacional ou transnacional e para a sua investigac;ao e necessaria ultrapassar fronteiras. Imp6e-se, pois, uma estreita cooperac;ao internacional na investigac;ao dos crimes. 2. Ha quem entenda que os proprios tribunais deveriam ser especializados tambem porque as dificuldades que as policias e o Ministerio Publico enfrentam nas fases pre-processuais e preparatorias do processo tambem se revelam na fase de julgamento. Por enquanto a questao nao nos respeita porque a nossa Constituic;ao proibe a existencia de tribunais corn competencia exclusiva para o julgamento de certas categorias de crimes (art. 209.0, n .Q 4, da CRP). Sao tambem raz6es historicas a justificar esta proibic;ao, mas que ainda estao muito presentes no subconsciente colectivo.

CONCLUSAO

E tempo de concluir e vou faze-lo de pronto. Como tinha anunciado nao me propus uma analise tecnica da legislac;ao portuguesa sobre os instrumentos espedficos de combate a criminalidade organizada. Para tanto o tempo desta sessao era muito curto. Foi minha intenc;ao enunciar a trac;os leves alguns dos metodos e meios processuais hoje preconizados para este tipo de combate, alertando para os riscos que o seu uso envolve no que respeita aos direitos fundamentais dos cidadaos. Conclui, e se isso nao resultou claro da minha exposic;ao clarifico-o agora, que o sistema jurfdico portugues disp6e dos instrumentos jurfdicos adequados para esse combate e que sao, em geral, razoaveis, porque preveem as medidas de controlo adequadas contra os abusos sempre possfveis. Mas o que me importava realc;ar e que por muito boas que sejam as leis - e as nossas parecem-me boas - para alem das leis importa o modo como sao aplicadas, o espfrito que anima todos os que participam neste combate. E que, como frequentemente repito, parafraseando D. Antonio Ferreira Gomes, nao tenhamos ilus6es: enquanto nao entrar bem fundo nas ideias e nos costumes que o respeito absoluto pelos direitos fundamentais da pessoa humana e 0 limite de toda a actividade de investigac;ao criminal, sempre a policia, qualquer policia do mundo, sobretudo onde intervem ideologias e apartheids de qualquer natureza, violara a dignidade pessoal, decerto por brio e eficacia profissional, mas niio s6. Por isso que se e clever de todos, dos mais altos magistrados ao mais modesto dos cidadaos, absolutamente necessaria travar o combate contra a criminalidade organizada, e tambem nao menos necessaria travar 0 combate da cultura democratica: pelo respeito dos direitos naturais e no culto da liberdade. Sem qualquer destes combates, e a propria comunidade que esta sempre em perigo.

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A LUTA CONTRA 0 BRANQUEAMENTO DE CAPITAlS POR MEIO DO DIREITO PENAL: 0 EXEMPLO DA SUic;A

Giinter Stratenwerth



A LUTA CONTRA 0 BRANQUEAMENTO DE CAPITAlS POR MEIO DO DIREITO PENAL: 0 EXEMPLO DA SUic;A

Gi.inter Stratenwerth*

I

A Sui<;a adquiriu em materia de branqueamento de capitais a reputa<;ao de um modelo: por que vias e com que custos, sera o tema desta conferencia. Sao antigas as queixas, que se podiam ouvir ja no final dos anos 60 do seculo transacto, da parte de Procuradores americanos, sabre o segredo bancario sui<;o e o abuso que a Mafia fazia dele, e essas queixas perduraram ate hoje, com modifica<;oes, coma e sabido. Depois de nos EUA terem come<;ado os esfor<;os para reprimir o comercio de estupefacientes (tambem) atraves da luta contra o branqueamento de capitais, um Procurador de entao do Cantao Tesino, PAOLO BERNASCONI, numa Jornada da Associa<;ao de Juristas Sui<;os, pronunciou-se, com enfase, no sentido da cria<;ao de disposi<;oes penais correspondentes na Sui<;a. Ele apresentou em 1986 um Ante-Projecto, de cuja elabora<;ao tinha sido encarregado, ainda antes da entrada em vigor nos EUA das disposi<;oes sabre branqueamento de capitais. Era claro desde o inicio que se tratava, no branqueamento de capitais, de transac<;oes de caracter internacional e que os EUA tinham de ganhar o maior mimero possivel de paises para a sua luta, objectivo que ate hoje tentaram alcan<;ar com o habitual denodo. Isso sucedeu no quadro da ONU, primeiro com a Conven<;ao sabre estupefacientes de 1988 e depois, por ocasiao de uma cimeira do G7 em 1989, com a cria<;ao de um grupo de trabalho, o «Financial Action Task Force on Money Laundering» (FATF), que devia, o mais rapidamente possivel, elaborar propostas concretas de luta contra o branqueamento de capitais. Nele participou tambem a Sui<;a. Aqui, no entanto, os acontecimentos iriam precipitar-se de certa maneira. 0 Govemo Federal Sui<;o e o Parlamento envolveram-se em turbulencias politicas, que nao interessa agora analisar, de modo que, por pressao da opiniao publica, viram-se for<;ados a prosseguir com grande acelera<;ao e a concluir no mais curto prazo - coma se veria: provisoriamente - os trabalhos

• Universidade da Basileia.

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legislativos sobre as novas normas penais contra o branqueamento de capitais. Quase uma estreia europeia! So os ingleses andaram ainda mais depressa. Os novos tipos de crime padeciam de graves defeitos congenitos. 0 cornbate ao branqueamento de capitais corn os meios do Direito Penal, como foi referido, fazia originariamente parte da war on drugs norte-americana, que quanta mais os Estados Unidos pensam obstinadamente em prosseguir, mais claro se torna que ela nao e para ganhar. A ampliat;ao a factos pn§vios distintos dos crimes relacionados corn a droga foi tornado como objectivo em 1989, quando da instalat;ao da FATF. Sempre se tratou - e trata ainda hoje - da luta contra o crime organizado. Ele devia ser impedido de legalizaar os seus imensos lucros e assim, coma afirmou BERNASCONI, devia ser atingido no seu <<calcanhar de aquiles>>. Nada seria mais oportuno do que tornar punivel o branqueamento de capitais exactamente deste ponto de vista: o do apoio a uma organizat;ao criminosa. Mas esta via nao era viavel na Suit;a. As autoridades politicas tinham censurado, poucos anos antes, corn object;6es em parte absurdas, a proposta de uma comissao de peritos que consistia em criar urn tipo de crime de organizat;ao criminosa e tao depressa e sem penosidade nao se podia reparar a falta . Nao existia nada, pois, em que se pudessem apoiar. BERNASCONI tinha proposto que se concebesse o branqueamento de capitais coma impedimenta da intervent;ao dos orgaos de investigat;ao criminal sobre valores patrimoniais, que subjazem a apreensao, inserindo-o portanto nos crimes contra a realizat;ao da justit;a, e as instancias legislativas seguiram-no, corn a consequencia de que, agora, no branqueamento de capitais, so se pode falar em crime organizado, contra o qual se devia dirigir o tipo legal, na forma de uma qualificat;ao. 0 que isto significa na prcitica sera revelado adiante. Antes de mais, note-se apenas que tambem o direito de apreensao, ao qual o tipo legal de branqueamento de capitais, desta forma, se referia, nao estava preparado para o papel chave que lhe era atribuido e tinha de ser revisto entretanto, de urn modo de resto nao isento de dificuldades. A outra debilidade do novo Direito resultava da dificuldade existente no branqueamento de capitais, que existia tambem tradicionalmente na receptat;ao, de comprovar no autor o conhecimento da origem criminosa dos valores patrimoniais em questao. Por isso, BERNASCONI quis ver punida tambem a realizat;ao do crime corn <<negligencia grosseira>>, mas esta solut;ao nao era muito defensavel relativamente a urn crime contra a realizat;ao da justit;a, que exige sempre dolo. 0 legislador seguiu, pois, o outro caminho que consistia em assegurar atraves de uma outra norma penal o clever, ainda mais prontamente tangivel, de impedir transat;6es patrimoniais duvidosas, nomeadamente o clever de identificat;ao do parceiro negocial. Os bancos suit;os ja tinham antes reconhecido urn tal clever, num convenio por eles celebrado sobre as suas regras estatutarias. Ele seria estendido agora a todas as pessoas que, por motivos profissionais, aceitassem, guardassem, aplicassem ou ajudassem a transferir valores patrimoniais alheios - hoje designados sumariamente por <dntermediarios financeiros -, as quais seriam puniveis se omitissem verificar a identidade do beneficiario efectivo, corn o cuidado exigido pelas circunstancias.

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Par muito elegante que este caminho possa parecer, ele e dificilmente aceitavel do panto de vista do Estado de Direito. Porque nao era (e ainda hoje nao e) claro quem e considerado autor - qualquer homem de neg6cios lida corn valores patrimoniais alheios! - nem que medida de cuidado, em que profissoes e em que transacc;oes, e exigida ÂŤsegundo as circunstancias>>. Nao se pode ÂŁalar aqui da determinac;ao indispensavel em qualquer lei penal. Desde este inicio, em parte par causa da falta referida, em parte para efectivac;ao completa da rede de controlo, foram dados outros passos pelo legislador, em primeiro lugar, na forma de reformas parciais do C6digo Penal, atraves das quais, foi configurado o direito de apreensao, foi introduzido finalmente urn tipo de organizac;ao criminosa e foi criado urn direito de informac;ao dos intermediarios financeiros, par meio do qual deviam ser dirimidos conflitos corn os deveres legais de manter segredo, coma acontece corn o segredo de advogado ou o segredo bancario. Logo em seguida foi publicada uma lei especial sabre branqueamento de capitais corn nada menos do que 44 artigos e na sequencia desta foi desencadeada uma nova vaga de regulamentac;oes cujo fim nao esta a vista. Entre outros aspectos, esta lei transformou o direito de informac;ao atras mencionado num clever de informac;ao de alcance obscura. A legislac;ao em materia de branqueamento de capitais aparece - e isto nao s6 na Sufc;a - coma uma hist6ria de rectificac;oes continuadas, para usar uma expressao do meu colega de Berna, GUNTHER ARZT. Sao-lhe dedicadas tambem duzias de publicac;oes, entre as quais urn Comentario corn mais do que 2000 paginas, enquanto a jurisprudencia se debateu mais ou menos razoavelmente corn o novo Direito, predominantemente em casos que nao tern o minima aver corn criminalidade organizada. Ja ninguem pensa hoje na promessa de deitar mao a organizac;oes criminosas par esta via; recorda-la torna-se antes penoso. Calcula-se que o combate mais veemente ao branqueamento de capitais nunca abrangera mais do que 1% do comercio mundial de drogas ilegais. A campanha global tornou-se desde ha muito urn fim em si, de modo que se coloca sempre a questao de saber se nos, tendo em conta a ruptura de elementares prindpios juridicos a ela ligados, nao pagamos urn prec;o demasiado elevado. Voltarei ainda a esta questao no final.

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Cuidamos em primeiro lugar da evoluc;ao ate agora da legislac;ao suic;a em materia de branqueamento de capitais. Ela deixa entrever ja que dificuldades inusuais se levantam a intervenc;ao penal neste domfnio. Quero agora ocupar-me delas corn mais detalhe. 1. Urn tipo de crime de branqueamento de capitais nao protege nenhum

bem juridico tangivel. Ele dirige-se contra uma forma especialmente perigosa de criminalidade, mesmo contra a sua organizac;ao e aproveitamento atraves de associac;oes criminosas, mas tambem contra urn simples fen6meno conco-

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mitante: a tentativa de encobrir corn os meios do mercado financeiro valores patrimoniais obtidos de forma criminosa, para os subtrair a interven<;ao das autoridades de investiga<;ao criminal. Ja esta descri<;ao permite reconhecer que o Direito Penal pode ser aplicado em tres hip6teses distintas: ou na situa<;ao em que, no branqueamento de capitais, se trata de valores patrimoniais de uma organiza<;ao criminosa, ou na situa<;ao em que estes valores patrimoniais provem de crimes, ou finalmente na circunsHtncia em que eles podiam ser apreendidos, se os 6rgaos de investiga<;ao criminal se apoderassem deles. Esta terceira hip6tese afasta-se o mais possfvel do objectivo politico-criminal de atingir o crime organizado na sua base financeira. Mas pelas raz6es mencionadas a Suf<;a optou sobretudo por ela no tipo de branqueamento de capitais. Pretendo em seguida esbo<;ar os problemas dogmaticos e pniticos que daqui resultam - 0 que, como sera demonstrado, nao pode significar que os outros conceitos possfveis nao coloquem problemas. Se se descreve o comportamento punivel de branqueamento de capitais, como sucede no art9 305 bis do C6digo Penal Suf<;o, como realiza<;ao de uma ac<;ao que e adequada para impedir a apreensao de valores patrimoniais que procedem de urn crime, ele aparece, como se disse, como urn crime contra a realiza<;ao da justi<;a, e e af que se encontra tambem inserido este artigo. Isto provoca naturalmente, primeiro que tudo, uma compara<;ao corn as outras disposi<;6es penais que pertencem a esta categoria e revelam-se, logo a primeira vista, graves discrepancias. 0 tipo mais proximo e 0 do entrave a puni<;ao, chamado na Suf<;a favorecimento. Ali e amea<;ado corn pena de prisao ate 3 anos (art9 305 do C6digo Penal) quem subtrai outrem a pena ou a uma medida jurfdico-penal relacionada corn a priva<;ao da liberdade, tambem nos casos mais graves, por exemplo, quando se trata de uma prisao perpetua. 0 entrave a aplica<;ao da san<;ao relativamente secundaria da apreensao e, pelo contrario, declarado como branqueamento de capitais, em casos graves amea<;ado corn pena de prisao ate 5 anos e isso, diferentemente do favorecimento, mesmo que este resultado nao ocorra, bastando que a ac<;ao seja adequada para produzilo. E enquanto o tipo de favorecimento, excepto nos crimes mais graves como o genoddio e os crimes de guerra, s6 protege interesses de investiga<;ao criminal suf<;os, o branqueamento de capitais diz respeito naturalmente, em primeira linha, a valores patrimoniais que podem ser apreendidos no estrangeiro. A prescri<;ao penal intervem - assim e determinado expressamente - mesmo quando o facto principal foi cometido no estrangeiro. Isto conduz ao resultado grotesco de que se pode auxiliar urn ladrao homicida procurado no estrangeiro a fugir para a Suf<;a - s6 nao pode em caso de oculta<;ao do produto do roubo. Se fosse preciso ainda uma outra prova de que era o caminho mais errado conceber o branqueamento de capitais como crime contra a realiza<;ao da justi<;a, a aplica<;ao da disposi<;ao pela jurisprudencia feita ate agora, seria mais do suficiente. Poupo-vos a enumera<;ao detalhada das incongruencias dogmaticas e sublinho s6 alguns pantos. De referir em primeiro lugar e a experiencia ja mencionada de que o tipo e invocado predominantemente nos casos em que nao se trata da legaliza<;ao de valores patrimoniais de organiza-

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<;oes criminosas. Eu aponto coma exemplos especialmente absurdos a condena<;iio por branqueamento de capitais de urn toxicodependente a quem urn outro deu as escondidas, durante uma rusga, dinheiro proveniente do comercio da droga, ou tambem a condena<;iio de urn morador que tirou dinheiro resultante da droga que tinha sido enterrado nas floreiras da sua varanda e escondeu-o na sua cozinha. Aqui se revela tambem a tendencia do tipo para a fluidez 1, em virtude da qual ninguem pode dizer onde passam os seus limites. Duvidoso e ainda, entre outros aspectos, ap6s doze anos de vigencia, se a simples aceita<;iio de valores patrimoniais contaminados pode ser punida coma branqueamento de capitais, ou tambem, ao inves, a recusa de aceita<;iio, que, no caso de intermediaries financeiros, desencadearia urn clever de informa<;iio. E e seguro, segundo a jurisprudencia do Tribunal Federal suf<;o, que alguem pode ser o seu proprio branqueador de capitais: ele e punido nao s6 pelo facto de se ter apropriado de valores patrimoniais atraves de urn crime, mas ainda porque os quer conservar. 2. A inten<;iio de combater o branqueamento de capitais corn os meios do Direito Penal, choca tambem corn dificuldades dificilmente resoluveis quando se tenta evitar decisoes erradas, coma as aqui descritas. Isso manifesta-se imediatamente nas regula<;oes de outros Direitos coma o alemao, o frances, o italiano, o austrfaco e, se compreendi correctamente, tambem o Direito portugues, que se baseiam directamente na oculta<;iio de valores patrimoniais de origem criminosa, portanto, escolheram a segunda hip6tese de solu<;iio possfvel. Para o Direito suf<;o acrescem as complica<;oes ja mencionadas, as relacionadas corn este panto. 0 branqueamento de capitais e urn processo que se desenrola em regra atraves de uma multiplicidade de fases. No come<;o esta habitualmente a aplica<;iio no mercado de numerario proveniente, por exemplo, do comercio da droga ou da extorsao de dinheiro 2, cuja origem e dissimulada, numa segunda fase, por meio de uma rede complexa de contas de sociedades frequentemente intrincadas umas nas outras, a maior parte das vezes espalhadas por varios pafses, ate que finalmente, por exemplo, na forma de urn emprestimo inocente, retoma a esfera de domfnio do organizador e pode ser investido por ele em empreendimentos totalmente legais. Se o branqueamento de capitais deve ser impedido, os valores patrimoniais respectivos tern de ser qualificados em qualquer fase deste seu percurso coma objecto id6neo do crime, isto e, os chamados sub-rogados tern de ser ilimitadamente inclufdos na punibilidade. Isto tern coma consequencia na pratica que os valores patrimoniais, corn os quais pode ser cometido o branqueamento de capitais, duplicam de certa forma

1

NT. 0 termo <<Olflecktendenz >>significa

a letra <<tendencia de mancha de oleo>> e faz alusao

a plasticidade ou fluidez de algo, enquanto qualidade que dificulta ou impede a determinac;:ao dos seus contornos ou limites. Pensamos que a traduc;:ao proposta e mais correcta e compreensivel em portugues. 2 NT. <<Schutzgelderpressung>> significa extorsao, em regra atraves de ameac;:a de violencia, de urn comerciante por uma organizac;:ao criminosa.

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corn cada uma daquelas transac~6es, de modo que, como ja a fundamenta~ao oficial do Projecto de Lei receou que acontecesse na Sui~a, «partes essenciais da nossa economia legal seriam consideradas em pouco tempo contaminadas». Mas se nos vemos for~ados a admitir tais consequencias abstrusas, temos de assegurar pelo menos publicamente que o adquirente totalmente honesto daqueles valores patrimoniais nao se torna suspeito de cometer branqueamento de capitais. Reside aqui originariamente uma das fontes do direito de informa~ao e agora do dever de informa~ao em caso de valores duvidosos a demincia funciona como prova de inocencia. Se a liga~ao a origem criminosa de valores patrimoniais nestas circunstancias, por urn lado, conduz teoricamente ao infinito, reside praticamente nela, por outro lado, uma das raz6es principais para ineficacia das normas sobre branqueamento de capitais assim concebidas. Porque o crime do qual deve provir o valor patrimonial suspeito tern de ser provado primeiro, o que s6 pode suceder a maior parte das vezes num processo penal intentado no estrangeiro. Nao se pode tratar, no entanto, de urn facto punivel qualquer: o Direito sui~o pressup6e sempre urn crime, ou seja, urn facto que seja punivel aqui corn pena de prisao superior a 3 anos e outros Direitos, como o portugues, enumeram em especial os factos previos que entram em considera~ao . Mas tern de ser provada tambem a conexao em que o valor patrimonial em causa se encontra corn esse crime. Nao obstante, valores patrimoniais de organiza~6es criminosas nao sao tratados de modo sistematizado segundo a sua origem distinguindo fontes legais ou ilegais e no caso de fontes ilegais, as categorias de crimes. Em consequencia disso, pode ser impossivel inseri-los num determinado facto originario ou numa determinada especie de factos originarios. Alem disso, tern de ser naturalmente provada tambem, de forma ininterrupta, a conexao em que eles se devem encontrar corn este facto ap6s multiplas transac~6es, o que pode ser totalmente inviavel depois do seu dep6sito numa grande conta bandria cujo saldo e utilizado para empreendimentos diversos. Nao surpreende que assim seja, quando os poucos casos nos quais a conexao necessaria podia ser esclarecida corn a ajuda do chamado «paper trail» parecem ter sido aqueles em que as pr6prias autoridades de fiscaliza~ao tinham aplicado ai valores patrimoniais para este fim. Urn juiz de instru~ao sui~o que deva seguir a pista sinuosa de urn branqueador de capitais internacional nao tern aqui normalmente nenhuma hip6tese. 3. Depois de tudo isto questiona-se se o terceiro conceito possivel para a luta contra o branqueamento de capitais atraves do Direito Penat mencionado anteriormente em primeiro lugar, nao podia e devia ser escolhido corn maior probabilidade de exito: a tentativa de se fixar nos valores patrimoniais da organiza~ao criminosa enquanto tat independentemente do modo como ela os adquiriu e dos meios corn que dissimulou a sua origem. Branqueador de capitais pode ser qualquer pessoa, mas s6 aquela que apoia a organiza~ao na conserva~ao desses seus valores patrimoniais ou a dispor deles. Este conceito teve inicialmente pouco tempo de discussao na Sui~a, mas foi criticado pelas raz6es ja indicadas. Entretanto tern conseguido indirectamente exercer uma

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certa influencia. Surgem, porem, na sua aplica<;ao problemas igualmente importantes que eu quero pelo menos de forma sumaria, apontar. Esses problemas manifestam-se ja na questao de saber se ainda e necessaria urn tipo especial de branqueamento de capitais, quandoc a lei, como acontece igualmente na Sui<;a, amea<;a em geral corn pena o apoio a uma associa<;ao criminosa. Porque assim e tambem abrangido naturalmente o apoio em assuntos financeiros. Podia, no entanto, ser encontrado urn fundamento na ideia de que urn branqueador de capitais, em determinadas circunstancias, sabe somente (ou preve) que o seu comportamento tern aver corn dinheiros provenientes do comercio da droga, mas nao se por detras esta realmente uma organiza<;ao ou apenas, por exemplo, urn conjunto de traficantes. Por outras palavras, o apoio punivel a uma organiza<;ao criminosa pressup6e o conhecimento da sua existencia ou o dolo eventual correspondente, e a comprova<;ao destes elementos pode fracassar. A vantagem das outras variantes do tipo de branqueamento de capitais esta em conseguirem iludir esta dificuldade - apenas, como foi demonstrado, pagando o pre<;o elevado de se estenderem tambem a comportamentos que nao foram propriamente pensados e que nao justificam uma pena elevada. Neste piano nao s6 tern de ser definido o que deve significar que determinados valores patrimoniais «pertencem» a uma associa<;ao criminosa - o que no caso de uma organiza<;ao e seriamente problematico - mas tambem tern de ser comprovado que o valor patrimonial concreto e efectivamente desse tipo. A qualifica<;ao juridica pode, contudo, nao ser a partida o aspecto decisivo. Na medida em que as rela<;6es juridicas neste campo nao sao nulas, os chefes daquelas organiza<;6es manter-se-ao encobertos, em regra, por detras de sociedades aparentes ou de testas de ferro. Apenas pode ser determinante, portanto, se aquelas pessoas a quem os valores patrimoniais podem ser exteriormente atribuidos, sao dominadas de facto pela organiza<;ao e isto pressup6e a prova de que elas sao tidas como seus membros ou apoiantes. Urn processo complicado ! Mas o legislador sui<;o quer apoiar-se nele pelo menos no caso da apreensao. Segundo a nova regula<;ao de 1994 ela deve ser estendida a todos os valores patrimoniais que - como se diz - «estao submetidos ao poder de disposi<;ao de uma organiza<;ao criminosa» e este poder de disposi<;ao e «presumido ate prova em contrario» no caso de valores patrimoniais de uma pessoa que participou numa organiza<;ao criminosa ou a apoiou (artQ 59 nQ 3 do C6digo Penal). Se se tern conseguido confiscar quaisquer valores patrimoniais ao abrigo desta clausula, escapa ao meu conhecimento como e que ate hoje na Sui<;a parece nao haver condena<;6es por crime de organiza<;ao. Note-se, de resto, s6 a titulo de curiosidade, que aquela presun<;ao de poder de disposi<;ao nao basta no quadro do tipo de branqueamento de capitais: aqui os valores patrimoniais tern realmente de provir de urn crime. Algo resulta entao quando a legisla<;ao actua por «salto de cavalo». Pode-se, no entanto, ver o resultado tambem positivamente: deste modo poupa-nos sempre a esfor<;os que nao s6 uma confisca<;ao, mas tambem uma condena<;ao por branqueamento de capitais, possa assentar numa simples presun<;ao.

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Ill

Concluindo esta amilise geral dos conceitos pensaveis para a compreensao juridico-penal do branqueamento de capitais, pode dizer-se que 0 balan<;o e mais do que decepcionante. Nao se pode pensar ja seriamente que se consegue por de joelhos, desse modo, o crime organizado. Se, apesar disso, se quer afastar o mais possivel do proprio pais valores patrimoniais obtidos por via criminosa - e para isso ha naturalmente mais do que boas raz6es - so podera ser percorrido legislativamente o outro caminho que consiste em deslocar a linha de defesa ja (ou tambem) para a tutela antecipada. Urn primeiro passo nesta direc<;ao tinha dado inicialmente o Direito Penal sui<;o, cominando corn pena o clever de identificar, no caso de colabora<;ao em transac<;6es corn valores patrimoniais, o «beneficiario efectivo», o «real owner». Afirmei no come<;o que esta norma deixou em aberto quest6es essenciais do seu iimbito de aplica<;ao e, por isso, exceptuando o caso dos bancos que estao sujeitos a inspec<;ao federal, ela em principio mal produziu algo. A consequencia foi a cria<;ao da lei de branqueamento de capitais em 1997, que nao fechou todas as lacunas que a lei penal deixou em aberto - quem deve ser considerado intermediario financeiro nao esta, por exemplo, ainda clarificado definitivamente - mas visa cobrir todo o pais corn uma densa rede de controlos. Nao posso aqui entrar em detalhes - o comentario da lei agora existente feito por antigos consultores juridicos de urn grande banco sui<;o contem mais do que 700 paginas impressas - mas desejo indicar em breves palavras do que se trata. 0 sistema de controlo que se encontra ainda em constru<;ao orienta-se pelo modelo do convenio sobre clever de cuidado, que foi concluido pelos bancos sui<;os pela primeira vez em 1977, para se anteciparem a epoca a uma regula<;ao legal e que vigora hoje numa versao de 1998. Ele segue o principio da auto-regula<;ao orientada. lsto significa que os sujeitos econornicos privados tern de criar, no seu iimbito negocial, por via do Direito estatutario codificado, uma ordem que salvaguarda o interesse publico, atraves da elabora<;ao de padr6es sectoriais sobre o seu comportamento social, atraves do controlo da sua observiincia e atraves do sancionamento de infrac<;6es. A lei do branqueamento de capitais obriga todos os intermediarios financeiros a formar uma tal organiza<;ao auto-regulada que, reunidos determinados pressupostos, e reconhecida por uma instiincia de controlo para a luta contra o branqueamento de capitais, como tambem os obriga a aderir a ela ou a sujeitarem-se directamente a inspec<;ao dessa instiincia de controlo. Isto e pressuposto para que urn intermediario financeiro possa exercer a sua actividade. A lei afirma, de resto, explicitamente o que ele tern de fazer para identificar a parte contratual ou o beneficiario efectivo, imp6e-lhe urn especial clever de esclarecimento, quando uma transac<;ao surge como inusual ou quando existem pontos de apoio no sentido de que valores patrimoniais procedem de urn crime ou estao sujeitos ao poder de disposi<;ao de uma organiza<;ao criminosa, e obriga-o finalmente tambem a denunciar quando ele sabe ou tern suspeita fundada de que tais valores patrimoniais contaminados podem estar envolvidos

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na rela<;iio negocial. Ele tern de bloquear imediatamente os valores patrimoniais correspondentes e nii.o deve informar da demincia nem o visado nem terceiros. Se ele infringe estes deveres a lei do branqueamento de capitais amea<;a - o ja corn penas de multa elevadas - alem disso, existe naturalmente a suspeita de ele ter violado tambem as normas de branqueamento de capitais do Codigo Penal. Permanece a expectativa sobre se este sistema de controlo alguma vez se impora de forma alargada e se tera sucesso, como o legislador quis. Existem ainda nesta perspectiva dificuldades muito relevantes. Muitos intermediarios financeiros nii.o fizeram ate agora o que deviam fazer. Fora de questii.o devia estar tambem que perante o estrangeiro, portanto, perante aqueles que querem por o seu dinheiro sujo em seguran<;a na Sui<;a, como acontece em qualquer novela policial, produz algum efeito intirnidatorio, ja que e sobretudo esse o sentido que uma tal lei ainda pode ter. Por outro lado, eu desejo referir-me uma vez mais ao pre<;o bastante elevado que houve que pagar em pouco mais do que uma decada a custa dos princfpios juridicos tradicionais: corn a cria<;iio de tipos de crime que sii.o incompatfveis corn a fun<;iio de garantia da lei penal; corn a crirninaliza<;iio de comportamentos relativamente aos quais nos, anteriormente, corn boas raz6es, nada fizemos; corn uma inversii.o do onus da prova inaceitavel em termos de Estado de Direito no caso de san<;6es juridico-penais; e corn a mobiliza<;iio de todo o sector financeiro e indiferenciadamente de outros ramos de negocios do pais para tarefas de auxiliar de policia, para mencionar so o mais importante. Qualquer pais que esteja corn problemas semelhantes tera de questionar-se se deve percorrer o mesmo caminho problematico.

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;, "PERTENENCIA" 0 "INTERVENCION"? DEL DELITO DE "PERTENENCIA A UNA ORGANIZACION CRIMINAL" A LA FIGURA DE LA "PARTICIPACION A TRAvES DE ORGANIZACION" EN EL DELITO.

Jesus-Maria Silva Sanchez*



;, "PERTENENCIA" 0 "INTERVENCI6N"? DEL DELITO DE "PERTENENCIA A UNA ORGANIZACI6N CRIMINAL" A LA FIGURA DE LA "PARTICIPACI6N A TRAvES DE ORGANIZACI6N" EN EL DELITO.

Jestis-Marfa Silva Sanchez*

1. Introduccion El fenomeno criminologico de la criminalidad organizada se aborda jurfdicamente\ en la mayorfa de las legislaciones nacionales, a traves de tres vfas diversas. En primer lugar, mediante la tipificaci6n2 de los delitos mas caracterfsticos de tal forma de criminalidad. En segundo lugar, mediante la introduccion del elemento agravante de "organizacion" en una serie de delitos mas o menos tradicionales, para atender a la especial peligrosidad de las formas estructuradas de actuacion antijurfdica. En tercer lugar, mediante los, no infrecuentemente criticados 3, clasicos delitos de pertenencia a asociaciones ilfcitas4 o bien los nuevos tipos de pertenencia a organizaciones criminales.

* Universidad Pompeu Fabra 1 En realidad, en el concepto h~cnico-legal no se diferencia entre la criminalidad organizada en sentido estricto, como forma de macrocriminalidad (caracterizada tambien por la corrupci6n, la infiltraci6n politica, etc.), y la mera criminalidad de bandas. Los conceptos legales de organizaci6n tienden precisamente a ser cada vez mas laxos, lo que condiciona el modo de entender Ios delitos de asociaci6n. 2 Enteramente nueva o bien producida mediante la ampliaci6n o agravaci6n de tipos ya existentes. 3 En Alemania, Ios diputados Ulla Jelpke, Petra Pau, Sabine Jiinger, Dr. Evelyn Kenzler, Heidemarie Liith asi como el grupo parlamentario del PDS presentaron e!S de abril de 2001 (Deutscher Bundestag, 14. Wahlperiode, Druscksache 14/5832) una proposici6n de ley de modificaci6n del Derecho penal y el Derecho procesal penal, en la que subrayaban que Ios §§ 129 y 129 a StGB (delitos relativos a asociaciones criminales y terroristas) constituyen un cuerpo extraiio en el Derecho penal aleman, por su indeterminaci6n contraria a! principio del hecho, asociada ademas a importantes medidas restrictivas de derechos durante la instrucci6n penal. De ahi que se solicitara su derogaci6n. Cfr. en Espaiia la critica de Quintero Olivares, La criminalidad organizada y la funci6n del delito de asociaci6n ilicita, en Fern§/ Anarte (eds.), Delincuencia organizada. Aspectos penales, procesales y criminol6gicos,

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Jesus-Marfa Si!va Sanchez

Ciertamente, esto ultimo no constituye una novedad sustancial. En los pafses en los que la criminalidad organizada ha tenido especial tradicion singularmente, en nuestro entorno cultural, debe subrayarse el caso italiano esta siempre fue combatida mediante los delitos de pertenencia a asociaciones ilicitas, que en el resto de los Estados se refirieron de modo casi exclusivo a las organizaciones politicas revolucionarias y, luego, terroristas. La novedad es, pues, de grado. Esta radica, por un la do, en que el recurso a los "delitos de organizacion" o "asociacion" (Organisationsdelikte, reati associativi) coma mecanismo de represion de la criminalidad organizada parece generalizarse en todos los pafses. Por otro lado, en que existe una fuerte tendencia a homogeneizar la respuesta penal en este punto, lo que se esta manifestando ultimamente en las propuestas de elaboracion de un tipo comun europeo relativo a la participacion en una organizacion criminaJS. Y, en fin, en que la mayor parte de la "nueva criminalidad" es, segun se afirma, criminalidad organizada, de modo que cualquier conclusion que se alcance a proposito de la imputacion de responsabilidades en el marco de organizaciones delictivas adquiere unos caracteres generales que antes no posefa6• La delimitacion tecnico-juridica de la nocion, inicialmente criminologica, de "organizacion criminal" y la sistematizacion de los supuestos punibles de actuacion en el marco de aquella constituyen tareas ineludibles, solo en parte cumplidas, de la dogmatica del Derecho penal. A este grupo de cuestiones

Huelva 1999, pp. 177 y ss. En contra de su planteamiento, Gonzdlez Rus, Asociaci6n para delinquir y criminalidad organizada, Actualidad penal 2000, pp. 561 y ss. 4 Cfr. al respecto la obra, fundamental en Derecho espafiol, de Garcia-Pablos de Molina, Asociaciones ilfcitas en el C6digo penal, Barcelona 1978. 5 Cfr. ya la Action commune relative ii /'incrimination de la participation ii une organisation criminelle, dans les Etats membres de l'union europeenne, de 21 de diciembre de 1998 (DOCE L351, de 29 de diciembre de 1998, pp. 1 y ss.). En su art. 2.1 propane que se sancione, ademas de la conspiraci6n (apartado b),: a) el comportamiento de toda persona que, de manera intencional y teniendo conocimiento, ya del fin

y de la actividad criminal general de la organizaci6n, ya de la intenci6n de la organizaci6n de cometer las infracciones en cuesti6n, participa activamente: - en las actividades criminales de la organizaci6n (... ), mmque esta persona no participe en la ejecuci6n propiamente dicha de las infracciones en cuesti6n y, a reserva de Ios principios generales del Derecho penal del Estado miembro de que se Irate, aunque la ejecuci6n de las infracciones en cuesti6n no se lleve a cabo. - en otras actividades de la organizaci6n teniendo, ademds, conocimiento de que su participaci6n contribuird a la realizaci6n de las actividades criminales de la organizaci6n (... ) Una propuesta que actualmente se halla en discusi6n define coma participaci6n (en una organizaci6n criminal) "the making of repeated contributions to the commission of crimes within the

organisation's activity or to the maintenance of its operational structures, with knowledge of the fact that such contributions strengthen the organisation's criminal capacity, i.e., make the accomplishment of the criminal plan more likely or more rapid, or increase the degree of its realisation". Cfr. Militello, Participation in a Criminal Organisation as a Model of European Criminal Offence, en Militello/ Huber (eds.), Towards a European Criminal Law Against Organised Crime, Freiburg 2001, pp. 15 y ss., 27. 6 Aleo, Diritto penale e complessitii. La problematica dell'organizzazione e il contributo dell'analisi funzionalistica, Torino 1999, p. 35.

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L "Pertenencia" o "Intervenci6n"?, p . 95-120

pertenece la determinaci6n y fundamentaci6n de las formas de atribuci6n de responsabilidad penal que se refieren a los miembros y colaboradores externos de las organizaciones criminales. Este tema, que constituye una de las (varias 7 ) fronteras de la dogmatica de la criminalidad organizada, es el objeto de las paginas que siguen.

2. La sanc10n penal de Ios miembros de organizaciones criminales, entre las respuestas "comunes" a la criminalidad y las "excepcionales" La sanci6n penal de la mera actuaci6n como miembro o colaborador de una organizaci6n criminal se menciona en la doctrina, de modo reiterado, como ejemplo de legislaci6n excepcional8 y, en concreto, como manifestaci6n paradigmatica del denominado "Derecho penal de enemigos". En este sentido, se advierte que tal actuaci6n no implica una arrogaci6n de la configuraci6n de ambitos de organizaci6n ajenos, sino solo la realizaci6n de actos materialmente preparatorios que, ademas, discurren en el ambito privado9 • La tipificaci6n penal de estas conductas expresaria, por tanto, una optimizaci6n de los intereses de protecci6n de bienes a costa de la libertad individual, que redundaria en que, en realidad, se castigara a autores peligrosos - enemigos -, y no hechos peligrosos 10 • Para el caso concreto de su regulaci6n en el C6digo penal aleman, en los §§ 129 y 129 a StGB, se ha aii.adido en terminos pragmaticos que en estos se trata de "Ermittlungsparagraphe" 11 , esto es, de tipos penales que casi nunca dan lugar a una condena, estando, en cambio, orientados fundamentalmente a amparar, bajo la apariencia de medidas de investigaci6n procesal penal, intervenciones policiales de caracter preventivo con respecto a los delitos-fin de la organizaci6n12 •

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Otras son, por ejemplo, el propio alcance del concepto de organizaci6n y su diferenciaci6n de !as sirnples manifestaciones de la codelincuencia; o la diferenciaci6n entre organizaciones crinlinales y organizaciones en !as que se cometen (incluso frecuentemente) delitos; entre otras. 8 La alusi6n a la existencia de dos sistemas de reglas, uno para la criminalidad comlin y otro para la criminalidad organizada es de Naucke, Strafrecht. Eine Einfuhrung, 9. Auflage, Frankfurt 2000, pp. 114-115 n. 0 marg. 21 y ss., 25. 9 Asf ya Jakobs, Criminalizaci6n en el estadio previo a la lesion de un bien jurfdico (1985), en El mismo, Estudios de Derecho penal (trad. e introd. Pefiaranda / Smirez/ Cancio), Madrid 1997, pp. 293 y ss., 298-299. 10 Jakobs, Ibidem, p. 311. En contra de esta representaci6n, Mufioz Conde, Problemas de autoria y participaci6n en el Derecho penal econ6mico, Revista penal 9, enero 2002, pp. 59 y ss., 61 nota 2, aunque admitiendo que la configuraci6n de estos tipos en Derecho penal espafiol es vulneratoria de Ios principios de proporcionalidad y de seguridad o certeza jurfdica. 11 Por ejemplo, Mussig, Schutz abstrakter Rechtsgiiter und abstrakter Rechtsgiiterschutz, Frankfurt 1994, p. 22. 12 Cfr., por todos, Weber, Die Vorverlegung des Strafrechtsschutzes durch Gefahrdungs- und Unternehmensdelikte, en Jescheck (Hrsg.), Die Vorverlegung des Strafrechtsschutzes durch Gefiihrdungs- und Unternehmensdelikte, Berlin 1987, pp. 1 y ss., 31, con referencias. Tambien Aleo,

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Lo anterior no ha obstado a que se haya tratado de fundamentar la legitimaci6n de la tipificaci6n y sanci6n penal de estas conductas. En el planteamiento de Jakobs, ello tiene lugar mediante su consideraci6n, no coma aetas preparatorios de la lesion futura de determinados bienes jurfdicos, sino coma hechos que par si mismos infringen normas de Jlanqueo cuya misi6n es garantizar los presupuestos cognitivos de la vigencia de las normas principales. Expresado de otro modo, coma hechos que, en sf mismos, provocan un menoscabo (cognitivo) de la confianza de los ciudadanos en el ordenamiento 13 . Ahora bien, si las normas de flanqueo se mueven en un plana meramente cognitivo, la cuesti6n es, entonces, hasta que punto puede seguir afirmandose que lo prohibido en ellas son "hechos" y no meros "pron6sticos de hechos", esto es, estados peli-

grosos. En este sentido, ya Maurach habfa aludido, coma fundamento de la sanci6n penal de miembros y colaboradores de organizaciones criminales, a la manifiesta enemistad al Derecho ("offene Rechtsfeindschaft") 14 que estos muestran, abusando del derecho de asociaci6n y situandose colectivamente al margen del Derecho 15 . Y, en esta misma linea, en trabajos mas recientes del propio Jakobs, los §§ 129 y 129 a StGB, relativos a la pertenencia a asociaciones criminales y terroristas, aparecen ciertamente, con gran claridad, coma paradigma del Derecho penal de enemigos, que se caracteriza, entre otros factores, par el abandono de la perspectiva del hecho producido y la adopci6n de la del hecho que se va a producir 16 • Al respecto, se senala de modo expreso que "si el delin-

cuente ya no proporciona garantia cognitiva alguna acerca de su personalidad, la

Diritto penale e complessita, pp. 93, 135, quien atribuye a !os tipos del delito "asociativo" precisamente esa funci6n de interdicci6n con respecto a !os hechos futuros de la organizaci6n. A este respecto indicaba Jakobs, en Estudios penales, p. 313, de modo general, que la "desprivatizaci6n", esto es, la injerencia del Derecho penal en estos ambitos, "se produce a fin de tener un pretexto para pod er acceder

a otro aspecto interno, concretarnente al contexto de Ios planes del sujeto. Despojar de ese modo al sujeto de su esfera privada no corresponde ya al Derecho penal de ciudadanos, sino al Derecho penal de enernigos". Sobre esta cuesti6n, con amplias referencias bibliograficas, cfr., por lo demas, Sdnchez Garcia de Paz, Funci6n politico-criminal del delito de asociaci6n para delinquir: desde el Derecho penal politico hasta la lucha contra el crimen organizado, Libro-Homenaje a M. Barbero Santos, Cuenca 2001, pp. 645 y ss., 669 y ss. 13 Jakobs, en Estudios, p. 314 y ss. 317, 318, sosteniendo que "no se trata en esos supuestos de un

injusto de la preparaci6n, sino tinicarnente del injusto parcial de una perturbaci6n de la paz jurfdica. El autor se arroga actualrnente tan s6lo la configuraci6n de la base cognitiva de la vigencia de la norma." '" Maurach, BT, p. 670, citado por Rudolphi, Verteidigerhandeln als Untersti.itztmg einer kriminellen oder terroristischen Vereinigung i.S. der §§ 129 und 129 a StGB, en Festschrift fur H.J. Bmns zum 70. Geburtstag, Koln etc. 1978, pp. 315 y ss., 318. 15 Cfr., con mucha claridad, Kindhiiuser, Gefahrdung als Straftat, Frankfurt 1989, p. 315: lo fundamental es la "actitud interna de enemistad al Derecho". En efecto: "el autor, en la medida en que quiere

ponerse en situaci6n de cometer un hecho antijurfdico, se convierte en un riesgo para la seguridad". 16 Jakobs, La ciencia del Derecho penal ante !as exigencias del presente, en Escuela de Verano del Poder Judicial 1999, Estudios de Derecho Judicial 20, pp. 121 y ss., 138; El mismo, Das Selbstverstii.ndnis der Strafrechtswissenschaft vor den Herausforderungen der Gegenwart, en Eser I /Hassemer/Burkhardt (Hrsg.), Die deutsche Strafrechtswissenschaft vor der Jahrtausendwende. Rtickbesinnung und Ausblick, Miinchen 2000, pp. 47 y ss., 51.

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lucha contra el delito va al unisono con la lucha contra el. Entonces, ciertamente ya no es persona, sino fuente potencial de delitos, enemigo" 17 • Ai'iadiendose que lo que a qui tiene lugar es una "autoexclusi6n", que, sin embargo, queda encubierta tras la pretendida configuraci6n de un "Derecho penal preventivo". Aparentemente, ello nos situa ante una alternativa insatisfactoria: o admitir la existencia de un Derecho penal de enemigos que sancionaria en estos casos sin requerir un "hecho" 18, o rechazar toda posibilidad de sancionar las conductas de participaci6n en organizaciones criminales. Sin embargo, no es seguro que la alternativa sea taP 9 • En lo que sigue se intentara proponer una fundamentaci6n de la sanci6n de los sujetos miembros de las organizaciones criminales compatible con las reglas del Derecho penal comun. Una de las premisas fundamentales de esta propuesta es entender que el problema pertenece a la Parte General del Derecho penal y no a la Parte EspeciaP0; o, expresado de otro modo, que se trata de un problema material de imputaci6n21 y no de un mero problema formal de tipificaci6n.

3. La naturaleza dogmatica de la organizadon criminal (o asodacion con

fines delictivos) Seguramente, el punto de partida para el estudio de los modelos de atribuci6n de responsabilidad penal a los miembros y colaboradores de organizaciones criminales ha de venir dado por el analisis del significado juridicopenal del propio fen6meno de la organizaci6n criminal. Pues bien, a este respecto puede afirmarse que una organizaci6n delictiva es un sistema penalmente antijuridico (strafrechtliches Unrechtssystem), esto es, un sistema social

17 "Sin embargo, cuando el delincuente ya no proporcio11a ninguna garant(a cognitiva de su personalidad, la lucha co11tra el delito se identifica con la lucha contra e1. E11tonces ya no es persona, sino fuente potencial de delito, enemigo". Cfr. Jakobs, Personalitiit und Exklusion im Strafrecht, en Courakis (Hrsg.), Die

Strafrechtswissenschaften im 21. Jahrhundert. Festschrift fur Prof. Dr. Dionysios Spinellis, Athen 2001, pp. 447 y ss., 462-463. 18 A mi entendet~ incluso desde una perspectiva que aceptara, en casos de excepcional emergencia, la posibilidad de un Derecho penal de enemigos, tendrfa que admitirse que sus presupuestos no se clan en una organizaci6n criminal cualquiera. Y mucho menos en Ios terminos (laxos, tanto en cuanto a mimero de componentes como en cuanto a estructura) en que se tiende a definir el concepto de organizaci6n. Como se ha indicado, la delincuencia es, cada vez mas, consustancialmente organizada, por lo que no cabe aqui una respuesta en terminos de emergencia. Cfr. Aleo, Diritto penale e complessita, pp. 34-35. 19 De modo general, Schiinemann, Die deutsche Strafrechtswissenschaft nach der Jahrtausendwende, GA 2001, pp. 205 y ss., 212, reprochando a la formulaci6n de Jakobs que !ibera del esfuerzo de legitimaci6n a un cU.mulo de desarrollos del Det·echo penal y procesal, cuya legitimaci6n requiere un complejo proceso de ponderaci6n y, con seguridad, el establecimiento de nuevas y eficaces cautelas. 20 En este sentido, tambien, Sdnchez Garda de Paz, LH-Barbero Santos, pp. 674 y ss. 21 Como sefiala, a prop6sito de Ios §§ 129, 129 a StGB, Weber, en Jescheck (Hrsg. ), Die Vorverlegung, p. 31, la aplicaci6n de tales preceptos debe ir precedida de un "test de peligrosidad".

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en el que las relaciones entre los elementos del sistema (basicamente, personas) se hallan funcionalmente organizadas para obtener fines delictivos22 • La organizacion criminal, como sistema de injusto, tiene, asi, una dimension institucional - de institucion antisocial - que hace de ella no solo algo mas que la suma de sus partes, sino tambien algo independiente de la suma de sus partes. En esa dimension institucional radica seguramente su diferencia espedfica con respecto a las meras agrupaciones coyunturales para cometer delitos, del mismo modo que su funcionalidad delictiva la distingue de otros sistemas sociales. Sentado esto, sin embargo, todavia no se ha predeterminado como ha de incidir la peculiar naturaleza de la organizacion criminal en la atribucion de responsabilidad penal a sus miembros y colaboradores. Es necesario aun poner en relacion el "Systemunrecht", o injusto sistemico propio de la organizacion, por un lado, con la teoria del objeto de proteccion del Derecho penal y, por otro lado, con la conducta de los sujetos integrantes del sistema de injusto o con la de de terceros que entren coyunturalmente en contacto con el. Para la opinion mayoritaria, el injusto sistemico de la organizacion criminal es un injusto autonomo, independiente del propio de los delitos concretos que se pretendan cometer (y se acaben cometiendo) mediante ella. Concretamente, se afirma que la mera existencia de la organizacion criminal, como sistema de injusto, como subsistema disfuncional al sistema social constituido en Estado, lesiona la seguridad general y la paz publica23 • A partir de ello, se afirma que la aportacion institucionalizada del miembro activo (y del colaborador) deberia contemplarse basicamente en su dimension de conducta funcional al referido "injusto sistemico" 24 • Es significativo, sin embargo, que la, a mi juicio, mejor caracterizacion dogmatica de este modelo ponga de relieve expresamente que la organizacion criminal conforma un injusto par su mera existencia, sin que tenga necesidad de

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Lampe, Systemunrecht und Uruechtssysteme, ZStW 106 (1994), pp. 683 y ss., 687, 693. Cfr., por todos, von Bubnoff en Jescheck/ Rul5/ Wilms (Hrsg.) Leipziger Kommentar: Grol5kommentar zum Strafgesetzbuch, 10' edic., § 129, n.Q marg. 1: paz juridica, con referenda a la seguridad publica; Lampe, ZStW 106 (1994), p. 707, entendiendo que solo este punto de vista es acorde con la idea de que la organizacion es un sistema constituido con la correspondiente dimension institucional; Lenckner, en Schonke/ Schroder, Strafgesetzbuch Kommentar, 26.' edic., Mimchen 2001, § 129, n.Qmarg. 1: sentimiento general de seguridad juridica y, tambien, paz publica. Frente a este punto de vista, criticamente, entre otros, Langer-Stein, Legitimation und Interpretation der strafrechtlichen Verbote krimineller und terroristischer Vereinigungen (§§ 129, 129 a StGB), Mimchen 1987, pp. 32, 98, 134-135, entendiendo que, al final, tales posturas conducen a afirmar que lo protegido es la vigencia del conjunto de las normas, lo que constituye la funcion del Derecho penal como tal; con otras palabras, que lo protegido en estos delitos seria la propia funcion del Derecho penal, lo que supone concebirlos como autorreferenciales o tautologicos. Cfr. tambien Mussig, Schutz abstrakter Rechtsgiiter, pp. 13 y ss., 210 y ss.; asimismo, Scheiff Wann beginnt der Strafrechtsschutz gegen kriminelle Vereinigungen (§ 129 StGB), Frankfurt 1997, p. 28. 24 Cfr. Aleo, Diritto penale e complessita, p. 11, 60, 93. Incluso proponiendo un modelo de sancion autonoma de la contribucion a la organizacion que, mediante incrementos de pena, llegara a absorber la intervencion del miembro de la organizacion en delitos concretos realizados en el marco de esta (p. 105). 23

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manifestarse en accwn alguna. 0, expresado de otro modo, que entienda que constituye un estado de cosas antijurfdico: en terrninos literales, que la disposicion para cometer delitos que muestra un sistema organizado, su caracter "asocial", es per se constitutiva de injusto 25 • Algunos aspectos de este punto de vista podrfan compartirse, en principio. De hecho, el referido injusto sistemico (Lo la peligrosidad?) de las organizaciones crirninales ha constituido tradicionalmente en el Derecho comparado el presupuesto de la adopcion de la consecuencia jurfdica de disolucion para las asociaciones ilfcitas26 • La cuestion es, sin embargo, si el injusto sistemico de la organizacion (su "caracter asocial") constituye un injusto apto para ser imputado luego, por separado, a cada miembro concreto de la organizacion que sea detenido y enjuiciado. Expresado de otro modo, si, partiendo de la organizacion criminal como sujeto-sistema que lesiona objetos de proteccion del Derecho penal como la paz y la seguridad publica, es posible fundamentar convincentemente la atribucion de responsabilidad penal por dicha lesion a cualquier sujeto que realice una conducta funcional (entre las que se cuenta la mera adhesion) a aquel sistema27 • Una responsabilidad que, ademas, lo serfa a titulo de autor. Una opinion rninoritaria contempla, en cambio, a la organizacion criminal ante todo en su dimension de estado - institucional - de cosas favorecedor de los delitos concretos cometidos luego en su marco (como "forma de intervencion anticipada") 28 • La organizacion afectarfa, pues, a los objetos de proteccion de los delitos especfficos cuya cornision constituye su fin. Esta perspectiva es la que acoge la denominada "teorfa de la anticipacion" (Vorverlagerungstheorie), para la cual la sancion de hechos vinculados a la actividad de las organiza25 "Par tanto, el injusto sistemico es en si un estado de injusto, que puede activarse en conductas, pero no tiene necesariamente que hacerlo. Se corresponde con la disposici6n al injusto propia del autor individual en el delito de acci6n. Ahora bien, mientras que la disposici6n al injusto todav(a no es injusto, porque al sistema en el que se halla, al canicter personal, le falta la inmediata asocialidad, la disposici6n de un sistema comunitario a la comisi6n de hechos criminales, su 'carticter' asocial, es par si mismo ya injusto": Lampe, ZStW 106 (1994), p. 715. 26 En realidad, la 16gica de la noci6n de "injusto sish~mico" conduce a una responsabilidad colectiva (fundada en el ingreso voluntario en el sistema organizado) y no a un modelo de responsabilidad individual a! estilo tradicional: cfr. Heine, Kollektive Verantwortlichkeit, en Eser I /Huber/Comils (Hrsg.), Einzelverantwortung und Mitverantwortung im Strafrecht, Freiburg 1998, pp. 95 y ss., 98. 27 Lo que Lampe denomina su "responsabilidad sistemica" o responsabilidad por el sistema (Systemverantwortung): ZStW 106 (1994), p. 726. 28 Cfr. STS de 23 de junio de 1986, ponente Diaz Palos, que, en relaci6n con la figura de la pertenencia a una organizaci6n terrorista, afirma que "pueden asignarse unas notas comunes a la figura de que se trata, en primer lugar y coma mtis destacada la de que constituye un acto preparatorio especialmente castigado coma favorecimiento, cuyo fundamento punitivo de excepci6n a la regia general de impunidad de tales aetas radica, coma pone de relieve la doctrina cientifica y el propio legislador en su motivaci6n legiferante, en la importancia y peligrosidad que tales conductas colaboradoras han adquirido en las actividades terroristas, con lo que Espafia se alinea, dentro del Derecho comparado, con Ios paises que le son mtis pr6ximos culturalmente (en especial Gran Bretafia, Republica Federal de Alemania e Italia), naturaleza jurfdica la antedicha que convierte a este delito en figura distinta, aunque periferica a la participaci6n, de suerte que, si incide en esta, se aplicarti la pena mtis grave".

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ciones criminales se explica, fundamentalmente, en clave de anticipacion de la proteccion de los bienes juridicos afectados por los delitos-fin de la asociacion delictiva 29 • Ello, aunque la Vorverlagerungstheorie parece advertir en la organizacion tan solo un estado de cosas de naturaleza preparatoria, a lo que mas adelante se efectuara alguna matizacion. A mi juicio, este segundo punto de vista resulta, por varias razones, mas convincente. Par un /ado, no niega la especifica dimension institucional de la organizacion criminal. Tambien desde esta perspectiva es posible advertir la especial peligrosidad de la organizacion criminal, derivada no solo de la forma de ejecucion comun que le es propia, sino sobre todo de la dinamica propia de las organizaciones, encaminada a la comision de delitos, que, entre otras cosas, tiene la capacidad de "alargar" el alcance de los actos de organizacion de sus miembros 30 . Por ello, este planteamiento puede justificar asimismo la intervencion sobre la organizacion en si, disolviendola, dado que esta no ofrece garantia alguna - sino todo lo contrario - de seguridad cognitiva para los bienes juridicos protegidos en los tipos relativos a los delitos-fin de la organizacion. Ahora bien, la organizacion, en tanto que estado de cosas favorecedor del hecho delictivo concreto cometido luego por alguno o algunos de sus miembros, debe mostrar una idoneidad, en virtud de su dotacion de medios, hombres y estructuras, para obtener su objetivo de comision de los delitos concretos de que se trate31 • Par otro /ado, este modelo permite una fundamentacion mas convincente de la atribucion de responsabilidad personal a los miembros y colaboradores externos de las organizaciones criminales. Desde la perspectiva de un Derecho penal del hecho, a estos se les debe hacer responsables por su propia actuacion y no por "ser parte de un sistema asocial", que, en cuanto tal, afectaria a la paz publica. Par la demds, la responsabilidad de los miembros y colaboradores externos de las organizaciones criminales se fundamenta a partir de imputarles la creacion de riesgos para los bienes juridicos protegidos en los tipos que definen los delitos-fin de la asociacion criminal de que se trate. Ello permite, como se vera, reconducir tal atribucion de responsabilidad a reglas comunes de imputacion y alejarse del Derecho penal de excepcion, en cuyo marco tiende sin embargo a ubicarse, cada vez mas, el tratamiento de toda esta materia por el legislad01~ los tribunales e incluso por buena parte de la doctrina. Desde esta posicion, en efecto, la organizacion criminal no constituye solo el aparato de dominio de los directores sobre los miembros subordinados

Ya, Rudolphi, Verteidigerhandeln als Unterstiitzung einer kriminellen oder terroristischen Vereinigung i.S. der §§ 129 und 129 a StGB, FS f. Bruns, p. 318. En este sentido, con amplias referencias bibliograficas, Stinchez Garcia de Paz, LH-Barbero Santos, pp. 647-648, 674 y ss .. Crfticamente sobre este punto de vista, por toda la doctrina dominante, vo11 Bubnoff, LK, 10', § 129 n.Q marg. 3. 3° Cfr. ya Rudolphi, FS f. Bruns, p. 317. 31 Rudolphi, FS f. Bruns, p. 319 y ss.; Grosso, Le fattispecie associative: problemi dommatici e di politica criminale, en Moccia (a cura di), Criminalita organizzata, pp. 133 y ss., 135, 140. 29

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(mas o menos fungibles) que acaban cometiendo los hechos delictivos concretos - aunque conviene recordar que tambien es esto -. Ademas, la organizacion conforma un sistema de acumulaci6n institucionalizada de aportaciones individuales favorecedoras de la ejecucion de los delitos-fin de la asociacion delictiva32 •

3. Los modelos de atribucion de responsabilidad penal a Ios miembros de organizaciones criminales 33 3.1. El modelo de la "transferencia" (imputaci6n individual de un

fen6meno colectivo) El que denominare "modelo de la transferencia" parte de entender que la sancion de los miembros de las organizaciones criminales debe alejarse de cualquier consideracion de la organizacion coma articulacion institucionalizada de aportaciones favorecedoras de los concretos delitos-fin. La razon de

32 En contra de esta perspectiva, expresamente, De Francesco, Dogmatica e politica criminale nei rapporti tra concorso di persone ed interventi normativi contra il crimine organizzato, en Giostra/ /Insolera (a cura di), Lotta alia criminalita organizzata: gli strumenti normativi, Milano 1995, pp. 33 y ss., 44 y ss. A juicio del autor italiano, esta perspectiva facilita una sanci6n indiscriminada de Ios miembros de la asociaci6n a titulo de participaci6n en Ios delitos-fin que se cometan (p. 45) y, a la vez, no explica por que la asociaci6n debe ser castigada tambien en casos de efectiva comisi6n de Ios delitos-fin. Yo veo !as cosas de modo distinto. A saber: precisamente la concepci6n de la organizaci6n criminal como estado de cosas dotado de un desvalor aut6nomo, independizado del propio de Ios delitos-fin, y vinculado a la afectaci6n de un bien jurfdico propio, de entrada propicia una sanci6n de cualquier miembro por el delito de mera pertenencia, en terminos absolutamente for¡males. En cambio, la concepci6n de esta como un estado de cosas cuyo desvalor radica en su naturaleza (institucionalmente) favorecedora de delitos concretospermite, de entrada, distinguh~ a Ios efectos de la sanci6n por el delito de pertenencia, entre diversas clases de miembros. Y en absoluto conduce a que cualquier miembro sea sancionado como participe en el delito efectivamente cometido desde la organizaci6n. En cuanto a la cuesti6n de c6mo explicar la sanci6n del delito de pertenencia y, a la vez, la del delito-fin, a mi juicio no tiene nada que ver con lo anterior: la comisi6n de uno o varios delitos concretos no agota necesariamente el desvalor del peligro representado por el "favorecimiento institucionalizado" de otros. Como, en general, un delito de lesion no absorbe todo el desvalor de Ios delitos de peligro. En este sentido, en lo que se refiere a la relaci6n entre "Systemverantwortung" y "Handlungsverantwortung", Lampe, ZStW 106 (1994), p. 727; para el Derecho espaf\ol, Chocldn Montalvo, La organizaci6n criminal, Madrid 2000, pp. 31-32. Cfr. por lo de1mis STS de 8 de febrero de 1980, ponente Huerta y Alvarez de Lara:" ... tanto la conspiraci6n coma la asociaci6n para cometer el delito de robo, una vez puesto par obra el designio o comenzada de algun modo el "iter criminis" del delito propuesto quedardn absorbidas en el delito de robo intentado (sentencias de 22 de junio de 1889, 15 de noviembre y 3 de diciembre, 28 de diciembre de 1948, 3 de octubre de 1949, 9 de junio y 9 de noviembre de 1973 y atras), a na ser que intentado o ejecutado el robo permanezca la asociaci6n para reiterar nuevas delitos o que exista un conspirador (o asociado) que no tom6 parte en la ejecuci6n (sentencia de 3 de marzo de 1969), respecto del cual permanecerd viva la imputaci6n par el de/ita antecedente". 33 Las denominaciones que utilizo ("modelo de la transferencia" y "modelo de la responsabilidad par hecha prapia") responden a una traslaci6n, invertida, de Ios modelos de atribuci6n de responsabilidad a Ios colectivos de personas (en particular~ personas jurfdicas), por hechos producidos en su ambito de actividad.

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la sancion penal de miembros y colaboradores se hallarfa, en cambio, en el peligro permanente para la paz y la seguridad publicas que se atribuye a la organizacion en si, en tanto que sistema de distribucion estable y racional de papeles en orden a la comision de un numero indeterminado de delitos 34 • Con esta premisa, el delito imputado a un miembro determinado de la organizacion consistiria en la asuncion estable por su parte de un rol o competencia (de una funcion del sistema de injusto) respecto a la hipoh~tica comision de delitos. Ello podria darse en el mero declararse dispuesto a intervemr en la referida serie indeterminada de delitos. Desde este punto de vista, el delito se convierte, basicamente, en un delito de adhesion, o de pertenencia en sentido estricto. Este es el modelo del que se sirven aquellas propuestas que contemplan los delitos asociativos coma infracciones autonomas que lesionan un bien juridico supraindividual (paz, seguridad publica, m·den publico)35 • En realidad, coma se ha indicado, si se reconstruye la argumentacion de los defensores de este punto de vista, se observa que la afectacion de la paz publica se produce por la mera existencia de la organizacion criminal. Dicha existencia es, en efecto, el estado de cosas lesivo. Ocurre, sin embargo, que, con independencia de la reaccion contra la propia organizacion, mediante su disolucion, se produce tambien una transferencia de responsabilidad a (cada uno de) sus miembros por el "ser" de la orgamzacion. Ello constituye un expediente de imputacion individual de un hecho colectivo no facil de fundamentar, puesto que el miembro concreto de la organizacion (a diferencia de sus directores) en absoluto domina la peligrosidad de esta (sino, en todo caso, a la inversa). Si de lo que se trata es de la afectacion a la seguridad o a la paz publica por el "ser" de la organizacion, la adhesion de cada miembro a esta puede constituir ciertamente un criteria de transferencia de la responsabilidad. Pero tambien queda claro que esta transferencia de responsabilidad por un estado de cosas, en virtud de la adhesion a la organizacion que lo constituye, tiene una naturaleza distinta (significadamente simbolica) de la que caracteriza a las formas convencionales de intervencion en el delito 36 •

34 Cavaliere, Effetivita e criminalita organizzata, en Moccia (a cura di), Criminalita organizzata e risposte ordinamentali, Napoli 1999, pp. 291 y ss., 310 y ss., 321 nota 102, observa al respecto que la organizaci6n en sf no puede ser un delito pues no lesiona ni pone en peligro concreto bien jurfdico alguno. For tanto, lo mismo puede afirmarse con respecto a las contribuciones externas, sin que la tipificaci6n pueda subsanar este deficit. 35 No nos detendremos aquf en el hecho de que la afectaci6n de uno de esos "bienes jurfdicos" por cualquier forma de "organizaci6n" criminal, tal y como esta se tiende a caracterizar jurfdicamente en los ultimos tiempos, resulta altamente discutible. Rechazando, a partir de aqui, incluso la propia aplicaci6n del § 129 StGB a los delitos econ6micos, Hohmann, Zur eingeschrankten Anwendbarkeit von § 129 StGB auf Wirtschaftsdelikte, wistra 1992, pp. 85 y ss. 36 Cfr. Aleo, Diritto penale e complessita, p. 20. Jung, Begrundung, Abbruch und Modifikation der Zurechnung beim Verhalten mehrerer, en Eser I Hub er I Cornils (Hrsg. ), Einzelverantwortung, pp. 175 y ss., 185, habla aquf de una "partizipatorische Zurechnung", puesto que para la imputaci6n basta la participaci6n activa en la vida de la organizaci6n. Y la justifica por dificultades en la prueba de

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En efecto, el titulo de imputacion tendrfa que definirse asf: "a todos y cada uno de Ios miembros de la organizaci6n se les responsabiliza del estado de cosas peligroso para la paz publica que es la organizaci6n, aunque cada uno de Ios miembros par separado no constituya, obviamente, dicho peligro para la paz, ni tampoco pueda afirmarse que domine el referido peligro colectivo37". Para ello, ni siquiera se requiere que se realicen conductas, esto es, que se trate de miembros activos, sino que a la asuncion de la condicion de miembro se le asocia un declararse dispuesto a intervenir en los delitos-fin de la organizacion, lo que se estimarfa suficiente para la atribucion de responsabilidad. Ahora bien, en este planteamiento lo decisivo es el aspecto simbolico de la pertenencia a la institucion criminal, la autoexclusion del sistema jurfdico, la condicion de enemigo. Este modelo, en primer lugar, simplifica los presupuestos de la sancion del miembro individual, con lo que tambien su prueba se facilita notablemente. En efecto, la introduccion en el analisis de un bien jurfdico supraindividual que, por definicion, es lesionado por la estructura organizada con fines delictivas, permite rebajar las exigencias objetivas tanto en cuanto a la propia organizacion coma en cuanto al comportamiento de los miembros 38 • La anticipacion (real) de las barreras de la proteccion jurfdico-penal queda "encubierta" tras la afirmacion de la lesion de un bien jurfdico colectivo y, con ello, puesta a salvo de cualquier consideracion crftica con pretensiones de restriccion. Por ello, en segundo lugar, desde esta perspectiva no se puede descartar la incriminacion de aquellos miembros de la organizacion que lo sean unicamente en un sentido formal. Par lo demds, la configuracion del tipo del delito de pertenencia coma un tipo autonomo permite pensar, adicionalmente, en la punibilidad de las formas de participacion en eP9 asf coma de su imperfecta realizacion 40 •

la responsabilidad individual, asf como por la peligrosidad especial de !as formas de actuacion conjunta. Cfr. tambien sobre ello Seelmann, Kollektive Verantwortung im Strafrecht, Berlin 2002, p. 11. 37 Cabe, en efecto, que solo lo sobrecondicione o que lo favorezca de modo insignificante, siendo solo el efecto acumulativo lo que acabarfa constituyendo el estado de cosas vulneratorio de la paz publica. 38 Aludiendo a la subjetivizacion inherente a este planteamiento, en el que lo relevante acaban siendo Ios planes, Miissig, Schutz abstrakter Rechtsgi.iter, p. 218. 39 Asi, en particular, por lo que se refiere a Ios colaboradores externos. El problema con respecto a estos se entiende en clave estrictamente formal. Si sus conductas pueden ser punibles a titulo de pertenencia a la organizacion criminal, de participacion comun, o deberfan ser tipificadas expresamente. 40 STS de 14 de octubre de 1987, ponente Manzanares Samaniego, que califica el delito de pertenencia a asociacion criminal como delito formal o de mera actividad, subrayando ademas su completa "desconexion estructural" con respecto a Ios delitos que constituyen el objeto de la asociacion. Asi resulta, por un !ado, que se admite la sancion de la tentativa con respecto a tal delito asociativo. Y, por otro !ado, que "basta cualquier acto de cooperaci6n para la consumaci6n del delito, sin que, dada la

autonomia de la figura asociativa, se requiera que Ios aetas de cooperaci6n se perfilen coma integrantes de las infracciones criminales cuya realizaci6n constituye el objeto del grupo, antes al contrario, solo se exige su conexi6n con la existencia misma de la banda, su funcionamiento y sus posibilidades".

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3.2. El modelo de responsabilidad por el "hecho propio" del miembro o

colaborador Desde esta perspectiva, en cambio, al individuo "miembro" de la organizacion se le hace responsable de su propio comportamiento. No se le transfiere responsabilidad por la peligrosidad de la organizacion, lesiva de bienes juridicos colectivos como la paz o la seguridad publica; no se le imputa, tampoco, el estado de cosas favorecedor de la comision de delitos concretos que viene representado por la propia organizacion. A cada miembro se le imputa y se le hace responsable de su actividad favorecedora de la comision de delitos. Este modelo, con todo, muestra algunas variantes.

3.2.1. Responsabilidad cualificada par participaci6n segun reglas generales en

delitos cometido Segun un planteamiento desarrollado en particular por Moccia 4\ el problema fundamental de los preceptos legales relativos a la pertenencia a una organizacion criminal es su indeterminacion y su desvinculacion de la nocion de "lesividad" (offensivita). A su juicio, y de modo similar a lo que hemos tratado de poner de relieve mas arriba, al no exigir la realizacion de conductas idoneas para la obtencion de los fines delictivos de la asociacion, los tipos reducen la nocion de participacion a una mera adhesion. Con ello, se pretende eludir las dificultades probatorias que plantea la imputacion de un delito concreto. Pero, asi, estas figuras de la Parte especial acaban constituyendo preceptos fundamentalmente simbolicos. Como alternativa, Moccia propane su reconduccion a una institucion de Parte General: concretamente, a la sancion, tan solo, de las formas de intervencion en los delitos concretos cometidos en cada caso en el marco de la asociacion criminal. La sancion de 路tales formas de intervencion tendria que ser cualificada, dada la estabilidad de la organizacion y del vinculo asociativo. Segun entiende, su propuesta tendria ventajas en terminos de legalidad y, asimismo, en terminos de lesividad, pues vincula la reaccion contra la peligrosidad de las asociaciones criminales a la realizacion en el marco de estas de acciones concretas en relacion con los delitos programados. En tal concepcion, por lo demas, quedarian fuera del ambito de lo punible aquellas manifestaciones de disponibilidad que no se concretaran en un favorecimiento del hecho delictivo concreto, sino, por ejemplo, en un mero "declararse genericamente dispuesto a la comision de delitos". Ello mismo valdria para las formas de colaboracion

41 Cfr. Moccia, La perenne emergenza. Tendenze autoritarie ne! sistema penale, 2" edici6n, Napoli 1997, pp. 65 y ss.; El mismo, Prospettive non 'emergenziali' di controllo dei fatti di criminalita organizzata. Aspetti dommatici e di politica criminale, en Moccia (a cura di), Criminalita organizzata e risposte ordinamentali, Napoli 1999, pp. 149 y ss.

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externa, eventual, con la asociacion (el muy discutido en Italia concorso esterno). Estas podrfan ser sancionadas solo en la medida en que favorecieran un hecho delictivo concreto 42 • El planteamiento de Moccia pone de relieve las divergencias existentes a la hora de fundamentar la responsabilidad penal en contextos de pertenencia a una organizacion criminal o de colaboracion con ella: desde quienes propugnan la sancion de la mera pertenencia o relacion de colaboracion, que se conciben coma delitos en sf mismas por transferencia al individuo de una responsabilidad por el ser de la organizacion; pasando por la concepcion de quienes pretenden vincular la sancion a una calificacion de sus conductas coma titulo autonomo de imputacion de responsabilidad por una intervencion - sui generis - en los delitos concretamente cometidos o de futura comision en el ambito de la organizacion; hasta la posicion de quienes, como el propio Moccia, pretenden considerar la vinculacion con la organizacion como mero factor de agravacion de una responsabilidad previamente establecida, conforme a reglas generales de imputacion, por delitos ejecutados en el marco de la organizacion. A continuacion expongo mi opinion al respecto.

3.2.2. La responsabilidad par intervenci6n "a traves de organizaci6n" La organizacion no es meramente un elemento cualificante de la intervencion directa de uno u otro de sus miembros en los concretos delitos-fin. Su dimension institucional (y la consiguiente dinamica propia de esta) provocan, por el contrario, cambios relevantes en la relacion de los hechos de cada uno de los miembros con el referido delito-fin. Ello no significa que a un miembro determinado se le deba hacer responsable por otra cosa que por su propia actividad favorecedora de delitos concretos. Pero sf implica que cabe hacerle responsable en terminos que no se corresponden con los presupuestos causales y psicologicos mas tradicionales de la teorfa de la intervencion en el delito 43 • En efecto, la aportacion favorecedora de un miembro determinado, que puede haberse efectuado de modo generico (para la organizacion) y con mucha antelacion, es actualizada y concretada por la organizacion en el momento de la ejecucion, por parte otro u otros miembros, de uno o varios hechos delictivos determinados. La organizacion, por tanto, cumple una doble funcion de garantfa (delictiva): por un lado, garantiza la pervivencia del riesgo creado por un miembro; por el otro, garantiza la conexion de dicho riesgo con el generado por los intervinientes en un hecho delictivo concreto. Por lo demas, si el riesgo que aquel miembro va generando con su conducta tiene objetivamente la naturaleza de riesgo multiple 44 y, ademas, el sujeto realiza 42

Moccia, La perenne, p. 74.

43

Aleo, Diritto penale e complessita, p. 63. Seguramente, la existencia de la organizaci6n permite fundar tambien una "coparticipaci6n" - figura paralela a la coautoria- entre sujetos que realizan aportaciones aisladamente insuficientes 44

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dolosamente tal contribuci6n en tanto que aportaci6n a la organizaci6n delictiva, puede considerarse que se completa el injusto de la conducta de intervenci6n delictiva en los hechos concretos que constituyen el fin de la organizaci6n. Ello, aunque el agente no sepa concretamente a quien, ni cmindo ni que concreto delito va a favorecer 45 • Expresado de otro modo: la organizaci6n, contemplada desde este_punto de vista, aparece ante todo como instituci6n portadora del sistema de actuaciones favorecedoras de hechos concretos (los delitos-fin de la organizaci6n) llevadas a cabo por sus miembros. Por ello, pese a que la actuaci6n favorecedora de un determinado miembro sea generica, lo anterior permite, en el caso de la producci6n del hecho delictivo concreto, una imputaci6n de responsabilidad al miembro de la organizaci6n por el referido delito. Ello, en concreto, sobre el fundamento de una intervenci6n abstracta en la organizaci6n (" abstrakte Organisationsbeteiligung") 46, cuyo titulo es una accesoriedad que, en lugar de referirse al hecho concreto de modo preciso, viene referida de modo abstracto a la organizaci6n (" abstrakt organisationsbezo gene Unrechtsakzessorietiit" ). En palabras de Kohler, "la intervenci6n permanece ciertamente, por un lado, abstracta y mediata, en la medida en que ni objetiva ni subjetivamente tiene que haberse prestado a un hecho determinado, sino que se refiere al conjunto de Ios hechos subsiguientes conforme al fin de la agrupaci6n (.. .) Sin embargo, par otro lado, tiene que haber producido efectos en hechos delictivos concretos, cuya medida viene tambien definida mediatamente por la previa intervenci6n en la organizaci6n" 47 • Ahora bien, resulta importante poner de relieve que este modelo de intervenci6n "a traves de organizaci6n" sigue requiriendo la comisi6n por otro miembro de un hecho delictivo concreto. Asi pues, de entrada, la diferencia de este planteamiento con respecto al dominante radica, entre otras cosas, en que

para favorecer Ios hechos principales pero de !as que se sabe que, en la estructura organizada, senln articuladas unas con otras, de modo que el producto global tenga la virtualidad favorecedora requerida. En efecto, en la medida en que la aportaci6n de escasa entidad se integra en una organizaci6n junto a otras aportaciones, eventualmente tambien de escasa entidad, puede hablarse de una imputad6n recfproca que permitiria fundamentar la imputaci6n de una participaci6n punible a todos Ios sujetos. Naturalmente, es necesario que la probabilidad de integraci6n de unas y otras aportaciones aparezca ex ante como real, y no hipotetica, y que sea cuantitativamente significativa. 45 Y, por tanto, obre con una estructura subjetiva de dolo alternativo/ cumulativo, en donde D (a v b v c... v n) v (a Ab A c... A n). "D" significa dolo de favorecimiento, "a", "b", "c" y "n" son el conjunto indiferenciado de hechos delictivos (de autoria) de posible realizaci6n en la organizaci6n, "v" es la disyunci6n (mejor, la alternatividad) y "N' la conjunci6n. 46 Cfr. tambien Aleo, Diritto penale e complessita, p. 91: "La organizaci6n estable constituye en efecto, en la l6gica funcionalista, el criteria de conexi6n (de mediaci6n) entre la conducta del individuo - que contribuye a aque1la - y la generalidad de Ios delitos - aquellos tipos para Ios que la conducta sea funcional y segun el conocimiento del sujeto - que se encuadran en el contexto organizativo" . 47 Kiihler, Strafrecht AT, Berlin 1997, p. 567: "die Beteiligung bleibt zwar einerseits insofern abstrakt und vermittelt, als sie objektiv und subjektiv nicht zu einer bestimmten Tat geleistet zu sein braucht, sondern sich auf den Inbegriff der folgenden Taten gemiijJ dem Verbandszweck bezieht (.. .). Andererseits mujJ sie sich aber iiberhaupt in bestimmten Strajtaten ausgewirkt haben, deren MajJ mittelbar auch die vorangehende Organisationsbeteiligung mitdefiniert".

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mantiene la exigencia de una referenda al hecho integrante del delito-fin, aunque esta tenga lugar de un modo abstractamente mediato ("im Festhalten an einem, wenn auch abstrakt vermittelten Tatbezug"). A mi juicio, la "intervenci6n a traves de organizaci6n" continua perteneciendo a la teor{a comun de la intervenci6n en el delito y no constituye una excepci6n a las reglas generales de esta. Mas bien, se trata en ella precisamente de una adaptacion de los terminos de la teoria general de la intervencion a la existencia de organizaciones criminales. Estas pueden propiciar, en efecto, que aportaciones naturalisticamente alejadas de la ejecucion del hecho, mas atin, desconectadas de sus circunstancias de tiempo, lugar, sujetos e incluso concrecion factica, mantengan, sin embargo, una plena conexion normativa (de sentido) con aquel que justifique una imputacion a titulo de intervencion. Ello implica, ciertamente, un relativo distanciamiento de los presupuestos naturalisticos clasicos de la intervencion (y, en concreto, de la teoria de la participacion). Asi, en particular, de los relativos al caracter directo de la contribucion y al conocimiento de las circunstancias precisas del hechd8 • Pero lo cierto es que dichos requisitos naturalisticos de la participacion han ido relativizandose progresivamente, sin que pueda afirmarse que ese proceso implique una vulneracion del principio de culpabilidad. Asi, se sostiene la posibilidad de una intervencion a titulo de participacion no solo en fase preparatoria, sino incluso en fases anteriores a la decision delictiva del autor principal49 • Ademas, se seii.ala que el cooperador solo tiene que conocer el hecho principal en sus elementos esenciales (que tipo se va a realizar y las dimensiones esenciales del injusto ), sin que sea preciso conocer ni la identidad del autor, ni las circunstancias concretas de tiempo, lugar y victima50 • Sea como fuere, en relacion con lo anterior conviene efectuar al menos dos precisiones. En primer lugar, que ello no significa que a todos los miembros activos de la organizacion se les pueda hacer responsables de todos los hechos delictivos concretos realizados en el marco organizado de aquella. Pero si que cabe hacer responsables a todos aquellos cuya actuacion favorecedora, ins-

48 En el sentido de exigir tma referencia del dolo del participe a circrmstancias concretas de la ejecuci6n del hecho, Stratenwerth, Strafrecht AT, I, 4' edic., Koln 2000, p. 348 n.Qmarg. 162 y p. 343, n.Qmarg. 147 y ss. 49 Roxin, en Jahnke/ Laufhi.itte/ Odersky (Hrsg.), LK, 11' edic., § 27 n.Qmarg. 30. 50 Roxin, LK, 11.' edic ., § 27 n .Q marg. 47. Asimismo, Roxin, Zur Bes timmthei t des Teilnelunervorsatzes, Festschrift fur H. Salger, Koln etc 1995, pp. 129 y ss., 133, 137, donde alude a que el dolo debe referirse a !as "wesentliche Dimensionen des Unrechts", entre las que no se cuentan ni el lugar ni el tiempo del hecho, ni la identidad de la vfctima ni el concreto proceso de producci6n del resultado. Debe subrayarse que el principio de culpabilidad requiere menor concreci6n en el dolo del cooperador que en el dolo del inductor (p. 136-137). En esta misma linea, e incluso mas alla, Theile, Tatkonkretisierrmg rmd Gehilfenvorsatz, Frankfurt 1999, quien critica incuso que el cooperador deba conocer las "dimensiones esenciales del injusto" (pp. 121 y ss. ), para sostener la suficiencia de rma "abstrakt-anschauliche Vors tellung" (pp. 144 y ss.). Dicha representaci6n abstracta serfa la que se corresponde con la naturaleza de la participaci6n, que no permite exigir rma representaci6n concreta del hecho del autor.

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titucionalizada y canalizada en la organizacion, se proyecta de modo mediato (a traves de la organizacion) en un hecho concreto. En efecto, en tal caso, cabe hablar, a traves del vehiculo institucional, de una "organizacion" conjunta del hecho (entre el miembro favorecedor y el autor concreto, precisamente a traves de la asociacion criminal). En segundo lugm~ que ciertamente la dimension institucional especffica de la organizacion (prolongacion en el tiempo, proyeccion sabre hechos diversos ... ) puede permitir, al menos, considerar la posibilidad de que las aportaciones a organizaciones delictivas sean castigadas en cuanto tales, y antes de que la organizacion las haya proyectado sabre hechos delictivos concretos51 • Pero, en todo caso, la sancion de este comportamiento requerira que en la conducta del miembro de la organizacion se advierta una dimension favorecedora de delitos que, canalizada por la propia organizacion, pueda proyectarse sabre hechos concretos. Esta idea debera constituir, pues, el criteria interpretativo fundamental de los delitos de participacion en organizacion criminal que preven las diversas legislaciones52 • A partir de lo anterior, resulta bastante claro que la propia diferencia entre miembro y colaborador externa de la organizacion se hace difusa. Efectivamente, en el miembro puede verse de modo mas claro que su aportacion pasa a integrarse en la dimension institucional de la organizacion de modo que hace factible su proyeccion sabre los hechos delictivos futuros. Pero ello tambien puede darse en la conducta del colaborador. En realidad, una diferenciacion taxativa entre miembro perteneciente a la organizacion y "concorrente esterno" parece corresponderse mas con el modelo de transferencia de responsabilidad que con un modelo de responsabilidad por el hecho propio53 •

3.3. "Clases" de miembros de las organizaciones criminales

Resulta interesante poner de relieve que, aparentemente, incluso los partidarios del model a de transferencia de responsabilidad (de la organizacion, coma subsistema disfuncional - enemigo -, a sus miembros coma elementos funcionales a aquel) consideran que es preciso efectuar distinciones entre unos

51

Crftico en relaci6n con esta posibilidad, Kohler, Strafrecht AT, p. 569, para quien la responsabilidad de Ios miembros de la organizaci6n debe requerir "wirklich begangene Taten und die ihnen vorangehende, mithin vermittelt akzessorische Organisationsbeteiligung". Asimismo, Moccia, a cuya posici6n se ha hecho referenda mas arriba. 52 Ello permitirfa eludir, seglin creo, !as crfticas de Miissig, Schutz abstrakter Rechtsgi.iter, pp. 218 y ss., que acaba rechazando, con base en ellas, la legitimaci6n de Ios tipos del C6digo penal aleman, por su naturaleza preventivo-policial. 53 Cfr. Aleo, Diritto penale e complessita, p. 133, aludiendo al caracter estable de la relaci6n funcional, como lo propio de !as contribuciones de Ios miembros, y al caracter estable de sus efectos, como lo propio de !as contribuciones de !os colaboradores externos.

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y otros miembros de organizaciones criminales. En concreto, se suele distinguir entre pertenencia "pasiva" y pertenencia "activa" 54 • La primera, segun se entiende, no deberia dar lugar a responsabilidad 55; algo que muchos Derechos positivos - aunque no todos - acogen tambien de modo mas o menos expHcito. Ahora bien, en la medida en que el miembro, por su condicion de tal - por su adhesion -, ya constituye un elemento funcional al sistema de injusto (manifiesta su voluntad de hallarse dispuesto a la comision de los delitos fin), tal conclusion noes, en mi opinion, coherente con el "modelo de transferencia". Mas bien, parece una concesion efectuada por los partidarios de este modelo, cuya tesis es la de la afectacion de bienes supraindividuales por el "ser" de la organizacion delictiva, alas tesis del modelo de la anticipacion de la barrera de proteccion de los bienes afectados por los delitos-fin de la organizacion. Pues, en efecto, no resulta en absoluto evidente, sino todo lo contrario, que solo mediante el hecho de la realizacion de algun tipo de aportacion activa, y no mediante la mera adhesion a la organizacion, el miembro de la organizacion ponga en cuestion de la paz publica. Lo coherente seria, entonces, que los partidarios del modelo de la transferencia trataran de fundamentar la sancion tambien de los miembros pasivos: a ello podrian servir categorias todavia inexploradas en nuestro sistema, si bien ya propuestas, como la de los delitos de status 56 • Dado que, de momento, no parece que esto haya tenido lugar, habria que afirmar que, en la practica, no existe un "modelo de transferencia" puro, sino que se encuentra matizado por la exigencia de algun genero de intervencion activa.

54 La distinci6n entre una "active membership" y otra "nominal, passive, inactive or purely technical" ha sido clasica en Norteamerica, a prop6sito de organizaciones revolucionarias violentas: cfr., por ejemplo, Scales v. United States, 367 U.S. 203 (1961), en particular Ios votos particulares que aluden a que una construcci6n de "guilt by association" es extrafia a la cultura juridica norteamericana [http:/ I caselaw.lp.findlaw.com/ scripts I getcase.pl?court=US&vol=367&invol=203]. 55 Cfr. van Bubnoff LK, 10' edic., § 129 n.Q marg. 45; Lenckner, Schi:inke/ Schri:ider, 26.' edic., § 129 n.Q marg. 13. 56 Esto es, delitos que no consisten en conducta alguna, sino en la posesi6n de un determinado status social, lo que, a mi juicio, hace diflcil distinguirlos de Ios estados peligrosos. La "criminal liability for status" cuenta ya con una amplia discusi6n en la bibliografia anglosajona: cfr., por todos, I-Iusak, Does Criminal Liability Require an Act?, en Duff (ed.), Philosophy and the Criminal Law, Cambridge 1998, pp. 60 y ss, 82 y ss.: "By a status, I mean a property that describes what a person is, rather than what he or she does". Alude ahora a ell os en la bibliografia alemana Lampe, en su recensi6n a la obra de Eckstein, Besitz als Straftat, en ZStW 113 (2001), pp. 892 y ss., 896, subrayando, no obstante, que cree que estos no existen de lege lata. Con todo, apunta a la gran proximidad que, con respecto a tal estructura delictiva, muestra el delito del § 129 StGB, que solo se convierte en un "delito de conducta" en la medida en que su descripci6n tipica exige, ademas de la ostentaci6n de la condici6n de miembro de una asociaci6n criminal, una "intervenci6n como miembro" (Beteiligung als Mitglied). Una vision distinta en Giissner, Staatschutzgeschichte, Funktion, System eines Organisationstatbestands. Sonderrechtssystem "Kriminelle Vereinigung" (§ 129 StGB) ?, p. 2, para quien tanto el § 129 como el § 129 a StGB "sind Organisationsdelikte, die keine individuelle Taten einzelner unter Strafe stellen, sondem

die blofle Zugehiirigkeit zu einer inkriminierten Gruppe und deren Fiirderung. Damit sind sie Kollektivtatbestibzde, die im bundesdeutschen Strafrecht eigentlich Fremdkiirper sind" [http:/ /www.infolinks.de/medien/ geheim/ 1998/02/005.htm].

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Desde el punto de vista del modelo de responsabilidad por hecho propio, el miembro pasivo de una organizaci6n delictiva debe quedar impune, pues en su (ausencia de) conducta no se dan los elementos mfnimos del favorecimiento de hechos concretos realizados en el marco de la organizaci6n57 • Eso implica, por lo demas, como ya antes anticipabamos, que la diferenciaci6n entre "miembros" y "colaboradores" de organizaciones criminales se muestra inadecuada. La distinci6n deberfa producirse, mejor, entre colaboradores/miembros y colaboradores/no miembros. Una distinci6n que no afecta a lo esencial, sino al dato circunstancial de que en el primer caso existen mas probabilidades que en el segundo de que la aportaci6n se encuentre institucionalizada J" por ello, permita fundamentar una "participaci6n a traves de la organizaci6n". Pero sin que se excluya esta posibilidad en el caso del colaborador I no miembro. La responsabilidad de los colaboradores (miembros ono miembros) puede entonces adoptar tres modalidades. La primer a, la de la intervenci6n "convencional" en hechos delictivos concretos realizados en el marco de la organizaci6n. La segunda, la de la intervenci6n "a traves de organizaci6n" en los referidos delitos concretos. La tercera, la de la intervenci6n "intentada" y "a traves de organizaci6n" en los referidos delitos-fin de la organizaci6n. Analicemoslas, de momento, para los colaboradores miembros. En la primera se situan, en principio, los miembros que realizan aisladamente actos de favorecimiento inmediato de delitos concretos cometidos a tftulo de autor por otros miembros. En efecto, a estos no cabe imputarles una intervenci6n en otros delitos realizados desde la organizaci6n58, sino solo en aquellos a los que han contribuido de modo directo. Ademas, tampoco deberfa sancionarseles por la vfa de los "delitos de pertenencia"59 • Ello, en la medida en que, coma se ha sefialado, lo especffico de los delitos de pertenencia serfa la realizaci6n de conductas genericas peligrosas de favorecimiento, que, una vez institucionalizadas, son permanentemente actualizadas por el propio devenir de la asociaci6n. La aportaci6n relevante a los efectos de los delitos de organizaci6n es, en efecto, la que implica el reforzamiento de la organizaci6n como organizaci6n. En cambio, la segunda y la tercera modalidad son mas propias de quienes llevan a cabo una repetici6n continuada e institucionalizada de actos de intervenci6n (lo que podrfamos identificar con la ostentaci6n de un "rol'') en el sistema de la organizaci6n criminal60 • En relaci6n con estos, en efecto, existe 57

La mera pertenencia no puede contemplarse tampoco como una cooperaci6n psiquica. En sentido proximo, segun creo, Rudolphi, FS f. Bruns, p. 330. 59 Debe subrayarse, con todo, que la noci6n de "acto aislado" deberia entenderse en clave normativa y no naturalistica. Pues, en segun que casos, un acto naturalisticamente aislado podria tener el significado de una contribuci6n institucional (piensese en una donaci6n econ6mica que garantiza la viabilidad de la organizaci6n durante afios). 60 Aludiendo a una idea similar (la del "contributo stabile") para definir el ambito de lo punible en el delito de participaci6n en asociaci6n criminal, Cavaliere, Effetivita e criminalita organizzata, en Moccia (a cura di), Criminalita organizzata e risposte ordinamentali, Napoli 1999, pp. 291 y ss., 317, con referencias. 58

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un titulo que permite imputarles todos los referidos hechos delictivos concretos que se cometan en la organizaci6n. Expresado de otro modo: con independencia del modo concreto en que se exprese la contribuci6n institucionalizada al sistema, el hecho de ejercer un rol funcional a este determina que el sistema como tal, al proyectarse sob re un hecho delictivo concreto (que se convierte por ello en un "hecho de la organizaci6n"), proyecte tambien la aportaci6n institucionalizada del miembro a la organizaci6n criminal como favorecimiento precisamente de dicho hecho. Si, por lo demas, a prop6sito de la tercera modalidad, se entiende que la figura material que debe proporcionar el criteria interpretative para la subsunci6n de determinadas conductas en los tipos de pertenencia a organizaci6n criminal es la de la "participaci6n intentadall en los delitos-fin de la organizaci6n a traves de organizaci6n en los casos referidos se da tambien el fundamento para la referida imputaci6n61 • 11

11

,

4. "Dominio de organizacion" e "intervencion a traves de la organizacion" Sefi.alado todo lo anterior, resulta que la estructura central de atribuci6n de responsabilidad penal a los miembros institucionalmente activos de organizaciones criminales es la imputaci6n a ellos de los delitos concretos realizados en el marco de las referidas organizaciones a titulo de intervenci6n a traves de organizaci6n En tanto en cuanto no se hay a iniciado siquiera la ejecuci6n de los referidos delitos, la cuesti6n sera determinar si la conducta de "intervenci6n a traves de organizaci6n como conducta de coautor{a o participaci6n intentada, debe ser objeto de sanci6n, como sin duda lo es en la practica totalidad de los ordenamientos jurfdicos por la vfa de los denominados delitos de pertenencia 11

11

•

11

,

(Organisationsdelikte, reati associativi). A mi juicio, las actividades de favorecimiento que se comprenden en la figura de la "intervenci6n a traves de organizaci6n" constituyen el complemento de la figura de la "autor{a par dominio de organizaci6n", precisamente construida para la imputaci6n de hechos delictivos a los directores de organizaciones

61 Una cuesti6n de gran importancia, en la que sin embargo no es posible entrar ahora de modo detallado, es la de la relaci6n concursal existente entre el tipo de pertenencia activa a una organizaci6n, entendido como participaci6n intentada a traves de organizaci6n, y el tipo de participaci6n efectiva en un delito-fin concretamente ejecutado, prestada asimismo a traves de organizaci6n. A mi juicio, deben establecerse en este punto distinciones, en funci6n de que ambos tipos se realicen con hechos distintos; o con un Unico hecho dotado de idoneidad ex ante plural, realizado con dolo cumulativo o alternativo; o bien con un Unico hecho dotado de idoneidad singular. En funci6n de estas variantes, la soluci6n puede ser la del concurso real, el ideal o el concurso de !eyes, sin que quepa, por tanto, una soluci6n Unica. Cuesti6n distinta es la de si en casos de idoneidad plural de la aportaci6n, y sin que en ningtin caso haya llegado a ejecutarse concretamente ningtin delito-fin, puede tener sentido apreciar un concurso ideal homogeneo, en la medida en que se trata del favorecimiento (intentado) de varios delitos; lo que a mi juicio podria admitirse.

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criminales (aparatos organizados de poder). El "dominio de organizaci6n" conduce al sector doctrinal seguramente mayoritario a la apreciaci6n de una autorfa mediata y, a otros sectores, de una coautoria o incluso de una inducci6n62. Pero debe tenerse presente en las tres opciones ello implica una relativa modificaci6n (en el sentido de una normativizaci6n) de las categorias de partida: se pierden la noci6n estricta de instrumentalizaci6n propia de la autorfa mediata, la exigencia de acuerdo propia de la coautoria y el injlujo psiquico directo propio de la inducci6n. De modo que tambien desde esta perspectiva puede observarse c6mo la normativizaci6n que es propia de la "intervenci6n a traves de organizaci6n" no resulta excepcional, sino perfectamente coherente con los mecanismos de imputaci6n de responsabilidad a los superiores jenirquicos en estructuras organizadas. En efecto, como se ha indicado, la "intervenci6n a traves de organizaci6n" podrfa manifestarse en una coautoria o, en su caso, en una forma de participaci6n por cooperacion. Pero nuevamente aqui, y como se ha sefialado tambien, ello tiene lugar en virtud de una cierta modificacion (asimismo normativizadora y a partir de la consideracion del significado de las estructuras organizadas criminales) de las categorias de partida. Asi las cosas, la cuestion que procede determinar es si resulta justificada la sancion penal de la conducta de intervenci6n a traves de organizaci6n cuando todavia no se ha iniciado la ejecucion directa del hecho (delito-fin concreto) por su autor. Como es sabido, esta es precisamente la situacion de la que parten los usuales "delitos de pertenencia a organizacion criminal". La calificacion de coautoria para estos casos permitirfa, ciertamente, fundamentar sin mas su sancion, en la medida en que se pudiera sostener que con la actuacion favorecedora institucionalizada ya se ha iniciado la tentativa (coautoria intentada). Pero, obviamente, no todas las actuaciones favorecedoras realizadas a traves de la organizacion tienen ese caracter. Para las actuaciones que no lo tengan, el problema se traduce en el de si debe ser sancionada autonomamente la participacion intentada, cuando ello tiene lugar en el marco de una organizacion63. A mi juicio, ello solo seria defendible para aquellos casos en que los delitosfin de la organizacion fueran de una gravedad suficiente como para justificar el referido adelantamiento de las barreras de intervencion penal. Por tanto, lo anterior significa que no resulta admisible la tipificacion generica de un delito de pertenencia a una organizacion criminal en el que se haga abstraccion de la gravedad de los delitos-fin de esta, llegandose a castigar la "participacion intentada a traves de organizacion" en delitos de pequefia o mediana gravedad. Por lo demas, la sancion independiente de las conductas de los miembros activos de una organizacion criminal solo resulta admisible en aquellos casos 62

Sabre el debate, cfr. Mufioz Conde, Revista penal 9, enero 2002, pp. 65 y ss., 80 y ss. Participaci6n intentada que, adernas, lo sera en "tentativa acabada", en la rnedida en que el rniernbro va perdiendo objetivarnente el control de sus aportaciones institucionalizadas a Ios delitos-fin, a rnedida que estas van siendo absorbidas por la estructura organizada. 63

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en que, de haberse iniciado la ejecuci6n del delito-fin, dichas conductas serfan sancionadas a titulo de participaci6n en ese delito. En efecto, solo en ese caso puede hablarse de que la conducta del miembro de la organizaci6n criminal constituye una "participaci6n (intentada) a traves de organizaci6n". De este modo, pues, la noci6n de "participaci6n a traves de organizaci6n" muestra cucil es su doble funci6n: por un lado, la de fundamentar una modalidad de participaci6n en los delitos-fin de la organizaci6n, una vez iniciada la ejecuci6n de estos; por otro lado, la de proporcionar un criteria interpretative sabre cuya base sea posible proceder a una restricci6n del alcance de los "tipos de pertenencia". Por las mismas razones, ademas, deben excluirse del ambito de tales tipos de pertenencia las conductas de "intervenci6n neutral". Y, asimismo, deberfa excluirse la sanci6n de la tentativa y de la participaci6n en relaci6n con ellos.

5. La colaboracion "externa" (el colaborador/no miembro) 64 De conformidad con lo senalado mas arriba, los aetas de colaboraci6n externa con la organizaci6n criminal realizados por parte de quienes no son miembros de esta deben ser sometidos a la mismas reglas que las propias de los colaboradores/miembros. Ast por un lado, no existe ninguna duda en el sentido de que si los aetas del colaborador externa dan lugar a una intervenci6n inmediata "convencional" en algun delito concreto, obviamente dicho delito podra ser imputado, en los terminos correspondientes65, al colaborador externa coma partfcipe66 •

64 La colaboraci6n externa en la organizaci6n criminal ha sido objeto, fundamentalmente en Italia, de una intensa discusi6n que ha venido partiendo de la naturaleza de Ios delitos asociativos como delitos plurisubjetivos de convergencia. El debate ha enfrentado a quienes sostenfan, por razones basicamente formales, la impunidad de tales conductas y quienes consideraban, por el contrario, que estas podfan sancionarse coma participaci6n (segun reglas generales) en el delito asociativo o incluso como delito de pertenencia a la organizaci6n. Para quienes admiten la sanci6n de Ios colaboradores externos como partfcipes, segun reglas generales, en el delito de asociaci6n, la cuesti6n es, fundamentalmente, la de la determinaci6n de que requisitos habrfan de concurrir en la conducta del colaborador externo para que este fuera castigado. Cfr. Ardizzone, I! concorso esterno di persone ne! delitto di associazione di tipo mafioso e negli altri reati associativi, RTDPE 1998, 4, pp. 745 y ss., 752, 757, inclinandose por la posibilidad de admitir la participaci6n (concorso eventuale) 65 Excluyendose Ios casos de participaci6n "neutral". Sobre eso ya Rudolplzi, FS f. Bruns, p. 332, aludiendo a !as "sozialiibliche Verhaltensweisen". Asimismo, Aleo, Diritto penale e complessita, p. 72. Respecto a la intensfsima discusi6n de Ios ultimos tiempos sobre la figura de la participaci6n neutral, Landa Gorostiza, La complicidad delictiva en la actividad !aboral "cotidiana", Granada 2002. Enmarcandolo en una teorfa general de la intervenci6n, Rabies Planas, La participaci6n en el delito: fundamento y lfmites, Madrid 2003. 66 Mestre Delgado, Delincuencia terrorista y Audiencia Nacional, Madrid 1987, pp. 210-211, insistiendo en que si la actividad colaboradora se halla referida a un plan concreto y espedfico, entonces debe apreciarse una participaci6n .. En general, tanto respecto a asociaciones ilfcitas (art. 517 y 518) coma en relaci6n a !as bandas terroristas (art. 516 y 576) se distingue entre la pertenencia y la colaboraci6n.

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Mas dificil es determinar si el colaborador externa puede responder, en virtud de su mera actividad favorecedora, como participe "a traves de organizacion" en otros delitos cometidos en el seno de la referida organizacion y, en fin, como interviniente en el propio delito de asociaci6n. La calificacion como "participe a traves de organizacion" requiere que su aportacion a la estructura organizativa sea de tal entidad que justifique esa extension de sus efectos a los hechos delictivos producidos en los que no ha intervenido de modo "convencional". Y este mismo criteria debe presidir, en ausencia de la produccion de hecho delictivo concreto alguno, la imputacion de un delito de colaboracion con la organizacion, paralelo al delito de pertenencia. Con respecto a este ultimo debe sefialarse lo siguiente. En primer lugar, en el piano formal, la sancion de los colaboradores externos por su mera actividad requiere ciertamente una tipificacion espedfica. Pues, por un lado, esta claro que su conducta no seria subsumible en un tipo penal que se refiriera tan solo a los miembros de las organizaciones criminales. Y, por otro lado, como se ha indicado, dada la naturaleza de los delitos de pertenencia a organizacion criminal como delitos (al menos en amplia medida) de "participacion (intentada) a traves de organizacion" en los delitos-fin de esta, no cabe establecer que las reglas generales de la participacion puedan aplicarse, sin mas, en ellos67 • En segundo lugar, y en cuanto al piano material, la sancion penal del colaborador externa requiere que quepa afirmar que, en el caso de iniciarse la ejecucion de alguno de los delitos-fin de la organizacion, su conducta seria asimismo caracterizable como de "participacion a traves de la organizacion". En general, no podra afirmarse que el colaborador externa efecttia un favorecimiento relevante de la organizacion como organizacion68 • Pero no cabe excluir casos en que la aportacion fuera de tal relevancia que tuviera efectos estables sobre la organizacion y pudiera estimarse que favorece por si sola la peligrosidad de la asociacion69; o casos en Ios que la colaboracion, pese a su naturaleza externa, se hubiera institucionalizado70 • En todo caso, rige tambien aqui,

67 Cfr. el punto de vista matizado de Sommer, Verselbstiindigte Beihilfehandlungen und Straflosigkeit des Gehilfen, JR 1981, pp. 490 y ss., concluyendo que la cuestion no es tanto que no quepa la participaci6n en delitos que constituyen "acciones de participacion autonomizadas", como el hecho de que hay determinadas conductas de favorecimiento que ya no pueden contemplarse como una afectacion suficiente del bien jurfdico en cuestion. 68 Langer-Stein, Legitimation, p. 225, quien indica que en el caso del apoyo externo no se da la dimension institucional caracterfstica de Ios miembros, de modo que su sancion solo se justificaria en el caso de que implicara un incremento de la peligrosidad de la organizacion como tal. Por mi parte, entiendo que la ayuda a uno de Ios miembros de la organizacion no seria, en particular, relevante en tE~rminos de colaboracion externa. En sentido contrario, Aleo, Diritto penale e complessita, p. 50. 69 Asi, por ejemplo, una donacion que garantizase la autonomia financiera de la organizacion durante aii.os. 70 Sobre el debate, Ardizzone, RTDPE 1998, 4, p. 759, que admite contribuciones episodicas, ocasionales e incluso Unicas. Distinto, De Francesco, en Giostra/ Insolera, Lotta, pp. 56 y ss., quien


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obviamente, la regia antes formulada de que la colaboracion externa solo debiera castigarse autonomamente en el caso de que los fines delictivos de la organizacion fueren graves. En los demas, la sancion de la colaboracion externa quedara cefi.ida a los supuestos de imputacion de responsabilidad por los delitos concretamente cometidos, a titulo de "participacion a traves de la organizacion".

6. Conclusiones a) Los miembros "pasivos" de una organizacion criminal no responden penalmente. b) Los miembros esporadicamente activos pueden responder por los delitos concretos en los que se proyecte directa e inmediatamente su actuacion favorecedora. c) Los miembros institucionalmente activos pueden responder a titulo de coautorfa o participacion en cualquiera de los delitos concretos que se cometan en el marco de la organizacion y se correspondan con los fines de la organizacion. d) La fundamentacion de esta intervencion implica una matizacion normativista de las reglas tradicionales de la intervencion en el delito. La figura puede denominarse "intervenci6n (o participaci6n) a traves de una organizaci6n" y constituye una categorfa complementaria del "dominio de organizacion" propio de los "aparatos organizados de poder", entre los que se cuentan las organizaciones criminales. Caracterfsticas de esta forma de intervencion son: i) que la actuacion institucionalmente funcional a la organizacion es actualizada" por est a, precisamente por esa dimension institucional, a proposito del delito concreto; ii) que la dimension conscientemente institucional de la aportacion a la organizacion implica un dolo alternativo I cumulativo de contribuir a cualquiera de los delitos-fin de la organizacion. If

indica (p. 59), que, salvo en estadios embrionarios de la correspondiente organizaci6n criminal, un refuerzo efectivo de esta, asi como la atribuci6n de este a la conducta del agente "pare ragionevolmente

ipotizzabile soltanto in presenza di una reiterazione in forma massiccia di una molteplicita di contributi di partecipazione alia vita e allo sviluppo dell' ente delittuoso". Ahora bien, no sera normal que un sujeto solo realice tales contribuciones. De ordinaria, el incremento de la potencialidad operativa de la organizaci6n se derivara de "una 'somma' di contributi di partecipazione ad opera di una serie indefinita

di soggetti concorrenti, con l'inevitabile coral/aria di rendere pressoclie impossibile individuare il 'peso' effettivamente attribuibile alla prestazione fornita dal singolo compartecipe" (p. 60). Por ello, propane que, dada la inadecuaci6n de la teoria general de la participaci6n para evitar lagunas en esta materia, se proceda a una tipificaci6n en la Parte especial (p. 74). Cfr., asimismo, Sessa, Associazione di tipo mafioso e contiguita delittuosa: profili dommatici e di politica criminale, en Moccia (a cura di), Criminalita organizzata e risposte ordinamentali, Napoli 1999, pp. 175 y ss. Pero ya se ha indicado en el texto que la tipificaci6n solo resuelve el aspecto formal, y no el material, de la sanci6n de Ios colaboradores externos de organizaciones criminales.

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e) En todo caso, la participacion a traves de la organizacion debera contener un riesgo relevante -aunque solo sea por la conexion organizativa y la actualizacion que de ella efectua la propia organizacion- para los bienes concretamente lesionados. f) La pertenencia institucionalmente "activa" a una organizacion, mas alla de constituir un tftulo de imputacion de los delitos concretos que se cometan en ella, no deberia castigarse, de modo general, como delito en si misma. S6lo deberia sancionarse, coma "participaci6n (intentada) a

traves de organizaci6n", en Ios casos en que Ios delitos-fin de la organizaci6n fueren de gravedad. Ademas, en todo caso s6lo podria ser castigada par Ios tipos de pertenencia aquella conducta que, de haberse iniciado la ejecuci6n del delito-fin concreto, habria podido ser considerada participaci6n en dicho delito. g) La sancion de la conducta de los colaboradores externos de organizaciones criminales, en si misma considerada, exige su tipificaci6n formal. En terminos materiales, requiere que quepa afirmar que, en el caso de iniciarse la ejecucion de alguno de los delitos-fin de la organizacion, su conducta seria asimismo caracterizable como de "participacion a traves de la organizacion". En general, esto no sera asi, pero no pueden excluirse casos excepcionales en que tal condicion se cumpla.

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DE LA TERRITORIALIDAD A LA UNIVERSALIDAD EN LA PERSECUCION PENAL

Luis Arroyo Zapatero



DE LA TERRITORIALIDAD A LA UNIVERSALIDAD EN LA PERSECUCION PENAL

Luis Arroyo Zapatero*

1. INTRODUCCION Los europeos de hoy presenciamos y protagonizamos a un tiempo las dos mas grandes transformaciones estatales de la historia del occidente: la destruccion de un super Estado como fue la Union Sovietica y la construccion de otro nuevo, la Union Europea. Dos fenomenos de signa radicalmente contrario pero que tienen un aspecto comun: los dos comportan un radical levantamiento de fronteras para los delincuentes y, a la vez, un cierre de las mismas para los organos de represion penal. En lo que a la Union Europea se refiere resulta incomprensible para un observador externa hasta que punto resulta contradictorio el fenomeno de unificacion economica, politica e incluso juridica, con las dificultades y obstaculos para la unificacion del orden penal, un orden que aparece refractario a la europeizacion, caracter cuya persistencia amenaza con introducir en la vida europea elementos de privilegio y arbitrariedad propios de la Europa medieval que, ademas de lesionar los valores de nuestra civilizacion, amenazan el orden economico que pertenece a la esencia de la Union Europea: un mercado unico regido por los principios de libre y leal competencia de los agentes economicos, un orden economico-juridico incompatible con el principio de libre eleccion del Principe. Cuanto mas avanzan los procesos de unificacion - y la instauracion del Euro es capital - el estancamiento del orden penal y sancionador en Derechos y territorios jurisdiccionales independientes representa mas un retroceso que un retraso. Los penalistas estamos llamados por ello a hacer un esfuerzo que no puede ser solo teorico, sino tambien politico criminal. Son dos los problemas principales para la unificacion. El primero es estrictamente politico y consiste en la resistencia de los estados miembros a renunciar

* Universidade de Castilla La Mancha.

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a su exclusividad y autonomia en el ejercicio del poder punitivo en el territorio de su jurisdiccion. Se trata en definitiva de la pervivencia del dogma de la territorialidad de la ley penal. El segundo es mas cultural que politico, se trata de la defensa politica de las diversas tradiciones o culturas juridico penales de los distintos paises, tambien de los niveles diferenciados de garantias de los derechos fundamentales en el Derecho y en el proceso penal y, todavia en un grado mas agudo, las diferencias entre las dos grandes culturas en las que los paises de la Union Europea se agrupan: los paises de tradicion romanica y germanica y los paises del common law. Y en verdad la diversidad es radical, pues se trata de dos mundos con quiza las rnisma idea de Justicia, pero con una gran diferencia sobre los instrumentos y condiciones de la realizacion de la misma, especialmente de la Justicia penal. Homogenizacion de las leyes penales de los paises miembros, jurisdiccion penal europea y una gramatica comun para la aplicacion de las leyes penales son los problemas penales de la construccion de la Union Europea. Los tres deben ser abordados por la doctrina penal europea con inteligencia politico criminal. De otro modo los procesos se impulsan por via de los hechos y los legisladores europeos los abordan sin la imprescindible masa critica de elaboracion previa, lo que producira instrumentos legales tecnicamente peores que los propios de la legislaciones nacionales. Pero en la lucha contra las mas graves forma de la criminalidad en Europa la cuestion no se resuelve solo con la "europeizacion" de Derecho penal y de la Justicia penal, sino que requiere la revision y superacion del principio de territorialidad, sometiendo plenamente los delitos mas graves al principio de justicia universal. La cuestion no puede resolverse, ni siquiera plantearse cabalmente, en el marco de una conferencia, pero intentare aproximarles a la cuestion a partir de un problema europeo e internacional del que me he ocupado ultimamente: la trata de seres humanos con vista su explotacion laboral o sexuaF. El aparato conceptual y argumental, en definitiva, el llamado aparato dogmatico - del Derecho y la Justicia penal de la mayor parte de las paises de la Union resulta un idioma incomprensible para los paises del Common Law. Pero el problema de la diversidad de los idiomas y su caracter de problema no directamente superable no nos puede asombrar a los penalistas. Debemos ser conscientes de ello para establecer una estrategia que si su objetivo final puede ser la unificacion de las lenguas juridico penales, en su dimension tactica el objetivo final puede ser la unificacion de las gramaticas. LCual puede ser la fuente generadora de la gramatica penal comtin europea?. Vista la lirnitacion productiva del tratado de la Union Europea creo que esa fuente generadora de la gramatica comtin debe encontrarse en la jurisprudencia del Tribunal Europeo de Justicia y en los principios juridicos basicos que este Tribunal ha ido

' Propuesta de un eurodelito de trata de seres humanos, en Libro Homenaje a Marino Barbero Santos, Cuenca 2001, vol. II, p.25 ss,. e Illegale Einwanderung und Menschenhandeln, en TIEDEMANN, Wirtschaftsstrafrecht in der Europiiischen Union, Colonia 2002, p. 199 y ss.

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elaborando como primer organo natural comun de todos los paises de la Uniod. En la esfera internacional la fuente y nodo de pulso de internacionalizacion de la gramatica y los principios penales va a ser sin duda el Tribunal Penal Internacional y los trabajos sobre el mismo, asi como su aplicacion.

2. LA DIMENSION HISTORICA DEL PRINCIPIO DE TERRITRIALIDAD Desde la aparicion de los primeros Codigos Penales europeos e iberoamericanos el principio de territorialidad ha determinado, de forma casi exclusiva, el ejercicio del "ius puniendi" de los Estados. Las antiguas concepciones medievales de la Justicia como una potestad que el soberano podia ejercitar sobre sus subditos alla donde se encontraran quedaron atras con la llegada de los Estados Modernos, los cuales, tras una primera epoca en la que aceptaron que "la ley penal debia seguir al ciudadano como la sombra al cuerpo", asentaron firmemente la identificacion entre los limites territoriales de su soberania y los de su derecho a penar. La potestad indiscutible de los Estados para perseguir los delitos cometidos en su territorio (o no perseguirlos cuando asi lo estimara conveniente atendiendo a razones muy diversas) constituyo, pues, durante largo tiempo, una maxima aceptada y respetada entre la mayoria de los Estados, plenamente conscientes de que la no injerencia en los asuntos penales del pais vecino era una de las mejores formas de garantizar la propia soberania3 • No constituia la territorialidad de la ley penal un principio absoluto, puesto que en atencion a los principios entonces denominados de "nacionalidad", "proteccion" y "comunidad de intereses", en determinados supuestos la ley penal nacional podria aplicarse mas alla de las fronteras de un Estado, 0 lo que es lo mismo, los organos judiciales penales de un pais podian juzgar ciertos delitos cometidos en el extranjero. Los primeros Codigos penales europeos e iberoamericanos reconocieron, en su mayoria, el principio basico de la territorialidad de la ley penal y le acompafiaron de los principios de nacionalidad y proteccion. Asi sucedio en el Codigo Aleman de 1871, en el Italiano de 1930, el de los Paises Bajos de 1881 o en el Codigo Penal Suizo de 19424• En ninguno de ellos se hacia referenda, sin embargo, al principio de la comunidad de intereses (ahora denominado "Principio de Justicia Universal"), aunque algunos Proyectos de Codigo Penal contemporaneos a los citados si lo reconocieron expresamente. El paragrafo 6 numero 5 del Proyecto de Codigo Aleman de 1927 sefialo que 2

Una tentativa de ello a sido mi propuesta de norma europea reguladora de las consecuencias de las diferentes clases de error: El principio de culpabilidad y sus plasmaciones. Reflexiones y propuestas para la construcci6n de una normativa europea, en "Revista penal" (3) 1999,p. 5 y ss. 3 La evoluci6n hist6rica de Ios criterios que determinan el ambito de aplicaci6n de la ley penal y, con el, la competencia de Ios Estados para la persecuci6n de Ios delitos puede verse en JIMENEZ DE ASUA, Tratado de Derecho Penal, Tomo II, Filosoffa y Ley Penal, Buenos Aires 1950, pags. 626 y ss. 4 JIMENEZ DE ASUA, Tratado II, p. 634 y ss

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las leyes penales del Reich serian aplicables, entre otros, al "delito de trata de blancas", y en el Proyecto Checoeslovaco de 1926 se dispuso en el pan1grafo 7 que serian igualmente castigados con arreglo a las leyes de la Republica los delitos de "trata de blancas" ($ 265), trata de esclavos ($ 307) o "cualquier acto punible de esta naturaleza a cuya persecuci6n la Republica venga obligada por una convenci6n internacional, siempre que en todos estos casos el delincuente sea detenido en el territorio de la Republica y no proceda su extradici6n". El Proyecto de Francia de 1934 reconoci6 en su art. 15 el principio de la comunidad internacional en los siguientes terminos: "podra ser perseguido y juzgado, en cualquier lugar que sea, todo el que haya hecho culpable, como autor o c6mplice de pirateria, falsificaci6n de monedas extranjeras, trata de esclavos, reclutamiento para el libertinaje, trafico de estupefacientes o de publicaciones obscenas" 5 • Dos ideas me gustarfa destacar en relaci6n con los primeros intentos de reconocer expresamente el principio de justicia universal. La primera, la conciencia de los legisladores nacionales de que el catalogo de delitos perseguidos a nivel internacional no debfa determinarse de forma unilateral por cada Estado, sino que descansara precisamente en la existencia de Acuerdos o Convenios Internacionales en los que se reconociera la naturaleza supranacional de estos delitos. Y, la segunda idea, la consideraci6n en la mayorfa de los ordenamientos de un catalogo de delitos homogeneos de interes comun, entre ellos el hasta los afios 20 denominado de trata de blancas. Por otra parte, en todos los C6digos y Proyectos a los que se ha hecho referenda comenzaba a perfilarse la instituci6n de la extradici6n tal como la conocemos en la actualidad, y los principios de doble incriminaci6n y non bis in idem. El estudio de la territorialidad o extraterritorialidad de la ley penal y los lfmites del ejercicio del ius puniendi de los Estados, la extradici6n y los principios a los que acabo de referirme recibi6, a finales del siglo XIX y hasta mediados del siglo XX, una gran atenci6n por parte de ilustres penalistas, como JIMENEZ DE ASUN y QUINTANO RIPOLLES 7 en Espafia, VON LISZT8 en Alemania, DONNEDIEU DE VABRES 9 en Francia o FIORE 10 en Italia. Todos ellos acogieron con entusiasmo la regulaci6n expresa en sus C6digos Penales

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JIMENEZ DE ASUA, Tratado II, p. 638 y ss En su obra, ya citada, Tratado de Derecho Penal, Tomo II, p. 619 y ss. 7 Tratado de Derecho Penal Internacional e Internacional Penal, Tomos I y II, Madrid 1955. 8 Strafrechtliche Aufsiitze und Vortriige, vol I, p. 90 y ss. 9 Introduction a!' etude du Droit penal international, Paris, Sirey 1922 y Les principes mod ernes du Droit Penal International, Paris, Sirey 1928. Pueden tambien citarse las obras de DELOUME, Principes generaux du Droit international en matiere criminelle, Toulouse, 1882, y BERNARD, Des conflits des souveranites en matiere penale, Paris 1901. 111 Della giurisdizione penale relativamente ai reatti commessi al estero, Pisa 1873, y Effetti estraterritoriali delle sentenze penali. Della estradizione, Roma 1877. Ambas obras fueron refundidas y se publicaron en Espafia por la Revista de Legislaci6n en 1880, con el titulo Tratado de Derecho Penal Internacional y de la extradici6n. 6

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del ambito espacial de la ley penal y analizaron con detalle un sector del Derecho Penal que por aquel entonces comenz6 a denominarse "Derecho Penal Internacional". Segun LISZT, el termino fue empleado por primera vez por BENTHAM, y aunque la mayorfa de los penalistas lo consideraban confuso e inapropiado, y no alcanzaban un acuerdo sabre su alcance y las categorfas que debfa comprender su estudio, lo cierto es que durante muchas decadas proliferaron los estudios monograficos y las publicaciones que, bajo el titulo "Derecho Penal Internacional", se ocupaban detenidamente de los criterios que determinaban el ambito del ius puniendi de los Estados y de sus leyes penales, de la instituci6n de la extradici6n y de otros instrumentos para instar el auxilio judicial de terceros Estados en la persecuci6n de los delitos. No es mi intenci6n introducir hoy un debate sabre la conveniencia del termino, sino destacar las palabras de JIMENEZ DE ASUA, que sefialaba, refiriendose a su tiempo, que la importancia del Derecho Penal Internacional "surge de la gran facilidad de las comunicaciones, que permiten a los delincuentes trasladarse con rapidez de un pais a otro. Por eso, junta a la afirmaci6n de la territorialidad de la ley, se presentan estas dos cuestiones mas: la manera de dar eficacia a la represi6n en caso de que el delincuente traspase los confines del Estado en que perpetr6 el delito, y el ejercicio de la penalidad en caso de delitos cometidos en el extranjero". Tras la aparici6n de los C6digos Penales y las obras a las que acabo de referirme, y hasta hace aproximadamente una decada, la regulaci6n legal y el estudio de los principios que delimitan el ius puniendi de los Estados y el ambito espacial de la ley penal, asf coma de los instrumentos que facilitan su aplicaci6n practica no habfa avanzado significativamente. La persecuci6n de los delitos mas alla de las fronteras segufa teniendo, coma principal obstaculo, la naturaleza esencialmente polftica de la extradici6n y el principio de la doble incrirninaci6n, ademas de la confusa formulaci6n del non bis in idem y el escaso interes que normalmente mostraban los Estados para cooperar con las autoridades extranjeras cuando estas solicitaban su auxilio mediante el envfo de las siempre malogradas comisiones rogatorias. El principio de Justicia Universal, sin embargo, fue recogido progresivamente en la mayorfa de los ordenamientos internos y en numerosos Convenios Internacionales, aunque en unos y otros ha permanecido, durante decadas, sumido en un profunda suefio. QUINTANO RIPOLLES describe perfectamente la situaci6n de este principio a mediados del siglo XX, en su Tratado de Derecho Penal Internacional e Internacional Penal 11 : "El individualismo internacional, degenerando harto frecuentemente en plena anarqufa, cuya carta y patente de corso ha venido siendo el dogma de la soberanfa absoluta, va camino de ser superado, y lo ha sido ya doctrinalmente siguiera, salvo en la retr6grada concepci6n jusinternacionalista rusosovietica. La idea de que cada Estado es duefio y sefior absoluto de sus destinos 11

Obra citada, Tomo I, pags. 22 y ss.

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y de los de sus subditos, sin tener que rendir cuentas a nadie de sus actos, aun de los arbitrarios y despoticos, es en el fondo tan barbara, si no mas, que la jus vitae de los propietarios de esclavos en Roma o de los barones del feudalismo. La persona humana, por el hecho de serlo, posee indubitados derechos que ni el propio Estado puede impunemente violar sin infringir normas internacionales precisamente de caracter penal. Cristalizaron estas, por el momento, en la Convencion del genocidio de 9 de diciembre de 1948, adoptada unanimemente por cincuenta y cinco Estados y que, como declaro en ocasion solemne el Presidente de los Estados Unidos en la Ill Sesion de la Asamblea General de la ONU, marca una fecha capital en la historia de la civilizacion (... ).Con ser importante, aunque no exenta de tachas doctrinales, la Convencion del genocidio, no es mas que un paso en la ruta del Derecho Penal en formacion. La Comision de Codificacion de la propia ONU labora en la redaccion de un Codigo efectivo de crfmenes contra la humanidad, bajo la direccion del profesor Vespasiano PELLA, que sobre el apasionante asunto ha presentado un valioso memorandum. Que no se hayan logrado todavfa realidades jurfdicas mas palpables, debese, con toda certeza, al gran cisma politico que actualmente divide al universo y no a dificultades tecnicas y doctrinales largo ha superadas. Todo Derecho y quiza mas que ninguno otro el Penal, requiere un mfnimo de coincidencia ideologica y sentimental, sin el cual esta llamado inevitablemente al fracaso, y la verdad es que ese mfnimo todavfa no existe en lo universal, y sf tan solo, relativamente, en los espacios regionales". En los ultimos afios (en los ultimos cinco o seis afios) los conceptos de territorialidad penal, la extradicion y las formas de cooperacion y asistencia judicial han sufrido una evolucion sin precedentes. A nivel internacional, el caso Pinochet12 y la aprobacion del Estatuto de la Corte Penal Internacional han despertado al principio de Justicia Universal y el auguran un futuro lleno de protagonismo. Atin asf, como veremos mas adelante, no existe todavfa ese "mfnimo de conciencia ideologica y sentimental" del que hablaba QUINTANO RIPOLLES en relacion con determinadas conductas que, a mi entender, deberfan perseguirse en aplicacion del citado principio de Justicia Universal, como es la trata de seres humanos y la inmigracion ilegal. En el ambito de la Union Europea, los Estados continuan reivindicando el ejercicio soberano del ius puniendi y luchan por mantener la Justicia Penal en el ambito del Tercer Pilar: la cooperacion es, en consecuencia, la base de la represion eficaz de los delitos. Pero en la busqueda de instrumentos mas eficaces de cooperacion judicial, policial y aduanera, el Consejo de la Union Europea acaba de sustituir en junio de 2002 el tradicional sistema de la extradicion por la orden de detencion europea, las comisiones rogatorias por solicitudes de asistencia cursadas directamente entre organos jurisdiccionales y tramitadas con la mayor celeridad el empleo de las tecnicas mas avanzadas 12 Vi d. GARCfA ARAN, M. Y LOPEZ GARRIDO, D., Crimen internacional y jurisdicci6n universal. El caso Pinochet. Valencia 2000.

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(como el correo electronico o la videoconferencia para tomar declaraciones a los testigos o a las victimas ), y en definitiva, la tradicional reticencia ante las peticiones de ejecucion de resoluciones judiciales extranjeras por el sistema de reconocimiento mutuo y el principio de confianza redproca. El cambio, pues, no puede ser mas relevante.

3. El proceso de superacwn del principio de territorialidad en el ambito de la Union Europea En el llamado Espacio Judicial Europeo, los Estados miembros continuan reclamando el ejercicio del ius puniendi para perseguir los delitos cometidos dentro de su territorio, pero como hemos seftalado, han suavizado la aplicacion estricta del principio de territorialidad y su concepcion sober ana del "derecho a penar". La incorporacion de medidas concretas procedentes de la Union Europea y dirigidas a aumentar la lucha coordinada contra la delincuencia, ha sido fruto de una evolucion larga y lenta, debido a la tradicional reticencia de los Estados miembros a ceder parcelas importantes de su soberanfa - coma es el ejercicio del ius puniendi - en favor de las instituciones comunitarias. A diferencia de la Justicia Civil, que por estar integrada entre las polfticas comunitarias (primer pilar) puede ser regulada a traves de directivas y reglamentos vinculantes para los Estados Miembros, la Justicia Penal pertenece a las materias que dependen de la cooperacion entre los Estados y se regula, por ello, en el TUE (tercer pilar). El art. 26 TUE recoge la necesaria cooperacion que ha de llevarse a cabo entre las autoridades judiciales de los distintos pafses para luchar eficazmente contra la delincuencia. En los afios setenta y ochenta, los Estados Miembros compartfan la preocupacion comun de la lucha contra el terrorismo, y de ahf que al menos se intentara fortalecer la cooperacion entre todos ellos para luchar contra este fenomeno. El Acta Unica Europea de 1985 habfa creado la llamada Cooperacion Polftica Europea (CPE), a traves de la cual se pretendfa incentivar a los Estados miembros para ratificar y aplicar numerosos Convenios y Tratados sobre cooperacion judicial, unos elaborados por las instituciones comunitarias (Convenio relativo al principio non bis in idem) y otros en el seno del Consejo de Europa (Convenio sobre Transmision de Procedimientos Penales, Convenio sob re el Valor Internacional de las Sentencias Penales ... ), pero los Estados acogieron la propuesta con escaso entusiasmo, y estos instrumentos apenas se ratificaron. El Tratado de Maastricht, en vigor desde el 1 de noviembre de 1993, fijo entre sus objetivos fundamentales la creacion en el ambito de la Union Europea de un espacio de libertad, seguridad y justicia, "en el que este garantizada la libre circulacion de personas conjuntamente con medidas adecuadas respecto al control de las fronteras exteriores, la inmigracion y la prevencion y la lucha contra la delincuencia". El Titulo VI TUE contenfa las medidas que

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debfan ser adoptadas en los Estados Miembros en los ambitos de la cooperacion judicial civil y penat junta a otras disposiciones sabre inmigracion, cooperacion policial y aduanera. En este ambito, la cooperaci6n entre los Estados se llevo a cabo a traves de posiciones y acciones comunes sin fuerza vinculante y por Convenios cuya eficacia quedaba condicionada a la ratificacion unanime de los Estados. La elaboracion de la Accion Comun de 24 de febrero de 1997 adoptada por el Consejo sabre la base del articulo k.3 del Tratado de la Union Europea, relativa a la lucha contra la trata de seres humanos y la explotacion sexual de los nifi.os 13 constituye un buen ejemplo del tradicional pulso que los Estados miembros mantienen por preservar su soberanfa en las negociaciones de cualquier texto europeo de naturaleza penaP 4 • Los trabajos se desarrollaron paralelamente a la aprobacion del Programa STOP (Sexual Trafficking of Persons) y a la Accion Comun que encomendaba a la Unidad de Drogas de Europolla lucha contra la trata de seres humanos 15 . La iniciativa de la Accion Comun contra la trata de seres humanos, procedente del Gobierno Belga sufri6 importantes restricciones en los preceptos que regulaban la competencia de los Estados para perseguir este tipo de delitos. La primera de estas restricciones se produjo en su ambito material de aplicacion, pues mientras la proposicion inicial belga pretendfa que las normas sabre jurisdiccion contenidas en la acci6n comun fueran aplicables a los delitos contra menores y adultos, los Estados aceptaron unicamente modificar el tradicional principio de territorialidad recogido en sus ordenamientos cuando los delitos afectaran a menores (en los casos de explotacion sexual de nifi.os o abusos sexuales cometidos con nifi.os y de trata de nifi.os con fines de explotacion sexual 0 abuso de estos). La segunda restriccion importante tuvo lugar en el ambito jurisdicional, pues aunque la presidencia belga deseaba introducir el principio de justicia universal para la persecucion de estos delitos, finalmente el apartado A. f) dispuso tan solo que cada Estado debfa garantizar que sus autoridades tuvieran competencias en caso de comision de los delitos citados al menos en los siguientes casos: "i) cuando la infraccion haya sido cometida, integra o parcialmente, en su territorio, o ii) cuando el autor de la infraccion sea nacional del Estado miembro de que se trate o resida habitualmente en su territorio". Es decir, el Consejo impone a los Estado un compromise de persecucion penal de todos los delitos de que se trata cometidos total o parcialmente en su

13

Publicada en DOCE nQL 63 de 4 de marzo de 1997, pags. 2 a 6. Puede verse, con mayor detalle, WEYEMBERG, A, La lutte contre la traite des etres humains dans le troisieme pilier du traite sur J'Un.ion Europeenne, en la obra colectiva Vers un espace judiciaire penal europeen, edit, Institut d 'Etudes Europeennes, Bruselas 2000, pags. 217 y ss. 15 El punto de partida de Jas normas sob re trata de seres humanos en el ambito de la UE son las Resoluciones del Parlamento Europeo sobre la trata de personas (DOCE nQC 32 de 5 de febrero de 1996, pags. 88 y ss) y sob re Ios menores victimas de violencia (DOCE nQ 320 de 28 de octubre de 1996, pags. 190 y ss). 14

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territorio, una suerte de prinCipiO de territorialidad activo, y de todos los autores respecto de los que se cumpla el principio de personalidad activa, pero no alcanza a comprometer a los estados en relacion a los principios de personalidad pasiva y, mucho menos, de justicia universal Una tercera limitacion consistio en permitir a los Estados condicionar la persecucion de los delitos contra menores a que la infraccion fuera punible con arreglo a la legislacion del Estado en el que se hubiera cometido, es decir, se mantenia plenamente el principio de la doble incriminacion. Los Estados eran conscientes que con este inciso restaban eficacia a la persecucion de estos delitos cuando se cometieran por ciudadanos europeos en pafses de America Latina, Asia y Europa del Este, y de ahi que aceptaran introducir un inciso por el que se comprometian a "revisar su legislacion, con vistas a garantizar que dicha exigencia no obstaculice las medidas efectivas que tome contra sus nacionales o residentes habituales sospechosos de participar en dichas infracciones en jurisdicciones que pueden no haber tornado las medidas adecuadas a que se refiere el articulo 34 del Convenio de Derechos del Nifio de 20 de noviembre de 1989". Finalmente, podfan condicionar la persecucion de los delincuentes nacionales por los hechos cometidos en el extranjero al respeto de determinadas normas de procedimiento, y en especial, a la negativa del Estado en el que se hubiera cometido el delito de sancionar estas conductas ("negativa del Estado miembro interesado a acceder a una solicitud de extradicion presentada por el Estado en que se cometio la infraccion, o confirmacion del segundo Estado de que no se propane solicitar la extradicion del presunto infractor, o dicho Estado no ha solicitado la extradicion del presunto infractor dentro de un plazo razonable ). La principal razon por la que no se lograba avanzar en el ambito de la Justicia Penal era, pues, el recelo de los Estados Miembros a perder soberania penal. A ello obedece la decision general de mantener las materias relacionadas con el ambito de la Justicia Penal en el tercer pilar, con lo que se evitaba que la Comision, el Parlamento u otros organos comunitarias tomaran la iniciativa en la regulacion de dichas materias y aprobaran normas de cumplimiento obligatorio para todos los Estados Miembros. Pero el Tratado de Amsterdam modifico los Tratados Constitutivos y el Tratado de la Union Europea, ademas de incorporar el acervo de Schengen al marco comunitario yen aplicacion del art. k.9 TUE (que recogfa el sistema de la pasarela), extrajo del tercer pilar la Justicia Civil y la inmigracion, que pasaron a integrarse en el Titulo IV de la Tercera Parte del Tratado Constitutivo de la Comunidad Europea, dedicado a las politicas de "Visados, asilo, inmigracion y otras politicas relacionadas con la lib re circulacion de personas". La Justicia penal, como ambito excluido del sistema de la pasarela, permanecio en el TUE, si bien Amsterdam dio una nueva redaccion a los preceptos relativos a la cooperacion judicial y policial en el ambito penal, para regular con mayor claridad las competencias de los distintos organos comunitarios (en especial, del Consejo) y el valor . de sus resoluciones (posiciones comunes, decisiones-

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marco y decisiones ). En cuanto a los convenios, para su entrada en vigor sustituyo la necesidad de unanimidad por la ratificacion mayoritaria. El articulo 26 TUE, en su redaccion tras el Tratado de Amsterdam, dispone que "el objetivo de la Union sera ofrecer a los ciudadanos un alto grado de seguridad dentro de un espacio de libertad, seguridad y justicia elaborando una accion en comun entre los Estados Miembros en los ambitos de la cooperacion policial y judicial en materia penal y mediante la prevencion y lucha contra el racismo y la xenofobia". Sefiala el mismo precepto que "este objetivo debe lograrse mediante la prevencion y lucha contra la delincuencia, organizada o no, en particular el terrorismo, la trata de seres humanos y los delitos contra los nifios, el trafico ilfcito de drogas y armas, la corrupcion y el fraude", a traves de una mayor cooper a cion entre las autoridades judiciales (tambien, entre las fuerzas policiales), y cuando proceda, una aproximacion de las normas de los Estados Miembros en materia penal. Para la consecucion de los objetivos sefialados, el mismo precepto autoriza al Consejo a adoptar, por unanimidad, posiciones comunes, decisiones marco y decisiones, asf como celebrar convenios y recomendar a los Estados su adopcion. De este modo se establece un ambicioso programa polftico criminal de la Union, que sefiala un catalogo de delitos objetivo del programa y unos medias de cooperacion policial y judicial que van a tener en breve consecuencias. El momento de mayor relevancia en ese proceso es el Consejo Europeo de Tampere, de los dfas 15 y 16 de octubre de 1999. En las conclusiones se manifestaba lo siguiente: "5. El ejercicio de la libertad requiere un autentico espacio de justicia en el que las personas puedan recurrir a los tribunales y a las autoridades de cualquier Estado miembro con la misma facilidad que los suyo propio. Debe evitarse que los delincuentes encuentren la forma de aprovecharse de las diferencias existentes entre los sistemas judiciales de los Estados Miembros. Las sentencias y resoluciones deben respetarse y ejecutarse en toda la Union, salvaguardando al mismo tiempo la seguridad jurfdica basica de las personas y de los agentes economicos. Hay que lograr que aumenten la compatibilidad y la convergencia de los sistemas judiciales de los Estados Miembros. 6. Las personas tienen derecho a esperar que la Union afronte la amenaza que para su libertad y sus derechos civiles constituye la delincuencia. Para contrarrestar esta amenaza se precisa un esfuerzo comun que prevenga y combata la delincuencia y las organizaciones delictivas en toda la Union. Es necesaria la movilizacion conjunta de los recursos policiales y judiciales para garantizar que en toda la Union no exista lugar alguno donde puedan ocultarse los delincuentes o los beneficios del delito". Los puntos 33 a 37 de las Conclusiones de dedicaban al reconocimiento mutua de resoluciones judiciales. En ellos se configura el citado reconocimiento como "la piedra angular de la cooperacion judicial en materia civil y penal en la Union", y en relacion con este segundo ambito se dispone lo siguiente: "33. En materia penal, el Consejo Europeo insta a los Estados Miembros a que ratifiquen con celeridad los Convenios de extradicion de la UE de 1995

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y 1996. Considera que el procedimiento formal de extradicion debe suprimirse entre los Estados Miembros en el caso de las personas condenadas por sentencia forme que eluden la justicia, y sustituirse por el mero traslado de dichas personas, de conformidad con el articulo 6 del TUE. Tambien deben considerarse procedimientos acelerados de extradicion, respetando el principio de juicio justo. El Consejo invita a la Comision a que formule propuestas en ese sentido, a la luz del Convenio de aplicacion del Acuerdo de Schengen. 36. El principio de reconocimiento mutuo debe aplicarse tambien a los autos anteriores al juicio, en particular a los que permiten a las autoridades competentes actuar con rapidez para obtener pruebas y embargar bienes que puedan ser trasladados con facilidad; las pruebas obtenidas legalmente por las autoridades de un Estado miembro debenin ser admisibles ante los tribunales de otros Estados miembros, teniendo en cuenta la normativa que se aplique en ellos. 37. El Consejo Europeo pide al Consejo y a la Comision que adopten, a mas tardar en diciembre de 2000, un programa de medidas para llevar a la practica el principio de reconocimiento mutua. En dicho programa, tambien debera emprenderse una labor en torno al Titulo Ejecutivo Europeo y a los aspectos del Derecho Procesal con respecto a los cuales se considera necesario contar con normas mfnimas comunes para facilitar la aplicacion del principio del reconocimiento mutuo, respetando los principios jurfdicos fundamentales de los Estados Miembros" En este Consejo Europeo se dedico una atencion especial a la polftica de asilo e inmigracion comun. Estas materias tienen la particularidad de que forman parte de las politicas comunitarias (Primer Pilar), pues como hemos sefialado se integraron a partir de Amsterdam en el Tratado de la Comunidad Europea. Pero cuando se trata de luchar contra la inmigracion ilegal y la trata de seres humanos, las medidas penales judiciales y policiales se integran en el Tercer Pilar de la Union Europea y dependen, por tanto, de la cooperacion de los Estados Miembros. Sobre la gestion de los flujos migratorios, el Consejo Europeo de Tampere sefialaba lo siguiente: "23. El Consejo Europeo esta decidido a hacer 拢rente a la inmigracion ilegal en su origen, en especial luchando contra quienes se dedican a la trata de seres humanos y la explotacion economica de los migrantes, insta a que se adopte legislacion que prevea sanciones rigurosas para este grave delito. Se invita al Consejo a que, basandose en una propuesta de la Comision, adopte legislacion a tal efecto antes de finales de 2000. Los Estados Miembros, junto con Em路opol, deberfan orientar sus esfuerzos a detectar y desmantelar las redes de delincuencia implicadas. Deberan salvaguardarse los derechos de las vfctimas de esas actividades, prestando especial atencion a los problemas de mujeres y nifios." Las consecuencias normativas del programa de Tampere se han producido con rotundidad a lo largo de los afios 2002 a 2002: El Convenio del Consejo de la Union relativo a la asistencia judicial en materia penal entre los estados miembros de la Union Europea, basado en el articulo 34 del TUE, del 12 de

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julio de 2000 16; el Programa de medidas destinado a poner en pnictica el principio de reconocimiento mutuo de las resoluciones en materia penal (D.O. C012 de 15 de enero de 2001;la Decision del Consejo de 28 de febrero de 2002 por la que se crea Eurojust para reforzar la lucha contra las formas graves de la delincuencia (2002/187/JAI) y la Decision Marco de 13 de junio de 2002 relativa a la orden de detencion europea y a los procedimientos de entrega entre Estados miembros. El principio de reconocimiento mutuo de las resoluciones judiciales, que constituye el punto de partida de los actuales mecanismos de cooperacion, implica que la resolucion judicial adoptada en un Estado miembro extiende sus efectos no solo al ambito territorial en el que ha sido dictada, sino a todo el espacio judicial europeo. Con ello, es evidente que se extiende extraordinariamente, hasta todo el territorio de la Union, el ambito de aplicacion de la ley penal de cada uno de los paises de la Union Europea. El Programa de medidas destinado a poner en practica el principio del reconocimiento mutuo de las resoluciones judiciales en materia penal se aprobo por el Consejo el 30 de noviembre de 2000 17 • En el Plan se sefialo que "la aplicacion del principio del reconocimiento mutua en las resoluciones en materia penal supone una confianza reciproca de los Estados Miembros en sus respectivos sistemas de justicia penal. Dicha confianza se basa, en particular, en el fundamento comtin que constituye su adhesion a los principios de libertad, democracia y respeto de los derechos humanos y de las libertades fundamentales y del Estado de Derecho". Las medidas concretas propuestas se refieren al principio non bis in idem, a la individualizacion de la sancion, a la obtencion de pruebas en el extranjero o la adopcion de medidas provisionales de caracter real (y al comiso ), a la detencion y otras medidas de control no privativas de libertad, a las normas sobre jurisdiccion, al traslado de personas ya condenadas por sentencia firme (porque intentan escapar de la accion de la Justicia o para favorecer su reinsercion) y otras medidas a adoptar tras una sentencia penal condenatoria. De todas ellas, nos interesa detenernos en el principio non bis in idem y en la voluntad de establecer normas comunes sobre Jurisdiccion. De todo ello se ha avanzado fundamentalmente en materia de extradicion y en la asistencia judicial penal. El tradicional mecanismo de la extradicion y todos los problemas de aplicacion que le acompafian han sido sustituidos por la orden de detencion europea y por los procedimientos de entrega entre los Estados miembros. En el punto 5 de la Decision Marco sobre esta materia se sefiala: "El objetivo atribuido a la Union de llegar a ser un espacio de libertad, seguridad y justicia da lugar a la supresion de la extradicion entre los Estados Miembros, debiendose sustituir por un sistema de entrega entre autoridades 16 Vid Informe explicativo del Convenio de 2000 relativo a la asistencia judicial en materia penal entre Ios Estados miembros de la UE, aprobado por el Consejo el14 de octubre de2002 (2002/ C257 /01). 17 DOCE nQC 12 de 15 de enero de 2001, pags. 10 a 22

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judiciales. Por otro lado, la creacion de un nuevo sistema simplificado de entrega de personas condenadas o sospechosas, con fines de ejecucion de las sentencias o de dliigencias en materia penal permite eliminar la complejidad y los riesgos de retraso inherentes a los actuales procedimientos de extradicion. Es preciso sustituir las relaciones clasicas de cooperacion que prevaledan entre Estados Miembros por un sistema de libre circulacion de decisiones judiciales en materia penal, tanto previas a la sentencia como definitivas, en el espacio de libertad, seguridad y justicia" Conforme al articulo 2 de la Decision, "daran lugar a la entrega, en virtud de una orden de detencion europea, en las condiciones que establece la presente Decision marco y sin control de la doble tipificacion de los hechos" un conjunto de 32 delitos, entre ellos, la pertenencia a una organizacion delictiva, el terrorismo, la trata de seres humanos, la explotacion sexual de los ninos y la pornografia infantil. Otro ejemplo significativo del cambio que en el ambito de la Union Europea estan experimentando los tradicionales principios de la territorialidad de la ley penal y de la potestad jurisdiccional de los Estados lo encontramos en el Convenio de Asistencia Judicial de mayo de 2000, en cuyo articulo 4.1 se dispone que "en los casos en los que se conceda la asistencia judicial, el Estado miembro requerido observara los tramites y procedimientos indicados expresamente por el Estado miembro requirente, salvo disposicion contraria del presente Convenio y siempre que dichos tramites y procedimientos no sean contrarios a los principios fundamentales del Derecho del Estado miembro requerido". Es decir, cuando un Estado soli cite a otro la practica de ciertas diligencias de investigacion o de prueba, el Estado requerido debera aplicar las normas y las garantfas procesales del Estado requirente. En el area de la cooperacion horizontal, el reconocimiento de que ciertos organos e instituciones europeas puedan coordinar las investigaciones policiales y las desarrolladas en el seno de procesos penales entre distintos Estados Miembros constituye tambien una buena muestra de como las fronteras se diluyen poco a poco en el espacio judicial europeo. La Decision de 28 de febrero de 2002 por la que se crea Eurojust permite a este organo de la Union Europea que este organo,creado con personalidad juridica propia, pueda a traves de sus miembros nacionales "solicitar a las autoridades competentes de los Estados miembros afectados que consideren la posibilidad de: i) llevar a cabo una investigacion o unas actuaciones judiciales sobre hechos concretos; ii) reconocer que una de ellas puede estar en mejores condiciones para llevar a cabo una investigacion o unas actuaciones judiciales sobre hechos concretos, iii) realizar una coordinacion entre las autoridades competentes de los Estados miembros afectados, iv) crear un equipo conjunto de investigacion, de conformidad con los instrumentos de cooperacion pertinentes, y v) facilitar cuanta informacion sea necesaria para que Eurojust desempene sus funciones". Lusiada. Direito. Lisboa, n.Q3 (2005)

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Esta tendencia que apunto es tarnbien rnuy evidente cuando nos detenernos en deterrninados tipos de delincuencia. En el arnbito de la trata de seres hurnanos la situacion es especialrnente significativa. Todos los instrurnentos a los que acabo de referirrne reconocen la rnagnitud de este tipo de delincuencia y la conveniencia de reforzar la cooperacion para contrarrestar a las redes organizadas que desanollan sus actividades en este arnbito, pero existen ademas instrurnentos especificos en este arnbito, corno la Decision Marco de julio de 2002, sobre la lucha contra la trata de seres hurnanos, que sustituye la Accion Cornun de 1997 a la que me referfa anteriorrnente. Las rnedidas que pro pone en su articulo 6, sob re "cornpetencia y procedirniento" continuan siendo aun rnuy tfmidas en este ambito. Dispone el precepto citado: 1) Cada Estado Miernbro tornara las rnedidas necesarias para establecer su competencia respecto de las infracciones indicadas en los articulos 1 y 2 cuando: a) la infraccion se hay a cornetido, total o parcialrnente, en su territorio, o b) el autor de la infraccion sea uno de sus nacionales, o c) la infraccion haya sido cornetida en provecho de una persona jurfdica establecida en su territorio. 2) Cualquier Estado Miernbro podra decidir no aplicar, o aplicar solo en casos o circunstancias especfficas, las norrnas de competencia definidas en las letras b) y c) del apartado 1, siernpre que la infraccion en cuestion se haya cornetido fuera de su territorio. 3) Cualquier Estado miernbro que, de conforrnidad con su ordenarniento jurfdico, no extradite a sus nacionales adoptara las rnedidas necesarias para establecer su cornpetencia respecto de las infracciones indicadas en los artfculos 1 y 2 y, en su caso, perseguirlas judicialrnente, cuando se hay an cornetido por uno de sus nacionales fuera de su territorio". Como puede advertirse la Decision supone un ligero avance respecto de lo dispuesto en la Accion Cornun de 1997, pues el cornprorniso de persecucion penal en el espacio territorial y de la personalidad activa se arnplfa a los supuestos de cornision del delito en provecho de una persona jurfdica establecida en su territorio, lo que resulta una doble arnpliaci6n del principio de personalidad activa anterior. A pesar de todo, el apartado siguiente legitirna la abstenci6n persecutoria del Estado en los supuestos anteriores si el hecho se ha realizado fuera del territorio. En sentido positivo, en carnbio, reforrnula el principio de actuaci6n respecto de sus nacionales cuando no extradite a otros pafses de la Union por estos delitos: el sisterna que no extradite a sus nacionales debe estar en condiciones sustantivas y procesales de perseguirlos penalrnente por sf rnisrno 18 • En el ambito no penal de la inmigraci6n ilegallos trabajos no estan tan adelantados, pero si se aprecian avances importantes. Con el fin de reforzar Ios medios para luchar contra el trafico ilegal de 18

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Interesa llamar la atencion sabre que la Decision Marco contra el terrorismo, de 13 de junio de 2002, adoptada pues apenas un mes antes que la relativa a la trata de seres humanos, realiza una atribucion de competencias y de legitimacion de la accion penal mas depurada y amplia. Asf, y sabre lo anterim~ equipara residentes con nacionales a los efectos de la personalidad activa, incorpora el principio de atribucion de la competencia penal conocido hasta ahora como de inten?s nacional, ampliado a "inten§s europeo": "el delito (de terrorismo) se haya cometido ... contra una institucion de la Union Europea, o de un organismo creado en virtud del Tratado Constitutivo de la Comunidad Europea o del Tratado de la Union Europea y que tenga su sede en el Estado miembro de que se trate. Contiene reglas para resolver las cuestiones de competencias concurrentes cuya solucion encomienda de facto a Eurojust y, por ultimo, incorpora una clausula que viene a legitimar la decision de los Estados de atribuir a los delitos de terrorismo la condicion de perseguibles bajo el principio de justicia universal - en una clausula que creo proviene de la Convencion de Naciones Unidas contra la tortura de 1984, en su art. 5 -, cuando dispone en el apartado 5 del art. 9 que "el presente articulo no excluye el ejercicio de una competencia en materia penal establecida en un Estado miembro con arreglo a su legislacion nacional". La decision marco de trata de seres humanos y, sobre todo, su aplicacion en el espacio procedimental de la "euroorden" de detencion, de medidas cautelares y de ejecucion de sentencias de condena permiten augurar un avance en la lucha contra los delitos de trata de seres humanos, asf como de los delitos de terrorismo y aquellos otros que sean objeto de la decision marco correspondiente, pero resulta evidente que lo que se requiere es un "eurodelito", en el sentido de Tiedemann 19, o una armonizacion eficaz de las figuras delictivas, que es a la vez el modo de someter esta materia al principio de jurisdiccion universal europea. Todo ello sin perjuicio de las dificultades polfticas y de garantfas que plantea la euroorden, a las que no me voy a referir aqui 20 •

im11igrantes, la Comisi6n present6 en febrero de 2002 una propuesta de Directiva relativa a un permiso de residencia de corta duraci6n para !as victimas de la trata de seres humanos y del trafico ilfcito de inmigrantes que coope¡en en la lucha contra !os traficantes y pasadores de fronteras. Bajo la Presidencia Espafiola, la Union Europea aprob6 en el Consejo de Justicia y Asuntos de Interior de Ios dias 27 y 28 de febrero el Plan Global para la lucha contra la inmigraci6n ilegal y la trata de seres humanos. El conjunto de medidas y acciones contenidas en el Plan se refieren a la politica de visados, el intercambio y ana]isis de informaci6n, !as medidas previas a! cruce de fronteras, !as medidas de gesti6n de fronteras y la politica de readmisi6n y repatriaci6n, ademas de dos bloques de medidas relacionadas con la persecuci6n penal de !as conductas ilicitas: la intervenci6n de Europol y el sistema de sanciones que deberian !os Estados incluir en sus legislaciones internas. Se aprob6 tambien unas conclusiones relativas a !as medidas de prevenci6n y lucha contra la inmigraci6n ilegal y la trata de seres humanos par via maritima, asf como un plan para la gesti6n integrada de !as fronteras exteriores. 19 Vid. Obra citada en nota 1 20 S ha referido monograficamente a ello Vassalli en su discurso en el doctorado honoris causa en Albacete el25 de octubre de 2002.

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0 11 DE SETEMBRO, OS DIREITOS DO HOMEM E 0 DIALOGO ENTRE AS CIVILIZA~OES

Jose Sousa Brito



0 11 DE SETEMBRO, OS DIREITOS DO HOMEM E 0 DIALOGO ENTRE AS CIVILIZA<;OES

Jose Sousa Brito*

Viu-se, em 11 de Setembro, urn acto de guerra entre civilizac;oes, ou urn acto de guerra dentro da mesma civilizac;ao, uma especie de guerra civil? Osama bin Laden terci dito, logo a seguir, segundo alguns jornais, que seria acc;ao de urn grupo americano. E de facto, muitos dos terroristas residiam ha algum tempo nos E.U.A., onde frequentaram cursos de pilotagem de aviac;ao comercial, e ha muitos anos no ocidente, nomeadamente na Alemanha, onde urn dos chefes do grupo, Mohammed Atta, concluiu uma tese sobre urbanismo para obter urn grau numa escola superior de engenharia em Hamburgo. Atta era filho de uma farm1ia egipcia da classe alta, ocidentalizada - o pai apareceu na televisao a expor em inglE~s a sua inicial incredulidade, dados os habitos ocidentalizantes do filho 1 -, e o proprio Atta falava correntemente, pelo menos, arabe classico - em que escreveu o testamento e as instruc;oes aos companheiros -, alemao e ingles. Era, portanto, uma pessoa corn varias identificac;oes: egipcio, universitario alemao, muc;ulmano. :E claro que esta ultima identificac;ao foi a prevalecente na opc;ao que fez pelo martirio religiose e foi a identificac;ao cornurn a urn grupo de diversas nacionalidades e multiplas identificac;oes. Mas foi prevalecente para todos por escolha, o crime nao era destino. Por urn lado, a escolha surgiu aos olhos dos pr6prios como urn acto de obediencia religiosa, de obrigac;ao de guerra ou jihad, de defesa da civilizac;ao islamica como civilizac;ao da sociedade islamica governada pelo direito religiose ou xaria. S6 que nenhuns dos membros do grupo pertencia a uma tal sociedade - ela nao existe em parte alguma, coexistindo a xaria em tensao maior ou menor corn o direito estadual numa parte dos Estados de maioria muc;ulmana, como na Arabia Saudita, no Paquistao, no Irao, no Sudao,

* Antigo Conselheiro do Tribunal Constitucional. 1 As afirma~oes de bin Laden e do pai de Atta visavam ocultar factos, pois o primeiro bem sabia que o grupo era composto maioritariamente por sauditas e chefiado a partir do Afeganistao, e o segundo certamente sabia da conversao fundamentalista do filho (cf. The 9/11 Commission Report. Final Report of the National Commission on Terrorists Attacks upon the United States, New York, London, Norton, s. d -, 161), mas o recurso as mtiltiplas identifica~oes das pessoas visadas confirma o ponto essencial do texto.

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na Nigeria, e ainda em certos Estados da fndia -, ela e apenas urn ideal revoluciomirio para as sociedades de origem dos terroristas. Por outro lado, a organiza<;ao a que se tern por certo estarem ligados, Al-Qaida, e uma rede internacional, cujo financiamento, comunica<;6es e meios de actua<;ao sao tipicos do estadio da mundializa<;ao, ou globaliza<;ao, da sociedade ocidental liderada pelos Estados Unidos. Temos, portanto, uma escolha de identifica<;ao civilizacional corn uma utopia islamica por parte de pessoas integradas na civiliza<;ao ocidental, so que no sentido do extremo oposto da escolha habitual dos mu<;ulmanos europeus, que nao se consideram em jihad corn as sociedades em que se integram. De modo nenhum temos perante nos urn choque de civiliza<;6es na zona periferica das sociedades que se podem integrar na civiliza<;ao ocidental e na civiliza<;ao isHimica, do genera das guerras causadas por conflitos etnicos em Estados multietnicos da periferia, coma as guerras na antiga Jugoslavia, na Chechenia, etc., que Samuel Huntington2 prognosticou para o seculo XXI. Seria, porem, urn erro grave pensar que os aetas de guerra de 11 de Setembro sao apenas uma especie mais grave de crime de novo movimento religioso - ou de uma seita -, semelhante ao crime da seita Aum Shinrikyo, que atacou em Mar<;o de 1995 o Metro de Toquio corn gaz de nervos Sarin, matando 12 e ferindo 5.000 pessoas. A simpatia de que Osama bin Laden manifestamente goza em largos sectores nao so dos Estados de xaria - coma o Paquistao e a Arabia Saudita - coma ate de alguma juventude mu<;ulmana em crise de identifica<;ao urn pouco por todo o mundo, obrigam a uma reflexao aprofundada sabre os fundamentos espirituais do Islao e do ocidente e sabre as possibilidades do dialogo entre as duas civiliza<;6es. A interpreta<;ao da jihad que inspira as ac<;6es da Al-Qaida e, em especial, o 11 de Setembro, parece ser a mesma que inspirou o grupo fundamentalista egipcio que assassinou Sadat em 1981 e a que pertenceu o actual lugar tenente de Bin-Laden, Ayman Al-Zawahri. A interpreta<;ao consta do manifesto "A obriga<;ao canonica ausente" Al-Farida-l-gha'iba3, escrito por Muhammad 'Abd al-Salam Faraj, executado em 1982. Ai se parte do versiculo 5 da sura 9: "Passados os meses sagrados, matai os idolatras onde os encontrardes, aprisionai-os, cercai-os e armai-lhes emboscadas para os prender. Se eles se arrependerem, se eles cumprirem firmemente a ora<;ao, se eles derem esmolas, deixai-os entao tranquilos no seu caminho, porque Deus e indulgente e rnisericordioso"4. Eo chamado versiculo da espada, que fazia parte da proclama<;ao que tera sido lida durante a peregrina<;ao a Meca em 631 por Ali, genro de Maome, avisando os politeistas que disputavam a peregrina<;ao aos mu<;ulmanos, corn quem estavam em guerra continua, que no ano seguinte nao 2

The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, New York, Simon an Schuster, 1996. 0 texto foi traduzido e comentado por Johannes J. G. Jansen, The Negected Duty. The Creed if Sadat's Assassins and Islamic Resurgence in the Middle East, New York, Macmillan, 1986, 159-234. 4 Tradu~ao de Jose Pedro Machado, Alcoriio, 2' ed., Lisboa, Junta de Investiga~oes Cientfficas do Ultramar, 1980, que e a usada no texto. 3

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poderiam participar na peregrina~ao porque ou se convertiam entretanto ou eram mortos. A proclama~ao surtiu efeito : de facto nao ha noticia de pogrom contra os politeistas, estes converteram-se ou fingiram que tal, e a peregrina~ao da despedida em que Muhammed participou em 632, pouco antes de morrer, foi puramente mu~ulmana. Ora o referido manifesto defende, seguindo a interpretac;ao de Ibn Taimija (urn te6logo conservador do sec. XIV, falecido em 1328, que pregou a jihad contra os armenios e depois contra os mong6is ), que o versiculo da espada revogou (naskh) 114 versiculos de 54 suras, que mandam viver em paz corn os infieis, entre eles o versiculo 2:257, que diz que "nao pode haver qualquer coac~ao em materia religiosa". Nessa perspectiva, o mundo e dividido em dar al-Islam, a morada do Islao - onde os monoteistas judeus e cristaos poderao viver se submeterem e pagarem tributo e dar al-harb, a morada da guerra, em que os politeistas nao terao direitos nem serao tratados como pessoas, serao simplesmente inimigos de guerra. Para o manifesto, os chefes opressores que imp6em leis profanas abolindo a xaria (Sadate, o xa da Persia, no seculo XIV o Tamerlao ), sao id6latras, representam o fara6, devem ser mortos. Para Al-Qaida sao-no tambem todos os americanos, segundo a fatwa de bin Laden. Nesta interpreta~ao da xaria, aos nao-crentes nao e reconhecida a dignidade de pessoa nem direitos do homem. Corn eles o mu~ulmano nao dialoga, faz guerra. 0 mu~ulmano que e cidadao de urn Estado de direito, isto e, de urn Estado que reconhece os direitos do homem, tern, entao, duas op~6es padficas, alias conciliaveis: ou se identifica como cidadao, recusando a xaria, ou se identifica como mu~ulmano e interpreta diferentemente a xaria5 •

*** Vejamos agora as coisas do ponto de vista dos direitos do homem. Vem aqui a mente as varias declara~6es de direitos hist6ricas, as americanas, as francesas, a das Na~6es Unidas, as conven~6es internacionais das Na~6es Unidas de direitos civis e politicos e de direitos econ6micos, sociais e culturais, as Convenc;6es regionais, especialmente a Conven~ao Europeia dos Direitos do Homem, e as varias declara~6es de direitos incluidas nas constitui~6es, como no caso da Constitui~ao portuguesa. Todas estas declara~6es resultaram de prolongado dialogo institucional por representantes eleitos democraticamente pelos povos representados ou por delegados de tais representantes, sao produtos do exerdcio da razao publica. A razao publica e ainda razao pratica, parte da igual dignidade de todas as pessoas como fins em si e, portanto, do igual direito de todas a escolherem - se a si pr6prias, e a determinarem a sua propria

5 Para uma interpreta.;:ao do jihad contra.ria a de Faraj, veja-se Mohamed Sai¡d Ramadan Al-Bouti, Le jihad en Islam. Comment le comprendre? Et comment le pratiquer?, trad. Mohamed Nabil Al-Khayat, Damas-Syrie, Dar El-Fikr, 1996.

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vida, embora seja razao pratica limitada pelo grupo social a que se dirige o seu exercfcio. A igual dignidade das pessoas funda o igual direito a decidir sobre os seus interesses na vida colectiva, o princfpio democratico. 0 principio democratico e urn dos direitos do homem, nao e 0 fundamento deles, e parte da democracia como sistema de principios, nao a fundamenta. For isso, as declara~oes de direitos nao os fundam nas delibera~oes democraticas que os aprovaram, elas reconhecem-nos como validos independentemente do reconhecimento e irrevogaveis por delibera\6es em contrario. As declara~oes de direitos do homem, mesmo quando invocaram Deus e o Ser Supremo no seu preambulo, nunca se consideram dependentes de uma confissao religiosa particular, mas como validas independentemente de qualquer religiao. A dignidade da pessoa humana esta ligada a capacidade ou a potencialidade de autodetermina\aO, de se escolher livremente, distinguindo entre o bem e o mal, e, assim, a racionalidade. Esta concep~ao pode ser filosoficamente pensada, como em Kant, como a condi~ao da possibilidade de uma regra moral universalmente valida. Mas derivou-se historicamente na civiliza~ao ocidental de se considerar ser essa a especificidade do homem como imagem Deus, que e ponto comum da tradi\aO monoteista: "Fa~amos o ser humano a nossa imagem e semelhan~a", diz-se no Genesis 1:26. Os direitos do homem tern, assim, origem hist6rica na civiliza~ao ocidental e tern pretensao universal. Serao mais uma forma de imperialismo ideol6gico do ocidente? Depende de saber se podem ser igualmente fundamentados a partir de princfpios basicos das religioes constitutivas de outras civiliza~oes. 0 principal fil6sofo politico que teorizou a democracia na segunda metade do seculo XX, que foi John Rawls 6, defendeu que os direitos do homem se poderiam basear num acordo politico ideal entre pessoas corn sistemas globais de convic~oes diferentes, por razoes de caracter meramente politico. Estas razoes, ligadas a necessidade de tornar possivel o dialogo e a coopera~ao social entre pessoas de convic~ao diferentes, dariam suficiente fundamento a urn Estado de direito democratico, ou aos direitos do homem, em alternativa corn uma possivel fundamenta~ao filos6fica de tipo kantiano, que nao seria aceitavel para quem recusa uma etica filos6fica. Rawls cita a teoria da xaria do te6logo islamico sudanes Abdulahi Ahmed An-Na'im, discipulo de Mahmoud Mohamed Taha, como fundamento alternativo dos direitos do homem. Eu aceito no essencial esta concep~ao de Rawls, mas nao importa aqui defende-la, mas apenas a questao de saber se outras civiliza~oes e, especialmente, a islamica, podem chegar ao dialogo e a pratica social que caracterizam os direitos do homem. Na busca de urn fundamento etico comum as varias religioes para uma pratica de paz a escala mundial, substancialmente coincidente, em minha opiniao, corn uma civiliza~ao universal dos direitos do homem, sobreposta as varias civiliza~oes de base religiosa, o te6logo cat6lico Hans Ki.ing 7, apoiado

6 7

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Justice as Fairness. A Restatement, Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 2001. Erkliirung zum Weltethos, Munchen, Pipe1~ 1993, 62; Projekt Weltethos, Munchen, Pipe1~ 84.

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0 11 de Setembro, os direitos do homem eo dialogo entre as civiliza<;6es, p. 139-147 -路路---路--------------------------------

pelo Parlamanto das Religioes Mundiais reunido em Viena em 1993 e na Cidade do Cabo em 1999, parte da regra de oiro: "nao fa<;:as a outro aquilo que nao queres que te fa<;:am a ti", que e comum a muitas tradit;:oes religiosas e eticas do mundo. Kiing e o Parlamento das Religioes Mundiais chegam assim a uma extensa declara<;:ao de deveres, que julgam mais aceitavel que uma declara<;:ao de direitos. Eu penso que a regra de oiro e urn adequado fundamento dos direitos do homem, porque pressupoe a igual dignidade do outro e de mim, mas penso tambem, reconhecendo a importancia epocal da Declara{:ao para uma Etica Global, que a oposi<;:ao entre direitos e deveres resulta de insuficiente compreensao da rela<;:ao entre uns e outros. Os direitos nao sao mais do que princfpios ordenadores de urn conjunto dos deveres que integram o proprio conteudo dos direitos. 0 direito a vida traduz-se no clever de todos de nao matar e tambem, por exemplo, no clever do Estado de nao aplicar pena de morte nem extraditar pessoa a quem ela possa ser aplicada. Cada direito do homem e assim uma institui<;:ao de deveres. Uma declara<;:ao de deveres tende a incluir deveres de excelencia ou supererrogatorios, como dar aos pobres, sem obrigatoriedade jurfdica. Fica aquem do ponto a que se chegou corn a Declara<;:ao Universal dos Direitos do Homem, produto da colabora<;:ao intercivilizacional e assinada por quase todos os paises do mundo, incluindo os islamicos (corn a importante excep<;:ao da Arabia Saudita).

Nao tenho suficiente competencia para uma fundamenta<;:ao isHimica dos direitos do homem, que os integre na xaria, no direito mut;:ulmano, como parte integrante da civiliza<;:ao islamica. Apenas tomo nota que houve teologos islamicos que o fizeram, de forma para mim intelectuamente satisfatoria. Assim Bani Sadr8 que foi presidente da Republica do Irao e vive como asilado politico em Paris desde 1981, entende que a dignidade da pessoa humana e os direitos de homem derivam do Kalifat Allah, do vicariato, sucessao ou representa<;:ao de Deus no homem, expresso nos versfculos 31 e 44 da Sura 5, de que cito: "Quando o Senhor disse aos anjos: "Vou estabelecer na Terra urn vigario (kalifat), responderam os anjos: "Vais estabelecer nela alguem que levara a desordem e derramara sangue, enquanto nos te louvamos e exaltamos a tua santidade?" Deus respondeu: "Eu conhe<;:o o que vos desconheceis." No mesmo sentido, o jurista islamico americano Kahled Sabou El Fadl, despois de pesquisar o modo como os direitos do homem foram defendidos pelos juristas mu<;:ulmanos classicos, conclui que a democracia, como sistema que inclui os direitos do homem e o Etado de direito, "e apropriada para o Islao porque exprime duas coisas, a especial dignidade dos seres humanos - o estatuto do vicariato - e ao mesmo tempo priva o Estado de qualquer pretensao

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Le Coran et le pouvoir, Imago, 1993.

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de divindade, por sediar a autoridade suprema nas maos do povo e nao do ulema" 9 . Abdullahi Ahmed An-Na'im10, a que ja me referi, que ensina numa universidade americana e que teme pela vida se voltar a sua patria, o Sudao (onde foi executado em 1985 o seu mestre Taha), prefere, como Kiing, partir da regra de oiro, a que chama o princfpio da reciprocidade, que faz parte da xaria. Urn te6logo profissional influente e sem duvida o egipcio Ali Abderraziq, que era urn sheik al-Azhar, te6logo da universidade do Cairo Al-Azhar e juiz deum tribunal islc'imico, quando em 1925 publicou uma importante monografia sobre a questao disputada do califado11 . A Turquia tinha entao extinto o califado em 1924 e o Egipto estava a viver uma experiencia liberal corn a nova constiui<;ao de 1923. Por causa do livro, o Conselho dos grandes ulemas de AlAzhar expulsou Abderraziq, que deixou de poder exercer quer o ensino quer a judicatura. Estas san<;oes foram, porem, levantadas alguns anos depois. A principal tese de Ali Abderraziq era a de que as fun<;oes polfticas e militares exercidas por Maome eram parte da sua actividade como profeta, que nao pode ser retomada por outra pessoa. Por consequencia, a religiao isla.mica nao recomenda o califado ou qualque outra forma de organiza<;ao polftica e entrega a razao humana a tarefa de determinar qual a melhor organiza<;ao do Estado, inclindo a administa<;ao da justi<;a. Embora nao aplique esta doutrina a questao dos direitos do homem, penso que implica por consequencia que a religiao entrega a razao humana a tarefa de os determinar e de garantir a sua eficacia. No mesmo sentido de Abderraziq, mas elevando-se de uma fundamenta<;ao exegetico-hist6rica a uma teoria geral das rela<;oes entre os discursos religioso e extra religioso e da modernidade, o fil6sofo e te6logo iraniano Abdolkarim Soroush entende que a discussao dos direitos do homem pertence ao dominio da teologia filos6fica (kalam) e da filosofia em geral e e uma area extra-religiosa do discurso. Os direitos do homem situam-se fora do dominio da religiao, mas uma religiao que esquece os direitos do homem nao e sustentavel no mundo moderno. Nao e possivel afastar princfpios racionais , morais e extra-religiosos e o raciocfnio sobre direitos do homem da propria jurisprudencia isHimica, porque esta e alimentada pela teologia filos6fica (kalam) e pelos seus fundamentos extra-religiosos. Quer consideremos a democracia como urn metodo eficaz de limitar 0 poder, obter justi<;a e realizar direitos do homem ou como urn valor que abrange todos estes objectivos, e o entendimento religioso que tern de se ajustar a democracia e nao e nao 0 inverso: a justi<;a ' como valor, nao pode ser religiosa. E a religiao que tern de ser justa. De modo semelhante, os metodos de limitar 0 poder nao sao derivados da religiao, embora a religiao deles beneficie12 •

Islam and the Challenge of Democracy, Princeton, Oxford, Princeton University Press, 2003, 36. Toward an Islamic Reformation,Syracuse, New York, Syracuse University Press, 1996, 162. 11 L'Islam et les fondements du pouvoir, trad. Abdou Filali-Ansari, Paris La Decouverte, 1994. 12 Reason, Fredom and Democracy in Islam. Essential Writings of 'Abdolkarim Soroush, trad. Mahmoud

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Sadri e Ahmad Sadri, Oxford, Oxford University Press, 2000. 128-129, 131-132.

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0 11 de Setembro, os direitos do homem eo dialogo entre as civiliza<;iies, p. 139-147

Mas o drama pessoal de varios destes autores mostra que o dialogo entre as civilizac;oes comec;a pelo dialogo dentro da civilizac;ao, e que este, no caso dos muc;ulmanos, exige uma escolha esclarecida e, muitas vezes, corajosa. 0 dialogo e a propria expressao do respeito pelo outro, e 0 prindpio dos direitos do homem. 0 11 de Setembro representa a negac;ao radical do dialogo e a violac;ao mais desumana dos direitos do homem. Ha que lutar contra os violadores, sem esquecer que e uma parte da luta por esses direitos, os quais, sem ignorar as diferenc;as de escala, sao violados mais ou menos em todos os pafses, e mais que menos nos pafses que mantem a pena de morte, entre eles, notavelmente, a China, os pafses corn xaria e os E.U.A. E ha que criar as condic;oes de possibilidade do dialogo dentro de cada civilizac;ao, que coincidem na pratica, em larga medida, corn as da viabilizac;ao da democracia dentro de cada Estado. Mas os condicionamentos do dialogo intracivilizacional nao sao so politicos, sao tambem economicos - e preciso erradicar a pobreza -, psicologicos - e precisa uma atitude de atenc;ao ao outro e de respeito por ele - e ate teologicos - e preciso repensar a religiao, como procurei mostrar atras -. 0 que o 11 de Setembro veio demonstrar tragicamente foi, mais uma vez, a fragilidade do condicionamento psicologico e a sua dependencia dos outros condicionamentos: coma foi possfvel eles fazerem o que fizeram?

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OBSERVA~OES SUSCITADAS PELA CONFERENCIA

DO PROFESSOR CLAUS ROXIN "AUTORIA MEDIATA ATRAVES DE DOMINIO DA ORGANIZA~AO" (COMUNICA~AO)

Maria da

Concei~ao

Valdagua



OBSERVA<;OES SUSCITADAS PELA CONFERENCIA DO PROFESSOR CLAUS ROXIN SOB RE "AUTORIA MEDIATA ATRAVES DE DOMINIO DA ORGANIZA<;AO", PROFERIDA NA UNIVERSIDADE LUSIADA DE LISBOA EM 6 DE NOVEMBRO DE 2002

Maria da Concei<;:ao Valdagua*

1. Quero, antes de mais, agradecer ao Senhor Professor Claus Roxin a sua confen?ncia, tao cheia de interesse como rica de conteudo, relativa a problemas fundamentais da "Autoria mediata atraves de dorninio da organiza<;:ao" ("Mittelbare Taterschaft kraft Organisationsherrschaft"). Como se sabe, esta figura juridica, que o Prof. Roxin criou e introduziu no debate cientifico ha cerea de 40 anos, resulta da investiga<;:ao em que assenta a sua monumental tese de habilita<;:ao sobre "Autoria e domfnio do facto" ("Taterschaft und Tatherrschaft"), da qual foram ja publicadas 7 edi<;:6es, a primeira das quais em 1963. Quem conhece o Prof. Roxin, sabe que, em seu entender, nao se pode prestar melhor homenagem a urn cientista do que travar corn ele urn dialogo crftico objectivo acerca das teses que sustenta, incluindo aquelas que constituem as traves mestras do respectivo sistema. Isto encorajou-me a formular e a apresentar aqui algumas interroga<;:6es e duvidas que desde ha muito me suscita a figura roxiniana da "autoria mediata atraves de domfnio da organiza<;:ao" (ou, na terminologia inicialmente adoptada pelo Prof. Roxin, na sua referida tese de habilita<;:ao de 1963, "domfnio da vontade atraves de aparelhos de poder organizados", "Willensherrschaft kraft organisatorischer Machtapparate"). Essas duvidas e interroga<;:6es redundam, alias, em larga medida, numa crftica intra-sistematica da concep<;:ao do Prof. Roxin, visto que estou inteiramente de acordo corn ele em que o ponto de partida da delimita<;:ao entre autoria e participa<;:ao criminosa e a ideia de que o autor ao contrario do instigador e do cumplice - constitui a "figura central" ("Zentralgestalt") do acontecimento criminoso e tambem entendo que existe uma terceira forma de autoria mediata, distinta, quer dos casos em que a vontade do executor e dominada pelo homem de tras (Hintermann) atraves

* Universidade Lusiada de Lisboa.

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da indw;ao do executor em erro ou de aproveitamento de urn erro em que ele se encontra ("Willensherrschaft kraft Irrtums"), quer dos casos em que o domfnio da vontade do executor pelo homem de tnis assenta em coac<;:ao exercida sobre o executor ("Willensherrschaft kraft Notigung"). Apesar desta larga concordanda corn o Prof. Roxin, tenho dificuldade em aceitar - fundamentalmente pelas raz6es que adiante muito sumariamente exporei - a sua tese de que as constela<;:6es de domfnio da vontade do executor pelo homem de tras atraves da utiliza<;:ao de urn aparelho de poder organizado correspondem a uma terceira forma de autoria mediata, paralela a autoria mediata fundada em erro do executor e a autoria mediata assente em coac<;:ao exerdda sobre o executor. 2. A minha dificuldade em aceitar a posi<;:ao do Prof. Roxin nesta materia resulta, em primeiro lugar, de me parecer que duas das caracterfsticas fundamentais que ele atribui a figura da autoria mediata atraves de domfnio da organiza<;:ao - a fungibilidade do executor e o funcionamento da organiza<;:ao respectiva "a margem do direito" ("rechtsgelOst") - estao infirmadas de urn elevado grau de indetermina<;:ao, que as torna, em larga medida, inservfveis como factores de delimita<;:ao da autoria mediata. Cfr., a este respeito, o nQ 4, infra. 3. Mas, alem disto - e sobretudo -, parece-me que, nos casos em que a utiliza<;:ao, pelo homem de tras (o chamado "autor de secretaria", "Schreibtischtater"), de uma organiza<;:ao que fundona a margem do direito da lugar ao aparecimento de uma situa<;:ao de autoria mediata, isso nao se deve a fungibilidade do executor, que, de resto, nao e espedfica destes casos, como justamente observa Jakobs. Deve-se, sim, a que, nos casos em referenda - tal como, por exemplo, em todos os outros casos em que o facto tipicamente illcito e cometido no cumprimento de uma ordem -, o executor subordina a vontade do homem de tras a manuten<;:ao da dedsao dele, executm~ sobre a pratica do facto tipicamente illdto. Parece-me que esta subordina<;:ao da manuten<;:ao do desfgnio criminoso do executor a vontade do homem de tras fundamenta uma terceira forma de domfnio do facto pelo homem de tras e, pmtanto, tambem de uma terceira forma de autoria mediata, que deve ser autonomizada, ao lado das formas de autoria mediata por erro do executor e de autoria mediata por coac<;:ao exerdda sobre o executor. Cfr., a este respeito, o nQ 5, infra. 4. Os requisitos de que, por urn lado, ÂŁundone a margem do direito a organiza<;:ao, cuja utiliza<;:ao pelo homem de tras fundamentaria a autoria mediata deste, e, por outro lado, seja fungfvel o executor do crime no ambito dessa organiza<;:ao, sao trazidos a cola<;:ao pelo Prof. Roxin, nesta conferenda hoje proferida, para rejeitar a aplica<;:ao da figura da autoria mediata por domfnio da organiza<;:ao a actividade empresarial. 0 Prof. Roxin observa a este respeito, corn inteira razao, que nao pode assentar-se em que uma empresa, que participa no comerdo jurfdico e esta integrada na ordem jurfdica, fundona

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Observa<;6es suscitadas pela conferencia do Professor Claus Roxin ... , p. 149-154

a margem do direito, pelo menos em termos companiveis aqueles em que actuava, por exemplo, o aparelho estadual alemao no tempo do nacional-socialismo ou em que actuam organiza~oes de tipo mafioso ou organiza~oes terroristas. Por isso mesmo, em seu entende1~ tambem nao se verifica, no ambito das organiza~oes empresariais, uma fungibilidade de executores de crimes em cumprimento de 01路dens emanadas dos dirigentes da respectiva empresa. Mas esta ultima asser~ao, que podera vale1~ por exemplo, em rela~ao ao tipo penal do homiddio, nao e evidente, ou mesmo plausivel, quando se pensa em infrac~oes fiscais, crimes economicos, delitos contra o meio ambiente, branqueamento de capitais, abuso de informa~ao privilegiada (Insiderhandel) e outros delitos, que estao longe de constituirem casos raros, pelo menos no ambito de grandes empresas. Cabe entao perguntar quao distanciada deve estar do direito a actividade de uma empresa e qual o grau de fungibilidade dos executores de crimes - ou de determinadas especies de crimes - que deve exigir-se, para que haja ou possa have1~ no ambito de uma organiza~ao empresarial, casos de autoria mediata atraves do dominio da organiza~ao, no sentido roxiniano Num artigo recente, publicado, em 1999, no livro de homenagem a Griinwald, o Prof. Roxin sustentou que o funcionamento da organiza~ao a margem do direito, coma requisito da existencia de uma autoria mediata por dominio da organiza~ao, so necessita de se referir aos factos incriminados cometidos em autoria mediata e nao a todo o ambito de actua~ao da arganiza~ao. Esta posi~ao, em meu entender, aponta, bem mais claramente do que a conferencia hoje proferida, para a extensao, a actividade empresarial, da figura roxiniana da autoria mediata por dom{nio da organiza~ao. De qualquer modo, parece-me justificado o receio de que os requisitos da fungibilidade dos executares, por urn lado, e do funcionamento da organiza~ao a margem do direito, por outro, nao permitam uma delimita~ao satisfatoria da figura da autoria mediata por dominio da arganiza~ao, nomeadamente no campo da actividade empresarial. 5. Quer no Codigo Penal portugues, quer no Strafgesetzbuch alemao vigentes, respectivamente no art. 26Q e no 搂 25, o autor mediato e descrito coma aquele que executa o facto tipicamente ilicito "por intermedio de outrem" ("durch einen anderen") . Para quem, coma o Prof. Roxin, interpreta esta expressao no sentido da doutrina do dominio do facto (Tatherrschaft) e encara o autor - ao contrario do instigador ou do cumplice - coma a figura central do acontecimento criminoso, parece que seria coerente admitir, ao lado da autaria mediata por erro do executor e da autaria mediata par coac~ao exercida sabre o executor, uma terceira forma de autoria mediata, que abrangesse os casos em que, par urn lado, o homem de tras, ao determinar, directa ou indirectamente, o homem da frente (Vardermann) ao cometimento do crime, se arrogou, expressamente ou de modo concludente, a competencia para, se assim o entendesse, "travar" o homem da frente, dissuadindo-o do seu proposito criminoso, e, por outro lado, o homem da frente, tambem de modo

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expresso ou de forma concludente, reconheceu ou atribuiu ao homem de tnis uma tal competencia. E isto que acontece nos casos de realizac;ao de urn tipo legal de crime no cumprimento de uma ordem, porquanto, se o homem da £rente decide cometer o crime por isso lhe ter sido ordenado, directa ou indirectamente, pelo homem de tras, reconhece a este, forc;osamente, a competencia para lhe dar, em qualquer momento anterior a execuc;ao, uma contra-ordem. E o mesmo se verifica, por exemplo, mutatis mutandis, nos casos em que o homem da £rente toma a resoluc;ao de realizar o tipo legal de crime determinado por uma promessa feita pelo homem da retaguarda ou por a tal se ter comprometido atraves de acordo celebrado corn este, visto que, nesses casos, se o homem de tras retirar a promessa ou denunciar 0 acordo, 0 homem da £rente nao executara o crime (a nao ser, claro, que entretanto se tenha resolvido a comete-lo por outra ou outras razoes, distintas da promessa feita pelo homem de tras ou do ajuste feito corn este, situac;ao em que estara excluida a autoria mediata do homem de tras, quanto a urn eventual crime consumado ). Diferente e o que se passa quando o homem de tras determina a resoluc;ao criminosa do homem da £rente, em termos dos quais resulta que a decisao final sobre a execuc;ao ou nao execuc;ao do facto tipicamente ilicito e da competencia exclusiva do homem da £rente. Pense-se, por exemplo, em todas aquelas situac;oes em que o homem de tras nada ordena ou promete ao homem da £rente, nem tenta obter dele compromisso algum quanto a execuc;ao do crime, limitando-se a convence-lo a praticar o facto. Aqui, nao se vislumbra no homem de tras qualquer especie de dominio do facto (nem, portanto, qualquer forma de autoria mediata). Trata-se de casos de instigac;ao. 6. Tambem Puppe e Jakobs sustentam que os casos em que o homem da £rente faz depender da vontade do homem de tras a manutenc;ao ou nao manutenc;ao da decisao de executar o facto tipicamente ilicito devem ter urn regime diverso dos restantes casos de determinac;ao do homem da £rente, pelo homem de tras, ao cometimento do crime. No entanto, esses penalistas entendem que aqueles casos, em que o homem da £rente subordina a manutenc;ao ou nao manutenc;ao da sua resoluc;ao criminosa a vontade do homem de tras, constituem exemplos - ou mais exactamente: sao os unicos exemplos - de instigac;ao punivel. Esta posic;ao, a meu ver, nao esta certa, pois, por urn lado, trata-se de constelac;oes de dominio do facto pelo homem de tras (e, portanto, de autoria mediata), e, por outro lado, nao vemos razao valida para excluir do campo da instigac;ao todas as restantes situac;oes de determinac;ao de outrem a executar o facto tipicamente ilicito, nas quais nao ha erro do homem da £rente, nem coacc;ao exercida sobre ele, nem subordinac;ao da manutenc;ao do seu designio criminoso a vontade do homem de tras. Essas situac;oes constituem, em grande parte, verdadeiros casos de instigac;ao punivel, abrangidos pela letra e pelo espirito do art. 26Q do Codigo Penal portugues, parte final, e pelo § 26 do Strafgesetzbuch alemao.

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SOBRE LA RESPONSABILIDAD PENAL DE LAS PERSONAS JURIDICAS

Santiago Mir Puig*

I

Antes de la entrada en vigor del CP 1995 en Espafi.a era pacifica la opinion de que solo las personas ffsicas podfan delinquir y solo ellas podfan ser castigadas con penas criminales. 1 Aunque respecto a algunos delitos determinados ya el anterior CP (arts. 344 bis b, 347 bis, 404 bis c, 534 bis b, 546 bis f) prevefa algunas medidas sobre personas jurfdicas que podfan ser graves como la disolucion de la sociedad, el cierre de la empresa o la clausura de sus locales -, el Codigo no inclufa estas medidas en el catalogo de las "penas" ni nadie sostuvo que lo fueran. Tambien se admitfa en el CP la responsabilidad civil subsidiaria de empresas y personas jurfdicas, que como toda responsabilidad civil derivada de delito en Espafia puede declararse en la sentencia penal. Las unicas sanciones previstas para personas jurfdicas por infracciones imputadas a ellas er an de caracter administrativo. La importante Ley 30 I I 1992, de 26 de noviembre, sobre Regimen Jurfdico de las Administraciones publicas y del Procedimiento administrativo comun, vino a generalizar la responsabilidad administrativa de las personas jurfdicas en su art. 130. El CP de 1995 ha previsto la posibilidad de imponer medidas a personas jurfdicas y empresas en su Parte General, en un nuevo Titulo destinado a "consecuencias accesorias", y no, como antes, solo en su Parte Especial y sin calificar ni regular. El nuevo Titulo que el CP dedica a las "consecuencias accesorias" es el VI del Libro I, distinto a los destinados a las penas (Titulo Ill), a las medidas de seguridad (Titulo IV) y a la responsabilidad civil y las costas procesales (Titulo V). El art. 129 CP ha introducido entre las "consecuencias accesorias" un catalogo de medidas que el Juez o Tribunal puede imponer a

* Universidad de Barcelona 1

Sin embargo, algun autor defendia de lege ferenda la introducci6n de la responsabilidad penal plena de las personas juridicas. Asi, especialmente, Zugaldia, Conveniencia politico-criminal e imposibilidad dogmatica de revisar la formula tradicional "societas delinquere non palest", en CPC, n.Q 11 (1980), pp. 70 ss.

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personas juridicas o empresas, aunque solo en los casos expresamente previstos par el CP. Las medidas van desde la suspension de actividades por un maximo de cinco afios, hasta la disolucion de la persona juridica o la clausura temporal o definitiva de la empresa, pasando por la prohibicion de realizar en el futuro actividades mercantiles o negocios y por la intervencion de la empresa. La otra consecuencia accesoria que se preve en el Titulo VI es el comiso de los efectos e instrumentos del delito, asi como de las ganancias obtenidas con el mismo (art. 128). La doctrina dominante ha interpretado la prevision diferenciada de estas consecuencias accesorias en el sentido de que para el CP no son penas, ni medidas de seguridad, ni tampoco responsabilidad civil derivada de delito, 2 pero algun autor defiende que, a pesar de su distinta denominacion, son verdaderas penas, 3 y ultimamente Silva Sanchez las concibe como propias medidas de seguridad.4 La cuestion tiene que ver con la de si el Derecho penal espafiol ha admitido la responsabilidad penal, en sentido estricto, de las personas juridicas y empresas, o si, por el contrario, mantiene en vigor el principio tradicional societas delinquere non potest y se ha limitado a prever determinadas medidas no punitivas, sino unicamente tendentes a impedir la peligrosidad que puedan tener determinadas personas juridicas o empresas. Desde mi punto de vista, no hay duda de que la voluntad del legislador expresada en la ley ha sido la de salir al paso del peligro que pueden representar las personas juridicas y empresas utilizadas para la comision de delitos, sin cuestionar el principio de que el delito es unicamente un hecho humano. Asi

2 Por todos, con especial claridad: A. Jorge Barreiro, en Rodrfguez Mourullo (dtor.), Jorge Barreiro (coord.), Comentarios a! C6digo penal, Madrid, 1997, pp. 360, 364 ss.; Gracia Martin/ /Boldova Pasamar/ Alastuy Dob6n, Las consecuencias jurfdicas del delito en el nuevo CP espafiol, Valencia, 1996, pp. Gracia Martin/Boldova Pasamar/ Alastuy Dob6n, Las consecuencias juridicas del delito en el nuevo CP espafiol, Valencia, 1996, pp. 438, 441, 456; Feijoo, Empresa y delitos contra el medio ambiente (II), en La Ley, 24 mayo 2002, n. 0 5551, p. 3; Octavio de Toledo, Las consecuencias accesorias de la pena de Ios articulos 129 y sirnilares del CP, en Libro-Homenaje a! Profesor Dr. D. Jose Cerezo Mir, Madrid, 2002, pp. 1131 ss. 3 Asf Zugaldia, Las penas previstas en el art. 129 del CP para !as personas juridicas, PJ, n.0 46 (1997, pp. 332 ss ; Delitos contra el medio ambiente y reponsabilidad criminal de !as personas juridicas, en Cuademos de Derecho Judicial, 1997, pp. 226 ss. Le sigue S. Bacigalupo, La responsabilidad penal de !as personas jurfdicas, Barcelona, 1998, pp. 284 ss. En el sentido de la doctrina dominante, con ulteriores citas bibliograficas, ver: De la Cuesta Arzamendi, Personas juridicas, consecuencias accesorias y responsabilidad civil, en A.A.V.V., Homenaje a! Dr. Marino Barbero Santos In memoriam, 2001, pp. 980 s.; Martinez Ruiz, El principio societas delinquere quasi potest, en A.A.V.V., Los Derechos Humanos, Libro Homenaje a! Exco. Sr. D. Luis Portero Garcfa, Granada, 2001, pp. 606, 609. 4 Cfr., con una fundamentaci6n muy interesante que reformula Ios presupuestos de !as medidas de seguridad, Silva Sanchez, J. M' , La responsabilidad penal de !as personas juridicas y !as consecuencias accesorias del art. 129 del C6digo penal, en A.A.V.V., Derecho penal econ6mico, en la serie Manuales de Formaci6n Continuada del C.J.P.J., nP 14, pp. 342 ss., 347. Lamentablemente, este articulo de Silva lleg6 a rnis manos despues de haber presentado yo el presente trabajo como ponencia en !as Jornadas celebradas en octubre de 2002 en Lisboa, por lo que no pude tenerlo en cuenta entonces, pese a compartir mesa con el. Ahora me he tenido que limitar a considerarlo en notas a pie de pagina.

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lo ponen de manifiesto tanto el origen hist6rico de la nueva regulaci6n, como su expresi6n en la ley. Las medidas ahora introducidas - salvo la de intervenci6n de la empresa - fueron propuestas por primera vez en el Proyecto de CP de 1980, entre las medidas de seguridad (arts. 132, 135, 153 Proyecto). Era evidente la voluntad de desvincular esta medidas del binomio delito-pena, para concebirlas como medidas puramente preventivas basadas en la peligrosidad. En la Propuesta Alternativa de Parte General que, bajo mi direcci6n y la de Mufi.oz Conde, present6 el Grupo Parlamentario Comunista como enmienda a la totalidad del Proyecto de 1980, 5 se mantuvo la consideraci6n de medidas de seguridad, pero se advirti6 que la peligrosidad de la empresa o la persona juridica no podia basarse, a diferencia de las demas medidas de seguridad, en la peligrosidad manifestada en la comisi6n de algun delito previa par parte de ellas mismas y en el peligro de que ellas volvieran a cometer delitos. Ello se debia a que seguiamos manteniendo el principio de que ni las empresas ni las personas juridicas podian delinquir. Su peligrosidad debia ser distinta de la peligrosidad de una persona fisica. Debia radicar en la utilizaci6n de las mismas por parte de personas fisicas en alglin delito cometido por estas y en la posibilidad de seguir siendo utilizadas para ulteriores delitos futuros de personas fisicas. En este sentido, el art. 96 de la Propuesta Alternativa precisaba: "No obstante, las medidas de seguridad especialmente previstas al efecto, podran recaer sobre las personas o entidades juridicas a causa de los delitos que sus directivos, mandatarios o miembros cometieron en el ejercicio de las actividades sociales o aprovechando la organizaci6n de tales entes, cuando pueda presumirse fundadamente que seguiran siendo utilizadas para la comisi6n de delitos". La Propuesta de Anteproyecto de CP de 19836 quiso reflejar la diferencia existente entre las medidas imponibles a empresas y personas juridicas y las medidas de seguridad tradicionales trasladando aquellas al apartado destinado a las "consecuencias accesorias", junto al comiso. Hay que sefi.alar que, aunque el comiso se consideraba en el CP anterior como una pena, lo cierto es que no encajaba bien con esta denominaci6n, pues su finalidad no es punitiva7, esto es, imponer un mal que sea sentido como tal y con alguna de las finalidades que pueden darse a una verdadera pena: retribuci6n, prevenci6n general o prevenci6n especial. La finalidad del comiso no es mas que privar al delincuente de los medias por los que cometi6 el delito o de los efectos econ6micos del delito. 8 Pues bien, se trata de una finalidad parecida a la que persiguen las Cfr. Mir Puig I Mui\oz Conde, Propuesta Alternativa de la Parte General del C6digo Penal del Grupo Parlamentario Comunista (PCE-PSUC), CPC, nP 18 (1982), pp. 609 ss. 6 Su art. 138, 1 acogi6 el inciso final del art. 96 de la Propuesta Alternativa mas arriba citado: "( ... ) cuando pueda deducirse fundada y objetivamente que seguiran siendo utilizadas para la comisi6n de delitos." 7 En contra de lo que opina Zugaldfa, CDJ 1997, p. 228. 8 Si la privaci6n del arma con el que se cometi6 el delito es evidentemente preventiva, la privaci6n de Ios beneficios obtenidos, ademas de tener la finalidad preventiva de suprimir el motivo del delito cuando es dicho beneficia, tiene tambien el sentido de eliminar una situaci6n creada antijuridicamente y es coherente con el principio de que nadie ha de poder beneficiarse de su delito. 5

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medidas previstas por el art. 129 CP para empresas y personas juridicas: privar del instrumento peligroso que representa la persona juridica o la empresa, o controlar su uso. 9 Las "consecuencias accesorias" que el art. 129 CP permite imponer sabre personas juridicas o empresas tienen de comun una naturaleza no punitiva, sino puramente preventiva. Tanto unas como otras se fundan en la idea de peligrosidad. La diferencia es que las medidas de seguridad se aplican a personas que han delinquido y que encierran el peligro de volver a delinquir, mientras que las consecuencias accesorias se aplican a cosas (armas, efectos del delito, beneficios obtenidos) o a organizaciones incapaces de delinquir pero que son peligrosas por路que favorecen la comisi6n de delitos a personas fisicas que los utilizan. La peligrosidad es el presupuesto comun de las medidas de seguridad y las consecuencias accesorias, pero en estas no es la peligrosidad de una persona que puede delinquir, sino la peligrosidad de un instrumento. 10 El propio art. 129, 3 orienta en este sentido puramente preventivo la finalidad de las medidas que preve: "Las consecuencias accesorias previstas en este articulo estanin orientadas a prevenir la continuidad en la actividad delictiva y los efectos de la misma".U No se exige, en cambio, ninguna actuaci6n por parte de la persona juridica o empresa que la haga merecedora de la medida y sirva de medida de la gravedad de esta - como deberia hacer si las medidas previstas fueran verdaderas penas -. La via elegida por el CP espafiol de 1995 tiene la ventaja de que evita las importantes dificultades dogmaticas que encuentra la imposici6n de verdaderas penas a personas juridicas y empresas, pero su concreta formulaci6n adolece en parte de ciertos limites y en parte puede limitar excesivamente su eficacia preventiva. 12 9 Cfr. Mir Puig, Derecho penal, PG, 6" ed., Barcelona, 2002, Lee. 34/63. De acuerdo: A Jorge Barreiro, Comentarios cit., p. 365; De la Cuesta, op. cit., p. 977; Martinez Ruiz, op. cit., p. 606. Prats Canut, en Quintero (Dtor.), Valle (coord.), Comentarios al nuevo C6digo penal, 1996, p. 629, denomina incluso alas medidas del art. 129 "modalidad de comiso", afirmando que "su interpretaci6n habra de hacerse de conformidad con las reglas generales del comiso" (pag. 624). 10 En un sentido basicamente coincidente Gracia Martin, Responsabilidad de directivos, 6rganos y representantes de una persona juridica por delitos especiales, Barcelona, 1986, p. 104, hablaba ya aqui de "peligrosidad de la cosa" coma "peligrosidad objetiva de la propia persona juridica", 拢rente a la peligrosidad de un sujeto, "subjetiva", que es presupuesto de las medidas de seguridad. Tambien ahora en Gracia/Boldova/ Alastuey, Las consecuencias juridicas cit., p. 457. En sentido parecido, Feijoo, Empresa y delitos contra el media ambiente (II), en La Ley, 24 mayo 2002, n.Q 5551, p. 3. Tambien habla de "peligrosidad objetiva" Octavio de Toledo, Las consecuencias accesorias ... cit., p. 1132. 11 Coma seftala Silva Sanchez, La responsabilidad penal... cit., pp. 348 s., este criteria de prevenci6n especial "no se proyecta solo sabre la persona o personas fisicas que hayan cometido el hecho, sino tambien sabre otras personas fisicas que puedan hacerlo en el futuro. En concreto: cabe que no exista ningtin riesgo de que la persona fisica autora del delito cometido vaya a utilizar ese instrumento peligroso que es la estruchtra de la persona juridica dice "fisica", pero sin duda quiere decir "juridica" - (por ejemplo por haber fallecido)". Esto distanciaria estas medidas del comiso. 12 Recoge un elenco de defectos de la regulaci6n del art. 129 CP Octavio de Toledo, Las consecuencias accesorias ... cit., pp. 1141 ss.

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A diferencia de lo que ocurria en el Proyecto de 1980, el CP actual no exige expresamente ninguna conexi6n entre el delito cometido por la persona ffsica y la persona juridica. El art. 132 de aquel Proyecto preveia que la imposici6n de las medidas tuviera lugar "a causa de los delitos que sus directivos, mandatarios o miembros cometieren en el ejercicio de las actividades sociales o aprovechando la organizaci6n de tales entes", y el art. 153 del mismo Proyecto concretaba mas, lirnitando la imposici6n de las medidas a los "delitos contra el orden socio-econ6mico o contra el patrimonio cometidos en el ejercicio de la actividad de sociedades o empresas o utilizando su organizaci6n para favorecerlos o encubrirlos ..." Estas conexiones del delito con la persona juridica o empresa han dejado de requerirse en el CP 1995 y ello es criticable. 13 Por otra parte, en cambio, la actual concepci6n de las medidas del art. 129 CP limita demasiado su alcance practico. Por de pronto, al caracterizarse coma consecuencias accesorias parecen presuponer la comisi6n de un delito por parte de una persona fisica, lo que puede impedir su imposici6n cuando serian mas necesarias, esto es, cuando se desconocen los responsables fisicos. 14 En segundo lugar, a diferencia de lo que ocurria en el Proyecto de 1980 y en la Propuesta de Anteproyecto de 1983, solo se pueden imponer en los no muchos casos en que asi se establece expresamente en la Parte Especial dentro de los cuales no estan con caracter general los delitos contra el patrimonio -. Aunque el art. 129 se prevea en la Parte General, no se ha conseguido ofrecer un media general de combatir la peligrosidad de las personas juridicas o empresas utilizadas para la cornisi6n de cualquier delito que pueda resultar favorecido por aquellas organizaciones. En el fondo la situaci6n no es cualitativamente tan distinta de la que existia en el CP anterior: como en el tinicamente se preven determinadas medidas para determinados delitos - aunque es cierto que se ha ampliado el ntimero de delitos en los que pueden aplicarse las medidas. Algunos de estos inconvenientes pueden reducirse a traves de una adecuada interpretaci6n del art. 129 CP. 15 Por lo que se refiere a la falta de exigencia de una conexi6n de las conductas delictivas de las personas fisicas con la actividad de la persona juridica o empresa o con su beneficia, puede entenderse requerida, t<icitamente, por la finalidad que el n.Q 3 del art. 129 otorga a las medidas. Si estas "estaran orien-

13

Asf Jorge Barreiro, Comentarios cit., pp. 364 s. Cfr. Silva Sanchez, Responsabilidad penal de !as empresas y de sus 6rganos en Derecho espaiiol, en Silva (ed. espaiiol), Schiinemann/Figueiredo Dias (coords.), Fundamentos de un sistema europeo del derecho penal, Barcelona, 1995, p. 363; Garcfa Aran, Alguna consideraciones sobre la responsabilidad penal de !as personas juridicas, en A. A. V-V., El nuevo CP: presupuestos y fundamentos, Libro Homenaje a! Prof. Dr. D. Angel Torfo L6pez, Granada, 1999, p. 326; Octavio de Toledo, Las consecuencias accesorias ... cit., p. 1143. 15 Prats Canut, Comentarios cit., p. 624, encuentra aplicables Ios principios Jimitadores desarrollados por la jurisprudencia para el comiso (del que considera !as medidas del art. 129 una modalidad ), como son Ios de legalidad, acusatorio, proporcionalidad y conexi6n entre el delito y la consecuencia accesoria. 14

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tadas a prevenir la continuidad en la actividad delictiva y los efectos de la misma", habra que comprobar que esta actividad delictiva (de la persona fisica) guarde relacion con la actividad de la persona juridica, por lo menos en el sentido de que esta favorezca aquella otra 0 sus efectos. En cuanto a la necesidad de que exista un delito cometido por una persona fisica para poder imponer las medidas a la empresa o persona juridica, puede atenderse a la propuesta de un sector doctrinal que no exige como presupuesto de las medidas la efectiva imposicion de una pena a una persona fisica, sino solo la existencia de un hecho tipicamente antijuridico. 16 Ello permitiria imponer las medidas aunque el responsable fisico no fuera personalmente imputable (culpable). Tambien convendria entender que noes imprescindible que se haya podido identificar a la persona fisica autora del hecho o que se haya podido probar su autoria. Deberia bastar que se hubiese probado suficientemente la comision por alguien de un hecho penalmente antijuridico relacionado con la actividad de la empresa o persona juridica en los terminos que permite exigir el art. 129, 3 CP. Por supuesto, ello presupone una representacion procesal propia para la empresa o persona juridica en los terminos que exige el principio acusatorio, que en cualquier caso es necesaria. 17 En cualquier caso, hay que subrayar que son aplicables a estas medidas accesorias los principios constitucionales, materiales y procesales, a que debe someterse toda intervencion del Estado privativa de derechos, entre los cuales cuenta el principio de proporcionalidad en sentido amplio (que incluye las exigencias de necesidad, idoneidad y proporcionalidad en sentido estricto )18 y el conjunto de garantias de que debe rodearse todo proceso penal. Estamos ya en condiciones de efectuar un primer balance: El Derecho penal espafiol sigue anclado en el principio tradicional segt.in el cual solo las personas fisicas pueden cometer delitos y solo ellas pueden ser castigadas con penas criminales en sentido estricto. Sin embargo, el CP actual incluye, junto a las penas y las medidas de seguridad, consecuencias accesorias constituidas por el comiso y por una serie de medidas aplicables a personas juridicas y empresas. Estas medidas no son punitivas, sino meramente preventivas: tienen como finalidad el peligro que pueda suponer la persona juridica o empresa de que se continue la actividad delictiva de personas fisicas o sus efectos. Tanto en su

16 En este sentido Gracia/Boldova/ Alastuy, Las consecuencias juridicas cit., pp. 461 s.; Zugaldfa, CDJ 1997, p. 239; De la Cuesta Arzamendi, op. cit., p. 981; Martfnez Ruiz, op. cit., pp. 594 s. Tambien se muestra favorable Silva Sanchez, La responsabilidad penal de !as personas jurfdicas ... cit., pp. 350 s., pero destaca la dificultad procesal que surge cuando se desconozca la identidad del autor individual o este haya fallecido, si no se bha llegado al momento de la sentencia y procede el sobresimiento. 17 Cfr. Martfnez Ruiz, op. cit., p. 602. 18 Silva Sanchez, La responsabilidad penal... cit., p. 358, recoge el Auto de la AP Barcelona (secc. 3g) de 25 de abril de 2000, que estima un recurso de queja contra la adopcion, con canicter cautelar, de la medida de suspension de actividades de una sociedad, asf como la de clausura de locales o establecimientos.

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origen legislativo como en su sentido actual, estas medidas se hallan mas proximas alas medidas de seguridad que alas penas.19 No presuponen que la persona jurfdica o empresa haya cometido ningtin delito, por lo que no tropiezan con el obstaculo de que en la actuacion de una persona jurfdica o empresa faltan todas las exigencias dogmaticas derivadas del principio de culpabilidad personal. Tampoco suponen el reproche etico-social de la pena. Sin embargo, en cuanto implican afectacion de derechos - como las medidas de seguridad -, deben sujetarse a los lfmites constitucionales de la intervencion coactiva del Estado, como el que impone el principio constitucional de proporcionalidad, y a los principios que rigen el proceso penal acusatorio.

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Ante la cuestion, hoy tan debatida, de si las personas jurfdicas y I o empresas deben ono responder penalmente, el CP espafiol de 1995 ha optado por una vfa peculiar: mantiene en pie el principio societas delinquere nee puniri potest, pero admite - como el CP anterior - que se impongan a las personas jurfdicas y empresas importantes "consecuencias accesorias" en la sentencia penal. Segtin la doctrina dominante tales consecuencias accesorias no son penas, ni tampoco medidas de seguridad como las impuestas a personas ffsicas, pero

19 Incluso puede decirse que materialmente constituyen una clase especial de medidas de seguridad, siendo atendible la fundamentaci6n que formula Silva Sanchez, La responsabilidad penal de las personas juridicas ... cit., pp. 343 ss. Este autor considera suficiente como presupuesto de una medida de seguridad la lesion tipica objetiva, sin necesidad de ninglin elemento subjetivo de imputaci6n (pp. 344 s). Estoy completamente de acuerdo de lege ferenda, pero es cierto que para las medidas de seguridad que asi denomina el CP exige como presupuesto la comisi6n por el sujeto de "un hecho previsto como delito" (art. 95, 1, 1') y "la probabilidad de comisi6n de nuevos delitos" por parte del mismo sujeto (art. 95, 1, 2'), y el termino "delito" significa en su uso legal un hecho tipicamente antijuridico. Para el mismo hacen falta Ios presupuestos subjetivos correspondientes (acci6n voluntaria, dolo o imprudencia, y eventuates elementos subjetivos adicionales), pero tambien una ejecuci6n material activa u omisiva que una persona juridica no puede realizar por si misma (el mismo Silva lo reconoce cuando afirma en la pag. 340 que el injusto de la persona juridica "no tiene nada que ver con un injusto personal, ni siquiera con la antijuricidad objetiva de un hecho concreto", sino mas bien en un "estado de cosas", "una realidad objetivamente favorecedora de la comisi6n de delitos por parte de sus integrantes", una forma de "conducci6n de la vida juridicamente desaprobada"). Estos obstaculos desaparecen si atribuimos alas medidas previstas para personas juridicas una naturaleza de medidas de seguridad especiales, sometidas a presupuestos que no incluyen la propia comisi6n de un tipo de injusto. Desde luego, el CP no somete a las medidas para personas juridicas a dicho presupuesto, con lo que diferencia el regimen aplicables a las mismas del que preve para las medidas de seguridad para personas fisicas. Facilita, por tanto, la distinci6n de una y otra clase de medidas, aunque tampoco impide considerarlas dos especies de un mismo genero. De todos modos, si creo necesario tambien para las medidas para personas juridicas, como equivalente funcional del presupuesto del delito previo exigido para las medidas para personas fisicas, que pueda imputarse suficientemente a la persona juridica o empresa algtin delito cometido por una persona fisica, aunque Ios criterios de imputaci6n deban ser distintos a Ios que se utilizan en el delito de la persona fisica. Ver sobre esto lo que digo en el texto mas adelante, en el apartado II.

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tiene de comun con estas ultimas que no se basan en la culpabilidad, sino en la peligrosidad - aunque no sea peligrosidad de una persona flsica, sino de personas juridicas o empresas -. Las consecuencias accesorias no significan, pues, responsabilidad penal en el sentido estricto de imposicion de penas, pero si en el sentido amplio en que tambien las medidas de seguridad pueden verse coma un forma de responsabilidad penal. La formula espafiola supone, pues, una via intermedia entre la de exclusion de aplicacion del Derecho penal a las personas juridicas y I o a las empresas, y la de imposicion de penas a las mismas por imputacion a ellas de la comision de delitos. Coma tal via intermedia, evita las dificultades que entrafia, desde el principio de culpabilidad personal, la imputacion de delitos y la prevision de verdaderas penas para personas juridicas y empresas, pero tampoco tiene todas las ventajas que alegan los partidarios de derogar el principio societas delinquere nee puniri potest. La doctrina dominante en Espafia, que sigue anclada en el principio de culpabilidad estrictamente personal, no se opone en principio a la imposicion de las medidas previstas en el art. 129 CP, porque no las ve coma penas. En cambio, los partidarios de imponer verdaderas penas a las personas juridicas y I o empresas consideran insuficiente la formula del art. 129 CP. Desde luego, si no hubiese ninguna razon de peso para negar la capacidad de delinquir de las personas juridicas y de las empresas, no habria necesidad de buscar una via distinta a la de imponerles penas en sentido estricto. Pero si existen razones muy importantes que aconsejan limitar al ser humano la capacidad de cometer delitos y de ser castigado con penas criminales. Tales razones no son solo dogmaticas, sino sabre todo politico-criminales. Es evidente que una persona juridica, y mas aun una empresa carente de personalidad juridica, no puede realizar propiamente ninguno de los elementos que exige la dogmatica de la teoria del delito, tal coma ha sido elaborada en los paises de tradicion continental-europea, puesto que esta teoria del delito empieza por ver en el delito una conducta humana y la persona juridica no puede efectuar ninguna conducta humana. Ni siquiera puede actuar por si misma, por lo que no solo es incapaz de aportar los elementos subjetivos y personales del delito (desde la voluntariedad del comportamiento hasta la imputabilidad del sujeto, pasando por el dolo), sino que tampoco puede incidir efectivamente en el mundo exterior influyendo en los procesos causales de la lesion del bien juridico tipico. Sin embargo, la teoria del delito que ha elaborado nuestra dogmatica no es la unica posible desde un punto de vista logico. No hay un concepto ontologico de delito. Del mismo modo que hemos desarrollado un concepto de delito coma obra del hombre, podemos construir otro concepto de delito en el que tambien tengan cabida actuaciones de colectivos y la imputacion a una persona juridica de la actuacion de determinadas personas flsicas. Ello es logicamente posible. Pero plantea importantes problemas polfticocriminales. El Derecho administrativo, al atribuir capacidad de infraccion a las personas juridicas y al prever sanciones para ellas, obliga a ampliar el concepto de infraccion administrativa mas alia de los limites del comportamiento

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humano y a entender el concepto de sancion por dicha infraccion de un modo tambien distinto al de imponer sufrimiento al autor de la misma. Si el Derecho administrativo sancionador estuviera sometido a los mismos lfmites polfticojuridicos que el Derecho penal, no habria razon para no extender las penas criminales a las personas juridicas del mismo modo que se hace con las sanciones administrativas. El Tribunal Constitucional espafiol ha repetido en numerosas ocasiones que los principios limitadores del Derecho penal son aplicables al Derecho administrativo sancionad01~ pero el mismo Tribunal se ha visto obligado a reconocer que la aplicacion de los principios del Derecho penal al Derecho administrativo requiere su adaptacion a la distinta naturaleza de ambas ramas del Derecho. Asi, los principios de personalidad de la sancion y de responsabilidad subjetiva deben aplicarse al De路echo administrativo de forma que permitan la responsabilidad de las personas juridicas, como ya decidio la STC 246/1991, Fundamento juridico 2. La fundamental Ley 30/ 1992, de 26 de noviembre, de Regimen Juridico de las Administraciones Publicas y del Procedimiento Administrativo Comun, admitio expresamente la responsabilidad administrativa de las personas juridicas (art. 130. 1) al mismo tiempo que omitia referirse al principio de culpabilidad y unicamente consideraba a la "intencionalidad" como criterio "para la graduacion de la sancion". 20 Diferencias como estas en la "aplicacion" de los principios del Derecho penal al Derecho administrativo parten del reconocimiento de un distinto significado polftico-juridico para ambos sectores del Derecho. No se trata de reproducir aqui la larga discusion sobre la diferencia que ha de existir entre el Derecho penal y el Derecho administrativo sancionador. Es de sobras sabido que la disputa entre quienes defendian una diferencia cualitativa entre ambos sectores y quienes solo veian posible distinguirlos con un criterio cuantitativo, se zanjo por la doctrina dominante a favor de estos ultimos. Es correcto, en sentido, renunciar a un criterio cualitativo como, por ejemplo, el de la lesion o puesta en peligro de bienes juridicos, como definidor del delito frente a la infraccion administrativa, que apareciera entonces como mera infraccion del orden general. Lo que debe diferenciar al De路echo penal es ciertamente algo cuantitativo: la mayor gravedad de la pena criminal. Sin embargo, a mi juicio, esta mayor gravedad no ha de verse solo como mayor cantidad de sancion. En Espafia es verdad que solo la pena criminal, y no la sancion administrativa, puede implicar privacion de libertad, pero en cambio hay multas administrativas economicamente mucho mas elevadas que algunas multas penales. La mayor gravedad de la pena criminal ha de verse entonces en terminos simb6licos, por razon del reproche etico-social mucho mayor que

2 掳 Cfr. Bajo Fernandez, La responsabilidad penal de !as personas juridicas en el Derecho administrative espafiol, en Mir Puig/Luz6n Pefia (coords.), Responsabilidad de !as empresas y sus 6rganos y responsabilidad por el producto, Barcelona, 1996, pp. 26, ss., 29. Feijoo, Empresa y delitos contra el media ambiente (I), en La Ley, 23 mayo 2002, n.Q 5550, p. 4, argumenta contra la posibilidad de extender al Derecho penal la admisi6n de la responsabilidad administrativa que efectu6 la citada STC 246/1991.

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conlleva una condena penal. Un ejemplo ilustrara lo que quiero decir: si un ministro del Gobierno es condenado penalmente por haber cometido un delito, es evidente que debe dimitir, porque nadie entenderia que un "delincuente" convicto pudiera integrar el Gobierno del pafs; en cambio, ningun ministro debe dimitir por el hecho de que se le haya impuesto una sancion administrativa (aunque consista en una multa de importe mas elevado que ciertas multas penales). Esta especial gravedad del reproche etico-social que lleva consigo la imposicion de una pena criminal es lo que justifica la sofisticada construccion de la teoria del delito en nuestros pafses. No son solo la coherencia conceptual ni exigencias sistematicas las que explican las bases de la teorfa del delito, sino ante todo la conveniencia politico-criminal de delimitar de la forma mas precisa y atenta a los principios constitucionales los presupuestos de la reprobacion que implica la pena. Si esta determina un grave reproche al que la sufre, ha de presuponer la realizacion de un hecho que permita dicho reproche al sujeto. Ello es la base del principio de culpabilidad, en sentido amplio, y de las distintas exigencias que supone en la teorfa del delito: una conducta voluntaria de una persona, imputable objetivamente, subjetivamente y personalmente a dicha persona, a titulo de autor o de partfcipe. El principio de personalidad de la pena es tambien consecuencia del principio de culpabilidad: solo puede imponerse una pena al culpable del hecho, porque solo al culpable puede reprocharsele el hecho y solo el merece la reprobacion de la pena. Pues bien, imponer una pena a una persona jurfdica o a una empresa es extender el grave reproche de la condena penal a quien no puede reprocharsele el hecho como autor o partfcipe culpable del mismo. Es evidente que una persona jurfdica es una creacion del Derecho incapaz de actuar por sf misma, carente de conciencia y de cualquier sentido de responsabilidad. l Como podria reprocharse a una pura creacion jurfdica un hecho que no puede haber decidido ni realizado ni evitado? La persona jurfdica necesita de alguna persona ffsica que acme en su nombre. Es lo que ocurre en el caso del recien nacido cuyo patrimonio administran sus padres, o del absolutamente incapaz representado por un tutor: aunque el menor y el incapaz son personas para el Derecho, tienen capacidad jurfdica y, por tanto, pueden tener derechos y obligaciones, no tienen capacidad de obrar y necesitan para actuar en Derecho la intervencion de sus padres o tutor. Es cierto que una persona jurfdica aparece como parte en los contratos que suscribe, por ejemplo: ella es la que aparece como vendedora de un bien de su propiedad, y en este sentido se dice que es la persona jurfdica la que vende dicho bien. Pero lo mismo sucede en el recien nacido o en el incapaz profundo que aparece como vendedor de uno de sus bienes, y no obstante quien verdaderamente ha de efectuar los actos reales necesarios para vender son los padres o el tutor. Igualmente, cuando la persona jurfdica vende tiene que hacerlo necesariamente a traves de la actuacion de sus administradores o personas apoderadas. Pues bien: del mismo modo que en el caso del padre que determina el alzamiento de los bienes del recien nacido, serfa absolutamente injusto reprochar al bebe la comision del delito,

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porque el nilio no ha hecho nada de lo que se le pueda culpar, tambien cuando el administrador de una persona jurfdica produce el alzamiento de bienes de esta serfa injusto reprochar a la misma la comision del delito cuando esta se debe unicamente a la actuacion del administrador. En el Derecho privado, como en el Derecho administrativo sancionador, sf se imputa al menor, al incapaz o a la persona jurfdica lo que hacen en su nombre sus representantes: la venta materialmente efectuada por estos se considera jurfdicamente realizada por sus representados, el impago de impuestos que "debfa pagar" el recien nacido o la persona jurfdica se imputa a estos, aunque evidentemente quien de hecho debfa decidir el pago y no lo hizo fue el padre o el administrador. Pero ni los contratos suscritos a nombre de los representados, ni las sanciones administrativas que se les imponen implican un reproche etico-social de su conducta como la pena. La responsabilidad civil o administrativa del recien nacido no es una responsabilidad personal por lo que el ha hecho, sino responsabilidad por el hecho de otro, por el hecho de su representante legat pero esta clase de responsabilidad "vicaria" es admisible en estos ambitos porque no conlleva una reprobacion personal del recien nacido. Lo mismo cabe decir de la responsabilidad civil o administrativa de una persona jurfdica. En cambio, serfa inadmisible someter al recien nacido al reproche de una condena penat y lo mismo ha de valer para la persona jurfdica. Es verdad que la injusticia que supone reprochar al menor algo que solo ha hecho su padre recae sobre un ser humano, el menor, y ello resulta mas inadmisible que la injusticia que supone reprochar a un ente carente de realidad humana lo que ha hecho su administrador. Parece mas grave ser injusto con un ser humano que con una entidad carente de sentimientos. Sin embargo, las personas jurfdicas pueden tener valor para la sociedad o para personas ffsicas ajenas al delito. Es obvia la importancia que tienen para la sociedad las personas jurfdicas de Derecho publico, como el Estado o las entidades locales. Afectarfa al valor politico de estas instituciones fundamentales culparlas de las actuaciones delictivas que en su nombre cometan personas ffsicas. LC6mo puede aceptarse que los delitos cometidos por los politicos que dirigen el Estado o las Corporaciones locales permiten considerar "delincuentes" a estas instituciones? Los unicos delincuentes son quienes han abusado del poder. Muchas legislaciones que admiten la responsabilidad penal de las personas jurfdicas privadas, no se atreven a dar el paso de extender dicha responsabilidad a las personas jurfdicas de caracter publico. 21

21 Asi, en Ios E.E.U.U., el pais mas importante que admite la responsabilidad penal de !as personas juridicas, esta se limita a !as empresas (cfr. LaFave, Criminal Law, 3~ ed., Saint Louis, Minn., 2000, pp. 272 ss.), y el Model Penal Code, en su secci6n 2.07 (4) (a), excluye a !as corporaciones publicas. En Holanda, pais pionero en la Europa continental en admitir !as responsabilidad penal de personas juridicas, la jurisprudencia ha exceptuado a !as personas juridicas de caracter publico: cfr. Vervaele, La responsabilidad penal de y en el seno de la persona juridica en Holanda .. ., en Rev. Derecho Penal y Criminologia, segunda epoca, n .2 1 (1998), pp. 180 s. Tambien en Francia se excluye de responsabilidad penal a! Estado (art. 121-2 CP).

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Tambien es evidente el valor que tienen las personas juridicas para sus socios, para sus administradores, para sus directivos y para los trabajadores de la misma, especialmente cuando la imagen social de la empresa vaya asociada al nombre de la persona juridica. La reprobaci6n juridico-penal de la persona juridica, su descalificaci6n etico-social, alcanza en mayor 0 menor medida a todas estas personas fisicas. Ello es injusto para quienes no tengan nada que ver con el delito cometido. Mas evidente es aun que imponer una pena criminal a una empresa desprovista de personalidad juridica supone desconocer por completo el principio de personalidad de la pena. Aqui no puede decirse, ni siquiera en el sentido juridico-privado o administrativo, que la empresa "hace" ("vende", "impaga sus impuestos") lo que hacen las personas fisicas que la gestionan. Y, no obstante, quienes defienden la intervenci6n penal en el mundo empresarial se clan cuenta de que generalmente es mas importante la realidad econ6mica de la empresa que cual sea la titularidad juridica de la misma. Asf, de poco sirve imponer la disoluci6n de una persona juridica si la empresa de la que es titular puede seguir actuando bajo la titularidad de una nueva persona juridica: nada mas facil que sustituir una persona juridica por otra. Los partidarios de incluir a la realidad de la empresa en el ambito de la responsabilidad penal dirigen su atenci6n a la realidad social, a la realidad colectiva de la empresa, tanto 0 mas que a la pura forma juridica constituida por la persona juridica. Pero ello supone una vuelta a la responsabilidad colectiva que rigi6 en momentos de desarrollo hist6rico que creiamos superadas. Es cierto que la sociedad actual sigue imputando responsabilidades a colectivos, como cuando se culpa a "los inmigrantes", a "los moros", a "los judios" a "los norteamericanos" 0 a cualquier otro grupo nacional, etnico 0 social. Es innegable esta tendencia social a la generalizacion. Y tambien es evidente que las empresas, sobre todo las que tienen una imagen fuertemente implantada en la vida social, son valoradas positiva y negativamente y hechas responsables de su actuaci6n empresarial. Pero igual como responsabilizar a toda una etnia por lo que hagan algunos o muchos de sus integrantes es injusto para los integrantes de dicha etnia que no han hecho lo que se imputa al colectivo, tambien es injusto culpar a todos los socios de una gran empresa por lo que hagan algun directivo o algunas otras personas dentro de la empresa. La responsabilidad colectiva suele meter en el mismo saco a justos y pecadores. Las reflexiones anteriores conducen al siguiente dilema: si la responsabilidad penal, en sentido estricto, de las personas juridicas se fundamenta en el hecho de que tienen personalidad juridica y actuan a traves de sus representantes, ello supone reprochar gravemente a una persona, la persona juridica, lo que ha hecho otra, la persona fisica que acrua en su nombre; y si se fundamenta en la realidad social de la empresa, supone una forma de responsabilidad colectiva que extiende el grave reproche penal a todos los integrantes de la empresa aunque solo algunos sean los culpables del delito. En el primer caso se evitan los problemas que implica la responsabilidad colectiva, pero se cae en otra forma de responsabilidad no personal: una responsabilidad vicaria, f

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por el hecho de otro (en el ambito anglosajon se reconoce expresamente que se trata de una vicarious liability). Y si se quiere escapar a esta clase de responsabilidad, se cae en la responsabilidad colectiva, que tampoco es personal. Ni una ni otra especie de responsabilidad son admisibles cuando se trata del grave reproche etico-social que caracteriza a la pena criminal. Por otra parte, la primera fundamentacion deja fuera la realidad de la empresa para fijarse en una forma juridica que puede no existir (como sucede en las empresas pertenecientes a una persona fisica), mientras que la segunda fundamentacion deja de lado la personalidad juridica del colectivo. Ello no significa que las dos vias de fundamentacion seiialadas no puedan ser admisibles para legitimar la imposicion de medidas preventivas desprovistas del sentido de reproche personal propio de la pena, aunque tales medidas se impongan por un juez penal en el marco de un proceso penal (como es el caso de las "consecuencias accesorias" previstas por el art. 129 CP espaiiol). Del mismo modo que las medidas de seguridad previstas para personas fisicas peligrosas no estan sujetas al principio de culpabilidad porque no suponen una reprobacion etico-juridica del sujeto, tampoco unas medidas puramente preventivas basadas unicamente en la peligrosidad objetiva de la persona juridica 0 la empresa tienen por que requerir la culpabilidad de estas, puesto que tampoco implican ningun sentido de reproche dirigido a las mismas. No obstante, tambien estas medidas preventivas tienen suficiente gravedad para requerir alguna forma de imputacion a la persona juridica o a la empresa del delito cometido por una o varias personas fisicas en su seno. Asi como las medidas de seguridad en sentido estricto solo son admisibles en Derecho penal cuando son postdelictuales, esto es, cuando la peligrosidad del sujeto se ha manifestado ya en la realizacion por el sujeto de un injusto penal por lo menos objetivamente imputable, tambien las medidas preventivas para personas juridicas 0 empresas deben presuponer que la peligrosidad objetiva de estas se ha manifestado en algun hecho tipicamente antijuridico que de algun modo pueda imputarse a dichas personas juridicas o empresas. Que el injusto penal se haya cometido por los administradores o apoderados de la persona juridica actuando en nombre de esta, o que pueda imputarse a la dinamica colectiva de la empresa, son criterios de imputacion insuficientes para el reproche etico-social propio de la pena, pero necesarios para la imposicion en via penal de medidas preventivas sobre la persona juridica o la empresa (como tambien son necesarios para imponer a las mismas sanciones administrativas).22 No puedo entrar aqui a concretar hasta que punto es utilizable el criteria de la responsabilidad vicaria por la actuacion de un organo de la persona juridica y en que medida hay que acudir a la responsabilidad colectiva de la empresa, aunque creo que es inevitable combinar ambos puntos de vista. Solo teniendo en cuenta la perspectiva social real de la empresa se pueden incluir

22 Sobre Ios presupuestos necesarios para la irnputaci6n a la persona juridica o empresa ver Feijoo, Empresa y delitos contra el medio ambiente (II), La Ley cit., pp. 4 ss.

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entre las conductas que pueden exigir medidas preventivas sobre la empresa las que, sin haber sido realizadas por 6rganos de la persona juridica, se llevan a cabo por otras personas en el seno de la empresa con el fin de producir un beneficia a la misma. Puesto que, segun mi planteamiento, no se trata de fundamentar la imposici6n de penas en sentido estricto, sino de medidas puramente preventivas, lo que verdaderamente importa es la peligrosidad real del sistema social constituido por la empresa. No nos hace falta aqui encontrar una culpabilidad personal que pueda imputarse a la persona juridica o empresa: la actuaci6n de un 6rgano de la persona juridica ya no es necesaria como elemento que aporte la culpabilidad personal (del representante) imputable a la persona juridica; como tampoco es imprescindible el criteria juridico-privado de la representaci6n de la persona juridica para imputarle la conducta de una persona fisica que acttia en su beneficia. Basta que la conducta delictiva de una persona que acttia en el marco de la empresa pueda verse como propia de esta, de su dinamica empresarial colectiva, y para ello puede ser decisivo el criteria del beneficia econ6mico de la empresa, finalidad esencial de esta. Coincido, pues, en parte, con Schiinemann cuando cree necesaria y legitima la intervenci6n del Derecho penal frente a personas juridicas y empresas por raz6n de la especial peligrosidad que tiene una empresa cuando existe en ella una actitud criminal colectiva11 • El sistema empresarial es, como todo sistema, autopoyetico, en el sentido de la teoria de los sistemas de Luhmann, y tiende a su propio interes, que en este caso es el de la obtenci6n del maxima beneficia econ6mico posible, a traves de sus propias normas, que pueden llevar a sus integrantes a infringir normas legales que por si solos no infringirian. Cuando hechos delictivos cometidos dentro de una empresa aparecen como manifestaci6n de una actitud criminal colectiva, es necesario tomar medidas que neutralicen su peligrosidad, teniendo en cuenta en especial que resulten id6neas para hacer econ6micamente gravosa la comisi6n de delitos, de modo que no resulte rentable desde un analisis econ6mico de caste-beneficia (que es el fundamental en la 16gica empresarial) 23 • Tambien comparto su convicci6n de que de que tales medidas no pueden basarse en la culpabilidad, porque a una entidad colectiva siempre se la hace responsable por la culpa de otra persona1124 • El fundamento de la imposici6n de medidas sabre personas juridicas 11

11

23 Cfr. Schiinemann, La punibilidad de !as personas juridicas desde una perspectiva europea, en A.A.V.V., Hacia un Derecho penal econ6mico europeo, Jomadas en honor del Prof. K. Tiedemann, Madrid, 1995, p . 572, 579s. 24 Cr. Schiinemann, ibidem, p. 587. Tambien comparto su crftica al intento de Tiedemann de hallar una "cu lpabilidad de organizaci6n" de la persona jurfdica, por los delitos cometidos por sus 6rganos o representantes, por no haber tornado aquella persona jurfdica las medidas adecuadas para prevenir tales delitos (Tiedemann, Die Bebussung von Unternehmen nach dem 2. Gesetz zur Bekampfung der Wirtschaftskriminalitat, en NJW 19 (1988), p. 1172). Las rnismas dificultades que existen para culpar a la persona jurfdica de los delitos que cometan sus representantes se dan tambien para culparla de la ornisi6n de tales medidas de vigilancia, pues, como dice Schiinemann, la persona juridica "siempre depende de personas naturales que actUan por ella y cuya culpa se imputarfa exclusivamente de la rnisma manera, tanto si se tratase de la imputaci6n directa de un

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y empresas ha de ser, como en las medidas de seguridad, su peligrosidad, aunque sea una peligrosidad objetiva, y la necesidad de contrarrestar esta peligrosidad para la proteccion de los bienes juridico-penales. Si el Derecho penal actual admite no solo la pena basada en la culpabilidad, sino tambien medidas de seguridad para personas peligrosas que no pueden ser culpadas, con el solo limite del principio de proporcionalidad, es coherente la admision de una modalidad especial de medidas preventivas para personas juridicas y empresas objetivamente peligrosas que tampoco pueden ser culpadas. 25 Tambien aqui el limite ha de ofrecerlo el principio de proporcionalidad, reconocido tambien por nuestro Tribunal Constitucional como un principio constitucional que ha de regir toda intervencion del Estado que afecte a derechos fundamentales, y que en un sentido amplio incluye tres exigencias: la necesidad, la idoneidad y la proporcionalidad en sentido estricto. 26 Pero esta fundamentacion, valida para las medidas de seguridad y otras medidas preventivas, no basta para la pena en sentido estricto, que transmite un reproche por la culpabilidad, por lo que no me parece coherente incluir las medidas preventivas contra personas juridicas y empresas dentro del concepto de "pena", siesta se entiende en su sentido estricto de pena criminal. Tampoco refleja la diferencia de fundamentacion sefi.alada, sino que la oculta, utilizar - como hace Schiinemann - 27 el termino "pena" en un sentido amplio que incluya tanto a la pena criminal clasica como a las sanciones administrativas de cierta gravedad y a las medidas preventivas contra personas juridicas y empresas. Tal concepto de pena en sentido amplio prescinde de lo que ha de considerarse decisivo en la diferenciacion de penas criminales y sanciones administrativas: el reproche etico-social especifico que implica la pena criminal y no la sancion administrativa. Prescindir de este elemento simbolico y atender solo a la importancia del derecho afectado por la sancion, que en las multas seria solo su cuantia economica, hace dificilmente justificable que se atribuyan a la Administracion multas a veces mucho mas elevadas que otras reservadas a la jurisdiccion penal. Por otra parte, nuestro Derecho penal parte de una

delito cometido por un 6rgano como de la imputaci6n de una culpa por la organizaci6n cometida por un 6rgano. Por ello la interpolaci6n de la culpa por la organizaci6n no puede cambiar nada del principio de que la persona juridica no puede actuar por si misma culpablemente. En ello reside la diferencia con la actio libera in causa y con el acto de embriagarse, pues en ella se toma como puntoxxx de conexi6n en cada caso la propia culpa del autor, pero no la de un tercero" (ibidem, p. 588). 25 Stratenwerth, Strafrechtliche Unternehmenshaftung?, en Festschrift fiir Rudolf Schmitt, 1992, pp. 302 ss., manifiesta su preferencia por la via de prever para !as personas juridicas medidas de seguridad dotadas de una fundamentaci6n y unos presupuestos algo distintos a Ios propios de !as medidas de seguridad previstas para personas ffsicas (aceptando en parte el planteamiento de Schi.inemann). 26 Cfr. Schi.inemann, lac. cit.,p. 589. Sobre la postura del TC espafiol en materia penal, cfr. Mir Puig, Principio de proporcionalidad y fines del derecho penal, en Echano Basaldtia (coord.), Estudios juridicos en memoria de Jose M' Lid6n, Bilbao 2002, pp. 354 ss., con especial consideraci6n de la STC 136/1999 (caso de la mesa de Herri Batasuna) (pp. 358 ss.). 27 Cfr. Schiinemann, lac. cit., pp. 583 s.

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distincion fundamental entre penas y medidas de seguridad que solo puede hallarse en el distinto significado simbolico de unas y otras: las medidas de seguridad solo son admisibles, pese a la falta de culpabilidad del sujeto, porque no implican el reproche etico-social que caracteriza a la pena. Serfa inadmisible castigar a un enfermo mental plena con una pena, y en cambio admitimos privarle de libertad coma forma de tratamiento medica y asegurativo. No se trata de una pur a "estafa de etiquetas", sino de una distincion simbolica, comunicativa, que juzgamos de la maxima importancia. La situacion es distinta en Derechos, coma el frances, que trata de evitar la diferenciacion de penas y medidas acudiendo a un sistema monista de sanciones pretendidamente carentes de sentido reprobatorio (cuestion distinta es si verdaderamente consigue esta unificacion de sentido ), o coma el Derecho norteamericano, men os preocupado par respetar las diferencias simbolicas entre las diferentes clases de sanciones y medidas que por la eficacia puramente pragmatica - lo que les lleva a castigar a menores o deficientes mentales con graves condenas penales, del mismo modo que estan dispuestos a prescindir de la culpabilidad coma presupuesto de la pena (strict liability, vicarious liability, importantes casos de versari in re illicita en delitos contra la vida, coma en el felony murder o el statutory murder) cuando les parecen prioritarias las necesidades de prevencion general -. Es significativo que sean precisamente los ordenamientos jurfdicos anglosajones dispuestos a sacrificar el principio de culpabilidad por razones de eficacia los que menos problemas han tenido para admitir la imposicion de penas criminales a las personas jurfdicas. 28 Ahora bien, la concepcion aqui defendida, de medidas preventivas para personas juridicas y empresas desprovistas del significado simbolico de reproche de la pena criminal, plantea la cuestion de si entre tales medidas cabe incluir multas. Hemos aceptado que el Derecho administrativo prevea multas para personas jurfdicas, pm路que las sanciones administrativas no tienen el sentido de grave reprobacion de las penas criminales. Del mismo modo, podremos admitir que el Derecho penal permita imponer multas a personas jurfdicas y empresas si las mismas no persiguen castigar injustos culpables, sino solo el objetivo puramente preventivo de gravar los delitos de las personas ffsicas o

28 La obra de referenda de LaFave, Criminal Law, cit., pp. 272 ss., incluye la responsabilidad de las empresas entre los casos de "liability without fault" (responsabilidad sin culpa), que en su exposici6n agrupa en tres apartados: "strict liability" (responsabilidad objetiva) (pp. 257 ss.), "vicarious liability" (responsabilidad vicaria) (pp. 265 ss.) y "enterprise liability" (responsabilidad de empresa) (pp. 272 ss.). Esta ultima forma de responsabilidad, que incluye la de las personas jurfdicas, se admiti6 como un apartamiento de la exigencia tradicional del common law de mens rea (imputaci6n subjetiva) ademas de actus reus (hecho objetivo), y de su consecuencia de impunidad de las personas jurfdicas (por entender que no tienen mente ni cuerpo ), cuando se empezaron a introducir delitos econ6micos sin culpa (strict liability) (pag. 273). Por otra parte, la responsabilidad de las personas jurfdicas (como responsabilidad de empresa) se considera basicamente una forma especffica de vicarious liability (pag. 274). De todos modos, el abandono de la responsabilidad con culpa en el ambito de las personas juridicas recibe tambiE~n en los E.E.U.U. las crfticas de un sector de la doctrina (p. 275 s.).

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empresas facilitados por la logica economica de las mismas con un coste (la cuantia de la multa) que haga economicamente indeseable para ellas aquellos delitos. La determinacion del importe de tales multas no deberfa basarse, entonces, en la gravedad del delito de la persona ffsica, sino en su significado economico para la persona jurfdica o empresa - de modo parecido a como determinadas multas administrativas pueden alcanzar cantidades elevadfsimas por razones puramente economicas, para que la infraccion no resulte rentable al sujeto -. Por ejemplo, si se trata de un delito ecologico cometido para no tener que instalar un mecanismo de filtraje que cuesta medio millon de euros, es razonable imponer a la empresa una multa de una cuantfa superior suficiente para no hacer rentable la omision del filtro reglamentario. Como sancion economica imponible a personas jurfdicas o empresas cabe incluir tambien la privacion de los beneficios obtenidos directa o indirectamente gracias al delito de la persona ffsica.

m Las reflexiones efectuadas permiten extraer varias conclusiones. La primera es que la pena, en sentido estricto, tiene un significado simbolico de grave reproche que presupone la actuacion antijuridica y culpable de una persona ffsica a la que se impone. La segunda conclusion es que la peligrosidad especial que pueden suponer las personas jurfdicas y las empresas puede combatirse no solo mediante sanciones administrativas y civiles, sino tambien a traves de medidas preventivas previstas por el Derecho penal, similares a las medidas de seguridad en cuanto no se basan en la culpabilidad, pero peculiares porque no se basan en la capacidad de delinquir de una persona fisica, sino en la peligrosidad objetiva, instrumental, de la persona juridica o empresa. Se trata de una tercera v{a. Sin embargo, tambien en ella hay que exigir la posibilidad de alguna forma de imputacion de los injustos cometidos por personas fisicas a la dinamica de la persona jurfdica o empresa. Si ello se afiade al respeto del principio constitucional de proporcionalidad en sentido amplio, que requiere la necesidad, la idoneidad y la proporcionalidad en sentido estricto de estas medidas preventivas, se conseguira su sujecion a lfmites no inferiores a los admitidos para las medidas de seguridad. La tercera conclusion es que las "medidas accesorias" previstas por el CP espafiol de 1995 para personas jurfdicas y empresas deben entenderse como medidas preventivas distintas a las penas y a las medidas de seguridad clasicas, y abren una tercera v{a en la linea correcta. Sin embargo, lo hacen de una forma demasiado timida, porque solo se preven para determinados delitos, que ni siquiera comprenden con caracter generallos delitos contra el patrimonio y socio-economicos. Por otra parte, dichas medidas solo seran suficientes si se interpretan de forma que puedan imponerse aunque no sea posible dirigir la acusacion contra una persona o personas fisicas responsables del injusto penal

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individual (de modo que su accesoriedad no sea procesat sino solo material y limitada, no maxima). Tambien deben rodearse de las garantias de imputacion y proporcionalidad que hemos exigido. Finalmente, deberian incluir sanciones economicas puramente preventivas, como multas y privacion de las ganancias obtenidas directa o indirectamente gracias al delito. Esta tercera via no tiene la indeseable tendencia que encierra el castigo penal de personas juridicas o empresas: la tendencia a rehuir las dificultades que muchas veces entrafia la comprobacion, material y procesal, de la autoria o participacion de las personas fisicas responsables del injusto penal. Es cierto que la mayoria de legislaciones que admiten penas para personas juridicas o empresas no excluyen la responsabilidad simultanea de personas fisicas. Pero es sintomatico que el argumento central que suelen utilizar es el de que hay que castigar a las personas juridicas o empresas porque con frecuencia no puede castigarse a personas fisicas. Parece partirse de la idea de que, cuando no pueda castigarse a personas fisicas, al menos tendremos a alguien a quien castigar en su lugar, por lo menos tendremos un culpable. La necesidad de castigo del delito parece satisfacerse ya de algun modo por esta via. 29 Pero la consecuencia practica tendera a ser, entonces, que no se sentira necesidad de poner tanto empefio (y medias materiales) en fundamentar una imputacion a personas fisicas que puede resultar complicada dogmaticamente y desde el punto de vista procesaP0 Esta consecuencia favoreceria la ocultacion de los verdaderos responsables tras la fachada de la persona juridica o entre los entresijos de la complejidad de la organizacion empresarial. Ello resultaria criminogeno. Por lo demas, hay que resaltar que, paradojicamente, iria en direccion contraria a la corriente jurisprudencial y doctrinal que en Derecho privado exige levantar el velo de la persona juridica cuando se utiliza con finalidad defraudatoria. 31

Aunque en Ios E.E.U.U. son punibles tanto las personas jurfdicas como las personas ffsicas que achian por ellas, se ha constatado que de hecho en la pnictica Ios jurados tienden a condenar unicamente a las personas jurfdicas y a absolver Ios agentes ffsicos, pese a que sea indudable que cometieron Ios actos criminales: cfr. LaFave, Criminal Law cit., p. 281, nota 102. 30 Alerta de este riesgo Octavio de Toledo, Las consecuencias accesorias ... cit., pp. 1138 s. 31 Cfr. Bajo Fernandez, La responsabilidad penal... cit., pag. 32 29

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B) UMA CONSTITUI<;AO PARA A EUROPA. ASPECTOS PLURIDISCIPLINARES DO PROJECTO DE CONSTITUI<;AO EUROPEIA (4 DE DEZEMBRO DE 2003)



OS DIREITOS SOCIAlS NO PROJECTO DE CONSTITUI<_;A.o EUROPEIA

Albino Mendes Baptista



OS DIREITOS SOCIAlS NO PROJECTO DE CONSTITUI<;AO EUROPEIA*

Albino Mendes Baptista""

I

Antes de tudo agrade<;:o ao Professor Manuel Pires o convite que me dirigiu para estar presente neste coloquio, cumprimento todos os presentes e felicito a Universidade Lusiada por esta importante iniciativa. A este proposito mantem inteira actualidade as seguintes palavras de FRANCISCO LUCAS PIRES pronunciadas em 1995: "A proxima revisao dos Tratados ja nao pode ficar so na mao do tripe de ministros, diplomatas e burocratas (... ). E preciso submeter a Europa ao veredicto da opiniao publica, ultrapassando o "sindrome da pe<;:a de porcelana delicada" que se pode admirar mas nao tocar" 1• Quando no preambulo do Projecto de Constitui<;:ao Europeia 2• 3 se le "Gratos aos membros da Conven<;:ao Europeia por terem elaborado a presente Constitui<;:ao em nome dos cidadaos e dos Estados da Europa.", fica-se corn a sensa<;:ao de que a discussao desta materia pode significar urn gesto de ingratidao por parte de urn cidadao europeu. Mas, a Universidade e, por natureza, uma institui<;:ao rebelde ... Na verdade, em momentos decisivos como este a Academia tern de estar presente, mas corn urn olhar cientifico. Por isso tera de saber promover urn

a interven~ao feita no Col6quio ""Aspectos Pluridisciplinares do Projecto de Europeia"", que teve lugar na Universidade Lusfada de Lisboa, no dia 4 de Dezembro de 2003. 0 presente texto foi publicado na Minerva - Revista de Estudos Laborais, n.Q 4, 2004, pp. 41 e ss .. ** Assistente da Faculdade de Direito da Universidade Lusfada de Lisboa. Mestre em Direito. 1 F. Lucas Fires, Portugal e o futuro da Uniiio Europeia, Lisboa, 1995, p. 13. 2 Doravante ""Projecto"". Todos os artigos referidos no texto, sem indica~ao da respectiva fonte, referem-se ao Projecto de Constitui~ao Europeia. 3 0 Projecto de Constitui~ao Europeia foi apresentado ao Conselho Europeu reunido em Sal6nica em 20 de Julho de 2003, aprovado por consenso pela Conven~ao Europeia em 13 de Junho e 10 de Julho de 2003, e entregue ao Presidente do Conselho Europeu, em Roma, a 18 de Julho de 2003. 0 texto do Projecto pode ser consultado em htt: I I europa.eu.int/ futurum/ constitution/ index_pt.htm. * Corresponde

Constitui~ao

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debate, sereno e ponderado, do Projecto de Constitui<_;ao Europeia. E corn a "objectividade universitaria" de que fala Teixeira Ribeiro.

II

E sabido que a Europa nasceu sob o signo do econ6mico, de que as designa<_;oes das Comunidades sao sintoma. Como se sabe, a materia dos direitos fundamentais, em geral, nao constava da versao originaria dos Tratados. A sua recep<_;ao pelo Direito Comunitario deu-se por intermedio do Tribunal de Justi<_;a 4, ap6s algumas hesita<_;oes iniciais5, mas foi urn recepr;ao imposta pelas tradi<_;oes constitucionais nacionais e pelos instrumentos internacionais subscritos pelos Estados-Membros, corn destaque para a Conven<_;ao Europeia dos Direitos do Homem, e determinada por razoes de sobrevivencia da propria ordem juridica comunitaria. Embora o Acto Unico Europeu (1986) contenha a primeira referenda aos direitos fundamentais, e o Tratado da Uniao Europeia (Maastricht, 1991) que constitui o momento de viragem ao referir-se aos direitos fundamentais em varios momentos, ao aludir a Conven<_;ao Europeia dos Direitos do Homem6 e ao acentuar a vertente social da integra<_;ao comunitaria. 0 Tratado de Amesterdao (1997) adita urn considerando ao preambulo no qual se afirma o "apego aos direitos sociais fundamentais", introduz o Protocolo Social e o Acordo sobre Politica Social anexos ao Tratado da Uniao Europeia, procede a modifica<_;oes no sentido do refor<_;o dos direitos sociais e introduz urn titulo relativo ao emprego. A Carta Comunitaria dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores, de 1989, que inicialmente era uma (mera) declara<_;ao politica, nao obstante estar vocacionada para influenciar a adop<_;ao de instrumentos juridicos7, passou a constituir urn quadro referendal da politica social comunitaria8 e os direitos nela consignados a participar da natureza de direitos fundamentais da Uniao. Faltava, contudo, urn catalogo (mais abrangente) dos direitos fundamentais e a clarificar;ao do conteudo das "tradi<_;oes constitucionais nacionais". Foi neste contexto que foi aprovada em Nice, em 7 de Dezembro de 2000, a

., V d. os Ac6rdaos STAUDER, Proc. 29/96, de 12.11.69. (Rec. 1969, p. 419); INTERNATIONALE HANDELSGESELLSCHAFT, Proc. 11/70, de 17.12.70. (Rec. 1970, p. 1125); e NOLD, Proc. 4/73, de 14.5.74. (Rec. 1974, p. 491). 5 V d. MIGUEL GORJAO-HENRIQUES, "A evolu~ao da protec~ao dos direitos fundamentais na espa~o comunitario", em AAVV, A Carta de Direitos Fundamentais da Uniiio Europeia, Coimbra, 2001, pp. 27 e ss .. 6 0 art. F, n.Q 2 (actual art.Q 6.Q), estipula que a Uniao respeita os direitos fundamentais, tal como sao garantidos pela Conven~ao Europeia dos Direitos do Homem, e tal como resultam das tradi~6es constitucionais comuns aos Estados membros enquanto prindpios gerais de direito. 7 Ponto n. 2 28 da Carta Comunitaria dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores. " Art. 9 136. 9 do Tratado CE.

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"Carta dos Direitos Fundamentais da Uniao Europeia" 9, mais urn passo da constrw;;ao europeia, e primeiro passo para uma Constitui<;;ao Europeia. Bern dizia Shuman, numa nota de realismo e antevisao politica, que a Europa se faria passo a passo ... A "Carta dos Direitos Fundamentais da Uniao Europeia" nao tern, como se sabe, cankter vinculativo, o que nao significa que nao tenha valor jur:idico 10 . Pois bem, o Projecto de Constitui~ao Europeia dedica integralmente a Parte II a "Carta dos Direitos Fundamentais da Uniao Europeia" 11 , integrando-a no Tratado 12, e pretendendo conferir-lhe indiscut:ivel caracter vinculativo.

HI Importa relevar que a Carta constitui urn momento da maior importancia para a afirma~ao dos direitos sociais enquanto categoria de direitos fundamentais. Os direitos sociais passaram de parentes pobres dos direitos civis e politicos a parentes remediados. E sabido que os direitos sociais sofreram sempre de uma capitis deminutio, que foi sendo lentamente debelada. Tenha-se presente que no seio da ONU os direitos civis e politicos e os direitos sociais sempre foram parentes afastados e desencontrados. A par do Pacto Internacional de Direitos Civis e Politicos (1976) temos o Pacto Internacional de Direitos Economicos, Sociais e Culturais (1976). 0 mesmo sucedeu no ambito do Conselho da Europa em que a Conven~ao Europeia dos Direitos do Homem (1950) vive ao lado da Carta Social Europeia (1961), que, alias, nasceu mais de uma decada depois. A Carta, como nos diz JORGE PEREIRA DA SILVA, acaba corn este "regime de apartheid" 13, recepciona o princ:ipio da indivisibilidade dos direitos humanos, refor~a o caracter democratico da Uniao e exprime o modo de estar europeu. Neste aspecto ela assume urn valor simbolico incontornavel e da mais alta relevancia 14 • Nomeadamente para os Estados que aguardam a sua entrada na Uniao. A isso acresce a questao da legitimidade da actua~ao externa da Uniao no plano da afirma~ao dos direitos sociais como parte integrante dos direitos do homem. JOCE, n.Q C 364, de 18-12-2000. Assim, entre outros, JORGE PEREIRA DA SILVA, "Os direitos sociais ea Carta dos Direitos Fundamentais da Uniiio Europeia", Direito e Justi~a, 2001, t. 2, p. 161. 11 Doravante "Carta". 12 A Uniiio reconhece os direitos, liberdades e principios consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais, que constitui a Parte II da presente Constitui~iio (art. 7. 9 , n. 9 1, da Parte I). 13 JORGE PEREIRA DA SILVA, "Os direitos sociais e a Carta dos Direitos Fundamentais da Uniiio Europeia", cit., p. 155. 14 A questiio da "dimensiio simb6lica e constitucional da Carta" e desenvolvida por FRANZ C. MAYER, "La Charte europeenne des droits fondamentaux et la Constitution europeenne", Revue trimestrielle de droit europeen, 39(2), avr.-juin, 2003, p. 191, pp.194 e ss. 9

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A este proposito justifica-se trazer a cola<;ao o art.Q 47.Qda Parte I, segundo o qual a Uniao reconhece e promove o papel dos parceiros sociais a nivel da Uniao, tendo em conta a diversidade dos sistemas nacionais, e facilita o dialogo entre eles, no respeito pela respectiva autonomia, bem como salientar a sua inser<;ao sistematica no Titulo, inteiramente novo, relativo a "Vida democratica da Uniao" 15 • 0 dialogo passa assim a ser visto, e bem, nao (apenas) como urn direito das associa<;oes representativas dos sujeitos colectivos laborais, mas como afloramento da democracia participativa. Mais: a justi<;a social e a solidariedade sao mesmo vistos no Projecto como "Valores da Uniao" 16 .

IV Num certo sentido, a Carta acolhe as ideias da Revolu<;ao Francesa, em particular de "fraternidade", que rebaptiza de "solidariedade" 17 • Na verdade, no segundo considerando do preambulo, o prindpio da solidariedade encontra-se ao lado da dignidade do ser humano, da liberdade e da igualdade, o que aponta para "a nota especificamente europeia de direitos fundamentais, distinta da concep<;ao americana" 18 • Por outro lado, prossegue a via iniciada corn a Constitui<;ao de Weimar de 1919, absorve em parte a critica marxista, recebe os ensinamentos Keynesianos (o art.Q 3.Qda Parte I do Projecto alude expressamente a "economia social de mercado"), e assume o contributo fundamental, que nem sempre tern sido sublinhado, da Doutrina Social da Igreja19 • No que diz respeito as fontes directas de inspira<;ao dos direitos sociais 20, destaquem-se a Carta Comunitaria dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores e a Carta Social Europeia.

V

Quanto a sistematiza<;ao importa ter presente que OS direitos SOCialS se encontram dispersos pelo Titulo IV - Solidariedade, pelo Titulo II - Liberdades e pelo Titulo Ill - Igualdade.

15

Titulo VI da Parte I. Art.Q 2.Qda Parte I. 17 JORGE PEREIRA DA SILVA, "Os direitos sociais ea Carta dos Direitos Fundamentais da Uniao Europeia", cit., pp. 148 e ss .. 18 Assim, FRANZ C. MAYER, "La Charte europeenne des droits fondamentaux et la Constitution europeenne", cit., p. 191. 19 Materializada particularmente nas Enciclicas Rerum Novarum e Quadragesimo Anno. 20 Em relac;:ao aos direitos civis e politicos importa relevar a Convenc;:ao Europeia dos Direitos doHomem. 16

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Como manifesta<;6es de "solidariedade" temos: - direito a informa<;ao e a consulta dos trabalhadores na empresa21 direito de negocia<;ao e de ac<;ao colectiva 22 direito de acesso aos servi<;os de emprego 23 protec<;ao em caso de despedimento sem justa causa 24 condi<;6es de trabalho justas e equitativas 25 protec<;ao do trabalho infantil e protec<;ao dos jovens no trabalho 26 vida familiar e vida profissionaF7 seguran<;a social e assistencia sociaF8 . Como materia de "liberdades" encontramos: liberdade de reuniao e de associa<;ao sindicaF9 direito de acesso a forma<;ao profissional e contfnua30 liberdade profissional e direito ao trabalho 31 liberdade de empresa32 • No titulo Ill referente

a igualdade

aparecem-nos os seguintes direitos:

nao discrimina<;ao 33 igualdade entre homens e mulheres 34 integra<;ao das pessoas corn deficiencia35 •

VI Convem ter presente que os destinatarios da Carta sao as institui<;6es, 6rgaos e agendas da Uniao (na observancia do princfpio da subsidiariedade), bem como os Estados-Membros apenas quando apliquem o direito da Uniao 36 • Ao que acresce que a Carta nao cria quaisquer novas atribui<;6es ou competencias para a Uniao 37 .

21

Artigo II - 27.Q. Artigo II - 28.Q. 23 Artigo II - 29.Q . 24 Artigo II - 30.Q. 25 Artigo II - 3l.Q. 26 Artigo II - 32.Q. 27 Artigo II - 33.Q. 28 Artigo II - 34.Q. 29 Artigo II - 12.Q. 30 Artigo II - 14.Q . 31 Artigo II - 15.Q. 32 Artigo II - 16.Q. 33 Artigo II - 2l.Q. " Artigo II - 23.Q. 35 Artigo II - 26.Q. 36 Art.QII-Sl.Q , n.Q 1. 37 Art.Q II-Sl.Q, n.Q 2. 22

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Isto implica dizer que os particulares podem invocar os direitos subjectivos que a Carta lhes reconhecem contra entidades ptiblicas da Uniao e dos Estados-Membros, o que nos situa no ambito do efeito directo vertical desses direitos. Em todo o caso, nao podem ser ignoradas situa~6es de efeito directo horizontal, desde que o direito invocado resulte de uma disposi~ao das outras Partes da Constitui\ao que possua ela propria efeito directo horizontaP 8 • Neste contexto, como escreve ANA MARIA GUERRA MARTINS, "nem todos os direitos sociais gozam do mesmo grau de invocabilidade." 39 •

VII

No que concerne ao ambito e interpreta~ao dos direitos sociais, importa ter presente que qualquer restri\aO ao exercicio dos direitos e liberdades reconhecidos pela Carta deve ser prevista por lei e respeitar o contetido essencial desses direitos e liberdades, corn observancia do principio da proporcionalidade40. Por outro lado, "na medida em que a presente Carta reconhe~a direitos fundamentais decorrentes das tradi~oes constitucionais comuns aos EstadosMembros, tais direitos serao interpretados de harmonia corn essas tradi~6es" 41, 0 que conduzini a adop~ao de diferentes criterios interpretativos. A solu~ao de compromisso encontrada e, por isso, susceptivel de comportar uma aplica~ao geometricamente variada. Mas, coma diria FRANZ C. MAYER, "o direito constitucional europeu e urn direito constitucional de diversidade, e nao de homogeneidade." 42 De resto, tambem a Carta Social Europeia e aplicada de modo diferente pelos Estados-Membros do Conselho da Europa. Julga-se, no entanto, que a pressao que aquele principio vai gerar obrigara, mais tarde ou mais cedo, a adop~ao de canones interpretativos comuns.

VIII

0 art.Q II-53.Q (nivel de protec~ao) contem uma redac~ao infeliz, porquanto em vez de aludir aos direitos fundamentais em geral refere-se aos "direitos do Art. II-52.Q, n.Q2. ANA MARIA GUERRA MARTINS, "A Carta dos Direitos Fundamentais da Uniao Europeia e os direitos sociais", Direito e Justi~a, 2001, t. 2, p. 225. 40 Art.Q II-52.Q , n .Q1. 41 Art.QII-52.Q, n.Q4. 42 E FRANZ C. MAYER acrescenta: "Desenvolver o principio do primado nesta perspectiva e compatfvel corn o art.Q 53P da Carta." Alias, para o mesmo autor, "o principio do primado nao implica automaticamente uma hierarquia de normas: na sua versao mais simples, o principio nao constitui senao uma resposta a questao de saber que norma prevalece em caso de conflito." ("La Charte europeenne des droits fondamentaux et la Constitution europeenne", cit., p . 188). 38 39

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Homem e liberdades fundamentais", esquecendo-se em seguida de referir a "Carta Social Europeia". Pensamos, todavia, que por uma razao de coerencia, nenhuma disposi<;ao da Carta deve ser interpretada no sentido de restringir ou lesar (tambem) os direitos sociais reconhecidos pelo direito da Uniao, o direito internacional e as Conven<;6es intemacionais em que sao Partes a Uniao ou todos os Estados-Membros, nomeadamente a Carta Social Europeia, bem como pelas Constitui<;6es dos Estados-Membros.

IX

Sabemos ja que nem todos os direitos tern a mesma natureza. A par de direitos directamente invocaveis, como e 0 caso do direito a negocia<;ao colectiva, existem direitos que carecem de medidas de implementa<;ao, como e o caso do direito a condi<;6es de trabalho justas e equitativas. A frequente remissao do Projecto para as legisla<;6es e praticas nacionais 43 , sem a previsao de mecanismos integrativos, contribui para aumentar a complexidade da materia, o que nao deixara de dificultar o exerdcio de alguns direitos sociais e de criar problemas em materia de igualdade de tratamento 44 •

X 0 discurso que por vezes se faz de que a Carta pouco representa para paises como Portugal, atendendo a que temos urn catalogo de direitos sociais muito avan<;ados, revela uma leitura unilateral da situa<;ao, pouco sensivel a valores de solidariedade e de aproxima<;ao, e consubstancia-se no esquecimento de que muitos portugueses trabalham noutras latitudes, e continuarao a trabalhar cada vez em maior mimero face a urn espa<;o que cada vez mais se assume sem fronteiras. Como diria J. VIEIRA DE ANDRADE, "a protec<;ao substantiva dos direitos fundamentais dos cidadaos portugueses nao sera nunca prejudicada pela entrada em vigor da Carta e pode ganhar bastante corn o refor<;o das garantias dos cidadaos, em especial no ambito das actua<;6es comunitarias e na de alguns estados membros." 45

43

Por exemplo, art. II-30.Q- "( ... )de acordo corn o direito da Uniao e as legislac;:6es e pniticas nacionais."; art. II-35."- "( ... ) de acordo corn as legislac;:oes e praticas nacionais"; e art.Q II-34.Q, n.Q 3 - "( ... ) de acordo corn o direito da Uniao e as legislac;:oes e praticas nacionais." 44 Escreve, todavia, FRANZ C. MAYER: "Julga-se, no entanto, que a Carta pode ter "urn efeito estabilizante sabre a repartic;:ao das competencias entre o nfvel europeu e o nacional" ("La Charte europeenne des droits fondamentaux et la Constitution europeenne", cit., 39(2), p. 192). 45 J. C. VIEIRA DE ANDRADE, "A Carta Europeia dos Direitos Fundamentais e as Constituic;:oes Nacionais", em AAVV, A Carta de Direitos Fundamentais da Uniao Europeia, cit., pp. 87-88.

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Por outro lado, nao se pode ignorar que paises coma o Reino Unido, a Irlanda, a Austria e a Dinamarca tern niveis de protec~ao social muito aquem ou aquem de outros paises europeus. Mesmo a Lei Fundamental alema (1949) limita-se em larga medida a caracterizar o Estado coma urn "Estado Social" (Sozialstaatsprinzip )46, o que tern certamente valia interpretativa, mas nao constitui urn direito subjectivo47 • Na verdade, a maior parte das constitui~oes europeias sao muito modestas em materia de direitos sociais. Mesmo em sistemas considerados maximalistas, coma a Espanha, a Constitui~ao consagra os direitos sociais sob a forma de prindpios orientadoras da politica economica e social, ou coma a Fran~a, a Constitui~ao limita-se a afirma~oes genericas contidas no respectivo prefunbulo, ou ainda coma a Ita1ia, onde os direitos sociais sao reconhecidos de forma pouco consistente48•

XI

E verdade que as diversidades existentes nos Estados da Uniao continuarao a dificultar a constru~ao de uma Europa social. Refira-se, por exemplo, que o Projecto de Constitui~ao Europeia continua a excluir as remunera~oes, o direito de associa~ao, o direito a greve e o direito ao lock-out, do ambito da actua~ao da Uniao49 • Ou acentue-se a manuten~ao da unanimidade em materias coma a seguran~a social e protec~ao social dos trabalhadores, a protec~ao dos trabalhadores em caso de rescisao do contrato de trabalho, e a de representa~ao e defesa colectiva dos interesses dos trabalhadores e das entidades patronais, incluindo a co-gestao50 • Julga-se ainda que o Comite Economico e Social Europeu51 continua a ter competencias limitadas52 • E tambem verdade que ficam de fora do catalogo dos direitos sociais, importantes direitos coma, e entre outros, a protec~ao dos membros das estruturas representativas dos trabalhadores, bem coma a protec~ao dos creditos salariais em caso de insolvencia do empregador. E os que ficam dentro desse catalogo nao sao direitos novas. Pode mesmo dizer-se que os dominios sociais, 46

Apesar de algumas Constituic;oes dos Lander consagrarem de modo expresso direitos

sociais. 47 Assim, FRANZ C. MAYER, "La Charte europeenne des droits fondamentaux et la Constitution europeenne", cit., p. 191. 48 JORGE PEREIRA DA SILVA, "Os direitos sociais ea Carta dos Direitos Fundamentais da Uniao Europeia", cit., pp. 157-158. 49 Artigo III-104.Q, n.Q 6 (cf. corn o art.Q 137.Q , n.Q6, do Tratado de Nice). 50 Art.QIII-104.Q, n .Q 3. 51 Que deveria transmutar-se em Conselho Econ6mico e Social Europeu. 52 Vd. o Parecer do Comite Econ6mico e Social Europeu destinado a Conferencia Intergovernamental de 2003, de 24 de Setembro de 2003. 0 texto deste Parecer pode ser consultado em http: I I europa.eu.int I futurum/ documents/ other I oth240903_pt.pdf.

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do emprego e do desenvolvimento sustentavel siio objecto de progressos relativamente modestos. Importa, todavia, fazer urn discurso equilibrado e corn preocupa<;6es de autenticidade. Assim, niio se pode ignorar que os autores da Carta procuraram elaborar urn texto que niio ultrapassasse o "minimo denominador comum" aos varios Estados-Membros, para niio inviabilizar os consensos necessarios a sua aceita<;iio. 0 que niio se pode e criticar simultaneamente por se ter pouco e por se ter muito ... Ou criticar ao mesmo tempo, corn total falta de coerencia, o desrespeito pelas diversidades e a consagra<;iio de solu<;6es elas pr6prias norteadas pela diversidade ... Parece em todo o caso indiscutivel que a Carta, nas palavras de ANA MARIA GUERRA MARTINS, "ultrapassou o minimo denominador comum europeu, bem como as tradi<;6es constitucionais dos Estados mais minimalistas."53

XII Tern inteira raziio autores como VITAL MOREIRA para quem o progresso nesta area tern de ser acompanhado de uma revisiio dos meios de tutela, ou seja, dos mecanismos de protec<;iio para as viola<;6es dos direitos fundamentais por parte dos 6rgiios da Uniiio ou dos Estados-Membros enquanto aplicadores do Direito da Uniiio 54 . Julgamos que deve ser equacionado o reconhecimento do direito de ac<;iio individual para assegurar especificamente a tutela de direitos fundamentais da Uniiio, inspirado no "recurso de amparo" espanhol ou na Verfassungsbeschverde alemii55, sem prejuizo de se reconhecer que o desconhecimento da figura na maior parte dos Estados-Membros constitui uma 6bvia dificuldade.

53 ANA MARIA GUERRA MARTINS, "A Carta dos Direitos Fundamentais da Uniao Europeia e os direitos sociais", cit., pp. 221-222. 54 VITAL MOREIRA, "A Tutela dos Direitos Fundamentais na Uniao europeia", AAVV, A Carta de Direitos Fundamentais da Uniao Europeia, cit., p. 75. 55 No mesmo sentido, e entre outros, VITAL MOREIRA, "A Tutela dos Direitos Fundamentais na Uniao europeia", AAVV, A Carta de Direitos Fundamentais da Uniao Europeia, cit., p. 76. Este autor propoe ainda: - a atribui<;iio ao Provedor de novas compeh<;ncias (p. 76); - a cria<;iio de urn 6rgao de informa<;ao e de monotoriza<;iio do respeito dos direitos fundamentais pelos 6rgaos da CE bem como dos Estados enquanto aplicadores do Direito Comunitario (p. 77); - a cria<;iio de agendas comunitarias especializadas (p. 77); - a impugna<;iio de normas "inconstitucionais" por viola<;iio dos tratados (p. 78); - a ac<;iio popular para tutela de interesses difusos (p. 78); e - a cria<;ao de tribunais comunitarios regionais (p. 81).

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Por outro lado, o Projecto continua a circunscrever a legitimidade dos particulares para atacarem os actos da Uniao, ao dispor que qualquer pessoa pode propor uma ac<;ao contra actos de que seja destinataria ou que lhe digam directa e individualmente respeito 56 . Alias, o Tribunal de Justi<;a ja se recusou (em Julho de 2002) a seguir a sugestao do advogado geral no sentido de alargar o campo de aplica<;ao do art.Q 230.Q, alfnea 4, do Tratado CE, o que teria facilitado o acesso do cidadao da Uniao aos tribunais europeus invocando os seus direitos fundamentais 57 • Em todo o caso, importa reconhecer que a Carta pode ser invocada pelos cidadaos nacionais perante qualquer jurisdi<;ao no ambito de aplica<;ao das polfticas europeias.

XIII A referenda a Conven<;ao Europeia dos Direitos do Homem para que tenha validade em toda a sua extensao pressup6e a adesao da Uniao a este instrumen to 58 • 0 Projecto, ao atribuir personalidade juridica a Uniao, cria urn dos meios necessarios para 0 efeito 59 • Mas, o Projecto vai ate mais longe ao determinar que a Uniao procurara aderir a Conven<;ao Europeia dos Direitos do Homem60 . Nao se preve, todavia, a adesao a Carta Social Europeia, o que parece revelar hesita<;6es em materia de direitos sociais e causa ate alguma estranheza, atendendo a que a adesao a este instrumento levanta ate menos objec<;6es, uma vez que o mesmo nao disp6e de mecanismos de protec<;ao jurisdicional. Art.Q III-270.Q. Assim, FRANZ C. MAYER, "La Charte europeenne des droits fondamentaux et la Constitution europeenne", cit., p. 193. 58 Coma sublinha MIGUEL GORJAO-HENRIQUES, "a adesao garantiria, no piano comunihirio, o respeito pelo princfpio do Estado de direito, aqui volvido em Comunidade de direito." ("A evolu~ao da protec~ao dos direitos fundamentais na espa~o comunitario", em AAVV, A Carta de Direitos Fundamentais da Uniao Europeia, cit., p. 34). No mesmo sentido VITAL MOREIRA, que escreve: "De uma maneira ou de outra, dificilmente se pode considerar conveniente a existencia separada de dois padr6es europeus de salvaguarda de direitos fundamentais, corn a peculiariedade de ambos serem partilhados pelos estados membros da EU. Tudo aconselha que haja em ultima instiincia urn padrao unico, que s6 pode ser o de Estrasburgo. Por todas as raz6es: pela sua antiguidade, pelas provas dadas, pela amplitude geografica, pela densifica~ao doutrinal e jurisprudencial." ("A Carta e a adesao da Uniao Europeia a Conven~ao Europeia dos Direitos do Homem (CEDH)", AAVV, A Carta de Direitos Fundamentais da Uniao Europeia, cit., pp. 95-96). No mesmo sentido, ainda, CATARINA SAMPAIO VENTURA, nos seguintes termos: "Da mesma forma que os Estados-membros estao sujeitos ao mecanismo de controlo externa institufdo ao abrigo da CEDH, a Uniao (... ) deveria aceitar sujeitar-se a identico mecanismo de controlo." ("Contexto e justifica~ao da Carta", em AAVV, A Carta de Direitos Fundamentais da Uniao Europeia, cit., p. 50). 59 Art.Q 6.Q da Parte I. 60 Art.Q 7.Q, n.Q 3, da Parte I. 56 57

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E que se imp6e que os aetas da Uniao estejam sujeitos a controlo externa. Como se imp6e igualmente a adop<;ao de mecanismos de uniformiza<;ao jurisprudencial em materia de direitos fundamentais. N a verdade, nada impede que ao lado de urn sistema de protec<;ao externa, constitufdo pela Conven<;ao Europeia dos Direitos do Homem, coexista urn outro sistema de protec<;ao diferente, construfdo a partir do "interior do sistema", que a Carta da Uniao representaria 6\ o que ÂŁaria do primeiro urn recurso suplementar. XIV

Deve rejeitar-se a ideia de que o Projecto de Constitui<;ao Europeia nao tern relevo em pafses que em materia de direitos sociais podem ser qualificados como "maximalistas", como e o caso de Portugal. A materia tern ate interesse imediato para efeitos de avalia<;ao da recente reforma da legisla<;ao laboral. Por exemplo, nao se sente no novo Codigo do Trabalho reflexos do art.Q 28.Q da Carta dos Direitos Fundamentais da Uniao Europeia62, onde se estabelece: "Os trabalhadores e as entidades patronais, ou as respectivas organiza<;6es, tern, de acordo corn o direito comunitario e as legisla<;6es e praticas nacionais, o direito de negociar e de celebrar conven<;6es colectivas, aos nfveis apropriados, bem como de recorrer, em caso de conflito de interesses, a ac<;6es colectivas para defesa dos seus interesses, incluindo a greve." Deste preceito resulta que os direitos colectivos dos trabalhadores sao uma expressao e uma das dimens6es do prindpio da solidariedade. Efectivamente, a negocia<;ao colectiva aparece no Titulo IV da Carta intitulado "Solidariedade" 0 que e relevante para efeitos de enquadramento do papel dos sujeitos colectivos e da concep<;ao laboral de empresa. Tal inser<;ao sistematica assume particular relevancia no confronto corn a liberdade sindical que e garantida no Titulo 11, epigrafado de Liberdades 63 • Ou seja, procura-se criar urn espa<;o normativo comunitario, de acordo corn prindpios de solidariedade, de dignidade e de cidadania, aplicaveis tambem nas empresas como parte integrante desse espa<;o. Por outro lado, a Carta nao atribui aos sindicatos o monopolio de contrata<;ao colectiva. Como escreve ALAIN SUPIOT, por referencia a este instrumento internacionat "a negocia<;ao colectiva ou a ac<;ao colectiva, nao sao objecto de monopolio sindical pois sao reconhecidas em termos gerais "aos trabalhadores e aos seus empregadores ou as respectivas organiza<;6es" 64 • I

61

FRANZ C. MAYER, "La Charte europeenne des droits fondamentaux et la Constitution europeenne", cit., p. 190. 62 Art.Q II-28.Q do Projecto de Constitui<;iio Europeia. 63 Art.Q 12.Q. 64 ALAIN SUPIOT, "Revisiter les droits d'action collective", Droit Social, 2001, n.Q 7/8, p. 704.

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Albino Mendes Baptista

Pais bem, o Codigo do Trabalho continua a consagrar o monopolio sindical de negocia~ao colectiva, vedando tal direito, por exemplo, as comissoes de trabalhadores 65 . Por outro lado, a critica que foi dirigida a 2 . ~ parte do art.Q28.Qda Carta sustentando que 0 direito a greve "surge urn tanto disfar~ado coma urn instrumento ao servi~o do direito a negocia~ao colectiva" 66, parece ignorar a profunda liga~ao entre os dais institutos, na medida em que a conven~ao colectiva co-envolve naturalmente uma auto-restri~ao do exercfcio do direito a greve relativamente a mah~rias nela reguladas 67 , tematica, de resto, recentemente analisada pelo Tribunal Constitucional em sede de aprecia~ao preventiva da Proposta de Codigo do Trabalho 68 • Em conclusao, independentemente da constata~ao de que muito do nosso Direito do Trabalho recebeu importantes avan~os por for~a da legisla~ao comunitaria (lembre-se que corn a aprova~ao do Codigo do Trabalho e efectuada a transposi~ao de 17 directivas 69• 70 ), das considera~oes que possamos fazer em termos da nossa inser~ao num espa~o de afirma~ao do caracter constitucional dos direitos fundamentais, uma coisa nos parece certa: a Carta constitui uma relevante fonte de pondera~ao das solu~oes de direito interno, adoptadas ou a adoptar, e contem urn potencial aplicativo que nao deve ser desprezado. Pode inclusivamente contribuir para fragilizar projectos de revisao constitucional que, porventura, pretendam enfraqtiecer, de forma desproporcionada, os niveis de protec~ao social adquiridos 71 • Obrigado pela aten~ao que me quiseram dispensar.

65

Vd. ALBINO MENDES BAPTISTA, "Que futuro para as comiss6es de trabalhadores?", VI

Congresso Nacional de Direito do Trabalho- Mem6rias, Coimbra, 2004, pp. 207 e ss .. (Texto republicado em Estudos sobre o C6digo do Trabalho, Coimbra, 2004, pp. 161 e ss.). 66 JORGE PEREIRA DA SILVA, "Os direitos sociais ea Carta dos Direitos Fundamentais da Uniao Europeia", cit., p. 158. 67 V d., por exemplo, o art. 2 606.2 do C6digo do Trabalho. 68 Diario da Republica, I-A Serie, de 18 de Julho de 2003. 0 ac6rdao foi tambem publicado em numero especial do Prontudrio de Direito do Trabalho, Centro de Estudos Judiciarios, n .2 65, 2003. 69 Vd. art. 2 2.2 da Lei n .2 99 I 2003, de 27 de Agosto, que aprovou o C6digo do Trabalho. 70 Registe-se que as Directivas sao designadas no Projecto por "leis-quadro europeias" e os Regulamentos por "leis europeias" (art. 2 32. 2 da Parte I), o que contribui igualmente para clarificar conceitos e uniformizar terminologia. 71 Esta afirmac;:ao nao quer significar que a Parte Social da Constituic;:ao nao deva ser mexida. Em muitas ocasi6es manifestamos objecc;:6es a determinadas normas da Constituic;:ao e, em particular, a uma certa leitura das mesmas. 0 que se quer dizer e apenas que o modelo constitucional deve continuar a ser urn modelo social e nao transmutar-se num modelo liberal.

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0 PROJECTO DE CONSTITUI<;AO PARA A EUROPA E 0 DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Jaime

Cardona Ferreira



0 PROJECTO DE CONSTITUic;AO PARA A EUROPA E 0 DIREITO PROCESSUAL CIVIL

Jaime Cardona Ferreira*

I- INTROITO Em boa hora o Departamento de Direito da Universidade Lusfada (Lisboa) resolveu realizar urn col6quio acerca dos reflexos que a Constitui~ao da Uniao Europeia, se o projecto vier a ser aprovado, tera na jurisdicidade nacional. Agrade~o ao Ex.mo Sr. Professor Doutor Manuel Pires, Director do Departamento, a circunstancia de me ter convidado a intervil~ a prop6sito do Direito Processual Civil. Aceitei o "desafio", ainda que seja 6bvio que se me apresentava corn dois obstaculos, pelo menos: em primeiro lugar~ o facto de eu estar rodeado por conferencistas ilustres, o que e agradavel, mas traz sempre a dificuldade de preferir aproveitar o meu tempo para os ouvir e nao para que me oi~am; em segundo luga1~ a circunstancia de, no que concerne ao tema deste col6quio, o Direito Processual Civil nao ser polo de grandes preocupa~6es. Creio que, na linha desta ultima referenda, posso dizer que, corn toda a probabilidade, esta tematica nao levantara grandes discuss6es que, decerto, se concentrarao nas quest6es organizativas da U.E.. Donde ser previsfvel a aprova~ao das normas constitucionais projectadas acerca do procedimento civilfstico, ainda que, na realidade, possam vir a ter mais importancia do que parece. E, se for, finalmente, para simplificar o nosso ordenamento processual civil, diria que, o que vier por bem, venha. Alias, sempre defendi e continuo a defender que certa internacionaliza~ao da Justi~a e inevitavel (se quem prevarica nao conhece fronteiras, ha-de conhece-las quem pretende evitar ou combater a prevarica~ao?), e que o nosso problema, face a U.E., nao deve ser a contra-posi~ao perante decis6es mas, sim, a montante, a localiza~ao e a interven~ao nas decis6es. Por outro lado encontrei, nesta materia, salutares referencias, designadamente, a Meios Alternativos de Resolu~ao de Litfgios.

* Universidade Luslada de Lisboa. Ex. Presidente do Supremo Tribunal de Justi<;:a. Presidente do Conselho dos Julgados da Paz.

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De todo o modo, centremo-nos no "meu" tema, tendo por seguro - conforme procuro transmitir aos meus alunos, nesta Universidade - que o Direito Processual Civil e muito mais importante do que, ainda hoje, parece haver quem suponha, ao ponto de ser essencial conhece-lo e pratica-lo para efeitos: directo, da realiza<;ao de direitos civis (stricto sensu) e comerciais; e, indirecto - enquanto subsidiario- no que concerne a outros direitos processuais. Nestas bases de pensamento e, ainda, por clever funcional, nao poderia escusar-me de colaborar na procura de uma perspectiva sobre se, quanto ao Direito Processual Civil nacional, se anteviriam reflexos do previsivel futuro Direito Constitucional da Uniao Europeia. Alias como, de certo modo, ja aflorei, o nosso Direito Processual Civil necessita, em termos globais, daquilo a que chamo uma refunda<;ao. Mas, para isso, nao se deve estar a espera dos comandos da U.E., numa area dita partilhada (projecto de Const. da U.E., I, art. 9 139 n. 9 2). 0 assunto diz-nos directamente respeito. Nem deve ser muito dificil, face as experiencias de largas dezenas de altera<;6es que o nosso C.P.C. ja teve. Mas, nao obstante o texto constitucional da U.E. (dito para a Europa), no que concerne ao projecto e a generalidade das areas especificas, para alem de pormenores muito relevantes, fundamentalmente de caracter politico e estruturante, ser urn tipo de conjun<;ao e de desenvolvimento do que ja existe; para se poder inferir se havera, ou nao, efeito directo, penso que convira uma palavra, embora breve, no que concerne a principios gerais - ainda que outros intervenientes melhor se lhes terao referido ou referirao; e, depois, uma segunda palavra ja sobre o que se define, especificamente, acerca do ordenamento juridico-processual civilistico, vale dizer, fundamentalmente, face a urn (longo) normativo da Parte Ill (art. 9 170); a qui, a ten to o seu caracter longo, fui levado a pensar em muitos artigos do C.P.C. portugues (alguns da reforma de 2003), e cheguei a conclusao que nao estamos sozinhos na prolixidade de normativos legais, que nao me parece o mais desejavel, o que digo corn o devido reconhecimento de que nao tenho autoridade na materia (nao passei, e ocasionalmente, de "aprendiz" de legislador, alias, de "pre-legislador", exactamente sobre normatividade processual civil). Como quer que seja, prometi e prometo que apenas ma<;arei a douta assistencia durante escassos minutos e, portanto, vamos ao que importa.

11 - NOTA GERAL

Como sabem, o projecto de Constitui<;ao da U.E. para a Europa - ou, como ha quem prefira dizer, Tratado Constitucional -, dito assumido por consenso, pela Conven<;ao europeia, em 13 de Junho e 10 de Julho de 2003, foi distribuido por 4 Partes - e se o digo e porque tambem o tema que me coube tern a ver corn essa distribui<;ao: a Ji! e constituida pelos principios essenciais e estruturantes da Uniao; a 112 integra a Carta de Direitos Fundamentais; a IIJ1! reporta-se as Politicas e Funcionamento da Uniao, digamos, uma certa

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concretizac;ao global dos prindpios; a IVil. encerra Disposic;6es gerais e finais, incluindo alguns Protocolos. Creio, como ja aflorei e sem ser especialista, poder dizer que este projecto de Constituic;ao da Uniao Europeia englobou, fundiu a desenvolveu Tratados basicos e normatividade convencional e comunitaria que, numa linguagem portuguesa de outros tempos, se poderia dizer extravagante, no 6bvio sentido de desinserida dos tratados essenciais. Alias, e pedindo desculpa por fugir urn pouco ao tema espedfico que me coube, nao sei qual sera o titulo final do texto em aprec;o, mas o projecto chama-se, efectivamente, "Constituic;ao Para A Europa". Isto reflecte, creio, uma significativa intencionalidade da U.E. Nao me assusta, que sou europefsta convicto, mas faz-me perceber a perspectiva abrangente, necessariamente a prazo, que subjaz ao texto em aprec;o. Ainda que sujeita a aprovac;ao, formalmente final, talvez em Dezembro de 2003, seguir-se-a urn processo de ratificac;6es, que levara o seu tempo, naturalmente anos; implicitamente, a declarac;ao prevista para a acta final de assinatura, na Parte IV, preve urn prazo de 2 anos; havendo, alias, normas de cariz especialmente politico, cujo efeito se preve para 2009 - Parte I, v.g. arts 24Q n.Q2, e 25Q n.Q 3 e, logo daf, se poderia dizer que a Constituic;ao da U.E., qua tale, nao poderia ter, necessaria e juridicamente, efeito imediato, inclusive na area que me compete abordar. Mas isto nao significa que, numa certa linha que nao subscrevo, de "esperar para ver", que faz parte, creio, da nossa idiossincrasia, fiquemos a espera; pelo contrario, penso que o facto de o texto constitucional da U.E., como ja disse - salvo alguns pontos muito especiais - ser urn reordenamento e, as vezes, a enfatizac;ao de regras que ja existem, naturalmente dara mais forc;a a essas regras que lhe estao a montante. Diria ate, curiosamente e muito significativamente, que alguns reflexos ate ja aconteceram no Direito Processual Civil Portugues, que se adequam a textos comunitarios convencionais anteriores ao projecto de Constituic;ao da U.E. para a Europa e ao proprio projecto. Concretizo: Coma frisarei adiante, uma das vertentes processuais

CIVIS enfatizadas pelo projecto constitucional europeu, esta no prindpio dito do reconhecimento mutuo das decis6es judiciais e extrajudiciais (Parte Ill - art.Q 170Q n.Q 1). Esta orientac;ao que, alias, e urn retomar e desenvolvimento natural do que ja vem, designadamente, das convenc;6es de Bruxelas (1968) e de Lugano (1980), poderia conflituar corn os arts. 49Q, 65Qe 65Q-A do C.P.C. portugues, a prop6sito dos tftulos executivos estrangeiros e da chamada competencia internacional dos Tribunais portugueses, mormente art.Q 65Q-A (exclusividade de competencia dos Tribunais portugueses). Pois ja em 8 de Marc;o deste ano, atraves do DL n.Q38/2003, que incidiu sobre o processo executivo (embora nao s6), aqueles normativos 49Q, 65Q e 65Q-A foram alterados, passando a dizer-se:

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Art.Q 49Q " 1. Sem prejuizo do que se ache estabelecido em tratados, conven~oes, regulamentos comunitarios e leis especiais, as senten~as proferidas por tribunais ou por arbitros em pais estrangeiro s6 podem servir de base a execu~ao depois de revistas e confirmadas pelo tribunal portugues competente. 2 ....... " Art.Q 65Q " 1. Sem prejuizo do que se ache estabelecido em tratados, conven~oes, regulamentos comunitarios e leis especiais, a competencia internacional dos tribunais portugueses depende da verifica~ao de alguma das seguintes circunstancias: a)············ b) ........... . c) ........... . d) ........... . 2 ............ " Art.Q 65Q-A "Sem prejuizo do que se ache estabelecido em tratados, conven~oes, regulamentos comunitarios e leis especiais, os tribunais portugueses tern competencia exclusiva para: a) ......... . b) ......... . c) ......... . d) ......... . e) ....... " P01tanto e neste ponto importante, a altera~ao mais significativa do C.P.C. esta feita; sendo certo alias que, a meu ver, a nova orienta~ao processual civil sempre decorreria do art.Q 8Q da Constitui~ao da Republica Portuguesa, respeitando, naturalmente, os respectivos pressupostos. Gostaria, ainda, de referenciar que o Direito e sempre evidenciador de processos dialecticos, trate-se de normas nacionais ou internacionais. Curiosamente, e por exemplo o preambulo da Parte II do projecto constitucional europeu referenda a Europa "unida na diversidade" e, frisando a autonomia da propria Uniao, corn a sua propria personalidade juridica (Parte I - art.Q 6Q), e assumindo os, alias, conhecidos principios da subsidariedade e da proporcionalidade (Parte I - art.Q 9Q n.Q 1); tambem se frisa o primado do Direito da U.E., "no exercicio das competencias que lhe sao atribuidas" (Parte I - art.Q 10Q n.Q 1) e que, no que concerne ao chamado "espa~o da liberdade, seguran~a e justi~a", a competencia sera "partilhada", como ja referi, entre a Uniao e os Estados-Membros (Parte I- art.Q 13 n.Q 2). Claro que aquele dominio e muito mais vasto que o Direito Processual Civil, mas abrange-o. E, significativamente, a coopera~ao judiciaria em materia civil sera objecto da lei

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europeia ou de lei-quadro europeia (Parte Ill - art. 9 1709 n. 9 2); e sabe-se que a lei europeia sera "obrigatoria em todos os seus elementos e directamente aplicavel em todos os Estados-Membros" 1, enquanto a lei-quadro europeia, vinculando "os Estados-Membros destinatarios quanto aos resultados a alcan<;:ar" 2, deixara, aos Estados-Membros, apenas, "a competencia quanto a escolha da forma e dos meios" (Parte I - art. 9 329 n. 9 1). Donde, esta partilha entre o todo e as partes implica que estas tanto estejam em si, como no todo, 0 que nao e, exactamente, a mesma coisa, para que a partilha seja realmente positiva. Donde, pode acontecer - e e natural que aconte<;:a - que modifica<;:6es na legisla<;:ao processual civil nacional venham a decorrer, indirectamente, da Constitui<;:ao da Uniao Europeia, atraves de consequente lei europeia ou, ate, de lei-quadro europeia. Ou seja: o processo eventualmente modificativo ainda vai no adro. 0 que nao pode deixar de se acrescentar e que os sectores passiveis de lei europeia ou lei-quadro sao enumerados, mas alguns muito genericos. Ainda sobre a Parte I, gostaria de referir, brevemente, mais dois artigos. Por urn lado, o art. 9 28 9, corn duas normas que tern especial importancia: No n. 9 1, entre o mais, diz-se que os Estados-Membros estabelecem as vias de recurso necessarias para assegurar uma protec<;:ao jurisdicional efectiva no dominio do "Direito da Uniao". Apesar das aparentes duvidas que primo conspectu a palavra "recurso" possa causar, creio ser claro, a partir dos prindpios e da sistematica do projecto, que continua a nao haver sobreposi<;:ao do Tribunal de Justi<;:a Europeu as jurisdi<;:6es nacionais 3 . Digamos que a norma referida e algo como uma futura lei-quadro implicando forma<;:ao espedfica e particular aten<;:ao ao Direito da Uniao, em todos os suas vertentes, mas nao, propriamente, "recurso" de senten<;:as nacionais para Tribunal da Uniao. Por outro lado (n. 9 3 do mesmo art. 9 289 ), subsiste o regime do chamado reenvio "a titulo prejudicial, a pedido dos orgaos jurisdicionais nacionais, sobre a interpreta<;:ao do Direito da Uniao ou sobre a validade dos actos adoptados pelas institui<;:6es". A competencia, para este efeito, a atribuida ao chamado Tribunal de Grande Instancia, em 1~ instancia: Parte I, art. 9 289 n. 9 1; Parte Ill, arts. 263 9 n.9 3 e 27494 . Penso, tambem de acordo corn o Direito Comunitario que ja existe (art. 9 2349 do Tratado, anterior a Constitui<;:ao e posterior ao Tratado de Nice) que, em Portugal, urn Tribunal, mesmo de 1~ instancia (ou urn nao Judicial, como urn Julgado de Paz), ja esta obrigado a remeter o entendimento

1 Dir-se-ia que semelhantemente ao que tern sido o Regulamento (art.Q 249.Q - ex 189 - do Tratado C.E.) 2 Identicamente a Directiva. 3 Coma, alias, sempre foi entendido, pese embora a influencia da Jurisprudencia Comunitaria: v.g. Joao Mota de Campos, Direito Comunitario, I, 299 e segs. 4 Idem, I, 307 e segs. Art.Q 234Q (Tratado de Amsterdao), ex. Art.Q 17~.

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do Direito da U.E., ao competente Tribunal comunitario, quando - coma acontece quanta aos Acordaos do STJ - a decisao da 1~ instancia nao seja passfvel de recurso ordinaria judicial no Direito interno (cfr. art.Q 68Qdo mesmo Tratado). 5 Onde pretendo chegar e a que nada, nem o art.Q 28 da Parte I, apesar da expressao "recursos", implica, creio, qualquer impugnac;ao das decis6es de Tribunais nacionais para o Tribunal de Justic;a Comunitario. Acontece, sim, que tern de se ter em atenc;ao, designadamente, o sistema de interpretac;ao prejudicial pelo Tribunal de Justic;a, neste caso futuramente funcionando pela forma de Grande lnstancia - e, contudo sem que, a meu ver, esteja encerrada a controversia sabre a tese do "acto claro", embora se saiba que e repudiada pelos orgaos comunitarios. Ainda nesta nota geral, retiro, da Parte 11 do Projecto de Constituic;ao da Uniao Europeia, duas referencias basicas: Por urn lado, encontro as ja habituais referencias ao tempo util decisorio (art.Q 17Q), ao prazo razoavel (art.Q 41 Q) e, principalmente, art.Q 47Q; mas, aqui, 0 problema nao e da lei nacional, que nao precisa de alterac;ao especffica (v.g. art.Q 2Q do C.P.C. portugues, na linha do art.Q20Qn.Q4 da C.R.P.); mas pode e deve ser de revisao de organica e, principalmente, de tramitac;ao que, realisticamente, permita cumprir mais genericamente. E, por outro lado, verifico uma regra, alias harmonica corn todo o sistema, reflectindo o princfpio da subsidariedade, que os destinatarios da normatividade sao as instituic;oes da Uniao; mas tambem o sao "os Estados-Membros" "quando apliquem o Direito da Uniao" (11 - art.Q 51Q n.Q 1).

Ill - NOTA ESPECfFICA

Para quem queira estudar esta materia, afinal todos nos, devo comec;ar por reflectir que os princfpios, em materia de Justic;a mais especificamente centrada no Direito Processual Civil, estao concretamente reflectidos na Parte Ill, art.Q 170Q, alias, reconhece-se, na linha de textos comunitarios e convencionais que pre-existem, embora clarificando e aprofundando, ideias pertinentes. Assim, para alem das particularidades atinentes a Direito da Familia, no ambito transfronteiric;o, a ser objecto de particular atenc;ao em futura lei europeia ou lei-quadro europeia (n.Q 3), este art.Q 170Q explicita uma causafinal basica e corolarios - mas, tao importantes que, so por si, podem levar a significativas futuras novidades. Assim e apesar da ordem das referencias literais do n.Q 1, o que encontro nesse n.Q1 e uma ideia-forc;a traduzida pela confianc;a mutua e harmonizac;ao legislativa, cujo alcance pratico imediato e 0 reconhecimento transfronteiric;o

5 Para maior desenvolvimento: "Processo Civil da Uniao Europeia", pelo Cons. Neves Ribeiro, corn prefacio do Prof. Doutor Mota de Campos, 42 salutar e fundamental principio.

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de decis6es judiciais e extrajudiciais: a chamada "livre circula<;ao das decis6es em materia cfvel e comercial". 6 Para tal, preve-se, no n.Q 2, que venha a haver lei europeia ou lei-quadro europeia ( ja, atras, dissemos o que virao a ser), incidentes sabre: a) 0 reconhecimento mutua entre os Estados-Membros das decis6es judiciais e extrajudiciais, e a respectiva execu<;ao; b) A cita<;ao e notifica<;ao transfronteiras dos aetas judiciais e extrajudiciais; c) A compatibilidade das regras aplicaveis nos Estados- -Membros em materia de conflito de leis e de competencia; d) A coopera<;ao em materia de obten<;ao de provas; e) Urn nivel elevado de acesso a justi<;a; f) A boa tramita<;ao dos processos cfveis, promovendo, se necessano, a compatibilidade das normas de processo dvel aplicaveis nos EstadosMembros; g) 0 desenvolvimento de metodos alternativos de resolu<;ao dos litigios; h) 0 apoio a forma<;ao dos magistrados e dos profissionais da justi<;a." Nesta pan6plia de quest6es encontro problematicas de tres naturezas: 1) Maioritariamente, de ordem juridico-processual: aline as a), b), c), d), e) e f); 2) Normatividade sabre Meios Alternativos de Resolu<;ao de Litigios: g); 3) Normatividade sabre forma<;ao de Magistrados e outros profissionais do foro: h). Naturalmente, as materias segunda e terceira sao, claramente, conexas, corn aquilo que e espedfico do Direito Processual Civil. Friso alguns breves apontamentos sabre o que parece mais relevante. 0 que esta em causa e alga que, conforme ja anotado, vira a ser objecto de lei europeia (directamente aplicavel) ou de lei-quadro europeia (concretizavel internamente). 56 entao, se vera em concreto e na globalidade a influencia efectiva do Direito Comunitario sabre o nacional. Para ja, de todo o modo, creio que e conveniente fazer algumas observa<;6es. Todas as referidas materias, especial e abertamente, de caracter processual civil ja se encontravam em Direito comunitario e convencional anterior ao Projecto de Constitui<;ao Europeia, que se limitou a ordenar, estruturar melhor os termos e a explicitar, mais claramente, outras, alias todas ja objecto de estudos ao nivel da U.E. e, ate, de textos legislativos em varios casos. 7 6 v.g. nos 6 e 10 do Introito do Regulamento n. 2 44/2001 e n .o 2 do Introito do Regulamento n. 2 1347/2000, adiante referenciados. 7 Veja-se, designadamente, "Processo Civil da Uniao Europeia", pelo Conselheiro Neves Ribeiro, corn prefacio do Prof. Doutor Mota de Campos.

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Para se ver que assim e, basta compaginar o texto do Tratado da Uniao Europeia, ainda vigente, mormente arts. 61Q e segs., especialmente, art.Q 65Q. 0 que pretendo, daqui, retirar e que ja existem reflexos, ao nivel dos Estados acerca das indicadas materias processuais civis e podem acontecer outros, mas desde logo na base das regras do Tratado vigente e sem necessidade de se esperar pela entrada em vigor da Constitui~ao. Por exemplo e para nao ma~ar muito, a questao mais emblematica, a da eficacia transfronteiri~a das senten~as nacionais, normalmente associada a questoes de conflito de leis e de competencia, (quanto a decisoes extrajudiciais, lembremo-nos das decisoes dos Julgados de Paz; ou, mesmo, dos Conservadores de Registo Civil, no que concerne a Portugal, nestes casos em materias de essencia judicial, como sejam, por exemplo, divorcios nao litigiosos ), ja decorre, designadamente das Conven~oes de Bruxelas (1968) e de Lugano (1988). E, para alem de outros textos complementares, respeita a este tema, o Regulamenta (CE) n.Q 44/2001, do Conselho, de 22.12.2000, 8 expressamente se rejeitando a revisao de merito (art.Q 36Q) e apenas implicando reconhecimento formal executorio a titulo principal (em Portugal, hoje, pelo Tribunal de comarca, corn possibilidade de recurso para a Rela~ao, em caso de impugna~ao ), ou a titulo incidental pelo Tribunal de execu~ao (art.Q 33Q). Este Regulamento pode dizer-se na linha do Regulamento n.Q 1347/2000, (materia familiar) e do Regulamento n.Q 1346/2000, (materia falimentar), ambos do Conselho, de 29.05.2000. Do mesmo passo, a problematica de cita~oes e notifica~oes transfronteiri~as ja e objecto, designadamente, do Regulamento (CE) 1348/2000, do Conselho, de 29.05.2000. Quanto a obten~ao de provas, podemos referil~ v.g., o Regulamento (CE) 1206/2001, do Conselho, de 28.05.2000. A nivel elevado de acesso aJusti~a, v.g. apoio judiciario e a boa tramita~ao dos processos civeis, reporta-se, p.e., a Directiva 2002/8/CE, do Conselho, de 23.01.2003; bem como a Decisao (generica), do Conselho, de 28.05.2001, acerca de uma rede judiciaria europeia em materia civel e comercial. De tudo isto, concluo: Nao sera, directamente, do texto constitucional europeu que resultam, necessariamente, consequencias internas, embora possam vir a acontecer pela via de lei europeia ou lei-quadro europeia. Mas os temas ja sao recorrentes, no que concerne ao Direito Processual Civil. E, isto, corn a enorme relevancia de o Direito Comunitario se nao poder dizer "estrangeiro", mormente para efeitos do art.Q 348.Q do C. Civil. Curiosamente, sao os dois temas simplesmente conexos, que me levam a algumas observa~oes mais especificas: a materia das alineas g) e h) do n.Q 2 do art.Q 170Q (Ill).

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A que a obra citada em *7 chama "um grande passo para um C6digo Judiciario Europeu, de natureza cfvel e comercial" (pag. 29).

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A tendencia inelutavel e, hoje, coma ja reflecti, para uma Justi~a eficiente e de cariz transfronteiri~o . Nem de outra forma teria coerencia corn as liberdades de circula~ao de pessoas, servi~os e mercadorias ou estaria de acordo corn a velocidade do seculo XXI. E corn profunda agrado que vejo referenda explfcita aos Meios Alternativos de Resolu~ao de Litigios, no Projecto de Constitui~ao da Uniao Europeia9. E ainda parece haver, em Portugal, quem duvide da actualidade e da indispensabilidade destes Meios Alternativos a Justi~a Comum! 0 que conviria que houvesse, seria urn desenvolvimento significativo. A Media~ao, a Concilia~ao, os Tribunais Arbitrais, os Julgados de Paz estao, necessariamente, na ordem do dia. E tambem aqui a ordem jurfdica portuguesa esta, ja, no plana constitucional, correcta: arts. 202 2 n. 2 4, 209 2 n. 2 2, 2172 n. 2 3 da C.R.P. . E, no concernente a lei ordinaria, ja existem textos que, ate independentemente da U.E., apenas necessitam de aperfei~oamentos. Refiro-me, em especial, a normatividade sob re Julgados de Paz (Lei n. 2 78 I 2001, de 13.07) e sabre Tribunais Arbitrais Voluntarios (Lei n. 2 31/86, de 29.08, corn as altera~6es decorrentes do DL n. 2 38/2003, de 08.03). Quanta a U.E., no que concerne a esta materia, ja existe urn Livro Verde, de Abril de 2002, no ambito do Conselho; antecedido de uma Recomenda~ao da Comissao, de 04.04.2001, na decorrencia de preocupa~6es acerca de litigios no campo do Direito de Consumo; corn urn Parecer do Comite Economico e Social Europeu, de 11.12.2002; e urn Relatorio do Parlamento Europeu, de 21.02.2003. Nao constitui o tema espedfico deste nosso coloquio, mas tudo isto serve para concluir que a tematica do projecto de Constitui~ao da U.E., tambem aqui, a proposito do que me compete tratar, limita-se a contemplar o que ja vinha sendo motivo de aten~ao. Coma, tambem, a proposito do apoio a forma~ao de magistrados e de outros profissionais da justi~a, ate porque tudo passa par adequada forma~ao . Em Portugal, as bases estao lan~adas, mas e seguro que e necessaria uma forma~ao mais abrangentes, mais intensa, e continua. Alias, ja existem estudos, ao nfvel da U.E., acerca do que vem sendo chamado "rede europeia de forma~ao judiciaria", a que se reportam, em especial, textos do Conselho, de 12 e de 23 de Maio de 2003, alias identicos e respeitantes a urn projecto de interliga~ao e conjuga~ao de escolas nacionais formativas, "tendo em vista o estabelecimento de uma estrutura mais permanente para a forma~ao judiciaria a nfvel europeu" . Para alem do que ja foi referenciado, queria acrescentar uma palavra sabre a normatividade que atribui for~a executiva aos Acordaos do Tribunal de Justi~a da U.E. ea outros aetas da U.E., nos termos dos arts. 288 2 e 3072 da Parte Ill, ate porque, aqui, encontro alguma aparente dificuldade, face a Ja o Conselho da Europa assumiu os Meios Altemativos aJustic;a Comurn como indispensaveis. Ver, entre outras, Recomendac;ao nP R (86) 12, do Conselho de Ministros, de 16.09.1986 (Relat6rio da 23' Conierencia dos Ministros Europeus da Justic;a). 9

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prindpios como os do art. os 202Y n. os 1 e 2 da C.R.P., o que traz dimensao do primado da lei da Uniao:

a colac;ao

a

Art. Q Ill - 288Q "Os acordaos do Tribunal de Justic;a tern forc;a executiva, nos termos do artigo Ill - 307Q." Art.Q Ill - 307Q "Constituem titulo executive os actos do Conselho de Ministros, da Comissao ou do Banco Central Europeu que imponham uma obrigac;ao pecuniaria a pessoas que nao sejam Estados." A execuc;ao rege-se pelas normas de processo civil em vigor no EstadoMembro em cujo territorio se efectuar. A formula executoria e aposta, sem outro controlo alem da verificac;ao da autenticidade do titulo, pela autoridade nacional que o Governo de cada urn dos Estados-Membros designara para o efeito e de que informara a Comissao e o Tribunal de Justic;a. Apos o cumprimento destas formalidades a pedido do interessado, este pode promover a execuc;ao, recorrendo directamente a autoridade competente, em conformidade corn a legislac;ao nacional. A execuc;ao so pode ser suspensa por forc;a de uma decisao do Tribunal de Justic;a. No entanto, a fiscalizac;ao da regularidade das disposic;6es de execuc;ao e da competencia dos orgaos jurisdicionais nacionais." Daqui resulta que, em caso dos arts. 288Qe 307Q (Ill), ou seja, decis6es de 6rgaos da U.E., e nao ja de casos Estados-Membros, a Constituic;ao da U.E., se tiver, aqui, os textos do projecto, nao necessitara de consequente lei europeia ou lei-quadro europeia. Sera, apenas, necessaria que o Estado indique quem verificara a autenticidade do titulo executive. Alias, e sempre necessaria que urn Tribunal nao tenha dtivida sobre o titulo executive para lhe reconhecer exequibilidade: v.g. art.Q 812Qn.Q 2 a) do C.P.C. portugues, ex vi do DL n .Q38/ I 2003, de 08.03. Creio, pois, que o reconhecimento da autenticidade do titulo executive europeu devera ser passivel de decisao de entidade nacional jurisdicional (o que ultrapassa o sentido que, hoje, vem sendo dado a expressao judicial). Mas tal dependera do que seja clarificado pelo Estado, nos referidos termos do art.Q 307 (Ill). De todo o modo, ha, efectivamente, creio, aqui, urn aparente problema decorrente do projectado art.Q 307.Q(Ill), ao prever a exequibilidade de decis6es de 6rgaos da U.E. nao jurisdicionais. Penso que, neste caso, conviria que fosse assegurado, pelo menos, no caso de impugnac;ao, reapreciac;ao de ÂŁundo por 6rgao jurisdicional ou nacional ou da U.E., por exemplo, no ambito do Tribunal de Justic;a e do citado art.Q 288.Q (Ill). 0 problema nem parece dificil: talvez bastasse desenvolver a 1~ parte do ultimo paragrafo do art.Q 307.Q (Ill). E, alias, tambem nao exageremos: o nosso C.P.C., no art.Q 46.Q d) ja preve, como titulos executives, "os documentos a que, por disposic;ao especial, seja atribuida forc;a executiva".

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Sao, exactamente, os chamados tftulos judiciais impr6prios, particulares e administrativos 10 . Na mesma linha, o art.Q 49.Q n.Q2 do CPC, embora a prop6sito de tftulos executivos exarados em Pais estrangeiro, sendo certo, alias, que fazemos parte da U.E. e nao, obviamente, de Pais "estrangeiro" 11 • Deve, assim, referenciar-se que a no<;ao de titulo executivo, na lei processual civil portuguesa, ja tern uma latitude que permite antever facil clarifica<;ao do assunto aludido.

IV - CONCLUINDO

Tanto quanto consegui perspectivar face ao Direito Comunitario que Ja existe ou esta em vias de haver, creio que, do projecto de Constitui<;ao para a Europa (ou para a U.E.), nao ha grandes consequencias imediatas novas para o Direito Processual Civil (ainda que nao esque<;a o aparente problema, a meu ver, decorrente do art.Q 307.Q - Ill, que e de facil clarifica<;ao). Ha melhor enquadramento das materias, ha natural enfatiza<;ao de algumas e, previsivelmente, poderao vir a existir consequencias decorrentes de lei europeia ou de lei-quadro europeia. Alias, tenho para mim, que o Direito e a Justi<;a precisam de constante actualiza<;ao que lhes perrnita nao perder o "comboio" do Tempo. 56 que ha, identicamente, que nao perder o "comboio" do Espa<;o. Na perspectiva de servi<;o aos Cidadaos. Fa<;amos como se diz no Preambulo do projecto: tentemos a unidade na di versidade. Ou seja: sem deixarmos de sermos nos pr6prios: portugueses e europeus. As vezes oi<;o dizer que vamos para a Europa. Mas vamos para onde sempre estivemos ? Claro que se compreende o sentido da questao, mas a nossa "jangada" sempre esteve no "oceano" europeu, ora menos integrada, ora felizmente mais. E, em vez de dizer ou de admitir que vamos para a Europa, prefiro dizer que e nosso papel contribuirmos para o bem do Pais e da Europa, enquanto portugueses e europeus, corn a nossa identidade e a nossa cultura lus6fona e, naturalmente, almejando o melhor possivel para os cidadaos portugueses. Nao e por acaso que falo, nesta recta final das minhas palavras, na identidade e na cultura lus6fonas. Sou europeista, mas penso que seria contra-natura e, verdadeiramente, contra a nossa identidade e a nossa cultura, se nao nos apresentassemos, na "casa comum europeia", corn as nossas vestes e o nosso natural enquadramento lus6fono. E dai que retiramos a identidade e a cultura que constituem, creio, a essencia de urn conceito moderno de nacionalidade.

10 11

Cfr. C.P.C. Anotado, por Lebre de Freitas, Joao Redinha e Rui Pinto, I, 93. Cfr. obra citada, pags. 98/99

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E, no projecto de Constituic;ao Europeia ha muitas ideias que me fazem pensar na lusofonia. Ate o conceito de cidadania europeia (Parte I - art.Q 8Q) me lembra a problematica que, penso, ha que assumir de cidadania lus6fona. Ha tempos que defendo a exisH~ncia de leis basicas, tipo leis-quadro, designadamente no campo processual, para a CPLP - porque e no campo do acesso ao Direito e a tutela jurisdicional que a cultura jurfdica mais pode ajudar uma comunidade. Oxala Portugal possa assumir-se, sempre, corn uma perspectiva sustentada de lusofonia. Finalmente, e reflectindo o que, de algum modo, ja aflorei, sendo Portugal Membro, de pleno direito, da U.E., sempre me pareceu inadequado perspectivarmos as quest6es referentes a U.E. e a Portugal como algo diferente. 0 nosso problema, creio, nao e so cumprirmos ou nao cumprirmos. :E, de urn modo realisticamente possfvel, estarmos nao s6 no cumprimento mas, a montante, de algum modo, na decisao: o que, certamente, e pensado por quem tern a diffcil tarefa de intervir na feitura de urn texto tao profundamente importante como e o projecto de Constituic;ao para a Europa. Dir-se-ia que o termo "constituic;ao" tern, a qui, mais do que urn sentido jurfdico, urn verdadeiro significado etimol6gico. Mas isto, reconhec;o, ultrapassa o que me coube tratar. E, portanto, fico por aqui, reflectindo que: Quanto ao Direito Processual Civil, nada vejo de perturbador salvo, repito, o problema que me parece existir relativamente ao art.Q 307.Q, III, ainda que me parec;a, como disse, facilmente corrigfvel. Inclusive quanto as materias conexas, dos Meios Alternativos e da Formac;ao, apraz-me registar a enfase que o projecto de Constituic;ao lhes da 12 • Por mim, quanto ao tema que me coube, aguardo confiante os pr6ximos capftulos da Hist6ria da Europa. Muito obrigado

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Normas analisadas e citadas referem-se ao Projecto entao conhecido; sendo certo que a normativa veio a ser alterada no subsequente texto do Tratado Constitucional.

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IMPLICA<;OES DO PROJECTO DE TRATADO QUE ESTABELECE UMA CONSTITUI<;AO PARA A EUROPA NO DIREITO PENAL PORTUGUES

Joao Antonio Raposo



IMPLICA<::OES DO PROJECTO DE TRATADO QUE ESTABELECE UMA CONSTITUI<::AO PARA A EUROPA NO DIREITO PENAL PORTUGUES*

Joao Antonio Raposo**

I 1. 0 Conselho Europeu, reunido em Laecken, na Belgica, em 14 e 15 de Dezembro de 2001, convocou a Conven<;ao Europeia sabre o futuro da Europa, encarregando-a de formular propostas que visassem, designadamente, a aproxima<;ao dos cidadaos ao projecto europeu e as institui<;oes europeias, bem coma a estrutura<;ao da vida polftica e do espa<;o politico europeu numa Uniao alargada que se aproximava a passos muito largos. Os trabalhos da Conven<;ao culminaram corn a elabora<;ao de urn Projecto de Tratado que estabelece uma Constitui<;ao para a Europa, Projecto que foi aprovado por consenso pela Conven<;ao Europeia em 13 de Junho e 10 de Julho de 2003, e apresentado, em 20 de Julho, ao Conselho Europeu de Salonica. E esse Projecto de Tratado que estabelece uma Constitui<;ao para a Europa que hoje aqui se analisa, numa abordagem multidisciplinar, procurando perceber em que medida ele projecta os seus efeitos sabre as diversas disciplinas em que se desdobra o ordenamento juridico interno portugues. Nessa sequencia, e corn esse objectivo, chegou agora a vez do Direito Penal. A pergunta a que procuremos dar uma resposta nao e, obviamente, a de saber se a Constitui<;ao Europeia que se projecta contem normas susceptiveis de influenciar os Direitos Penais dos Estados-membros. Corn efeito, sendo o Direito Penal constituido por normas que afectam de forma evidente os direitos mais fundamentais das pessoas, estranho seria que urn Projecto de Constitui<;ao a ele se nao referisse. 0 Projecto de Constitui<;ao Europeia contem, evidentemente, principios e normas corn conteudo penal, coma tambem as contem (e nao poderiam deixar de canter) as diferentes constitui<;oes nacionais.

• 0 presente texto serviu de base a comunicac;ao proferida na Universidade Lusiada de Lisboa, em 4 de Dezembro de 2003. * Universidade Lusiada de Lisboa.

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Em suma: a questao relevante nao e a de saber se o Projecto de Constitui<;ao Europeia contem normas em materia penal, mas a de saber que normas sao essas e em que aspectos e em que medida e que influenciam o Direito Penal portugues. 2. Percorrendo o clausulado do Projecto de Constitui<;ao Europeia1 encontramos dais tipos de disposi<;6es de entre as que tern implica<;6es na area do Direito Penal. Encontramos, em primeiro lugar, preceitos que reafirmam alguns dos principios fundamentais de Direito Penal substantivo ja vigentes entre n6s 2 • Encontramos, depois, preceitos que, na sequencia do Tratado de Amsterdao, procuram criar as condi<;6es necessarias ao aprofundamento do que vem sendo designado por espa<;o penal europeu. Enunciaremos, de seguida, os mais importantes de uns e outros, pontuando sumariamente essa enuncia<;ao corn a chamada de aten<;ao para algumas quest6es suscitadas pelos mesmos.

11

3. Quanta ao primeiro tipo de disposi<;6es encontramo-las, fundamentalmente, na Parte 11 do Projecto, que, coma ja referido, acolhe a chamada Carta dos Direitos Fundamentais da Uniao 3 • No seu articulado consagram-se expressamente os seguintes principios em materia penal:

1.1 Principio da humanidade das penas

0 principio da humanidade das penas retira-se de varios preceitos da Carta. Do artigo II-2Q, na parte em que se afirma expressamente a proibi<;ao da condena<;ao e execu<;ao de penas de morte; do artigo II-4Q, na parte em que se profue a tortura, os maus tratos e as penas desumanas ou degradantes; ou do artigo II-SQ, na parte em que profue a escravidao, os trabalhos for<;ados ou obrigat6rios. De alguma forma ainda manifesta<;ao do principio da humanidade das penas e o preceituado no artigo II-19Q, n.Q 2, onde se profue expressamente a expulsao ou extradi<;ao "para urn Estado onde o agente corra serio risco de

1 0 Projecto ecompos to por quatro partes: uma primeira parte sobre a defini~ao e objectivos da Uniao; uma segunda parte que acolhe a Carta dos Direitos Fundamentais da Uniao; uma terceira parte sobre as polfticas e funcionamento da uniao; e, finalmente, uma quarta parte, composta por disposi~5es gerais e finai s. 2 Porque ja consagrados na Constitui~ao Portuguesa, na Conven~ao Europeia dos Direitos do Hornem, ou no proprio C6digo Penal. 3 A Carta dos Direitos Fundamentais da Uniao Europeia foi proclamada a 7 de Dezembro de 2000, por ocasiao do Conselho Europeu de Nice. Para mais desenvolvimentos sob re os seus objectivos, o seu ambito de aplica~ao, os direitos que consagra ou o seu estatuto, veja-se, corn bastante interesse, Ant6nio Vitorino, Carta dos Direitos Fundamentais da Uniao Europeia, Principia, 2002.

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ser sujeito a pena de morte, a tortura ou a outros tratos ou penas desumanos ou degradantes". Em nota ao que neste preceito se estabelece deve evidenciar-se que se percebe alguma diferenc;a entre a forma como esta materia e tratada pelo Projecto de Constituic;ao Europeia e o modo como e tratada pelo artigo 33Q da Constituic;ao Portuguesa. A uma primeira analise, este artigo II-19Q, n.Q 2, do Projecto, parece simultaneamente mais amplo e mais restrito do que o Artigo 33Q da Constituic;ao Portuguesa. E mais amplo porque proibe expressamente a expulsao ou extradic;ao para pafses onde o agente corra serio risco de ser sujeito a tortura ou a outros tratos ou penas desumanos ou degradantes, expressao aparentemente mais abrangente do que a proibic;ao de extradic;ao por crimes a que corresponda, segundo o direito do estado requisitante, pena de que resulte lesao irreversfvel da integridade ffsica, constante do n.Q 6 daquele artigo 33Q. Mas e, simultaneamente, mais restrito, na medida em que, ao menos explicitamente, nao impoe quaisquer limites a possibilidade de expulsao ou extradic;ao para pafses onde ao agente possa ser aplicada pena ou medida de seguranc;a privativa ou restritiva da liberdade corn caracter perpetuo ou de durac;ao indefinida, como faz entre nos o artigo 33Q, n.Q 4, da Constituic;ao. 1.2 Prindpio da legalidade Ainda na Carta dos Direitos Fundamentais encontramos depois consagrado no artigo II-49Q o princfpio da legalidade dos delitos e das penas. Corn efeito, preceitua expressamente o n.Q 1 desse artigo que: "Ninguem pode ser condenado por uma acc;ao ou omissao que, no momento da sua pratica, nao constitufa infracc;ao a luz do direito nacional ou internacional. Do mesmo modo, nao pode ser imposta uma pena mais grave do que a aplicavel no momento em que a infracc;ao foi praticada. Se, posteriormente a infracc;ao, a lei previr uma pena mais leve, deve ser essa a pena aplicada". Explicitam-se, dessa forma, as consequencias que do prindpio da legalidade decorrem em materia de aplicac;ao da lei penal no tempo e que tambem ja resultam do artigo 29Q da Constituic;ao Portuguesa: ou seja, o princfpio da proibic;ao de aplicac;ao retroactiva de normas penais desfavoraveis ao arguido e o princfpio da aplicac;ao retroactiva de normas penais de contetido favoravel ao arguido. Tambem esta disposic;ao nos merece alguns comentarios. Em primeiro lugar para destacar a aparente previsao, implicada na disjuntiva "ou" utilizada naquele n.Q 1, da possibilidade de o direito internacional poder ser fonte autonoma de crimes nao previstos enquanto tal pelas legislac;oes nacionais 4 • Em segundo lugar para evidenciar o que nos parece ser uma pouco feliz redacc;ao da parte final do n.Q 1 daquele artigo II-49Q. 0 prindpio da aplicac;ao

4 Concretizaremos este ponto mais a ÂŁrente, especificamente no que se refere ao Direito da Uniiio, procurando esclarecer corn mais rigor as compeh~ncias que do Projecto de Constitui<;iio Europeia decorrem para os 6rgaos da Uniiio em materia de cria<;iio de crimes e penas.

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retroactiva de normas penais de conteudo favoravel ao arguido vem ai consagrado nos seguintes termos: "Se, posteriormente a infrac<;ao, a lei previr uma pena mais leve, deve ser essa a pena aplicada". A expressao e, no meu entendimento, injustificadamente restritiva. Corn efeito, de aplica<;ao retroactiva devem ser todas as leis penais de conteudo mais favoravel ao arguido e nao apenas aquelas que, de entre estas, prevejam uma pena mais leve. E que, como e evidente, o conteudo mais favoravel de uma lei posterior ao facto nao tern de se traduzir, necessariamente, no estabelecimento de uma pena mais leve, podendo resultar, como e evidente, de uma multiplicidade de factores 5 e, desde logo, da elimina<;ao do facto do numero de infrac<;ao (como, bem, preve hoje o artigo 2Q, n.Q 2, do Codigo Penal). Em suma: a formula utilizada pelo artigo II-49Q e, se bem entendo as coisas, injustificadamente restritiva, devendo ser substituida por outra mais abrangente, como a que consta, por exemplo, da Constitui<;ao Portuguesa, que manda aplicar retroactivamente nao as leis penais que prevejam uma pena mais leve, mas as que tenham urn conteudo mais favoravel. Prosseguindo na analise deste artigo II-49Q da Carta, na parte em que consagra o prindpio da legalidade, merece igualmente referenda o seu n.Q 2, onde se preceitua expressamente que "0 numero anterior nao prejudica a senten<;a ou a pena a que uma pessoa tenha sido condenada por uma ac<;ao ou omissao que, no momento da sua pratica, constituia crime a luz dos prindpios gerais reconhecidos por todas as na<;6es". Trata-se de norma corn conteudo semelhante ao do artigo 29Q n.Q2 da Constitui<;ao Portuguesa. Trata-se, em suma, da consagra<;ao pelo Projecto de Constitui<;ao Europeia, a semelhan<;a do que faz a Constitui<;ao Portuguesa, do costume internacional como fonte de normas penais. Coloca, por isso, problemas de interpreta<;ao e aplica<;ao semelhantes aos que tambem coloca o artigo 29Q, n.Q 2, da Constitui<;ao Portuguesa e que nao cabe aqui aprofundar 6• 1.3 Principio da proporcionalidade Ainda no artigo II-49Q da Carta consagra-se depois, no n.Q3, o prindpio da proporcionalidade das penas - as penas nao podem ser desproporcionadas em rela<;ao a infrac<;ao - de forma semelhante a que tambem ja decorre, entre nos, do artigo 18Q, n.Q 2 da Constitui<;ao Portuguesa.

Pode resultar, por exemplo, de urn encurtamento dos prazos de prescri~ao ou de uma altera~ao da natureza do crime, que sendo antes publico passe a semi-publico ou particular. 6 Sobre alguns dos problemas a que nos referimos veja-se Jose Sousa e Brito, "A lei Penal na Constitui~ao", in Estudos sabre a ConstituifiiO (coordenafiio de forge Miranda), 2Q ,vol., Petrony, 1978, pp. 242-243. Especificamente sobre a articula~ao deste preceito corn o Direito da Uniao veja-se Germano Marques da Silva, Direito Penal Portugues, I Vol., Verbo, 1997, pp. 236 a 241. 5

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1.4 Principio do non bis in idem Finalmente, no artigo II-50Q, consagra-se o prinCipiO do non bis in idem. Af se afirma que "ninguem pode ser julgado ou punido penalmente por urn delito do qual ja tenha sido absolvido ou pelo qual ja tenha sido condenado na Uniao por senten<;a transitada em julgado nos termos da lei". Tambem este preceito nos merece uma chamada de aten<;ao para evidenciar que nele apenas se profbe o duplo julgamento ou a dupla condena<;ao ns hip6teses em que o primeiro julgamento ou condena<;ao tenha acontecido "na Uniao". A pergunta que pode legitimamente colocar-se e a de saber se urn cidadao portugues que foi ja julgado e condenado num pais que nao perten<;a a Uniao, por facto af praticado, pode voltar a se-lo em Portugal pelo mesmo facto? A resposta e, em prindpio, negativa. Porem, a proibi<;ao de efectuar novo julgamento e nova condena<;ao nao decorre do artigo II-50Q do Projecto, mas do artigo 29Q, n.Q 5, da Constitui<;ao Portuguesa e do artigo 6Q, n.Q 1, do C6digo Penal, que nessa medida tern alcance mais amplo. 4. A terminar a primeira parte desta breve apresenta<;ao cabe chamar a aten<;ao para a norma do artigo II-53Q do Projecto, nos termos da qual "nenhuma disposi<;ao da Carta deve ser interpretada no sentido de restringir os direitos e as liberdades fundamentais reconhecidos, designadamente, pelas Constitui<;6es dos Estados Membros". Dessa forma, sempre que se se detecte uma diferen<;a - nao apenas de redac<;ao mas verdadeiramente de conteudo - entre o ambito de protec<;ao conferido por urn princfpio no Projecto de Constitui<;ao Europeia e o seu ambito de protec<;ao na Constitui<;ao Portuguesa, prevalecera este ultimo, ao menos naqueles casos em que essa diferen<;a se traduza numa menor protec<;ao conferida pela formula<;ao do princfpio na Constitui<;ao Europeia.

Ill

5. Cremos, porem, que em materia de Direito Penal a preocupa<;ao central do Projecto de Constitui<;ao Europeia foi, inequivocamente, a de institucionalizar e refor<;ar as condi<;6es indispensaveis ao desenvolvimento do chamado "espa<;o de liberdade, seguran<;a e justi<;a", o que, na area do Direito Penal, se traduz na cria<;ao das condi<;6es para o refor<;o do que vem sendo designado por "espa<;o penal europeu". Coma acentua Lopes da Mota 7 a Uniao Europeia encontra-se, fundamentalmente desde o Tratado de Amsterdao, num momento de profundas mudan<;as na area da justi<;a penal, percebendo-se hoje em desenvolvimento tres movimentos que, agindo conjuntamente, constituem, nas palavras sugestivas daquele autor, as "acendalhas do sistema que conduzira a cons7

Jose Lufs Lopes da Mota, "A Eurojust ea emergencia de urn sistema de justi<;a penal europeu",

in Revista Portuguesa de Ciencia Criminal, Ano 13, n.Q 2, Abril-Junho 2003, pp. 177 ss.

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trw;ao de urn verdadeiro espa<;o penal europeu" - refere-se Lopes da Mota ao reconhecimento mutuo de decis6es, a harmoniza<;ao de infrac<;6es penais e de san<;6es e a cria<;ao de actores judiciarios europeus em materia penal. E alguns passos ja foram mesmo dados - ainda antes do Projecto de Constitui<;ao Europeia - no sentido da implementa<;ao daqueles instrumentos. Assim, no que se refere ao reconhecimento mutuo de decis6es - que implica, em prindpio, a atribui<;ao de efidcia directa a decis6es de uma autoridade judiciaria nacional em todo o espa<;o da Uniao Europeia - a decisao-quadro n.Q 20021584/JAI, sobre o mandata de deten<;ao europeu, de 13 de Junho de 2002, entretanto ja transposta para o direito interno portugues atraves da Lei n.Q 65 I 2003, de 23 de Agosto, constitui a primeira aplica<;ao pratica desse prindpio. No que respeita a harmoniza<;ao de infrac<;6es penais e de san<;6es, o art. 61 Q do Tratado da Uniao ja preve que, no prazo de 5 anos a con tar da data da entrada em vigor do Tratado de Amsterdao (portanto, ate 2004) deverao ser adoptadas medidas que prevejam regras mfnimas quanto aos elementos constitutivos das infrac<;6es penais e as san<;6es aplicaveis nos domfnios da criminalidade organizada, terrorismo e trafico de droga. E, em execu<;ao dessa previsao foi ja emitida uma decisao quadro sobre o terrorismo, tambem de 13 de Junho de 2002, que visou precisamente harmonizar nessa materia os crimes e penas previstos nas diferentes legisla<;6es nacionais, e que, entre nos, ja deu origem a entrada em vigor da Lei n.Q 5212003, de 22 de Agosto- a chamada Lei de Combate ao terrorismo - que, precisamente em cumprimento dessa decisao quadro - que e a decisao quadro n. Q 2002 I 475 I /J AI - revogou os artigos 300Q e 301 Q do Codigo Penal, criando nova legisla<;ao nesta materia. Finalmente, no que se refere a cria<;ao de actores judiciarios europeus, cumpre destacar que ja esta em actividade o primeiro actor europeu na area da justi<;a penal - a Eurojust8 • 6. Mas, voltando directamente ao tema desta comunica<;ao, o que pode dizer-se e que o Projecto de Constitui<;ao Europeia se insere, no que se refere a este movimento tendente a cria<;ao do espa<;o penal europeu, numa clara linha de continuidade, procurando refor<;ar aqueles instrumentos. Assim, ainda na primeira parte do Projecto, no artigo II-41Q, e depois de se afirmar que a Uniao constitui urn espa<;o de liberdade, seguran<;a e justi<;a, se refere que, nessa materia, compete a Uniao: - adoptar leis e leis-quadro destinadas, se necessaria, a aproximar as legisla<;6es nacionais nos dom{nios enumerados na Parte Ill (entre os quais se inclui, nos termos em que veremos ja de seguida, a materia penal); - promover a confian<;a mutua entre as autoridades competentes dos Estados-Membros, em especial no reconhecimento das decis6es judiciais e extra-judiciais; 8 Sobre a Eurojust, cfr. Anabela Miranda Rodrigues e Jose Lufs Lopes da Mota, Para uma politica criminal europeia - quadros e instrumentos jur(dicos da cooperariio judicidria em materia penal no esparo da llniiio Europeia, Coimbra Editora, 2002; e Jose Lufs Lopes da Mota, ob. cit..

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Implica~6es

do Projecto de Tratado que estabelece uma Constitui~ao para a Europa ... , p. 205-214

- promover a coopera<;:ao operacional entre as autoridades competentes dos Estados-Membros, incluindo os servi<;:os policiais, aduaneiros e outros servi<;:os especializados no domfnio da preven<;:ao e detec<;:ao de infrac<;:oes penais. Mais a ÂŁrente no Projecto a materia da cria<;:ao do Espa<;:o de Liberdade, seguran<;:a e justi<;:a e objecto de todo o Capftulo IV, da Parte III, que reafirma, logo no Artigo III-158Q, n.Q 3, que: "A Uniao envida esfor<;:os para garantir urn elevado nfvel de seguran<;:a, atraves de medidas de preven<;:ao e luta contra a criminalidade e contra o racismo e a xenofobia, de medidas de coordena<;:ao e coopera<;:ao entre autoridades policiais e judiciarias penais e as outras autoridades competentes, bem como atraves do reconhecimento mutuo das decisoes judiciais em materia penal e, se necessaria, da aproxima<;:ao das legisla<;:oes penais". E, na Sec<;:ao 4" desse Capitulo, especificamente dedicada a coopera<;:ao judiciaria em materia penal, refere-se no Artigo III-171 Q que "A coopera<;:ao judiciaria em materia penal na Uniao assenta no princfpio do reconhecimento mutuo das senten<;:as e decisoes judiciais e inclui a aproxima<;:ao das disposi<;:oes legislativas e regulamentares dos Estados-Membros nos domfnios a que se refere o n.Q 2 e o artigo III-172Q". Esses domfnios sao, nos termos do ultimo preceito citado: o terrorismo, o trafico de seres humanos e explora<;:ao sexual de mulheres e crian<;:a, o trafico de droga e de armas, o branqueamento de capitais, a corrup<;:ao, a contrafac<;:ao de meios de pagamento, a criminalidade informatica ea criminalidade organizada. 0 proprio artigo 1722 preve, contudo, a possibilidade do alargamento desse catalogo, estabelecendo a possibilidade de o Conselho de Ministros poder adoptar uma decisao europeia que identifique outros domfnios de criminalidade em rela<;:ao aos quais se justifique essa harmoniza<;:ao. Em suma: compete a Uniao harmonizar as legisla<;:oes dos diferentes Estados-Membros no que aqueles crimes diz respeito. Essa harmoniza<;:ao e feita atraves do estabelecimento de regras mfnimas relativas a defini<;:ao das infrac<;:oes penais e das san<;:oes e sempre atraves de lei-quadro europeia. Este ultimo ponto e fundamental. Porque o estabelecimento das tais regras mfnimas quanto a defirti<;:ao das infrac<;:oes penais e das san<;:oes e feito atraves de leiquadro europeia e nao de lei europeia, sera sempre necessaria urn acto interno de transposi<;:ao para que a referida harmoniza<;:ao se de. Pode, por isso, concluir-se que, neste ponto, o Projecto de Constitui<;:ao Europeia mantem, no fundamental, as competencias dos Estados Membros em materia de cria<;:ao de crimes e penas. Apenas se alarga o leque das infrac<;:6es em rela<;:ao as quais a Uniao se reserva o direito de definir regras mfnimas quanto a defini<;:ao das proprias infrac<;:oes e penas, 0 que sera feito, corn as consequencias que vimos, atraves de lei-quadro europeia. 7. Para concluir esta breve exposi<;:ao importa ainda referir que a Constitui<;:ao Europeia tambem se refere e apresenta novidades no que tern a ver corn outra das "traves mestras" do sistema: a cria<;:ao dos tais actores europeus

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Joao Ant6nio Raposo

em materia penal. Consagra a EUROJUST no artigo III-174Q, a quem atribui a missao de apoiar e refon;ar a coordena<;i'io entre as autoridades nacionais competentes para a investiga<;ao e o exerdcio da ac<;ao penal em materia de criminalidade grave que afecte dois ou mais Estados-Membros ou exija uma ac<;i'io penal assente em bases comuns, corn base nas opera<;oes conduzidas e nas informa<;oes transmitidas pelas autoridades dos Estados-Membros e pela Europol. Preve que seja a lei Europeia a determinar a sua estrutura, o seu funcionamento, e o seu dominio de ac<;ao e fun<;oes. Fun<;oes que, nos termos do mesmo preceito, poderao abranger a instaura<;i'io e a coordena<;ao de ac<;oes penais conduzidas pelas autoridades nacionais competentes, em especial as relativas a infrac<;oes lesivas dos interesses financeiros da Uniao, bem como o refor<;o da coopera<;i'io judiciaria, inclusive mediante a resolu<;i'io de conflitos de jurisdi<;i'io e uma estreita coopera<;i'io corn a Rede judiciaria europeia. Finalmente, e ainda no que tern a ver corn actores europeus na area da justi<;a penat o artigo III-175Q preve a possibilidade de ser instituida, por lei europeia do Conselho de Ministros, uma Procuradoria Europeia a partir da Eurojust corn o objectivo de combater a criminalidade grave de dimensao transfronteiras, bem como as infrac<;oes lesivas dos interesses da Uniao. Essa Procuradoria Europeia, a ser criada, sera competente para investigar, processar judicialmente e levar a julgamento, eventualmente em liga<;i'io corn a Europot os autores e cumplices de crimes graves que afectem varios Estados-Membros, bem como as infrac<;oes lesivas dos interesses financeiros da Uniao. Competira a lei europeia definir o seu estatuto, as condi<;oes em que exercera as suas fun<;oes, as regras processuais aplicaveis as suas actividades e as que regem a admissibilidade das provas, bem como as regras aplicaveis ao controlo jurisdicional dos actos processuais que aprovar no exerdcio das suas fun<;oes. Tera ainda por fun<;i'io exercer, perante os orgaos jurisdicionais competentes dos Estados-membros, a ac<;i'io publica relativa a crimes graves que afectem varios Estados-Membros, bem como as infrac<;oes lesivas dos interesses financeiros da Uniao.

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ASPECTOS PLURIDISCIPLINARES DO PROJECTO DE CONSTITUI~AO EUROPEIA

Jose Lucas Cardoso



ASPECTOS PLURIDISCIPLINARES DO PROJECTO DE CONSTITUI<;AO EUROPEIA

Jose Lucas Cardoso *

Aspectos constitucionais ** Come<;o por cumprimentar todo o audit6rio mas tambem por manifestar publicamente o meu agrado pelo interesse que os alunos demonstraram neste col6quio, aferido pela sua participa<;ao em massa. Gostaria de cumprimentar pessoalmente o Prof. Manuel Pires, de o felicitar por mais esta iniciativa que o Departamento de Direito em boa hora promoveu e de lhe agradecer publicamente por se ter lembrado deste seu disdpulo para falar em nome dos constitucionalistas neste encontro pluridisciplinar. Uma sauda<;ao pessoal ainda para o Prof. Pedro Pais de Vasconcelos e para o Dr. Albino Mendes Baptista, meus colegas de mesa nesta aventura, e tambem para o Dr. Ricardo Leite Pinto, nao apenas na sua condi<;ao institucional de representante da Funda<;ao Minerva neste acto escolar mas tambem na condi<;ao de academico interessado, e conhecedm~ das materias que aqui venho abordar. Sobre que assunto venho aqui falar? Como vou explorar o tema? 0 Prof. Manuel Pires confiou-me a apresenta<;ao do sub-tema: "As implica<;oes que o Projecto de Tratado que estabelece uma Constitui9iio para a Europa se afigura susceptfvel de produzir sobre o ordenamento constitucional portugues". A resposta que, neste momento, poderei dar a este apelo sera mais uma partilha de algumas das minhas pr6prias inquieta<;oes de jurista sobre a materia corn o auditoria que a apresenta<;ao de qualquer solu<;ao para os

* Universidade Lusfada de Lisboa. ** 0 presente texto mantem, no essencial, a estrutura e o teor da

comunica~ao oral, apenas foram acrescentados os subtftulos, a segmenta~ao do texto e urn ligeiro desenvolvimento de alguns aspectos que no momento nao se afiguraram priorit<irios em fun~ao do tempo disponfvel.

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problemas cadentes. Assim sendo, e segundo uma conhecida formula metodologica, a minha comunica<;ao "correspondera mais a urn sistema de hipoteses que a urn corpo de conhecimentos" (Karl Popper). Atentas estas circunsHincias, vou organizar a minha comunica<;ao do seguinte modo: come<;arei por (i) uma pequena apresenta<;ao do conteudo do projecto, que tern apenas o intuito de permitir a integra<;ao no tema daqueles que ainda nao tiveram oportunidade de tomar contacto corn 0 texto, a qual se segue (ii) urn comentario acerca da natureza jurfdica do projecto, continuarei corn (iii) a analise do conteudo do mesmo projecto ou, pelo menos, dos aspectos que assumem maior relevo no ambito do presente coloquio, para concluir corn (iv) a reflexao que numa "primeira leitura" (para usar a expressao caracterfstica do procedimento comunitario de decisao, agora redenominado "procedimento legislativo ordinaria", cfr. artigo III-302.Q) e possfvel fazer sabre as implica<;6es que as solu<;6es propostas pela Conven<;ao Europeia poderao eventualmente produzir no Direito Constitucional portugues. Quem elaborou este Projecto de Tratado que estabelece uma Constituirao para a Europa?

0 projecto em apre<;o foi elaborado por urn colegio de sabios, denominado "Conven<;ao Europeia para o futuro da Europa", que foi constitufdo e incumbido dessa tarefa pelo Conselho Europeu, reunido em Laeken, na Belgica, em 14 e 15 de Dezembro de 2001. A Conven<;ao, presidida pelo antigo Chefe de Estado frances, Valery Giscard d'Estaing, era composta por representantes do Parlamento Europeu, da Comissao Europeia, dos Parlamentos nacionais, dos Governos dos Estados-membros e ainda dos Parlamentos e dos Governos dos Estados candidatos a adesao. Qual o contetido deste documento?

0 projecto entregue ao Presidente do Conselho Europeu, em Roma, em 18 de Julho de 2003, desdobra-se em quatro partes: "Parte geral", "Carta dos direitos fundamentais da Uniao", "Politicas e funcionamento da Uniao" e "Disposi<;6es gerais e finais", e em cada uma delas os artigos seguem uma numera<;ao propria. A Parte primeira, a que os membros da Conven<;ao se abstiveram de conferir epfgrafe, compreende nave tftulos: "Defini<;ao e objectivos da Uniao", "Direitos fundamentais e cidadania da Uniao", "Competencias da Uniao", "Institui<;6es da Uniao", "Exercfcio das competencias da Uniao", "Vida democratica da Uniao", "Finan<;as da Uniao", "A Uniao e os Estados vizinhos" e "Qualidade de membra da Uniao". Aqui encontramos as tete de chapitre das materias consagradas ao longo das partes 11 e Ill, pelo que estes cinquenta e nave artigos constituem per se "a funda<;ao, o fundamento e o fundamental" (F. Lucas Pires) da Uniao Europeia.

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A Parte II consiste na reprodu<;ao, quase na integra, da "Carta dos Direitos fundamentais da Uniao Europeia" e o seu acolhimento no projecto representa a penultima etapa de urn percurso em sentido inverso aquele que foi celebrizado pela parabola de von Kirchmann, isto e, 0 impulso decisivo para converter urn documento que os mais cepticos temiam que nunca passasse de "urn panfleto europeu sobre direitos fundamentais" (Bacelar Gouveia) num texto juridicamente vinculativo. A Parte Ill, como a epfgrafe "Polfticas e funcionamento da Uniao" segure, respeita quer (i) a interven<;ao da Uniao Europeia nos domfnios economico, social e cultural, como liberdade de circula<;ao dos factores de produ<;ao, regras de concorrencia, polftica economica e monetaria, emprego, polftica social, agricultura e pescas, ambiente, defesa dos consumidores, transportes, investiga<;ao e desenvolvimento tecnologico, energia, controlo nas fronteiras, asilo e imigra<;ao, coopera<;ao judiciaria e policial, saude publica, industria, cultura, educa<;ao, ... , quer (ii) a organiza<;ao intema da Uniao que os juscomunitaristas convencionaram denominar por sistema institucional. A Parte IV, identificada pela epfgrafe "Disposi<;6es gerais e finais", compreende normas sobre aspectos diversos como os sfmbolos da Uniao, o destino dos tratados anteriores (alias a fusao dos tratados, numa atitude de sistematiza<;ao de todo o ediffcio jurfdico comunitario, era urn dos objectivos a que a Conven<;ao se ha via proposto, cfr. prefacio das Partes I e 11 do projecto ), a personifica~ao jurfdica da Uniao (idem), a revisao do tratado e os mecanismos referentes a adop<;ao, ratifica<;ao e entrada em vigor do mesmo. Analisados os tra<;os essenciais do conteudo do projecto, conclufmos que este acolhe materias que integram os dois "nucleos duros" (Comes Canotilho) da reserva de Constitui<;ao dos Estados europeus delimitados na sequencia da Revolu<;ao Francesa, tambem identificados por "quintessencia da lei suprema" (F. Lucas Pires): "direitos fundamentais" (Partes I e 11) e "organiza<;ao do poder politico" que os juscomunitaristas, conforme referi, identificam prefencialmente por organiza<;ao institucional (Partes I e Ill). 0 projecto integra ainda normas referentes as "polfticas de Uniao" que consideramos dotadas de uma "essencia constitucional" (John Rawls) de segunda gera<;ao porque adquiriram essa dignidade no infcio do seculo XX quando algumas assembleias constituintes (Mexico, 1917 e Alemanha, 1919) come<;aram a qualificar as tarefas de "conforma<;ao da sociedade" (Rogerio Soares) como urn fim do Estado (Partes I e Ill). Que natureza reveste, afinal, este documento?

Se acabei de reconhecer que "a Constitui<;ao Europeia ja existe, em sentido material" (G. d'Oliveira Martins), considero "prematuro" (Llopis Carrasco) ÂŁalar neste momento em Constitui<;ao Europeia em sentido formal. Corn efeito, a propria Conven<;ao assume estarmos perante urn diploma inserido num procedimento de celebra<;ao de urn tratado internacional que vinculara os Estados partes apos ratifica<;ao de acordo corn as respectivas normas constitu-

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cionais e entrarci em vigor se e quando for ratificado por todos os actuais Estados-membros (artigo IV-S.Q). A aprova<;ao de uma Constitui<;ao em sentido formal pressup6e a adop<;ao de urn procedimento constituinte de dimensao europeia. Considerando que nao existe urn poder constituinte ao nivel da Uniao Europeia, o procedimento a adoptar devera conjugar o exercicio das soberanias dos quinze Estados-membros e passara pela celebra<;ao de urn tratado internacional em cujos termos sera prevista a forma<;ao de uma assembleia constituinte designada por processos democraticos, que podera ser o proprio Parlamento Europeu, incumbida de exercer o poder constituinte em name dos povos dos quinze Estados-membros. Uma vez aprovado, o texto constitucional devera ser sujeito a ratifica<;ao dos Estados corn interven<;ao dos Parlamentos nacionais e corn eventuat e em meu entendimento desejavel porque mais conforme ao principio democratico, sujei<;ao a referenda popular. A consulta referendaria devera incidir sabre a decisao de cada Estado ratificar, ou nao, a Constitui<;ao Europeia porque neste primeiro momento constituinte, cada urn dos povos europeus estara ainda a exercer o seu direito a auto-determina<;ao e, nesse ambito, a decidir da sua participa<;ao na constru<;ao de urn novo Estado (federal). Para concluir sabre a questao da natureza juridica do documento que a Conven<;ao Europeia nos apresenta, gostaria apenas de acrescentar que, atenta a circunstancia deste compreender materia constitucional que no entanto sera acolhida na ordem juridica positiva par tratado internacionat a expressao Tratado que estabelece uma Constituic;iio para a Europa e assim aquela que melhor identifica a simbiose que a Conven<;ao promoveu entre conteudo e forma do documento e devera permanecer "ate que Programa e Processo sejam os da mesma Constitui<;ao" (F. Lucas Pires ). Quais os caminhos possiveis para a Europa? A op<;ao pela aprova<;ao de uma Constitui<;ao ou pela celebra<;ao de urn tratado internacional depende da resolu<;ao de uma questao previa pais entendo que antes de adoptar uma determinada estrutura juridica e necessaria indagar da vontade politica existente e saber se esta se movimenta no sentido de construir urn Estado federal ao nivel do continente europeu ou no de estabelecer uma organiza<;ao internacional de integra<;ao acompanhada de eventuais mecanismos de coopera<;ao refor<;ada? Sera esta certamente a questao de maior relevancia para submissao a consulta popular. So apos a revela<;ao desta grundnorm (Hans Kelsen) mediante urn procedimento auto-constituinte podera a Em路opa, neste contexto integro os povos da Europa, os orgaos de soberania dos Estados-membros e as institui<;6es comunitarias, come<;ar legitimamente a construir a sua ordem juridica positiva. Gostaria, se isso me for permitido, de deixar uma proposta metodologica a reflexao dos europeus para o caso de optarmos pela solu<;ao do Estado federal: a Historia descreve-nos experi!~ncias dogmaticamente ricas de processos de integra<;ao politica no nosso continente, coma foram os casos

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alemao e sui<;o, onde podemos colher os ensinamentos necessanos a prossecu<;ao desse objectivo mais confonnes corn a cultura politica e juridica europeia que aqueles por vezes nos sao fornecidos pelas experiencias constitucionais vividas noutros continentes. Por isso, creio que neste inicio do seculo XXI o acervo cultural europeu em materia de organiza<;ao das comunidades humanas nos permite a responder afirmativamente ao desafio lan<;ado uma decada atnis por Maurice Du verger quando interrogou se "depois de desenvolver as cidades demoe1路aticas na Antiguidade, depois de consolidar o Estado-na<;ao a partir do seculo XVI, estara a Europa a inventar urn novo sistema de sociedade global cujas dimensoes correspondem ao desenvolvimento das comunica<;oes e da mundializa<;ao da economia ?"

Que "coisa"

ea

Uniao Europeia?

0 projecto "estabelece" a Uniao Europeia e aponta a vontade dos cidadaos e dos Estados da Europa de construirem o seu futuro comum como referenda inspiradora desta decisao (artigo l.Q). Contudo, a duvida met6dica subsiste: mas afinal que "coisa" (Gomes Canotilho) e a Uniao Europeia? Sera urn Estado? Sera uma Federa<;ao de Estados? Sera uma Confedera<;ao de Estados? Sera uma Organiza<;ao Internacional? Suponho que intencionalmente, o projecto nao contem resposta a esta questao pois encontramos apenas inscrita a referenda a tratar-se de urn modo dos Estados atingirem os seus objectivos comuns (artigo U). A partida, a natureza estadual, seja unitaria, seja composta, parece estar afastada por for<;a de inexistencia de urn povo europeu, assim como de urn poder politico soberano europeu, como referi anteriormente, pelo que nao se encontram reunidos os elementos do Estado soberano. Apurada a unica conclusao verosimil sobre a questao, a duvida subsiste: sera a Uniao Europeia uma Confedera<;ao de Estados? Ou sera uma Organiza<;ao Internacional? Sem pretender solucionar neste momento a controversia, gostaria no entanto de recordar a ideia avan<;ada por Maurice Duverger quando sustentou que nos encontramos perante a expressao de urn "neofederalismo comunitario" que permitira aos europeus descobrir "urn tipo de sociedade ate a data desconhecido" e cuja originalidade relativamente ao federalismo classico, ou americano, "e a de constituir uma civiliza<;ao comum, formada pela sobreposi<;ao e combina<;ao de multiplas culturas nacionais, que lhe dao toda a riqueza". Guilherme d'Oliveira Martins em publica<;ao recente, intitulada Que Constitui(:iio para a Uniiio Europeia? - Andlise do projecto da Conven9iio (cuja leitura recomendo vivamente), parece ter retomado a posi<;ao do mestre frances, ao sugerir que o projecto, numa linha de continuidade corn os tratados anteriores, consagra urn "modo comunitario"; modus faciendi este que identifica o "caracter espedfico e original da constru<;ao europeia" e que "comporta elementos federais, confederais e intergovernamentais e resulta de urn processo gradualista que tern permitido a consolida<;ao da Comunidade e da Uniao Europeia".

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A ideia citada nao exprime certamente a communs opinio doctorum mas a questao esta colocada: sera que os quadros conceituais da Teoria Geral do Estado oitocentista ainda revelam aptidao para enquadrar juridica e politicamente o fenomeno da integra<;ao europeia, pelo menos na actual fase da sua evolu<;ao? Que novidades apresenta o projecto de Constituiriio Europeia quanto a articula~ao das atribui~oes da Uniao corn as atribui~oes dos Estados-membros?

Se a natureza juridica da Uniao Europeia continua por esclarecer, os objectivos que lhe estao confiados sao claros: "promover a paz, os seus (da propria Uniao) valores e o bem estar dos seus povos" (artigo 3.Q, n.Q 1). Corn vista a prossecu<;ao destes fins, alias de caracter bastante amplo, encontramos inscritas no projecto as atribui<;6es e competencias da Uniao Europeia. Se a Uniao e obra dos Estados fundadores, as atribui<;6es a seu cargo sao aquelas que os Estados-membros lhe confiaram em derroga<;ao da sua propria soberania enquanto as competencias correlativas, na configura<;ao inicial do fenomeno da integra<;ao europeia, seriam exercidas em comum. Acontece que o crescimento e o robustecimento da criatura assumiu tais dimens6es que esta se afigura virtualmente amea<;adora do poder politico soberano dos criadores, como passarei a demonstrar. Sobre esta questao, verificamos que no projecto de Constituir;:iio Europeia sao reafirmados, por urn lado, os principios, agora denominados fundamentais, da atribui<;ao especifica de competencias, da subsidiariedade e da proporcionalidade, consagrados em tratados anteriores (artigo 9.Q) e, por outro lado, surgem delimitadas as categorias de competencias da Uniao Europeia, nomeadamente pela clarifica<;ao da distin<;ao entre competencias exclusivas da Uniao e competencias partilhadas entre esta e os Estados (artigo ll.Q). A principal inova<;ao neste campo consiste na defini<;ao de urn elenco de competencias exclusivas que respeitam a regras de concorrencia necessarias ao funcionamento do mercado interno, a politica monetaria (neste caso so para os Estados-membros da zona euro ), a politica comercial comum, a uniao aduaneira e a conserva<;ao dos recursos biologicos do mar, no ambito da politica comum das pescas (artigo 12.Q, n.Q 1). As competencias exclusivas assumem, no entanto, uma natureza de reserva relativa uma vez que a Uniao podera habilitar (a institui<;ao competente para 0 fazer nao podera deixar de ser a mesma que e competente para a adop<;ao dos regimes materiais) os Estados a adoptar actos juridicos sobre essas materias (artigo ll.Q, n.Q 1). Coloca-se aqui urn problema de articula<;ao destas reservas corn as atribui<;6es do Estado portugues e da prossecu<;ao das mesmas pelos orgaos de soberania pois a afecta<;ao a Uniao Europeia da competencia para estabelecer, em termos exclusivos, as regras juridicas sobre a conserva<;ao dos recursos biologicos do mar, no ambito da politica comum das pescas vem esvaziar a reserva absoluta de competencia da Assembleia da Republica para definir os

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direitos de Portugal aos fundos marinhos contfguos e as suas aguas territoriais (artigo 164.Q, f), 3.!! parte, da Constitui<;ao da Republica Portuguesa (CRP)). Ainda neste contexto, o reconhecimento a Uniao Europeia de uma competencia exclusiva para adoptar as regras juridicas no dominio da politica monetaria colide, ainda que parcialmente, corn a reserva relativa da Assembleia da Republica para legislar sobre sistema monetario (artigo 165.Q, n.Q 1, o), CRP). Quanto as restantes competencias atribuidas a Uniao Europeia, o projecto estabelece uma regra supletiva que presume a natureza partilhada da competencia entre esta e os Estados-membros (artigo 13.Q, n.Q 1), embora defina urn elenco de materias de competencia partilhada por excelencia no que concerne ao mercado interno, ao espa<;o de liberdade, seguran<;a e justi<;a, a agricultura e as pescas (nos aspectos que estiverem para alem do definido no artigo 12.Q), aos transportes e as redes transeuropeias, a energia, a politica social, a coesao econ6mica, social e territorial, ao ambiente, a defesa dos consumidores e aos problemas comuns de seguran<;a em materia de saude publica (artigo 13.Q, n.Q 2). Apesar da adop<;ao de actos juridicos pelas institui<;oes europeias nestas materias se encontrar subordinada ao principio da subsidiariedade e, portanto, da "Uniao intervir apenas quando, e na medida em que, os objectivos da ac<;ao projectada nao possam ser atingidos de forma suficiente pelos Estados-membros" (artigo 9.Q, n.Q 3), sempre que a Uniao Europeia aprovar regimes juridicos sobre espa<;o de liberdade, seguran<;a e justi<;a, sobre agricultura, sobre politica social ou sobre ambiente podera estar a invadir materias que no ambito do Estado portugues se encontram reservadas a Assembleia da Republica, embora em termos relativos, respectivamente pelas alineas b), n), b) e u) do artigo 165.Q da CRP. A possibilidade de invasao das reservas de competencia da Assembleia da Republica pela Uniao Europeia encontra-se dependente unicamente da vontade das respectivas institui<;oes e e insindicavel pois, apesar da possibilidade que a ordem juridica comunitaria confere aos Parlamentos nacionais de se pronunciarem no momento da propulsao do procedimento legislativo comunitario corn vista a aferir se uma determinada proposta de acto legislativo observa o principio da subsidiariedade, sao sempre as institui<;oes europeias, nomeadamente a Comissao, que decidem se o procedimento legislativo em causa deve ou nao prosseguir (Protocolo relativo a aplica{:iiO dos prindpios da subsidiariedade e da proporcionalidade, ยง 6). Por outro lado, a intromissao da Uniao Europeia nas materias da competencia reservada da Assembleia da Republica e irreversivel porque o exerdcio das competencias pelas institui<;oes europeias implica a "apropria<;ao", ou "preemp<;ao", das mesmas pela Uniao na medida em que a possibilidade dos Estados-membros exercerem a sua competencia se encontra dependente do nao exercicio, expresso ou tacito, da mesma pelas institui<;oes europeias (artigo ll.Q, n.Q 2); em suma, a aprova<;ao de urn unico acto de Direito derivado pelas institui<;oes comunitarias destinado a regular uma materia de competencia partilhada, como tal consagrada nos termos da Constitui{:iio Europeia, transforma-a ipso facto em competencia exclusiva da Uniao Europeia.

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As solw;oes inscritas no projecto, quer quanta as competencias exclusivas, quer quanta as competencias partilhadas, produzem impacto sabre 0 ordenamento constitucional portugues na medida em que distorcem a reparti«;;ao de competencias legislativas que a Lei Fundamental estabelece entre Assembleia da Republica e Governo. Deste modo, e na sequencia de solu«;;6es ja consagradas em tratados anteriores, a dinamica da constru«;;ao europeia tern esbatido o "primado da competencia legislativa da Assembleia da Republica" (Jorge Miranda), na medida em que a progressiva transferencia de atribui«;;oes do Estado portugues para as Comunidades Europeias, e agora para a Uniao, tern resultado na subtrac«;;ao, ou "esbulho" (Joao Miranda), a Assembleia da Republica de competencia para legislar em materias nas quais, anteriormente a integra«;;ao europeia, o podia fazer corn exclusao de qualquer outro 6rgao, solu«;;ao que assegurava o cumprimento do princfpio democratico do debate plural e simultaneamente do principio liberal do debate publico (Jorge Miranda). A consequencia destas altera«;;oes normativas, que alias se inserem num movimento actual de "desparlamentariza«;;ao" da democracia representativa (Paulo Otero ), na dinamica do sistema politico e apenas e somente a seguinte: a possibilidade de actua«;;ao da Assembleia da Republica fica reduzida ao poder de se "pronunciar" sempre que alguma destas materias estiver pendentes de decisao em institui«;;oes europeias (artigo 16l.Q, n), CRP). 0 quadro de atribui«;;oes da Uniao Europeia e do subsequente exercicio de competencias agora estabelecido, se bem que seja apenas a expressao do acervo de meio seculo de integra«;;ao europeia, et pour cause, suscita-me alguma tristeza coma cidadao e preocupa«;;ao coma jurista, por dais motivos. 0 primeiro reporta-se a circunstancia deste esvaziamento da competencia legislativa do Parlamento nacional resultar sempre em beneficia do Governo nacional, cujos membros integram, coma e sabido, por inerencia de fun«;;oes no Conselho de Ministros da Uniao Europeia (artigo 22.Q, n.Q 2) e par isso poderao deliberar, no contexto do procedimento comunitario de decisao, sabre materias que a nfvel interno se encontram para alem da sua competencia, enquanto os deputados nacionais ficam impedidos de deliberar sabre as mesmas materias. Apesar do objecto de interven«;;ao do Parlamento Europeu ser agora alargado por for«;;a da consagra«;;ao do "procedimento legislativo ordinaria" coma regra supletiva a observar na tramita«;;ao conducente a adop«;;ao dos aetas legislativos de Direito derivado (artigo 33.Q, n.Q 1) e, portanto, as duas institui«;;6es, Parlamento e Conselho, estarem dotadas de poderes legislativos equivalentes, o anatema dos Parlamentos nacionais subsiste pais se no que concerne ao Conselho de Ministros a rela«;;ao corn os Governos nacionais e de identidade dos titulares, ja "a ignorancia dos Parlamentos nacionais e simultaneamente activa e passiva. Ignoram a Europa e sao par ela ignorados" (Maurice Duverger). 0 segundo aspecto que me entristece e preocupa no ambito desta questao e a conforma«;;ao demonstrada pelo Estado portugues na aceita«;;ao da configura«;;ao da Uniao Europeia coma uma comunidade humana governada preferencialmente por elites polfticas e no consentimento da apropria«;;ao das competencias legislativas que a Constitui«;;ao da Republica Portuguesa ainda

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reserva a Assembleia da Republica pelas mesmas elites, consubstanciada na revisao constitucional de 1997 que aditou a referida alinea n) ao artigo 16U da Lei Fundamental. 0 Estado portugues, come\ando pelos deputados nacionais que votaram a Lei de Revisao Constitucional n. Q 1 I 97, parece assim conformar-se, agora expressamente, corn a restri\aO daquilo que antes era uma competencia para deliberar em sessao plenaria corn exclusao de qualquer outro orgao, nomeadamente do Governo, a dois poderes de participa\aO politica: (i) a possibilidade de apreciar globalmente a participa\ao portuguesa no processo de constru\aO da Uniao Europeia mediante a realiza\ao de urn debate corn a presen\a do Governo no decurso de cada presidencia do Conselho Europeu (artigo 3.Q, n.Q 4, da Lei n.Q 20/94, de 15 de Junho) e (ii) a possibilidade da Comissao de Assuntos Europeus elaborar urn relatorio sobre a materia a enviar ao Presidente da Republica e ao Governo (artigo 5.Q, n.Q 3, da mesma Lei n.Q 20/94). Apesar de reconhecer que a ratio legis deste mecanismo consiste na tentativa de devolver a Assembleia da Republica alguma da possibilidade de interven\aO que lhe foi progressivamente subtraida corn o aprofundamento da integra\aO europeia, nao deixa de ferir a minha sensibilidade de jurista que estes poderes assumam menor relevancia para a adop\aO do acto juridico europeu que aquele que e conferido aos membros do Governo que integram o Conselho de Ministros da Uniao Europeia e, em consequencia, deliberam sobre a materia, corn caracter vinculativo, nos termos estabelecidos para a tramita\ao de qualquer dos procedimentos comunitarios de decisao. 0 panorama que acabei de descrever sugere-me uma duvida: sera que a estatui\aO do artigo 7.Q, n.Q 6, da CRP, ao permitir que o Estado portugw?s "convencione o exercicio em comum ou em coopera\ao dos poderes necessarios a constru\aO da uniao europeia", legitima OS orgaos de soberania a restringirem a fUn\aO do orgao legislativo por excelencia no ambito nacional ao papel de urn orgao consultivo no procedimento legislativo ordinaria europeu, urn pouco ao jeito da fun\ao exercida pela Camara Corporativa na vigencia da Constitui\ao de 1933?

Que novidades apresenta 0 projecto quanto a articula~ao do ordenamento jurfdico comunihirio corn os ordenamentos jurfdicos dos Estados-membros? Quanto as rela\oes entre os textos normativos oriundos de fonte diversa, a solu\ao tradicional era a aplicabilidade directa do Direito comunitario derivado, especificamente dos regulamentos (artigo 249.Q do Tratado da Comunidade Europeia (TCE)), pelas autoridades dos Estados-membros, enquanto o primado resultava apenas de uma interpreta\ao teleologica dos tratados feita pelo Tribunal de Justi\a das Comunidades Europeias (TJCE) a partir dos acordaos Humblet v. Reino da Belgica e Costa v. ENEL, proferidos nos anos sessenta, que acolheu o entendimento segundo o qual nos encontrarmos perante uma "exigencia existencial" (Pierre Pescatore) da propria constru\aO europeia.

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A novidade constante do artigo 10.Q, n .Q 1, do projecto consiste na estatui<;ao expressa do primado, primazia, ou prevalencia da denominada Constitui(:iio Europeia e dos actos juridicos adoptados pelas institui<;oes europeias no exerdcio das suas competencias sabre as ordens juridicas dos Estados-membros. Agora, resta ao inh~rprete averiguar qual o alcance desta regra pois, se em coerencia corn o acervo juridico resultante de cinco decadas de integra<;ao europeia aceitamos que "o primado do Direito comunitario apareceu coma corolario do seu caracter de Direito comum" (Mota de Campos), ainda por respeito ao mesmo "acervo comunitario" devemos recordar que embora as jurisdi<;oes nacionais tenham aceite a jurisprudencia do TJCE no que respeita a prevalencia do Direito comunitario sabre as leis internas ordinarias nao hesitaram em exercer urn "direito de resistencia" quando confrontadas corn acordaos que apontavam no sentido da subordina<;ao incondicional das respectivas ordens constitucionais as disposi<;oes do Direito comunitario. Coma e do conhecimento geral, neste contexto foram pioneiros os Tribunais Constitucionais alemao e italiano quando, ainda na decada de sessenta, se reservaram a possibilidade de "apreciar o Direito comunitario em fun<;ao das disposi<;oes da Lei Fundamental que enunciam os direitos fundamentais" argumentando que estes direitos representam "parte essencial e irredutivel da Constitui<;ao" e a sua viola<;ao afectaria a "identidade" da propria lei Fundamental (Acordao do BVerfG de 18 de Outubro de 1967) ou quando alertaram para a existencia de "prindpios fundamentais de ordem constitucional que devem ser preservados de qualquer viola<;ao e, nomeadamente, os que respeitam a protec<;ao individual" (Acordao da Carte Costituzionale de 16 de Dezembro de 1965). Creio que a tese segundo a qual existem limites ao prindpio do primado do Direito das Comunidades Europeias sabre as ordens juridicas nacionais, que coma acabei de referir tambem integra o acervo comunitario, foi determinante da redac<;ao proposta pela Conven<;ao Europeia para artigo o 5.Q do projecto que estabelece as "rela<;oes entre a Uniao e os Estados-membros" e em cujo n.Q 1 se encontra inscrito que "a Uniao respeita a identidade nacional dos Estados-membros, reflectida nas estruturas politicas e constitucionais fundamentais de cada urn deles". A expressao "estruturas politicas e constitucionais fundamentais" citada nao pode significar menos que o respeito pela Constitui<;ao do Estado na medida em que e a cada urn dos Estados-membros, e nao a Uniao Europeia, que compete definir quais sao as proprias estruturas politicas e constitucionais fundamentais, em consequencia da sua kompetenz-kompetenz (Albert Haenel), e uma das caracteristicas do Estado moderno e precisamente a de consubstanciar os prindpios fundamentais do seu proprio ordenamento juridico numa Constitui<;ao em sentido instrumental. Deste modo, e necessaria proceder a uma interpreta<;ao conjugada destes dais preceitos que obriga a conferir ao artigo 10.Q urn alcance mais restrito que aquele que literalmente aparenta revestir no sentido de considerar que o Direito da Uniao Europeia prevalece apenas sobre o Direito ordinaria, isto e, infra-constitucional, dos Estados e, em consequencia, a articula<;ao entre os ordenamentos juridicos deve ser hierarquizada do sentido modo: a Consti-

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tuic;ao de cada Estado-membro continua a ser a norma fundamental do seu ordenamento jurfdico, o Direito da Uniao Europeia (Constituiriio Europeia e actos de Direito derivado) surge no escalao intermedio entre a Constituic;ao estadual e o restante Direito interno do Estado-membro que assim fica relegado para urn piano inferior aquele que lhe era reconhecido tradicionalmente. Por isso, nao posso deixar de considerar precipitado, porque prematuramente concretizador de uma soluc;ao federal, o projecto de revisao do artigo 8.Q da CRP apresentado conjuntamente pelos dois grupos parlamentares da actual maioria polftica, pelo qual prop6em a inserc;ao de urn novo inciso corn a seguinte redacc;ao: "As normas da Constituiriio Europeia e o direito adoptado pelas instituiroes da Uniiio Europeia, no exercicio das competencia que lhe silo atribuidas, vigoram directamente na ordem interna e prevalecem sabre as normas de direito inferno, sem prejuizo do respeito pelos principios fundamentais do Estado de Direito democratico expressos na Constituiriio." A redacc;ao proposta, certamente que inspirada no artigo VI da Constituic;ao dos Estados Unidos da America e no artigo 3U da Lei Fundamental Alema, nao toma em linha de conta que nos encontramos perante urn tratado internacional que assim prevaleceria sobre a Constituic;ao da Republica Portuguesa, corn excepc;ao das normas respeitantes aos prindpios estruturantes do Estado de Direito e da democracia, e cai ate no paradoxo de consagrar uma soluc;ao em que urn Estado soberano nao pode por Lei Geral da Republica violar os direitos de uma Regiao Autonoma consagrados na Constituic;ao estadual ou no estatuto da Regiao (cfr., por todos, artigo 28U, n.Q 1, d), CRP) mas uma entidade corn natureza lubrida, no entanto mais proxima de organizac;ao internacional que de Estado federal, pode violar os direitos de urn Estado soberano consagrados na mesma Constitui~ao pela aprovac;ao de urn acto de Direito derivado. Ao jeito de primeiro balanc;o sobre esta questao, gostaria de dizer que entendo as manifestac;oes de resistencia ao acatamento do primado do Direito comunit<irio, sejam doutrinarias, jurisprudenciais ou resultantes simplesmente do exerdcio do direito de participac;ao na vida publica, expressas no momento actual da integrac;ao europeia, apenas como uma consequencia do pecado original cometido na revelac;ao deste principio pois a questao fundamental sobre as relac;oes entre ordenamentos jurfdicos continua em aberto nos precisos termos em que foi suscitado por Francisco Lucas Pires e que gostaria de deixar aqui a reflexao: "pode urn Direito europeu que reivindica a sua supremacia face ao proprio Direito Constitucional nacional continuar a ser legitimado atraves das democracias nacionais?" Que nos traz de novo este diploma quanto ao sistema institucional?

Se o projecto de Constituiriio Europeia e fertil em inovac;oes no quadro institucional, o Parlamento Europeu constitui excepc;ao a esta tendencia uma vez que mantem no essencial a configurac;ao que lhe conhecemos a cerea de

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urn quarto de seculo. Em abono desta conclusao, podemos verificar que embora esteja previsto (i) urn ligeiro alargamento da composi<;ao desta institui<;ao, para urn maxima de 736 deputados (artigo 19. 2, n. 2 2; recorda que a fixa<;ao deste limite tinha por objectivo manter a composi<;ao do Parlamento Europeu nas sete centenas de deputados apesar da eminente adesao de novas Estados, contudo embora o limite se cifrasse inicialmente nos 700 deputados (Tratado de Amsterdao), foi entretanto alargado para 732 (Tratado de Nice) e agora para 736 ... ), (ii) sao reafirmadas as garantias de participa<;ao de todos os Estados numa correspondencia de proporcionalidade corn a dimensao do seu povo e refor<;adas ainda as garantias dos pequenos Estados mediante a consagra<;ao de urn mfnimo de quatro deputados por Estado-membro (idem) e (iii) a designa<;ao dos seus membros continua fiel a conquista democratica alcan<;ada corn o Acto de 20 de Setembro de 1976 referente a elei<;ao dos deputados ao Parlamento Europeu pelos cidadaos europeus, por sufragio universal e directo (idem). Ao inves, as altera<;6es sao profundas no que concerne ao Conselho, agora rebaptizado de Conselho de Ministros (da Uniao Europeia) (artigo 22. 2 ). A partida, no plana da organiza<;ao interna, o projecto acolhe a defini<;ao de algumas forma~6es tfpicas do Conselho consagradas anteriormente em regimento (artigo 23. 2 ), coma o Conselho Legislativo e dos Assuntos Gerais que resulta da "fusao" dos actuais Conselhos Legislativo e dos Assuntos Gerais e o Conselho dos Negocios Estrangeiros (artigo 23. 2, n. 2 2). (artigo 23. 2, n. 2 Por outro lado, no plana do funcionamento, as altera<;6es passam pela repondera~ao das maiorias, sendo que a maioria qualificada passara a ser atingida corn a reuniao de votos favoraveis que representem 3 I 5 da popula~ao da Uniao, no caso do Conselho deliberar por iniciativa externa, ou entao de uma maioria qualificada que represente, alem dos 3/5 da popula<;ao, 2/3 dos Estadosmembros, no caso do Conselho deliberar por iniciativa externa (artigo 24. 2 ). 0 Conselho Europeu, que no respeitante a sua composi~ao mais nao e que a forma~ao do Conselho de Ministros correspondente a cimeira dos Chefes de Estado ou de Governo dos Estados-membros e do Presidente da Comissao Europeia, da qual participa tambem o Ministro dos Negocios Estrangeiros da Uniao Europeia, passa a ser dirigida por urn Presidente eleito pelo proprio Conselho (artigo 20. 2, n. 2 2). A designa~ao do Presidente do Conselho Europeu cabe ao proprio Conselho, por maioria qualificada, para urn mandata de dais anos e meio, sendo o mesmo renovavel uma vez (artigo 21. 2, n. 2 1); este sistema substitui assim as presidencias rotativas semestrais por forma a conferir maior estabilidade ao cargo. 0 Presidente do Conselho Europeu, alem da fun~ao de direc~ao e dinamiza~ao do Conselho Europeu e da articula~ao corn as demais institui~6es europeias, assegura a representa~ao externa da Uniao Europeia no ambito da Polftica Externa e de Seguran~a Comum (PESC) (artigo 2P, n. 2 2) e nao pode exercer qualquer mandata nacional (artigo 21. 2, n. 2 3). As altera~6es atingem tambem em grande medida a Comissao Europeia que sofre uma redu~ao do numero de comissarios, pelo que passa a ser corn-

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posta apenas pelo Presidente, pelo Ministro dos Neg6cios Estrangeiros da Uniao Europeia, que e por inerencia urn dos vice-presidentes, e por treze Comissarios Europeus (artigo 25.Q, n.Q 3) que passam a ser designados corn base num sistema de rota<;:ao igualitaria entre os Estados-membros; sistema este que devera observar a igualdade no que respeita a determina<;:ao da sequencia dos seus nacionais como membros do colegio e ao perfodo em que se mantem nesse cargo, devendo ainda a composi<;:ao do 6rgao nos sucessivos mandatos reflectir de forma satisfat6ria a posi<;:ao demografica e geografica relativa de todos os Estados-membros da Uniao Europeia (idem). Ao lado dos Comissarios Europeus, que sao titulares do 6rgao de pleno direito, a Comissao compreende ainda a figura dos Comissarios que sao cidadaos dos Estadosmembros que, atendendo ao sistema da rotatividade, nao indigitaram urn Comissario Europeu para o mandato em curso, e participam nas reuni6es sem direito a voto (idem). 0 Presidente da Comissao Europeia, que passa a ser eleito pelo Parlamento Europeu, por maioria qualificada, sob proposta do Conselho Europeu (artigo 26.Q, n.Q 1), exerce as fun<;:6es tipicas do presidente de urn 6rgao colegial, como definir orienta<;:6es para o exerdcio do mandato, determinar a organiza<;:ao interna, nomear vice-presidentes, sendo que o projecto lhe confere uma faculdade que refor<;:a a sua posi<;:ao de primus inter pares: a possibilidade de exigir a demissao de qualquer Comissario Europeu ou de qualquer Comissario (artigo 26.Q, n.Q 3). 0 Ministro dos Neg6cios Estrangeiros da Uniao Europeia, que e uma inova<;:ao apresentada no projecto, e designado pelo Conselho Europeu por maioria qualificada, obtido o acordo do Presidente da Comissao (artigo 27.Q, n.Q 1), e por inerencia urn dos vice-presidentes da Comissao Europeia (idem, n.Q 3), participa, como referi, nos trabalhos do Conselho Europeu (artigo 20.Q, n .Q 2) epode ser demitido, desde que observado o procedimento de designa<;:ao (artigo 27.Q, n.Q 1). A cria<;:ao de urn Ministro dos Neg6cios Estrangeiros da Uniao Europeia, resulta da fusao num tinico titular das fun<;:6es de dois 6rgaos que tern revelado alguma dificuldade de articula<;:ao entre si, o Alto Representante para a PESC (vulgo, Sr. PESC) e o Comissario para as rela<;:6es externas, e visa sanar os conflitos positivos de competencias que tern ocorrido na pratica corn este desdobramento de fun<;:6es. 0 primeiro comentario que a arquitectura agora proposta para o sistema institucional da Uniao Europeia me sugere reporta-se a diversidade de motiva<;:6es subjacentes a reforma em curso e aquelas que determinaram anteriores revis6es dos tratados comunitarios, pois enquanto a reforma institucional plasmada no Tratado de Amsterdao consubstanciou uma ideia "mais de democratiza<;:ao do que de repondera<;:ao do poder dos Estados" (F. Lucas Pires), na Conven<;:ao Europeia "prevaleceu uma orienta<;:ao de maior equilfbrio entre poderes, tendo ao longo dos debates havido especial insistencia na necessidade de impedir a conflitualidade entre dois executivos, o Conselho e a Comissao" (G. d'Oliveira Martins).

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A segunda ideia que gostaria de transmitir ao auditoria sobre a reforma institucional reporta-se ao impacto da nova composic;ao da Comissao Europeia nas relac;oes entre a Uniao e os Estados-membros. Corn efeito a composic;ao da Comissao, tal como definida no projecto, em meu entender, colide corn o disposto no artigo 7.Q, n.Q6, da CRP na medida em que, ao criar urn estatuto de "observador" na Comissao para os Estados que nao estejam no turno para indigitac;ao de urn Comissario Europeu, impede que o Estado portugues, quando se encontrar nessa situac;ao, exerc;a em "comum" corn os demais Estados-membros "os poderes necessarios a construc;ao da Uniao Europeia" que sejam da competencia da Comissao. Afastamento este que nao e nada insignificante no procedimento decisorio europeu, antes pelo contrario, atendendo as competencias a cargo desta instituic;ao, como sao as de promover o interesse geral europeu, de velar pela aplicac;ao das disposic;oes da Constituipio Europeia e dos aetas de Direito derivado, de executar o Orc;amento e de gerir os programas, de exercer func;oes de coordenac;ao, de execuc;ao e de gestao no ambito da Administrac;ao publica europeia, de assegurar a representac;ao externa da Uniao fora do ambito da PESC (artigo 25.Q, n.Q 1) e ainda a circunstancia de beneficiar de uma reserva de legitimidade para iniciar o "procedimento legislativo ordinaria" (artigos 25Y, n.Q 2 e III-302.Q, n .Q 2). A minha preocupac;ao quanta ao desprezo pelo artigo 7.Q, n.Q6, da CRP reporta-se ao teor da soluc;ao agora proposta mas tambem ao caminho que possivelmente sera trilhado em futuras reformas institucionais. A preocupac;ao nao e despicienda pois 0 caminho percorrido ate ao momento legitima-nos a perguntar: sera que os Estados europeus, depois de terem decalcado o estatuto de observador, que e pratica corrente em diversas Organizac;oes Internacionais, vao levar ate as tiltimas consequencias a importac;ao do principio aristocratico, aceite generalizadamente na Sociedade Internacional, e criar urn estatuto de "membra permanente da Comissao Europeia", assegurando tambem nesta instituic;ao a preponderancia que os cinco grandes, que apos a adesao da Polonia serao seis, ja assumem no Conselho de Ministros? Que inovac;oes encontramos relativamente aos actos juridicos de Direito derivado da Uniiio Europeia?

Aparentemente, o projecto vem alterar profundamente o sistema de fontes de Direito comunitario pela criac;ao formal de uma categoria de "actos legislativos", que sao a "lei europeia" e a "lei-quadro europeia" (artigos 32.Q, n.Q 1, e 33.Q), e pela distinc;ao entre estes e a categoria dos "actos nao legislativos", que sao os restantes actos de Direito derivado, isto e, "o regulamento europeu", a "decisao europeia" a "recomendac;ao" e o "parecer" (artigos 32.Q, n.Q 1, e 34.Q e ss.). A consagrac;ao de uma especie de actos legislativos dentro do genera dos "actos juridicos da Uniao" exprime a assumpc;ao do reconhecimento de uma competencia legislativa propria da Uniao Europeia que os autores dos sucessivos tratados comunitarios sempre evitaram por uma ques-

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tao de "prudencia" (Guy Isaac), apesar da orienta~ao do TJCE nesse sentido (cfr. acordaos Koster e Simmenthal). Sem embargo da carga dogmatica suprajacente e das implica~oes polfticas subsequentes, do ponto de vista estrutural as altera~oes ao sistema de fontes sao meramente aparentes porque o projecto mais nao faz que redenominar os actos juridicos previstos em anteriores tratados. Deste modo, quanto aos actos legislativos, 0 actual "regulamento comunitario", isto e, "o acto de caracter geral, obrigatorio em todos os seus elementos e directamente aplicavel em todos os Estados-membros" (artigo 249.Q TCE), surge agora identificado por "lei europeia", que nos termos do projecto reveste a natureza de "urn acto legislativo de caracter geral, obrigatorio em todos os seus elementos e directamente aplicavel em todos os Estados-membros" (artigo 32.Q, n.Q 1, ยง 2); enquanto a figura que actualmente conhecemos por "directiva comunitaria", ou seja, "o acto juridico que vincula o Estado-membro destinatario quanto ao resultado a alcan~ar, deixando, no entanto, as instancias nacionais a competencia quanto a forma e quanto aos meios" (artigo 249.Q TCE), passa a responder pelo nome de "lei-quadro europeia" que o projecto define como "urn acto legislativo que vincula todos os Estados-membros destinatarios quanto ao resultado a alcan~ar, deixando, no entanto, as instancias nacionais a competencia quanto a escolha da forma e dos meios" (artigo 32.Q, n.Q 1, ยง 3). Quanto aos actos nao legislativos, "o regulamento europeu e urn acto nao legislativo de caracter geral destinado a dar execu~ao aos actos legislativos e a certas disposi~oes especificas da Comissao" (artigo 32.Q, n.Q 1, ยง 4) e corresponde grosso modo aos actuais "regulamentos de execu~ao", que como e do conhecimento dos presentes sao consequencia da pratica instituida pelo Conselho nos anos sessenta de adoptar regulamentos circunscritos aos principios fundamentais do regime juridico de cada uma das materias (os chamados "regulamentos de base") deixando a Comissao a tarefa de adoptar as normas necessarias a conferir exequibilidade aos primeiros, enquanto que a "decisao europeia", a "recomenda~ao" e o "parecer" mantem a configura~ao actual (artigo 32.Q, n .Q 1, ยง 5 e 6, respectivamente). A exuberancia que a Conven~ao Europeia coloca na apresenta~ao do renovado sistema de fontes de Direito derivado, nao se circunscreve a esta, afinal, mera evolu~ao na continuidade da tipologia dos "actos juridicos da Uniao" pois a proclamada distin~ao de principio entre "actos legislativos" e "actos nao legislativos" reveste dimensao meramente formal uma vez que o projecto nao consagra urn micleo material de reserva de lei. Sobre esta materia, os convencionistas acordaram somente na necessidade de impedir o Parlamento Europeu e o Conselho de Ministros de adoptarem actos nao legislativos quando lhes tenha sido submetida uma proposta de acto legislativo sobre a mesma materia (artigo 32.Q, n.Q 2). A solw;ao adoptada implica a outorga de urn poder discricionario a Comissao Europeia para delimitar o micleo das materias corn dignidade para serem reguladas por acto legislativo pois o monopolio de iniciativa legislativa de que, por regra, beneficia (cfr. artigo III-302.Q, n.Q 2) permite-lhe extinguir qualquer procedimento decisorio tendente

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a adop<;ao de urn acto nao legislativo mediante a apresenta<;ao de uma proposta de "lei europeia" ou de "lei-quadro europeia" as institui<;oes competentes. A maior inova<;ao do projecto em sede de actos juridicos da Uniao reside, no entanto, na consagra<;ao expressa de urn novo tipo de regulamentos, os "regulamentos delegados" que sao actos de Direito derivado, da competencia da Comissao Europeia, "que completam ou alteram certos elementos nao essenciais da lei ou da lei-quadro" por autoriza<;ao expressa de urn acto legislativo que devera delimitar expressamente os objectivos, 0 conteudo, 0 ambito de aplica<;ao e o periodo de vigencia da delega<;ao" (artigo 35. 9, n. 9 1). Quem olhar para a novissima figura inscrita no projecto certamente se recordara de urn tipo de regulamentos que em tempos proliferou na praxe administrativa portuguesa e que se caracterizavam por serem normas aprovadas pelas autoridades administrativas, sob forma de regulamento, no uso de uma "habilita<;ao legal" que lhes permitia interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar os preceitos de urn acto legislativo (Afonso Queir6). A pratica foi abandonada ap6s a entrada em vigor da Lei Constitucional n. 9 1/ /82, por for<;a de urn preceito deste diploma (corresponde ao artigo 112.9, n.Q 6, 2.~ parte, do texto actual da CRP), que impedia urn acto de natureza nao legislativa "de, corn eficacia externa, interpretar, integral~ modifica1~ suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos". A ratio legis deste enunciado constitucional esteve subjacente o entendimento segundo o qual o regulamento delegado violaria o principio constitucional estruturante da separa<;ao de poderes na medida em que a delega<;ao legislativa permitia ao 6rgao competente para aplicar a lei que, por algum modo, decidisse sobre o conteudo da mesma. Se recordarmos que o Barao de Montesquieu fazia ponto de honra em afirmar que a premissa basica da separa<;ao de poderes residia na independencia organica entre o autor e o aplicador da lei compreendemos a gravidade desta metodologia para o funcionamento do Estado de Direito. Alem das implica<;oes produzidas na separa<;ao horizontal de poderes no ambito do sistema institucional comunitario, a importa<;ao da figura do regulamento delegado para o ordenamento juridico comunitario suscita agora novos problemas de separa<;ao vertical de poderes pelos seguintes motivos. Em primeiro lugar, a delega<;ao de competencias materialmente legislativas pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho de Ministros na Comissao Europeia consubstancia a delega<;ao de competencias por uma institui<;ao europeia na qual participam, corn direito de voto, os representantes de todos os Estadosmembros, ressalvado o peso relativo do voto de cada delega<;ao, numa outra institui<;ao em que alguns Estados participam corn estatuto de mero observad01~ pelo que os regulamentos delegados poderao constituir urn instrumento propicio para algumas maiorias politicas, nomeadamente grupos de Estados aliados estrutural ou conjunturalmente, afastarem os restantes Estados do exercicio em "comum" dos poderes necessarios a constru<;ao da Uniao Europeia, colocando os governantes portugueses em situa<;ao de incumprimento do artigo 7.Q, n.Q 6, da CRP. 11

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Par outro lado, se a Constitui(:iio Europeia reconhece, como regra, a competencia dos Estados-membros para adoptarem as medidas necessarias "a execw;ao dos aetas juridicamente vinculativos da Uniao" (artigo 36.Q, n.Q 1) mas simultaneamente consagra tambem a possibilidade da Comissao Europeia ser autorizada a "completar ou alterar certos elementos", ainda que nao essenciais, de uma "lei europeia" ou de uma "lei-quadro europeia" (artigo 35.Q, n.Q 1; alias a propria Comissao pode sugerir logo na proposta de acto legislativo que o Parlamento e o Conselho lhe deleguem estas competencias e pode ainda, no decurso do procedimento legislativo, usar do poder de participa~ao nos trabalhos dos comites de concilia~ao e do consequente poder de apresenta~ao de propostas de altera~ao para apontar a hip6tese de remissao de certos aspectos controvertidos para regulamento delegado como uma valvula de escape viabilizante da adop~ao de urn acto legislativo ), entao a voracidade sempre manifestada pela burocracia comunitaria (no sentido weberiano do termo) em materia de produ~ao normativa implicara que as institui~6es europeias vao continuando, paulatinamente, a "apropriar-se" dos dominios de competencia partilhada entre a Uniao Europeia e os Estados-membros definidos no artigo 13.Q, na sequencia da ideia que transmiti anteriormente. Os regulamentos delegados constituem assim urn mecanismo que favorece e intensifica a apropria~ao comunitaria dos mencionados dominios de competencia partilhada ate ao momento em que a ordem juridica comunitaria, por extremamente densificada que estara, tera estendido o seu imperi a plenitude dos regimes juridicos destas materias e desse modo asfixiado a competencia dos Estados nao s6 para exercerem a fun~ao legislativa interna mas inclusivamente para executarem os pr6prios actos legislativos europeus. A concluir esta apresenta~ao de quesitos nao posso deixar de revelar a minha ultima curiosidade acerca das consequencias das entrada em vigor deste Tratado que estabelece uma Constitui(:iiO para a Europa: sera que os poderes de controlo conferidos ao Parlamento Europeu e ao Conselho de Ministros (artigo 35.Q, n.Q 2), que denunciam a inspira~ao na figura do legislative veto do Direito Constitucional norte-americano, serao suficientes para suster a nova avalanche de produ~ao normativa da Comissao Europeia que se adivinha? Aguardemos para ver! Minhas senhoras e meus senhores, agrade~o a aten~ao que dispensaram a esta partilha de duvidas que alguns anos de dedica~ao a estas materias ja me permitem a ousadia de qualificar como met6dicas.

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C) BICENTENARIO DO CODIGO CIVIL DE NAPOLEAO (2/3 DE DEZEMBRO DE 2004)



CODIGO CIVIL DOS FRANCESES, OU CODIGO CIVIL DE NAPOLEAO?

Diogo Leite Campos



CODIGO CIVIL DOS FRANCESES, OU CODIGO CIVIL DE NAPOLEAO?

Diogo Leite Campos*

Antes de me pronunciar nestas comemora<;6es do bicentenario do "Code Civil", tenho de me interrogar sobre a verdadeira natureza do Codigo Civil frances: "Codigo de Napoleao" ou "Codigo Civil dos franceses"? Acto de urn despota "iluminado", a exemplo do que havia de suceder nos seculos XIX e XX corn tanta legisla<;ao, ou resultado da tradi<;ao juridica francesa, ordenada e racionalizada por grandes juristas, produto do valores profundos do povo frances convivendo ao longo dos seculos? Vou tentar responder a estas perguntas, corn a consciencia de que o estou a fazer corn os olhos e os valores de alguem dois seculos depois. Sucumbindo a tenta<;ao de nao falar do Codigo Civil frances, mas de falar de mim mesmo a analisar o Codigo Civil frances. Apesar de nao querer transferir para a epoca os meus valores da segunda metade do seculo XX; antes tentar entender, e nao julgar, uma sociedade de que so posso vagamente aperceber-me, nomeadamente atraves da experiencia dos meus Avos que foram possivelmente os ultimos representantes dela que conheci. 0 Codigo Civil Frances nao teria sido possivel sem urn forte poder centralizado. Coma nao teriam sido possiveis muitos outros codigos civis, tal coma o BGB alemao ou o Codigo Civil italiano de 1942; mesmo o Codigo Civil portugues de 1966. Nesta medida, urn Codigo Civil ou outro grande corpo legislativo e produto de urn acto de vontade politica imposto aos seus destinatarios. E urn produto do racionalismo centralizador e uniformizador que vem do iluminismo frances . Mas isto nao retira a legitimidade ao Codigo Civil frances, coma nao retira a legitimidade a qualquer Codigo Civil. Tudo depende de saber se o Codigo reflecte o dialogo dos valores fundamentais de qualquer colectividade corn a pratica quotidiana destas; ou se quer impor comportamentos ao arrepio de uma pratica fundada no "direito natural" de cada civiliza<;ao historica.

* Faculdade de D ireito da Universidade de Coimbra.

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Diogo Leite Campos

Corn efeito, o Direito, sobretudo o Direito Civil, nao e criado pelo legislador, nao esta plasmado na lei. 0 Direito civil e feito par qualquer pessoa, por todas as pessoas em conjunto, no seu interrelacionamento constante. 0 Direito civil e o conjunto das rela~oes jurfdicas que existem em certo momento numa colectividade. E que o legislador do C6digo Civil tenta apercebe1~ racionaliza1~ generalizar, muitas vezes mais coma sugestoes do que imposi~oes de comportamento. 0 C6digo Civil frand~s, coma C6digo de Napoleao ou coma C6digo Civil dos franceses? ... Parece-me dificil que de Napoleao tivesse podido surgir urn diploma corn a qualidade do C6digo Civil frances. Mais: corn o respeito da tradi~ao juridica francesa que e transmitida pelos grandes juristas que 0 elaboraram e aqueles que imediatamente o precederam. 0 respeito pelo tecido flexivel da sociedade civil, pela sua evolu~ao, pela igualdade dos cidadaos, a solidariedade de cada urn em rela~ao a todos os outros e destes perante cada urn, fazem a cria~ao de normas de Direito Civil incompativel corn as invasoes, os massacres e as pilhagens da Europa determinados por Napoleao a anunciar ja o seculo XX. Corn total desprezo pela vida dos seus soldados e das popula~oes dos paises conquistados, das suas tradi~oes, das suas riquezas e da sua arte. Neste momento, declaro a minha nenhuma simpatia em rela~ao a Napoleao, pelas atrocidades que as suas tropas provocaram em toda a Europa, nomeadamente em Portugal, e que custaram a vida a alguns dos meus tetrav6s. Nao vou criticar o C6digo de Napoleao - seria uma critica demasiadamente facil e muito historicamente situada - pela sua falta de previsao dos direitos humanos. Mas que direitos humanos? Na tradi~ao juridica europeia, em larga medida consagrada na revolu~ao francesa e no C6digo Civil frances, a pessoa e o seu estatuto juridico sao respeitados e promovidos atraves da justi~a presente no ordenamento juridico. A melhor tutela da pessoa e urn ordenamento juridico justo. E por isso que a revolu~ao francesa consagra, nos principios da liberdade, igualdade e fraternidade, uma excelente carta de direitos humanos que inspirou largamente o Direito europeu do seculo XIX. Considerando-se que a lei deve ser justa, e se-lo-a se provier da vontade do povo, basta assegurar a igualdade de todos perante essa lei. A concep~ao individualista dos direitos humanos, importada dos Estados Unidos, das declara~oes de direitos do seculo XVIII, demorou tempo a implantar-se na Europa, tendo sido vitoriosa unicamente depois dos totalitarismos do seculo XX. Mas coma entendeu o seculo XIX frances o C6digo Civil? Coma acto de autoridade ou coma expressao da vontade do povo, da sua convivencia milenar? A escola da exegese francesa dizia nao ensinar Direito civil, mas sim o C6digo de Napoleao. Todavia, esta posi~ao nao me parece univoca sabre o entendimento acerca do C6digo Civil. Parece-me dificil que se continuasse a ter o imenso respeito que o seculo XIX e mesmo o seculo XX demonstravam

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C6digo Civil dos Franceses, ou C6digo Civil de Napoleao?, p. 237-241

por esse C6digo se fosse meramente urn acto impositivo de urn tirano iluminado. 0 "elogio da exegese" de Philippe Remy ja na segunda metade do seculo XX, parece-me suficiente para demonstrar que o respeito pelo C6digo Civil frances e independente da sua personaliza~ao em Napoleao. Deriva de ele reflectir os sentimentos profundos da sociedade francesa, os seus valores de convivencia; a cren~a tradicional de que a lei era justa, ao ser criada por legisladores animados de s6lidos prindpios morais, respeitadores dos outros, amantes da justi~a (e capazes de boa sintaxe). No seculo XIX ainda se foi acreditando num direito justo, naturalmente justo. A evolu~ao posterior do Direito Civil frances parece dar-me razao. 0 seculo XIX e o seculo XX, sobretudo este, podem ser considerados como uma vit6ria do Direito Civil frances sobre o C6digo Civil. A jurisprudencia, a doutrina, os costumes, o legislador, foram alterando, revogando, modificando, dando novo sentido a multiplas disposi~6es do C6digo Civil. Mas nunca o ignorando ou desprezando. Sempre corn referenda a ele, em dialogo corn ele; como C6digo Civil dos franceses. Hoje, no momento do bicentenario do C6digo Civil frances, urn novo "Code" ja nao parece possfvel. A sociedade francesa e cada vez mais aut6noma do poder politico. Por outro lado, encontra-se em muito rapida evolu~ao e dase conta disso. E as diferen~as culturais, o individualismo, o distender e, mesmo, o despeda~ar do tecido social e das regras de convivencia, aumentam. A sociedade civil francesa cada vez se reconhece menos nela mesma, e cada vez encontra menos la~os que a unam. Nao existem, pois, as condi~6es necessarias para urn diploma corn a grandeza e estabilidade de urn C6digo Civil que hoje sera mais urn C6digo de Direito privado, englobando materias como o chamado Direito Comercial, o Direito do consumo, o Direito financeiro, etc. Tudo visto, posso responder afirmativamente a questao suscitada no infcio: estamos perante o C6digo Civil dos franceses (... na epoca de Napoleao). Reconhecendo e acompanhando a pessoa humana (ser livre e auto-criador) nas diversas fases da sua existencia; respeitando as suas escolhas e generalizando-as; mais propondo do que impondo; Sabendo que esta depois das pessoas humanas (e inferior a elas) sendo estas o seu autor; que e escrito corn destino ao "infinitamente" pequeno (a pessoa) e que a sociedade e feita de pessoas que existem antes e acima dela e que a fazem corn as suas escolhas pessoais; cujos conflitos sao resolvidos mais por auto-composi~ao do que por julgamento; em que a solidariedade entre as pessoas esta sempre presente, tao natural que nao tinha de ser declarada (na epoca). C6digo Civil matriz de todo o Direito legislado.

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COELHO DA ROCHA E 0 CODIGO CIVIL NAPOLEONICO

Inod~ncio

Galvao Telles



COELHO DA ROCHA E 0 C6DIGO CIVIL NAPOLE6NICO

Inod~ncio

Galvao Telles*

1. COELHO DA RocHA (M. A.) nasceu em 30 de Abril de 1793, no lugar de Covelos, freguesia de S. Miguel do Mato (portanto nas chamadas "terras de Santa Maria"), filho de pais lavradores, profundamente honrados mas parcos de haveres. 2. Movidos pela ingenita propensao de CoELHO DA RocHA para o estudo, e apesar da escassez de meios, seus pais anuiram a que ele fosse estudar, primeiro no Porta, depois em Coimbra, possivelmente corn o auxilio de algum parente mais abastado. Em Coimbra frequentou na respectiva Universidade, simultaneamente, a Faculdade de Leis e a Faculdade de Canones. 3. Em 1815 CoELHO DA RocHA obteve o grau de Bacharel em Leis e em 1816 o de Bacharel em Canones, em qualquer dos casos apos os regulamentares cinco anos de estudo. Em seguida, matriculou-se no sexto ano de Leis e, depois de ter defendido conclus6es magnas no termo do ano lectivo, recebeu o grau de Licenciado em Leis; e nao obteve o grau de Doutor por falta de recursos pecuniarios. 4. Gra<;as a ter entretanto arrecadado algum dinheiro corn o ensino da cadeira de Institui<;6es Canonicas no Seminario Episcopal de Viseu, e gra<;as tambem a algum dinheiro que amigos lhe emprestaram, voltou a Coimbra e, finalmente, doutorou-se em Leis em 1818. 5. Por outro lado, em 1819-1820 recebeu ordens menores e ultimou a sua ordena<;ao no Porta. 6. Liberal por convic<;ao, adepto pais das ideias constitucionalistas de D. Pedro IV, a sua dedica<;ao a essas ideias valeu-lhe, no efemero reinado de D. Miguet a pena de desterro, que todavia nao chegou a efectivar-se. Em contrapartida, foi-lhe proibida a saida de Covelos, onde permaneceu ate ao definitivo triunfo do liberalismo em 1834, ocupando ali o tempo na advocacia e na prepara<;ao das suas predicas religiosas. 7. Restabelecido o Govemo Constitucionat CoELHO DA RocHA foi por este despachado Lente da Faculdade de Leis e incumbido, em 1834-35 e 1836-37, da regencia de Historia do Direito Romano e Portugues. Escreveu entao o seu excelente

* Universidade Lusfada de Lisboa. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

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Inocencio Galvii.o Telles

Ensaio sobre a Hist6ria do Govemo e Legislat;ao de Portugal, de que safram duas edit;6es, obra da maior valia pela ardua investigat;ao a que 0 obrigou, trabalho conduzido corn apurado metodo e vasado em linguagem da maior clareza e simplicidade. 8. Em razao do seu grande merito, CoELHO DA ROCHA viu-se em 1834 nomeado sucessivamente para varios cargos de responsabilidade, entre eles o de Vogal Ordinaria do Conselho Superior da Instrut;ao Publica. Foi-lhe inclusive oferecida a Mitra de Goa, mas nao a aceitou, pois todos os seus cuidados estavam nos seus escritos. 9. CoELHO DA RocHA escreveu na vigencia da Lei de 18 de Agosto de 1769 (a chamada Lei da Boa Razao) e dos Estatutos da Universidade de 1772, diplomas, como se sabe, inspirados e postos em vigor pelo Marques de Pombal e imbufdos do iluminismo racionalista, os quais deram ao Direito Patrio o posto cimeiro de que andava arredado pelo Direito Romano e pelo Can6nico. 10. Para identico fim concorreu poderosamente o sabio Lente da Universidade PASCOAL JosE DE MELo FREIRE, verdadeiro fundador da nossa escola de Direito Patrio atraves das suas Instituit;6es de Direito Patrio, Publico e Privado, escritas em latiml, que era entao a lingua universal dos cientistas. 0 Direito Portugues apareceu af, pela primeira vez, reduzido a uma sfntese elaborada corn metodo e espfrito crftico. 0 livro de MELo FREIRE, de excelente qualidade, foi oficialmente adoptado como compendia na Faculdade de Leis. 11. Entretanto, em 1830, as duas Faculdades, a de Leis e a de Canones, fundiram-se numa so, corn o nome de Faculdade de Direito. Houve que fazer uma diferente distribuit;ao das disciplinas; nomeadamente, houve que autonomizar as cadeiras respeitantes ao Direito Civil (ao Direito Civil propriamente dito ). Coube a COELHO DA RocHA uma dessas cadeiras. Is to o levou a empreender a elaborat;ao de urn compendia onde condensasse as respectivas materias, compendia a que deu o titulo de Instituit;6es de Direito Civil Portuguez, e que e, diga-se desde ja, uma verdadeira obra-prima. Tern interesse reproduzir o que disse COELHO DA RocHA a respeito do trabalho que chamou a si: "Quando o empreendemos, nao nos eram desconhecidas as dificuldades. Nao se trata de explicar urn c6digo, porque o nao temos; nem de reduzir a sfntese, ou desenvolver, os prindpios fixos e constantes de urn sistema coerente, porque o nao ha na nossa legislat;ao civil. Pelo contrario, no meio do caos em que ela se acha, o escritor, ate certo ponto, e obrigado a tomar a vez do legislador: tern de formar o piano, tern de fazer a select;ao das doutrinas; e tern de redigir ate as ultimas ilat;6es2 • 12. CoELHO DA RocHA revela nestas palavras a sua inata vocat;ao de legislador e codificador. As Instituit;6es que ele diligente e solidamente elaborou eram, na pratica, urn verdadeiro C6digo Civil, que tribunais e juristas como

1 Institutiones Juris Civilis Lusitani, cum publici, cum privati (Institui~6es de Direito Civil, tanto publico como privado- tomada aqui a expressao "Direito Civil" num sentido amplo). 2 Prefacio da 2' edi~ii.o das Institui~6es de Direito Civil Portuguez.

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Coelho da Rocha eo C6digo Civil Napole6nico, p. 243-248

tal acatavam, e que continuou a ser objecto de estudo mesmo depois de publicado em 1867 e entrado em vigor em 1868 o Codigo de SEABRA, visto as Institui<;:6es de CoELHO DA RocHA terem continuado a ser editadas mesmo apos essas datas 3 • 13. Como e sabido, o Decreto de 8 de Agosto de 1850 encarregou o jurisconsulto ANT6Nro Lufs DE SEABRA (mais tarde galardoado corn o titulo de Visconde) de organizar o projecto de Codigo Civile, ao mesmo tempo, nomeou uma Comissao incumbida de rever os trabalhos do novo Codigo que sucessivamente lhe fossem apresentados pelo encarregado da sua redac<;:ao. Essa Comissao era constituida por varios professores da Faculdade de Direito, entre eles CoELHo DA RocHA e o proprio SEABRA. A inclusao de CoELHO DA RocHA na Comissao nao passou, obviamente, de uma homenagem prestada ao notabilissimo jurisconsulto. Corn efeito, a data da constitui<;:ao da Comissao - 8 de Agosto de 1850 - ja CoELHO DA RocHA nao podia prestar uma colabora<;:ao efectiva, dado que padecia, desde 17 de Abril do mesmo ano, de grave enfermidade que o levou a morte no dia 10 de Agosto seguinte, corn 57 anos. SEABRA, nascido em 1789, tinha em 1850 sessenta e urn anos. Encontrava-se em pleno vigor fisico e intelectual, vindo a falecer so em 1895, corn 96 anos. Ambos eram juristas de excepcional envergadura; ambos tinham desempenhado corn a maior proficH~ncia altos cargos; ambos tinham importante obra juridica publicada. Mas neste ultimo aspecto CoELHO DA ROCHA levava vantagem. SEABRA, alem de trabalhos menores, tinha publicado em 1850 A propriedade. Philosofia do direito para servir de introduriio ao commentario sabre a lei dos foraes, obra notavel. Tambem CoELHO DA RocHA, a par de trabalhos menores, havia publicado duas obras igualmente notaveis, Historia do Governo e da Legislariio de Portugal e Instituip3es de Direito Civil Portuguez, da ultima das quais sairam seis edi<;:6es, a ultima quando o Autor ja tinha falecido ha vinte anos 4, e corn a particularidade de constituir, na pratica, o Codigo Civil que se ambicionava. Se nao fora a sua atroz enfermidade, talvez (pensamos nos) tivesse sido COELHO DA RocHA o escolhido para redigir o novo Codigo Civil portugues. Assim o pensamos, e temos como muito plausivel este nosso ponto de vista.

3 A ultima edic,:ao das Instituic,:6es e a sexta, de 1886, saida vinte anos ap6s o inicio da vigencia do C6digo de SEABRA. Epraticamente certo que as Instituic,:6es continuaram a ser ensinadas na Universidade, embora chamando o Lente a atenc,:ao dos discipulos para as diferenc,:as existentes entre as duas obras. ' Possuo a 2•, a 4' ea 6' e ultima edic,:ao das Instituic,:6es de CoELHODARocHA. Ecurioso notar que no frontispicio da 4' edic,:ao que possuo, de 1867, esta escrito a mao o nome do aluno a quem entao pertencia, o nQ77, corn indicac,:ao da respectiva data, Coimbra 18 de Outubro de 1882, ea referenda ao 2Qano juridico, 1882-1883. 0 que constitui a prova palpavel de que as Instituic,:6es de CoELHO DA RocHA ainda eram ensinadas na Universidade pelo menos cerea de 15 anos ap6s a entrada em vigor do C6digo de SEABRA.

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Inocencio Galvao Telles

14. Mas que tern tudo isto a ver corn o Codigo Civil Napoleonico, cujos duzentos anos comemoramos agora? Tern a ver o seguinte. 15. Conforme ja atras foi dito, CmLHO DA RoCIIA escreveu quando estava em vigor a legisla~ao pombalina constituida pela Lei de 18 de Agosto de 1769 (Lei da Boa Razao) e os Estatutos da Universidade de 1772, que mandavam recorrer ao chamado uso moderno, isto e, mandavam, no silencio da legisla~ao expressa (Ordena~6es e leis avulsas ), recorrer a os codigos modernos das na~6es civilizadas, como direito subsidiario. Entre esses codigos CoELHO oA RocHA privilegiou o Codigo Civil frances, de 1804, alem do da Prussia5 • Em varios passos da sua obra cita disposi~oes daquele primeiro codigo para resolver duvidas que se suscitavam. As Institui~6es de CoELHO DA RocHA estao, pois, repassados do espirito do Codigo napoleonico, que se transmitiu, a par doutras influencias, ao Codigo de SEABRA (o qual seguramente conhecia muito bem aquela obra) e, atraves do Codigo de SEABRA, ao Codigo Civil actual. 16. A simplicidade do Codigo de Napoleao eo segredo da sua perenidade. Redigido em termos muito concisos, nas suas formulas aticas diz por via de regra o essencial e so o essencial. Razao tinha Napoleao quando afirmava que, corn o decurso do tempo se esqueceriam as suas vitorias, mas nao o seu Codigo, que alias o Imperad01~ depois de concluido pela Comissao elaboradora, chamara a si para lhe introduzir, pelo proprio punho, algumas pertinentes altera~6es.

17. Como e sabido, Napoleao acabou por ser vencido em Waterloo pelo General Wellington, tendo-se colocado sob a protec~ao dos Ingleses e tendo sido por eles deportado para a pequena e distante ilha de Santa Helena, onde veio a falecer. Ai escreveu textualmente: "A minha verdadeira gloria nao e ter ganho quarenta batalhas; Waterloo apagara a lembran~a de tantas vitorias. 0 que nada apagara, o que vivera eternamente, e o meu Codigo Civil" aquele Codigo que, sendo Napoleao ainda Primeiro Consul, promulgara em 1804 sob o titulo de Code Civil des Franr;ais. Tenho dito.

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Prefacio da 2" edi<;ao das Institui<;6es.

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LESUCCESETLERAYONNEMENT DU CODE CIVIL FRAN~AIS EN QUESTION

Jean Louis Halperin



LE SUCCES ET LE RAYONNEMENT DU CODE CIVIL FRAN<;AIS EN QUESTION*

Jean Louis Halperin**

Le Bicentenaire du Code Napoleon a ete fete en France dans une atmosphere de desenchantement, qui contraste avec 1' exaltation nationaliste du Centenaire en 1904. En un siecle le contexte international a profondement change: en 1904, la France etait une des premieres puissances du monde, a la tete d'un vaste Empire colonial et fiere d'avoir exporte son Code sur presque tous les continents; en 2004 les Fran<;ais s'inquietent du declin de ce qui est devenu une petite nation et les juristes s'interrogent sur le sort d'un code national, venerable mais ayant perdu beaucoup de son rayonnement, dans une Union europeenne ou le droit prive est de plus en plus integre. Les historiens du droit n' echappent pas a ce changement de perspective. En 1904, dans le Livre du Centenaire, le Code civil apparaissait comme une oeuvre pleine de sagesse et d'equilibre. Reprenant l'idee, lancee dans le Discours preliminaire de Portalis, d'une " transaction solenelle " entre le droit coutumier et le droit romain, civilistes et historiens avaient etendu cette notion de compromis a la synthese realisee par les codificateurs (des moderes venant de toutes les parties de la France) entre l'ancien droit et la legislation revolutionnaire. En meme temps, 1' enseignement des facultes de droit vantait le style du Code civil (sur les traces de Stendhal), son esprit liberal, individualiste et meme spiritualiste, sa clarte reliee au rationalisme cartesien des Fran<;ais. Enfin, le succes de la codification sur le continent Europeen et au-dela, le rayonnement du Code Napoleon en dehors de France etaient interpretes comme la victoire de Portalis sur Savigny. Les etudes historiques sur le Code civil, developpees en France depuis une quarantaine d' annees, ont denonce cette vulgate et remis en question l'image si rassurante du Code par excellence. A bien des points de vue, le Code Napoleon est apparu comme une oeuvre du despotisme eclaire, imposee par la volonte d'un souverain autoritaire comme les codifications prussienne et * Comunica~ao proferida na Sessao Solene ocorrida na Universidade Lusiada de Lisboa em 2 de Dezembro de 2004. ** Ecole Normale Superieure de Paris.

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Jean Louis Halperin

autrichienne. En usant de son autorite sur des assemblees domestiquees, Bonaparte a impose le Code civil "a la hussarde". L' autoritarisme est egalement patent clans les idees exprimees au cours des travaux preparatoires. Les travaux les plus recents, notamment ceux de Xavier Martin, ont montre les penchants des redacteurs du Code Napoleon en faveur d'une anthropologie mecaniste et pessimiste: ils ne cachaient pas leur volonte de se servir des sentiments egoi:stes clans le but de reconstitue1~ sur la base d'une famille hierarchisee, un encadrement de la societe au service de l'Etat. I1 fallait armer la magistrature paternelle, reduire a 1' obeissance les epouses et les enfants, restreindre le divorce et privilegier la filiation legitime. Il n'est pas etonnant que le Code Napoleon se distingue des codifications d'inspiration jusnaturaliste par !'absence de developpement specifique sur les personnes physiques ou morales. Le Code fran~ais ne conna1t aucun equivalent a I' article 16 de 1'ABGB sur les droits innes de tout homme. Alors que le code autrichien interdisait 1' esclavage, le Code Napoleon etait contemporain de sa reintroduction clans les colonies fran~aises. Dans le meme esprit, !'institution de la mort civile et le retablissement partiel du droit d' aubaine a 1' encontre des etrangers temoignaient d'une forme de mepris pour les personnes. Dans son contenu, le Code Napoleon comporte peu de solutions nouvelles et certains de ces articles - resultant comme 1' avait bien vu Savigny de collages de textes d' origine diverse - presentent des imperfections techniques. La clarte du Code est parfois prise en defaut et son accessibilite au Fran~ais moyen plus que douteuse. Quant au rayonnement du Code civil, il doit beaucoup a l'imperialisme napoleonien: le Code a ete impose- souvent en fran~ais- a des populations qui n' ont pas ete consultees et ont exprime des oppositions (en Allemagne, en Italie, en Pologne). N' a-t-on pas alors exagere 1' exemplarite de la codification fran~aise ? Le Code Napoleon s'inscrit au milieu de la premiere grande vague de codification qui a affecte !'Europe, entre le Code prussien de 1794 (ALR) et le Code autrichien de 1811 (ABGB). Ces trois grands codes presentent de nombreuses similitudes clans leurs buts et leur inspiration. Dans les trois cas, il s' agissait d' etatiser le droit prive, en assurant la primaute de la source legislative sur 1' autorite traditionnelle du droit romain et des coutumes territoriales. La volonte de rationaliser le droit, par la redaction d'un corps de lois ordonnees et pretendant s' a dresser atous, correspond au programme de l'Ecole mod erne du droit nature! qui a diffuse clans toute !'Europe une nouvelle axiomatique juridique. Le regime napoleonien, qui a pris une forme monarchique 1' annee meme de la promulgation du Code civil, se rapproche du despotisme eclaire a 1' origine des entreprises prussienne et autrichienne de codification. Il n' empeche que le Code fran~ais vit encore, a la difference du code prussien, et que son influence a ete superieure au code autrichien, qui partage avec lui la perennite au prix de multiples transformations. La singularite du Code Napoleon est 1' effet de 1' onde de choc provoquee par la Revolution fran~aise. Tandis que la preparation de 1' ALR et de 1' ABGB avait commence des le milieu du XVIIIe siecle, le lancement de la codification intervient en

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France a partir de 1789. En !'absence de volonte de reforme legislative emanant du pouvoir monarchique, l'histoire politique de la codification ne commence en France qu'en 1789: la codification a alors pris une place de choix clans le credo revolutiom1aire. L' exaltation de la loi poussee jusqu' au culte, la passion de l'unite et de la rationalisation, la volonte de reforme sous le signe de l'egalite: tout concourt a ce que le droit - rendu clair et precis - soit codifie. Il n' est pas etonnant que les Constituants aient promis, clans la loi judiciaire des 16-24 aout 1790 et clans la constitution de 1791, la redaction d'un "code de lois civiles communes a tout le royaume". Le lien desormais etabli entre constitution et code civil atteste de la nature politique de la codification du droit civil fraw;:ais. Et c' est la "force des chose" qui empeche sa realisation jusqu' en 1799. Trois projets sont successivement elabores sous la direction de Cambaceres au sein des assemblees revolutionnaires. Le premie1~ compose de 719 articles, fit 1' objet de la discussion la plus approfondie d' a out a novembre 1793. Le "grand edifice de la legislation civile" fut alors renvoye a l'etude d'une commission de "six membres philosophes": en realite, la fixation des droits civils des Fran<;:ais n' apparaissait plus opportune aux chefs Montagnards, alors que la constitution etait suspendue et la Terreur a1' ordre du jour. Pour repondre aux critiques reclamant "une redaction simple, un ensemble en raccourci", le comite de legislation prepara un deuxieme projet reduit a 297 articles et soumis a la Convention quelques semaines apres le 9 thermidor. Son examen s'interrompit brutalement en decembre 1794, probablement du fait des hesitations de la Convention sur la voie de la reaction. Le troisieme projet de 1 104 articles - redige en 1796 - fut ajourne, cette fois par la majorite du Conseil des Cinq-Cents en proie a !'incertitude sur le sort a venir du droit prive revolutionnaire. La codification du droit civil fit 1' objet de projets prives en 1798-1799 par Target et Jacqueminot avant de redevenir un objectif officiel avec l'arrivee au pouvoir de Bonaparte. Des le 19 brumaire an VIII (10 novembre 1799), la preparation d'un Code civil fut remise a l'ordre du jour et le gouvernement consulaire designa en a out 1800 quatre commissaires charges d' elaborer un avant-projet. La codification fut une piece essentielle du cesarisme qu' elle servait a merveille en renfor<;:ant le controle de l'Etat sur la societe, tout en dormant l'illusion d'une sphere privee concedee aux individus. L'engagement du premiert consul avait aussi l'avantage d'attirer a Bonaparte la reputation d'un grand legislateur. S'attribuant la paternite du code, Napoleon a fait l'aveu de la confiscation de l'ideallegicentriste de la Revolution a son seul profit. Habilete supreme, il a su en meme temps associer la communaute des juristes a ce qui devait rester le Code civil des Fran<;:ais. Prefigure par ses moules successifs, le Code civil finit de se former clans cette confrontation d'idees et de sensibilites propre a la France du debut du XIXe siecle. L"'esprit" du Code civil, s'il existe, n'est pas si monolithique. Bonaparte ne partageait pas toute la doctrine sensualiste des Ideologues qu'il ecarta des assemblees. Le premier consul plaida meme pour le maintien du divorce ou de 1' adoption malgre les pressions de certains de ses collaborateurs.

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Dans les ecrits de Portalis et des autres codificateurs se lisent les traces d'une pensee eclectique ou se melent les apports de Montesquieu, de Locke, et a tres petite dose d'Adam Smith ou de Jeremy Bentham. Dans !'atmosphere postrevolutionnaire, les reactions autoritaires voisinnent avec des tendances preliberales. Le "verrouillage" ideologique n' a pas ete total, et sur les bases de la tradition juridique, quelques articles ont pu echapper aux prejuges de leurs redacteurs. Plus marque par 1' autoritarisme familial que les codes prussien et autrichien, le code fran<;ais n'en reste pas moins porteur d'une partie du message revolutionnaire. La reussite temporaire du regime napoleonien tient largement a une captation cl' heritage. Bonaparte s' est presente en fils et en sauveur de la Revolution: il a tire le maximum de profit du culte de la loi, de 1' abolition des privileges et des apprehensions des nouveaux proprietaires, qu'il s'agisse des paysans liberes des droits feodaux ou des acquereurs de biens nationaux. A tous ces Fran<;ais qui entendaient conserver des "acquis" de la Revolution, le Code civil apportait le soutien reconfortant d'une legislation civile faite pour durer. Du point de vue social, il n'y a pas d'erreur a parler d'un code "bourgeois" pour la France et d'un code "feodal"- selon !'expression de Tocqueville- pour la Prusse et, clans une moindre mesure, 1' Autriche. La propriete de 1' article 544, "droit inviolable et sacre" depuis 1789, est affranchie des "dependances feodales, brisees pour toujours". L' egalite successor ale, confirmee par !'interdiction des substitutions et temperee par l'elargissement de la quotite disponible, satisfaisait la bourgeoisie et une partie de la paysannerie, tout en affaiblissant les families de 1' ancienne aristocratie dont on continuait a se mefier en 1804. Il suffit d' ouvrir 1' ALR pour y constater le maintien du regime feodal et du servage. L' ABGB est plus discret sur !'existence d'un domaine partage, mais il permet au regime feodal de survivre. Le Code Napoleon consacre aussi une societe la'icisee et fondee sur l'egalite des droits: il ne connait que le mariage civil et reprend les principales dispositions de la loi du 20 septembre 1792 confiant la tenue de l'etat civil aux municipalites. Il assure ainsi 1' egalite entre tous les Fran<;ais, queUe que soit leur religion. A I' inverse, 1'ALR interdisait le mariage des chretiens et des nonchretiens, tandis que 1' ABGB confirmait le mariage religieux des chretiens, reglait le mariage des juifs et prohibait le mariage entre chretiens et nonchretiens. Alors que les droits prussiens et autrichiens sont ceux d'Etats confessionnels, le droit fran<;ais est des 1804 celui d'une societe largement secularisee et meme partiellement dechristianisee. Avec l'absence de toute discrimination religieuse, nous touchons la question centrale de 1' egalite des droits clans le Code Napoleon. Celui-ci s'adresse a un homme abstrait, apparemment sans consideration de sa naissance ou de son rang: "tout Fran<;ais jouira des droits civils" (art. 8). Une telle perspective explique la place tenue par le droit de la nationalite au debut du code civil fran<;ais, le rattachement du statut personnel des Fran<;ais a la loi nationale et la quasi-absence de mentions relatives a la profession. En dehors des femmes et des mineurs, la seule

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exception a cette egalite resulte de !'article 1781, selon lequel le "maitre" est cru sur parole en cas de conflit sur le paiement du salaire. Cette discrimination oppose nettement deux categories de Fran<;ais ne meritant pas la meme confiance: les patrons et les "gens de travail", "ouvriers" ou "domestiques". Mais on est loin de 1' ALR, avec toute 1' articulation de sa seconde partie fondee sur 1' organisation de la societe en ordres separes par des empechements au mariage et des regimes successoraux particuliers. L' autre face de cette isonomie du code fran<;ais est son indifference a 1' egard des plus faibles. La plupart des dispositions du Code civil s' adressent a des notables: meme les titres consacres aux personnes supposent la presence de la propriete ou sa transmission. L' analyse de Marx, exposee dans un journal rhenan en 1849, reste a cet egard tres eclairante. Expression legale du pouvoir de la bourgeoisie, le Code Napoleon pouvait servir de porte-drapeau de la Revolution a l'etranger. En depit de son titre, le Code civil des Fran<;ais n' a pas ete per<;u comme une legislation etroitement nationale. De meme que le code autrichien a pu s'appliquer a un Etat multi-national, le Code Napoleon a beneficie des accroissements territoriaux lies a la conquete et de la portee universelle attachee a ses accents revolutionnaires. S'appuyant sur l'ideologie de la Grande Nation, Napoleon a impose le Code civil, comme toutes les lois fran<;aises, a un Empire de 130 departements ou vivaient des Belges, des Luxembourgeois, des Suisses, des Italiens, des Allemands et des Hollandais. En Belgique et dans les departements de la rive gauche du Rhin, !'introduction du Code Napoleon a prolonge le processus d'implantation des lois fran<;aises commence sous la Revolution, qu'il s'agisse de !'abolition du regime feodal ou de la laicisation du mariage. Dans les departements d'annexion plus recente, !'acculturation a ete plus superficielle et le Code fran<;ais n' a pas oblitere certaines habitudes nationales. Napoleon a meme renonce a l'implanter dans le departement du Simplon. Au-dela du Grand Empire, Napoleon a souhaite faire du Code civil le "droit commun" de l'Europe, destine a remplacer un droit romain juge obsolete. Refusant la moindre adaptation qui s' ecarterait de la traduction litterale pour tenir compte des mCEurs locales, l'empereur a transpose "son" code dans le royaume d'Italie et - en donnant des ordres formels en ce sens - dans le royaume de Naples. Aupres des Etats allemands, Napoleon multiplia les pressions pour parvenir a 1' adoption du Code civil. Si cette introduction vivement encouragee reussit dans les territoires du royaume de Westphalie, des grands-duches de Berg et de Bade, ainsi qu' a Francfort, elle dut se faire avec quelques concessions concernant 1' etat civil et le divorce. Le Badisches Landrecht (1809) est le meilleur exemple d'une transplantation du Code Napoleon "corrige" par plus de 500 notes, avec d'importants ajouts comme la recherche en paternite ou l' usufruit du conjoint survivant. Dans le grandduche de Varsovie, des solutions d' accomodement furent trouvees pour faire admettre le Code civil par le clerge et la noblesse. Cet essor souvent force du Code Napoleon suscita des resistances et des debats animes. Les Italiens se montrerent, en general, refractaires au mariage civil, au divorce et au regime legal de la communaute entre epoux. En 1815,

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un juriste de Vicence, Negri, fit la liste des defauts du code fran<;ais qu'il accusait d' avoir declare la guerre aux lois de la religion catholique et trouble 1' ordre des families par une emancipation trap rapide des enfants. En Allemagne, le Code Napoleon suscita une polemique intense pendant plusieurs decennies. A 1' apogee de la domination napoleonienne, il fut analyse, admire, mais aussi critique sur certains points par des professeurs comme Zachari~ et Lassaulx. Au moment de la chute du Grand Empire, il fut denonce par Rehberg comme un code etranger et dangereusement revolutionnaire, tandis que Thibaut en appreciait la technique et proposait de suivre cet exemple pour rediger un code pour toute 1' Allemagne. C' est en reponse a Thibaut que Savigny publia son celebre Vom Beruf (1814), clans lequel il se fondait sur sa conception historique du droit pour juger inopportune une codification allemande. Le rayonnement incontestable du Code Napoleon au cours du XIXe siecle doit etre nuance en tenant compte de la portee inegale de son influence. En Europe, d'abord, la "reception" du Code fran<;ais a ete integrale et profonde en Rhenanie, en Belgique et a Geneve: clans taus ces territoires, c' est le texte de 1804 - y compris !'institution du divorce abandonnee en France meme de 1816 a 1884 - qui a ete applique jusqu' au debut du XXe siecle, pour la Rhenanie et Geneve, ou jusqu'a aujourd'hui, pour la Belgique et le Luxembourg. Si le nombre de divorces est reste faible la ou le catholicisme etait dominant - en Belgique et en Rhenanie - le Code civil a correspondu clans ces territoires aux aspirations de la bourgeoisie et n' a pas suscite d' opposition de la part des populations rurales. Ses relations avec le sentiment national sont cependant ambigues: les Beiges n' ont meme pas cherche a rem placer les references a la "qualite de Fran<;ais" et les liberaux rhenans n' ont pas vu de contradiction entre le symbole d'unite que representait le Code et leur soumission a des souverains differents (la Prusse, la Baviere ... ). Les cantons suisses ay ant adopte un Code civil jusqu' en 1856 - date d' entree en vigueur du Code de Zurich plus influence par l'Ecole historique du droit a travers Bluntschli - presentent toute une serie de transitions entre la reception genevoise du Code fran<;ais et 1' adoption de solutions plus eloignees du modele fran<;ais. Le Code civil du canton de Vaud (1819-1821) est le plus proche du texte fran<;ais de 1804, notamment du fait de travaux preparatoires remontant a 1806-1807. 11 connait le mariage civil et le divorce, reprend au Code Napoleon ses definitions de la propriete et des contrats et s'en ecarte sur des questions plus techniques relatives aux regimes matrimoniaux et a la transmission des successions. Les Codes civils de Fribourg (1834-1839), du Tessin (1837) et de Neuchatel (1853-1855) vont mains clans le sens de la secularisation du droit matrimonial, tandis que le Code civil du catholique Valais (1855) maintient tacitement le mariage religieux et se rapproche pour cette raison d' autres codifications inspirees partiellement de 1' exemple fran<;ais. Dans d'autres parties de l'Europe !'influence du Code fran<;ais a ete, en effet, plus limitee clans la premiere moitie du XIXe siecle: c' est une version conservatrice de la codification fran<;aise - amputee du mariage civil et du divorce - qui s' est imposee au detriment de 1' aspect revolutionnaire du " Code

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sans Dieu ". Tel est le cas en Pologne- ou le Code civil, maintenu par les tsars, est corrige clans le domaine des hypotheques en 1818 et 1825 et clans 1'ensemble du livre I par des lois de 1825 et 1836 - et clans les Etats de l'Italie pre-unitaire: a Naples, avec les Leggi civili de 1819, clans le Code de Parme et de Plaisance en 1820 (avec 2 376 articles, mariage religieux pour les catholiques), avec encore plus de differences clans la legislation des Etats pontificaux (Regolamneto legislativo de 1834 et Disposizioni di legge civile de 1849 qui s'inspirent du Code franc;ais par quelques dispositions, en maintenant cependant les regles du droit canonique et l'inegalite en matiere successorale) ou clans le Codice Albertino du Piemont (1837). A l'ere de la Restauration, !'influence politique du Code Napoleon a ete volontairement reduite par la plupart des gouvernements. En dehors d'Europe, la transplantation du modele franc;ais a donne lieu a des ecarts encore plus importants entre le choix d' emprunts techniques, presque purement formels, et la reference a un message politique melant autoritarisme etatique et impact egalitaire. Sur le continent americain, l'histoire de la codification de la Louisiane parait completement atypique. 11 y a, bien sur, un lien avec la France clans ce territoire vendu par Bonaparte aux EtatsUnis en 1803 et clans lequel la langue juridique franc;aise s' est maintenue a parite avec 1' anglais clans la premiere moitie du XIXe siecle. Pourtant, 1' administration franc;aise a laisse moins de traces que la colonisation espagnole et il est impossible d' envisager une influence napoleonienne clans le nouvel Etat americain. Dans ces conditions, il n' est pas etonnant que le Digest promulgue en 1808 soit une compilation des lois anciennes, particulierement espagnoles, et d' emprunts aux textes combines du projet de 1' an IX et du Code de 1804, dotee d'une faible portee pratique. L'impact reel du modele franc;ais est plus important clans la redaction du Code louisianais de 1824-1825 qui mele etrangement des emprunts au projet de 1' an IX, au droit civil franc;ais, au droit espagnol et au droit colonial de 1' esclavage. Plus encore que la contradiction entre le principe d' egalite reconnu clans le Code civil et la servitude - contradiction presente egalement jusqu' en 1848 clans les colonies franc;aises - c' est la place limitee de ce code louisianais clans les sources du droit applique par les tribunaux qui a fait sa specificite. L'histoire du Code civil clans l'ile d'Hai:ti est egalement surprenante clans la mesure ou l'exemple franc;ais avait toutes les chances d'etre rejete par une population qui s' etait soulevee contre Bonaparte, puis avait ete ramenee clans la mouvance espagnole en 1814. Apres que son usage eut ete recommande aux juges d'Hai:ti (1816), le Code Napoleon fut pourtant introduit en franc;ais en 1825-1826, clans toute l'ile (clans un contexte autoritaire avec la dictature de Boyer), puis maintenu clans ses deux parties, y compris apres la separation de la Republique Dominicaine en 1844. Cette reception ressemblait fort a un "plaquage". L'influence du Code Napoleon en Amerique du Sud souleve des interrogations similaires. En terme d'image, il semble bien que l'aura de Napoleon, associee au souvenir de la Revolution franc;aise, 1' ait emporte sur les facteurs

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de resistance qu'ils soient lies a la culture hispanique, au nationalisme naissant dans les jeunes Etats ou plus tard a !'intervention fran<;aise au Mexique. Precisement le Code Napoleon est apparu comme un element majeur pour 1' edification de nouvelles structures etatiques et nationales: il n' est pas etonnant que son imitation ait ete souvent le fait de caudillos souhaitant, a la faveur d'une periode de stabilite imposee, asseoir leur pouvoir sur des "masses de granit". On peut, toutefois, se demander si la reception du modele fran<;ais n' a pas ete purement formelle, compte tenu de la volonte conservatrice des gouvernants de ne pas bouleverser les structures sociales - y compris les inegalites les plus criantes - et de ne pas entrer en conflit avec l'Eglise. La reproduction du titre preliminaire sur 1' execution des lois peut etre interpretee aussi bien comme un triomphe de l'absolutisme etatique tirant un trait sur les coutumes ou comme un temoignage d'ignorance des realites indigenes. Dans ces conditions il convient de tenir compte de la chronologie - du Code civil de l'Etat mexicain d'Oaxaca (1828), a ceux de Bolivie (1830), de Costa Rica (1841), du Perou (1852), du Chili (1855), d'Equateur (1861), du Venezuela (quatre textes de 1862 a 1880), de l'Uruguay (1867), du Mexique (1870), d' Argentine (1871) et de Colombie (1873) - de I' influence reciproque entre ces codes (notamment du rayonnement du Code chilien de Bello) combinee avec !'influence des projets espagnols, du Code louisianais ou du Code italien, de la forme federaliste de certains Etats (comme le Mexique), du maintien de l'esclavage (au Perou, a l'epoque de la promulgation du Code jusqu'en 1854) du refus de la secularisation et de nombreuses regles du droit fran<;ais des successions. Ce sont plutot des principes unificateurs, des techniques ou des morceaux du Code Napoleon qui ont ete re<;us en Amerique du Sud, surtout apres 1845 et l'avenement de codifications nationales plus originales. Le Code civil du Bas-Canada (1866) presente encore un autre cas de figure. En s'inspirant tout autant de la coutume de Paris que du Code Napoleon, il peut apparaitre comme un moyen pour les Canadiens fran<;ais de defendre leur heritage juridique et linguistique, sans faire necessairement reference au modele napoleonien ou aux principes revolutionnaires (notamment la secularisation). Redige par une commission a laquelle participerent deux anglophones, il peut egalement etre interprete comme un outil de modernisation utilise par la bourgeoisie commer<;ante, sans volonte particuliere d' affirmer une identite culturelle par rapport a l'hegemonie britannique. Alors que se dessine 1' edifice constitutionnel du Canada moderne (avec la Confederation, issue de l'acte constitutionnel de l'Amerique du Nord de 1867), il s'analyse enfin comme un element de la structuration d'un .Etat en gestation. L'image du Code civil fran<;ais s'est quelque peu modifiee en Europe dans les annees 1850-1860, avec l'essor du mouvement des nationalites et !'influence personnelle de Napoleon IlL C'est alors que le Code Napoleon est devenu symbole d'unite en Italie, que sa reintroduction a ete proposee par certains juristes italiens et que la codification a ete menee a toute vapeur jusqu'a !'adoption du Code civil de 1865, qui emprunte beaucoup au modele fran<;ais notamment avec le mariage civil. La meme annee le cas roumain, qui

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presente aussi la particularite d'un Code "donne" par Alexandre Ion Cuza a une nouvelle nation avant meme !'adoption d'une constitution et sans consultation du Parlement, presente une autre forme d'emprunt massif au Code Napoleon (des deux tiers des articles, avec le mariage civil obligatoire, le divorce pour faute ou par consentement mutuel). Avec 1' adoption en 1867 du Code civil portugais - un ciment d'unite nationale utilise par des juristes au service d'un Etat centralisateur, mais la aussi un texte moins revolutionnaire que le modele - on pourrait conclure au succes dans les pays latins de la codification a la fran<;aise, mais l'Espagne fournit un contre-exemple avec la vigueur de la tradition nationale et le retard pris par un processus qui dut finalement composer, en 1889, avec le maintien des fueros . Les vieilles nations europeennes avaient trop de specificites historiques pour importer sans reserve un Code qui n' avait pas lui-meme une signification univoque. Hors de France Gusqu'a l'Egypte, a la Turquie et au Japon) chaque admirateur ou imitateur du Code Napoleon a retenu ce qui lui paraissait adapte dans ce talisman de la modernisation. Aujourd'hui nous devons nous sentir d' autant plus lib res de relire autrement le Code civil - comme un momument juridique a l'instar de la constitution americaine - et d'y voir des elements de modernite: l' egalite civile face aux revendications d'une multiplicite de statuts, la lai:cite face aux fondamentalismes religieux, une regie de droit dependant a la fois de la volonte democratique du legislateur et du pouvoir d'intrepretation du juge, enfin un processus d'unification qui peut inspirer !'integration europeenne.

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LE CODE NAPOLEON, CODE CAMELEON?*

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Le 21 mars 1804, trente-six lois ont ete reunies en un seul corps sous le titre de Code civil des Fran<;ais avec une numerotation continue qui etait, a elle seule, revolutionnaire par rapport au Code prussien de 1794 dote d'une numerotation propre a chaque chapitre. Baptise Code Napoleon en 1807, il retrouva son titre primitif en 1814. Bien que retabli officiellement en 1852, le nom de Code Napoleon disparut clans l'usage officiel apres 1870 et servit pour la version de 1804 plutOt que pour le Code civil en tant que droit positif. Cette onomastique changeante illustre la longevite et les metamorphoses de la codification civile fran<;aise, con<;ue en 1804 d'une seule piece et continuant a vivre sous forme d'une compilation de lois de dates diverses, avec aujourd'hui un peu plus de la moitie des 2283 articles clans leur forme d' origine. De maniere polemique, Savigny considerait en 1815 que le Code fran<;ais etait un melange compose mecaniquement d'heritages de 1' ancien droit et d'apports de la legislation revolutionnaire. L'unite du Code civil ne va pas de soi: d'un strict point de vue positiviste, il est compose de trente-six lois comportant elles-memes un grand nombre d' articles et de regles de droit qui peuvent etre appliquees et comprises separement. L' existence de strates successives - aussi bien clans 1' etablissement du texte en 1804 que dans les modifications repetees de certains articles ayant connu plus d'une dizaine de redactions differentes - peut faire douter de l'homogeneite de 1'ensemble. Si le Code Napoleon a souvent ete vante pour son style et sa clarte, il n'est pas impossible d'y voir une sorte de cameleon juridique qui resulte de la rencontre, clans 1' original et clans ses metamorphoses successives, d' elements tres composites. La flexibilite du texte du Code, ouvert a des transformations, des relectures et des interpretations diverses, a sans doute ete un gage de son succes et reste aujourd'hui un argument en faveur de son role comme source d'inspiration. La presence clans le Code Napoleon de divers materiaux anciens - qu'il s' agisse de regles du droit romain, du droit canon, du droit coutumier et des * Comunica\iio proferida na Sessiio Solene ocorrida na Universidade Lusiada do Porta em 3/12/04. ** Ecole Normale Superieure de Paris.

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ordonnances royales ou de conceptions doctrinales de 1' Ancien Regime - est tellement manifeste qu'il est possible d'indiquer, en reference a chaque article du code, ses sources directes ou lointaines clans les textes anterieurs. Le Code civil est bien, de ce point de vue, l'heritier de 1' enseignement des professeurs de droit fran<;ais: les traites de Pothier ont parfois ete recopies mot pour mot par les codificateurs. Pour autant, tout le Code civil n' est pas clans Pothier, de meme que la codification n' est pas en germe chez Domat. Ces deux auteurs n' ont jamais utilise le terme de code, ils n' ont pas demande I' unification des regles du droit prive applicables en France, meme si leurs travaux marquent avec d'autres d'importants progres clans la rationalisation du droit. Le Code civil fran<;ais doit une part de sa reussite a !'utilisation conjointe d'une tradition nationale et d'une ideologie juridique dont le rayonnement depasse largement les frontieres de la France. Comme les autres codifications europeennes, mais de maniere plus detournee, les redacteurs du Code Napoleon ont ete influences par l'Ecole moderne du droit naturel. L'apport de cette Ecole s' est diffuse a la fois par les voies de la doctrine fran<;aise - soucieuse de replacer les lois civiles "clans leur ordre naturel" de Domat a Bourjon- et par les multiples canaux qui ont apporte la connaissance des 02uvres de Grotius, Pufendort Barbeyrac, Burlamaqui - voire celle de Locke, Leibniz ou WolfÂŁ aux juristes fran<;ais de la fin du XVIIIe siecle. Dans ce creuset se sont forgees quelques-unes des idees maitresses attachees a la codification: la conception abstraite de la regie de droit, le plan du code fonde sur les droits subjectifs, les principes generaux a la base du droit de la propriete, de la responsabilite et des contrats. Les juristes ayant pris part a la Revolution ont ensuite contribue a donner au code un role de premier plan qu'il n'avait meme pas chez les theoriciens jusnaturalistes: 1' objectif est desormais fixe, le travail de mise au point a commence. Des 1' epoque de la Constituante fleurissent des projets "prives", offerts a1' assemblee par des particuliers. Cherchant la conciliation des coutumes et du droit romain, ces ebauches sont maladroites et prudentes: leurs auteurs ne sont des herauts du divorce. Mais une trame est proposee et, avec d'Olivier, la premiere redaction en articles. En 1793, la Convention ne preta guere d' attention au projet, par ailleurs incomplet, de Durand-Maillane. Le premier code de Cambaceres paraissait repondre davantage aux idees de liberte et d'egalite. Il integrait avec quelques retouches les lois du 20 septembre 1792 sur l' etat civil et le divorce, confirmait 1' abolition de la puissance paternelle, innovait avec 1' adoption des enfants impuberes et une stricte egalite successorale, y compris en faveur des enfants naturels reconnus. Cambaceres soutenait meme, contre de nombreux Conventionnels, l'idee d'une administration commune des biens du menage par les deux epoux. Si le projet fut enterre, sa discussion conduisit aux lois retroactives de 1' an II sur les enfants naturels et les successions. Le deuxieme code de Cambaceres, reduit a une sorte de table des matieres, legua des formules bien frappees: "toute convention, quelle qu' en soit la cause, fait loi entre ceux qui 1' ont formees", ou "celui qui cause un dommage est tenu de le reparer". Quant au troisieme projet officiet

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il h~moigne du virage post-thermidorien avec le retour a la tradition juridique - incarnee par Pothier - et quelques inflexions sur le statut de la femme mariee, 1' adoption et les droits successoraux des enfants naturels. La reaction se confirme dans un plan de Daunou pour la Republique romaine et dans deux projets prives rediges par Target et Jacqueminot en 1798-1799. A l'extreme fin du Directoire, s' affirme le dessein de retablir la puissance paternelle par 1' augmentation de la quotite disponible. Les auteurs du projet gouvernemental imprime en pluvi6se an IX (janvier 1801) - Tronchet, Portalis, Bigot de Preameneu et Maleville - disposaient ainsi de nombreux textes de reference. Il restait a regler l'etendue exacte de la reaction par rapport au droit revolutionnaire. Ces quatre anciens avocats, royalistes de ccem~ accentuerent le retour au droit coutumier et au droit romain reinterpretâ‚Ź a travers les auteurs jusnaturalistes. Prefigure par ses moules successifs, le Code civil finit de se former dans cette confrontation d'idees et de sensibilites ou se rencontrent !'heritage des Lumieres et notamment du sensualisme, le traumatisme provoque par la Terrem~ des conceptions economiques venues des Physiocrates et annon<;ant le liberalisme comme des idees de "retour a la morale" et a l'histoire proches de celles des courants contrerevolutionnaires. L' autoritarisme est ainsi patent dans les idees exprimees au cours des travaux preparatoires. Les travaux les plus recents, notamment ceux de Xavier Martin, ont montre les penchants des redacteurs du Code Napoleon en faveur d'une anthropologie mecaniste et pessimiste: ils ne cachaient pas leur volonte de se servir des sentiments egoi:stes dans le but de reconstituer, sur la base d'une famille hierarchisee, un encadrement de la societe au service de l'Etat. La societe conjugale du Code Napoleon est fondee sur la "preeminence de l'homme": "le mari doit protection a sa femme, la femme obeissance a son mari" (art. 213). L'incapacite de la femme mariee est radicale: elle l'empeche de contracter, d' exercer une profession ou d' ester en justice sans 1' autorisation de son mari. Meme pour ce qui est de la fidelite, la femme est en situation flagrante d'inegalite: pour etre punissable, l'adultere du mari doit etre aggrave par 1'entretien de sa concubine dans la maison commune. La durete de 1' article 340, qui interdit la recherche en paternite aux enfants naturels non reconnus, contraste egalement avec les dispositions des code prussien et autrichien. Quant a 1' adoption, elle interesse seulement des majeurs et assure surtout la transmission du patrimoine de 1' adoptant. Le Code Napoleon reprenait pourtant une partie du message revolutionnaire en consacrant une societe lai:cisee et fondee sur 1' egalite des droits: il ne connait que le mariage civil et reprend les principales dispositions de la loi du 20 septembre 1792 confiant la tenue de 1' etat civil aux municipalites. Il assure ainsi 1' egalite entre tous les Fran<;ais, queUe que soit leur religion. Avec 1' absence de toute discrimination religieuse, nous touchons la question centrale de l'egalite des droits dans le Code Napoleon. Celui-ci s'adresse a un homme abstrait, apparemment sans consideration de sa naissance ou de son rang: "tout Fran<;ais jouira des droits civils" (art. 8).

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Napoleon se serait exclame "Mon Code est perdu!" a la lecture d'un des premiers commentaires. Pourtant, le code a rapidement connu des amenagements et il s' est prete a des reformes legislatives successives. Jusqu' aux annees 1880, ces modifications n'on touche qu'un petit nombre d'articles, environ 130. Elles ont pourtant imprime des inflexions diverses au texte primitif. En creant les majorats, Napoleon lui-meme a porte la main sur un article du code et transforme 1' equilibre du droit successoral en 1807. La suppression du divorce en 1816 a represente un choc plus considerable encore, meme si les editions posterieures du code ont maintenu a leur place des articles qui servaient a la separation de corps. Que l'on envisage cette loi comme la consecration d'une evolution restrictive deja affirmee en 1804 ou comme 1' amoindrissement de la part revolutionnaire de la codification, il ne faut pas negliger les mutations provoquees par une telle amputation. Les lois de 1819 sur le droit d'aubaine, de 1826 sur les substitutions, de 1832 sur les dispenses de mariage, de 1850 sur la publicite des contrats de mariage ou le desaveu de paternite peuvent apparaitre plus techniques, mais elles contribuent egalement a retoucher la physionomie politique du Code civil. Le Second Empire accelera ces premieres adaptations du code aux realites nouvelles de l'economie ou de la societe: la suppression de la mort civile (1854), 1' organisation de la publicite fonciere (1855), 1' abrogation de 1' article 1781 (reduit a 1' etat de numero) participent a un mouvement general de "liberalisation" du droit franc;ais. La Ille Republique poursuit cette remise a jour clans le domaine familial, avec notamment le retablissement du divorce (1884), !'augmentation des droits successoraux des enfants naturels (1896) ou !'admission de la recherche en paternite (1912). Le Code civil integre d' autant plus facilement ces reformes qu' elles sont menees avec prudence et que d' autres transformations du droit prive - comme la loi de 1889 sur la decheance de la puissance paternelle ou celle de 1898 sur les accidents du travail - se deroulent en dehors du texte du code. Comme le pressentait Portalis, le Code Napoleon a fait l'objet d'un travail de reinterpretation de la jurisprudence et de la doctrine. Les decisions judiciaires, et particulierement celles de la Cour de cassation, ont inflechi de maniere tres precoce 1' application des dispositions du code. Des les annees 1815-1830, le regime de la dot mobiliere ou !'institution du mandat tacite ont ete empruntes a 1' ancien droit pour completer" le code. Quelques decennies plus tard, les juges admettent 1' adoption des enfants naturels, dont le code ne disait rien, et la legitimation de certains enfants incestueux, qui allait clairement contre la lettre de la loi. Il n' est pas besoin d' attendre les dernieres annees du siecle pour que les tribunaux etendent considerablement la portee de 1' article 1382 pour 1' appliquer aux dommages subis par la fille mere dolosivement seduite, par le commerc;ant victime d'une concurrence deloyale ou par l'ouvrier blesse clans un accident du travail. Ces constructions jurisprudentielles ne vont pas toutes clans le meme sens et il serait fallacieux de parler d'une jurisprudence progressiste, ay ant pour unique but d' attenuer les rigueurs du Code civil afin de le rendre plus conforme aux aspirations des nouvelles couches sociales. Il est 11

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bien des cas ou les decisions emanees de magistrats - tous des hommes, proprietaires et en apparence fideles au regime en place- sont empreintes de conservatisme: on ne peut pas dire que la jurisprudence du XIXe siecle ait ete particulierement favorable aux femmes! Pourtant, ces audaces jurisprudentielles portent la marque de 1'esprit ambiant: les juges, eux aussi, ont instille a petite dose le liberalisme dans le Code civil. La sacralisation du code a ete longtemps accusee d' a voir sterilise la science du droit civil en France: la codification aurait secrete la methode exegetique, avec tout ce qu' elle suppose de reverence a 1' egard du texte et de manque d' originalite. Les recherches des dernieres annees ont modifie cette vision reductrice des commentateurs du Code civil. Non seulement le conformisme des professeurs de Code Napoleon tient davantage aux contraintes de l'enseignement qu'a la codification elle-meme, mais la doctrine fran<;aise a participe a la "relecture" du code en liaison avec les grands courants de pensee du XIXe siecle. En accentuant 1' absolutisme du droit de propriete et en exaltant la liberte contractuelle, c'est la doctrine qui a vu dans le code le triomphe de l'individualisme liberal, au point d'y transporter l'idee d'autonomie de la volonte, totalement etrangere a 1' esprit des codificateurs. Parce que les formules du code se pretaient a ce jeu, le projet de remplacement du Code Napoleon, un moment envisage au debut du XXe siecle, n' aboutit pas. La revision n' etait-elle pas faite ou en train de se faire au moyen de cette constante remise a jour par la legislation, la jurisprudence et la doctrine? La symbiose entre le Code civil et le peuple fran<;ais semble avoir disparu au cours du XXe siecle. Pendant l'entre-deux-guerres, le code continua a "vieillir" du fait de la timidite des reformes legislatives: il fallut attendre 1938 pour que soit supprimee la puissance maritale et la qualification de "code de la famille", couramment attribuee au decret-loi du 29 juillet 1939, atteste des progres de la decodification. Il n' est pas etonnant que 1' elaboration d' un nouveau code ait ete a 1' ordre du jour a la Liberation. Et si la commission de reforme du Code civil, etablie en 1945, ne reussit pas a aller au-dela d'un timide avant-projet, les causes de cet echec doivent etre cherchees dans les faiblesses de la Quatrieme Republique. Le Code Napoleon a ete veritablement sauve par les grandes reformes du droit de la famille votees de 1964 a 1975 (sur la tutelle, 1' adoption, les regimes matrimoniaux, 1' autorite parentale, la filiation et le divorce). Sous !'inspiration du doyen Carbonnier, le Code civil a subi une refonte quasi complete du livre premier, alors que les livres II et III subsistaient pour 1'essentiel avec un eclairage nouveau. Cette remise a neuf, respectant autant que possible la numerotation continue introduite en 1804, donnait aux Fran<;ais !'impression de conserver leur Code civil, tout en beneficiant d'un nouveau droit des personnes. Subsistent, dans le livre I quelques roches-temoins remontant a 1804 sur le mariage ou le fameux article 371, "L'enfant, a tout age, doit honneur et respect a ses pere et mere", et dans les livres II et III les non mains fameux articles 544 sur la propriete, 1134 sur la force des contrats, 1382 a 1386 sur la responsabilite constamment retravailles

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par une jurisprudence qui ne se sent plus du tout liee par les opinions exprimees lors des travaux preparatoires du Consulat. Sur cette lancee mais avec une ardeur quelque peu desordonnee, le legislateur a continue a inserer clans le Code civil des textes novateurs sur la famille - en 1982, 1985, 1987 et 1993, la "reforme de la reforme" constatait avec amertume le doyen Carbonnier - puis sur le corps humain et la bioethique (1994). Le droit de la nationalite, sorti du code en 1927, y a ete reintroduit en 1993. La loi du 15 novembre 1999 a cree, apres un debat passionne, le Pacte civil de solidarite (Pacs) et consacre le concubinage heterosexuel ou homosexuel. La signature electronique a ete introduite clans le Code franc;:ais en 2000, le droit du divorce a ete plusieurs fois modifie entre 2000 et 2004, le droit des successions a ete profondement reformâ‚Ź en 2001. Ainsi "revitalise", le Code civil peut sembler a premiere vue pret a affronter le XXIe siecle, avec environ 1 200 articles inchanges depuis le Code Napoleon, en apparence seulement deux articles nouveaux ajoutes a la fin en 1975, mais en realite un texte considerablement gonfle par les articles demultiplies (par exemple 21.1 a 21.27 sur la nationalite). Le Bicentenaire a ete en meme temps 1' occasion de constater le peu de visibilite et de lisibilite du Code civil clans 1' opinion publique franc;:aise et le decalage croissant entre les civilistes tenants de la tradition et les pressions exercees clans le contexte de la reflexion europeenne sur un projet de code relatif aux contrats ou a 1' ensemble du droit civil. Si des juristes franc;:ais ont participe aux commissions Lando et Von Bar, les enseignants de droit donnent !'impression de se raidir en majorite sur des positions de defense du Code civil comme patrimoine national avec des reflexes trop marques par la nostalgie ou le desenchantement. Les arguments ne manquent pas, il est vrai, pour denoncer le caractere artificiel de la "recodification tranquille". Les dernieres reformes (jusqu' a 1' article premier reecrit par une ordonnance du 20 fevrier 2004, apres une ordonnance du 19 decembre 2002 creant un livre quatrieme pour les dispositions applicables au territoire de Mayotte) porteraient plut6t la marque d'une febrilite legislative que de la securite juridique attendue d'un code. Repondant a des orientations diverses, ces textes votes sans esprit de systeme nuiraient a l'homogeneite du Code civil reduit a une "collection de lois ordinaires". L'immuabilite apparente des livres II et III n' aurait plus de sens face a la proliferation des codes nouveaux- comme le Code de la consommation (1993) - et de la legislation speciale. Meme !'insertion de la nationalite et de la bioethique ne saurait cacher le primat du droit constitutionnel sur les regles du Code civil. La recodification essuie les critiques les plus vives des defenseurs du droit "vivant", jurisprudentiel ou doctrinal, et des partisans d'un droit commun europeen. La reforme recente du droit des obligations clans le BGB, les difficultes d'incorporation clans le droit franc;:ais des directives (notamment celle de 1985 ayant donne lieu a une loi franc;:aise seulement en 1998, suivie d'une condamnation de la France en 2002 par la CJCE de Luxembourg pour transposition incorrecte) sur la responsabilite pour les produits defectueux, la

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condamnation de la France par la Cour de Strasbourg relativement aux droits successoraux des enfants adulterins (CEDH 1 fevrier 2000, Mazurek) et la reforme consecutive d'un grand nombre de dispositions du Code civil sur les successions (loi du 3 decembre 2001 inspiree par les travaux du professeur Catala) ont ete autant d'evenements qui ont accru les doutes ces dernieres annees sur l'avenir d'un Code national clans une Europe qui reflechit a une codification commune d'une partie ou de la totalite de son droit civil. Alors meme que nous nous sommes permis de mettre en garde nos collegues civilistes contre un eblouissement lie aux ceremonies du Bicentenaire, il nous parait encore possible de plaider la cause du Code civil en se tournant vers l'avenir. Moins affecte par la decodification que le code italien de 1942, le code franÂŤ;:ais est plus ancre clans la mentalite nationale que le BGB. Les debats sur le PACS ont confirme la valeur symbolique de l'entree d'une institution nouvelle clans le Code civil. Dans l'Union europeenne, la marche vers un droit civil unique parait encore longue et les idees federatives ne sont pas inconciliables avec le maintien de legislations nationales specifiques, notamment pour ce qui touche le droit des personnes et la nationalite. Alors que le droit europeen rencontre des difficultes d' acculturation aupres des populations concernees, il n' est pas sur que la disparition des codes nationaux releve du realisme politique, meme si la constitution europeenne pourrait donner une nouvelle impulsion au developpement d'un droit de la famille transfrontalier. Comme au XIXe siecle, la vivacite du debat entre partisans et adversaires de la codification temoigne de la portee des choix a venir. Le Code civil demeure avec sa force de droit positif et toute la richesse de son histoire. Napoleon n'avait pas tort d'y voir la plus durable de ses "creations". L'historien, incapable de prevoir l'avenir, ne peut faire qu'un constat: la France aura abandonne le franc et, avec lui, une souverainete monetaire bien plus ancienne que le franc germinal, avant d' avoir renonce au Code civil. Il n' est pas concevable de ray er de la carte une tradition juridique qui a gagne une grande partie du monde au seul profit d'une americanisation du droit a la faveur de la globalisation. La diversite juridique, comme la diversite culturelle, s' oppose a cette con damnation de toute codification consideree a priori comme trap rigide, trop etatique et trap imperative. Pouvons-nous renoncer a toutes nos aspirations a la securite et a la rationalite du droit au profit d'un modele, pour une grande part imaginaire et eloigne de la realite meme des droits influences par le common law, d'un droit souple, flou et en quelque sorte privatise? La modernite ne consiste pas necessairement a abandonner la tradition pour des creations entierement nouvelles: clans le domaine du droit, elle a pris et prend encore la forme d'une reinterpretation de textes ou de concepts anciens revigores a la lumiere de nos problemes contemporains. Les debats recents sur l'hermeneutique entre Gadamer, Ricoeur ou Habermas, nous montrent que les juristes, meme les plus revolutionnaires, ont toujours procede par ce travail de relecture des grands monuments du droit.

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Le Code civil fran~ais est justement un texte "ouvert", capable comme la constitution americaine de rester une reference pour des interpretations creatrices de nouveaux sens, allant bien au-dela de ce qu' avaient pu penser ses redacteurs. N'hesitons pas, au risque de para1tre trop eclectique, a combiner differentes approches du droit: d'une part, le volontarisme normativiste aujourd'hui associe au fondement democratique - c' est le peuple qui par ses representants doit decider des grand choix politiques et determiner les directives de developpement du droit civil - et, d' autre part, une interpretation judiciaire innovante, qui s' est developpee en France parallelement au Code civil. Ces deux approches, trop souvent presentees de maniere antagoniste, nous paraissent constituer une richesse, venue au moins partiellement de la culture juridique fran~aise et de la philosophie codificatrice du XIXe siecle. Cet eclectisme qui etait deja present chez Portalis peut etre aujourd'hui, dans un contexte intellectuel et factuel tres different, la base d'une methode de comprehension du droit et, en Europe et hors d'Europe, une source d'inspiration pour tous ceux qui souhaitent le maintien d'un reformisme volontaire, d'une democratie parlementaire et d'une diversite de modeles juridiques.


JUSTIFICA~AO DA COMEMORA~AO DO BICENTENARIO

DO CODE CIVIL DES

FRAN~AIS

Jose Gon<;alves Proen<;a



JUSTIFICAC,:AO DA COMEMORAC,:AO DO BICENTENARIO DO CODE CIVIL DES FRANC,:AIS*

Jose Gon<;alves Proen<;a**

Nos ultimos duzentos anos, a Fran<;a conheceu dais imperios, duas monarquias, cinco republicas e urn s6 C6digo Civil. Evolu<;ao concretizada em dez constitui<;oes polfticas, em contraste corn urn unico estatuto de direito privado. Porque? A resposta esta seguramente implicita na comemora<;ao quase universal do bicentenario do "Code Civile des Fran<;ais", promulgado em 21 de Mar<;o de 1804 par Napoleao Bonaparte. Tres razoes fundamentais justificam essa comemora<;ao: as origens do C6digo, o seu espirito e a sua perenidade. Quanta as origens, temos de as procurar bem fundo, nas compila<;oes Justinianeias do seculo VI, tomadas coma matriz pelos juristas do "ancien regime": Dumoulin no seculo XVI, Domat no seculo XVII e Pothier no seculo XVIII, bem coma nos "grandes costumes" codificados par ordem real, corn especial destaque para o "contumier Parisien", sem esquecer as "Ordonnances" de Luis XIV e Luis XV, preparadas par Colbert e D'Aguessau, nos seculos XVII e XVIII, a que se vieram juntar, par ultimo, as obras dos iluministas do "Seculo das Luzes". Corn tao extraordinarios precedentes hist6rico-juridicos nao surpreende a grandiosidade da estrutura doutrinaria e solidez normativa do monumento legislativo vindo a luz em 1804, coma 0 florir de uma arvora frondosa que mergulha na profundidade da natureza humana as suas poderosas raizes. Nao surpreende, mas impoe respeito e admira<;ao que, perduram ha duzentos anos e que, tudo leva a crer, par muitas decadas ainda.

* Comunica<;ao apresentado na Sessao Solene ocorrida na Universidade Lusiada em 2 de Dezembro de 2004 (Lisboa). ** Universidade Lusiada de Lisboa.

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Jose Gonc;:alves Proenc;:a

Mas niio e apenas a nobreza das origens que legitima o C6digo de Napoleiio. Para tanto contribui igualmente o seu espirito, tradicionalmente sintetiz ado nos tres princfpios fundamentais, da igualdade, liberdade e laicidade. Principios de que os autores materiais do C6digo souberam extrair as mais notaveis consequencias e ila~oes jurfdicas, muitas delas ate entiio quase insuspeitadas. Da igualdade perante a lei brotou a paridade geral dos contratantes, corn multiplas manifesta~oes no direito da familia, das sucessoes ou do direito das coisas, de que e exemplo destes ultimos, a defini~iio, a maneira romana do direito de propriedade, como "le droit de jouir la chose de la maniere absolue", texto que ainda hoje perdura na versiio original, perpetuando a afirma~iio vigorosa de Bonaparte ao Conselho de Estado: "violer le droit de propriete d'un seul, c'est le violer pour tous". No principio da liberdade inspiraram-se os autores do C6digo para proclamarem a autonomia contratual, tanto no plano econ6rnico, como familiar ou sucess6rio, dando corpo a urn conjunto de preceitos que estiio seguramente na base do moderno direito europeu, como o belo artigo 1134, tambem ainda na versiio originaria, segundo o qual, "les contractants etablissent avec son partenaire sa prop re loi". Finalmente, ao principio da laicidade foram os codificadores de 1804 collier a independencia confessional do direito, reclamada pela evolu~iio social e sentido universalista do pensamento revolucionario, transposto do plano politico para a vida privada dos cidadiios, tal como da origem divina do poder politico, ate entiio proclamada, se transitou para a sua fundamenta~iio democratica, de base popular. Integrante do "espirito" do "Code" se considera ainda, como sequencia natural dos principios da igualdade perante a lei e da liberdade negocial, a exalta~iio do individuo, quanto aos seus direitos e liberdades fundamentais, como cidadiio, como chefe de familia e como proprietario, preocupa~iio bem expressa no artigo 686, ao proibir todas e quaisquer servidoes "impostas a pessoa ou em favor da pessoa". Falta referir a terceira das razoes justificativas da nobreza do diploma cujo aniversario natalicio estamos a comemorar. A sua longevidade de 200 anos, concretizada niio so pela sua aceita~iio em Fran~a, a cuja comunidade directamente se destinava, mas tambem e sobretudo, pela sua expansiio para toda a Europa civilizada de entiio, qui~a corn a excep~iio unica da Grii-Bretanha. Para justificar tal difusiio que atingiu inclusive pafses muito distantes, como o Japiio e a America Latina, costuma invocar-se, para alem da perfei~iio tecnico-jurfdica das suas disposi~oes, a lucidez e simplicidade dos conceitos assumidos, sem outra preocupa~iio que niio fosse a da afirma~iio clara e sintetica dos principios informadores da expressiio normativa que lhes corresponde. Apetece-nos repetir, a prop6sito, a passagem da carta escrita, por Stendhal, a Balzac em que aquele genio da literatura francesa confessava que ao escrever

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Justifica.;ii.o da Comemora.;ii.o do Bicentemirio do Code Civil des Fran.;ais, p. 271-278

o seu famoso romance "La Chartreuse de Parme", lia todos os dias duas ou tres paginas do "Code" "para tomar o tom", tal era a sua pureza e simplicidade. Caracteristicas que igualmente explicam a eficiencia corn que o Codigo de 1804 pacificou a sociedade francesa, apos dez anos de agita<;ao revolucionaria sem precedentes e numa altura em que os espiritos se encontravam ainda muito exaltados pelos ultimos acontecimentos. 0 que levou urn grande historiador da epoca a afirmar que nao foi 0 18 Brumario, do ano VIII da Revolu<;ao, que pos termo a agita<;ao sanguinolenta que se mantinha desde o ano Ill, mas sim o Codigo que Bonaparte anunciou e promoveu logo na noite em que eclodiu aquele golpe de Estado. Afirma<;ao corroborada pelo sentimento, que entao tambem se expandiu, de que ao Codigo de Napoleao se deve o ter resgatado a Revolu<;ao Francesa dos seus crimes e excessos, ao saber dela extrair e afirmar o que havia de puro e natural nos principios que a haviam inspirado. Recordemos a proposito, a veemente declara<;ao de Bonaparte ao Conselho de Estado, algumas semanas depois do golpe de 18 Brumario: "Citoyens, la revolution est fixee aux prfncipes qui l'ont commence, mais elle est finie! Il faut en commencer l'histoire et voir ce qu 'il y a de reel et de possible dans !'application des principes et non ce qu 'il y a de speculatif et d 'hypothetique" Ainda no mesmo pendor de resgate e de referir a decisao de Lufs XVIII, apos o derrube do Imperio e das humrnilha<;6es da Conven<;ao de Viena de 1815, ao decidir ostensivamente a manuten<;ao legislativa do Codigo de Napoleao. Aqui chegados, talvez se justifique a repeti<;ao da pergunta corn que iniciamos esta comunica<;ao. Porque tal perenidade? A resposta e sem duvida agora ainda mais simples. 0 facto de urn diploma corn 2282 artigos, na sua origem, manter corn a redac<;ao originaria 1200, depois de decorridos dois seculos de vigencia, so pode ter uma explica<;ao: A sua actualidade e capacidade de adapta<;ao a todas as circunstancias que entretanto evoluiram, em termos que, bem sabemos, nao foram tranquilos nem moderados. Que o digam, as altera<;6es operadas no seio da estrutura familiar da sociedade contemporanea, quando confrontada corn a mentalidade da epoca pre-napoleonica. Pelo que, o maior encomia que se pode fazer ao Codigo Frances de 1804, e o de ter prefigurado, no dealbar do seculo XIX, o condicionalismo jurfdico que viria a caracterizar mais tarde, na sua essencia, o quadro legislativo necessaria a satisfa<;ao das necessidades civicas do seculo XXI. Facto que so pode conceber-se, aceitando que as disposi<;6es do Codigo Frances, na sua maioria, beneficiavam da capacidade de adapta<;ao que so os grandes principios possuem, quando correctamente formulados e expressos em regras de abrangencia correspondente aos valores inspiradores do seu normativo.

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Jose Gon~alves Proen~a

E aqui uma palavra especial deve imediatamente ser inscrita, corn referenda aos notaveis artifices a quem coube a tarefa da edifica<;:ao do monumento legislativo que comemoramos, os membros da Comissao designada, para o efeito, por Bonaparte, nomeadamente, Portalis, Tronchet, Malleville e Deprameneu, sob a orienta<;:ao e coordena<;:ao do 2Q Consul, Cambaceres, este ultimo ja autor de tres tentativas goradas de codifica<;:ao do direito frances durante o perfodo revolucionario. Palavra que nao pode deixar de abranger, e corn o destaque que ja na epoca foi acentuado, a participa<;:ao activa e permanente de Bonaparte, como 1QConsul, na redac<;:ao final do texto, e em que sempre ressaltava a preocupa<;:ao de que a perspectiva tecnica das disposi<;:oes legais nao obnubilasse a natureza humana dos seus objectivos. Picou famoso nomeadamente o receio manifestado por Bonaparte de que a marginaliza<;:ao do poder paternal no seio da familia, em nome dos principios da igualdade e da liberdade, pusesse em causa, a breve trecho, a estabilidade e permanencia da institui<;:ao familiar. Preocupa<;:ao que o levou a redigir, pelo seu proprio punho, o artigo 213Q do Codigo que ao assunto se referia. Sabe-se que das 107 reunioes do Conselho de Estado para aprova<;:ao do projecto do Codigo, 55 foram presididas por Napoleao Bonaparte. Como e logico, quando falamos da expansao do Codigo Prances na Europa e no Mundo nao pretendemos afirmar a sua aceita<;:ao pura e simples, que, de resto, tambem se verificou em alguns pafses, mas queremos acentuar, sobretudo, a fun<;:ao de modelo que o "Code" passou a desempenhm~ por tal forma que, nas vesperas da 1~ Guerra Mundial, praticamente toda a Europa (corn a excep<;:ao ja referida da Gra-Bretanha) tinha aderido ao movimento de codifica<;:ao do seu direito civil (o que constituia excep<;:ao no inicio do seculo XIX), adoptando por vezes, integralmente, o modelo frances, o que tambem sucedia para alem das fronteiras europeias, tanto na America do Norte, como na America do Sul, na Asia e na Africa. Chegado e o momento, segundo cremos, de apagar as velas do bolo comemorativo do aniversario do "Code Civil des Pran<;:ais", o que todavia ainda nao faremos sem uma nova e ultima interroga<;:ao. Daqui para a frente o que se vai passar? Qual o destino de diplomas, como o Codigo Prances e outros que na sua peugada se seguiram? Como sabemos, neste ultimo meio seculo, a constru<;:ao jurfdica da Europa tern evoluido de maneira vertiginosa. 0 direito comunitario irrompeu abruptamente por todo o espa<;:o europeu corn uma ansia incontida de unifica<;:ao legislativa, pondo em causa as estruturas juridicas nacionais em aspectos da maior essencialidade. Ate quando poderao essas estruturas resistir a tenta<;:ao de uma completa europeiza<;:ao, sacrificando a sua diversidade em holocausto a expressao unitaria de urn novo Codigo Civil europeu, de aplica<;:ao mais ou menos indiferenciada a todos os Pafses do velho continente?

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Justifica~ao

da

Comemora~ao

do Bicentenario do Code Civil des

Fran~ais,

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Ao contrario do que por vezes se le e se ouve, sabre os riscos de tal unifica<_;ao, somas dos que entendem que a semelhan<_;a do que sucedeu na genese do C6digo Civil Frances, o perigo de tal movimento nao reside na uniformiza<_;ao do direito dos cidadaos, mas sim na escolha e selec<_;ao dos principios e valores que a ela deverao presidir, tal coma aconteceu corn o C6digo de N apoleao. E talvez este possa servil~ uma vez mais, de modelo na elabora<_;ao do novo diploma que venha a ser construido para regulamenta<_;ao da vida dos cidadaos da Europa unificada. Para tanto serao necessarias as mesmas condi<_;oes que se verificaram corn o C6digo frances: Uma acentuada preocupa<_;ao de respeito pelos principios tradicionais da cultura juridica Europeia, onde de novo deverao ser chamados a cola<;ao os ideais inspiradores do universalismo romano; o apre<;o pela pessoa humana, no que tern de mais essencial, proclamado pelo Iluminismo; e a aceita<_;ao da liberdade individual no quadro da mais ampla paridade de direitos, de inspira<_;ao crista, reproduzindo assim, no plana internacional, o entendimento e a conc6rdia alcan<_;ados no piano interno de cada Estado. Quando tal se conseguir, nao havera motivo para recear as implica<_;oes da codifica<_;ao, as quais, tal coma aconteceu ha 200 anos em Fran<_;a, mais poderao contribuir para pacificar os espiritos do que para exaltar diferen<_;as ou previlegios que a natureza humana nao sancione. Tudo evidentemente corn ressalva das individualidades politicas que, aqui tambem, a dignidade humana aconselhar. 0 que, em resumo, nos permite afirmar que nao e o inevitavel movimento de codifica<_;ao do direito europeu que nos preocupa. E sim e apenas que o seu processo nao se fa<_;a corn a mesma sabia pondera<_;ao dos interesses essenciais da pessoa humana que caracterizou o processo similar ha duzentos anos ocorrido. Para nos temos que os valores fundamentais, entao proclamados coma essenciais a vida dos homens em sociedade, se mantem os mesmos, dentro de cada fronteira ou no quadro mais amplo da convivencia internacional, cada vez mais alargada e intensamente vivida. Valores que, por isso, importa continuar a salvaguardar, adaptados embora as contingencias da nova era. Questao e que os juristas da nossa epoca saibam deles extrair tambem as normas seguras de convivencia privada internacional, que no piano interno dos Estados europeus foram aceites nos respectivos c6digos. De resto, a perspectiva europeia do C6digo estava ja no espfrito universalista de Bonaparte ao perguntar "Que me importe que deux peuples soient separes par des fleuves, qu'ils parlent des idiomes diferents? A des nuances pres, la France, l'Espagne, l'Italie, 1'Allemagne, ont les memes mouers, les memes habitudes, la meme religion >> E se assim fm~ o C6digo Frances tera razoes para continuar a ser comemorado, ainda que, subvertido pela onda da europeiza<_;ao, nela apenas passe a figurar coma modelo hist6rico de dignifica<_;ao do direito. E o mesmo se diga daqueles outros diplomas que adoptaram a mesma linha de respeito pela pessoa

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humana, no que tern de essencial e eterno, confirmando-se assim a professia de Napoleao, em 1818, sobre as rochas de Santa Helena: "A minha verdadeira gl6ria nao e ter ganho quarenta batalhas. Waterloo apagara a memoria de todas elas. A minha maior gl6ria e o meu C6digo Civil que viveni eternamente". E mais nao e preciso acrescentar para justificar a comemora~ao do Bicentemirio do "Code Civil des Fran~ais" promulgado em 21 de Mar~o de 1804, a que a Universidade Lusfada, a semelhan~a de numerosas Universidades e institui~6es jurfdicas estrangeiras, da maior parte dos Paises no Mundo, se associa jubilosamente, atraves da palavra prestigiosa dos ilustres juristas que se dignam participar na presente cerim6nia, nomeadamente o Professor Jean Louis Halperin, da Ecole Normal Superieur de Paris e dos Professores Galvao Telles, da Universidade Lusfada, Leite de Campos, da Universidade de Coimbra e Menezes Cordeiro, da Universidade CLissica de Lisboa, cujos "curricula" e perfis cientificos se imp6em por si pr6prios, a quem desejamos, corn os agradecimentos devidos, prestar viva homenagem, e do mesmo passo, as demais personalidades publicas e privadas que honram, corn a sua presen~a, a presente cerim6nia.

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BICENTENARIO DO CODE CIVIL DES FRAN<;AIS

Jose Gon<;alves Proen<;a



BICENTENARIO DO CODE CIVIL DES FRAN<;AIS*

Jose

Gon~alves Proen~a**

Como se fora uma profecia, e conhecido o desabafo emocionado de Napoleao Bonaparte no seu exilio de Sta Helena: "A minha verdadeira gloria nao e ter vencido 40 batalhas. Waterloo apagara a recorda~ao de tantas vitorias; o que nada apagara e vivera eternamente e o meu Codigo Civil". A profecia cumpriu-se e 200 anos decorridos ninguem recordara certamente Austerlitz, Wagram, Marengo e tantas outras vitorias inscritas no Arco do Triunfo dos Campos Elfsios em Paris, mas ninguem ignora a pacifica~ao civil que a partir do Codigo Napoleao se instalou na Europa para durar ate aos nossos dias. Dizemos pacifica~ao civil que nao se confunde corn concordia polftica ou tregua militar. 0 que, tudo ponderado bem justifica a comemora~ao universal do bicentenario do "Code Civil des Fran~ais", promulgado por Bonaparte, em 21 de Mar~o de 1804, que a semelhan~a de muitas outras institui~oes similares, a Universidade Lusiada decidiu assinala1~ em Portugal, pela forma mais adequada, em sessao solene enriquecida pelos depoimentos autorizados de ilush路es juristas e historiadores do direito, especialmente qualificados. Comemora~ao que tern uma dupla justifica~ao: a perenidade do texto legal e a influencia por ele exercida na estrutura~ao e evolu~ao dos direitos e liberdades dvicas que caracterizam a civiliza~ao do mundo ocidental. Tomemos uma e outra perspectiva: a primeira permite-nos afirmar, sem sombra de duvida, que 0 codigo frances de 1804 constitui urn caso unico, em toda a historia universal, nela abrangendo, inclusive, o proprio periodo grecoromano, cujos textos legais mais relevantes consistiam fundamentalmente em compila~oes de leis, reunidas por ordem cronologica, de que sao exemplos os Codices romanos, Gregoriano, Hermogeniano e Teodoriciano e, em certa medida tambem, o Codex elaborado por Tribuniano para o "Corpus Juris Civilis" mandado executar por Justiniano em 529 da nossa era.

* Comunica~ao lida na Sessao Solene ocorrida na Universidade Lusfada (Porto) em 3 de Dezembro de 2004. ** Universidade Lusfada de Lisboa.

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Nao assim no codigo cujo bicentenario comemoramos. Mais do que uma simples compila<;ao de leis (que tambem pretendia ser a partir da legisla<;ao promulgada nos anos XI, XII e XIII da era Revolucionaria), o Codigo de 1804 adoptou urn criteria de sistematiza<;ao, inteiramente diferente e quase pioneiro em rela<;ao a epoca: Partindo embora de uma compila<;ao de leis, o Code e essencialmente, uma sistematiza<;ao de principios ou regras fundamentais agrupadas por criteria cientffico de matriz institucional. 0 que logo empresta ao texto legal uma capacidade de regulamenta<;ao que perdura e se mantem, acompanhando a evolu<;ao da propria vida social, nao em fun<;ao de regras de aplica<;ao imediata, mas de princfpios em que tais regras se inspiram e corn os quais depois se devem conformar. Alguns autores apontam, por isso, ao Codigo Prances a caracteristica de "memoria" ou "simbolo" pelo que contem de unificador e unitario em rela<;ao a princfpios e valores considerados fundamentais, aspecto de que e exemplo, a abrangencia atribuida ao princfpio da igualdade, tornado coma paradigma para estrutura<;ao juridica de institutos coma o poder paternal, a rela<;ao conjugal, a filia<;ao natural e a liberdade negocial entre vivos e mortis causa. Na sequencia logica desta orienta<;ao, as leis avulsas, que regulavam estas materias, foram naturalmente substituidas por preceitos articulados entre si, que se agrupam por conceitos identificados institucionalmente. Razao pela qual o Codigo faz questao de se considerar herdeiro do seculo das luzes, essencialmente dominado pela exalta<;ao de valores universais, porque emanados da propria natureza humana. Recorda-se, a proposito, que Jean Jacques Rousseau dizia, a proposito dos instrumentos indispensaveis a organiza<;ao politica de urn Estado: "Il faut trois codes: l'un politique, l'autre civil et l'autre criminal". Ora, para a elabora<;ao de urn Codigo Civil, tres condi<;6es sao necessarias: Competencia legislativa, oportunidade politica e vontade firme de realiza<;ao. Sabemos que, antes de Napoleao, outras tentativas de codifica<;ao foram feitas, mas nenhuma logrou o mesmo exito e teve a mesma dura<;ao, nao, seguramente, por falta de competencia dos seus autores, mas apenas porque nao se conjugaram entao, as duas outras raz6es tambem necessarias: uma melhor adequa<;ao as caracteristicas essenciais da sociedade civil e a afirma<;ao, em qualquer dos casos, de uma vontade politica forte capaz de impor e levar a born termo o empreendimento. 0 que nao tinha acontecido ate entao, verificou-se, no Codigo Napoleonico, merce da conjuga<;ao perfeita dos tres factores mencionados corn destaque especial para 0 ultimo: a vontade politica do legislador. Sao conhecidas as frequentes interven<;6es do proprio Bonaparte nos trabalhos preparatorios do Codigo, chamando a aten<;ao dos juristas para a necessidade de nao esquecerem nas suas preocupa<;6es de logica normativa, as caracteristicas tradicionais do povo frances, tendo ficado celebre, 0 contributo dado pelo 1QConsul na estrutura<;ao do regime juridico da sociedade conjugal, ao afirmar que os franceses de entao dificilmente aceitariam a concep<;ao da familia sem a autoridade do conjuge varao, tal coma no Codigo ficou con-

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sagrado pelo art. 213Q, segundo o qual: "0 marido deve proteo;ii.o a sua mulher; a mulher deve obediencia ao seu marido". Sabido e tambem que, embora tentado em sucessivos projectos, o texto final s6 conseguiu chegar ao seu termo quando Bonaparte decidiu par fim as discuss6es mais ou menos te6ricas dos membros da Comissii.o e marcou urn prazo para a finaliza<;ii.o dos trabalhos. A impaciencia corn que acompanhou os trabalhos ficou bem expressa no apelo ao Conselho de Estado, ap6s muitas horas de discussii.o: "Allons, allons, citoyens ministres, reveillons-nous! Il n' est que deux heures du matin, il fa ut gagner 1' argent qui nous donne le peuple fran<;ais." De entre as tentativas anteriores de codifica<;ii.o deve citar-se a que se verificou logo na Assembleia Legislativa de 1791, que para o efeito convidou todos os cidadii.os, mesmo estrangeiros, a enviar ideias e sugest6es para urn novo C6digo, o que s6 nii.o pode ser concretizado por falta de uma vontade politica forte, agravada pela agita<;ii.o popular e pela guerra em que a Fran<;a na epoca se envolveu. Mesmo assim foram promulgadas corn aquele objectivo algumas importantes leis que depois vieram a influenciar o texto napole6nico, designadamente, quanto ao regime do poder paternal, a laiciza<;iio do estado civil, ao div6rcio e a proclama<;ii.o do casamento como contrato laico (Lei de 20 de Setembro de 1792). A Assembleia Constituinte sucedeu, como se sabe, a Conven<;iio, que julgou e executou Lufs XVI, mas que nii.o obstante a agita<;iio revolucionaria que a caracterizou, ainda teve oportunidade de apreciar dois projectos de C6digo Civil que lhe foram apresentadas em 1793 e 1794, pelo deputado Cambaceres Gurista que mais tarde grande influencia exerceu na elabora<;ii.o do C6digo de 1804). Iniciativas que tambem nii.o lograram aceita<;iio pelas raz6es acima referidas. De assinalar, como curiosidade, que dos dois projectos apresentados por Cambaceres, o primeiro tinha 719 artigos e o segundo apenas 279, assim resumido por exigencia do espfrito da epoca que concebia o C6digo como urn texto decalogo reduzido as disposi<;6es indispensaveis para consagra<;iio dos prindpios fundamentais proclamados pela Revolu<;ii.o, ideia que Cambaceres sintetizava afirmando que "Todos os direitos civis se reduzem aos direitos da liberdade, propriedade e dos contratos". 0 que tambem era comungado por Napoleii.o ao afirmar que "La loi doit se borner a poser un prfncipe general, ce serait en vain qu' on voudrait y prevoir tous les cas." Em 1794 (Ano Ill da Revolu<;ii.o) a Conven<;ii.o foi substitufda pelo Direct6rio, passando o poder legislativo a ser exercido, por duas assembleias - o Conselho dos 500 e o Conselho dos Anciii.os. De uma e outra dessas camaras faziam parte juristas da maior competencia, alguns recrutados nos meios jurisdicionais das provfncias francesas, quer do norte, quer do centro e sul do Pais. Entre eles vamos encontrar o proprio Cambaceres, autor dos dois projectos anteriores e corn ele os advogados Tronchet e Malleville, que seriam mais tarde escolhidos por Bonaparte para constituir, juntamente corn dois outros notaveis jurisconsultos, a Comissii.o redactora do texto final de 1804.

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Entretanto, ponยงm, no seio do proprio Directorio, urn novo projecto de Codigo foi apresentado, uma vez mais, por Cambaceres, corn 1104 artigos, por exigencia da evolw;:ao que se operou na concep<;:ao do que devia entender-se por "constitui<;:ao civil", de modo a abarcar na sua plenitude a generalidade das rela<;:6es dos cidadaos entre si. Tudo parecia entao conjugar-se em sentido favoravel a esta nova iniciativa. Porem, e nao obstante a presen<;:a das demais condi<;:6es necessarias, de novo faltou a decisao politica indispensavel, ao mesmo tempo que ocorreu tambem o afastamento politico de Cambaceres, fazendo gorar o empreendimento. Num esfor<;:o de ultima hora e ainda na vigencia da Constitui<;:ao do Ano Ill, o deputado Jacqueminot propos, em 1798, a cria<;:ao de uma Comissao especial para preparar a reforma da legisla<;:ao civil, sempre na mira da sua subsequente codifica<;:ao, o que uma vez mais fracassou pela ac<;:ao acumulada das razoes anteriores. Como se ve, "os espiritos estavam maduros para a elabora<;:ao de urn Codigo Civil, mas persistia a falta das condi<;:6es politicas indispensaveis." Ao referido, ha a acrescentar, o vasto cabedal de experiencias regionais de codifica<;:ao dos costumes, muitas delas coroadas de pleno exito. De recordar, por exemplo, as experiencias levadas a efeito a partir dos seculos XV e XVI, de redac<;:ao dos costumes locais em nome do Rei, corn a forma de pequenos Codigos, bem elaborados e sistematizados, (como sucedia corn o "contumier parisien"), assim como as notaveis "Grandes Ordonnances" determinadas por Luis XIV corn a colabora<;:ao de Colbert, sobre a reorganiza<;:ao do processo civil, em 1667, sobre a instru<;:ao criminal em 1670, sobre o comercio em 1673, e ainda sobre as actividades maritimas em 1681, textos legais que no seu conjunto formavam como que urn Codigo especial de aplica<;:ao generalizada a todo o Pais. Actividade legislativa continuada depois por Luis XV atraves das famosas "ordonnances" de d' Aguessau, corn o objecto especifico de regulamenta<;:ao das "doa<;:6es, testamentos e substitui<;:oes", diploma que foi da maior utilidade na redac<;:ao do Codigo de 1804. Corn inteira justi<;:a se deve tambem referir a importancia que para o mesmo fim tiveram as obras de alguns juristas do "ancien regime" como Domat (do sec. XVII) e Pottrier (do sec. XVIII), sem esquecer a influencia exercida pelo Direito Canonico e pelo proprio Direito Romano (este ultimo muito do agrado dos juristas revolucionarios que constantemente o invocavam para fundamentar as suas propostas legislativas ). Como e evidente todos estes textos legais nao tinham a extensao e profundidade, nem a sistematiza<;:ao cuidada que o Codigo de Napoleao veio depois alcan<;:ar, mas e inegavel a importancia que tiveram na sua elabora<;:ao, ao mesmo tempo que dao testemunho do espirito codificador, ja entao existente. Lembra-se por ultimo, que ja no sec. XVI, o grande jurista frances Charles Dumoulin escreveu urn Tratado acerca da necessidade de uniformizar o direito costumeiro das varias regi6es de Fran<;:a sob o titulo de "Concordia et unione consuetudinem Franciae " em que defendia a cria<;:ao de urn "direito romano comum" que mais nao seria do que a codifica<;:ao de todos os costumes.

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0 que, bem justifica a afirma<;ao do jurista Esmein para quem a "Fran<;a do Consulado, encontrou assim no passado bons metodos de codifica<;ao, recorrendo" as mesmas formas e aos mesmos 6rgaos das grandes "orderu1ances" de Lufs XIV! E daf naturalmente a questao: 0 que acaba de ser exposto poe em causa a originalidade do C6digo napole6nico ou diminui de alguma maneira a compeb~ncia e merito dos seus autores, incluindo o proprio Bonaparte? Durante algum tempo, sobretudo por razoes polfticas inspiradas em argumentos anti-napole6nicos, ligados as suas campanhas militares e ambi<;oes imperiais, autores houve que procuraram denegrir a originalidade e merito do C6digo de 1804 e seus autores. Corn o tempo, porem, e a aprecia<;ao serena desse monumento legislativo, aliada ao argumento incontornavel da sua perenidade e aceita<;ao generalizada pela maior parte dos pafses europeus (e nao s6), acabou por impor a conclusao de que, as circunstancias aludidas, como favoraveis e propiciadoras da iniciativa codificadora de Bonaparte, longe de diminuir o merito da obra, mais o enaltecem e dignificam, pondo em evidencia a preocupa<;ao que a ela presidiu de ajustamento a mentalidade da comunidade a que se destinava e, do mesmo passo, as exigencias da natureza humana bem expressas na origem consuetudinaria e filos6fica do seu direito. Longe de ser o resultado de uma congemina<;ao intelectual de juristas de grande erudi<;ao e forma<;ao tecnica (que o eram tambem os seus autores materiais) o C6digo procurou ser, essencialmente, uma emana<;ao dos prfncipios e valores que inspiraram o movimento revolucionario de 1789, naquilo em que correspondiam as mais profundas exigencias e necessidades do povo frances. Como ja alguem afirmou, o C6digo Napole6nico, mais do que urn texto de cria<;ao original, procurou ser a "mensagem civilizada" da Revolu<;ao Francesa "depurada de seus crimes e violencias." E daf a sua perenidade de seculos. S6 se mantem no tempo o que, por seu merito, justifica o galardao da eternidade. Bern o intuiu Napoleao na profecia de Santa Helena. Regressamos assim ao momento hist6rico da sua forma<;ao, para assistir corn mais detalhe, ao processo de gesta<;ao que a ela presidiu. Tudo estava pendente de uma manifesta<;ao de vontade polftica, capaz de, por sua for<;a, levar a born termo urn empreendimento de tal magnitude. E foi exactamente isso que aconteceu, quando Bonaparte, apoiado pelo exercito, fez eclodir o movimento do 18 Brumario, do Ano VIII da Revolu<;ao (1799), logo secundado pela adesao entusiastica de algumas das figuras proeminentes do movimento favoravel a codifica<;ao do direito civil, nomeadamente o proprio Cambaceres, autor dos tres projectos anteriormente fracassados, a quem Napoleao imediatamente agraciou corn as fun<;oes de 2Q Consul, no triunvirato que entao se constituiu sob a sua direc<;ao. Logo na propria noite do Golpe de Estado, foram encarregadas as duas Camaras de 25 membros cada, destinadas a substituir, os Conselhos legislativos do regime deposto, de preparar urn novo projecto de Codigo, aproveitando os

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trabalhos interrompidos da autoria de Jacqueminot, na ultima fase do Direct6rio, tarefa que aquele jurista desempenhou apresentando em Dezembro de 1799, urn esbo<;:o de C6digo, que tinha como caracterfstica fundamental, uma acentuada modera<;:ao relativamente a alguns dos excessos revolucionarios expressos nos textos legislativos anteriores. Entretanto, porem, entrou em vigor a Constitui<;:ao do Ano VIII, a sombra da qual Bonaparte decidiu retomar o processo legislative normal, nomeando uma comissao de quatro membros corn a incumbencia de concluir alguns dos trabalhos em curso, mas sobretudo corn o prop6sito de iniciar e propor urn novo projecto de Lei destinado "a Reunion des Lois Civiles en un seul corps, sous le titre de Code Civil des Fran<;:ais", como efectivamente veio a acontecer por Decreto de 30 Vend6me ano XII. De assinalar, a prop6sito, que a Comissao assim nomeada nao era emana<;:ao de uma Assembleia ou 6rgao Legislative, mas unicamente o resultado directo da vontade e escolha do 1Q Consul, o que logo justifica, alem do mais, a relativa facilidade e coerencia corn que desempenhou a sua missao, na prepara<;:ao dos textos preliminares que serviram de base a prolongada discussao de 3 anos no Conselho de Estado, que Bonaparte quis associar ao empreendimento e em cujos trabalhos tao vivamente participou. De referir igualmente a colabora<;:ao que a Comissao dos quatro membros deu o 2QConsul Cambaceres, autor dos 3 projectos que anteriormente haviam sido apresentados, colabora<;:ao de tal importancia que para a hist6ria ficou a afirma<;:ao de que, se Napoleao foi o pai politico do C6digo, Cambaceres foi o seu pai espiritual. Quanto a Comissao propriamente dita importa evidenciar dois aspectos essenciais: Primeiro, a circunstancia dos seus membros terem participado ja na maioria dos trabalhos anteriores relacionados corn a legisla<;:ao civil dos anos XI e XII, contida nas 36 leis que o C6digo civil pretendeu reunir num s6 diploma, e em segundo lugar as caracterfsticas pessoais e profissionais de cada urn dos "comissionados", todos de forma<;:ao jurfdica comprovada na advocacia ou na magistratura, e, como tal, profundos conhecedores das tendencias jurfdico-sociol6gicas das regi6es a que pertenciam, facto, este ultimo, da maior importancia para os "compromissos" que houve que ajustar, corn vista a obten<;:ao de solu<;:6es susceptfveis de ser aceites pela generalidade da popula<;:ao, anteriormente vinculada a regimes ou estatutos diferenciados entre si. Como se sabe, a Fran<;:a estava entao, sob o ponto de vista legislative, dividida em duas grandes regi6es. 0 Centro e Norte (incluindo Paris) formavam no seu conjunto o "Pays du droit Contumier", assim denominado pelo predomfnio que nessa regiao tinham os costumes locais de origem gaulesa. Na regiao do Sul, por sua vez, dominava o direito escrito de origem romana, justificando a designa<;:ao que Ihe era dada de "Pays du droit ecrit''. Como e logico, a esta diversidade de formula<;:ao do direito correspondia uma nao menor diferencia<;:ao de conceitos e princfpios, desde o individualismo romaruco ao gregariano dos povos germanicos, corn reflexo profundo na dis-

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ciplina das institui<;:6es fundamentais, coma a familia, a sucessao mortis causa, o relacionamento contratual e a propriedade fundiaria. Ora, foi precisamente corn esta diversidade que a Comissao do C6digo teve de se debater, no seu prop6sito de unifica<;:ao do direito corn validade para todo o Pais. 0 que s6 foi possivel, em debates por vezes muito acesos, superados merce da alta competencia e forma<;:ao originaria dos seus membros. Dos quatro "comissionados", urn era bretao, Gigot de Preameneu, acerrimo defensor das virtualidades do processo consuetudinario de forma<;:ao do direito; outro era originario da regiao parisiense, cujo direito costumeiro gozava de grande prestigio em todo o Pais, o advogado Trouchet que, pela sua competencia, logo foi designado Presidente da Comissao; o terceito membra era o tambem advogado, Jean Etienne-Marie Portalis, proven<;:al da regiao de Aix, considerado corn Cambaceres, urn dos grandes construtores do C6digo; e finalmente, o quarto membra era o jurista Malleville, muito ligado a Portalis, de temperamento conservador e hostil as inova<;:6es excessivas, sobretudo no dominio da institui<;:ao familiar. Coma se compreendera nem sempre, por forma<;:ao e tendencia regional, houve acordo completo entre todos os "comissionados", situa<;:6es que s6 foram ultrapassadas pelo desejo de realizar obra unanime. Aspecto em que foram precisamente decisivas as interven<;:6es de Cambaceres e de Bonaparte. Tudo isto se diz para evidenciar o seguinte: Ao escolher os membros da Comissao entre juristas de forma<;:ao originaria diferente, Bonaparte visava claramente o objectivo de facilitar a realiza<;:ao de compromissos entre as duas grandes tendencias do "ancien regime" e assim obter solu<;:6es de aceita<;:ao generalizada. De referenciar ainda que todos os membros da Comissao eram partidarios da monarquia constitucional e todos, mais ou menos, defensores da ordem civica, nem sempre compativel corn a legisla<;:ao revolucionaria. 0 que nao quer dizer, de modo nenhum, que nao defendessem os prindpios fundamentais da Revolu<;:ao. Coma, de resto, essa tambem era a posi<;:ao de Bonaparte, ao afirmar em resposta a Luis XVIII, que "a Revolu<;:ao tinha terminado seguramente, mas em proveito do vencedor, que era ele proprio". Completando a sua preocupa<;:ao de ancorar firmemente o C6digo, na Na<;:ao francesa, assegurando, assim, a sua estabilidade, Bonaparte procurou ainda ligar 0 diploma a generalidade dos juristas, associando-os ao empreendimento. Corn esse objectivo, sabe-se coma por vezes foram acesas as discuss6es entre os defensores do direito escrito, nomeadamente Portalis e o "costumeiro" parisiense Tronchet. Ficou famoso, por exemplo, o debate que se travou no seio da Comissao a prop6sito do regime matrimonial de bens na falta de conven<;:ao antenupcial, face a divergencia que a esse respeito existia entre os sistemas legais vigentes nas regi6es do Norte e do Sui, favoravel o primeiro ao regime da comunhao de m6veis e adquiridos e o segundo ao regime datal.

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Posicionaram-se ÂŁrente a ÂŁrente os dais juristas qui<;a mais representativos da comissiio, o centrista Tronchet e o sulista Portalis. Corn o apoio de Bonaparte o diferendo saldou-se corn uma habil solu<;iio de compromisso proposta por Cambaceres: Na falta da conven<;iio antenupcial o regime matrimonial subsidiario seria a comunhiio de adquiridos, sob a direc<;iio do marido; mas o regime datal podia ser estabelecido por vontade expressa das partes em toda a Fran<;a e niio apenas nas regi6es do Sul, coma ate entiio acontecia. Urn outro dominio em que a divergencia norte-sul igualmente se manifestou incidiu sabre o criteria de partilha dos bens na sucessiio "ab intestato". Ate entiio, numerosos factores e preconceitos se opunham a reparti<;iio igualitaria dos bens sucessorios, tendo em conta a natureza e origem dos bens, o que manifestamente contrariava os prindpios igualitarios da Revolu<;iio. E tambem a esse respeito o equilibrio foi alcan<;ado na base de habil compromisso: Todos os bens sucessorios ficavam sujeitos ao mesmo regime, mas a sua partilha pelos sucessores obedeceria ao criteria rigoroso da consanguinidade, pela ordem da afei<;iio presumida do "de cujus", assim estabelecida: Descendentes, ascendentes directos, irmiios, outros ascendentes e finalmente os colaterais ordinarios ate ao 10Qgrau. Deste modo se procurava assegurar a unidade da familia, da qual os bens sucessorios niio poderiam sair, salvo na falta total de sucessores consanguineos. Corn o que eram satisfeitos simultaneamente dais prindpios: 0 da liga<;iio natural dos bens a familia do "de cujus" e 0 da sua reparti<;iio igualitaria por sucessiio mortis-causa. 0 primeiro do agrado do "ancien regime" e o segundo proclamado pela Revolu<;iio. Solu<;iio que ia igualmente ao encontro de uma outra aspira<;iio politica de Bonaparte, ela tambem conforme corn os ideais revolucionarios. 0 permitir o acesso a propriedade de bens pela via sucessoria, de urn mimero cada vez maior de cidadiios, evitando-se assim progressivamente a concentra<;iio imobiliaria nas miios de uma classe, naturalmente menos favoravel as aspira<;6es igualitarias dos ideais revolucionarios. Isto mesmo o afirmava Bonaparte em carta escrita a seu irmiio Jose, rei da Westefalia, ao comentar que aqueles que se opunham a vigencia do Codigo Frances, seriam cada vez menos, pela natural transmissiio da propriedade, por via sucessoria, a urn numero cada vez maior de cidadiios, seguramente agradecidos pelos direitos que o Codigo lhes assegurava. Por ultimo, a partir de Julho de 1801 o projecto foi submetido a aprecia<;iio do Conselho de Estado em sucessivas reuni6es que se prolongaram por 3 anos. Relatam os cronistas da epoca que das 107 sess6es, 55 foram presididas por Bonaparte, o que demonstra o interesse do l.Q Consul pelo Codigo, e seu empenho na sua rapida promulga<;iio. Historiam ainda os mesmos cronistas que a participa<;iio de Bonaparte foi sempre muito activa, e dominada pela preocupa<;iio de que as disposi<;6es do C6digo se ajustassem a sua propria concep<;iio do direito e da sociedade francesa, coma nomeadamente sucedeu, a proposito do Prindpio da Igualdade entre os conjuges que Bonaparte considerou, tal coma havia sido formulado pela Revolu<;iio, inadequada a mentalidade do povo frances.

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0 mesmo aconteceu corn a redao;:ao dada ao artigo 544Q sobre o direito de propriedade que acabou por ser inspirado no pensamento de Bonaparte: "A propriedade e 0 direito de gozar e dispor das coisas de maneira absoluta desde que nao se fa<;:a dele urn uso proibido pelas leis e pelos regulamentos", redac<;:ao que ainda hoje se mantem. Para demonstrar o cuidado corn que o C6digo foi redigido, basta lembrar que seis projectos foram sucessivamente discutidos antes da aprova<;:ao final do texto. De referir ainda que, sem esperar a ultima<;:ao dos trabalhos, o Conselho de Estado apresentou, sob a forma de projectos de lei, os primeiros titulos do C6digo, ao Tribunal e ao Corpo Legislativo, onde sofreram alguma contesta<;:ao, tendo acabado todavia por ser aprovados no inicio do ano XII (1804). 0 que permitiu a promulga<;:ao do diploma final, em 21 de Mar<;:o do mesmo ano, sob o titulo de "Code Civil des Fran<;:ais", denomina<;:ao que, em 1807, foi substituida pela de "Code Napoleon". Corn a publica<;:ao do seu C6digo, Napoleao pretendia atingir 2 objectivos: urn interim~ no seio da Na<;:ao francesa, outro exterior no ambito mais vasto de toda a Europa. 0 primeiro, claramente conservador, o segundo abertamente revolucionario. No piano interno, o C6digo tinha por objectivo fundamental restabelecer a paz social fortemente abalada pela Revolu<;:ao. Visava essencialmente pacificar os espiritos e apagar tanto quanta possivel as divergencias ideol6gicas, instaurando urn ambiente de equilibrio e de solidariedade no seio das familias e da sociedade no seu conjunto. Dai a preocupa<;:ao de que os seus preceitos se adaptassem a maneira de sentir e pensar da comunidade nacional. Para o exterior, porem , o "Code", pelo que tinha de inovador, visava a altera<;:ao da sociedade existente nos demais Estados europeus, procurando adapta-los ao modelo frances, facilitando a concretiza<;:ao do sonho napole6nico de uma Europa unificada. Sonho que Bonaparte exprimia do seguinte modo: "Que m'importe que deux peuples soient separes par des fleuves, qu'ils parlent des idiomes differents? A des nuances pres, la France, l'Espagne, l'ltalie, l' Allemagne, l' Angleterre ont les memes moeurs, les memes habitudes, la memes religion." Razao pela qual da mochila dos soldados das campanhas napole6nicas, fazia sempre parte urn exemplar do novo C6digo. Ao mesmo tempo, instrumento de poder interno e arma de expansao internacional. Uma e outra finalidade foram alcan<;:adas. A paz social no interior da Fran<;:a foi restabelecida e corn ela os principios de solidariedade e igualdade que inspiraram na sua origem o movimento revolucionario de 1789, depois de depurados dos seus excessos e desvarios, dando lugar a uma nova mentalidade e estrutura civica que logo se expandiu por toda a Europa. Pode dizer-se ate, corn legitimidade, que o C6digo de Napoleao teve o grande merito de resgatar a Revolu<;:ao Francesa da mancha ignominiosa de alguns dos seus crimes, para dela extrair, na sua essencia, os ideais de equilibrio social acalentados pelos fil6sofos que a inspiraram. Isso mesmo o intuiu o proprio Bonaparte ao afirmar, ja no exilio, em 1821: "J' ai sauve la Revolution

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qui perissait; je 1' ai lavee de ses crimes e je 1' ai montree aux peuples resplandissente de gloire! J' ai implante en France et en Europe ses nouvelles idees; elle ne serait retrograder." E foi essa, sem duvida, a razao fundamental, quic;a mais importante ate do que a justeza e perfeic;ao tecnica dos seus preceitos, que justificaram e continuam a justificar, 200 anos decorridos, a perenidade, no essencial, do C6digo de 1804, do qual, nao obstante o desgaste e as inevitaveis alterac;oes impostas pela propria evoluc;ao da vida social, se mantem corn o texto original 1200 artigos, num total de 2283, o que, por si s6, bem revela a estabilidade dos conceitos que estao na base de tais disposic;oes, para alem de constituir tambem caso unico na historiografia do direito moderno. Sem esquecer que, corn a queda do Imperio Napole6nico, o seu C6digo sofreu a erosao crftica dos 6dios e vinganc;as dos seus adversarios, muitas vezes expressas de forma muito violenta e mordaz, o que todavia nao impediu a manutenc;ao da sua vigencia por ordem expressa de Lufs XVIII em Franc;a e subsequente expansao pelos demais Pafses europeus. De mencionar, por ultimo, a repercussao que o C6digo teve na cultura francesa, podendo afirmar-se que poucos foram os grandes escritores gauleses do Sec. XIX que nao se lhe referiram em termos encomiasticos. Desde Victor Hugo a Balzac, a Dumas e a Stendhal, merecendo destaque a afirmac;ao deste ultimo em carta escrita a Balzac, que merece ser transcrita no original:"En composant la Chartreuse pour prendre le ton, je lisait chaque matin deux ou trois pages du Code Civil". E se, da ponderac;ao cultural e polftica, passarmos a analise objectiva dos preceitos legais, mais evidentes se nos revelarao ainda as causas da perenidade que comemoramos, bem expressas nas conquistas inscritas no C6digo que, quer se goste ou nao, passaram a marcar a pulsac;ao da mentalidade jurfdica europeia. A saber: A abolic;ao dos direitos feudais que entao ainda subsistiam sob formas diversas na maior parte dos reinos e principados; a proclamac;ao expressa do princfpio da igualdade dos cidadaos perante a lei; a afirmac;ao do direito de propriedade, libertada de servic;os e limitac;oes que o condicionavam; a emancipac;ao pela idade atraves da maioridade cfvica; a partilha igualitaria na sucessao por morte; a secularizac;ao do estado civil; a aceitac;ao do div6rcio; a legalizac;ao da adopc;ao; a liberdade de contratac;ao e suas sequelas legais, para apenas citar as mais importantes inovac;oes. Curiosamente, a evoluc;ao que se operou depois da queda do Imperio, na sociedade francesa, nao se manifestou em sentido contrario aos princfpios fundamentais contidos no C6digo, mas ao inves, em sentido favoravel ao seu aprofundamento, o que igualmente explica a sua aceitac;ao e longa durac;ao. Corn efeito, ate 1880, a Franc;a teve praticamente urn unico tipo de Governo, inspirado na mentalidade burguesa que saiu triunfante da Revoluc;ao de 1789, a qual naturalmente agradava o espfrito do C6digo. Na fase seguinte, posterior a implantac;ao da Republica, tal espfrito comec;ou a receber alguma contestac;ao, mas em sentido favoravel ao teor individualista originario da

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Revoluc;ao, que o Code em certa medida havia atenuado, na versao napoleonica do 18 Brumario do Ano VIII. Foi o que designadamente aconteceu corn os movimentos igualitaristas que acabaram por ter o seu apogeu corn a V Republica, da 2!! metade do Seculo XX, e consagrac;ao do prindpio da igualdade em todos os dominios do direito da personalidade e da faml1ia. Alterac;6es que, obrigando naturalmente a revisao de alguns artigos do Codigo nao o afectam na sua essencia, pois nao representam verdadeiros desvios nos seus prindpios basicos, mas apenas urn desenvolvimento de tais prindpios, atestando a sua capacidade de adaptac;ao a evoluc;ao social subjacente a toda a regulamentac;ao legal. 0 que so acontece quando os textos legislativos sao elaborados a partir da essencia de regras sociais inspiradas na propria natureza e como tais capazes de a acompanhar na sua evoluc;ao. Merito que o "Code civil des Franc;ais" evidencia pelo simples bicentenario da sua vigencia. Nem todas as soluc;6es consagradas no Codigo foram aceites ou bem aplicadas, mas a verdade e que todas elas, corn maior ou menor expressao, estao na base das estruturas juridicas actuais, acontecendo mesmo que, em alguns casos, o proprio Codigo Civil frances como lei vigente, o que, designadamente sucede na Belgica e no Cantao de Geneve. Em muitos outros casos o Code foi adoptado como modelo de Codigos nacionais posteriormente elaborados, nomeadamente na ltalia, em alguns Estados alemaes (antes do B.G.B.), na Espanha, na Romenia; em alguns Estados da America do Norte e do Sul (Louisiania, Quebec, Haiti, Bolivia, Costa Rica, Chile, Argentina, Salvador) e tambem na .Asia (Japao) e na .Africa (Paises de lingua francesa). Em Portugal, onde chegou a ser traduzido para efeitos de aplicac;ao, a sua aceitac;ao nao foi tao aparente ou expressamente afirmada, mas a sua influencia na legislac;ao e doutrina portuguesas do Sec. XIX foi igualmente marcante, chegando a ser, nalguns casos, adoptado como texto base para o ensino do direito civil, como consta ter acontecido corn o grande jurista classico portugues Coelho da Rocha. Para o demonstrar, basta referir algumas das mais importantes inovac;6es introduzidas pelo Codigo Civil portugues de 1867, no domfnio das obrigac;6es, dos contratos, da familia e das sucess6es, nomeadamente, o principio da paridade dos sujeitos na contratac;ao, na introduc;ao do casamento civil e da igualitarizac;ao da partilha hereditaria, materias em que e claro 0 abandono das soluc;6es tradicionais nesses dominios, consagradas pelas nossas Ordenac;6es, e em que e bem evidente a influencia da legislac;ao francesa inspirada pelo Codigo de 1804. 0 que, se outras raz6es nao existissem, de caracter universal, bastaria, para justificar que tambem em Portugal fosse assinalada a efemeride do Bicentenario do Code Civil des Franc;ais. A Universidade Lusiada sente, por isso, urn particular orgulho em ter tornado a iniciativa de promover a presente comemorac;ao, nela associando, os

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Jose Gonc;:alves Proenc;:a

nomes ilustres de destacados Mestres do direito civil portugues, ah~m da personalidade fmpar do Prof. Jean Louis Halperin que, em Fran<;a maior destaque tern dado ao acontecimento. Nesse sentido e inten<;ao da Universidade Lusfada, reunir em volume comemorativo as comunica<;oes apresentadas pelos juristas que participaram nas sessoes solenes de Lisboa e Porto, texto que passara. certamente a constituir importante marco na historiografia europeia do direito civil.


NO BICENTENARIO DO CODE CIVIL DES FRAN(:AIS

Rogerio Ehrhardt Soares



NO BICENTENARIO DO CODE CIVIL DES FRANc;AIS

Rogerio Ehrhardt Soares*

Cumpre-se este ano o segundo centenario da publica~ao do Code Civil o C6digo Napoleao. Neste come~o do terceiro milenio e dificil nao voltarmos a interroga~ao sobre o misterio que encerra esse venerando monumento legislativo, que ao longo de duzentos anos conviveu corn profundas transforma~6es na Fran~a e na Europa e conseguiu garantir urn respeito sacral, enquanto constitui~6es polfticas, umas atras de outras, se dissolviam no esquecimento. Podera efectivamente parecer que urn c6digo de direito privado estaria sujeito a sofrer o desgaste da lei fundamental e a acompanhar a sua sorte. Raz6es particulares impedem, todavia, que assim aconte~a e justificam a duradoura devo~ao ao C6digo de 1804. Tudo tern a ver corn o facto de que ele mantem uma estreita rela~ao corn a Revolu~ao Francesa e corn o mundo cultural em que ela se desemolou. Em primeiro lugar parece-nos clever acentuar-se que qualquer confronto entre o C6digo e as constitui~6es, particularmente as revolucionarias, omite que 0 entendimento do fen6meno constitucional e completamente diferente no fim da Idade Moderna e nos nossos dias. Para o homem do Seculo das Luzes, a luta por uma constitui~ao escrita significa a reclama~ao duma carta de garantias, em que o soberano promete respeitar direitos fundamentais dos stibditos ou actuar segundo certas regras. Desse modo nao ha qualquer ideia de que a constitui~ao seja urn texto fundante do Estado - ela e apenas urn instrumento de conten~ao dos governantes. Na 16gica das monarquias esclarecidas a base de legitimidade da constitui~ao reside na vontade do principe, quando, por prudencia ou liberalidade, acede em limitar o aparelho do seu Estado. Porem, quando a Revolu~ao operou a transferencia da soberania para o povo, isso nao vai alterar o entendimento do que seja uma constitui~ao - apenas muda o responsavel politico pelo texto. Podemos entao perceber como e que durante todo o seculo XIX e ate ao fim da 2i! Guerra Mundial a consciencia polftica europeia se recusa a aceitar que as des

Fran~ais,

* Universidade Lusfada do Porto. Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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Rogerio Ehrhardt Soares

constitui<;:oes possam ter qualquer coisa a dizer sobre o sentido e organiza<;:ao da sociedade. As constitui<;:oes referem-se ao Estado, e ele, apesar de contido ou domesticado pela sociedade dos homens, continua a recordar os ressentimentos do despotismo. Entao as constitui<;:oes carecem de sacralidade; fornecem apenas urn expediente h~cnico, que deve alterar-se ou substituir-se todas as vezes que as circunstancias pollticas se modificarem. Diferentemente se passam as coisas quando o que esta em causa sao os interesses diarios dos homens que querem comprar ou vender, arrendar predios, decidir questoes de familia, concorrer a heran<;:as, viver, em suma; e que esperam ter a adequada cobertura jurfdica para as suas necessidades. E ela tern de ser certa, compreensfvel e estavel. E por aqui que vao encontrar-se o destino do Codigo e a vida da Revolu<;:ao. Ate ao fim do seculo XVIII os pafses europeus apresentam urn direito que exprime uma desnorteante multiplicidade de fontes. Sao manifesta<;:oes de direito costumeiro, onde se descobrem frequentemente vestfgios do elemento germanico das invasoes barbaras, sao formulas recebidas do direito romano ou do direito canonico, ou sao decretos dos prfncipes, cada vez mais numerosos, a medida em que se desenvolve a constru<;:ao do Estado - e tudo isto numa amalgama pastosa e sem sistema. Compreende-se assim que ja no seculo XVI se encontrem tentativas de codifica<;:ao, que, todavia, a incuria ou a resistencia de varios interesses vao fazer abortar. Quando chega a Revolu<;:ao Francesa o problema torna-se cada vez mais premente. A venda dos bens eclesiasticos e dos emigrantes foi constituindo uma nova classe media que reclamava sobretudo seguran<;:a jurfdica. Por outro lado, e o proprio sentido do empreendimento revolucionario que tornava escandalosa a manuten<;:ao dum direito medieval, "gotico", impermeavel as Luzes. Por via disto surgem tentativas de elabora<;:ao dum codigo, que, todavia, ha-de demorar a concretizar-se. So uma feliz conjun<;:ao de circunstancias do processo revolucionario podera oferecer a seguran<;:a e a tranquilidade necessarias para a feitura do desejado codigo. Para o percebermos nao podemos omitir que a Revolu<;:ao foi, como todas as revolu<;:oes autenticas, urn fenomeno cheio de contradi<;:oes. Ela aparece desfraldando a bandeira das utopias. Se o nao tivesse feito nao poderia ter passado dum motim ou dum pronunciamento, condenados a dissipar-se rapidamente como urn fogacho. Mas, de modo diverso, a Revolu<;:ao afirmou-se como uma obra da razao, como o desejo de contruir urn Estado obediente as Luzes. 0 que quer dizer que nasce pelo mesmo sopro que ja tinha dado vida ao Estado dos despotas esclarecidos. Tal como ele, promete urn prodfgio de medida e de conten<;:ao, urn ediffcio classico. Mas a verdade e que continua a recordar a critica que Mme de Stael voltou contra a Prussia de Frederico, o Grande: a deter, a semelhan<;:a de Jano, duas faces, uma iluminada e outra guerreira e absolutista. Isto vem a traduzir-se em que a Revolu<;:ao, sem rasgar o pano de fundo do "esclarecimento", consegue encontrar for<;:as para sobreviver atraves da conversao a urn universo mitico e do apelo a quadros

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escatol6gicos de luta entre as "fon;as do mal" - aqui representadas, na cartilha de Sieyes, pelos aristocratas, descendentes dos francos, os Capetos - e as "fon;as do bem" - a Nac;ao gaulesa. Mas, amortecidos os frenesins jacobinos, e significativo que em 1798, na festa do 4Q aniversario do 9 Thermidor, se organize uma exposic;ao corn o resultado dos saques na campanha napole6nica de Italia e que as preciosidades expostas sejam mais apreciadas como urn acto de cultura enciclopedica do que como urn hino as vit6rias militares. E a Revoluc;ao a lembrar a sua dimensao esclarecida. 0 contrapolo milenarista ira surgir urn ano e meio mais tarde: a batalha de Marengo, perdida de manha e miraculosamente ganha pela tarde, confirma em N apoleao a aureola do Her6i Salvador. Ele sera, a partir de agora o homem do destino a quem o povo entrega, jubiloso, o encargo de construir o Estado Moderno em Franc;a, apoiado numa sociedade de homens iguais, "reunidos pelas Luzes, a Propriedade e o Comercio". Tu do is to significa refundar a Administrac;ao Publica. E, mais do que tudo, promulgar o c6digo civil. Corn profunda conscH~ncia do sentido desse monumento, ele e designado por Code Civil des Franc;ais. Mas logo em 1807 passara a ser conhecido por Code Napoleon, para indicar a Hist6ria o entusiasmo e a dedicac;ao corn que o 1QConsul se entregou aquela que considerava a obra da sua vida. Aqui fica urn tosco bosquejo da circunstancia do nascimento do C6digo. Ja e tempo de pedir aos oradores da sessao que nos digam como e o C6digo.

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APRESENTA~AO DO CATALOGO DA EXPOSI~AO

BIBLIOGRAFICA COMEMORATIVA DO BICENTENARIO DO CODE CIVIL DES FRAN~AIS 1804-2004

Jose Duarte Nogueira



APRESENTA<;AO DO CATALOGO DA EXPOSI<;Ao BIBLIOGRAFICA COMEMORATIVA DO BICENTENARIO DO CODE CIVIL DES FRAN<;AIS 1804-2004

Jose Duarte Nogueira*

Articulada corn a Sessao Comemorativa dos 200 anos do C6digo Civil de Napoleao promovida pela Universidade Lusfada de Lisboa, elaborou-se uma pequena exposi<;ao de especies bibliograficas oitocentistas relacionaveis corn o evento e corn a sua envolvente. 0 presente catalogo da disso nota, atraves de reprodu<;6es da pagina de rosto de algumas dessas especies. Incidindo a comemora<;ao sobre urn texto jurfdico marcante na evolu<;ao do Direito Civil, a mostra incide essencialmente sobre obras nessa area. Elaborado em Fran<;a no ambiente revolucionario do infcio de oitocentos e dai irradiado para a Europa e depois para o mundo, a literatura jurfdica francesa da epoca, tanto anterior como posterior, nao poderia deixar de estar representada atraves de obras jurisprudenciais e de codifica<;6es em outras areas do Direito cuja publica<;ao se seguiu ao Code Civil. Tratando-se de uma comemora<;ao realizada em Portugal, a literatura jurfdica nacional nao podia igualmente faltar, estando representada atraves de obras nacionais surgidas depois da sua divulga<;ao no pais. Difundido pelos soldados que seguiam nas fileiras napole6nicas, corn ele vinham ideias polfticas e jurfdicas novas, entre as quais o modelo codificador representado pelo C6digo dos Cidadaos, considerado por alguns bandeira suficientemente valiosa no plano da organiza<;ao da sociedade para compensar as agruras da guerra. Mas, a sombra tutelar de Napoleao nao trazia apenas ideias. Atras dela seguia urn projecto hegem6nico europeu que inclufa tambem a terra portuguesa. A bandeira, para uns essencialmente de liberta<;ao social, era para outros de opressao polftica, gerando por isso internamente iniciativas de oposi<;ao, designadamente atraves de escritos, a que a governa<;ao local preferia por vezes fazer vista grossa, emparedada entre o poder das armas e

* Universidade Lusfada de Lisboa. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

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Jose Duarte Nogueira

o sentimento patriotico. A divulga<;:ao das ideias libertarias via-se assim confrontada corn urn ambiente tenso, de clivagem politica profunda, embora nem sempre claramente expressa ou visivel a luz do dia. Sendo o Code Civil indissociavel da figura de Napoleao, optou-se por incluir na mostra algumas especies que, nao sendo juridicas, relevam por mostrarem urn pouco do ambiente lusitano da epoca na vertente que recusava a sua presen<;:a. Trata-se essencialmente de panfletos anonimos de conteudo por regra ficcionado, geralmente originais, por vezes traduzidos do espanhol, que procuravam mobilizar consciencias e esfor<;:os contra o Imperador e atraves dele contra a perda de soberania que a sua figura representava. De origem popular ou erudita, quase sempre sob a capa do anonimato, constituem precioso testemunho de urn momento em que se digladiaram ideias e iniciativas a urn tempo amadas e odiadas, consoante a perspectiva ou a pessoa. Para os que emprestaram as especies expostas os nossos agradecimentos. Urn especial para os Professores Antonio Pedro Vicente, Nuno Espinosa Gomes da Silva e Mestre Luis Bigotte Chorao, que abriram as suas colec<;:6es pessoais para o efeito.

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DOUTRINA



CASOS CONCRETOS DE DESOBEDIENCIA CIVIL

Belizario Neto



CASOS CONCRETOS DE DESOBEDIENCIA CIVIL

Belizario Neto*

I - INTRODU(:AO

0 tema a ser tratado nestas breves considera~oes e muito importante quando se acredita estar vivendo em urn Estado Democratico de Direito. Encara-se coma materia polemica quando se tern uma visao jus-positivista, do acesso a justi~a. No entanto, durante as sucessivas fases da cria~ao do direito, seja ela jus-naturalista ou mesmo no direito codificado, sempre se dedicou especial aten~ao ao fenomeno da Desobediencia CiviP. Em prindpio, parece contradit6rio se falar em resistencia quando se vive sob a egide de uma Constitui~ao feita respeitando a vontade soberana dos cidadaos. Ressalva-se, porem, a possibilidade de existir uma minoria que tenha a necessidade de preservar a sua convic~ao religiosa ou filos6fica que nao encontra guarida sob aquele ordenamento maior. A conseqiiencia dessa dissonancia em rela~ao ao pactuado pelos representantes do povo na assembleia constituinte e o indivfduo que participa dessa minoria podera ser a perda de determinadas prerrogativas em rela~ao aos direitos dos demais concidadaos. E o caso dos grupos religiosos que nao aceitam a presta~ao do servi~o militar obrigat6rio. Em conseqiiencia dessa rebeldia, esses indivfduos ficam alijados da possibilidade de ocupar cargos publicos e de se candidatarem a qualquer cargo eletivo em disputa. Em outras oportunidades essa discordancia se materializa em atos que constituem transgressao legal corn penas previstas em lei pelo descumprimento do mandamento estatal. Coma n6s estamos tratando da convivencia, sob urn governo democratico, que tern coma escopo principal respeitar as minorias e ao mesmo tempo fazer prevalecer a vontade da maioria, estabeleceremos neste estudo as bases jusfilos6ficas capazes de trazer a luz 0 esclarecimento desta controversia que,

* Universidade Estacio de Sa. 1

MARTIN, Nuria Beloso. Materiales Para Pratica de Toria del Derecho. La obediencia al Derecho. La objeci6n de conciencia y la desobediencia civil. Dykinson, 1997 p. 18 2 S6FOCLES. Antfgona, Editora Paz e Terra, Sao Paulo, 2.• ed. 1999 (Tradw;:ao de Mill6r Pernancies)

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aceita pelo direito, nos sinaliza quando se faz uma primeira abordagem corn a ideia de inaceitabilidade, em primeiro plano. Tentaremos demonstrar a possibilidade de convivencia entre esses dois prindpios fundamentais, ou sejam, entre a possibilidade de resistencia e urn ordenamento constitucional positivo. 0 fato nao e novo, a desobediencia civil vem acontecendo ao longo da historia de nossa civiliza<;ao.Podemos procura-la na tragedia grega quando Antigona se rebela contra a atitude de Creonte ao nao se conformar corn a possibilidade de ver o corpo de seu irmao ficar insepulto pra cumprir a lei do Estado. 2 Por outro lado, temos exemplos marcantes de pessoas que pensam diametralmente oposto ao direito de resistencia e sacrifica a propria vida para que se cumpra a lei em vigor. Caso Socrates3 se recusasse a beber cicuta e aceitasse o apoio dos seus amigos e disdpulos, talvez a historia da filosofia fosse outra. Nao sei se melhor ou pior, porem certamente diferente seria. 0 velho filosofo, apegado ao estrito cumprimento da lei nao titubeou, e ao ingerir o mortal veneno, talvez tenha consolidado todo o seu ponto de vista de uma maneira mais marcante do que se rebelasse e conseguisse sobreviver a sua condena<;ao. Nao se poderia imaginar, naquele momento, a sabedoria do filosofo ao se imolar, trocando o seu velho corpo septuagenario pela sobrevivencia de sua luminosa filosofia. Tambem, os cristaos tern o exemplo marcante do seu lider que mesmo sendo comandante de legioes de anjos capazes de defende-lo e destruir os seus inimigos num piscar de olhos; tenha se submetido ao flagelo e a morte indigna, na visao dos Romanos para perpetuar uma doutrina e uma fe que ja vai ultrapassando dois milenios de existencia. Quem nao se lembra de sua frase " ... dai a Deus o que e de Deus, e a Cesar o que e de Cesar."4 Sao os dois maiores exemplos de lideran<;as capazes de desencadearem uma desobediencia civil, que abriram mao de possibilidades certas de vitorias momentaneas por vitorias a longo prazo atraves de seus ensinamentos. 0 proprio Cristo, em outra ocasiao, resistiu bravamente as praticas legais de vendedores de animais no Templo e por uma questao de consciencia religiosa manifestou a sua indigna<;ao corn violencia expulsando-os do sagrado local de adora<;ao a Deus. A desobediencia civil e tambem tratada por diversos autores cada urn expressando o seu ponto de vista e podemos citar alguns: Nos ensina Peter Singer " ... si los hombres tienen derechos inviolables, es decir, derechos que jamas debem ser violados, qualquier decis6n que niegue o desconoza estos derechos carece de autoridad moral para ser obedecida"5 • Canotilho nos adverte sobre a desobediencia civil: ... Trata-se, assim, de dar guarida constitucional ao "direito a indignar.iio", procurando-se 3 4

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DURANT, Will. A hist6ria da Filosofia. Copyright 2000. ED. Nova Cultural. p.38. Bfblia Sagrada. Livro do Evangelho segundo S. Lucas, cap.20, ver.25. SINGER, Peter, Democracia y desobediencia, Baarcelona, Ariel, 1985, pp72-73.

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Casos concretos de desobediencia civil, p. 305-316

convencer a opiniiio publica de que "uma lei, uma politica ou medidas de uma politica" siio ilegitimas tornando-se a contestariio publica destas plenamente justificada6 • Marcio Tulio Vianna em seu livro Direito de Resistencia, tras para perto de todos n6s, tanto geografica quanto temporalmente os seguintes fatos: Muitos tombaram na ditadura Vargas, outros no regime golpista de 1964. Contam-se aos milhares os estudantes, operarios, padres e politicos torturados, presos e assassinados. 0 exemplo de um fala por todos: Jose Carlos da Matta Machado, entiio aluno da Faculdade de Direito da UFMG, que deu a vida por uma patria livre. Outros ficaram a mezza strada, como alguns dos politicos do antigo MDB, criado pelo proprio governo para lhe fa zer oposiriio/ Machado Pauperio, em sua famosa obra 0 Direito Politico de Resistencia nos esclarece corn a sua capacidade intelectual e seu amor pela pesquisa que a resistencia independe de fe religiosa ou de lugar onde se oprime o homem. Desde que seja restringido o direito fundamental, nasce o direito a resistencia, senao vejamos: 0 mandata do ciu que outorga a soberania a um homem niio a confere para sempre. 0 que significa que praticando o bem e a justira a ganhamos, e que ao praticar o mal ou a injustira a perdemos. 8 Na Idade Media, o sudito devia ao rei mais fidelidade que obediencia. 9 Entre os germanicos, podia-se destituir o monarca injusto, escolhendo-se no mesmo momento um anti-rei, ao qual se jurava apoio na luta contra o antigo. 10 Na Igreja, foi Santo lsidoro de Sevilha o primeiro defensor da resistencia a opressiio Do Seculo VIII em diante, a resistencia passa a ser usada como verdadeira arma politica. A Igreja assume o poder de depor os reis. 11 Para Siio Tomas, ate o tiranicidio e justo. Mas niio pela vontade de um s6, exceto em legitima defesa pessoal. 12 A tirania niio excessiva devia ser suportada, mas apenas porque e perigoso enfrentar o tirano.B

6 CANOTILHO, J. J. Comes. Direito Constitucional e Teoria da Constitui<;:ao, s.• edi<;:ao, Lisboa, Almedina, 2002 p. 326. 7 VIANNA, Marcio Tulio. Direito de Resistencia, LTr ed, Sao Paulo, 1966, p. 39. 8 PAUPERIO, Arthur Machado. Direito Polftico de Resistencia. Rio d e Janeiro, Forense, 1978, p. 37. 9 PAUPERIO, A. M., op. cit., 1978. p . 53. 10 PAUPERIO, A. M., op. cit., 1978. p . 49. " PAUPERIO, A. M., op. cit., 1978. p. 48- 49. 12 PAUPERIO, A. M., op. cit., 1978. p. 159. 13 PAUPERIO, A. M., op. cit., p 65.

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Belizario Neto

Este enfoque de desobediencia civil e mais facil de ser exercido em urn regime democratico do que em regimes autoritarios. Sabemos que na Africa do Sul, muitos sucumbiram ao regime racista ali instalado durante decadas. A luta de Nelson Mandela e a viola«;ao das leis dos brancos e em conseqiiencia, o seu julgamento corn a condena«;ao a morte, vindo a ser comutada em prisao perpetua, sendo libertado devido ao clamor popular, e urn exemplo de como se exerce o direito de resistencia numa sociedade de leis injustas. Ja o seu conterraneo Biko, poeta e lfder negro do fim do seculo passado nao teve a sorte de Mandela, vindo a ser executado imediatamente ap6s a condena«;ao, deixando apenas o legado de se pagar corn a vida o desejo de liberdade e igualdade de urn povo discriminado. Ronald Dworkin, em conferencia sobre desobediencia civil organizada por Jurgen Habermas faz a classifica«;ao das diversas formas de desobediencia civil como sendo: " ... baseada na integridade,baseada na justi~a e baseada em politica"14 • Em sua disserta«;ao ele nos tras as diversas caracteristicas de cada caso espedfico de desobediencia civil, citando exemplos correspondentes, mas no fundo da questao, segundo o nosso conferencista:

" ...a desobediencia civil envolve aqueles que niio desafiam a autoridade de maneira tiio fundamental. Eles niio vem a si mesmos - nem pedem aos outros que os vejam desta forma como pessoas que estiio buscando alguma ruptura ou reorganiza~iio constitucional btisicas. Aceitam a legitimidade fundamental do governo e da comunidade; agem mais para confirmar que contestar seu dever como cidadiios"15 • Dworkim falava para uma plateia democratica e enfatizava que mesmo nos ordenamentos constitucionais onde sao estabelecidas amplas liberdades para os cidadaos, ainda assim existiam direitos subjetivos que estavam acima de qualquer ordenamento jurfdico possfvel, dando origem a possibilidade de haver alguem corn obje«;ao aos atos legais que estivessem contra o pondo de vista individual relativo a sua integridade moral, a seu conceito de justi«;a ou ao conceito polftico para o bem estar e a sobrevivencia nacional.

11 - EXEMPLOS CLASSICOS DE DESOBEDIENCIA CIVIL A desobediencia civil esta bem marcada na hist6ria dos pafses onde o preconceito levou a ter segrega«;ao racial durante o perfodo escravagista que grassou pelo continente do Novo Mundo tanto na America do Norte coma na America do Sul. Quando alguem se recusava a entregar ao capataz, o escravo fugitivo, e acolhia o infeliz sob o manto protetor de sua casa, corria o risco de ser condenado a penas severas em name de urn conceito de justi«;a que naquele 14 15

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DWORKIN, Ronald, Uma questao de Princfpio. pp. 157-158 DWORKIN,Ronald, Uma Questao de Princfpios. p. 155

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Casos concretes de desobediencia civil, p. 305-316

momento estava de acordo corn o direito estabelecido. Os famosos quilombos em nossa patria onde os negros se reuniam e estabeleciam urn Estado proprio dentro do estado opressor serviam de abrigo para aqueles resistentes quando foragidos da justi~a. Certamente seriam destruidos, mais cedo ou mais tarde. Era uma questiio de tempo, apenas. Mas enquanto estivesse de pe seriam os simbolos de uma liberdade possivel. E for~oso lembrar que, o quilombo de Palmares, sob a lideran~a do nosso heroi negro Zumbi, e seus antecessores, resistiu, bravamente, por urn periodo de cem anos, as investidas das tropas do opressor Estado Brasileiro, so se rendendo a for~a dos bandeirantes desempregados e sanguinarios que dizimaram-no, impiedosamente, para manter a escravidiio em nosso territorio. Darcy Ribeiro em uma de suas tiltimas obras registra: ... o pulso e o aroite do feitor para impor e manter o ritmo do trabalho. Episodicamente, pela fuga de negros jti. conhecedores da terra para territ6rios ermos onde se acoitavam, formando quilombos. 0 mais celebre deles, Palmares, sobreviveu, combatendo. "A arucocracia s6 encontrou resistencia efetiva e enfrentou oposi(:ii.O ativa por parte do negro escravo, que lutou por sua liberdade niio apenas contra o amo mas contra toda a sociedade colonial, unida coerente na defesa do sistema. Foi uma luta longa e terrivel que se exprimiu de mil modos. Diariamente, pela resistencia dentro do engenho, cujo funcionamento exigiu sempre, por quase um seculo, reconstituindo-se depois de cada razzia. Ao final, concentrava cerea de 30 mil negros em diversas comunidades e dominava uma enorme area encravada na regiiio mais rica da colonia, entre Pernambuco e Bahia. Sua destrui(:iio exigiu armar um exercito de 7 mil soldados, chefiados pelos experimentados homens de guerra de toda a colOnia, principalmente paulistas". 16 Ainda sobre a resistencia de Palmares, voltamos a Marcio Ttilio Viana quando nos esclarece corn a sua invejavel capacidade de pesquisa citando o relata de Mello e Castro ao rei: ... pelejou valorosa ou desesperadamente, matando um homem, ferindo alguns e, niio querendo render-se, nem os companheiros, foi preciso mata-los, e s6 a um apanhou vivo, enviou-se a cabe(:a do Zumbi, que determinei se pusesse em um pau, no lugar mais publico desta prara, a satisfazer os ofendidos e justamente queixosos e atemorizar os negros, que superticiosamente julgavam este imortal; pelo que entende que nesta empresa se acabou de todo com os Palmares 17 • Nao esque~amos de nosso heroi maior, Tiradentes que em sua luta pela independencia pregando a desobediencia do pagamento da derrama ao colonizador portugues 18, sacrificou a sua propria vida e foi enforcado, esquartejado e seus peda~os espalhados pelos caminhos das Minas Gerais, para servir de exemplo aos demais inconfidentes que por acaso surgissem. 16 RIBEIRO, Darcy. 0 Povo Brasileiro: a forma~ii.o e o sentido do Brasil. Sii.o Paulo: Companhia das Letras, 1995. p 295. 17 VIANNA, Marcio Ttilio. Direito de Resistencia, LTr ed, Sii.o Paulo, 1966, p. 35. 18 TIRADENTES, verbete da enciclopedia Delta Larousse. Editora Nova Cultural Ltda, Sii.o Paulo 1998. p.5688.

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Martin Luther King19, nos Estados Unidos da America, tambem baseado na desobediencia civil, corn metodos pacifistas do Mahatma GandhF 0, conseguiu transformar todo urn ambiente hostil as suas ideias em bandeira de luta contra a opressao reinante no seio daquela sociedade. Muitas lideran~as brancas daquela grande na~ao aderiram as ideias de igualdade racial, fazendo corn que aquele movimento crescesse e adquirisse for~a propria na dire~ao da vitoria final. Muitas vezes ele foi preso e humilhado, porem corn a sua convic~ao de estar lutando por uma causa nobre, conseguiu arrancar da Suprema Carte americana, a garantia de igualdade para os cidadaos negros daquele pais. Certo que pagou corn a sua propria vida a ousadia de querer mudar o mundo para melhor. Temos visto em na historia da humanidade que todo aquele que ousa desobedecer as leis por julga-las injustas, todo aquele que enfrenta o Leviata 21 , sempre paga urn pre~o muito alto para alcan~ar o objetivo desejado. 0 fato de derrubar uma lei injusta tras em seu bojo a possibilidade de desagradar os poderosos que eram beneficiados pelo status quo, e, conseqiientemente a sua vida passara a ser o pagamento pelo bem alcan~ado para os oprimidos. Nesse aspecto podemos citar, alem de Martin Luther King, os fins tragicos de Mahatma Ghandi, Jesus Cristo, Tiradentes, etc. Hoje, convivemos corn urn outro movimento cujos componentes vem exercendo esse direito de resistencia atraves da ocupa~ao pacifica de terras improdutivas fazendo a reforma agraria atraves de uma desobediencia civil itinerante pelo interior do pais. E o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra que atraves da sua a~ao intensa e pacientemente exercida, legitima o nosso processo democratico ao ser tolerado pelas autoridades constituidas. Levados pela necessidade de sobrevivencia propria e de suas familias, estes humildes agricultores estao conseguindo colocar em pratica a Constitui~ao Cidada, tao louvada pelo inesquedvel Ulisses Guimaraes. Para urn determinado grupo de brasileiros, detentores de vastas extens6es de terras como os participantes da a UDR (Uniao Democratica Ruralista), estes cidadaos estao transgredindo o nosso ordenamento juridico. A elite rural brasileira faz outra leitura da Constitui~ao da Republica Federativa do Brasil de 1988, esquecendo premeditadamente o significado da func;iio social da propriedade, tratada em seu artigo S.Q, incisos XXII e XXIII:

19 KING, Martin Luther, verbete da enciclopedia Delta Larousse . Editora Nova Cultural Ltda, Sao Paulo 1988. p3423. 20 GANDHI, Mohandas karamchand, cognominado Mahatma, verbete da enciclopedia (Podem

torturar o meu corpo, quebrar os meus ossos e ate me malar. Assim eles terao o meu cadaver. Mas nao a minha obediencia). Delta Larousse. Editora Nova Cultural Ltda, Sao Paulo 1998. p. 2642 21 HOBBES, Thomas, verbete da enciclopedia Delta Larousse. Editora Nova Cultural, Sao Paulo 1988 p. 3000

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"e garantido o direito de propriedade; a propriedade atendera a sua funr.iio social'122 • Entretanto, sabemos que existe um direito natural acima de todos os direitos estabelecidos por uma sociedade. Baseado na visao jus-naturalista e que somas de opiniao que o Movimento dos Sem Terra, mesmo contestado por muitos, esta legitimado pelo direito que todo homem tem de sobreviver em condic;oes de dignidade, com saude e alimentac;ao suficiente para si e para sua familia. Este Movimento organizado por cidadaos carentes de recursos economicos, que enfrentam os senhores rurais apenas com a vontade de obter melhores dias futuros para as suas familias e pra eles proprios, colocando em risco as proprias vidas, segundo nosso entendimento e uma das mais legitimas manifestac;6es de amadurecimento democratico do nosso pais. Segundo meu conhecimento de varias lutas para o retorno ao Estado de Direito, apos a famigerada Revoluc;ao de 1964, ouso dizer, que o Brasil Democratico esta vivo, sinto a sua respirac;ao atraves do pulmao que ainda se movimenta por uma causa justa e oxigenada que e o Movimento dos Sem Terra. Enquanto a populac;ao "ordeira" se submete aos desmandos dos poderosos com as suas injustic;as diarias atraves de atitudes antidemocraticas e atos de corrupc;ao, sabemos que uma pequena parcela do povo campones esta a fustigar os donos do poder com as suas foices e seus fac6es numa luta desigual quanta David e Golias. Enquanto a classe media se proletariza com as reduc;6es salariais e se apega ao sonho irrealizavel de chegar ao paraiso, nossos irmaos desesperados sao mortos por um poder estatal iniquo que impiedosamente usa a midia e demais poderes globalizantes com a finalidade de se perpetuarem como governantes. Basta abrir um jornal de grande circulac;ao para observar noticias tendenciosas e deformadas com a finalidade de colocar a opiniao publica contra os movimentos populares que tentam mudar a cara do pais. Senao, vejamos:

"Jungman criticou as invasoes patrocinadas pelo MST e avisou que as pessoas que participaram de atos contra os direitos humanos estariio excluidas do programa de reforma agraria. 0 ministro disse ainda que o MST e politico e sera tratado politicamente"21 • Como um juiz, o ministro decretou a ilegalidade de um movimento social e ameac;ou-o com as retaliac;oes proprias da politica com "p" minusculo, praticada pelos detentores do poder. A certeza, p01¡em, que um dia o Movimento dos Sem Terra sera reconhecido como um movimento de cidadania e de desobediencia civil contra uma ordem economica injusta, certamente recompensara as perdas humanas acontecidas durante a sua longa jornada democratica. 22

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Constitui~ao da Republica Federativa do Brasil de 1988. Jornal "0 GLOBO" edi~ao do dia 18 abril 2000.

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0 beneficia que sera alcan<;ado pela luta desses homens destemidos e humildes sera em proveito de uma sociedade melhor e mais justa. Certamente alcan<;ani todos os segmentos sociais, inclusive aqueles que hoje os condenam e aqueles que os olham corn indiferen<;a. As pessoas que nao viveram epocas sombrias de nossa vida politica nao conseguirao avaliar as atrocidades praticadas por determinados grupos poderosos que assumiram o poder ilegitimamente, porem dentro de urn ordenamento juridico positivo que lhes dava carta branca para praticar as piores atrocidades ja imaginadas em nosso pais. Somente quem viveu sob a positividade de urn AI-5 (Ato Institucional mimero cinco), durante os "anos de chumbo", quando muitos cidadaos brasileiros morreram praticando a desobedH~ncia civil, lutando contra a opressao da lei que era legal, porem ilegitima sabera avaliar mais precisamente como e dificil mudar a sociedade atraves de atos de desobediencia civil. Hoje, corn os ventos democraticos que sopram em nossa Republica, ja podemos ter decis6es que legitimam movimentos que lutam pelo bem estar das popula<;oes menos favorecidas da nossa sociedade como a que se segue:

101894- HABEAS CORPUS- LIMINAR- FIAN(;A- REFORMA AGRARIA - MOVIMENTO SEM TERRA - HC e ariio constitucionalizada para preservar o direito de locomoriio contra atual, ou iminente ilegalidade, ou abuso de poder (CF, art 5., LXVIII). Admissive[ a concessiio de liminar. A provisional visa atacar, com a possivel presteza, conduta ilicita, a fim de resguardar o direito de liberdade. Fianra concedida pelo STJ niio pode ser cassada por Juiz de Direito, Ao fundamento de o Paciente haver praticado conduta incompativel com a situariio juridica a que estava submetido. Como executor do ac6rdiio, deverd comunicar o fato ao Tribunal paar os efeitos legais. Niio fazendo, preferindo expedir mandado de prisiio, comete ilegalidade. Despacho do Relator, no TJ, niio fazendo cessar essa coariio, por omissiio, a ratifica. Caso de concessiio de medida liminar. Movimento popular visando implantar a reforma agrtiria niio caracteriza crime contra o Patrimonio. Configura direito coletivo, expressiio da cidadania, visando implantar programa constante da CR. A pressiio popular e propria do Estado de Direito Democrdtico. (STJ - HC 5.574 SP 6. T - Rel plo Ac. Min. Luiz Vicente Cerniccharo - DJU 18.08.97).24 Como podemos observar, a atitude do Poder Executivo, comparada corn a decisao do Poder Judiciario apresenta uma dessemelhan<;a caracteristica da a<;ao de grupos dominantes divergentes dentro do proprio seio das autoridades 路 republicanas. Enquanto o Poder Executivo acena corn amea<;a, o Judiciario, atraves da senten<;a do llustre Ministro Cernicchiaro ao conceder a ordem de HC em

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Diario de Justi<;:a da Uniao 18 de agosto de 1997.

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favor dos militantes do MST encontrou naquele movimento o espirito da consolidac;:ao do direito constitucional. Enquanto o Poder Executivo ameac;:ava o MST corn a espada da lei, o Poder Judiciario, por seu ilustre membra via na atitude daqueles humildes agricultores a consolidac;:ao de urn processo de reforma agraria conforme a nossa Constituic;:ao. Alem dos exemplos dados anteriormente, temos vista diariamente atitudes de desobediencia civil em nossa cidade, como por exemplo as avenidas fechadas pelos taxistas auxiliares em lutam por uma autonomia, que significa uma abolic;:ao da escravatura para eles ou a constante presenc;:a dos sem teto que normalmente fazem manifestac;:oes exigindo o seu direito de ter uma moradia, etc. Todos estes movimentos normalmente partem das camadas mais pobres da populac;:ao. Isto tern urn significado. A classe media, por ainda dispor de alguma esperanc;:a de alcanc;:ar dias melhores pelas vias normais do capitalismo, sente medo de perder a oportunidade de conseguir ascensao social ao participar da luta pelos seus direitos.

Ill - CONCLUSA.O

Em nosso estudo, iniciamos corn uma pergunta: Como poderia ser possfvel alguem, desobedecendo a urn ordenamento positivo, conseguir muda-lo e melhora-lo atraves de atos aparentemente contra legem? Tentamos demonstrar, atraves de nossa pesquisa que isto e possfvel e mostramos alguns exemplos acontecidos que nos dao sustentac;:ao durante o desenvolvimento da mesma, como a luta pela igualdade dos direitos civis entre os negros e os brancos; lembramos da Inconfidencia Mineira onde o nosso martir maior, Tiradentes, baseou sua luta, dentre outros motivos, na suspensao de pagamento de tributo a coroa portuguesa e finalmente falamos do Movimento dos Sem Terra, tema atual de nossa hist6ria recente, onde milhares de trabalhadores arriscam as pr6prias vidas corn a finalidade de conseguir uma distribuic;:ao mais justa das terras de nosso imenso pais. Tivemos a oportunidade de encontrar decisao do Superior Tribunal de Justic;:a em Habeas Corpus a favor de militantes do Movimento dos Sem Terra presos a pedido das autoridades Administrativas que mais parece urn libelo em favor da luta dos oprimidos trabalhadores rurais contra urn Estado opressor na pessoa do Poder Executivo. Finalizando, lembramos que diariamente vemos em nossa sociedade e na sociedade mundial, grupos organizados em defesa dos seus direitos, quando a lei vigente naquele momento hist6rico contrarie os Direitos Fundamentais dos indivfduos.

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MEIOS ALTERNATIVOS DE RESOLU(_;AO DE DIFERENDOS (OU DE LITIGIOS OU DE CONFLITOS)

Jaime Cardona Ferreira



MEIOS ALTERNATIVOS DE RESOLU~AO DE DIFERENDOS (OU DE LITIGIOS OU DE CONFLITOS)

Jaime Cardona Ferreira ¡

I

Pelo 3Q ano consecutivo, tenho o prazer de intervir num curso de forma<;i'io, para o C.E.J., acerca dos Meios Alternativos de Resolu<;ao de Diferendos (prefiro esta expressao, a litfgios ou conflitos ). Tenho muito prazer em faze-lo, nao so por gosto pessoal como porque venho presidindo ao Conselho dos Julgados de Paz, desde Agosto de 2001. Naturalmente, assim sendo, ha ideias bdsicas que venho repetindo mas, felizmente, hri sempre alga diferente e novo a acrescentar. Este texto insere os topicos que me serviram de guiiio para o acto de forma9iio de 2004, que coloco a disposi<;ao da Universidade Lusfada e dos formandos .

11 Lembremo-nos de que o tempo moderno do Direito dos Cidadaos, e para os Cidadaos, tern marcos historicos muito claros; e, para nao irmos tao longe como, por exemplo, ate circunstancias porventura nao inseridas numa continuidade, como a "Magna Carta"; situemo-nos na Declara<;ao de Independencia dos Estados Unidos da America que, em 1776, enunciava aquilo que, a meu ver, e 0 fundamental dos direitos fundamentais, 0 direito a felicidade ("the pursuit of Happiness"); recordemos a Declara<;ao dos Direitos do Homem e dos Cidadaos, Fran<;a, 1789 e respectiva proclama<;ao do primado da lei - art.Q SQ; demos urn salto a fundamental Declara<;i'io Universal dos Direitos do Homem, Na<;6es Unidas, 1948 e vejamos, por exemplo, o reconhecimento, "urbi et orbi", do direito a julgamento equitativo e publico (art.Q 10Q); e para nao alongar este enquadramento da razao de ser do tema que devo tratar - mas cuja compreensao exige, creio, uma perspectiva da essencia e niio apenas da existencia • Professor Convidado da Universidade Lusfada de Lisboa. Ex Presidente do Supremo Tribunal de Justi<;:a Professor Presidente do Conselho dos Julgados de Paz.

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dos fen6menos jur{dico-judicidrios; passemos, desde jd, a Convew;ao Europeia dos Direitos do Homem, Conselho da Europa, 1950, e ao seu celeberrimo art. 6Q: direito a processo equitativo e publico, a decidir "num prazo razodvel". Q

Esta expressao "prazo razoavel" concretiza, impressivamente, o conceito demasiado vago da equitatividade trazendo, abertamente, a cola<;;ao uma perspectiva, mais do que jurfdica, justa e, creio, desfazendo o mito hermetico que decorria de conceitos - ainda hoje, as vezes, invocados - como o de "dura lex sed lex" que, parece-me, niio pode, de jeito nenhum, coonestar decis6es que sejam, de todo, injustificaveis a luz de direitos fundamentais. Claro que a actividade jurisdicional implica, sempre, algum tempo. Deixem-me dizer num, "parentesis", o seguinte.

Sem humanismo, sem sensibilidade, niio hd Justi(;a. Niio que niio jd Justi(;a.

e s6 sem

oportunidade

Fechando o parentesis, retorno ao que ia dizendo. Dizia que a actividade jurisdicional implica, sempre, o seu tempo, designadamente de audi<;;ao dos interessados, de produ<;;ao das provas e, fundamentalmente, de pondera<;;ao e decisao; de estudo da materia e de considera<;;ao pelas pessoas envolvidas. Urn processo nao e urn simples conjunto frio de papel:

e vida, e gente

que perpassa cam as suas emo(;i5es, os seus destinos, as suas cir-

cunstancias. Mas, se o tempo jurisdicional nao e o tempo da vida real, dos tempos cada vez mais velozes que vao passando pela humanidade, o Homem deixou de aceitar excessiva demora da institui<;;ao dita tradicional jurisdicional e, portanto, nao lhe importam tanto os porques do tempo jurisdicional. E a ideia de "prazo razoavel" prolifera, reluz nos textos, mas fragiliza-se na realidade da vida, basicamente porque, muitas vezes, nao e possfvel dar-lhe observancia adequada atraves dos meios "tradicionais", demasiado regulamentarizados para os tempos da vida extra-jurisdicional e, geralmente, corn volumes de processos verdadeiramente excessivos. Veja-se, ainda, o art.Q 47Q da Carta dos Direitos Fundamentais da Uniao Europeia, repisando o respeito pelo prazo razoavel, texto integrado no Tratado Constitucional da U.E. (Parte II). E, em termos "domesticos", veja-se, por todos, o art.Q 20Q da Constitui<;;ao da Republica Portuguesa. E, perante tudo isto, que vem acontecendo corn a institui<;;ao jurisdicional dita tradicional? Sem deixar de pensar que, em Portugal, em 2000, havia cerea de dois milh6es de processos judiciais pendentes ("Meios Alternativos de Resolw;ao de Litfgios", edi<;;ao do Ministerio da Justi<;;a), vejamos urn tra<;;o largo da evolu<;;ao hist6rica, alias comum a muitos Pafses. A legisla<;;ao jurfdico-judiciaria, porventura para combater o autoritarismo do "ancien regime", caiu num formalismo fechado que veio a dar origem a urn burocracismo divorciado da necessidade de humaniza<;;ao e simplicidade. Esse burocracismo foi, todavia, andando razoavelmente porque, em verdade, tempos houve em que institui<;;6es sociais como a Familia, a Escola, a Religiao iam fazendo desnecessitar de uma acentuada interven<;;ao de tribunal. Mas,

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quando aquelas institui<;6es socialS foram afectadas por uma crise geral societaria (de que tao bem nos da conta, por exemplo, Antoine Garapon, em " 0 Guardador de Promessas") e os Cidadaos passaram a pedi1~ aos Tribunais, solu<;6es e solu<;6es acerca de problemas que, deles, haviam estado arredados; quando a propria politica come<;ou a recorrer ao Judiciario (lembremo-nos, por exemplo, das disputas judiciais sobre elei<;6es presidenciais nos E.U.A.); quando o grau de exigencia dos Cidadaos se tornou cada vez maior; a envolvencia regulamentarista e absorvente da maquina judiciaria "tradicional" nao foi objecto de suficiente evolw;ao atempada. Esta situa<;ao obriga a urn repensar profunda na necessidade daquilo a que tenho chamado uma verdadeira refunda<;ao judiciaria. Tudo isto tern que ver corn direitos fundamentais, que tal e o enquadramento do acesso ao direito e a tutela jurisdicional efectiva. E corn a sintonia que deve existir entre os Cidadaos e as institui<;6es cuja razao de ser e o servi<;o a Cidadania e a Justi<;a. Mas, enquanto se faz, ou nao faz, uma reforma profunda da institui<;ao judiciaria "tradicional" - se e que e possfvel -, e preciso ir vivendo e resolvendo situa<;6es. E e assim que surgem ou ressurgem ideias como as dos chamados "Meios Alternativos" como, por exemplo, pela Recomenda<;ao n.Q R (86) 12 do Comite de Ministros do Conselho da Europa (1986). So que os Meios Alternativos podem ser vistas ou coma forma de desbloquear as institui96es tradicionais ou coma forma de resolver problemas de cidadania. Estas perspectivas nao sao a mesma coisa, nem sao indiferentes. A meu ver, tern de possuir urn objecto imediato: resolu<;ao de problemas de Cidadaos; e urn outro so media to: desbloquear Tribunais "tradicionais" (cujo fim ultimo, alias, tern, ainda, de ser o de resolver problemas de cidadania). As ideias dos Meios Alternativos nao sao novas, nem internacionalmente, nem em Portugal. Mas reconhece-se que nao ha, em Portugal, uma cultura de Meios Alternativos; a tendencia e para os meios ditos "tradicionais", comuns, burocratizados. E, todavia, os Meios hoje ditos Alternativos, inclusive do tipo Julgados de Paz e Tribunais Arbitrais, ja existiam no tempo do Codigo Visigotico1.

III Procurando nao ma<;ar demasiado corn excessivos pormenores, todavia, devo dizer que, designadamente, a institui<;ao dos Jufzos de Paz ou de Julgados de Paz, tern tido assento, ou decorrido, inclusive, dos textos Constitucionais portugueses, cam urn ou outro nome, corn uma ou outra forma de designa<;ao, corn umas ou outras competencias. 1 V.g. Galhando Coelho, Julgados de Paz e Media<;ao de Conflitos, 13; Francisco Cortez, 0 Direito, 1992, III, IV.

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A primeira Constitui<;ao Politica, a de 1822, referia-se-lhes sob a expressao Juizes de Facto (art.Q 177Q).Mas, na Carta Constitucional de 1826 (art.Q 129Q), ja aparece a expressao Juizes de Paz, repetida na Constitui<;ao de 1838 (art.Q 124Q). E, embora nao expressos na Constitui<;ao de 1911, esta viabilizou-os, de modo que prosseguiram e os Julgados de Paz continuaram a ser reflectidos, inclusive, no art.Q 155Q do Estatuto Judiciario de 1928. A propria Constitui<;ao de 1933 fazia referenda a Juizes de Paz (art.Q 115Q ยง 2) que, ponยงm, deixaram de ser aludidos em revisao constitucional de 1945 (art.Q 116Q), donde, creio, urn certo apagamento, niio suficientemente colmatado pelos chamados Tribunais Municipais, ainda que, curiosamente, o Estatuto Judiciario de 1962 tenha continuado a falar em Juizes de Paz, basicamente ao nivel das freguesias (art.Q 2Q, n.Q 3). Quanta a Constitui<;ao da Republica Portuguesa de 1976, no que concerne a expressao sob analise, ha duas revisoes particularmente significativas, a saber: em 1989, fazendo reflectir, no arU 202g, n. g 4, que a lei pode institucionalizar instrumentos e Jormas de composifiiO niio jurisdicional de conflitos; e, em 1997, dando maior enfase ao direito de acesso ao Direito e tutela jurisdicional efectiva, na linha do segmento mais significativo do art. g 6g da Convenfiio Europeia dos Direitos do Homem (arU 20g) e, expressando, no normativo atinente a categorias de Tribunais (art.Q 209Q), que podem existir Julgados de Paz (a referencia a Tribunais Arbitrais jd constava e, muito bem, Joi mantida). 2 Ora, conhecidas as dificuldades juridico-judiciarias, a legitimafiio constitucional de Julgados de Paz niio poderia deixar de conduzir asua criafiiO e instalafiiO, coma veio a decorrer da Lei n.Q 78/2001, de 13.07, que a Assembleia da Republica aprovou par unanimidade. Alias, nao e despiciendo acrescentar que, no periodo posterior a 1976, os Julgados de Paz ja haviam sido previstos pela Lei n.Q 82/77, de 06.12, e par urn Decreto-Lei de 1979 (539/79, de 31.12) que, porem, viria a nao obter ratifica<;ao parlamentar. Deste breve apontamento, podemos concluir que, corn uma roupagem ou outra, naturalmente, sempre dependente das circunstancias do tempo concreto e da evolu<;ao dos prindpios juridico-politicos, a institui<;ao social dos Juizos de Paz e alga recorrente na Historia Jurisdicional do nosso Pais, ainda que durante o tempo de maior estatiza<;ao e centralismo tenha tido apagamento na vivencia juridico-judiciaria. Enfatizo - para que nao se pense que pretendo dizer que Julgados de Paz sempre houve coma hoje - que a institui<;ao, corn maior ou menor implanta<;ao, atravessou os tempos e, abstractamente, insere-se na Historia Juridico-Judiciaria do Pais. Mas, concerteza, no que concerne a modo de cria<;ao, a competencia, a relevancia, tudo variou ao longo do devir hist6rico.

2 Cfr. A Constitui<;iio da Republica revista em 1997, anotada por Lufs Marques Guedes, pags. 81/82 e 189.

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Deixem-me acrescentar que, Meios Alternativos aos jurisdicionais comuns, ha-os por todo o mundo 3 • 0 que acontece e que os pr6prios modelos variam, necessariamente, conforme os espa<;os culturais. No caso portugues, por exemplo, actualmente, os Julgados de Paz siio familiares aos Juizados Especiais brasileiros, aos Juges de Proximite franceses, aos Giudice di Pace italianos, etc, etc.

IV Posto este enquadramento sem cuja analise, efectivamente, dificilmente se compreenderiam os chamados Meios Alternativos, fa<;amos uma resenha sabre os modelos correntes, para nos situarmos, a final, nos Julgados de Paz: media<;iio, concilia<;iio, Tribunais Arbitrais, Julgados de Paz. 0 que caracteriza os Meios Alternativos, de urn modo geral, e a diferem;a entre lit{gios adversariais e niio adversariais, ou seja, numa ac<;iio judicial ha, normalmente e por defini<;iio, uma parte contra a outra. Nos Meios Alternativos e privilegiada a situat;:iio niio adversarial, atraves da qual os interessados, essencialmente e corn simplicidade e informalidade possiveis, por si e (ou) atraves de outras pessoas, procuram encontrar as solut;:oes adequadas as suas iniciais diferentes opt;:oes, tendendo, em primeira linha para o consenso. Niio apenas mas, diria, principalmente, almeja-se a pacificaf;iio individual e social, ainda que sem prejuizo de, na medida do razoavel, se procurar dar a cada urn o que e seu - o "suum quique tribuere", de Arist6teles, valve-se niio em fim, mas em caminho para a pacificaf;iio. E, tudo isto, desse modo, tanto quanta possivel, equitativamente e em prazo razoavel. Teoricamente, podemos dizer que os Meios Alternativos ditos de mediaf;iiO e conciliaf;iio se distinguem porque, tendo embora, ambos, caracteristicas comuns, como a de a sua intervent;:iio depender da vontade dos interessados, a mediaf;iiO procura que as partes interessadas ajam de forma a serem, elas pr6prias a encontrarem equitativas solu<;oes para os seus diferendos, enquanto o conciliador toma a iniciativa de propor fontes de entendimento. Mas isto niio pode funcionar corn rigor formal que contrarie a informalidade que e propria dos Meios Alternativos. Ademais, retenha-se este exemplo concreto: Existe, em Portugal, na dependencia do Ministerio da Justi<;a, o chamado Gabinete de Mediaf;iio Familiar (situat;:oes de div6rcio e de separat;:iio ). Pois urn dos objectivos desse Gabinete e o de promover "uma atitude conciliadora" (Despacho do Ministro da Justit;:a de 25.11.1997, in D.R. 2i! serie, de 09.12.1997). Urn dos Organismos que tern sido mais eficiente no campo dos Meios Alternativos e o Centra de Arbitragem de Conflitos de Consumo da Cidade de Lisboa, o qual tern vivido e ganho a sua eficiencia face a uma acentuada act;:iio conciliadora, na base da Lei n.Q 24/96, de 31.07. 3

Armando Marques Guedes, Sub Judice, n .2 25, 21 e segs.

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A tendencia, creio, e para espalhar este tipo de instituis;ao a outras cidades. Devo, ainda, citar como instituis;ao corn potencial acentuado de utilidade o Centra de Informas;ao, Medias;ao e Arbitragem de Seguros Automoveis, ligado ao Ministerio da Justis;a. Por sua vez, a Arbitragem e o Meio Alternativo mais divulgado e generalizado, mormente acerca de causas comerciais, maxime, de caracter internacional. A Arbitragem depende, tambem, de livre ops;ao dos interessados, em materia de direitos disponiveis. Retenha-se que a medias;ao e a concilias;ao procuram que as partes acordem solus;oes entre si, mas nao tem forr;a impositiva. Os Tribunais Arbitrais e os Julgados de Paz ja tern competencia propria de tribunais e portanto as suas decis6es sao exequfveis. Mesmo o acordo obtido em medias;ao numa instituis;ao como esta, e sujeito a homologas;ao por urn Juiz e, se a obtiver, a decisao homologatoria e exequfvel. Os Tribunais Arbitrais podem ser necessarios ou voluntarios. Os necessarios estao em vias de desaparecer. A Arbitragem Voluntaria tern sede legal na Lei n.Q 31 I 86, de 29.08 e no DL n.Q 425 I 86, de 27.12. Alias, este Decreto-Lei reporta-se, apenas, a crias;ao dos Centros institucionalizados. A Lei n.Q 31 I 86 e, verdadeiramente, o diploma legal definidor das regras da Arbitragem Voluntaria. Sabre tudo isto, ha urn panto importante que respeita a diferens;a entre direitos disponiveis e indisponiveis, estes corn largo reflexo, designadamente, em quest6es familiares e laborais. Pois se ha materias que justificam, a meu ver, justamente, a alternatividade de meios de proximidade e oportunidade, tendencialmente conciliadores, sao as problematicas familiares e laborais. E, felizmente, ja existem, a este respeito, especialmente, o Gabinete de Medias;ao Familiar e, por outro lado, o Servis;o Regional de Concilias;ao e Arbitragem do Trabalho, em Ponta Delgada. Mas a propria Lei n.Q 78 I 2001, de 13.07, acerca dos Julgados de Paz, excluiu acs;oes sabre incumprimento contratual !aboral da competencia material dos Julgados de Paz, como frisou o nao cabimento de medias;ao extracompetencia dos mesmos para as quest6es ditas de direitos indisponfveis: arts. 8Q, n.Q 1 i) e 16Q, n.Q 3. Penso que podera ser materia a reponderar. Significativamente, o art.Q 6Q, n.Q 3 da Carta Social Europeia Revista, ratificada por Portugal (DR., P serie A, Suplemento, de 17.10.2001) diz que os Estados abrangidos se comprometem "a favorecer a instituis;ao e utilizas;ao de processos apropriados de concilias;ao e arbitragem voluntaria para a resolus;ao dos conflitos de trabalho". Voltando a os Tribunais Arbitrais, a Lei n. Q 31 I 86 preconiza que, para intervir urn Tribunal Arbitral Voluntario pressup6e-se uma convens;ao de arbitragem, quer sob a forma de compromisso arbitral (perante litfgio actual), quer sob a forma de clausula compromissoria (previsao de litfgio )4 • Pod em

"Art.Q 1

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existir urn Juiz-Arbitro ou varios, em numero impar, normalmente tres 5 • Em princfpio, as causas devem estar decididas em 6 meses 6 . As partes podem optar por decisao na base da equidade 7 • Quando haja recurso, ira para urn Tribunal de Relac;:ao 8 • A execuc;:ao compete aos Tribunais Judiciais 9 •

V

V.1. E, agora, uma palavra sobre urn especial Meio Alternative de Resoluc;:ao de Diferendos: os Julgados de Paz. Decorrem da Constituic;:ao: art.Q 209Q n.Q 2. A lei basica e a Lei n.Q 7812001, de 13.07. Daqui resulta que os Julgados de Paz sao Tribunais oficiais e, como qualquer 6rgao de Soberania (art.Q 110Q, n.Q 1 da Constituic;:ao), detentores de Poder Judicial (Judiciario ou Jurisdicional, o que e confirmado pela respectiva leiquadro, a ja aludida Lei n.Q 78 I 2001, que descreve a organizac;:ao, a competencia e o funcionamento desta instituic;:ao, ainda que na inicial perspectiva de uma fase dita experimental, carecendo hoje de revisao. Tal projecto tern como uma das matrizes mais relevantes os chamados Juizados Especiais brasileiros, ainda que, por enquanto, estejam longe da capacidade interventiva desta instituic;:ao do Brasil. Numa primeira fase, a Lei n.Q 7812001 foi complementada por: DL n.Q 32912001, de 20.12, que deu cumprimento a criac;:ao dos Julgados de Paz "experimentais", em funcionamento desde o princfpio de 2002 (Lisboa, Oliveira do Bairro, Seixal e Vila Nova de Gaia); Portarias de instalac;:ao desses Julgados de Paz, n.Q 162-AI2002, de 25.02, n.Q 9212002, de 30.01, n.Q 7212002, de 10.01, n.Q 4412002, de 11.01; Portaria n.Q 145612001, de 28.12, referente a custas; Portaria n.Q 122812001, de 25.10, relativa as primeiras nomeac;:6es de Juizes de Paz, que competem ao Conselho de Acompanhamento; Portarias n.Q 10051 I 2001 e 1006 I 2001, de 18.08, relativas aos concursos e selecc;:ao de Mediadores e de Juizes de Paz; Protocolos entre o Ministerio da Justic;:a e os Municipios de Lisboa, Vila Nova de Gaia, Oliveira do Bairro e Seixal, respectivamente de 21.11.2001, 27.11.2001, 27.11.2001, 26.11.2001; Portaria n.Q 120212002, de 07.03, referente a constituic;:ao da Comissao de Fiscalizac;:ao da Mediac;:ao; Despacho n.Q 196612002 (D.R., 2~ serie, 25.01.2002), sobre remunerac;:ao de mediadores que revoga, tacitamente, o Despacho n.Q 91212001 (D.R., 2!! serie, de 15.01), atento o regime do art.Q 7Q, n.Q 2, ultima parte do C.Civil. Regulamento Interno do Conselho de Acompanhamento e Regulamento de Nomeac;:6es de Jufzes de Paz, in D.R., 2~ serie, de 30.01.2002 ( que vieram a ter algumas alterac;:6es). E,

5 6 7 8 9

Art.Q Art.Q Art.Q Art.Q Art.Q

6Q e segs. 19Q 22Q 29Q 30Q

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regulamentando os servi<;:os de media<;:ao nos Julgados de Paz: Portaria n.Q 43612002, de 22.04 e Despacho do Secretario de Estado de Justi<;:a in D.R., 21! serie, de 24.04.2002 (materia, alias, a necessitar de ser reconsiderada, segundo creio ). As principais caracterfsticas dos Julgados de Paz vem reflectidas, designadamente, no art.Q 2Q da Lei n.Q 7812001: "1 - (... )

2 -Os procedimentos nos Julgados de Paz estao concebidos e sao orientados por prindpios de simplicidade, adequa<;:ao, informalidade, oralidade e absoluta economia processual." Entretanto, os Julgados de Paz entraram numa 21! fase, corn o alargamento das competencias territoriais dos quatro iniciais e a cria<;:ao e instala<;:ao de mais 8: a) Julgado de Paz do Agrupamento dos Concelhos de Aguiar da Beira e

Trancoso; b) Julgado de Paz do Agrupamento dos Concelhos de Cantanhede, Mira

e Montemor-o-Velho; c) Julgado de Paz do Concelho de Miranda do Corvo; d) Julgado de Paz do Concelho do Porto; e) Julgado de Paz do Agrupamento dos Concelhos de Santa Marta de Penaguiao, Alijo, Mur<;:a, Peso da Regua, Sabrosa e Vila Real; f) Julgado de Paz do Agrupamento dos Concelhos de Tarouca, Armamar, Castro Daire, Lamego, Moimenta da Beira e Resende; g) Julgado de Paz do Concelho de Terras de Bouro; h) Julgado de Paz do Concelho de Vila Nova de Poiares." E, assim, surgiu mais legisla<;:ao, designadamente, DL n.Q 14012003, de 02.07 e DL n.Q 9 I 2004, de 09 I 01; e Portarias das novas instala<;:6es e de regulamenta<;:ao: Portaria Portaria Portaria Portaria Portaria Portaria Portaria Portaria

n.Q 19212004, n.Q 19312004, n.Q 19412004, n. Q 195 I 2004, n.Q 289 I 2004, n.Q 32412004, n.Q 375 I 2004, n.Q 50212004,

de de de de de de de de

28102; 28102; 28102; 28 I 02; 20 I 03; 29103; 13 I 04; 10105;

V.2. Os Julgados de Paz, de acordo corn a legisla<;:ao vigente, pressup6em urn entendimento entre o Governo e as Autarquias interessadas. Digamos que, na cria<;:ao e instala<;:ao dos Julgados de Paz, esta previsto urn certo tipo de descentraliza<;:ao, de menos "Terreiro do Pa<;:o" que na generalidade da administra<;:ao judiciaria, o que creio ser salutar.

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Corn efeito, na linha dos arts. 4Q, 17Q e 19Q, prescreve o n. Q 3 do arU 64Q, todos da Lei n. Q 78/2001: "0 Governo celebrara corn as Autarquias da area ou areas das circunscri.;:oes previstas nos numeros anteriores protocolos relativos as instala.;:oes, equipamentos e pessoal de apoio necessarios a instala.;:ao dos projectos experimentais". Embora esta norma se reporte, directamente, a instala.;:ao dos 4 Julgados de Paz "experimentais", reflecte-se urn principio de coopera.;:ao entre a Administra.;:ao Central e a Administra.;:ao Local que tern estado na base da cria.;:ao e instala.;:ao de novos Julgados de Paz, atraves da celebra.;:ao de Protocolos. Efectivamente, na linha de coopera.;:ao autarquica, sao significativos os Protocolos celebrados entre o Ministerio da Justi.;:a e os Municfpios onde ha Julgados de Paz, de todos constando aquilo que e disponibilizado pela Administra.;:ao Central e o que o e pela Administra.;:ao Local, no concernente a meios humanos e materiais. Naturalmente, e tambem descrito o que compete ao Estado, o que se refere a horarios, etc. Neste momento, aguarda-se a celebra.;:ao de Protocolo da ja legalizada transforma.;:ao do Julgado de Paz de Oliveira do Bairro em Julgado de Paz do Agrupamento de Concelhos de Oliveira do Bairro, Agueda, Anadia e Mealhada. V.3. Actualmente, os Julgados de Paz so tern competencia declarativa dvel para ac.;:oes de valor ate a al.;:ada da 1~ instancia judicial, quanto as seguintes causas: a) Ac.;:oes destinadas a efectivar o cumprimento de obriga.;:oes, corn excep.;:ao das que tenham por objecto presta.;:ao pecuniaria e de que seja ou tenha sido credor originario uma pessoa colectiva; b) Ac.;:oes de entrega de coisas moveis; c) Ac.;:oes resultantes de direitos e deveres de condominos sempre que a respectiva assembleia nao tenha deliberado sobre a- ebrigateriedade de compromisso arbitral para a resolu.;:ao de litfgios entre condominos ou entre condominos e o administrador; d) Ac.;:oes de resolu.;:ao de litfgios entre proprietarios de predios relativos a passagem for.;:ada momentanea, escoamento natural de aguas, comunhao de valas, regueiras e valados, sebes vivas; abertura de janelas, portas, varandas e obras semelhantes; estilicidio, planta.;:ao de arvores e arbustos, paredes e muros divisorios; e) Ac.;:oes possessorias, usucapiao e acessao; f) Ac.;:oes que respeitem ao direito de uso e administra.;:ao da compropriedade, da superffcie, do usufruto, de uso e habita.;:ao e ao direito real de habita.;:ao periodica; g) Ac.;:oes que digam respeito ao arrendamento urbano, excepto as ac.;:oes de desejo;

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h) Ac<;:6es que respeitem a responsabilidade civil contratual e extra contratual; i) Ac<;:6es que respeitem a incumprimento contratual excepto contrato de trabalho e arrendamento rural; j) Ac<;:6es que respeitem a garantia geral das obriga<;:6es. Por exemplo, na alinea h) supra, cabe, ah~m do mais, problematica de acidentes de via<;:ao. Os Julgados de Paz sao, tambem, competentes para apreciar os pedidos de indemniza<;:ao civel quando nao haja sido apresentada participa<;:ao criminal ou ap6s desistencia da mesma, emergente de: a) b) c) d) e) f) g) h)

Ofensas corporais simples; Ofensa a integridade fisica por negligencia; Difama<;:ao; Injurias; Furta simples; Dano simples; Altera<;:ao de marcos; Burla para obten<;:ao de alimentos, bebidas ou servi<;:os.

A aprecia<;:ao de urn pedido de indemniza<;:ao civet nos casos referidos supra, preclude a possibilidade de instaurar o respectivo procedimento criminal. Creio que, enquanto nao ha Julgado de Paz de 2Q grau, os recursos deveriam ser interpostos para as Rela<;:6es (como nos casos dos Tribunais Arbitrais); e eventuais execu<;:6es de senten<;:as dos Julgados de Paz nao deveriam sobrecarregar os Tribunais Judiciais mas, sim, os pr6prios Julgados de Paz. Penso que, conforme ja aflorado, os Julgados de Paz, que nilo silo um subsistema, deveriam ser dotados, tambem de competencia executiva (pelo menos das suas pr6prias decis6es) e recurs6ria e, mesmo, competencia penal simples, corn base no modelo brasileiro dos Juizados Especiais e, no concernente a problematica penat sem aplicabilidade de prisao, privilegiando medidas de reinser<;:ao sociat como o trabalho a favor da comunidade ou outras medidas pedag6gicas semelhantes. Creio que, embora gradativamente, la chegaremos. Actualmente, os recursos sao interpostos para a 1" instancia judicial (o que me parece, claramente, inadequado ); bem como acontece que as consequentes execu<;:6es correm em Tribunal Judicial10 • V.4. Os Juizes de Paz nilo silo Magistrados Judiciais, mas silo Juizes coma, alias, acontece cam tantos outros casos, mutatis mutantis, inclusive corn a natureza de "supremos". 11 10

Arts. 62Q, n.Q 1 e 6Q, n.Q 2 da Lei n." 78/2001.

11

Ha Jufzes do Tribunal Constitucional, dos Administrativos e Fiscais, do de Contas, etc, que

sao Jufzes, mas nao sao Magistrados Judiciais.

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Os Jufzes de Paz, para se-lo, tern urn condicionalismo legal e devem realizar urn concurso publico, mediante avalia<;:ao curricular e provas publicas (salvo provas quanta a certos casos), devendo frequentar urn curso de forma<;:ao12' posto 0 que sao graduados. Face ao condicionalismo espedfico destes Meios Alternativos, os Juizes de Paz sao nomeados e empossados por urn Conselho proprio - o Conselho dos Julgados de Paz- que exerce o "poder disciplinar" - lato sensu -sabre os Jufzes de Paz; tern de acompanhar a cria<;:ao, instala<;:ao e funcionamento dos Julgados de Paz, recomendando, aos 6rgaos de Soberania, o que for caso disso. 13 V.S. No que concerne a processado, tudo e externamente simples, viabilizando-se que as causas sejam, em termos gerais, resolvidas em menos de 2 meses. 0 processado basta-se corn 3 momentos: - 0 dos articulados, que podem ser escritos ou verbais; - 0 da media<;:ao, que e voluntaria, isto e, s6 ocorre se ambas as partes quiserem; 0 da interven<;:ao do Juiz de Paz, concentrado num acto, a volta de uma mesa, sem becas, nem togas, incentivando os interessados ao autoencontro de solu<;:oes pacificadoras. E nao nos esque<;:amos de que, nos Julgados de Paz, nao ha ferias judiciais: justamente porque os Julgados de Paz sao Tribunais mas nao sao judiciais.

VI Tudo o que antecede leva-me a uma referenda a Justi<;:a Restaurativa. Hoje, quer o Conselho de Europa 14 , quer a Uniao Europeia15 propugnam a Justi9a Restaurativa, isto e, a que procura mais do que uma san<;:ao, a restaura<;:ao do equilfbrio, do relacionamento adequado entre os interessados, mais a

paz do que o rigoroso formal. A Justi<;:a Restaurativa e, a meu ve1~ seguramente, a essencia natural dos Julgados de Paz, e o caminho certo da nova fronteira da Justi<;:a. Por outro lado, a importancia dos Meios Alternativos de Resolu<;:ao de Diferendos e, hoje, tao importante, que o Tratado Constitucional para a Europa integrada na Uniao Europeia preconiza, entre o conjunto de materias reservadas para lei europeia ou lei-quadro europeia, o que respeite a "desenvolvimento de metodos alternativos de resolu<;:ao de litfgios" 16 . 12

Arts. 23 e 24 da Lei n.o 78/2001. Arts.Q 259 e 65Q da Lei n.Q 78/2001. 14 Recomenda~6es n.Q R (99) 20, do Comite de Ministros, de 15.09.1999; e (2001) 9, do Comite de Ministros, de 05.09.2001. 15 Decisao - Quadro, de 15.03.2001, do Conselho de U.E. 16 Art.Q 269Q n.O 2 g) da Parte III. 13

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E existe, corn voca<;ao europeia, numa mesma perspectiva, o Groupement Europeen des Magistrats pour la Mediation (G.E.M.M.E.), cuja iniciativa se deve aos Presidentes dos Supremos Tribunais (Cour de Cassation) da Fran<;a e da Belgica. Coerentemente, fa<;o parte deste OrganismoY Enfim, hoje, assiste-se a urn movimento generalizado no sentido de, recuperando orienta<;oes esponti'ineas e naturais de born senso, dar-lhes urn enquadramento legal tao pequeno quanto possivel, que constitua aquilo que deve ser uma nova imagem da Justi<;a, dando aos Cidadaos urn meio simples, tanto quanto possivel desformalizado, de alcan<;arem, mais do que o rigorismo legal, a restaura<;ao interior do seu bem estar perante aquilo que, diariamente, estraga a qualidade de vida. Naturalmente, nao podera ir-se por aqui quanto a todas as questoes. Mas, relativamente a muitas materias, assim e possivel e desejavel. Nao podemos cruzar os bra<;os. Ha que inventar ou reinventar solu<;oes. Por mim, vou por aqui.

Lisboa, 31 de Maio de 2004

17 Tern, ja, uma Sessao Portuguesa, organizada par ilustre Magistrada Judicial tambem Professora Convidada da Universidade Lusiada (Lisboa), Doutora Albertina Pereira.

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0 REGIME DO CONTRATO INDIVIDUAL DE TRABALHO DA ADMINISTRAc;AO PUBLICA E A CONSTITUic;AO PORTUGUESA Jorge Bacelar Gouveia



0 REGIME DO CONTRATO INDIVIDUAL DE TRABALHO DA ADMINISTRA<;AO PUBLICA E A CONSTITUI<;AO PORTUGUESA1

Jorge Bacelar Gouveia'

SUMARIO I - INTRODU<;Ao 1. 0 pedido presidencial de fiscaliza~ao preventiva da constitucionalidade. 2. 0 Ac6rdao nQ 155 I 2004 do Tribunal Constitucional. 3. 0 expurgo parlamentar e a Lei nQ 23 I 2004, de 22 de Junho 4. As quest6es sob analise no presente parecer. II - A CONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DA NULIDADE DO CONTRATO INDIVIDUAL DE TRABALHO 5. A diversidade argumentativa do princfpio do Estado de Direito e o regime da nulidade do contrato individual de trabalho. 6. A nulidade do contrato de trabalho e a seguran~a no emprego. 7. A nulidade do contrato de trabalho e os princfpios da seguran~a juridica e da protec~ao da confian~a. 8. A nulidade do contrato de trabalho e o princfpio da proporcionalidade Ill - A CONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DA CEDENCIA OCASIONAL DE TRABALHADORES. 9. A dignidade da pessoa humana, e as condi~6es de trabalho e o regime da cedencia ocasional de trabalhadores. 10. A preserva~ao do estatuto constitucional de pessoa no trabalhador ocasionalmente cedido. 11. A ausencia da caracteristica da intransmissibilidade da posi~ao contratual do empregador e o lugar paralelo do Direito do Trabalho. 12. A defesa dos direitos constitucionais dos trabalhadores na cedencia ocasional sem vontade expressa. 13. A cedencia ocasional dos trabalhadores sem vontade destes como solu~ao excepcional no tempo, nas circunstancias e nas finalidades. IV- CONCLUSOES 14. Enunciado das conclus6es

1 Parecer de Direito de 23 de Abril de 2004, elaborado a pedido da Presidencia do Conselho de Ministros, e posteriormente modificado para dar noticia do Acordiio n-" 155 I 2004 do Tribunal Constitucional, em resultado do pedido de fiscaliza<;iio preventiva requerido pelo Presidente da Republica. * Universidade Nova de Lisboa e da Universidade Lusfada de Lisboa

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I

INTRODU<;AO

1. 0 pedido presidencial constitucionalidade

de

fiscaliza~ao

preventiva

da

I. Ao abrigo do art. 278Q, nos 1 e 3, da Constituic;ao da Republica Portuguesa (CRP), bem como dos arts. 51 Q' nQ 1, e 57Q, nQ 1, da Lei sobre Organizac;ao, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, o Presidente da Republica pediu a intervenc;ao do Tribunal Constitucional na apreciac;ao preventiva da constitucionalidade de cinco preceitos do Decreto da Assembleia da Republica nQ 157 /IX - que aprovou o regime juridico do contrato individual de trabalho da Administrac;ao Publica - e que incidiu sobre estas disposic;6es: - a norma constante do artigo 7Q, nQ 4; - a norma constante do artigo 7Q, nQ 5; - a norma constante do artigo 8Q, nQ 3; - a norma constante do artigo lOQ, nQ 3; e - a norma constante do artigo 14Q, nQ 2. 11. Mas fe-lo corn fundamentos diversos, sendo aconselhavel agrupar tais normas em dois grandes conjuntos de quest6es de constitucionalidade:

- as questoes associadas a nulidade do contrato individual de trabalho, quando celebrado contrariando normas aplicaveis imperativas, em ligac;ao ao prindpio constitucional do Estado de Direito, nalgumas das suas vertentes; e

- as questoes associadas a ausencia da expressiio de vontade par parte dos trabalhadores nos casos em que a respectiva cedencia ocasional e decidida,

sendo esta admissive!, em ligac;ao ao prindpio constitucional da dignidade da pessoa humana, bem como aos direitos constitucionais atinentes a organizac;ao e as condic;6es de trabalho. 2. 0 Ac6rdao n Q 155/2004 do Tribunal Constitucional

I. 0 Tribunal Constitucional, em 16 de Marc;o de 2004, decidiu dar acolhimento as duvidas presidenciais apenas em parte, nos seguintes termos, tendo por referenda o articulado que, na sua essencia, viria a ser a Lei nQ 23 I 2004, de 22 de Junho 2 : a) Nao se pronunciar pela inconstitucionalidade da norma constante do nQ 4 do artigo 7Q, na parte em que determina a nulidade dos contratos de trabalho celebrados corn violac;ao do nQ 1 do mesmo artigo 7Q;

2

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Cfr. o Diririo da Republica, I Serie-A, n.Q 95, de 22 de Abril de 2004, p. 2461.

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0 regime do contrato individual de trabalho da adrninistrac;:ao publica .. ., p. 331-361

b) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade, por violac;ao do prine1p10 da proporcionalidade, da norma do nQ5 do artigo 7Q, na parte em que determina a nulidade do contrato de trabalho para a falta de autorizac;ao do Ministro das Financ;as quando o contrato envolva encargos corn remunerac;6es globais superiores aos que resultam da aplicac;ao dos regulamentos internos ou dos instrumentos de regulamentac;ao colectiva, mas apenas na medida em que comina a nulidade total do contrato; c) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade, por violac;ao do principio da proporcionalidade, da norma do nQ3 do artigo 8Qdo mesmo decreta, na parte em que determina a nulidade do contrato celebrado corn falta da referenda prevista na alinea g) do nQ2 do referido artigo 8Q; d) Nao se pronunciar pela inconstitucionalidade da mesma norma, na parte restante; e) Nao se pronunciar pela inconstitucionalidade da norma constante do nQ 3 do artigo lOQ do mesmo decreta; f) Nao se pronunciar pela inconstitucionalidade da norma constante do nQ 2 do artigo 14Q do mesmo decreta. 11. 0 entendimento do Tribunal Constitucional nao foi unanime, sendo possivel equacionar tres principais ordens de raz6es que concorreram para o resultado da decisao, para alem das varias declarac;6es de voto que propugnaram outras situac;oes de inconstitucionalidade: "Afigura-se que corn estas especialidades do regime da nulidade do contrato de trabalho, associadas a especifica consagrac;ao da responsabilidade civil dos titulares dos 6rgaos que na norma expressamente se estabelece, a que acresce, por forc;a do artigo 22Q da Constituic;ao e do regime de responsabilidade dos actos do Estado e demais pessoas colectivas ptiblicas por acto de gestao, se cumprem as exigencias do principio da proporcionalidade, designadamente cam o asseguramento de uma indemnizac;ao nao irris6ria no trabalhador" 3; " ... embora nao possa negar-se-lhe adequac;ao para compelir o trabalhador a uma espedfica tensao de vontade no sentido do respeito pela legalidade, a medida e excessiva, violando claramente os (sub )prindpios da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. Posto em equac;ao, mediante urn juizo de ponderac;ao, os meios (a invalidade total do contrato) e o fim (garantir a observil.ncia das re gras legais relativas ao regime retributivo e a boa gestao dos dinheiros ptiblicos ), e manifesto que o sacriffcio imposto ao trabalhador se apresenta como restringindo desnecessariamente a garantia de seguranc;a no emprego." 4;

3

Cfr. o Acordao n .2 155/2004 do Tribunal Constitucional, de 16 de Marc;:o de 2004, in Didrio da Republica, cit., p. 2458. 4 Cfr Acordao n .Q 155/2004 do Tribunal Constitucional, in Didrio da Republica, cit., p. 2459.

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- "Ora, nao estabelecendo o preceito quaisquer distin~oes, tambem corn esse fundamento a nulidade do contrato de trabalho, designadamente do contrato sem termo, pode ser invocada a todo o tempo. Esta consequencia do regime da nulidade nao pode deixar de ser considerada, quando ponderado o interesse que serve e o modo de o realizar corn os seus efeitos no piano da garantia constitucional da seguran~a no emprego, violadora do principio da proporcionalidade, nas vertentes do prindpio da necessidade e da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito." 5 3. 0 expurgo parlamentar e a Lei nQ 23/2004, de 22 de Junho I. Cumprindo as exigencias constitucionais aplicaveis depois de uma promincia do Tribunal Constitucional no sentido da inconstitucionalidade em sede de fiscaliza~ao preventiva, a Assembleia da Republica reapreciou o diploma e expurgou as normas consideradas inconstitucionais. Deu-se assim cumprimento a orienta~ao estabelecida pelo Tribunal Constitucional, possibilitando-se a promulga~ao presidencial e, sobretudo, nao fazendo naufragar de novo o diploma em sede de eventual fiscaliza~ao sucessiva da constitucionalidade.

H. Quanto ao resto, o diploma manteve-se inalterado e o Chefe de Estado entendeu por bem promulga-lo, diploma que foi publicado no Diario da Republica de 22 de Junho de 2004. A sua aprova~ao representa a adop~ao da contrata~ao em regime de contrato individual de trabalho na Administra~ao Publica, modernizando os esquemas de contrata~ao, que passam a ser encarados corn normalidade. A Lei nQ 23/2004 ficaria corn o seguinte articulado: Artigo 1Q - Objecto e ambito Artigo 2Q - Regime juridico Artigo 3Q - Empregadores publicos Artigo 4Q - Deveres especiais dos trabalhadores Artigo SQ - Processo de selec9iio Artigo 6Q - Pessoal de direc9iio e chefia em regime de contrato de trabalho Artigo 7' - Limites a contrata9iiO Artigo SQ - Forma Artigo 9Q - Termo resolutivo Artigo lOQ - Regras especiais aplicaveis ao contrato de trabalho a termo resolutivo - Artigo llQ - Regulamentos internos - Artigo 12Q - Tempo de trabalho nas pessoas colectivas publicas - Artigo 13Q - Niveis retributivos

-

5

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Cfr. Ac6rdao nY 155/2004 do Tribunal Constitucional, in Didrio da Reptiblica, cit., p. 2460.

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0 regime do contrato individual de trabalho da administra.;ao publica ..., p. 331-361

- Artigo 14Q - Cedencia ocasional de trabalhadores Artigo 15Q - Reduriio do periodo normal de trabalho ou suspensiio dos contratos de trabalho - Artigo 16Q - Sucessiio nas atribuiroes - Artigo 17Q - Extinriio da pessoa colectiva publica Artigo 18Q - Despedimento par reduriio de actividade Artigo 19Q - Convenri5es colectivas de trabalho - Artigo 20Q - Articulariio entre convenri5es colectivas Artigos 21 Q - Process a de negociariio Artigo 22Q - Aplicariio das convenroes colectivas - Artigo 23Q - Cedencia especial de funcionarios e agentes - Artigo 24Q - Extensiio do ambito da cedencia especial de funciondrios e agentes Artigo 25Q - Contrato de trabalho na administrariio directa - Artigo 26Q - Disposiroes finais e transit6rias Artigo 27Q - Norma de prevalencia Artigo 28Q - Alterari5es ao Decreto-Lei nQ 184/89, de 2 de Junho - Artigo 29Q - Alteraroes ao Decreto-Lei nQ 427/89, de 7 de Dezembro - Artigo 30Q - Revogari5es - Artigo 3P - Entrada em vigor 4. As questoes sob analise no presente parecer I. A economia do diploma que foi aprovado pela Assembleia da Republica

naturalmente que esta longe de se resumir as duvidas de inconstitucionalidade que foram elencadas, podendo dizer-se que estas sao normas laterais e que nao tocam no nucleo daquele novo regime ja aprovado. 0 que e essencial e a introdw;ao, no regime laboral da Administra~ao Publica, do contrato individual de trabalho como esquema geral. Nem sequer se pode dizer que o pedido de fiscaliza~ao da constitucionalidade tivesse atingido outros aspectos substantivos desse mesmo regime, como parece 6bvio se nos lembrarmos de dois que sao matriciais: - o da selec~ao dos trabalhadores; ou - o do circunstancialismo que permite o recurso aos contratos individuais de trabalho. 11. Claro que isto nao quer dizer que tal pedido de fiscaliza~ao nao possa ter reflexos negativos no percurso do diploma legislativo em causa, que assim naquele momento se submeteu a urn exame jurisdicional de constitucionalidade. E nossa missao demonstrar, de acordo corn a CRP que nos rege, que tais disposi~oes nao sao inconstitucionais, nao apenas considerando improcedentes os argumentos apresentados, como tambem aduzindo outras razoes que, identicamente, confirmam que esta avalia~ao de constitucionalidade pode ser transposta corn total sucesso, apesar da decisao do Tribunal Constitucional. Lusiada. Direito. Lisboa, n.Q 3 (2005)

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Nessa tarefa, e nftido que a doutrina portuguesa, constitucional e laboral, sera decisiva, o mesmo se dizendo, ate corn maior veemencia, da propria jurisprudencia do Tribunal Constitucional, dominio em que e abundante e, sobretudo, de grande qualidade, nao obstante alguns pantos de discordancia que se possa esporadicamente ter. Certamente que discordamos de algumas das votac;6es a que o Tribunal Constitucional chegou no ac6rdao que proferiu no ambito do pedido de fiscalizac;ao preventiva da constitucionalidade do diploma aprovado na Assembleia da Republica.

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A CONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DA NULIDADE DO CONTRATO INDIVIDUAL DE TRABALHO

5. A diversidade argumentativa do principio do Estado de Direito e o regime da nulidade do contrato individual de trabalho I. 0 primeiro grupo de questoes de constitucionalidade que se levantou no Tribunal Constitucional respeita a saber se a consequencia da nulidade, para urn contrato de trabalho mal celebrado e contnirio a norma imperativa, se mostra conforme ao texto constitucional. As normas em causa, que sao quatro, dispoem o seguinte:

- "A celebra<;ao de contratos de trabalho em viola<;ao do disposto no nQ 1 implica a sua nulidade e gera responsabilidade civil, disciplinar e financeira dos titulares dos orgaos que celebraram os contratos de trabalho" 6; "A celebra<;ao de contratos de trabalho que envolvam encargos corn remunera<;oes globais superiores aos que resultam da aplica<;ao de regulamentos internos ou dos instrumentos de regulamenta<;ao colectiva fica sujeita a autoriza<;ao do Ministro das Finan<;as, sob pena de nulidade do contrato" 7; "A nao redu<;iio a escrito ou a falta das referencias das alfneas a), b), c) e g) determinam a nulidade do contrato" 8; "A celebra<;iio de contratos de trabalho a termo resolutivo corn viola<;iio do disposto na presente lei implica a sua nulidade e gera responsabilidade civil, disciplinar e financeira dos titulares dos orgaos que celebraram os contratos de trabalho" 9• 11. A argumenta<;ao que e expendida no pedido de fiscaliza<;ao da constitucionalidade, no tocante ao primeiro tema, apoia-se em vaxios prindpios de Direito Constitucional, o primeiro especificamente aplicavel aos direitos laborais e os outros filiados no amplo prindpio do Estado de Direito, a saber:

- o prindpio da seguran<;a juridica no trabalho; - os prindpios da seguran<;a juridica e da protec<;iio da confian<;a; e - o prindpio da proporcionalidade. 6

Art. 7. 2, n.2 4, do Regime Juridico do Contrato Individual de Trabalho da Administrac;ao Publica (RJCITAP). 7 Art. 7. 2, n. 2 5, do RJCITAP. 8 Art. 8. 2, n. 2 3, do RJCITAP. 9 Art. 10.2, n. 2 3, do RJCITAP.

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Ill. A suposta viola<;ao do primeiro destes princfpios reside, relativamente dos contratos de trabalho que violem normas imperativas, na " ... determina<;ao da consequencia da nulidade dos contratos de trabalho sem a simultanea previsao de quaisquer garantias para os trabalhadores envolvidos ou, no minimo, sem a previsao de quaisquer compensa<;6es ... " e, por isso, " ... constitui, do ponto de vista dos direitos e expectativas desses trabalhadores, uma consequencia claramente excessiva ou mesmo inaceitavel" 10 • Dai que o Presidente da Republica entenda que, corn a possibilidade de o contrato de trabalho, que celebraram em inteira boa-fe, " ... a qualquer momento vir a ser considerado nulo", se provoca o efeito de afectar, " .. .irremediavelmente, uma vez que nao se preveem quaisquer mecanismos de protec<;ao ou salvaguarda dos direitos laborais dos trabalhadores afectados, as garantias do seu emprego" 11 •

a nulidade

IV. Mas a argumenta<;ao presidencial tambem vai no sentido de ter havido a viola<;ao da CRP no piano dos princfpios constitucionais da seguran<;a juridica e da tutela da confian<;a, identicamente reflectidos no princfpio constitucional da seguran<;a no emprego, na medida em que a admissibilidade deste regime de nulidade traria o nefasto efeito da precariza<;ao do trabalho, corn o resultado: - tanto da viola<;ao dos sub-princfpios da seguran<;a juridica e da protec<;ao da confian<;a insitos no Estado de Direito, concretizados no princfpio da seguran<;a no emprego, porque " ... uma rela<;ao laboral estabilizada e que s6 poderia cessar nos termos e condi<;6es legalmente previstos para a cessa<;ao do contrato de trabalho fica significativamente precarizada, ja que a qualquer momento, verificada a falta de procedimento, forma ou men<;ao exigidas naquelas disposi<;6es, se ve incondicional e drasticamente afectada pela consequencia de nulidade em termos corn que os trabalhadores (... ) nao podiam razoavelmente contar" 12 ; - como da viola<;ao da garantia de seguran<;a no emprego porque esta nao pode ser restringida corn preteri<;ao do princfpio da proporcionalidade " ... na medida em que vem a ser objectivamente penalizado, e da forma mais drastica, ou seja, perdendo o emprego, por factos de que nao e responsavel, nao controla nem podia conhecer... ", pelo que " ... a saru;iio da nulidade dos contratos de trabalho, tal como esta prevista para produzir efeitos do lado do trabalhador afectado, e, em quaisquer destas circunstancias, uma sanr;iio desrazoavel, desproporcionada e nao indispensavel para garantir a prossecu<;ao do interesse publico" 13 •

° Cfr.

1

11 12

13

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a peti~ao do Cfr. a peti<;ao do Cfr. a peti<;ao do Cfr. a peti<;ao do

Presidente Presidente Presidente Presidente

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Republica, Republica, Republica, Republica,

p. p. p. p.

2. 3. 3. 5.

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V. Discordamos da aptidao destes prinCipws constitucionais invocados para abalar a constitucionalidade das transcritas normas do Decreta nQ 157 I I IX, o que justifica, pm·em, a ana]ise separada de cada urn dos seguintes t6picos: o regime da nulidade do contrato individual de trabalho e o principio da seguran<;a no emprego; o regime da nulidade do contrato individual de trabalho e os principios da seguran<;a juridica e da protec<;ao da confian<;a; e o regime da nulidade do contrato individual de trabalho e o principio da proporcionalidade.

6. A nulidade do contrato de trabalho e a seguran<;a no emprego I. 0 primeiro dos principios que foi invocado e 0 da seguran<;a no emprego, o qual se afigura constitucionalmente essencial e que e, ao mesmo tempo, enformador da ideia de Constitui<;ao, naturalmente muito tributaria das singularidades que importa reconhecer aos trabalhadores, atraves dos seus direitos 14 • Urn desses preceitos vem precisamente a ser o da seguran<;a no emprego, de acordo corn essa mesma epigrafe, no qual se afirma, solenemente, o seguinte: "E garantida aos trabalhadores a seguran<;a no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos politicos ou ideol6gicos" 15 • Tal coma a doutrina e a jurisprudencia tern referido, dai deriva urn importante feixe de regras, que limitam a liberdade do legislador e tambem comprimem a autonomia contratual, em defesa da posi<;ao, social e economicamente assimetrica, do trabalhador frente ao empregador 16, corn estes corolarios:

a proibi<;ao dos despedimentos sem justa causa; a proibi<;ao dos despedimentos por razoes politicas ou ideol6gicas; 14 Quanto ao sentido da Constitui.;ao Pm·tuguesa do Trabalho, v., de entre outros, J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Fzmdamentos da Constitui~iio, Coimbra, 1991, pp. 111 e 112, e Constitui~iio da Republica Portuguesa anotada, 3" ed., Coimbra, 1993, pp. 107 e ss., e pp. 284 e ss.; ANT6NIO MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito do Trabalho, Coimbra, 1991, pp. 137 e ss.; ANT6NIO MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, I, 9' ed., Coimbra, 1994, pp. 56 e ss.; MARCELO REBELO DE SOUSA e JOSE DE MELO ALEXANDRINO, Constitui~iio da Repziblica Portuguesa comentada, Lisboa, 2000, pp. 156 e ss.; PEDRO ROMANO MARTINEZ, A Constitui~iio de 1976 eo Direito do Trabalho, in AAVV, Nos 25 Anos da Constitui~iio da Reptiblica Portuguesa de 1976- Evolu~iio Constitucional e Perspectivas Futuras, Lisboa, 2001, pp. 151 e ss., e Direito do TI·abalho, Coimbra, 2002, pp. 158 e ss.; JORGE BACELAR GOUVEIA, 0 C6digo do Traballw e a Constitui~iio Portuguesa, Lisboa, 2003, pp. 27 e ss. 15 Art. 53.Q da Constituio;ao da Republica Portuguesa (CRP). 16 Quanto a densifica<;ao constitucional deste princfpio da seguran<;a no emprego previsto na CRP, v. JOSE JOAQUIM GOMES CANOTILHO e JORGE LEITE, A inconstitucionalidade da lei dos despedimentos, Coimbra, 1988, pp. 24 e ss.; JOSE JOAO ABRANTES, Segurmu;a no emprego e justa causa no despedimento, in Estudos de Direito do Trabalho, Lisboa, 1992, pp. 102 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constitui~iio ... , pp. 285 e ss.; MARCELO REBELO DE SOUSA e JOSE DE MELO ALEXANDRINO, Constitui~iio ... , pp. 156 e 157; JORGE BACELAR GOUVEIA, 0 C6digo do TI·abalho ... , pp. 63 e ss.

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a limita<;iio das situa<;6es de trabalho predrio, seja na dura<;iio do vinculo, seja na estabilidade do vinculo. 11. Percebe-se que o ponto de partida, para sustentar a inconstitucionalidade destas quatro normas, reside na conexiio da nulidade corn o principio da seguran<;a no emprego. A logica subjacente, numa acep<;iio adjectiva, seria esta: o contrato de trabalho, por mais ilegal, ilfcito ou antijurfdico que fosse, nunca poderia ser nulo, por tal fazer perigar a seguran<;a no emprego dos trabalhadores, pois que se traduziria no desaparecimento do vinculo laboral que o trabalhador teria obtido. Corn a devida venia, eis urn entendimento que niio se nos afigura viavel: a consequencia da nulidade do contrato de trabalho e exactamente isso mesmo, ou seja, urn resultado para a violac;iio de urn bloco de juridicidade que se entende clever subordinar o contrato de trabalho. Ill. 0 aspecto que parece ser essencial focar e o de que o regime da nulidade do contrato individual de trabalho consiste numa san<;iio absolutamente apropriada por ter havido a violac;iio de normas imperativas aplidveis. Niio e esquisito nem esdruxulo que o legislador, cioso da legalidade laboral, fulmine corn a nulidade contratos que ponham em causa normas que repute fundamentais na organiza<;iio e no funcionamento da Administrac;iio Publica do ponto de vista da sua polftica de contratac;oes laborais. De resto, essa e a propria regra do Direito Privado, em cujos termos vigora como vector o de que a viola<;iio de normas imperativas acarreta a nulidade dos contratos, como se pode ler no Codigo Civil (CC): "E nulo o negocio jurfdico cujo objecto seja ffsica ou legalmente impossfvel, contrario a lei ou indeterminavel"17. 0 mesmo se pode dizer do proprio Direito do Trabalho, que igualmente estabelece a invalidade do contrato ou das respectivas clausulas quando ocorra a viola<;iio de normas imperativas18 . IV. Num caso como no outro, embora se esteja em face de urn fenomeno contratual corn a interven<;iio de pessoas colectivas de Direito Publico, tern todo o sentido que se possa aplicar aquele regime do Direito do Trabalho, niio estando as entidades publicas no ambito de uma situac;iio de autoridade, surgindo ate urn Direito Privado Adrninistrativo laboral. Tal quer significar que niio parece que o regime da nulidade possa ser, em si mesmo, objecto de qualquer discussiio, pois que vem a ser ele o paradigma adoptado - e af e absolutamente absorvido - por esta nova legisla<;iio do contrato individual de trabalho. 17 18

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Art. 280.Q, n.Q1, do C6digo Civil (CC). Cfr. os arts. 114.Qe ss. do C6digo do Trabalho (CT).

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Nem sequer se vislumbra alternativa a viola~ao de normas aplicaveis a actos jurfdicos violadores do Direito para alem da modula~ao que e oferecida pela teoria dos desvalores dos actos antijurfdicos, oscilando entre a inexistencia jurfdica - que e apenas para actos muito graves - e a invalidade, a qual pode desdobrar-se na nulidade e na anulabilidade. V. Uma outra via argumentativa que se poderia preconizar colocaria em xeque a op~ao do legislador no tocante a necessidade de fazer depender a validade dos contratos individuais de trabalho do respeito por certas normas. 0 problema ja nao seria apenas de cunho adjectivo, no tocante ao teor das consequencias que fossem produzidas contra Direito imperativo, mas diria sobretudo respeito ao facto de o legislador ter supostamente exagerado nas exigencias quanta ao conjunto de requisitos de validade dos contratos laborais por alusao a certas normas aplicaveis. Contudo, da sua observa~ao, nao se retira qualquer incongruencia ou excesso, sendo ate muito positivo que a Administra~ao Publica, nas suas contrata~6es, enfrente regras claras, corn san~6es claras, no caso de as violar. Todos os requisitos de validade dos contratos individuais de trabalho da Administra~ao Publica nao sao caprichosos ou disparatados - antes correspondem a uma preocupa~ao seria de rigor e de disciplina, definindo afinadamente a margem de actua~ao de cada uma das partes, numa evidente inten~ao de seguran~a quanta ao Direito aplicavel e quanto as consequencias da respectiva preteri~ao. Alias, e justi<;a seja feita, e o proprio Presidente da Republica que indirectamente o reconhece no pedido de fiscaliza~ao preventiva que formula: "Percebe-se nestas disposi~6es uma inten~ao de responsabiliza~ao dos titulares dos 6rgaos que procederam a celebra~ao de contratos de trabalho corn preteri~ao dos requisitos legais ... " 19 • VI. Quer isto tudo dizer que a seguran~a no emprego nao se destina a corrigir ou suavizar o regime dos desvalores dos actos laborais que sejam contrarios as normas imperativas aplicaveis. De resto, a consequencia da nulidade, que e justamente temperada no Direito do Trabalho, afigura-se mesmo inevitavel, a bem da protec~ao da juridicidade. Nem se pode esquecer a importancia da existencia de normas de Direito Publico, corn porventura acrescidas exigencias de conformidade jurfdica, nomeadamente atraves da teoria das invalidades em Direito Constitucional. A seguran~a no emprego, orienta~ao constitucional firme e operativa, nada vale na preserva~ao de algo que nunca alcan~aria urn patamar mfnimo de juridicidade, pois que sofrendo de urn mal realmente congenito.

19

Cfr. a peti.;ao do Presidente da Republica, p. 2.

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S6 se ao preceito constitucional se pudesse atribuir os poderes magicos de transformar ou "ressuscitar" actos juridicos inicialmente desvaliosos, em nome da defesa de valores de obscura pertinencia. Mas nao consta que o texto constitucional tenha conferido esses poderes magicos aquele espedfico inciso, sob pena da total subversao da Ordem Juridica e do total descontrolo da definic;ao do bloco da juridicidade que vincula a Administrac;ao Publica e os cidadaos. Se assim fosse, uma porta para o abismo drasticamente se abriria: bastaria que a Administrac;ao Publica contratasse ilegalmente e, assim, viesse a garantir a prevalencia de condutas objectivamente contrarias a Direito superior imperativo. Seria a dissoluc;ao do Estado de Direito e da vinculac;ao da Administrac;ao Publica ao Direito. Eis urn resultado que certamente ninguem deseja.

7. A nulidade do contrato de trabalho e os prindpios da jurfdica e da protec~ao da confian~a

seguran~a

I. 0 segundo argumento, no tocante a putativa inconstitucionalidade do regime da nulidade do contrato individual de trabalho, traz a colac;ao 0 prindpio do Estado de Direito 20, nas suas vertentes da seguranc;a juridica e da tutela da confianc;a. Deste modo, verifica-se que a argumentac;ao que defende a inconstitucionalidade do regime da nulidade do contrato de trabalho - provavelmente agora numa feic;ao mais substantiva - incide sobre o dramatismo desta consequencia, considerando-a violadora dos prindpios constitucionais da seguranc;a juridica e da protecc;ao da confianc;a. Salvo o devido respeito, e entendimento que nao resiste a uma apreciac;ao critica, na certeza de que sao dimensoes distintas do prindpio do Estado de Direito e que, por isso mesmo, nao devem ser confundidas.

11. Quanto ao prindpio da seguranc;a juridica, que a doutrina e a jurisprudencia tern densificado a partir do generico prindpio do Estado de Direito, assinala-se a necessidade de as pessoas se submeterem a fontes normativas que conhec;am, podendo conformar as suas condutas segundo orientac;oes previamente publicitadas.

20

Sobre o principio do Estado de Direito em geral, de entre muitos outros contributos, v. J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituit;iio ... , pp. 61 e ss.; JORGE BACELAR GOUVEIA, 0 estado de except;iio no Direito Constitucional, Coimbra, 1998, vol. I, pp. 96 e ss., e vol. II, pp. 1463 e ss.; MARCELO REBELO DE SOUSA e JOSE DE MELO ALEXANDRINO, Constituit;iio ... , pp. 72 e 73; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, IV, 3' ed., Coimbra, 2000, pp. 195 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituit;iio, 6' ed., Coimbra, 2002, pp. 243 e ss.

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Por outra parte, tambem este princfpio costuma acolher a necessidade tanto do pre-efeito das leis como - e essencialmente - da proibi~ao de retroactividades mais drasticas, que sejam intoleraveis. Alem disso, ainda se pode exigir a utiliza~ao, em certos ramos do Direito mais sensfveis para as pessoas, de mecanismos de Direito estrito - nao de Direito flexfvel - que melhor possam domar o ambito da interven~ao do poder publico. HI. A leitura do regime da nulidade do contrato de trabalho nao permite encontrar situa~6es que venham a colidir com estes princfpios. Uma das raz6es que e apresentada prende-se com o facto de o "bloco da legalidade" do contrato individual de trabalho nao poder ser inteiramente conhecido por parte do trabalhad01~ uma vez que dele tambem fazem parte tanto normas regulamentares e colectivas como despachos administrativos. Todavia, convem nao esquecer que nenhum destes actos esta propriamente isento de um clever geral de publica~ao no Didrio da Republica, de acordo com as relevantes normas da Lei nQ 74/98, de 11 de Novembro. A sua analise permite, rigorosamente, perceber que estes actos, que integrarao o bloco da legalidade contratual, estao sempre sujeitos a um clever de publica~ao. IV. E certo que podemos encontrar diferentes graus de dificuldade no acesso ao Didrio da Republica, conforme haja instrumentos de comunica~ao electr6nica ou nao, conforme se tenha 0 habito de 0 ler todos os dias ou nao, conforme se seja alfabetizado para o ler ou haja a necessidade de pedir a alguem que o leia para a pessoa interessada. So que em nenhum destes casos a maior dificuldade de acesso as fontes publicadas no Didrio da Republica legitima o seu desconhecimento 21 • A este prop6sito, nao deixa o CC de ser bem claro: "A ignorancia ou ma interpreta~ao da lei nao justifica a falta do seu cumprimento nem isenta as pessoas das san~6es nela estabelecidas" 22 • V. Poderia ainda julgar-se pertinente invocar a circunstancia de a legalidade administrativa, quando atinente aos aspectos laborais, ser mais exigente no plano da intensidade da sua publicidade, ate incluindo deveres especiais de informa~ao aos trabalhadores que eventualmente se candidatassem no respectivo procedimento de selec~ao. Mas nao parece que se possa reclamar esse adicional esfor~o de publicita~ao, que tambem nao e exigido no plano do Direito do Trabalho, em cujos termos se estabelecem normas especfficas.

A unica excepc;ao e aplicavel em Direito Penal, em materia de consciencia da ilicitude, o que nao tem, p01¡em, qualquer interesse para o caso vertente. 22 Art. 6.Q do CC. 21

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Cumpre ainda nao esquecer que e o proprio Regime Juridico do Contrato Individual de Trabalho da Administra~ao Publica (RJCITAP) a estabelecer alguns deveres espedficos de informa~ao, que precisamente pretendem atalhar a este problema23 • VI. 0 prindpio da tutela da confian~a implica que as rela~6es entre os cidadaos e a Ordem Juridica levem em considera~ao a cria~ao de expectativas, que sao desejos quanta a perdurabilidade de urn conjunto de situa~6es e comportamentos, acreditando-se na estabilidade das normas e criando-se urn sentimento de previsibilidade das altera~6es futuras. Sao depois varias as refrac~6es espedficas deste valor da tutela da confian~a tanto nas rela~6es contratuais interpessoais como nas rela~oes institucionais entre os cidadaos e a Administra~ao Publica. Neste particular, numa disposi~ao inovadora, o proprio Codigo do Procedimento Administrativo, na revisao de que foi alvo em 1996, veio ate estabelecer urn preceito real~ando o prindpio da boa fe, onde se integra esta dimensao da confian~a, dizendo o seguinte: "No exerckio da actividade administrativa e em todas as suas formas e fases, a Administra~ao Publica e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa fe", depois se especificando que "No cumprimento dos numeros anteriores, devem ponderar-se os valores fundamentais do Direito, relevantes em face das situa~6es consideradas e, em especial: a confian~a suscitada na contraparte pela actua~ao em causa ... " 24 . que se estabelece entre a Administra~ao Publica e o cidadao trabalhador que venha a ser contratado em nada fica beliscada pela considera~ao da nulidade do contrato de trabalho por viola~ao de norma imperativa. A actua~ao da Administra~ao Publica, nao obstante a sensa~ao que possa ter gerado quanta a viabilidade da contrata~ao, que depois se frustra, jamais pode ser imune ao desrespeito por normas que se imp6em abstractamente ou que derivem de uma directa imposi~ao legal, a que todas as partes envolvidas tern acesso e, mais importante do que isso, tern de cumprir. 0 enfoque posto na tutela da confian~a esta deslocado: o problema nao e o da quebra da confian~a por aparecer urn regime de nulidade, que se imp6e por si proprio; o problema e, sim, o de a conduta da Administra~ao Publica ter eventualmente induzido em erro o trabalhador, criando-lhe a fic~ao de que tudo estaria dentro da legalidade aplicavel. VII. Simplesmente, a

confian~a

VIII. Assim sendo, a dificuldade tambem nao esta no regime da nulidade do contrato de trabalho, mas esta na puni~ao do comportamento da Administra~ao Publica, que eventualmente pode ter sido dolosa ou negligente quanta a informa~6es que devesse dar a respeito da legalidade contratual ou a expectativas entretanto criadas. 23 24

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Cfr. o art. S.Q, n.Q 6, do RJCITAP. Art. 6.Q-A do C6digo do Procedimento Administrativo.

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So que isso nos transporta para uma outra questao, vizinha desta, a qual, porem, ja nao esta relacionada corn o regime da nulidade do contrato de trabalho: a responsabilidade da Administra~ao Publica que tenha criado a erronea convic~ao, junto do trabalhador, de que tudo estaria bem, nas suas diversas cambiantes. Agora faz sentido reivindicar a protec~ao do trabalhador, exteriormente ao regime da nulidade, que deve funcionar nos termos vamos analisar. IX. E que tal protec~ao esta directamente referida no RJCITAP na hipotese em que se admita a provoca~ao de danos na contrata~ao contra-legem de trabalhadores por parte da Administra~ao Publica, ainda que agindo ao abrigo do Direito Privado. Olhando para a realidade das coisas, nao custa perceber a possibilidade de danos que certos trabalhadores possam vir a sofrer corn a celebra~ao de urn contrato de trabalho que venha a ser considerado nulo. E ate pode dar-se o caso de essa situa~ao ter sido intencionalmente criada por parte da Administra~ao Publica, enganando o trabalhador, embora seja mais provavel que se fique a clever a simples negligencia na condu~ao da respectiva polftica de recursos humanos. Por conseguinte, o proprio RJCITAP expressamente preve mecanismos de responsabilidade dos titulares dos orgaos das pessoas colectivas que tenham promovido ou participado em contrata~6es ilegais e que tenham o dramatico desfecho da invalidade dos respectivos contratos de trabalho. Do lado da Adrninistra~ao Publica, estamos em face da viola~ao de urn clever de boa administra~ao, que neste caso assume urn contorno mais especifico, o qual consiste na viola~ao do principio da legalidade, em que naturalmente assenta a respectiva actividade. X. Mas a preocupa~ao maior, se a puni~ao por instrumentos de responda Administra~ao Publica se justifica, radica na compensa~ao do trabalhador, que repentinamente ve extinto o seu vinculo laboral, sendo certo que alguns instrumentos de responsabilidade so podem ser vistos da optica interna, como sucede corn a responsabilidade disciplinar. Contudo, a ausencia, neste contexto normativo, de uma norma que explicitamente imponha urn mecanismo de responsabilidade da Administra~ao Publica a favor do trabalhador atingido em caso algum significa a ausencia de tal mecanismo, que pode funcionar, verificando-se os respectivos pressupostos, a beneficia do ex-trabalhador: por urn lado, da fraseologia utilizada no Decreto nQ 157 /IX, chega-se sempre a urn resultado que bem acomoda a responsabilidade civil da Adrninistra~ao Publica a favor do ex-trabalhador, assim como ela vai funcionar dentro da propria Administra~ao, na rela~ao entre o funcionario ou agente responsavel e a pessoa colectiva em questao; por outro lado, numa actua~ao ao abrigo do Direito Privado, a responsabilidade civil, genericamente prevista no CC, e plenamente operativa, sabiliza~ao

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para alem de ainda contar corn uma orienta~ao constitucional especffica, no art. 22Q da CRP, em que directamente se imp6e o princfpio da responsabilidade civil do poder administrativo.

8. A nulidade do contrato de trabalho e o princ:ipio da propordonalidade I. 0 ultimo dos princfpios constitucionais gerais invocados para defender a inconstitucionalidade do regime da nulidade do contrato individual de trabalho afere-se em fun~ao da preteri~ao de uma medida de proporcionalidade, que aflora no princfpio do Estado de Direito e em algumas outras normas constitucionais, sobretudo no regime da restri~ao dos direitos, liberdades e garantias 25 • 0 princfpio da proporcionalidade26, que recebe a sua fun~ao existencial na tensao entre o poder e a liberdade, traduz-se numa limita~ao interna das providencias publicas ablativas das posi~6es dos cidadaos, nos seguintes termos:

- aplicando as providencias que sejam adequadas em rela~ao ao fim que se pretende atingil~ normativamente assinalado; - seleccionando as providencias, perante a urn leque plural das mesmas, que produzam os efeitos menos gravosos nas pessoas destinatarias, sem obliterar a eficiencia da medida por alusao a finalidade que se quer alcan~ar; e - sopesando os custos e os beneffcios de uma interven~ao ablativa, de molde a nao fazer so~obrar a interven~ao publica numa solu~ao que seria sempre excessiva e desrazoavel. H. Diferentemente do que se pretende fazer ere~ a escolha do regime da nulidade do contrato individual de trabalho nao se afigura violadora do princfpio da proporcionalidade, dada a especial configura~ao que assume no Direito do Trabalho. Daf que nos pare~a que esta medida da nulidade do contrato individual de trabalho seja inteiramente conforme as exigencias constitucionais que nesta materia consideramos pertinentes, de acordo corn os termos em que ela e dogmaticamente concebida no campo especffico deste ramo especial do Direito Privado.

25 Quanto ao regime da restri~ao dos direitos, liberdades e garantias em geral, v. J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Fundamentos ... , pp. 133 e ss., e Constituifiio ... , pp. 144 e ss.; JORGE BACELAR GOUVEIA, Os direitos fundamentais atfpicos, Lisboa, 1995, pp. 455 e ss., e Regula9iio e limites dos direitos fundamentais, in Novas Estudos de Direito Ptiblico, II, Lisboa, 2002, pp. 101 e ss.; MARCELO REBELO DE SOUSA e JOSE MELO ALEXANDRINO, Constitui9iio ... , pp. 98 e 99; JORGE MIRANDA, Manual..., IV, pp. 328 e ss.; JOSE CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamwtais na Constitui9iio Portuguesa de 1976, 2' ed., Coimbra, 2001, pp. 288 e ss.; J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional ..., pp. 448 e ss. 26 Sobre o sentido do principio da proporcionalidade, v. as indica~6es bibliograficas de JORGE BACELAR GOUVEIA, 0 estado de excep9iio ... , II, pp. 825 e ss.

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0 regime do contrato individual de trabalho da administra.;:ao publica .. ., p. 331-361

III. No ambito do Direito do Trabalho, a invalidade do contrato de trabalho assume uma singular configurac;ao, precisamente em nome da necessidade de este sector juridico - sendo esse urn dos motivos para ter a sua autonomia dogmatica bem definida - reflectir os especiais interesses que lhe estao subjacentes, a defesa do trabalhador contra a primazia factica da entidade patronal. Corn efeito, sao facilmente detectaveis particularidades que aqui ocorrem e que devem levar em considerac;ao o mundo especifico do fenomeno do trabalho subordinado. Estamos naturalmente a pensar nas consequencias concretas que recaem sobre os trabalhadores que, abruptamente e sem que para tanto tenham contribufdo, deparem corn a nulidade do seu contrato individual de trabalho, situac;ao tanto mais grave quanto maior tiver sido o perfodo de trabalho prestado a entidade patronal. Pergunta-se: justifica-se, neste caso, que a nulidade do contrato individual de trabalho, como e proprio da teoria das invalidades do Direito Civil, venha a apagar todo o passado, corn a devoluc;ao das remunerac;6es auferidas, sendo certo que nao e mais possfvel devolver 0 trabalho materialmente realizado? IV. Certamente que nao. 0 Direito do Trabalho, na construc;ao que tern elaborado, tern precisamente assinalado como aspecto essencial o desvio das suas invalidades em relac;ao as invalidades concebidas no Direito Civil. Neste caso, o principio geral e o de que a invalidade determina que se extingam todos os efeitos produzidos pelo acto antijurfdico, havendo o dever de tudo fazer para a reconstituic;ao da situac;ao que existiria se nao tivesse havido o acto inv<Hido. Como se disp6e no CC, "Tanto a declarac;ao de nulidade como a anulac;ao do negocio tern efeito retroactivo, devendo ser restitufdo tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituic;ao em especie nao for possfvel, o valor correspondente" 27 • No Direito do Trabalho, ao inves, a invalidade so opera para o futuro 28, o que se percebe da leitura dos pertinentes preceitos do Codigo do Trabalho (CT), de que cumpre evidenciar o seguinte: "0 contrato de trabalho declarado nulo ou anulado produz efeitos como se fosse valido em relac;ao ao tempo durante o qual esteve em execuc;ao" 29 • Por aqui se verifica que estamos em face de urn regime diverso de invalidade, o qual leva congenitamente em considerac;ao a especial idiossincrasia do Direito do Trabalho.

Art. 289.Q, n.Q 1, do CC. Quanto as particularidades que o Direito do Trabalho postula nesta materia, v. ANT6NIO MENEZES CORDEIRO, Manual ... , pp. 648 e ss.; BERNARDO XAVIER, Curso de Direito do Trabalho, Lisboa/Sao Paulo, 1992, pp. 420 e 421; PEDRO ROMANO MARTfNEZ, Direito ..., pp. 419 e ss. 29 Art. 115.Q, n.Q 1, do CT. 27

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V. Ora, e essa a solw;ao que tambem consta do Decreta nQ 157 I IX, embora nao estejamos perante qualquer alusao espedfica na conforma<;ao dos efeitos da nulidade que nele se preve. Esta conclusao decorre da clausula de aplica<;ao subsidiaria do CT, que aqui encontra urn dos seus mais relevantes exemplos: o regime diverso dos efeitos da nulidade dos contratos de trabalho. E exactamente isso o que disp6e o art. 2Q, nQ 1, do RJCITAP, em que se fixa tal orienta<;ao de subsidiariedade: "Aos contratos de trabalho celebrados por pessoas colectivas publicas e aplicavel o regime do C6digo do Trabalho e respectiva legisla<;ao especial corn as especificidades constantes da presente lei". 0 que se observa, entao, nos contratos individuais de trabalho, e que os efeitos da nulidade sempre preservarao as situa<;6es passadas, corn a curiosa caracteristica de apenas se projectarem para o futuro, numa situa<;ao bastante singular no contexto da teoria dos valores negativos do acto antijurfdico.

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Ill A CONSTITUCIONALIDADE DO REGIME DA CEDENCIA OCASIONAL DE TRABALHADORES

9. A dignidade da pessoa humana, as condi~oes de trabalho e o regime da cedencia ocasional de trabalhadores I. 0 outro grande tema do pedido de fiscalizac;ao preventiva da constitucionalidade apresentado pelo Presidente da Republica e o do regime da cedencia ocasional de trabalhadores no ambito da Administrac;ao Publica. Neste sentido, a argumentac;ao expendida concentra-se numa unica norma que se julga ser inconstitucional, corn base na desnecessidade da vontade expressa do trabalhador na consumac;ao da cedencia ocasional. 0 preceito em causa estabelece o seguinte: "No quadro da colaborac;ao entre pessoas colectivas publicas, a cedencia nao exige o acordo do trabalhador se for fundamentada em necessidades prementes das entidades envolvidas ou em raz6es de economia, eficacia e eficiencia na prossecuc;ao das respectivas atribuic;6es" 30 •

11. No tocante a esta materia da cedencia ocasional de trabalhadores sem a vontade expressa destes, afirmam-se raz6es igualmente tributarias de urn prindpio constitucional central, desta feita o prindpio da dignidade da pessoa humana3\ que depois se plasma, mais especificamente, na garantia constitucional da organizac;ao do trabalho em condic;6es socialmente dignificantes. A ideia fundamental e a de que a desnecessidade da vontade do trabalhador na cedencia ocasional implicaria a degradac;ao do seu estatuto a uma "coisa": "A mer a possibilidade legal de urn trabalhador poder, sem o seu acordo, ser cedido, coma se de uma mercadoria se tratasse, a uma outra pessoa colectiva diferente daquela corn que celebrou urn contrato de trabalho, parece configurar urn exemplo de escola desse tipo de violac;ao" 32•

Art. 14.Q, n .Q 2, do RJCITAP. Sobre o p rincipio da dignidade d a pessoa humana, v., de entre muitos outros, MANUEL DUARTE COMES DA SILVA, Es bo~o de uma con cep~iio personalista do Direito, Lisboa, 1965, pp. 115 e ss.; A. CASTANHEIRA NEVES, A revolu ~iio e o Direito, Lisboa, 1976, pp. 52 e ss.; PETER HABERLE, Das Menschenbild im Verfassungss taat, Berlin, 1988; JORGE BACELAR GOUVEIA, 0 estado de excepfiio ..., II, pp. 1478 e ss.; JORGE MIRANDA, Manual .. ., IV, pp. 180 e ss.; JOSE CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais ... , pp. 93 e ss. 32 Cfr. a peti<;ao do Presidente da Republica, p. 6. 30

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Acrescenta-se tambem que esta violac;ao da CRP se demonstra, por outro lado, na " ... enumerac;ao das condic;6es, que em prindpio deveriam ser excepcionais, para que a cedencia possa ocorrer se fica por uma indeterminac;ao tao acentuada ("raz6es de economia, eficacia e eficiencia na prossecuc;ao das respectivas atribuic;6es"), que pode permitir todos os abusos" 33 . Pelo que, de acordo corn este entendimento, se estaria em face da violac;ao do prindpio da dignidade da pessoa, assentando-se no dogma da necessaria expressao da vontade do trabalhador, porque "Independentemente de nao haver diminuic;ao ou agravamento das suas condic;6es materiais de trabalho, a simples possibilidade de cedencia sem acordo expresso e, em si mesma, chocante a luz daqueles prindpios constitucionais" 34 . Ill. Mas estamos em crer que este e urn resultado que nao condiz corn o que se infere da CRP, o que e susceptivel de sustentac;ao a varios niveis:

- na preservac;ao do reduto basico do prindpio da dignidade da pessoa humana, que nao esta minimamente em causa; na ausencia da caracteristica da intransmissibilidade da posic;ao contratual do empregador, vendo ate o lugar paralelo do regime da cedencia de trabalhadores no CT; na preservac;ao dos direitos fundamentais do trabalhador em qualquer situac;ao de cedencia, bem como a impertinencia dos direitos organizat6rios do trabalhador como sendo necessariamente violados na situac;ao de cedencia; - na indexac;ao temporal e circunstancial da operacionalizac;ao da cedencia ocasional de trabalhadores, para alem da prevalencia de raz6es de interesse publico, nao obstante a aplicac;ao de urn regime de Direito Privado, de acordo corn urn mecanismo excepcional que nao se revela desproporcionado, perante a ausencia de alternativas menos gravosas.

10. A preserva~ao do estatuto constitucional de pessoa no trabalhador ocasionalmente cedido I. Obviamente que se deve repudiar o emprego de express6es, bem mais agressivas, que estejam longe de corresponder a realidade, em caso algum havendo duvidas de que o prindpio da dignidade da pessoa humana, sendo o mais relevante dos prindpios juridico-constitucionais, poderia autorizar a degradac;ao da pessoa a urn objecto. Por isso, essa e uma realidade que se encontra a anos-luz do regime constante do preceito que ora estamos analisando: nao se trata, nem de perto nem de longe, de sujeitar a pessoa humana ao estatuto de coisa - in casu, o

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Cfr. a Cfr. a

peti~ao

peti~ao

do Presidente da Republica, p. 6. do Presidente da Republica, p. 6.

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trabalhador a uma coisa - porque se preserva tudo o que nele faz ser sujeito de direitos. Apenas se trata de aceitar, em particulares circunstancias, a possibilidade da transmissao da posi<;ao contratual do empregador, embora corn a manuten<;ao de todo urn complexo conjunto de direitos. E apenas isso e nada mais do que isso. 11. Nao se ere, sinceramente, que esteja em causa a degrada<;ao do trabalhador ocasionalmente cedido a qualquer situa<;ao juridica de objecto: e uma pessoa humana que beneficia de direitos laborais, mantendo todo urn feixe de direitos, remunerat6rios e funcionais, que sao, de resto, os mais relevantes. A unica coisa que muda e a entidade a quem e prestado o trabalho subordinado, dela recebendo ordens e instru<;6es no ambito do seu poder de direc<;ao. Se assim fosse, o problema nao residiria s6 na vontade, mas globalmente na figura da cedencia, que tern vindo progressivamente a alargar-se na legisla<;ao laboral dos paises mais avan<;ados do Mundo. Ill. Nem se ve onde encontrar, nesse quadro, qualquer situa<;ao de escravatura, como e proprio de urn regime de "coisifica<;ao" da pessoa humana, s6 por o trabalhador, durante urn certo tempo, prestar o seu trabalho subordinado a outra entidade patronal. A "coisifica<;ao" da pessoa humana tern os seus tristes epis6dios na Hist6ria, infelizmente ate ha pouco tempo vivos, e reside na impossibilidade da titularidade de direitos vitais, a come<;ar pelo direito a personalidade juridica. Quando estes direitos nao sao respeitados e quando a pessoa e reconduzida a escravatura, ai sim, assistimos a "coisifica<;ao" da pessoa humana, que passa a mercadoria, em viola<;ao da sua dignidade intrinseca. Nada disso sucede corn a cedencia ocasional dos trabalhadores s6 porque se prescinde, em casos excepcionais, da sua vontade, numa evidente aproxima<;ao a algo que tambem acontece no Direito Privado, que e a transmissao da posi<;ao contratual. IV. Quer isto dizer que a argumenta<;ao que seja propiciada no ambito do relevantissimo principio da dignidade da pessoa humana nao pode ater-se ao raciocinio simplificado da redu<;ao do trabalhador, no regime de cedencia ocasional sem vontade expressa, a uma situa<;ao de objecto de uma rela<;ao juridica. A discussao deve antes situar-se noutro plano, mais exactamente o de saber se a cedencia ocasional, nos termos impugnados, ofende essa dignidade humana, de urn modo que seja constitucionalmente intoleravel, ou saber se pode esse regime contender corn qualquer outro principio ou norma constitucionalmente pertinente, a ponto de legitimar urn resultado de inconstitucionalidade.

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11. A ausencia da caracteristica da intransmissibilidade da posH;:ao contratual do empregador e o lugar paralelo do Direito do Trabalho I. A cedencia ocasional de trabalhadores 35 traduz, no plano especffico do

Direito do Trabalho, urn fenomeno de transmissao da posi<;ao da entidade patronal, embora numa configura<;ao necessariamente limitada e temporalmente balizada. Dada a natureza intuitu personae da rela<;ao juridica laboraP6, a orienta<;ao geral, que se pode colher do CT, e a de que se deve exigir a reuniao de urn complexo de pressupostos, de entre os quais se inscreve normalmente a vontade expressa do trabalhador para fazer operar a cedencia ocasional. Isso tambem justifica o sentido tendencialmente pessoal da rela<;ao juridica laboral, a qual reflecte a directa presta<;ao do trabalho humano, corn toda a dignidade que lhe esta inerente, e que assenta numa rela<;ao fiduciaria entre empregador e empregado. Coma escreve PEDRO ROMANO MARTINEZ, aceitando esta caracteristica coma tendencial, " .. .o empregador so dentro de certos condicionalismos pode ceder o trabalhador a outro empregador" 37 • 11. A verdade, porem, e que essa orienta<;ao nao e aplicavel em todos os casos porque ha hipoteses em que se prescinde da vontade expressa do trabalhador para a consuma<;ao do efeito translativo da cedencia ocasional: quando ela esteja prevista nos instrumentos de regulamenta<;ao colectiva de trabalho. Coma se dispoe no CT, "A cedencia ocasional de trabalhadores so e admitida se regulada em instrumento de regulamenta<;ao colectiva de trabalho ou nos termos dos artigos seguintes" 38 • Eis uma situa<;ao em que a autonomia laboral colectiva equivale a lei, podendo nesse caso, num contexto contratual de tipo normativo e geral, afastar-se a exigencia da vontade expressa dos trabalhadores 39, que a lei geral prescreve. Nao obstante o caracter pessoal da rela<;ao juridica do trabalho individual, dela nao deriva a inevitabilidade da intransmissibilidade da posi<;ao contratual do empregador, nao constituindo tal intransmissibilidade qualquer tra<;o que sempre a acompanhe, mas estando apenas tendencialmente presente. Numa palavra: nao se pode invocar o conceito constitucional de trabalho subordinado para dele se extrair a impossibilidade da cedencia ocasional dos trabalhadores.

35 Sobre a cedencia ocasional de trabalhadores em geral, v. ANT6NIO MENEZES CORDEIRO, Manual .. ., pp. 602 e ss.; PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito ..., pp. 688 e ss. 36 Quanta a esta caracterfstica do contrato de trabalho, v. PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito ..., pp. 285 e 286. 37 PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direita ..., p. 286. 38 Art. 323.2 do CT. 39 Conforme se estabelece no art. 324.2, n .2 1, al. c), do CT.

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Ill. No entanto, poder-se-a contra-argumentar corn o facto de, na hip6tese prevista no CT, a autonomia laboral poder substituir a fun<;ao da lei laboral, ocupando o seu papel e sendo uma identica manifesta<;ao de vontade dos trabalhadores, ainda que mediatizada pelas pessoas laborais colectivas que sao representativas dos trabalhadores e que participaram naquelas negocia<;6es. Simplesmente, essa nao vem a ser a realidade das coisas porque da admissibilidade da cedencia ocasional sem vontade do trabalhador constante nos instrumentos de regulamenta<;ao colectiva de trabalho nao se pode jamais inferir a existencia de uma qualquer vontade do trabalhador em causa, uma vez que aquela vontade nao e individual, mas sim das entidades que negociaram os instrumentos colectivos, em certos casos ate anteriormente a celebra<;ao dos contratos individuais de trabalho. 0 aspecto que pode ser considerado de urn modo mais favoravel aos trabalhadores reside no facto de a autonomia laboral colectiva se desenvolver numa 16gica sinalagmatica, podendo retirar-se beneficios para o trabalhador da desnecessidade de consentimento na cedencia ocasional. 56 que isso ja nada tern que ver corn a expressao de uma qualquer vontade contratual e que seja concretamente relevante no ambito de uma rela<;ao juridica laboral. IV. Como quer que seja, deixa sempre de haver a afirma<;ao de uma orienta<;ao absoluta - pois que existem excep<;6es - no sentido de a expressao da vontade do trabalhador ser algo de fundamental e que e a fronteira entre o estatuto de pessoa e o estatuto de coisa do trabalhador abrangido. Se assim fosse, tambem esta norma do CT teria sido declarada inconstitucional par for<;a da viola<;ao da dignidade da pessoa humana, pois que nesse caso o trabalhador poderia ser cedido sem a sua vontade. Que se saiba, aquando da aprova<;ao do CT, que igualmente se sujeitou a urn pedido de fiscaliza<;ao preventiva da constitucionalidade ao Tribunal Constitucional, esta nao foi uma materia objecto de aprecia<;ao.

12. A defesa dos direitos constitucionais dos trabalhadores na cedencia ocasional sem vontade expressa I. Igualmente nao se pode ter a pretensao de ver na CRP aquilo que ela nao tern ou nao regula: 0 texto constitucional e, por natureza, fragmentario, apenas considerando o que entende ser merecedor de dignidade constitucional, mas nunca subvertendo a fun<;ao dos outros patamares da Ordem Juridica, a come<;ar pela lei formal. Quer isto dizer que o texto da CRP nada disp6e sobre a materia da cedencia ocasional dos trabalhadores, muito menos a questao da expressao da vontade dos trabalhadores envolvidos. Nesta materia, o texto constitucional cuida do que julga ser essencial, que e a preserva<;ao de urn micleo fundamental de direitos dos trabalhadores, urn circulo concentrico interno dos restantes direitos dos trabalhadores legal ou contratualmente concedidos.

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De entre esses direitos, nao esta por certo a necessidade da expressao de uma vontade de aceitar a cedencia ocasional: estao, sim, varios outros direitos, porventura mais relevantes, como os direitos relacionados corn a remunera~ao, a mobilidade geografica e funcional e o tempo de trabalho. 11. Ora, estes sao direitos directamente respeitados pelo Decreta nQ 157 I I IX, uma vez que o legislador tern o cuidado de dizer o seguinte: "A cedencia prevista no numero anterior nao pode fazer diminuir os direitos do trabalhador e deve respeitar as regras do C6digo do Trabalho quanta a mobilidade funcional e geografica e tempo de trabalho" 40 • :E aqui que reside a essencia da protec~ao dos direitos dos trabalhadores, numa concep~ao mais intensa do que a configura~ao for~osamente generica da dignidade da pessoa humana, que se afigura sempre escassamente operativa, quase que apenas aplicavel as hip6teses mais gritantes. Esse nao e corn certeza o caso. Isto significa que o legislador nao agiu corn desrespeito pelos direitos fundamentais dos trabalhadores que configuram a sua essencia do ponto de vista da protec~ao constitucional. Ill. A lembran~a de que estes direitos dos trabalhadores nao podem ser espezinhados numa situa~ao de cedencia ocasional for~a a que do mesmo modo nao seja aceitavel que a CRP tenha sido ofendida nalguns direitos que podem concretizar a dignidade da pessoa humana no plano das condi~6es de higiene e seguran~a no trabalho. A certo passo, na argumenta~ao expendida na peti~ao de fiscaliza~ao da constitucionalidade, afirma-se que a cedencia ocasional de trabalhadores p6e em xeque " ... a exigencia constitucional 'de organiza~ao do trabalho em condi~6es socialmente dignificantes, de forma a facultar a realiza~ao pessoal e a permitir a concilia~ao da actividade profissional corn a vida familiar' (art. 59Q, nQ 1, alfnea b))" 41 • IV. Contudo, nao se ve como tal seja demonstravel: a cedencia ocasional dos trabalhadores, em si mesmo, nao se prende corn esta materia, mas apenas corn a possibilidade da transmissao, sempre temporaria, da posi~ao do empregador. Nunca estao automaticamente em causa as condi~6es do exerdcio do trabalho, uma vez que se trata de realidades distintas: a posi~ao do empregador e as condi~6es de trabalho. De resto, pode ate acontecer a melhoria das condi~6es de trabalho se o empregador transmissario for, neste ponto, mais avan~ado.

Alias, ha urn equfvoco basico que subjaz a argumenta~ao que defende a inconstitucionalidade desta norma: e a ideia de que a cedencia da posi~ao do "" Art. 14.Q, n.Q 3, do RJCITAP. "' Cfr. a peti.;ao do Presidente da Republica, p. 6.

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empregador for~osamente perturba a organiza~ao do trabalho ou coloca em crise a realiza~ao pessoal, sendo certo que a configura~ao essencial do trabalho e a mesma, tal coma ela e estavelmente delimitada pelos direitos que ficam garantidos.

13. A cedencia ocasional dos trabalhadores sem vontade destes como solu~ao excepcional no tempo, nas circunstancias e nas finalidades I. A aprecia~ao da fenomenologia em que ocorre a cedencia ocasional dos trabalhadores sem 0 concurso da vontade destes e ainda perspectiva que nao pode ser negligenciada para sustentar a legitimidade constitucional desta solu~ao.

Se o caracter personalizado da rela~ao juridica laboral nao exige sempre a "petrifica~ao" da entidade patronal, coma acaba por admitir o CT, corn e sem a vontade do trabalhador em causa, nao e menos verdade que se julga inadmissivel a extensao indiscriminada desta possibilidade, que se limita a certos casos e dentro de urn conjunto de finalidades que se julga aplicaveis. 11. Ora, e isso o que vem a suceder corn o preceito legal em analise, dado que o mesmo nao permite, sem mais nem menos, o recurso indiscriminado, livre ou abusivo, a cedencia ocasional dos trabalhadores sem a vontade destes. Pelo contrario: fa-lo segundo urn circunscrito factualismo p01¡que "No quadro da colabora~ao entre pessoas colectivas ptiblicas, a cedencia nao exige o acordo do trabalhador se for fundamentada em necessidades prementes das entidades envolvidas ou em raz6es de economia, efidcia e eficiencia na prossecu~ao das respectivas atribui~6es" 4 2 • Isto quer dizer que se respeita o caracter excepcional desta medida, que nao e arbitraria nem de uso livre: apenas nos casos em que haja urn acordo entre pessoas colectivas ptiblicas, segundo especiais exigencias de interesse publico, que peculiarmente imponham essa cedencia ocasional. Ill. Nem sequer vale aqui dizer que estes pressupostos sao demasiado vagos ou genericos, porquanto se apresenta tarefa ardua uma maior densifica~ao destes conceitos. Pensar o contrario e cair no risco de se obliterar por completo a importancia e a ductilidade deste mecanismo, tornando-o de exerdcio praticamente impossivel. Estes pressupostos nao apenas indicam uma dura~ao lirnitada no tempo coma se apresentam sob uma ideia de excepcionalidade circunstancial, totalmente relevante. Para alem disso, importa ainda analisar o acordo que e celebrado entre as pessoas colectivas ptiblicas, que se encarrega de uma outra densifica~ao das circunstancias e das finalidades da cedencia ocasional dos trabalhadores, nao

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Art. 14. 0, n.0 2, do RJCITAP.

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bastando a lei ou nao bastando urn acordo sem uma referenda material justificante. IV. Mas este vem tambem a ser urn caso em que avulta a relevancia do interesse publico na configura<;ao da actividade da Administra<;ao Publica, aqui na sua projec<;ao sabre as rela<;6es juridicas laborais. Evidentemente que nao se desconhece que o regime do contrato individual de trabalho, que este diploma pretende generalizar no ambito da Administra<;ao Publica, nao se aplica aos trabalhadores que exer<;am fun<;6es de soberania ou de autoridade, caso em que nao se admite aquele esquema de contrata<;ao laboral 43. So que tal nunca significa que do interesse publico - a expressar-se ao nivel das atribui<;6es das pessoas colectivas publicas, bem como no plana das competencias dos respectivos orgaos - nao se permita retirar urn conjunto de exigencias que possam determinar a cedencia ocasional de trabalhadores sem a vontade expressa destes e em casos excepcionais. Tal vem a ser genericamente admitido pelos preceitos constitucionais atinentes aos trabalhadores da Administra<;ao Publica: "No exercicio das suas fun<;6es, os trabalhadores da Administra<;ao Publica e demais agentes do Estado e outras entidades publicas estao exclusivamente ao servi<;o do interesse publico, tal como ele e definido, nos termos da lei, pelos orgaos competentes da Administra<;ao"44. E irrelevante a modalidade do regime de vincula<;ao laboral: a pertinencia desta clausula de interesse publico esta identicamente presente nos regimes da fun<;ao publica ou de Direito do Trabalho e pode justificar, em certos casos, urn regime derrogatorio, mais favoravel a Administra<;ao Publica. V. A dispensa da vontade expressa dos trabalhadores envolvidos na cedencia ocasional pressup6e, por outra parte, que se deva avaliar as alternativas para as necessidades que a Administra<;ao Publica sinta na presta<;ao adicional de trabalho em certas pessoas colectivas. Se este mecanismo nao e aplicavel, as alternativas radicarao na contrata<;ao de mais trabalhadores, ainda que a termo certo, corn o inerente acrescimo de despesa publica, que lhe esta inevitavelmente associado, e nesta hipotese recorrendo a trabalho precario de novas trabalhadores. A viola<;ao do principio da proporcionalidade nesta altemativa pode radicar no facto de as necessidades de servi<;o, em face da existencia de trabalhadores que possam temporariamente exercer uma actividade noutra pessoa

43 Cfr. o art. 1.2, n.2 4, do RJCITAP, que estabelece o seguinte: "No funbito da administrac;:ao directa do Estado, nao podem ser objecto de contrato de trabalho por tempo indeterminado actividades que irnpliquem o exerdcio directo de poderes de autoridade que definam situac;:6es juridicas subjectivas de terceiros ou o exerdcio de poderes de soberania" . 44 Art. 269. 2, n .2 1, da CRP.

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colectiva publica, terern de ser supridas pela contrata~ao de rnais trabalhadores, havendo trabalhadores ja vinculados corn a possibilidade de o fazer. Por outro lado, nao se pode descurar a cornplexidade e a rnorosidade da contrata~ao de novas trabalhadores, que pode surgir incornpatfvel corn irnperiosas necessidades de interesse publico, a resolver convenienternente pela cedencia ocasional de trabalhadores, sendo rnuito rnenos onerosa para o proprio interesse publico, no seio do leque das varias alternativas possfveis.

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IV CONCLUSOES

14. Enundado das condusoes Em face do exposto, nao se considera que o diploma em apre<;:o, quanto as normas cuja constitucionalidade foi contestada, tenha ferido a CRP ou os prindpios nela consignados, corn uma explica<;:ao espedfica para cada uma dessas normas, nao tendo assim razao o Tribunal Constitucional ao ter considerado inconstitucionais algumas das suas normas no Ac6rdao nQ 155 I 2004: I. No que toca ao primeiro grupo de questoes, a nulidade do contrato individual de trabalho, que e estabelecida em certos casos:

a) nao viola o princfpio da seguran<;:a no emprego porque se apresenta como o inevitavel resultado da preteri<;:ao de normas imperativas, nem sequer sendo tal san<;:ao inapropriada ou exagerada e muito menos esta orienta<;:ao inconstitucional permitindo a prevalencia de contratos de trabalho antijuridicos; b) nao viola os prindpios da seguran<;:a juridica e da protec<;:ao da confian<;:a p01路que, no primeiro caso, o padrao normativo de aferi<;:ao da juridicidade e cognosdvel pelo trabalhador, nao possuindo caracter secreto, e no outro caso, nao fica o trabalhador defraudado nas suas expectativas na medida em que se lhe oferecem vias de defesa contra prejuizos sofridos causados por condutas da Administra<;:ao Publica; e c) nao viola 0 prindpio da proporcionalidade porque 0 regime dos efeitos da nulidade s6 funciona in futurum, havendo ate entao a execu<;:ao do contrato, simultaneamente se verificando a preserva<;:ao dos actos ja praticados pelo trabalhador. II. No que concerne ao outro tema que esta em debate neste pedido de fiscaliza<;:ao da constitucionalidade, o qual diz respeito ao regime da cedencia ocasional de trabalhadores, tambem o mesmo: a) nao poe minimamente em causa a dignidade da pessoa humana porque esta muito longe de "coisificar" o trabalhador s6 por se prescindir da sua vontade nalgumas espedficas e excepcionais circunstancias, mantendo-se todo urn relevante nucleo de direitos essenciais na configura<;:ao da presta<;:ao laboral; b) nao tolhe 0 estatuto constitucional do trabalhador porque nao se pressupoe ser inerente ao trabalho subordinado a exigencia sem excep<;:oes

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do respectivo consentimento no caso de cedencia ocasional, havendo casos no Direito do Trabalho em que essa vontade e dispensada; c) preserva os direitos constitucionais laborais basicos, assim como nao se questiona a organizac;:ao e o exerdcio do trabalho, que nao estao sequer umbilicalmente relacionados corn o problema da cedencia ocasional de trabalhadores; e d) apresenta-se admissfvel de acordo corn urn figurino de excepcionalidade temporal, circunstancial e teleologica, nao esquecendo tambem que as alternativas, perante uma imperiosa necessidade de interesse publico no acrescimo de prestac;:oes laborais, seriam mais gravosas para a Administrac;:ao Publica e para os trabalhadores.

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DECLARA<;AO DE "BOLONHA" Jose Gon<;alves de Proen<;a



DECLARA(:AO DE "BOLONHA"

Jose Gon<;alves de Proen<;a*

I Justifica~ao

1. Entre as varias tendencias que se tern manifestado acerca da reestrutura<_;ao do Curso de Direito, nas Universidades Europeias, a sombra do chamado "movimento de Bolonha", tambem conhecido por "carta de Bolonha", come<;a claramente a evidenciar-se a orienta<_;ao que preconiza, para o efeito, a concentra<_;ao curricular das disciplinas consideradas essenciais para a forma<;ao socio-profissional "dos juristas", em 4 anos de frequencia obrigatoria, acrescidos de mais urn ou dais de forma<;ao complementar. Orienta<_;ao conhecida pela formula de 4+ 1. Da-se, assim, satisfa<;ao a urn dos objectives fundamentais da referida Declara<_;ao de Bolonha no sentido da adop<_;ao de urn sistema essencialmente baseado em dais ciclos principais, nao devendo 0 primeiro ter dura<;ao inferior a tres anos e ser organizado de modo a dar acesso a urn grau de prepara<_;ao relevante para o mercado europeu de trabalho, corn o nivel apropriado de qualifica<;ao. 0 que a seguir se expoe refere-se apenas ao 1Q Ciclo, ou seja, a "licenciatura" em Direito. 0 2Q Ciclo, ou seja, o chamado "Mestrado" sera objecto de estudo ulterior. 2. A formula 4+1 e a mais adequada para o efeito permitindo dar satisfa<;ao as exigencias impostas pelo perfil que, em termos gerais, se reputa indispensavel preencher corn vista ao exerdcio eficiente das actividades que integram as profissoes ou interven<_;oes caracteristicas da gradua<_;ao em direito, tanto no sector publico, coma no sector privado. 3. Analisando mais de perto esse perfil, entende-se que a forma<;ao de urn jurista (corn capacidade plena) deve dominar, na medida em que a sua actividade profissional o exigir, os aspectos essenciais quer do direito publico, quer do direito privado, cujas disciplinas integrantes devem contribuil~ em paralelo, para o "objective curricular final" * Universidade Lusiada de Lisboa.

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Jose Gon<;:alves de Proen<;:a

Corn o que se da, outrossim, satisfa<;:ao a arienta<;:ao preconizada pela "Declara<;:ao de Bolonha", segundo a qual, o ensino do direito devera "incidir, por urn lado sabre os aspectos fundamentais da forma<;:ao humanistica geral e por outro lado, tera tambem de incidir sabre 0 direito vigente, dirigido a resolu<;:ao critica dos problemas que se colocam, quer no ambito nacional, quer no ambito internacional (corn especial destaque para os problemas proprios do espa<;:o comunitario ). 4. 0 que leva, designadamente, a proposta de reunir os ramos cientificos em causa em cinco grupos essenciais. A saber: ciencias do direito publico; ciencias do direito privado; ciencias do direito economico; ciencias do direito penal; e ciencias de base. 5. lmp6e-se, corn efeito, que urn profissional do direito deve estar preparado para satisfazer todas as exigencias que se lhe deparem em qualquer das areas referidas, tendo em conta as interdependencias que entre si se verificam. 6. Subsequentemente, importa ponderar o modo como tais sectores devem ser preenchidos. 0 que, sem a preocupa<;:ao de levar tal analise as ultimas consequencias, aconselha a seguinte sistematiza<;:ao curricular. 7. Grupo das ciencias do direito publico: Direito Constitucional; Direito Administrativo; Direito Internacional Publico; Contencioso Administrativo. Grupo das ciencias do direito economico: Economia Politica; Direito Financeiro; Direito Fiscal; Direito Industrial; Direito Economico. Grupo das ciencias do direito privado: Direito Civil; Direito Comercial; Direito Internacional Privado; Informatica Juridica. Grupo das ciencias do direito penal: Direito Penal; Criminologia; Psicologia Criminal. Grupo das ciencias de base: Introdu<;:ao do Estudo do Direito, Historia do Direito; Filosofia do Direito; Psicologia Geral. 8. Como e natural, dentro de cada uma das disciplinas que integram os varios grupos ha que distinguir, quando seja caso disso, os aspectos substantivos e adjectivos da respectiva estrutura, tendo o cuidado de fazer sempre preceder o primeiro ao segundo, em anos ou semestres curriculares sucessivos. Assim, par exemplo, a disciplina de direito penal, deve sempre preceder a correspondente cadeira de processo penal; as disciplinas de direito civil devem preceder o direito processual correspondente, etc .. 9. A mesma preocupa<;:ao de precedencias deve reger a distribui<;:ao curricular de disciplinas que se desenvolvem em termos de forma<;:ao sucessiva. Designadamente, o estudo da rela<;:ao juridica deve preceder a analise das obriga<;:6es; o estudo das "sucess6es" deve seguir-se ao estudo das rela<;:6es familiares, etc .. 10. De aconselhar e tambem que as disciplinas que tenham entre si conex6es, de essencia ou finalidade relevantes, sejam sistematizadas por forma a poderem receber arienta<;:ao coordenada. 11. De referir, par ultimo, que as disciplinas nucleares se devem naturalmente subdividir em disciplinas integrantes ou complementares, quando a sua natureza o imp6e, como acontece, por exemplo, corn o direito internacional

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publico e o direito da Uniao Europeia, ou o direito civil e o direito do trabalho, ou ainda, a economia politica e a economia portuguesa, etc .. 12. A sistematiza~ao apontada tern logicamente por base a diversidade estrutural das ciencias que integram os varios grupos. 0 que naturalmente se reflectira na orienta~ao profissional ou opcionat dos respectivos curricula. Assim: as ciencias do direito publico, apontam naturalmente para a especializa~ao nas profiss6es publicistas: Administra~ao publica, diplomacia, etc.; As ciencias do direito privado revelam-se preferenciais para as profiss6es de natureza privatistica: advocacia, actividades comerciais, aplica~ao do direito privado, etc.; As ciencias do direito economico apontam em particular para as actividades empresariais, comerciais, etc.; As ciencias penalisticas mostram-se mais adequadas para actividades forenses ou administrativas; finalmente as ciencias historico-filosoficas aspiram contribuir para a forma~ao cultural dos juristas independentemente da sua op~ao profissional. 13. 0 que tu do leva a seguinte proposta curricular de 4+ 1, incluindo nos primeiros quatro anos todas as disciplinas essenciais (primeiro ciclo) e no ano complementar a expressao curricular das op~6es profissionais, tal como referidas no numero anterior. 14. A distribui~ao curricular que se prop6e esta em conformidade corn a Proposta de Lei de Bases da Educa~ao, aprovada em reuniao do Conselho de Ministros do dia 27 de Maio de 2003, segundo a quat «no primeiro ciclo de estudos e COnferido 0 grau de licenciadO>> (art. 19), 0 qual «COmprova Uffi nfvel superior de conhecimentos numa area cientffica e capacidade para o exerdcio de uma actividade profissional qualificada>> (art. 20). Nos termos da mesma Proposta de Lei, «O grau de licenciado e concedido apos a conclusao de urn 1. ciclo de forma~ao superior, corn a dura~ao de oito semestres>>. A proposito desta ultima exigencia, o texto em causa, acrescenta, porem, que em casos excepcionais, os cursos conducentes ao grau de licenciado podem ter a dura~ao de mais urn a quatro semestres (exactamente como se sugere na presente exposi~ao ). Mais se esclarece que nao se considera vinculativa a afirma~ao da Propasta de Lei, de semestraliza~ao obrigatoria de todas as disciplinas que integram o «curso de direito>>, pois que algumas pela sua extensao ou composi~ao nao comportam facilmente a divisao dos respectivos programas em duas partes temporalmente distintas, divisao que noutros casos e perfeitamente possfvel. Oaf o entendermos que ao lado de disciplinas semestrais devem poder existir disciplinas anuais, desde que no seu todo o curso nao ultrapasse o limite de semestres impostos pela Proposta de Lei de Bases da Educa~ao. 15. Ainda antes de passar a formaliza~ao curricular de distribui~ao das disciplinas que, em gerat sao consideradas essenciais para a forma~ao dos juristas, permitimo-nos chamar a aten~ao para urn ultimo aspecto, a que a Declara~ao de Bolonha atribui tambem algum relevo. Referimo-nos ao aspecto essencialmente pragmatico do modelo de funcionamento a adoptar na organiza~ao dos cursos de ensino superior, designadamente de direito, para os quais se sugerem importantes altera~6es quanto as cargas horarias globais e

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pare1a1s, as metodologias de ensino e aos modelos de avalia<;ao. Em conformidade corn tais preocupa<;6es somas tambem dos que entendem que, nos tempos que correm, "urn plano de estudos em Direito deve ser concebido, corn uma importante carga pratica, que permita aos estudantes desenvolver e potenciar as suas capacidades de raciocfnio, de crftica, de reflexao, de analise e interpreta<;ao, de expressao escrita e oral, criando-lhes o habito do raciocfnio jurfdico assente em solidas bases culturais" . Donde a importancia que em nossa opiniao deve ser dada ao aperfei<;oamento dos metodos de dialogo formativo a estabelecer permanentemente entre os docentes e os discentes, especialmente concretizado em termos de discussao pratica, testes de avalia<;ao frequentes e discussoes informais, levando a que os estudantes, como se diz na Declara<;ao de Bolonha, "deixem de ser sujeitos passivos do ensino, para passarem a ser sujeitos activos da aprendizagem".

11

Estrutura Curricular

16. Transitando, seguidamente, para a distribui<;ao curricular das disciplinas elencadas, somas de opiniao que elas devem ser repartidas pelos varios anos de modo tanto quanta possivel equitativo e complementar, contribuindo para que a forma<;ao do jurista se va fazendo de forma integrada e progressiva. Assim, no 1Q ano devem ser reunidas as chamadas disciplinas de base, tanto do direito publico como do direito privado. E impossivel compreender urn sem conhecer a essencia do outro. Estao neste caso: - Disciplina do direito publico: Ciencia Politica e Direito Constitucional (Anual) - Disciplina do direito economico: Introdu<;ao a Economia (Economia Politica) (Anual) - Disciplina de base: Introdu<;ao ao Estudo do Direito (Anual) - Historia do Direito (Anual) 17. 0 2Q ano, por sua vez, devera, ter a seguinte composi<;ao curricular: -

Disciplina do direito publico: Direito Administrativo (Anual) Direito Internacional Publico (Anual) Disciplina de direito economico: Direito Financeiro e Fiscal (Anual) Disciplina de direito privado: Teoria Geral da Rela<;ao Juridica e Direito das Obriga<;6es (Anual)

18. No 3Q ano devem incluir-se as seguintes disciplinas: -

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Disciplina do Direito Processual: Direito Processual Civil (Anual) Disciplina do Direito Penal: Direito Penal (Anual) Disciplina do Direito Privado: Direito Comercial (Anual) Outras disciplinas do Direito Privado: Direito do Trabalho (1Q sem.); Direitos Reais (2Q sem.)

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I9. No 4Q ano deverao reunir-se as restantes disciplinas consideradas essenciais: - Disciplinas de direito publico: Direito Processual Penal (IQ sem.); Direito Comunitario (2Q sem.) - Disciplina de direito privado: Direito Internacional Privado (Anual); Direito da Familia (IQ sem. ); Direito das Sucess6es (2Q sem.) - Disciplina hist6rico-filos6fica: Filosofia do Direito (Anual) 20. Finalmente, o ano complementar devera ser integrado por grupos opcionais de disciplinas, correspondentes as grandes variantes s6cio-profissionais da actividade jurfdica. A saber: a actividade jurfdico-forense; a actividade juridico-publicistica; e a actividade juridico-econ6mica. Composis;ao curricular de cada uma das ops;6es: I" Ops;ao: jurfdico-privatistica (forense) Direito Civil II (IQ sem.) Direito Processual Civil (2Q sem.) Direito Comercial II (IQ sem.) - (Direito das Sociedades) Direito Penal II (2Q sem.) - (Criminologia) Direito Financeiro e Fiscal II (IQ sem.) - (Conflitos Jurisdicionais) Direito Registal (2Q sem.) 2i! Ops;ao: jurfdico-publicistica (politica) Direito Constitucional II (Ciencia Politica) - (IQ sem.) Direito Administrativo II (2Q sem.) Direito Internacional Publico (IQ sem.) - (Relas;6es Internacionais) Direito da Uniao Europeia (2Q sem.) Direito Comercial Publico (IQ sem.) - (Mercados publicos) Direito Internacional Privado II (2Q sem.) - (Conflitos de Jurisdis;6es) 3i! Ops;ao: jurfdico-econ6mica (econ6mica) Direito Econ6mico (IQ sem.) - (Macroeconomia) Direito do Comercio Internacional (2Q sem.) Direito Bancario (IQ sem.) - (Contratos bancarios) Direito das Empresas (2Q sem.) - (Microeconomia) Economia Internacional (IQ sem.) Economia Portuguesa (2Q sem.) NOTA: Cada ops;ao pode ser completada pelo aproveitamento em todas as disciplinas que a integram ou por um conjunto de disciplinas formado por quatro disciplinas de uma ops;ao e duas de outra ops;ao, tomando, neste ultimo caso, a designas;ao da ops;ao maioritaria.

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USUCAPIAO E AUGI'S (AREAS URBANAS DE GENESE ILEGAL) Jose Gonzalez



USUCAPIAO E AUGI'S (AREAS URBANAS DE GENESE ILEGAL)

Jose Gonzalez•¡

UsucapHio 1. Posse -

concep~ao

geral

I) No que se segue pressup6e-se a qualifica<;ao da posse como direito real. Apesar de, por exemplo, Oliveira Ascensao 1 invocar o disposto no artigo 9 1281 /nQ2 2 - (artigo 1169 do Codigo Civil Italiano) - para sustentar a relatividade da posse, julga-se que 0 argumento nao deve proceder. Efectivamente, na medida em que a posse - em si mesma considerada apenas constitui uma presun<;ao de titularidade do direito real correspondente a actua<;ao do possuidor (artigo 1268Q) e simplesmente normal que 0 ambito da oponibilidade erga omnes seja (porventura) mais limitadamente circunscrito. Mas, por urn lado, e indesmentivel que 3: a) a posse pode ser feita valer contra terceiros que conhe<;am o esbulho; b) e que qualquer outra titularidade real pode igualmente nao valer contra certos terceiros, (pense-se, de urn modo geral, nos casos de aquisi<;ao tabular). Por outro lado, nao parece ajustado dizer que, perante os terceiros que conhecem o esbulho, o possuidor esteja a invocar raz6es relativas (pelo menos, nao sao relativas - ou nao sao essencialmente relativas - a esses terceiros). Por ultimo, nao se encontra justifica<;;ao para dizer, (como resulta do artigo 1169 do Codigo Civil Italiano e como resultava do artigo 504Q do Codigo de 1867), que o artigo 1281Q/nQ 2 sup6e urn terceiro que, (para alem de conhecer

* Universidade Lusfada de Lisboa Direito Civil - Reais, (Coimbra, Coimbra Editora, 5' edi~ao, 1993), pags. 130 a 132. Daqui em diante qualquer referencia legal desacompanhada da respectiva fonte entende-se feita ao C6digo Civil Portugues. 3 Carvalho Fernandes, Li~i5es de Direitos Reais, (Lisboa, Quid Juris, 4~ edi~ao, 2003), pags. 270 a 272. 1

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o esbulho ), tenha adquirido a posse do esbulhador. De facto, e de todo irrelevante determinar a razao pela qual o terceiro esta na posse da coisa, (o que demonstra, na verdade, nao ter a oponibilidade erga omnes da posse urn ambito assim tao limitado ). A afirma<;ao de que a posse e urn direito real, tambem ja sup6e que ela e qualificavel como direito subjectivo. Ja se sabe que a posse tern uma natureza sui generis e ja se sabe igualmente que a categoria direito subjectivo e puramente juridica, ou seja, e, acima de tudo, uma realidade pensada. Ao inves, a posse, envolvendo em geral o dominio material sobre uma coisa, tern uma natureza acentuadamente factual. Nao se ve, porem, como sera possivel, sem contradi<;6es e sem floreamentos, harmonizar a tutela judicial da posse corn a afirma<;ao da natureza puramente factual da mesma - (ac<;6es judiciais para defesa de urn "nao direito"?). Alem disso, a posse, ao configurar-se como uma situa<;ao corn alguns aspectos de precariedade e transitoriedade, apresenta algumas semelhan<;as corn as expectativas juridicas: sao ambas protegidas por si, apesar de a titularidade do direito sobre o bem em causa ainda nao pertencer ao respectivo possuidor ou titular da expectativa e, provavelmente, isso poder nunca chegar a acontecer; ambas produzem efeitos imediatos - aquisi<;ao de frutos (artigo 1270Q); possibilidade de pratica de actos conservat6rios (artigo 273Q) - que sao tambem independentes em rela<;ao a titularidade do direito sobre o referido bem; etc .. Ora, se as expectativas juridicas sao reconhecidamente direitos subjectivos4, nao se ve razao para recusar a mesma qualifica<;ao a posse, quando ate, tanto do ponto de vista qualitativo como quantitativo, os efeitos juridicos atribuiveis a esta sao superiores aos daquelas. II) Do ponto de vista do dominio de facto 5 sobre uma coisa, s6 duas qualifica<;6es sao possiveis: ou se trata de posse (artigo 1251Q) ou se trata de deten9iiO (artigo 1253Q). Como ideia geral, a posse e juridicamente relevante precisamente atraves dos chamados commoda possessionis ou efeitos da posse (artigos 1268Q e segs.), ao passo que a deten<;ao e, ao inves, juridicamente irrelevante. A distin<;ao, alias, faz-se precisamente para este fim. Reconhece-se, todavia, que, na pratica, a aplica<;ao da distin<;ao entre posse e deten<;ao nao e facil, muito particularmente nas hip6teses subsumiveis a aline a b) do artigo 1253Q. Deve, por isso, partir-se do prindpio segundo o qual quem tiver o dominio de facto sobre uma coisa tern a respectiva posse, (artigo 1252Q/nQ2). Assim como se deve igualmente partir do principio pelo qual dominus habetur qui possidet donee probetur contrarium.

Ver, por exemplo, Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil portugues, vol.I, Parte geral, tomo I, (Coimbra, Almedina, 1999), pag. 137. 5 Possessio plurimum facti habet (Papiniano, D.4.6.19). 4

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Ill) Considerar-se-ao para a presente exposi<;ao, antes de mais, os factos constitutivos ou transmissivos e extintivos da rela<;ao juridica correspondente a posse. E posse tout court, pois embora seja muito frequente o entendimento segundo o qual o regime legal, (artigos 1251Q e segs.), esta especialmente destinado aposse formal 6, nao ha duvida de que, pelo menos, os modos de aquisi<;ao derivada, servem, indistintamente7, a posse formal e a posse causaP. Enumerar-se-ao em seguida os commoda possessionis para assim se poder chegar a usucapiao.

1.1. Factos constitutivos I) Para a aquisi<;ao originaria da posse, a lei preve dois modos: o apossa-

mento (artigo 1263QI a)) e a inversao do titulo da posse (artigos 1263Q Id) e 1265Q). 0 apossamento e 0 efeito 9 da "pratica reiterada (... ) dos actos materiais correspondentes ao exerdcio do direito". E uso salientar que a "reitera<;ao" nao deve ser literalmente entendida. Antes importa que o ou os actos materiais tenham intensidade suficiente para demonstrar uma inten<;ao de apropria<;ao 10 • Assim, e em tese geral: para ocorrer o apossamento de uma coisa m6vel, bastara normalmente o proprio acto de apreensao material, a subtrac<;ao; ja para ocorrer o apossamento de uma coisa im6vel se supora, em prindpio, urn conjunto de actos. 0 que realmente interessa, em qualquer caso, e que seja ou sejam actos suficientemente significativos. 11) 0 artigo 1263QI a) parece tambem supor, para a constitui<;ao da posse

por esta via, que a pratica dos tais actos materiais se fa<;a "corn publicidade". Todavia, esta exigencia nao pode ser entendida a letra, sob pena de absurdo. Efectivamente, se, por exemplo, A furta urn autom6vel a B e, em seguida, o guarda na sua garagem, de onde nunca sai para o seu paradeiro nao ser descoberto, numa interpreta<;ao literal, concluir-se-ia que A nao adquiriu posse. Oaf que A apenas possa ser havido como detentor. Razao pela qual: i) A nao cometeu crime de furto 11 (artigo 203Q, C6digo Penal); ii) B nao pode

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Cfr., por exemplo, Penha Gon<;alves, Curso de Direitos Reais, (Lisboa, SPB, 1992), pags. 232/

233.

In summa possessionis non multum interest, iuste quis an inuste possideat. Sob pena de, no entendimento contrario, poder ser intentada, por exemplo, ac<;iio de manuten~iio (artigos 12782 e segs.), mesmo niio estando ainda a coisa submetida ao efectivo senhorio do adquirente, nem nunca tendo estado! (Recorde-se que, no entendirnento que se critica, a aquisi<;iio derivada da posse causal se da por mero efeito da aquisi<;iio do direito real que a justifica). 9 E niio o pressuposto, como as vezes se le. 10 Ver, por exemplo, Carvalho Fernandes, Li~oes de Direitos Reais, pag. 297. 11 Ja que, por defini<;iio, se A e detentor, niio tern "inten<;iio de apropria<;iio". 7

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intentar ac~ao de restitui~ao contra A (artigos 1278Q e segs.), ja que, se este e detentor (e, portanto, possuidor em nome alheio- artigo 1253Qic)lin fine 12 ), nao tern legitimidade passiva para a ac~ao (de facto, se e detentor nao e esbulhador - artigo 1281 QI nQ2 13 ). Ill) Para evitar absurdos, a "publicidade" em causa deve pois entender-se como urn requisito de eficricia da posse entretanto adquirida. Em primeiro lugat~ par ser essa a fun~ao - garantir a eficacia - que narmalmente a publicidade, seja de que especie £01~ desempenha. Em segundo lugar, por a existencia de posse se poder compatibilizar perfeitamente corn a sua clandestinidade. 0 que se demonstra, pelo menos, por duas vias: i) por a constru~ao juridica da posse se fazer corn base numa no~ao pre-jurfdica da mesma - o que vale por dizer ha posse quando o domfnio sobre uma coisa como tal seja qualificavel pela "consciencia comum" 14, (o que certamente sucede no exemplo atras referido); ii) por outro lado, por a lei conceder a defesa possess6ria independentemente do caracter publico ou oculto da posse 15 • Entendendo-se deste modo o requisito da "publicidade" a que o artigo 1263Q I a) se refere, isso implica que ela deve ter o exacto conteudo que a publicidade e atribuido pelo disposto no artigo 1262Q 16 • A oculta~ao do apossamento acarretara, par isso, a ineficricia perante os interessados da posse adquirida 17 • 0 que significa que nao come~am a correr, contra o anterior possuidm~ os prazos de perda da posse, (artigo 1267QinQ 1ld) e nQ 2), nem os prazos de caducidade das ac~6es possess6rias, (artigo 1282Q), nem os prazos da usucapiao, (artigos 1297Q e 1300Q I nQ 1). IV) A inversiio do titulo da posse pode ocorrer por dois modos: oposi9iio do detentor perante aquele em cujo nome possufa ou por acto de terceiro capaz de, em poh~ncia, justificar a aquisi~ao da posse pelo detentor (artigo 1265Q).

12 Como se disse, a subordina.;;ao factual de uma coisa ao domfnio de certa vontade s6 pode configurar posse (artigo 1251Q) ou deten<;ao (artigo 1253Q). For isso se pode dizer que a parte final da alfnea c) do artigo 1253Q resume a totalidade do artigo e define a deten.;;ao, (cfr. P.Lima-A.Varela, C6digo Civil Anotado, vol. Ill, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, pag. 9): possidet, cuius nomine possidetur (Celso, D.41.2.18pr). Somente quando, em hip6teses limite, nao haja qualquer possuidor, se nao pode dizer que a deten.;;ao e posse em nome alheio, (embora tao-pouco seja, corn certeza, em nome proprio). Se, por exemplo, A, em estado de necessidade, (artigo 339Q), pega num martelo nullius para quebrar urn vidro, nao constihli uma posse em nome alheio pela 6bvia razao de que nao existe possuidor, mas nao deixa por isso de ser detentor. 13 Ver Penha Gon.;;alves, Curso de Direitos Reais, pag. 305. 14 Wolff-Raise1; Sachenrecht, trad.esp., vol.I, (Barcelona, Bosch, 1971), pags. 42 a 44. 15 Alias, as ac.;;6es possess6rias ate sao mesmo concedidas apesar do evenh1al caracter clandestino da posse (artigo 1280Q I in fine). 16 P.Lima-A.Varela, C6digo Civil Anotado, vol.III, pag. 26. 17 Mas nao perante (outros) terceiros.

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A inversao do titulo e pois urn dos modos pelos quais o detentor pode adquirir posse 18, (neste caso, de modo originario ). V) Nos termos do artigo 1251 Q, ha posse quando se utiliza 19 uma coisa de forma correspondente ao exercfcio de urn direito real. A posse deve referir-se pois, necessariamente, a urn direito real. E isto que, em geral, a distingue da

detenr;iio 20 • Acontece que, quando se actua sobre uma coisa, tanto se pode estar a exercer urn direito real, como urn direito pessoal, como pode isso resultar de rela<;:oes de hospitalidade ou de amizade, ou derivar da pratica de urn acto ilicito, (furto, por exemplo ), etc. 21 • Naturalmente, nao ha posse em todos estes casos. S6 havera posse quando a causa que justifica a referida actua<;:ao sobre a coisa permita demonstrar objectivamente a referenda desta "attivita", (artigo 1140, C6digo Civil Italiano ), a urn direito real. Para a aquisi<;:ao derivada da posse, bem como para a inversao do titulo por acto de terceiro, essa causa deve ser urn acto jurfdico potencialmente translativo ou constitutivo22 do direito real que autorizaria a dita "attivita" 23 • Para a aquisi<;:ao originaria, exactamente por urn neg6cio desta especie inexistir ou ser irrelevante24, a causa que autoriza tal actua<;:ao sobre a coisa deve demonstrar, objectiva e inequivocamente, a referenda desta ultima ao exercfcio de urn direito real. Por isso, a lei somente admite, para o referido efeito, o ja supra mencionado apossamento 25 ou, quando haja deten<;:ao, a opo0 outro e a tmditio brevi manu. Usa, frui, transforma, dispoe, etc .. 20 0 disposto no artigo 1253Q e meramente auxiliar. Mesmo supondo a facil determinabilidade do conteudo das suas diversas alfneas, nao se pode proceder por exclusao de partes, (isto e: toda a situa<;ao que nao couber na previsao do 1253Q, e posse), dado que, por urn !ado, o artigo 1253Q tern caracter nitidamente exemplificativo, (cfr. 1253Q/ c)/in fine) e, por outro, o artigo 1251Q procede a uma delimita.;ao positiva do ambito da posse. 21 Por exemplo, a justifica.;ao para alguem utilizar urn autom6vel, tanto pode ser a propriedade, coma o aluguer, o emprestimo ou o furta, etc .. 22 Valido ou invalido, tanto importa. 23 Se A comprou a coisa x, e esta !he foi entregue, tern posse pm~ abstractamente, a compra e venda permitir a transmissao ou a constitui.;ao de urn direito real. Se B e comodatario da coisa y, nao tern posse, mas sim deten<;ao, pela razao exactamente inversa. E obviamente irrelevante a errada qualificafiio atribufda pelas partes a certo neg6cio que, a aceitar-se tal qualifica<;ao, seria abstractamente inid6neo para transmitir ou constituir um direito real, desde que entre as partes ele funcione como se fosse id6neo. Se, por exemplo, A e B celebram uma promessa de compra e venda da coisa z para entre eles valer como se de compra e venda se tratasse, e esta que efectivamente se celebrou e nao a promessa (embora a primeira possa eventualmente ser nula, como frequentemente sucede, por vfcio de forma). Mutatis mutandis, se houver simulafiiO relativa. 24 Efectivamente, se A, detentm~ vende a propriedade da coisa detida a B, entregando-lha, este somente pode ter adquirido posse por via do modo previsto na alfnea a) do artigo 1263Q, o que implica que a causa da aquisi.;ao nao seja a venda, mas apenas o proprio apossamento. 25 Se A, num supermercado, coloca no bolso, por distrac.;ao, uma caneta exposta, adquiriu posse em virtude de este acto significar objectivamente apossamento e, por isso, inten.;ao de apropria.;ao, (pelo menos, ate que se declare o contrario - artigo 1253Q I a)). 18 19

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si9iio do detentor ao possuidor, que constitui a outra modalidade de inversao do titulo. Por exclusao de partes, sempre que assim nao seja, a subordina<;ao de uma coisa ao dorninio da vontade de uma pessoa, nao pode ser havida senao como deten9iio. VI) A inversao por oposi9iio sup6e que o detentor haja afastado a relevancia qualificativa do facto que lhe atribui o corpus, por for<;a da invoca<;ao, nos termos do artigo 1251Q, de uma diferente causa 26 para o mesmo 27 • Exigindo-se, porem, "oposi<;ao", a inversao somente estara consumada quando for do efectivo conhecimento do possuidor aquela invoca<;ao, seja por ela ser levada ao seu conhecimento, seja por o detentor assumir, perante o possuidor, uma conduta objectivamente incompativel corn a autorizada pelo anterior titulo. A razao de ser da exigencia de "oposi<;ao" e 6bvia28 • E que, sem ela, nao haveria a segura demonstra<;ao de que se invoca uma nova causa para o

corpus 29 • VII) A inversao por acto de terceiro 30 sup6e a ocorrencia, entre detentor e terceiro 31 , de urn acto jurfdico potencialmente capaz de transmitir ou constituir urn direito reaP2 a favor do primeiro, o qual vem justificar a manuten<;ao da coisa no poder do (anterior) detentor a titulo diferente 33 • Ao contrario do que por vezes se le 34, nao se exige a boa fe do detentor. Desde que o acto tenha sido efectivamente querido, ate podem estar ambos (detentor e terceiro) de ma fe 35 • Mas, por outro lado, uma vez que a deten<;ao pressup6e, em regra, uma posse a favor doutrem, a eficacia da posse adquirida por inversao do titulo em virtude de acto de terceiro, deve estar mais particularmente dependente da sua publicidade. Quer isto dizer que, dada a confian<;a, assente no titulo

Ou seja: por for.;a da invoca.;ao de urn direito real. A inversao por oposi.;ao e assim, de certo modo, o apossamento levado a cabo pelo detentor. 28 A inversao por oposi.;ao constitui pois uma excep.;ao a conhecida regra nemo sibi ipse causam possessionis mutare potest, (Paulo, D.41.2.3.19). 29 Continuando entao a prevalecer o titulo legitimador da deten<;ao (prindpio da imutabilidade do titulo- artigo 1141/2 do Codigo Civil Italiano). 30 Cfr. Manuel Rodrigues, A Posse- Estudo de Direito Civil Portugues, (Coimbra, Almedina, 1996), pags. 234/235. 31 Alguem estranho, portanto, a rela.;ao possuidor I detentor. 32 Compra e venda, doa.;ao, testamento, etc .. 33 0 que significa que urn negocio translativo como a troca nao serve para este efeito. 34 Por exemplo, Terre-Simler, Droit Civil - Les Biens, (Paris, Dalloz, 4' edi.;ao, 1992), pag. 112. 35 Se, por exemplo, quer detentor, quer terceiro, sabem que a coisa detida e alheia, mas este declara vende-la aquele e este paga o pre.;o acordado, o acto foi efectivamente querido. 36 Cfr. Carvalho Femandes, Li~i5es de Direitos Reais, pag. 286, e A conversiio dos neg6cios juridicos civis, pags. 44 a 46. 26 27

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legitimador da deten<;ao, que 0 possuidor pode depositar no detentor, 0 onus de percep<;ao36 que pelo artigo 1262Q se imp6e aos afectados pela constitui<;ao da nova posse, fica muitissimo aliviado. Isto e: somente se podera dizer que a posse adquirida nestes termos e publica, se 0 adquirente tiver, em rela<;ao a coisa anteriormente detida, inquestionavel mudan<;a de comportamento, facilmente cognosdvel pelo possuidor afectado 37 •

1.2. Factos transmissivos

I) Para a aquisi<;ao derivada da posse, a lei preve expressamente dois modos: tradi<;ao da coisa (artigo 1263Qib)) e constituto possessorio (artigos 1263Q I c) e 1264Q). Por tradi<;ao, ou entrega, entende-se a coloca<;ao da coisa a disposi<;ao do adquirente. Exige-se, obviamente, que tal seja feito pelo "anterior possuidor" . E que haja uma causa 38 que fundamente a correlativa cedencia da posse, (artigo 1267QinQ 11 c)). Enquanto a entrega nao e feita, o transmitente mantem a posse, ainda que o direito real que eventualmente a justifique se tenha ja transmitido ou constituido 39 • 11) Esta regra pode ser excepcionada em varios sentidos. De facto, a entrega, fundada num titulo potencialmente idoneo para transmitir ou constituir urn direito real capaz de justificar a posse, nao e necessaria para a fazer adquirir quando:

i) a coisa esteja ja em poder (deten<;ao) de quem obtem a seu favor, proveniente da pessoa em cujo nome possuia, urn titulo da referida especie - traditio brevi manu. ii) a coisa deva permanecer em poder, por qualquer causa40, sob a forma de deten<;ao, daquele que concede esse titulo - constituto possess6rio (artigo 1264Q I nQ 1)41 • Nem sempre bastara, pois, que essa mudan~a de comportamento seja urn facto not6rio. Sobre a no.;ao de facto not6rio ver, por exemplo, Cunha Gon.;alves, Tratado de Direito Civil Portugues, vol.XIII, (Coimbra, Coimbra Editora, 1940), pag. 536. 38 Nunquam nuda traditio transfert dominium (Paulo, D.41.1.31pr). 39 Em sentido contrario, a avaliar pelo exemplo dado, Carvalho Femandes, Li~oes de Direitos Reais, pag. 288, (a menos que se esteja a considerar o exemplo como urn caso de constituto possess6rio). 4 ° Fala-se precisamente em constituto "individualizado" (Wolff-Raiser, Sachenrecht, trad.esp., vol.!, tomo I, pag. 440) para exprimir a ideia de que a manuten.;ao da coisa em poder do alienante deve ter urna certa causa (razao de ser). E esta causa sera legitima apenas no suposto de a nao realiza.;ao da entrega se fundamentar no consentimento do adquirente, o qual, se nao configurar urn certo neg6cio jurfdico (penhor, dep6sito, comodato, loca~ao, etc.), devera, ao menos, ser havido como acto de mera tolerancia (artigo 1253Q/b)). Assim, se, por exemplo, A, vendedor, simplesmente se recusa a curnprir a obriga~ao de entrega da coisa a B, comprador, nao ha constituto possess6rio. 41 Ha quem sustente (ou sustentasse) a inaplicabilidade do constituto possess6rio a aquisi~ao de posse formal, salvo quando o titulo translativo ou constitutivo seja formalmente valido, (Oliveira 37

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iii) o titulo advier de quem tiver posse jurfdica42 • 0 que pode acontecer em virtude de: - a coisa estar em poder de terceiro que a possua em nome daquele que concede dito titulo - constituto possess6rio (artigo 1264Q I nQ 2); a coisa estar em poder de terceiro possuidor em nome proprio que a haja esbulhado aquele de quem tal titulo e proveniente43• 44 • iiii) a posse se adquira atraves de sucessao mortis causa (artigo 1255Q)45• 46 •

1.3. Factos extintivos

Para alem dos modos normais de extin\=ao de direitos reais, (artigo 1267QI lnQ lla)lb)lc)), a posse extingue-se ainda por for\=a da constitui\=aO, sem o consentimento do possuidor, de outra posse incompativel. Acontece, pm·em, que a posse anterior somente se extingue decorrido que seja urn ano sobre a data da priva\=ao do respectivo domfnio de facto 47, se ela ocorreu publica e pacificamente, ou entao, decorrido que seja urn ano sobre a data em que a nova posse se tornou publica e I ou pacifica, (artigos 1267Q I

Ascensao, Enciclopedia Luso-Brasileira, artigo Posse- DIR. CIV, pags. 8501851). A tese assenta, ao que parece, numa certa concept;ao que liga a ao;:ao de posse ou entrega judicial, (artigos 1044Q e segs. do C6digo de Processo Civil de 1962) ao constituto possess6rio. Talligat;ao e, todavia, muito discutfvel. Acima de tudo por nao sever como e que o detentor, (que nesta concept;ao se sup6e ser o reu), podera assim invocar alguma vez posse em nome proprio, (artigo 1049QinQ2, do citado diploma)! Nao se compreenderia igualmente o disposto no artigo 1047Q I nQ2, (diploma citado ). Mais acertada parece ser a opiniao sustentada por Anselmo de Castro (A ac~iio executiva singular, comum e especial, Coimbra, Coimbra Editora, 1977, pags. 409 e segs.), apenas corn a ressalva de, na act;ao em causa, nao se pressup6r obrigatoriamente que o reu seja urn terceiro em relat;ao ao titulo translativo da propriedade (artigo 1044Q, diploma citado ), pois bem pode ser aquele cuja posse se converteu em detent;ao por for<;a de constituto possess6rio (artigo 1264QinQ1), desde que entretanto tenha havido inversao do titulo. A discussao perdeu actualidade corn a entrada em vigor do novo C6digo de Processo Civil, dado a qui se ter deixado de regular este processo especial. 42 E aquela que surge desacompanhada da efectiva subordinat;ao da coisa ao domfnio do possuidor (poder de facto). Cfr., por exemplo, M.Albadalejo, Curso de Dereclw Civil Espafiol, Ill, Derecho de Bienes, (Barcelona, Bosch, 1982), pags. 29130. 43 E a situat;ao resultante da chamada sobreposi~iio de posses incompatlveis admitida pelo artigo 1267Q I nQ1 I d). 44 Obviamente no suposto de ainda nao ter decorrido o prazo estabelecido no nQ2 do artigo 1267Q. 45 Embora, segundo a opiniao dominante, (cfr., por todos, Oliveira Ascensao, Direito Civil Sucessiies, Coimbra, Coimbra Editora, pags. 384 e segs.), o ambito de aplicat;ao deste modo de aquisi<;ao da posse se restrinja ao herdeiro. ''" A sucessao na posse esta, evidentemente, sujeita a regime especial. De facto, os herdeiros continuam (artigo 1255Q) a posse do autor da sucessao. Daf que, (Oliveira Ascensao, Direito Civil Sucessiies, pags. 3881389): a respectiva data de aquisit;ao da posse nao seja a da abertura da sucessao (artigo 2031Q), mas antes o momento em que teve infcio a posse do de cujus; os caracteres da posse dos herdeiros sejam necessariamente aqueles que ela tinha em vida do autor da sucessao; etc .. 47 Rem amississe videtur, qui adversus nullum eius persequendae actionem habet (Paulo, D.50.16.14.1.).

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/nQ 248 ) 49 • Neste periodo intermedio existem duas (ou mais) posses: uma efectiva - a daquele que esbulhou em ultimo lugar; outra (ou outras) jurfdica - a do esbulhado (ou esbulhados). Exactamente por isso, a todos, (possuidor efectivo e possuidor juridico), se reconhecem os commoda possessionis, (artigos 1268Q e segs.)50, excluindo a usucapiao 51 •

2. Efeitos da posse I) Atendendo basicamente a enumera<;ao constante dos artigos 1268Q a 1300Q, os efeitos da posse serao, ao menos, os seguintes: presun<;ao de titularidade do direito, (artigo 1268Q); aquisi<;ao de frutos, (artigos 1270/1271 Q); benfeitorias, (artigos 1273Q I 1275Q); ac<;6es possessorias, (artigos 1276Q a 1286Q); e, por fim, usucapiao, (artigos 1287Q a 1300Q). A presun<;ao de titularidade do direito correspondente ao domfnio de facto que 0 possuidor vem exercendo e estruturalmente identica a presun<;ao que se estabelece atraves do artigo 7Q do Codigo do Registo Predia!5 2 • Muda apenas o facto concludente: o registo definitivo, aqui; a posse, ali. Como qualquer presun<;ao legal, esta beneficia 0 possuidor com a inversao do onus probatorio, (artigo 350Q/nQ 1), o que significa que o possuidor demandado nao tem 0 onus de provar a titularidade do direito correspondente a sua actua<;ao possessoria. 0 possuidor de boa fe, (artigo 1260Q), tem direito aos frutos naturais e civis proporcionados pela coisa possufda53, independentemente de usucapiao, (artigo 1270Q). 0 possuidor de ma fe deve restituir os frutos que eventualmente tenha percebido 54, assim como responde por aqueles que um proprietario diligente teria muito provavelmente obtido, (artigo 1271Q).

48 A semelhante conclusao se poderia chegm~ de resto, atraves da conjuga.;ao do disposto nos artigos 1257Q I nQl e 1282Q. 49 Cfr. artigo 1167 do C6digo Civil Italiano e artigo 460 I 4Q do C6digo Civil Espanhol (de que, alias, o nQl do artigo 1267Q e quase uma tradu.;ao literal). 50 Entre eles deve, naturalmente, estabelecer-se uma hierarquia, que redunda na determina.;ao da "melhor posse" pelos crihc;rios do nQ3 do artigo 1278Q. 51 Se o prazo estabelecido pelo artigo 1267Q I nQl I d) ja decorreu o problema esta resolvido par natureza: a posse do esbulhado extinguiu-se. Ao inves, se esse prazo ainda se nao consumou, designadamente por se verificar a hip6tese do nQ2 do artigo 1267Q, e a posse do esbulhador que nao e boa para usucapiao, (artigo 1297" e 1300Qinl). 52 Ac6rdao do STJ de 19 I 03 I 2002: I. Nas ac~oes reais, o direito de propriedade eo objecto do processo, o efeito jurfdico que se pretende obter com a ac~iio. II. A presun~iio de propriedade que deriva do registo de aquisi~iio (prevista no artigo 79, CPP84) cede perante a confissiio do titular da inscri~iio, derivada da falta de

contesta~iio do direito de propriedade invocado pelo autor na competente ac~iio real. Ill. A usucapiiio niio e, afectada pelas vicissitudes registrais, valendo por si, mesmo contra o registo de aquisi~iio. 53 Bona fides tantundem possidwti praestat, quantum veritas, quotiens lex impedimenta non est (Paulo,

D.50.17.136). 54

Fructus etiam sunt restituendi (Paulo, D.50.17.173.1).

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No que toca as benfeitorias necessarias e uteis, a relevancia da boa ou da ma fe do possuidor e nula, (artigo 1273Q). Ja, ao inves, em materia de benfeitorias voluptuarias tern relevancia no que toca ao exerdcio do ius tollendi, (artigo 1275Q).

2.1.

Ac~oes

possessorias

I) Quando o formalismo processual implicava a existencia de tipos de ac<;6es, especialmente individualizadas pelo respectivo nomen para finalidades especificas, assumia extrema importancia identificar correctamente a ac<;ao que se intentava. E que, num certo sentido, todas as ac<;6es tinham processo especial. Hoje em dia, uma vez que a cada direito corresponde, em prindpio, uma ac<;ao (artigo 2Q/nQ 2 do Codigo de Processo Civil), e uma vez que se busca, acima de tudo, a justi<;a material, (cfr., especialmente, o artigo 265Q-A do mesmo diploma), a recondw;ao da generalidade das ac<;6es a urn processo comum e uma consequencia quase necessaria. 0 que implica a relativa pouca importancia que decorre da correcta identifica<;ao da ac<;ao, ja que o que o tribunal deve considerar e aquilo que substancialmente se pretende. Razao pela qual, a identifica<;ao da ac<;ao apenas determinara, na melhor das hipoteses, a mais facil e rapida compreensao da sua finalidade 55 . II) Assim sendo, na generalidade dos casos, a referenda as ac<;6es reais serve somente, por urn lado, para dar continuidade a uma certa tradi<;ao historica56, e, por outro, para facilitar a comunica<;ao entre juristas. De qualquer modo, ainda existem certas especies de ac<;6es reais dotadas de urn regime substantivo proprio. Nestas, a sua correcta identifica<;ao sera relevante sempre que, ao menos, urn erro na respectiva escolha possa57 determinar consequencias processuais ou substantivas. E o que se passa, designadamente, corn as ac<;6es possessorias. III) As ac96es reais sao, pois, aquelas que se destinam a defesa de urn direito real. 0 tra<;o comum entre todas elas esta na respectiva causa de pedir: em todas o fundamento da ac<;ao consiste na titularidade de urn determinado

55 Daf que, nas ao;:oes possessonas, "se tiver sido requerida a manuten<;:ao em lugar da restituic;ao, ou esta em vez daquela, o juiz conhecera do pedido correspondente a situac;ao realmente verificada" (artigo 661Q /nQ3, C6digo de Processo Civil). 56 Dentro da qual se identificam, de resto, urn mimero muitissimo mais extenso de ao;:oes do que aquelas que aqui se deixarao referidas (ver, por exemplo, Castan Tobeii.as, Derecho Civil Espafiol, comun y foral, tomo II, Derecho de Cosas, vol. I, Madrid, Reus, 1987, pags. 195 e segs., ou Santos Justo, Direito Privado Romano - III (Direitos Reais), Coimbra, Coimbra Editora, 1997, pags. 109 e segs.). 57 Cfr., de todo o modo, a pemiltima nota.

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direito real, (artigo 498 2 I n 2 4, Cod. Pro c. Civil58 ). 0 que pressupoe, portanto, a demonstra<;ao de que essa titularidade radica no demandante. Apesar da imimera jurisprudencia em sentido contn1rio, nao se ve razao para considerar que a referida demonstra<;ao nao possa ser feita atraves da presun<;ao derivada do registo, (artigo 72, C6digo do Registo Predial), ou atraves da presun<;ao derivada da posse, (artigo 12682 /n2 1/Fparte). Que se saiba, a presun<;ao e urn meio de prova como outro qualquer, (artigos 341 2 e segs.). Assim, somente quando a prova por presun<;ao seja impossivel ou a presun<;ao seja ilidida, e que devera 0 autor proceder a demonstra<;ao positiva da sua titularidade, o que supoe o estabelecimento do chamado trato sucessivo material, (ou seja, supoe a prova da existencia, da validade e da eficacia dos sucessivos factos aquisitivos dos quais dependa a prova da existencia da titularidade actual na pessoa do demandante ). IV) Distinguem-se as ac<;oes reais em ac<;oes possess6rias 59 e ac<;oes

peti t6rias. Destinam-se as primeiras especificamente a defesa da posse. Pressupoem, portanto, a prova do dominio de facto sobre uma coisa. Destinam-se as segundas, segundo a visao tradicional, a defesa da propriedade, embora, por for<;a do disposto no artigo 13152, se devam considerar hoje extensiveis a defesa da generalidade dos direitos reais de gozo, ou, pelo menos em rela<;ao a ac<;ao de reivindica<;ao, extensiveis a defesa de todos os direitos reais cujo exerdcio suponha a apreensao material da coisa seu objecto. Pressupoem, portanto, a prova da titularidade de urn destes direitos. V) Dentro das ac<;oes possess6rias, distingue a lei as ac<;oes de preven<;ao (artigo 12762 ), manuten<;ao (artigos 12782 e segs.), de restitui<;ao (artigos 12782 e segs.) e os embargos de terceiro (artigo 12852 ).

58 Apesar da letra desta disposic;ao identificar a causa de pedir nas acc;6es reais como "o facto jurfdico de que deriva o direito real", isso s6 pode bastar quando nao estiver em litigio a titularidade respectiva, que e justamente o que esta em discussao, por exemplo, na acc;ao de reivindicac;ao, (artigo 1311 2 ). Num caso destes, e necessaria provar, acima de tudo, a validade do referido facto juridico, o que pode facilmente implicar que "o facto jurfdico de que deriva o direito real" seja constitufdo por uma sucessao de factos. De resto, mesmo quando nao e a titularidade do direito real que esta em discussao, continua a ser essa titularidade que constitui a causa de pedir nas acc;6es reais; a prova da mesma e que nao necessita ser tao exigente, bastando entao a simples demonstrac;ao da provavel existencia da titularidade em causa, avaliada por regras de normalidade. Assim, por exemplo, aquele que intenta acc;ao de demarcac;ao, fa-lo por ser proprietario de certo predio e nao por o ter comprado, recebido em doac;ao ou por sucessao, etc.; sendo certo que, precisamente por nao estar em litigio a titularidade dessa propriedade, se pode partir do prindpio que, pela normalidade, aquele que demonstra beneficiar de uma venda ou de uma doac;ao e titular de urn direito sobre a coisa objecto de urn destes actos. 59 Isto naturalmente partindo do prindpio que a posse e urn direito subjectivo de natureza real, tal como acima se defendeu.

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Dentro das aq:oes petit6rias, distinguem-se a ac<;ao de reivindica<;ao (artigos 1311 Q e segs. ), a ac<;ao de demarca<;ao (artigos 1353Q e segs.) e, novamente, os embargos de terceiro (artigo 351 Q, C6digo de Processo Civil). Acrescenta-se a ac<;ao negat6ria, apesar desta nao estar legalmente prevista ou sequer referida. VI) Nominalmente, as ac<;oes possess6rias servem para tutela da posse. Como ha, porem, situa<;oes em que a defesa possess6ria esta atribuida apesar de as mesmas nao se enquadrarem no tipo definido pelo artigo 1251 Q60, das duas, uma: ou 0 ambito da posse, para efeitos das ac<;oes que a tutelam, e mais amplo do que aquele que resulta da referida disposi<;ao 61 , ou e entao necessario reconhecer que em alguns casos o detentor tern tambem legitimidade para intentar ac<;oes possess6rias. Embora a resolu<;ao desta questao envolva a considera<;ao de aspectos que nao podem ser aqui levados em conta, parece evidente, face ao disposto no artigo 351 Q I nQ1 do C6digo de Processo Civil, que a m era possibilidade de recurso as ac<;oes possess6rias nao implica que 0 demandante tenha posse. Alias, esta disposi<;ao legal vai ate muito mais longe do que normalmente a doutrina se atrevia a ir: e que, se nao custa estender a aplica<;ao da tutela possess6ria ao detentor, dado que este, tal como o possuidor, tern o dominio de facto sobre a coisa, ja a extensao da dita tutela a defesa de "qualquer direito incompativel corn a realiza<;ao ou o ambito" de diligencia de apreensao ou entrega de bens judicialmente ordenada, mesmo que niio exista tal dom[nio de facto 62, demonstra que a possibilidade de recurso as ac<;oes possess6rias nao supoe automaticamente que o respectivo autor tenha posse. VII) A ac<;ao de preven9iio supoe que o possuidor tenha justo receio de ser perturbado ou esbulhado. Trata-se, pois, formalmente, de uma ac<;ao, mas substancialmente de urn procedimento cautelar. Tern legitimidade activa para esta ac<;ao, o possuidor que sofra o referido receio; tern legitimidade passiva, o autor da amea<;a de perturba<;ao ou de esbulho. Obviamente nao ha prazo: a ac<;ao pode ser intentada enquanto o receio se mantiver. A ac<;ao de preven<;ao e uma ac<;ao de condena<;ao (corn processo comum), dado que se pretende que da senten<;a respectiva resulte a imposi<;ao ao autor da amea<;a de uma obriga<;ao de non facere.

째 Confiram-se os exemplos mais do que habituais, (artigos 11252 /nQ 2, 1133Q/nQ 2, 1188Q/nQ 2,

6

etc.). 61 Que eo que esta impllcito na distin~ao entre posse civile posse interdicta/, (Menezes Cordeiro, A Posse: perspectivas dogrndticas actuais, Coimbra, Almedina, 1997, pag. 86). 62 Calvao da Silva, Sinal e contrato-promessa, Coimbra, Almedina, 9' edi~ao, 2002, pag. 161. Nao

sendo este o local apropriado, sempre se deve dizer que este entendimento parece profundamente exagerado.

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VIII) A ac<;ao de manutenr;iio pressup6e a perturbar;iio, ou seja, pressup6e a pratica de aetas que impedem o exercfcio normal da posse, desde que dos mesmos nao resulte a priva<;ao, total ou parcial, do domfnio de facto. 0 ambito da ac<;ao de manuten<;ao define-se assim por exclusao de partes face a ac<;ao de restitui<;ao. Tem legitimidade activa para esta ac<;ao, o possuidor perturbado ou os seus herdeiros, (artigo 1281QinQ 1). Estes ultimos naturalmente no suposto que a perturba<;ao ocorreu ou come<;ou em vida do autor da sucessao mas entretanto se verificou o seu falecimento, (antes de decorrido o prazo de caducidade decorrente do artigo 1282Q, bem entendido ). E que os herdeiros continuam a posse do possuidor perturbado, (artigo 1255Q). Tem legitimidade passiva, o autor da perturba<;ao. 0 prazo de caducidade desta ac<;ao e de um ano, (artigo 1282Q), a contar da pratica do acto turbativo ou a contar do inicio da perturba<;ao, se de uma actua<;ao continuada se tratar. E igualmente uma ac<;ao de condena<;ao (com processo comum), pela mesma razao invocada para a ao;::ao de preven<;ao. IX) A ac<;ao de restituir;iio pressup6e o esbulho, ou seja, pressup6e a priva<;ao total ou parcial do domfnio de facto sabre a coisa63 • 0 que significa que se pretende obter a restituir;iio desse domfnio de facto. Tem legitimidade activa, o possuidor esbulhado ou os seus herdeiros, e estes ultimos, claro, no suposto que o esbulho ocorreu em vida do autor da sucessao e este faleceu antes de caducado o prazo para intentar a ac<;ao de restitui<;ao. E que, nao tendo ainda decorrido este prazo, o esbulhado tambem nao perdeu ainda a posse por efeito do esbulho (artigo 1267Q I nQ 1 Id), pelo que os herdeiros continuam a sua posse. Tem legitimidade passiva, o esbulhador e os seus herdeiros, dado que s6 se pode dizer que ocorreu esbulho quando aquele que privou outrem do seu dominio de facto constituiu a seu favor um domfnio de facto incompativel com a manuten<;ao do anterior. 0 que significa que o esbulho pressup6e que aquele que priva outrem do seu dominio de facto constituiu a seu favor uma posse nova ou, ao menos, uma posse de amplitude superior aquela que antes tinha 64 • Por isso, a legitimidade passiva dos herdeiros do esbulhador volta a fundar-se no disposto no artigo 1255Q. Tem ainda legitimidade passiva, aquele que adquira posse sabre a coisa objecto do esbulho ap6s o esbulhador, (sempre contra a vontade do esbulhado),

63 Como e 6bvio, o esbulho nao priva a posse. Caso contrario, o esbulhado nao teria legitimidade para intentar a ac~ao possess6ria de restitui.;ao! 64 Se assim nao se entender, sera necessaria admitir o contrasenso de que, mesmo ap6s caducado o prazo para intentar a ac~ao de restitui~ao, o esbulhado mantem a sua posse (uma vez que, se o esbulho se puder verificar, supondo ja que isso e possivel, mesmo quando o esbulhador nao constitua a seu favor um dominio de facto incompativel com o do esbulhado, nao ha uma "nova posse de outrem", e, portanto, nao se verifica a hip6tese prevista pelo artigo 1267"/nQ 1/d)).

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desde que conhe<;a o esbulho, (portanto, neste sentido, esteja de ma fe). Daqui decorre que nem o terceiro possuidor de boa fe tern legitimidade passiva para esta acc;iio, nem o detentor, (seja a detenc;iio em nome do esbulhador, seja em nome dos herdeiros deste, seja em nome de terceiro possuidor). Tal como a acc;iio de manutenc;iio, a de restitui<;iio esta sujeita ao prazo de caducidade estabelecido pelo artigo 12829 . Trata-se, novamente, de uma acc;iio de condenac;iio (corn processo comum), uma vez que se pretende obter do reu a cessac;iio dos actos que causam a priva<;iio da posse, corn, em geral, a imposic;iio da subsequente obriga<;iio de restituir a coisa objecto do esbulho. A condenac;iio na restituic;iio pode ser obtida logo no despacho saneador se o reu "apenas tiver invocado a titularidade do direito de propriedade, sem impugnar a posse do autor", (artigo 5109 I n 9 5, C6digo de Processo Civil). X) Os embargos de terceiro estiio actualmente configurados como urn incidente da instancia, (artigos 351 9 e segs. do C6digo de Processo Civil). Pressup6em que por acto judicial que ordene a apreensiio ou a entrega de bens se ofenda ou se possa ofender "a posse ou qualquer direito incompativel corn a realizac;iio ou o ambito" desse acto judicial, (artigos 351 9 I n 9 1 e 359 9 I n 9 1, C6digo de Processo Civil), quando o respectivo titular niio seja "parte na causa" 65 . Os embargos de terceiro destinam-se, portanto, a retirar o direito daquele que embarga do alcance desse acto judicial (penhora, arresto, etc.). Se a deduc;iio destes embargos e posterior a efectivac;iio da referida entrega ou apreensiio de bens, diz-se que 0 embargo e repressivo; se e anterior, diz-se que 0 embargo e preventivo. Tern legitimidade activa, o titular da posse ou de "qualquer direito incompativel corn a realiza<;iio ou o ambito" da diligencia judicial de entrega ou apreensiio de bens desde que niio seja "parte na causa". Tern legitimidade passiva, as partes primitivas, (artigo 3579, C6digo de Processo Civil), do processo do qual resultou 0 acto judicial destinado a apreensiio ou a entrega de bens. 0 embargo repressivo deve ser deduzido no prazo de trinta dias ap6s ter ocorrido a apreensiio ou a entrega dos bens ou no prazo de trinta dias ap6s a data em que o embargante teve conhecimento destes factos. Mas, obviamente, tratando-se de urn incidente da instancia, niio poderiio nunca ser deduzidos ap6s a extin<;iio dessa instancia. 0 embargo preventivo podera ser deduzido ap6s o acto judicial de apreensiio ou entrega de bens ter sido ordenado mas antes de ter sido efectivado.

65

Dai que o embargo de terceiro seja uma modalidade dos incidentes relativos

a interven(iio de

terceiros.

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2.2. Usucapiao I) A usucapiao e o modo de constitui(:i'io de direitos reais que pressup6e a manutenc;ao da posse de certa coisa, durante urn determinado lapso de tempo, desde que o exerdcio dessa posse corresponda materialmente ao que seria o exerdcio de certo direito real de gozo, (artigo 1287Q)66 • Por isso a usucapiao e, na sua base, urn dos efeitos da posse. 11) Historicamente67, parece que a usucapio surge como urn modo de

proteger «a boa fe daqueles que tinham adquirido legitimamente qualquer objecto, mas que nao tinham ficado desde logo proprietarios, ou porque a coisa adquirida nao era propriedade do alienante, ou porque nao tinham sido respeitadas as formalidades legais no acto da aquisic;ao» 68 • A evoluc;ao hist6rica posterior implicou urn alargamento da razao de ser da usucapiao. Pode de facto dizer-se que, entre outras raz6es, a usucapiao se justifica, por urn lado, no premio que deve ser dado aquele que promove 0 aproveitamento econ6mico da coisa69, mesmo nao sendo titular de qualquer direito sobre a mesma, e, por outro, na vantagem pratica em obter, tanto quanto possfvel, a coincidencia entre titularidade efectiva e posse. 0 fundamento da usucapiao nao reside, de qualquer modo, no abandono 70 66 Nao de todos, no entanto, (artigo 12932 ). Cfr. acordao do STJ de 24/02/1999: I. As servidoes legnis podem ser constituidas par sentenfa judicial, par decisiio administrntiva e voluntariamente, sendo passive!, neste caso, a constituifiiO par contrato, par testamento, par usucapiiio e par destinafiio do pai de fam11ia. II. Apenas quanta as servidoes niio aparentes ede excluir, par disposifiio expressa da lei, a sua constituifiio par usucapiiio. III. 0 direito de preferencia concedido no artigo 1555e do C. Civil existe qualquer que tenha sido o titulo constitutivo da servidiio legal de passagem em causa. Tao-pouco podem usucapir-se direitos sobre coisas submetidas a regime de dorninio publico ou, em geral, sobre coisas fora do comercio (artigos 1267'/n2 1/b e 2022 /n'lJ.)- res fisci usucapi non potest (Inst., 2.6.9.). E igualmente inadmissivel usucapiao relativa aos chamados bens culturais, (artigo 342, Lei 107/2001 de 08/09 - Lei de bases do patrimon.io cultural). E, apesar de numerosa jurisprudencia em sentido contrario, julga-se que igualmente inadmissivel a usucapiao, (ou a acessao, acrescente-se), contraria a regras urban.isticas, designadamente, a regras sobre loteamentos urbanos - esta aqui em causa, como no que aos bens de dorninio publico respeita, o interesse publico. Cre-se que a partir do que antecede se pode formular a regra segundo a qual a usucapiao nao pode ocorrer sempre que da sua invoca<;iio resulte a infrac<;iio de normas de interesse ou de ordem publica. Dai que, ao inves, ja seja admissive! a usucapiao em infrac<;iio das regras sobre fraccionamento de predios rusticos agricolas, (por causa, designadamente, do disposto no art. 13792 ). 67 Usus auctoritas fundi biennium est, ... cetera rum rerum omnium ... anus est usus, (Lei das XII Tabuas, tabua VI, 3' ). Ver Santos Justo, Direito Privado Romano - III (Direitos Reais), pag. 74. 68 Almeida Costa, Direito Romano (policopiado), pags. 155/156, nota(1). 69 Dada a funfiio social que qualquer direito subjectivo, e muito especialmente o de propriedade, e chamado a desempenhar, (artigo 3342; artigos 832,892, 97', etc., Constitui<;iio da Republica Portuguesa. Cfr., igualmente, os artigos 332 /n'lJ. e 422 das Constitui<;6es espanhola e italiana, respectivamente). 70 Ha quem considere, no entanto, que o prazo de usucapiao e simultaneamente prazo de niio uso contra aquele que pela prescri<;iio aquisitiva seja afectado, (Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Cera! do Direito Civil, Coimbra, Almedina, 2• edi<;iio, 2003, pag. 766). Ja desconsiderando aspectos mais tecnicistas, a explica<;iio da usucapiao atraves de uma fundamenta<;ao puramente objectiva, (Diez-

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a que o proprietario da coisa eventualmente a vote 71 • So de urn panto de vista factual assim se podera descrever o fenomeno. Ill) 0 primeiro pressuposto da usucapiao e a posse. A posse, para este efeito, e a aparencia de titularidade de urn direito real, (artigo 1251 Q). Nao e indispensavel uma actua~;iio correspondente a essa titularidade, como se diz no artigo 1251Q72, embora esse seja o mais frequente modo de manifestac;ao da mesma. Confira-se, corn efeito, por exemplo, o disposto no artigo 1257Q I nQ1 I in fine. A posse pode ser causal ou formal. A posse e causal quando surge apenas como o corolario do exercfcio de urn direito de que efectivamente se e titular 73 • A posse e formal quando a sua relevancia juridica nao depende de nada mais do que da sua propria existencia. Para efeitos de usucapiao pressupoe-se, naturalmente, posse74 formaP. IV) Para poder conduzir caracteristicas.

a usucapiao,

essa posse deve revestir certas

Picazo, Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial, Madrid, Tecnos, 5' edi~ao, 1990, vol.III, pag. 609), afigura-se, porem, incompativel com a exigencia, para efeitos de usucapiao, de uma posse pacifica e publica, (artigos 1297Q e 1300Q/nQ1), assim coma nao se coaduna com a necessidade da sua invoca~ao para que produza os respectivos efeitos, (artigos 1292Q e 303Q). A usucapiao tambem se funda, se nao na negligencia ou na falta de diligencia do titular afectado pelos efeitos da mesma, pelo menos na sua inercia. 71 Coma, por vezes, se ve escrito, (ver, por exemplo, Isabel Pereira Mendes, C6digo do Registo Predial Anotado, Coimbra, Almedina, 5" edi~ao, 1992, pag. 234), e que, sendo a coisa move!, a tornatia susceptivel de ocupa~ao (artigo 1318Q), e, sendo im6vel, seria de todo ineficaz, quer face ao disposto, coma atras se disse, no artigo 217Q/nQ2, quer face a impossibilidade de, regra geral, a propriedade se extinguir pelo nao uso, quer, por fim, por causa da regra contida no artigo 1345Q. 72 Nem "un'attivita" coma se diz no artigo 1140 do C6digo Civil Italiano. Neste panto, parece muito mais correcta a defini~ao do artigo 430 do C6digo Civil Espanhol: "Posesi6n (... ) es la tenencia de una cosa o el disfrute de un derecho ...". 73 Mas, indubitavelmente, "a posse causal nao e (... ) uma decorrencia da titularidade do correspondente direito. Ela exige, sempre, um plus: o controlo material da coisa a que se reporte ou, pelo menos, uma forma juridicamente equivalente", (Menezes Cordeiro, A Posse: perspectivas dogmdticas actuais, pag. 85). 74 Ac6rdao do STJ de 16/12/1999: Implantada uma constru~iio apoiada em prumadas de cimento, em

terreno alheio, cam autoriza~iio do dono desse terreno, a utiliza~iio de tal constru~iio traduz uma mera deten~iio, pelo que niio permite a aquisi~iio par usucapiiio do terreno. 75 Ac6rdao do STJ de 20/03/2001: I. 0 contrato-promessa niio e susceptfvel de, s6 par si, transmitir a posse ao promitente comprador. II. Se este obtem a entrega da coisa antes da celebra~iio do neg6cio translativo, adquire o corpus possess6rio, mas niio assume o animus possidendi, ficando, pais, 1za situa~iio do mero detentor ou possuidor precdrio. Ill. A posse conducente ii usucapiiio tern de ser pziblica e pacifica, influindo as caracterfsticas de boa fe ou md fe, justo titulo e regis to de mera posse na determina~iio do prazo para que possa produzir efeitos jurfdicos. IV A presunqiio do n. 2 do artigo 1260 do C6digo Civil de que a posse titulada presume-se de boa je, e a niio titulada, de md fe, e ilidfvel. V Se o devedor ignorar, cam culpa, que estd a violar o interesse de outrem, niio pode considerar-se de boa je. VI. A posse, par certo lapso de tempo e cam certas caracterfsticas, conduz ii usucapiiio, podendo adquirir par usucapiiio, se a presun~iio de posse niio for ilidida, os que exercem o poder de facto sabre uma coisa.

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Deve, em primeiro lugar, ser uma posse efectivamente exercida 76 durante o lapso de tempo requerido 77 • Em segundo lugar, e como a atribui<;ao de urn direito ao possuidor deve supor a inercia daqueles que potencialmente a isso se poderiam opor, para iniciar a contagem do prazo, exige-se que a posse tenha sido adquirida pacifica e publicamente. Caso contrario, o prazo so come<;ara a correr corn a chamada purijica9iio da posse, (artigos 1297Q e 1300Q/nQ lf8• 79 • E violenta a posse adquirida mediante coac<;ao moral ou coac<;ao fisica, (artigo 126P/nQ 2). E oculta a posse cujo exerdcio nao e cognosdvel pelos interessados, (artigo 1262Q). V) 0 lapso de tempo exigido80• 81 varia em fun<;ao de dois factores basicos:

natureza mobilitiria ou imobilitiria da coisa objecto da posse; boa ou ma fe do possuidor. A boa fe consiste no desconhecimento de que, ao adquirir a posse82, se esta a lesar urn direito alheio (artigo 1260Q/nQ 1)83• 84 • Recorre-se, pois, a chamada boa fe subjectiva, embora seja hoje ponto assente que, o respectivo criteria de aferi<;ao, nao e de base psicologica, mas sim normativa85 • VI) Outros factores que fazem variar o prazo sao o caracter titulado ou nao titulado da posse e a existencia de registo do titulo ou da posse.

76 E nao meramente mantida, (artigo 1257"). Em materia de usucapiao nao deve funcionar, pois, a regra habetur quod peti potest (Ulpiano, D.50.16.143). 77 Cfr., a este prop6sito, a argumenta<;:ao de Oliveira Ascensao, Direito Civil - Reais, pags. 297 a 299. 78 Cfr. os lugares paralelos dos artigos 1267" I n"2 e 1282Q. 79 Corn uma Unica excep<;:ao: a contida no artigo 1300QinQ2, a qual traduz uma aproxima<;:ao

a (en fait

de meubles), possession vaut titre.

Ac6rdao do STJ de 25 I 11 I 1999: I. A usucapiiio, enquanto situa9iio jur{dica em curso de constitui9iio, regula-se pela lei nova que entre em vigor antes de completado o processo de formafiio de tal constitui9iio. II. A valorafiiO da boa fe para que remete o art. 1260, n. 2, e sua repercussiio no art.1296 do CC actual - aplicaveis 80

par forfa da conclusiio antecedente - envolve uma questiio de direito cuja judica9iio e sindicavel pelo STJ. 81 I. Na contagem da dura9iio da posse para efeitos de usucapiiio inclui-se o prazo de urn ana, previsto na alinea d) do n"1 doa rtigo 1267" do C6digo Civil, necessaria para a perda da posse a favor de outrem, (Ac6rdao da Rela<;:ao de Lisboa de 07 11212000). 82 Mala fides superviens non nocet (D.41.1 .4.1.). 83 Embora seja, como resulta do artigo 1260Q, no momento da aquisi<;:ao da posse que se fixa a boa ou a ma fe, a mala fides superveniens nao e totalmente irrelevante, (cfr. artigo 1270Q). 84 Ac6rdao do STJ de 11/0311999: I. Para que a posse conduza a usucapiiio i necessaria niio s6 que

seja pacifica no momento da sua obtenfiiO, mas que assim se mantenha, niio contando a partir do momento em que !he seja feita oposifiiD. II. A ocupa9iio de urn im6vel derivada de urn contrato-promessa de compra e venda desse mesmo im6vel, em que o ocupante age coma se fosse o seu dono, i posse de md fi, para efeitos de usucapiiio, uma vez que o possuidor sabe que lesa direito alheio, vista niio possuir titulo translativo eficaz. 85 Boa fe sera assim o desconhecimento desculpavel ou nao censuravel. Ver, por todos, Menezes Cordeiro, Da Boa Fe no Direito Civil, vol.I, (Coimbra, Almedina, 1985), pags. 516 e segs .. Cfr. artigo 114712 do C6digo Civil Italiano.

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A posse e titulada quando a sua aquisi<;ao suponha a existencia de urn acto jurfdico86 translativo ou constitutivo de urn direito real que, a ser valido, seria a causa, (aquele direito, entenda-se), dessa posse. Exige-se que tal acto tenha observado a forma legal, (artigo 1259Q I nQ 1)87 • Ao inves, a posse e niio titulada se a sua aquisi<;ao: i) se nao Jundar num acto corn a referida eficacia translativa ou constitutiva88• 89; ii) se fundar num acto existente90, corn eficacia translativa ou constitutiva de urn direito real, mas formalmente invalido 91 • VII) Tratando-se de coisas m6veis nao registaveis, sao os caracteres ate agora expostos os unicos que fazem variar 0 prazo. Mas, tratando-se de coisas im6veis ou m6veis registaveis, e preciso considerar ainda mais dois aspectos. Por urn lado, neste caso, a simples existencia de titulo nao diminui o prazo. Exige-se, ainda, o respectivo registo, (compare-se o disposto nos artigos 1294Q e 1296Q corn o disposto nas alineas a) e b) do artigo 1298Q)92 • Por outro, permite-se que, quando nao haja registo do titulo, se proceda ao registo da (mera) posse, (artigo 1295Q; artigo 2Q/nQl/e), C6digo do Registo Predial) 93 • Em tal caso, os prazos da usucapiao poderao equivaler aos da posse titulada corn registo do titulo. VIII) Desde que se possa invocar a acessao dos tempos de posse (artigo 1256Q)94, o prazo conta-se independentemente de quem seja o possuidor95 •

6

Nao necessariamente neg6cio juridico. Pode, por exemplo, ser uma decisao judicial. Cfr., a este respeito, Menezes Cordeiro, A Posse: perspectivas dogmdticas actuais, pags. 91/92. 88 Como sucede, de urn modo geral, nos casos de aquisi.;:ao originaria da posse, (artigo 1263Q/ /a)/d)), excepto no caso de inversao do titulo por acto de terceiro, (artigo 1265Q/2' parte). 89 Fundando-se a "attivita" num acto jurfdico mas sem eficacia translativa ou constitutiva de urn direito real, nao e posse, mas sim deten.;:ao, (artigo 1251QI a contrario ). 90 0 que impede a posse de ser titulada quando tal "acto" seja juridicamente inexistente. 91 Sendo tal acto substancialmente invalido sob a forma de nulidade, (art. 286Q), a posse e titulada. Ao inves, sendo tambem substancialmente invalido mas sob a forma de anulabilidade, (art. 287"), enquanto esse acto nao for anulado, a posse e causal, pelo que s6 uma vez anulado, sera a posse titulada, (no 6bvio suposto de que o beneficiario do acto anulado mantem, apesar da anula.;:ao, a posse da coisa). 92 A falta desse registo, nao importa a razao, faz equivaler a posse titulada a nao titulada. Parece descobrir-se aqui uma razao para nao se ter considerado titulada a posse quando, o neg6cio translativo ou constitutivo em que ela se funde seja formalmente invalido. De facto, o regis to seria af praticamente impossfvel, (artigos 43Q e 68Q, C6digo do Registo Predial). 93 Recorrendo, para o efeito, por for.;:a do disposto no artigo 118Q/nQ2 do C6digo do Registo Predial, ao processo de justifica.;:ao regulado pelos artigos 117Q a 117Q-P do mesmo diploma. 94 Cfr. Manuel Rodrigues, A Posse - Estudo de Direito Civil Portugues, pags. 250 a 253. 95 Ac6rdao do STJ de 11/12/2003: I. Na execuqiio o tribunal niio vende no exercicio de poder '

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originariamente pertencente ao executado, mas sim em virtude de um poder aut6nomo, que se reconhece a propria essencia da funqiio judicidria. II. Assim, o anterior adquirente do direito de propriedade (sabre im6vel) niio registado niio e terceiro, para efeitos de registo nos termos do n 94 do artigo 5 9 do CRP, relativamente ao arrematante em venda executiva do direito de propriedade registado (sabre o mesmo im6vel), nem, muito mows,

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Pressupoe-se unicarnente que, entre a posse daquele que invoca a usucapiiio e aquela/s cujo/s tempo/s de dura<;iio se pretende/m fazer aceder, exista urn nexo de deriva<;iio%. Isto e: s6 se podem aceder os tempos das posses que sucessivarnente tenharn sido adquiridas de modo derivado, (artigo 12639 /b)/c))97, 98 . IX) A usucapiiio aplicam-se, de urn modo geral, por for<;a do disposto no artigo 12929, as regras da prescri<;iio (extintiva). Daqui decorre uma importante consequencia. A usucapiiio niio conduz ipso jure a aquisi<;iio do direito em causa99, pois torna-se imprescindfvel que 0 possuidor, cuja posse seja boa para usucapir, a invoqueHJO, judicial101 ou extrajudicialmente102 (artigo 303 9 ) 103 • A referida invoca<;iio, niio havendo indica<;iio legal em contrario, tanto pode ser expressa como tacitamente efectuada 104 • relativamente ao adquirente posterior ao arrematante. Ill. Niio sendo, assim, terceiro para efeito de regis to, pode aquele anterior adquirente, na ac~iio reivindicativa do predio, que venha a propor, cam fundamento na usucapiiio, contra este ultimo adquirente, alegar e somar a sua posse a dos antepossuidores, nos termos do artigo 1256, ng1 do C6digo Civil. 96 Ac6rdao do 51} de 25/02/1993: I. A posse que pode conduzir i'i aquisi~iio do direito de propriedade por usucapiiio tern de ser uma posse em name proprio. II. Existindo duas posses, que se sucedem no tempo, sabre um predio, mas niio existindo um elo de liga~iio entre ambas - sucessiio ou acessiio - a posse mais recente niio se pode somar a outra para efeitos de usucapiiio. 97 E o que se retira da utilizac;:ao, no artigo 1256Q, da expressao "sucedido". Se o caso for de sucessao mortis causa, o problema da acessao de tempos de posse nem sequer se coloca, ja que os sucessores continuam (necessariamente) a posse do de cujus, (artigo 1255Q). 98 Nos termos do nQ2 do artigo 1256Q, e irrelevante o facto de as posses que se juntam serem de especie ou natureza diferente, embora, em tal caso, a acessao se de apenas dentro do ambito daquela posse que atribua beneficios mais limitados. 99 Como, por exemplo, sucede no C6digo Civil Espanhol segundo M.Albadalejo, Curso de Derecho Civil Espaiiol - Ill, Derecho de Bienes, pag. 109. 100 Ac6rdao do STJ de 21/04/1994: I. Por for~a do disposto no artigo 1292 do C6digo Civil e aplicdvel i'i usucapiiio o disposto no artigo 303 do mesmo diploma, pelo que o tribunal niio pode suprir oficiosamente a usucapiiio, sendo necessaria, para ser eficaz, de ser invocada, ainda que implicita ou tacitamente, devendo o Autor alegar factos que clara e manifestamente integrem os respectivos elementos ou requisitos e revelem inequivocamente a inten~iio de fundamentar nela o seu direito. II. Sendo assim, desde que articulados e provados pelo respectivo interessado os factos constitutivos da usucapiiio, o tribunal tern de os considerar par se entender que desta forma o articulante se tinha querido prevalecer deles. 101 Apesar de nao se ajustar inteiramente a hip6tese, a acc;:ao competente s6 pode ser a de simples apreciac;:ao positiva, (artigo 4Q I nQ2/ a), C6digo do Processo Civil). Em rigor, a introduc;:ao do processo de justificac;:ao previsto nos artigos 117" a 117"-P do C6digo do Registo Predial teve claramente em vista a abolic;:ao da chamada acc;:ao de justificac;:ao judicial ate entao regulada pelo Decreto-Lei nQ 284/84 de 22/08. 0 que, correspondendo ao fen6meno recente da desjudicializa9iio, deveria significar que a invocac;:ao da usucapiao por via de acc;:ao judicial somente seria admissive! "se houver oposic;:ao", (artigo 117"-H/nQ 2, C6d.igo do Registo Predial). Faz sentido, no entanto, que sendo dita oposic;:ao previsivel e antecipdvel, (por exemplo, porque ha titulares recentemente inscritos), o interessado possa recorrer de imediato aos meios judiciais. Mutatis mutandis para a invocac;:ao da usucapiao atraves da escritura de justificac;:ao que a seguir se refere. 102 Atraves da escritura publica de justificac;:ao notarial prevista nos artigos 89Q e segs. do C6digo do Notariado ou do processo de justificac;:ao previsto nos artigos 117" a 117"-P do C6digo do Registo Predial. Uma vez aberta a possibilidade de obtenc;:ao da referida escritura, (artigo 101Q/nQ 2, C6digo do Notariado), o respectivo conteudo somente pode ser impugnado atraves da interposic;:ao da competente

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0 acto judicial ou extrajudicial e, no entanto, meramente certificativo, pois a invoca~ao da usucapiao tern eficacia retroactiva a data do inicio da posse, (artigo 1288Q). A senten~a ou a escritura publica correspondente nao carecem de inscri~ao no registo para se rem eficazes per ante terceiros, (artigo 5Q I nQ 2 I a), C6digo do Registo Predial) 105 • Mas esse registo deve ser efectuado sempre que o direito usucapido vier a ser transmitido ou onerado, (artigos 9Q e 34Q, C6digo do Registo Predial). Tern legitimidade para invocar a usucapiao nao apenas o possuidor que tenha preenchido os requisitos supra mencionados como tambem os respectivos "credores e ... terceiros corn legitimo interesse na sua declara~ao", (artigo 305Q I nQ 1). X) A aquisi~ao por usucapiao e origindria 106 • Quer dizer que o direito adquirido se funda apenas na posse e nao em qualquer direito anterior na titularidade doutrem. Tal posse e, simultaneamente, a medida da aquisi~ao por usucapiao. Isto e, 0 conteudo do direito usucapido, e igualmente dado pela forma como se exerceu a posse ate a invoca~ao da usucapiao - quantum possessum tantum

praescriptum 107 •

ac~ao judicial: I. A acr;iio onde se pede se declare de nenhum efeito e nula certa escritura de justificar;iio notarial e uma acr;iio de simples apreciar;iio negativa. II. Nas acr;oes de simples apreciar;iio negativa compete aos reus provar os factos constitutivos do direito a que se arroga, (Ac6rdao do STJ de 1110412000).

"n 10

'

Invoca~ao essa que e feita no exercicio de urn direito real de aquisi~ao. Ac6rdao do STJ de 0310211999: I. A usucapiiio considera-se invocada desde que se mostre alegado

o complexo fdctico subjacente. Tal invocar;iio pode pois ser implfcita ou tdcita, se os factos alegados integrarem, de modo manifesto, os respectivos elementos ou requisitos constitutivos e revelarem a intenr;iio inequivoca de fundar o seu direito na usucapiiio. II. A usucapiiio implim sempre a existencia de dais elementos: a posse e o decurso de certo periodo de tempo, tendo a posse de ser sempre ptiblica e pacifica; os restantes caracteres (boa ou md-fe, titulo ou niio titulo e registo ou niio registo) apenas influem no prazo necessaria para a prescrir;iio aquisitiva. III. Quando tenha havido transmissiio da posse, o sujeito pode juntar asua a posse do seu antecessor ou antecessores, mesmo para efeitos de usucapiiio. IV A usucapiiio em nada e prejudicada pelas vicissitudes registrais - conf a excepr;iio da al. a) do n. 2 do art 5 do CRP84. V E assim ineficaz em relar;iio nos respectivos adquirentes niio s6 a venda judicial do predio adquirido par essa via origindria, ainda que essa transmissiio par via judicial (aquisir;iio derivada) haja sido objecto de registo anterim; coma tambem as penhoras de tal predio que hajam sido registadas. 105 A inscri~ao de aquisi~ao por usucapiao tern, pois, efeito emmciativo. 106 Ac6rdao do STJ de 01 I 07 I 1999: I. A usucapiiio e uma forma origindria de aquisir;iio de direitos. II. A usucapiiio tem eficdcia retroactiva plena, em relar;iio a quem quer que seja, independentemente do regis to. 107 Ac6rdao do STJ de 0410211993: I. Nos termos do artigo 1524 do C6digo Civil, "a direito de superficie consiste na faculdade de construir ou manter, perpetua ou temporariamente, uma obra em terreno alheio", sendo a propriedade do chiio que pertence ao fundeiro, enquanto a propriedade da obra cabe ao superficidrio. II. Admitida a usucapiiio coma fonte aquisitiva do direito de superficie sabre edificio jd construido, a sua operosidade, par banda do superficidrio, hd-de depender da verificar;iio do condicionalismo enunciado nos artigos 1287 e seguintes do C6digo Civil, condicionalismo que, observando o corpus, hd-de relativamente ao animus, traduzir-se na convicr;iio do usucapiente deter e fruir a obra, isto e, somente a construr;iio, coma superficidrio, ou seja, cam exclusiio do terreno em que a mesma estd implantada.

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E verdade, porem, que este aforismo somente e inteiramente veraz para a usucapiao "fundada unicamente en la posesi6n", mas ja nao na usucapiao que se funda em "justo titulo y donde por conseguiente se usucapira en la medida en que el titulo lo permita y de acuerdo corn el" 108 . A menos, neste ultimo caso, que tenha havido inversao do titulo da posse, (art. 1263Q). XI) Todos os direitos anteriormente existentes sobre a coisa objecto da usucapiao se extinguem por incompatibilidade, uma vez esta invocada. 0 exercicio desses direitos pode, no entanto, ter sido "reconhecido" ou "autorizado" pelo possuidor, (ou seja, pode suceder que o possuidor tenha permitido o exercicio dos mesmos apesar de a respectiva constitui<;ao lhe nao ser imputavel). Formalmente, porem, invocada a usucapiao, tais direitos extinguem-se109 retroactivamente a data do inicio da posse, (artigo 1288Q). Constituir-se-ao outros, entretanto, corn urn conteudo correspondente a medida de posse que tiver sido "autorizada" pelo possuidor110, no justo momento em que este venha invocar a usucapiao 111 • Significa isto que a disposi<;ao contida no artigo 1291 Q se deve aplicar a todos os casos de conflito de posses sobre a mesma coisa 112 • Exceptuam-se deste esquema, aqueles direitos reais que nao atribuam qualquer medida de posse (como a hipoteca) 113 • Af, a invoca<;ao da usucapiao limita-se a extingui-los, quando hajam sido constitufdos por urn anterior titular. Ao inves, os "direitos" concedidos pelo possuidor antes de invocada a usucapiao, constituem-se retroactivamente assim que esta seja invocada, (artigo 1288Q), em virtude de, supervenientemente, isso lhe conferir legitirnidade para o efeito.

2.3. Usucapio libertatis

I) De certo modo, a usucapio libertatis mantem afinidade corn o nao uso. Em qualquer caso, se verifica o nao exercicio de urn direito real. Mas, num

108

Diez-Picazo, Fundamentos del Derecho Civil Patrimonial, vol.III, (Madrid, Civitas, 1995),

pag. 743. 109 For ilegitimidade (superveniente) daquele que os constituiu, se tal tiver ocorrido depois do inicio da posse, (artigo 1288Q). 110 Ac6rdao do STJ de 04 / 11/2003: I. Os encargos constituidos par usucapiiio siio impostos pelos factos e, assim, uma vez desaparecidos ou ultrapassados "a latere" os Jactos que lhe deram origem nenhuma reserva se Ievanta contra a extin~iio da servidiio. II. Pelo que podem as servidiies de passagem constituidas par usucapiiio ser declaradas judicialmente extintas a requerimento do proprietcirio do predio serviente desde que se mostrem desnecesscirias ao predio dominante (art•. 1569Q nQ. 2 C. Civil). 111 Este formalismo pode parecer escusado, mas nao e. De facto, s6 por mera casualidade terao esses direitos sido "autorizados" pelo possuidor tal e qual como terceiro os tinha constituido. 112 E nao apenas ao conflito paralelo que literalrnente se preve. 113 Ja que, nao atribuindo posse, sao insusceptiveis de criar o conflito que pode levar o possuidor a aceita<;:ao/rejei<;:ao do exercicio de urn direito constituido por terceiro.

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panto nao despiciendo se distinguem: na usucapio libertatis, o nao exerc1c10 decorre de oposi9iio ao exerdcio criada pelo titular de outro direito real conflituante sobre a mesma coisa. II) A usucapio libertatis sup6e, assim, em primeiro lugar, a exish~ncia de dois direitos reais sobre a mesma coisa. Mas, pressup6e, acima de tudo, que esses dois direitos conflituem entre si, de modo a que a oposi<;ao criada por urn dos titulares em presen<;a o possa beneficiar corn a eventual extin<;ao resultante do nao exercfcio do direito alheio. E de facto esse beneficia a razao de ser da usucapio libertatis, que, alias, de forma expressiva, resulta literalmente dos artigos 1569Q I nQ 1 I c) e 1574Q: "aquisi<;ao (...) da liberdade do predio" 114 • Ill) Apesar da expressao utilizada inculcar liberta<;ao da propriedade, nada impede que, tendo em conta o pressuposto enunciado, a usucapio libertatis provoque a descompressao de outros direitos reais. Quer dizer: tanto pode ser o proprietario do predio serviente a opor-se ao exerdcio da servidao, do direito de superficie, do usufruto, etc.; como o comproprietario a opor-se ao exercfcio do direito do outro comproprietario; como o usufrutuario a opor-se ao exerdcio da servidao, do uso e habita<;ao, etc.; como o titular de uma servidao a opor-se ao exerdcio doutra servidao incompativel; que, em qualquer caso, pode vir a produzir-se a usucapio libertatisn 5 •

IV) Constata-se, igualmente, que se sup6e atribufrem ambos os direitos conflituantes poderes que se manifestam em actua<;6es materiais sobre uma coisa. E impossfvet por exemplo, a extin<;ao por usucapio libertatis da hipoteca, ja que e inconcebfvel uma oposi9ii0 por parte do titular do direito onerado contra o exercfcio do direito de hipoteca. Oposi9iio aparece aqui, pois, como sin6nimo de cria9iio de impedimentos de natureza material ao exerdcio de direito real alheio sobre a mesma coisa. 0 que leva, por outro lado, a concluir que a usucapio libertatis pode produzir a extin<;ao, nao apenas direitos de gozo, como tambem de garantia ou de aquisi<;ao, sempre que estes autorizem actua<;6es de natureza material sabre uma coisa, (por exemplo, o penhor ou a consigna<;ao de rendimentos na hip6tese do artigo 661QinQ 1lb)).

114 " ..• Si yo, a pesar de estar gravado, poseo algo mio como libre, ciertamente que no puedo adquirir su dominio, porque ya me pertenece, pero puedo adquirir el pod er que me fait a (en el ambito en que limit a mi dominio el derecho real del otro ), ya que a! poseer la cosa como si ese pod er no existiese, poseo tambien el contenido de senorio que corresponde a tal poder" (M.Albadalejo, Curso de Derecho Civil Espafiol - III, Derecho de Bienes, pag. 135). 115 Os artigos 1569Q I nQ1 I c) e 1574Q devem, pois, entender-se, como m eras aflora.;oes de uma regra geral: qualquer direito onerador se pode extinguir pela usucapio libertatis. Cfr. Oliveira Ascensao, Direito Civil - Reais, pag. 413.

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V) Como a propria designa<;ao permite deduzir, a usucapio libertatis e uma figura proxima da usucapiao. Na verdade, apos a pratica do/s acto/s de oposi<;ao, e necessano que o titular do direito contra quem essa oposi<;ao se faz nao reaja. E, para alem disso, que a oposi<;ao sem reac<;ao se mantenha por certo lapso de tempo, (por forma a se poder presumir 0 desinteresse a partir da inercia daquele que nao reage). Durante esse periodo, aquele que se opos deve, pois, passar a exercer o seu direito "como se a onera<;ao nao existisse" 116 • 0 que imediatamente apela a ideia de posse. VI) Nao se pode, no entanto, falar de posse, no seu sentido tecnico-jurfdico (artigo 1251 Q), uma vez que nao esta em causa o direito daquele que se op6e, mas sim o direito daquele contra quem a oposi<;ao e feita. Ou seja: o primeiro nao esta a adquirir o direito alheio 117, nem esta a adquirir urn direito proprio incompatfvel corn a manuten<;ao daquele direito alheio, (como sucederia se de verdadeira usucapiao se tratasse). Pelo que e extremamente improprio falar de usucapio libertatis para enquadrar aquelas situa<;6es em que o possuidor, ao invocar a usucapiao, extingue direitos reais alheios cujo exerdcio nao foi "autorizado" pelo possuidor118 • VII) Apesar das diferen<;as, para alguma coisa serve a equipara<;ao entre usucapiao e usucapio libertatis. De facto, o apelo que o artigo 1574Q faz a usucapiao, leva a concluir que o prazo a que o seu nQ 2 se refere, tern de ser urn dos prazos da usucapiao, (artigos 1294Q a 1300Q). Por outro lado, a mesma equipara<;ao, implica que, a extin<;ao do direito que onera e contra o qual foi erguida a oposi<;ao, somente se dara quando a usucapio libertatis for invocada, judicial ou extrajudicialmente, (artigos 1292Q e 303Q). VIII) Destinando-se a usucapio libertatis a produzir a desonera(:iio, tanto extingue, como se disse, urn direito qualitativamente igual, como urn direito qualitativamente diferente 119 • Em qualquer caso se verifica o desaparecimento de urn direito que comprimia o exerdcio doutro direito.

11 6 56 assim se podendo falar, findo o tal lapso de tempo, em "aquisi<;:ao da liberdade do predio", (artigos 1569Q/nQ1/c) e 1574Q). 11 7 Dai que a usucapio libertatis seja urn modo de extin<;:ao e nao urn modo de aquisi<;:ao, sendo a letra dos artigos 1569Q/nQ1/c} e 1574Qapenas uma forma mais enfatica de expressao. 11 8 Como, por exemplo, faz Castan Tobefi.as, Derecho Civil Espafiol, comun y foral, tomo II, Derecho de Cosas, vol. I, pags. 396/397. 119 Corn opiniao diversa, Oliveira Ascensao, Direito Civil - Reais, pags. 413 a 414.

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2.4. UsucapHio versus aquisi\;aO tabular I) No caso do registo de aquisi~ao por usucapiao, o registo e de facto indiferente para que o efeito aquisitivo se produza, dado que o facto no qual se funda a usucapiao e necessariamente urn facto publico, (artigos 1297Q e 1262Q). A realiza~ao do registo de nada adianta, pois, em termos aquisitivos. No maximo, a realiza~ao do correspectivo registo incrementa a possibilidade de a aquisi~ao por usucapiao ser conhecida. Sucede no entanto que a realiza~ao do registo de aquisi~ao por usucapiao acaba por se tornar indirectamente for~osa, em virtude de a norma contida no nQ 1 do artigo 9Q do C6digo do Registo Predial se aplicar, indistintamente, qualquer que seja a natureza do facto registavel de que beneficia o transmitente ou o autor da onera~ao. II) 0 que ja se afigura mais duvidoso, apesar de se tratar de uma afirma~ao recorrente na doutrina120 e na jurisprudencia 121 nacionais, e que a aquisi~ao por usucapiao prevale~a sempre sobre o registo de facto incompatfvel corn essa usucapiao de que outra pessoa beneficie. Usualmente, tal afirma~ao funda-se tanto no facto de o registo de aquisi~ao por usucapic'io ter efeito enunciativo, como no facto de a posse, (que subjaz a usucapiao ), valer mais do que o registo por for~a do disposto, por exemplo, no artigo 1268Q. Cre-se que, na verdade, do disposto no nQ 1 do artigo 1268Q se pode retirar que a posse vale mais do que o registo quando seja anterior ou exacta-

120 Oliveira Ascensao, Efeitos substantivos do Registo Predial na ordem juridicn portuguesa, ROA, I-IV, 1974, pags. 42 a 45; Menezes Cordeiro, Direitos Reais, (cadernos de ciencia e tecnica fiscal, Lisboa, 1979), pag. 392, e Direitos Reais - sumdrios, (Lisboa, AAFDL, 2000), pag. 95; Galvao Telles, Registo de ac~ao judicial (sua relevancia processual e substantiva), in 0 Direito, ano 1242 , 1992, pag. 509. Cfr., igualmente no mesmo sentido, o Ac6rdao do STJ de 0410412002, anotado por Teixeira de Sousa, Cadernos de Direito Privado, n 2 2, 2003, pags. 53 a 63, e Lebre de Freitas, A penhora de bens na posse de terceiro, ROA, ano 52, 1992, II, pag. 322), no caso de colisao entre credor exequente que regista penhora sabre coisa relativamente a qual terceiro esta em condi~;oes de invocar usucapiao. Contra, (ao menos quando os prazos para efeitos de usucapiao tenham sido cumpridos atraves da acessao de tempos possess6rios- artigo 12562 do Cod. Civil), Anhmes Varela- Henrique Mesquita, Anota~ao ao Ac6rdao do STJ de 03/06/1992, in Regesta, ano XV, n 2 4, pags. 59 a 63. 121 Cfr. o Ac6rdao do STJ de 10 I 07/1979: I. A preswz~ao de propriedade resultante do artigo 8 do

C6digo do Regis to Predial e ilidivel por prova em contrdrio, contra ela prevalecendo a usucapiao ou prescri~ao aquisitiva. II. Mas, urna posse em name proprio nao e compativel cam a circunstancia de o possuidor, a quando da actualiza~ao das matrizes, ter indicado quem constava do registo coma dono dos predios que assinou a respectiva declara~ao, tendo sido tambem este quem veio a inclui-lo na declara~ao do imposto complementar. Cfr. igualmente o Ac6rdao da Rela<;ao do Porto de 25 I 06 I 2002: A aquisi~ao de wn predio, por arremata~ao em hasta pziblica, em processo de execu~ao, devidamente registada a favor do comprador, nao pode opor-se a aquisi~ao anteriormente efectuada par usucapiao par terceira pessoa ainda que nao registada. Ou ainda o Ac6rdao da Rela~ao de Lisboa de 07/1212000: II. A presun~ao de propriedade resultante do regis to predial baseado em senten~a de justifica~ao de posse e escritura de justifica~ao de usucapiao (artigo r do C6digo do Registo Predial) cede perante senten~a de aquisi~ao par usucapiao a favor de terceiro.

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mente da mesma data que esse registo. Ao inves, se a posse for posterior ao registo, vale mais este, dado que a presun~ao de titularidade que lhe esta associada prevalece. Mas para o que ora esta em causa, daqui podera retirar-se, no maxima, que a usucapiao somente superara o registo de facto conflituante quando a posse que lhe serve de fundamento seja anterior ou, na pior das hip6teses, contemporanea desse registo. Acresce que, por muita publicidade que espontaneamente esteja associada a posse, (artigo 1262Q), raramente, (para nao dizer nunca), conseguira esta ultrapassar 0 ambito de publicidade associada ao registo, quanta mais nao seja por este existir especificamente para dar a conhece1~ ao passo que a posse da a conhecer, e de forma muito restrita, apenas marginal e ocasionalmente. Ha, no entanto, urn forte argumento de sentido contrario: e que a usucapiao se baseia numa posse efectivamente exercida ao longo do prazo exigido para que aquela possa ser invocada 122 • Ora, neste pressuposto, pode justificarse a prevalencia da usucapiao sobre o registo de facto incompatfvel uma vez que foi o possuidor que promoveu, ao longo do prazo da usucapiao, o aproveitamento econ6mico da coisa possufda e, por isso, merece que se lhe conceda o direito em causa, especialmente perante aquela pessoa que, beneficiando de registo a seu favor, nem sequer tern a coisa em seu poder. Todavia, do ponto de vista publicitario, ou seja, na perspectiva do publico em geral, (que e o que importa quando se considera a situa~ao de terceiros), sustentar a prevalencia da aquisi~ao por usucapiao sobre a aquisi~ao registada a favor de outrem implica afirmar o maior valor relativo da publicidade derivada da posse quando comparada corn a publicidade derivada do registo. 0 problema nao pode, porem, colocar-se em termos que suponham uma compara~ao entre o valor relativo da realidade registal e o da realidade extraregistal, pois, caso contrario, qualquer situa~ao de infidelidade do registo perante a realidade extra-registal assim deveria ser equacionada. Se, por exemplo, A, tern, sobre o im6vel x, registo de aquisi~ao a seu favor, por compra, e vende a B, o qual regista a sua compra, podera este ultimo ser atingido pela demonstra~ao de que c, possuidor do referido im6vel, ja invocou usucapiao ou esta em condi~oes de a invocar a seu favm~ nao obstante a nao tenha ainda inscrito? E verdade que, em casos deste genera, a posse daquele que invoca ou invocou a usucapiao podera, em geral, impedir, por sua vez, a invoca~ao de boa fe por parte daquele que adquire a partir do titular registal e que regista tal aquisi~ao. Mas, sera impossivel que essa boa fe exista?

122 Nem faria sentido de outro modo, pois, caso contr<irio, chegar-se-ia ao ponto de o nao exercicio de um direito - a posse - poder conduzir a aquisi~ao de outro direito, em vez de conduzir a extin~ao - por prescri~ao, caducidade ou nao uso - daquele direito que nao se exerce, como seria normal, (Oliveira Ascensao, Direito Civil - Reais, pags. 297 a 299).

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Imagine-se, no exernplo de ha pouco, que B, ern vez de cornprar a propriedade, beneficiou da constitui<;ao de urna hipoteca a partir de urn contrato celebrado corn A, sern que, no rnornento do registo de constitui<;ao dessa hipoteca, C ja tivesse registado a sua aquisi<;ao par usucapiao. Para sentido, nurna hipotese destas, preterir aquele que adquiriu a partir do titular registal a favor daquele que beneficia da usucapiao, quando, par cornpara<;ao, goza de rnuito rnaior cognoscibilidade a provavel titularidade de A, proprietario segundo o registo, do que a de C, titular par via da posse e da consequente usucapiao? III) Ha sisternas de registo predial, coma o espanhol, onde a institui<;ao esta particularrnente desenvolvida, ern que a usucapiao relativa a coisas registaveis so pode dar-se rnediante o decurso de urn prazo especialrnente alargado e, aspecto rnais irnportante, desde que o possuidor tenha inscri<;ao a seu favor posterior aquela contra cujo beneficiario se invoca a usucapiao, (artigo 1949 do Codigo Civil Espanhol; artigo 35 da Ley Hipotecaria 123 ). 0 que significa, bern vistas as coisas, que nao basta a usucapiao; e tarnbern necessaria que a posse correspondente tenha sido exercida secundum tabulas. E, contra aquele que beneficie do efeito atributivo do registo, a usucapiao so pode dar-se ern condi<;6es ainda rnais particulares, (artigo 36 da Ley Hipotecaria), que sup6ern, entre outros requisitos, "que el adquirente", (o beneficiario do efeito atributivo ), "conocio o tuvo medias racionales y rnotivos suficientes para conocer, antes de perfeccionar su adquisicion, que la finca o derecho estaba posefda de hecho y a titulo de duefio par persona distinta de su transrnitente" 124• 125 • Outros sisternas juridicos ha que nern sequer adrnitern tal hipotese. E caso de todos aqueles que concedern ao registo predial efeito constitutivo, coma o alernao, nos quais apenas se adrnite a usucapiao secundum tabulas 126 e rnediante o decurso de urn prazo para o efeito relativarnente longo, (§ 900 do Codigo Civil Alernao 127).

Sobre o modo coma se deve proceder a conjuga-;ao entre as duas disposi-;6es, ver Roca I Trias, La usucapi6n, in Derechos Reales y Derecho Inmobiliario Registral de L6pez y L6pez - Montes Penades, (Valencia, Tirant Lo Blanch, 1994), pags. 222 a 224. 124 Segundo Castan Tobef\as, (Dereclw Civil Espaiiol, Comun y Foral, tomo II, vol. I, pags. 393/ 394), a "Ley ha pretendido resolver, con una soluci6n arm6nica, las dudas y dificultades que ofrece esta clase de usucapi6n. Aceptarla sin reservas ( ... ) supondria abrir una peligrosa brecha en el sistema; pero su inadmisi6n equivaldria al mantenimiento de una situaci6n ficticia y de una completa discordancia entre el Registro y la verdad extrarregistral". 125 Para a distin<;ao entre as diversas hip6teses contempladas pelo artigo 36 da Ley Hipotecaria ver, de novo, Roca I Trias, La usucapi6n, in Derechos Reales y Derecho Inmobiliario Registral de L6pez y L6pez - Montes Penades, pags. 225 a 228. 126 Alias, na doutrina regis tal afirma-se mesmo urn principio de limitaci6n de la usucapi6n <<contra tabulas», (Garcia Garcia, Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario, tomo I, Madrid, Civitas, 1988, pags. 545/546). 127 Wolf- Raiser, Sachenrecht, trad.esp., vol.I, pag. 314, ou J.W.Hedemann, Sacltenrecht, trad.esp., Madrid, Editorial Revista de Derecho Privado, 1955, pags. 133/134. 123

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IV) 0 que esta em causa nao e, sublinha-se, a colisao entre o titular extraregistal e o usucapiente 128, mas a colisao entre aquele que adquire a partir do titular registal e regista, (ou seja, o terceiro registal), e o usucapiente sem registo de aquisic;ao (por usucapiao) anterior129 . 0 disposto no nQ 2/ a) do artigo SQ do C6digo do Registo Predial, por contraposic;ao corn o respectivo nQ 1, contem urn argumento de peso no sentido de que, nesta colisao, a usucapiao deve prevalecer - a usucapiao e urn facto que produz efeitos contra terceiros independentemente de registo. V) 0 que faz sentido.

Se a usucapiao s6 pode ser invocada no pressuposto de que a posse de que e efeito foi exercida publicamente, (artigos 1297-l e 13002 /nQ 1), isso significa que a respectiva existencia pode, (ou podia), ser conhecida pelos interessados, (artigo 1262Q). 0 adquirente a partir do titular registal, (ou seja, 0 terceiro registal), e manifestamente urn interessado para efeitos do disposto no artigo 1262Q. Por isso, das duas, uma: ou o terceiro registal podia ter tido conhecimento 130 da posse do usucapiente, caso em que nao ha razao para ser protegido, uma vez que, (coma adiante se dira), a protecc;ao do referido terceiro depende da sua boa fe; ou, ao inves, nao podia tal posse ser conhecida pelo terceiro registal, caso em que a usucapiao nao podera ser invocada ou, se ja o foi, devera ficar sem efeito 131 • Afigura-se por isso que, em conclusao, tendo em conta que a posse s6 e publica se o seu exercicio puder ser conhecido, (artigo 12622 ), ou se, pelo menos, a sua existencia puder ser conhecida atraves do registo, (artigo 1295Q), quando alguem tenha beneficiado de urn qualquer facto aquisitivo que se funde em registo em vigor a favor do transmitente I onerante nao possuidor, clever-se-a dar prevalencia ao possuidor que invoque a usucapiao desde que: a sua (mera) posse tenha sido anteriormente registada, (artigo 1295Q); ou, 128 "Frente a quien no tenga la consideraci6n de tercero protegido pela fe publica, se entiende que la prescripcion debe actuar con plena eficacia y segiln !as normas del Derecho civil", (Castan Tobefias, Derecho Civil Espaiiol, Comun y Fora/, tomo II, vol. I, pag. 394). 129 Menezes Cordeiro, Direitos Reais, pag. 393. 130 0 artigo 1262Q impoe, como de resto e geralmente reconhecido, urn onus de diligencia aqueles que para este efeito puderem ser havidos como interessados. A posse sera, pois, susceptivel de conhecimento desde que uma pessoa de normal diligencia se pudesse ter apercebido da respectiva existencia, (ver, por exemplo, Carvalho Fernandes, Liroes de Direitos Reais, pag. 286). 131 "Un sistema hipotecario que hiciera prevalecer en todo caso la usucapi6n contra tabulas £rente a! tercero hipotecario, dejaria desarbolada la seguridad juridica del trafico y no seria un buen sistema hipotecario. Hay que tener en cuenta que tanto la usucapion como la publicidad registral tienen como base proporcionar la seguridad juridica. Por eso, la solucion del conflicto entre ambas instituciones ha de hacerse teniendo en cuenta una serie de consideraciones, sin que se pueda pretender que prevalezca en todo o caso una sobre la otra", (Garcia Garcia, Derecho Inmobiliario Registral o Hipotecario, tomo I, pag. 545).

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desde que, coma se diz no artigo 36 da Ley Hipotecaria, o adquirente a partir do titular registal devesse conhece1~ no momento da aquisi<;:ao, que a coisa a qual o facto que o beneficia se refere estava na posse de terceiro usucapiente, (ou seja, desde que tal posse seja publica nos termos gerais do artigo 1262Q132 ). Caso contnirio, devera prevalecer o adquirente a partir do titular registal, ou seja, o terceiro registal.

Areas urbanas de genese ilegal 3. Breve

descri~ao

I) 0 parcelamento de terrenos corn potencial edificativo e a subsequente realiza<;:ao de aetas de edifica<;:ao nao e, em Portugal, urn puro exerdcio da liberdade individual desde que, pelo menos, entrou em vigor o Decreto-Lei nQ 46.673, de 29 de Novembro de 1965, mas, mais acentuadamente, corn a publica<;:ao do Decreto-Lei nQ 289/73 de 6 de Junho. Em ambos se fazia ja a exigencia de interven<;:ao do Estado, atraves do competente licenciamento municipal previa, para que ditas opera<;:5es se tornassem legalmente admissfveis. Sucede que, por raz5es multiplas e variadas, ainda que todas entronquem numa deficiencia congenita para cumprir e para fazer cumprir a lei, particularmente condenavel quando estao em causa relevantes interesses comunitarios, o referido diploma revelou-se relativamente pouco eficaz. Quer dizer, par outras palavras, que continuaram a ocorrer, frequentemente, aetas de parcelamento de terrenos corn potencial edificativo, assim coma continuaram a ocorrer aetas de edifica<;:ao, sem o competente licenciamento. A este fen6meno se convencionou dar a designa<;:ao de loteamento clandestino ou constru<;:ao clandestina. Sucede que o referido fen6meno assumiu propor<;:oes socialmente tao relevantes, especialmente nas zonas metropolitanas de Lisboa e Porta, (ainda que na verdade se tenha espalhado par todo o pafs) 133, que a aplica<;:ao das consequencias legalmente determinadas para a falta do licenciamento em causa tornou-se politicamente inconveniente. 132

Deste entendimento decorre, o que se afigura inteiramente acertado, que a posse para efeitos de usucapiao deva ter sido publicamente exercida, (artigo 1262Q do C6d.Civil), durante todo o prazo exigido para que a usucapiao possa ser invocada. Mas, do mesmo entendimento decorre tambem que, invocada a usucapiao, se o correspondente registo nao tiver sido efectuado, ou a posse se manh~m publica, ou entao deveni continuar a prevalecer o adquirente a partir do tiht!ar registal. 133 Segundo dados da DGOTDU, em Abril de 2003 existiriam, em todo o pafs, cerea de 960 AUGI's delimitadas. E e preciso notar que nem todas as Ci'tmaras Municipais responderam ao inquerito organizado pela DGOTDU e que certamente nao foram ja delimitados todos os loteamentos clandestinos susceptfveis de se subsumirem ao regime AUGI.

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11) Porem, a manuten~ao dos referidos loteamentos na clandestinidade, ou seja, na ilegalidade, teria graves implica~6es sociais - desde a inexistencia ou a debilidade de infra-estruturas basicas ate as dificuldades que tal fazia surgir ao nivel do proprio planeamento urbanistico. Assim se justifica o aparecimento da Lei nQ 91 I 95, de 2 de Setembro, a qual, pela primeira vez, criou uma regulamenta~ao espedfica para os citados loteamentos clandestinos especialmente destinada a legalizd-los. A verdade, no entanto, e que, por defini~ao, tais loteamentos estavam feitos, assim como as constru~6es neles existentes estavam concluidas na sua larga maioria. 0 que quer dizer que aquela regulamenta~ao legal jamais poderia ter caracter draconiano. E, na verdade, ela constituiu sobretudo o reconhecimento de multiplas situa~6es de facto criadas e consolidadas. Os pr6prios loteadores e, principalmente, os construtores clandestinos eram ja titulares de legitimas expectativas relativas a manuten~ao daquelas situa~6es . Alias, nao s6 o diploma em causa se limita praticamente ao reconhecimento das situa~6es urbanisticas de facto entretanto criadas, como logo resulta da defini~ao constante do numero 1 do seu artigo 1Q134, como para varios efeitos irrip6e o dever de reconversao urbanistica (artigo 3Q) na medida do possivel (conferir, por exemplo, o disposto nos artigos 6Q, 37Q, 46Q ou 50Q).

3.1. Requisitos basicos de

aplica~ao

do regime AUGI

I) Para que urn predio ou conjunto de predios possa ser havido como AUGI e necessaria que esteja em determinadas condi~6es, as quais, no essencial, aparecem estabelecidas no nQ2 do artigo 1Q da Lei 91 I 95 135 • A saber: que se trate de urn unico predio ou que, tratando-se de urn conjunto de predios, estes sejam contiguos; que inexista licen~a de loteamento; - que o referido predio ou predios tenham sido objecto de actos materiais de parcelamento ou fraccionamento; - que esse parcelamento tenha sido realizado para efeitos de edifica~ao predial; - que o mesmo parcelamento tenha ocorrido antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nQ 400184, de 31 de Dezembro;

134 "A presente lei estabelece o regime excepcional para a reconversiio urban(stica das areas urbanas de genese ilegal (AUGI)". 135 Nos termos do n 2 1 do artigo 42 da Lei n 2 91/95, o processo de reconversao pode ser organizado: a) Coma opera<;:ao de loteamento da iniciativa dos proprietarios ou comproprietarios; b) Coma opera<;:ao de loteamento ou mediante piano de pormenor da iniciativa da respectiva cfunara municipal.

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que o PMOT tenha classificado o predio ou predios em causa como espa<;o urbano ou urbanizaveP 36 • Na determina<;ao do ambito de aplica<;ao do regime AUGI, o aspecto mais marcante reside no facto de, apesar da inexish~ncia de licen<;a de loteamento, se tenha ainda assim parcelado o terreno e, na sequencia, edificado sobre cada urn dos lotes resultantes do fraccionamento. Como so excepcionalmente, quando de todo nao seja juridicamente viavel outra solu<;ao, devem as constru<;oes erigidas ser demolidas137, daqui se deve concluir que a aplica<;ao do regime AUGI consiste essencialmente na aplica<;ao de uma "capa juridica" a situa<;ao factual previamente criada e consolidada. A aplica<;ao do regime AUGI destina-se, na essencia, a legitimar uma certa factualidade originariamente ilicita, adaptando-a, na medida do exigivel, mas tambem na medida do razoavelmente possiveP 38, aos parametros urbanisticos gerais 139 • Salvaguardas as devidas distancias, trata-se, pois, de urn fen6meno que apresenta algumas semelhan<;as corn a usucapiao - trata-se sempre da transmuta<;ao de uma situa<;ao originariamente ilicita numa situa<;ao juridicamente admissive! atraves da consolida<;ao daquela e para tutela das expectativas entretanto geradas. 4. Efeitos

I) A Lei nQ 91 I 95 assinala muito particularmente urn efeito decorrente da submissao de urn predio ou conjunto de predios ao regime AUGI: dai resulta, na verdade, para os possuidores de lotes envolvidos, o chamado dever de reconversiio. 0 que, nos termos do respectivo artigo 3Q, significa que, 1 - A reconversiio urbanistica do solo e a legaliza(iio das constru(oes integradas em AUGI constituem dever dos respectivos proprietdrios ou comproprietdrios. E que 2 - 0 dever de reconversiio inclui o dever de conformar os predios que integram a AUGI cam o alvard de loteamento ou cam o plana de pormenor de reconversiio, nos termos e prazos a estabelecer pela dimara municipal. Pretende-se certamente vincar que, apesar das facilidades que se concedem para a legitima<;ao do facto consumado, as adapta<;oes minimas exigidas formam 0 contetido de urn dever imposto aqueles que beneficiam do regime especialmente favoravel estabelecido pela Lei nQ 91 I 95. 136 E ainda assim possfvel a reconversao urbanfstica ao abrigo do regime AUGI, mesmo que o predio ou conjunto de predios so parcialmente esteja integrado em solo urbano ou urbanizavel, se as condi<;:6es exigidas pelo artigo 52 da referida Lei estiverem preenchidas. 0 que, mais uma vez, manifesta que a referida reconversao se faz na medida do possivel. 137 Artigos 52, 62 e 72 da Lei n 2 91 I 95. 138 Existem, alias, solu<;:6es legislativas paralelas. E o que sucede, por exemplo, corn as chamadas constru~oes irregulares em terrenos baldios (artigo 392, n 2 1 e n 2 2, Lei n 2 68/93, de 4 de Setembro). 139 Tanto que ate "e sempre dispensada a apresentariio de estudo de impacte ambiental" (artigo 182 / n 2 4 da Lei n2 91/95).

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II) Ha, todavia, urn importante efeito resultante da concessao do alvara de loteamento ou da aprovac;ao do plana de pormenor (artigo 4Q da Lei nQ 91 I 195) que nao aparece literalmente expresso: e que qualquer dos referidos titulos consagra juridicamente uma determinada ocupac;ao do solo ate entao realizada. Tanto o alvara de loteamento coma o plana de pormenor em causa, (ou seja, no dizer da lei, o titulo de reconversao ), deverao, na medida do possfvel, adoptar o fraccionamento predial existente (artigos 18QinQ1Id)lf) e 24QinQ 5). Assume-se, por outras palavras, que a utilizac;ao predial factualmente preconstitufda fundamenta certas expectativas que o titulo de reconversao, ate onde possfvel for, devera respeitar (artigos 24QinQ3Ic) e 31QinQ1Ib)). 0 que se acentua muito particularmente quando seja possfvel e se pretenda a posterior 140 divisao dos lotes atraves do chamado acordo de uso (artigo 37Q da Lei nQ 91 I 195).

Ill) A emissao do titulo de reconversao assemelha-se, quanta aos efeitos, do documento autentico (escritura publica ou decisao judicial) que formaliza a invocac;ao da usucapiao constitutiva de urn ediffcio ou conjunto imobiliario em regime de propriedade horizontal (artigo 1417QinQ1). Em qualquer caso, a utilizac;ao predial factualmente pre-constitufda fica juridicamente legitimada, para o passado e para o futuro, coma facto consumado. Desde que, evidentemente, num caso e noutro, certos requisitos materiais el ou jurfdicos, de natureza essencialmente urbanfstica, sejam ou estejam verificados.

a obtenc;ao

IV) Possessio plurimum facti habet (Papiniano, 0.4.6.19). De facto, a situac;ao daqueles que edificaram ou pretendem edificar sabre as parcelas resultantes do loteamento nao autorizado submetido ao regime AUGI e de posse: sabre algum late - aquele que ja delimitaram el ou sobre o qual ja construiram - ou sabre a totalidade do predio abrangido pela declarac;ao de AUGI, no caso contrario. E claro porem que, tanto na primeira coma na segunda hip6tese, a sujeic;ao ao regime AUGI apenas produz o efeito consistente na obtenc;ao de permissao para o loteamento pre-planeado el ou pre-executado. Pelo que, portanto, perante a usucapiao constitutiva da propriedade horizontal, a aplicac;ao do regime AUGI apresenta, ao menos, a seguinte diferenc;a. A invocac;ao da usucapiao constitutiva da propriedade horizontal opera dais efeitos sucessivos concomitantemente: coloca o ediffcio ou conjunto imobiliario em regime de propriedade horizontal, parcelando-o juridicamente em fracc;oes aut6nomas, e atribui aos possuidores, agora cond6minos, a propriedade relativa a fracc;ao aut6noma sabre a qual cada urn exerceu a respectiva posse. 140

Na verdade, de harmonia corn o disposto no ar tigo 22 / n 2 2 da Lei 91/95, "o .direito de exigir

a divisiio s6 pode ser exercido ap6s a emissiio do respectivo titulo de reconversiio".

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Ao inves, a obten~ao do titulo de reconversao AUGI apenas produz o parcelamento jurfdico do terreno, originando 0 numero de lotes administrativamente aprovado. Por isso, de acordo corn a regra nemo invitus compellitur ad communionem (Ulpiano, D.l2.6.26.4), a posterior distribui~ao destes por cada urn dos possuidores envolvidos depende de urn acto de divisao, (como sucede, de resto, em qualquer situa~ao de compropriedade de harmonia corn o estabelecido nos artigos 1412Q e 1413Q, ainda que corn as especialidades decorrentes da aplica~ao do disposto nos artigos 36Q a 44Q da Lei nQ 91/95). Todavia, o que importa salientar e que, corn maior ou menor numero de requisitos, a reconversao urbanfstica operada, ao abrigo do regime AUGI, atraves da emissao do piano de pormenor ou do alvani de loteamento produz o reconhecimento jurfdico da situa~ao meramente factual ate entao existente. Situa~ao essa que, enquanto urn dos referidos tftulos nao se obtem, tern cankter ilfcito e que, depois, se legitima tal e qual como essencialmente se pre-constituiu -quantum possessum tantum praescriptum. Que e exactamente 0 que sucede em qualquer situa~ao possess6ria susceptfvel de conduzir a usucapiao. V) Ha ainda uma outra diferen~a entre a usucapiao constitutiva de propriedade horizontal e o reconhecimento da situa~ao de facto resultante da aplica~ao do regime AUGI. E que aquela nao se limita a reconhecer a utiliza~ao predial pre-existente, pois tambem sana eventuais vfcios relativos a titularidade sobre o ediffcio ou conjunto imobiliario em causa. 0 que se explica em virtude de a usucapiao pressupor o decurso de urn determinado prazo (longo ), dentro do qual os legftimos titulares poderiam ter reagido contra a situa~ao possess6ria adversamente constitufda - e pois a inercia destes que, em ultima analise, justifica a extraordinaria eficacia da usucapiao. Ao inves, a emissao do titulo de reconversao ao abrigo do regime AUGI nao pressup6e o decurso de qualquer lapso temporal rigidamente fixado. Mas o decurso de algum lapso temporal ha-de supor; e, habitualmente, bastante longo 141 • De facto, caso contrario, como se poderia retirar a conclusao de ter ocorrido, ate a data em que se inicia o processo de reconversao urbanfstica, uma preutiliza~ao predial factualmente consolidada? De todo o modo, como o lapso temporal capaz de justificar a constitui~ao de legftimas expectativas a favor dos possuidores do predio ilegalmente loteado nao e, nem ha razao para que seja, aquele que a lei exige para efeitos de usucapiao, e factfvel que aqueles que conseguiram o reconhecimento jurfdico da utiliza~ao predial pre-existente possam nao se1~ em simultaneo, os legftimos titulares do predio relativamente ao qual foi emitido o referido titulo de recon-

1 11 Alias, neste momento, os mumeros loteamentos clandestinos espalhados pelo pais que ' ainda niio foram objecto do processo AUGI de reconversao ja estao nessas circunstancias ha mais de vinte anos, a tento o disposto no nQ 2 do artigo 1Q da Lei 91 I 95.

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versao 142 • Caso em que, quem o for, podera reivindicar o pn§dio e aproveitar (ou nao) os efeitos da aplicac;:ao do regime AUGI. Evidentemente sem prejufzo, de que, em concomiHincia casual, tenham ja decorrido os prazos gerais da usucapiao (artigos 1294Q a 1296Q) a favor dos possuidores dos lotes ilegalmente obtidos, hip6tese perante a qual a respectiva titularidade, como comproprietarios, ficara salvaguardada (artigo 1313Q).

5. Condusao Deve entender-se, assim, que o regime AUGI se enquadra como uma especie particular dentro do instituto mais geral da protecc;:ao de expectativas fundadas em, (ou geradas por), situac;:oes de facto consolidadas. E a prova dessa consolidac;:ao esta essencialmente ligada a prova do decurso do tempo: a situac;:ao em causa estara tanto mais consolidada quanto mais tempo tiver durado (o que e ate uma asserc;:ao justificada pelo senso comum). E a falta do decurso desse tempo muito dificilmente autorizara o surgimento de legitimas expectativas. Ao lado, por exemplo, da usucapiao, da prescric;:ao ou da caducidade, o regime AUGI constitui assim (mais) urn instituto destinado a satisfac;:ao da necessidade de estabilizac;:ao da vida jurfdica, que assenta fundamentalmente na manutenc;:ao de uma situac;:ao meramente factual capaz de gerar expectativas de tutela ou de reconhecimento jurfdico 143 • Tais expectativas constituem o corolario, por urn lado, da necessidade de respeitar factos consumados e de, na sequencia, respeitar riqueza econ6mica entretanto criada. Por outro, e talvez mais significativamente, sao o resultado do dever de dar execuc;:ao ao programa constitucional implfcito no reconhecimento do direito a habitar;iio (artigo 65Q, Constituic;:ao R.P.).

Apesar dos cuidados que a lei pas na instrw;iio do processo dirigido a reconversiio, exigindo-se, designadarnente, a apresenta.;iio das cornpetentes certid6es do registo predial que legitirnern a pretensiio dos requerentes (artigo 18Q I nQ1 I a), Lei nQ 91 195), a possibilidade de a presun.;iio assente no registo (artigo 7Q, C6d.Reg.Predial) niio se harrnonizar corn a realidade extra-registal deve ser considerada urna vez que tern natureza juris tantum (artigo 350QinQ2). 143 Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, pags. 7491750. 142

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0 pensamento filosofico, politico e juridico polaco teve - nos seculos passados - uma importante contribuit;:ao para a format;:ao da visao de uma Europa unida. Nao seria exagerada a afirmat;:ao que a colaborat;:ao polaca neste dominio e compan1vel as concept;:6es pioneiras e inovadoras nascidas na Baixa Idade Media na parte Ocidental do Velho Continente. Entre os precursores estrangeiros das ideias integracionistas europeias - desenvolvidas no nosso continente - basta aqui fazer ment;:ao das propostas de Pedro Dubois (s.XIV), do rei hussita Joao de Podebrad (s.XVI), do monarca frances Henrique IV (s.XVII) ou das concept;:6es de Emanuel Kant, Joao Rousseau e de Napoleao Bonaparte, assim como das numerosas teorias do seculo proximo findo de A Briand, R. Coudenhove-Kalergi, J. Monnet, Ch. De Gaulle, R. Schuman, K. Adeanuer, W. Churchill. Alguns destes pensadores estrangeiros foram inspiradores para as idealizat;:6es polacas relativas a necessidade de unir a Europa como uma federat;:ao de todo o continente ou de uma das suas partes. De outro lado, nao se pode excluir a influencia das concept;:6es unificadores polacas sabre projetos identicos na Europa Ocidental. Neste dominio, era especialmente influente a chamada escola moderna polaca do direito internacional dos seculos XV e XVI corn as suas ideias da guerra justa e da coexistencia pacifica dos Estados (Paulo Wodkowic, Estanislau de Skarbimierz, Andre Frycz-Modrzewski). Como se vera, inovat;:6es originais aportaram a doutrina polaca do seculo dezanove, promovidas por Adalberto Jastrzebowski e Estevao Buszczyski. Os inicios da ideologia europeia na Polonia ocorrem o reinado da dinastia Jageliao (1386-1572). No fim do seculo XIV nasceu no meu pais a ideia de federar - sabre o principio "os livres corn os livres, os iguais corn os iguais" as tres nat;:6es: polaca, lituana e russa. A uniao dos tres Estados iniciada em 1385 sobreviveu ate a chamada terceira partilha1 da Polonia em 1795, realizada

* Universidade de Wroclaw (Polonia). Tradw;:ao para portugues de Krystian Complak e revisao cientffica de Humberto Nuno de Oliveira. 1 As anteriores partilhas do territ6rio ocorreram em 1772 e 1793 (N.R.).

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pelos seus vizinhos, Russia, Prussia e Austria, isto e ate ao ultimo desmembramento do pais e sua perda da independencia ate 1918. 0 objetivo de longo alcance da politica da dinastia Jageliao era nao so criar a federat;ao referida, mas tambem uma Uniao de Estados que se estendesse do Mar Baltico ao Mar Negro. Apesar deste designio nao ter sido nunca materializado, ainda no seculo XX se tentou fundar tal federat;ao - tema que abordarei mais adiante. Antes de no seculo proximo findo se intensificar na Polonia o interesse dos pensadores e politicos pela unidade europeia, ja desde o seculo XVIII que apareceram - corn intensidade desigual - nas doutrinas politicas do nosso pais, diferentes ideias inovadoras neste dominio. Urn dos primeiros advogados polacos da fundat;ao da federat;ao europeia foi Estanislau Leszczynski - o rei patrio, duas vezes eleito. Este monarca apresentou, em 1748, uma proposta no sentido de ser feita, pelos soberanos dos Estados europeus daquele tempo, uma aliant;a comum, liderada pela Frant;a a fim de se manter urn "equilibrio justo" no continente. Estanislau Leszczynki tornou dependente o seu estabelecimento, da emergencia no futuro - nao determinado corn precisao - duma estrutura folgada de toda a Europa, baseada nos interesses comuns. Nao obstante, este rei nao acreditava na possibilidade de eliminat;ao das guerras entre as nat;6es do Velho Continente. Propostas institucionais mais concretas, no que tange a construt;ao da unidade europeia, conteve o projecto do padre Caetano Skrzetuski no seu livro intitulado "A historia politica para a juventude nob re", editado ja no periodo da desintegrat;ao da Polonia depois da chamada primeira partilha do pais em 1772, isto e, apos a anexat;ao de parte do seu territorio pelas tres potencias vizinhas acima mencionadas. Este projecto determinava a format;ao dum governo federativo, duma instituit;ao representativa a semelhant;a do parlamento, dos tribunais amigaveis e do exercito comum. K. Skrzetuski via a possibilidade de estabelecer uma federat;ao dos paises europeus - na sua maioria cristaos - por razao da crescente ameat;a por parte do Islao. Na instituit;ao de tal federat;ao, ele entreviu tambem - como urn dos primeiros intercessores da unidade europeia - a esperant;a num desenvolvimento economico geral, vindo a ser assim o vaticinador das Comunidades Europeias apos a Segunda Guerra Mundial. Urn interessante projecto de reorganizat;ao da Europa foi apresentado no inicio de seculo XIX o principe Adao Czartoryski: o conselheiro do czar russo Alexandre I e depois cabet;a da emigrat;ao polaca na Frant;a. 0 aristocrata polaco fazia saber que a futura Europa - surgida apos a derrota da Frant;a napoleonica - seria formada pelas tres federat;6es: eslava (capitaneada pela Russia), alema (corn a participat;ao do Holanda e da Suit;a, mas sem a Prussia e Austria, estes ultimos paises considerados demasiado fortes) e italiana. Czartoryski via o lugar da Polonia nesta novel estrutura politica, ao lado da Russia, nao como o seu vassalo mas na qualidade de Estado soberano. No intuito de garantir a paz e a cooperat;ao na Europa o principe polaco sugeria a criat;ao dum orgao supranacional: a Liga Europeia, chefiada pela Russia e Gra-Bretanha.

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Contudo, os pianos do aristocrata polaco foram reduzidos a nada pelo desencadear no Reino Polaco, em 1830, da insurrei<;ao armada contra o invasor russo. Os tnigicos sucessos deste periodo na Polonia constituiriam a premissa para o lan<;amento, pelos pensadores politicos patrios, de urn novo piano da unidade europeia. 0 seu paladino principal foi o ja aludido Adalberto Jastrzebowski, o qual ate elaborou urn projeto de Constitui<;ao Europeia apoiado no prindpio de respeito universal do direito internacional delineado pelo Congresso Europeu - coma orgao legislativo supremo da futura comunidade do nosso continente - corn a inten<;ao de impor a paz na area abrangida. Coma guardiao da "paz eterna" entre os Estados europeus federados seria constituido urn exercito comum, cuja fun<;ao deveria ser a de desencorajar os possiveis agressores de fora do continente. Em rela<;ao a todos os Estados federados, o visionario polaco sugeria a introdu<;ao da obriga<;ao de se desarmar totalmente. Tambem adivinhava que na Europa unificada - nos pianos militar, economico e politico - desapareceriam as fronteiras entre os Estados, o que possibilitaria a livre circula<;ao de pessoas e mercadorias. Se Jarzebowski sonhava corn a unifica<;ao de todo o nosso continente apesar de ter conscii:~ncia do caracter utopico das suas ideias - Carlos Libelt, o disdpulo de W.F. Hegel, era da opiniao nos tempos da chamada Primavera dos Povos Europeus (1848), que so seria possivel criar federa<;6es regionais. Ele desejava estabelecer - para come<;ar - a federa<;ao eslava: posteriormente outras associa<;6es politicas e territoriais europeias. A primeira organiza<;ao deveria apoiar-se no "parentesco cultural" das na<;6es da Europa Central e Oriental e observar rigorosamente o prindpio da soberania dos seus membros. Achava como uma das mais importantes condi<;6es da constitui<;ao desta federa<;ao - no 拢undo so uma confedera<;ao - a recupera<;ao da Independencia pela Polonia mediatizada. Por isso, C. Libelt nao encontrava obje<;6es ou reservas contra a luta armada como urn meio de liberta<;ao do pais. A partir dos meados do seculo XIX, a ideologia europefsta polaca aceitou a ideia de instituir uma federa<;ao eslava mais ou menos folgada. A favor do estabelecimento duma comunidade regional dos eslavos pronunciavam-se ja entao os artifices do romantismo e messianismo polacos, liderados pelo nosso mais notavel poeta nacional Adao Mickiewicz. Este autor da epopeia 路nacional, nao ignorava a ideia de uma federa<;ao de toda a Europa. Mickiewicz via - ao crer em voca<;ao historica do seu povo - na Polonia ressurgida, urn dos paises dirigentes da nova comunidade continental. Nas opini6es deste autor e de outros poetas romanticos, os elementos europeistas ligavam-se, em geral, conteudos patrioticos de forte matiz nacionalista. Uma contribui<;ao original para o desenvolvimento das concep<;6es polacas de unidade europeia deu o historiador acima referido Estevao Buszczynski. No seu livro editado em 1867 corn titulo a "Queda da Europa" postulou o estabelecimento nao so duma federa<;ao europeia sobre os escombros do sistema feudal absolutista em decomposi<;ao, mas ate de uns Estados Unidos da Europa, moldados pelos regimes norte-americano e sui<;o, antecipando corn os seus ideais o escritor frances Victor Hugo. Na sua abordagem do problema da

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configura~ao da Europa do futuro Buszczynski encostava-se a bagagem da doutrina liberal de entao, apontando para a necessidade de assegurar a liberdade da actividade econ6mica, bem coma dos direitos e liberdades civis. 0 tra~o caracterfstico do seu projecto da comunidade europeia era de uma precisao raramente vista nas ideias daquela epoca entre os autores corn concep~oes semelhantes a respeito dos prindpios e forma de operar dos Estados Unidos da Europa. E. Buszczynski imaginava que o poder na futura Europa seria exercido pela etnopolia, uma institui~ao eleita pelas assembleias nacionais. Este corpo composto pelos fenoritos (aficionados da luz e da verdade), isto e por pessoas mais sabias corn a tarefa de expressar a vontade geral. Segundo este autor, os 6rgaos federativos europeus deveriam ser formados pelas camaras mezagoritas e pelos conselhos cenopoliticos, dotados de atribui~oes legislativas. E. Buszczynski introduziu corn inten~ao estes neologismos para sublinhar a natureza excepcional e importante das institui~oes governamentais de todo o continente. A esta estrutura deveria pertencer tambem o arqui-rei coma urn 6rgao do poder executivo e o Tribunal Supremo da Confian~a Universal coma 6rgao controlador e judiciario. 0 prindpio basico do funcionamento dos prospectivos Estado Unidos da Europa deveria ser a independencia dos individuais Estados membros. Este visionario polaco projectou mesmo as armas pr6prias da Uniao Europeia em forma da cruz vermelha ao sol rodeada de aneis e de duas divisas em latim: In Voluntate Unitas; In Libertate Solus. Vale a pena acrescentar que ap6s a Primeira Guerra Mundial identicas armas adoptou Ricardo von Coudenhove-Kalergi para o seu muito influente Movimento Pan-europeu. 0 fundador deste Movimento tomou coma panto de partida da unifica~ao do nosso continente, a cria~ao no seu territ6rio duma zona alfandegaria comum. Na Pol6nia daquele tempo, o conhecido advogado Alexandre Lednicki era urn partidario ardoroso desta localiza~ao. Devido ao grande peso das fortes tendencias germanicas no Movimento Pan-europeu, a Pol6nia nunca apoiou decididamente as iniciativas de Coudenhove-Kalergi. E preciso sublinhar que ja em 1917 Ignacy Paderewski- o compositor famoso e presidente do Conselho dos Ministros na Republica de Pol6nia em 1918 defendeu tambem o estabelecimento dos Estados Unidos da Europa. Ainda antes da Pol6nia recuperar a independencia em 1918, e durante os vinte anos da Segunda Republica Polaca a maior parte das concep~oes unificadoras distinguiam-se pela aspira~ao a elaborar urn modelo de unidade europeia geral ou parcial, o qual levaria em conta a posi~ao geopolitica da nossa na~ao coma o pais situado entre a Alemanha e a Russia. Corn receio da potencia e da hegemonia destes Estados nao se previa habitualmente nos projectos polacos da Europa a comum participa~ao destes dais pafses, na sua constru~ao, ou ao menos procurava-se demostrar a necessidade de restringir consideravelmente o seu papel internacional. Tambem, nos nossos dias, as condi~oes geopoliticas acima citadas continuam a incidi1~ embora ja nao tao fortemente coma nos ano 1918-1945, na visao polaca da estrutura da Europa, no decorrer de processos unificadores.

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0 papel mais importante no pensamento politico polaco do perfodo entre 1918 e 1939 coube a concep<;ao da federa<;ao regional da Europa Central e Oriental. Nao se podem enumerar todos os agrupamentos partidarios que se pronunciavam a favor duma uniao dos Estados desta especie. Entre os seus adeptos estavam nomeadamente os militantes do Partido Socialista Polaco e especialmente o marechal Jose Pilsudski - urn dos homens de Estado polaco mais destacado na centtiria passada. Ja antes de terminar a Primeira Guerra Mundial, ele achava oportuno uma federa<;ao da Polonia corn a Lituania, Letonia, Bielonissia e Ucrania, dirigida pelo nosso pafs. Quando a Polonia recuperou a independencia em 1918 Pilsudski empreendeu esfor<;os para por em pratica os seus pianos. Devido a atitude negativa da Lituania, todos estos desfgnios falharam. A mesma sorte sofreu a concep<;ao do entre-mares (intermarum), isto e da federa<;ao dos Estados colocados entre o Baltico e o Mar Negro. Tambem sofreu uma derrota o empenho das elites militares polacas daquele tempo para por em pratica a ideia de prometefsmo. Esta ideia supunha a pouco real desintegra<;ao do imperio sovietico em Estados independentes: Ucrania, Bielonissia, Georgia e Armenia. Passada essa fase de forma<;ao da vida nacional autonoma, todos estes pafses deveriam fazer uma alian<;a corn a Polonia. Em rela<;ao a isso, as autoridades polacas apoiavam mesmo uma actividade antisovietica dos emigrantes da Caucasia. Nao eram porem muito populares - no perfodo entre as duas guerras mundiais - os raros projectos de federa<;ao polaco-tchecoslovaca. Tambem estes pianos - a semelhan<;a do intento de revivificar a uniao historica da Polonia corn a Lituania - comportavam negativamente os rancores redprocos e os velhos litfgios territoriais. A Lituania e a Tchecoslavaquia acusavam entao a Polonia de tendencias hegemonicas na Europa Central e Oriental. As rela<;6es mutuas complicavam-se adicionalmente pelas anexa<;6es territoriais polacas de partes destes pafses. Os projectos de federar a Polonia corn a Tchecoslovaquia voltaram a vida apos o infcio da Segunda Guerra Mundial. Os governos no exflio dos dois Estados iniciaram em 1941 a coopera<;ao a fim de preparar "os prindpios do acto constitucional" da Polonia e da Tchecoslovaquia. Na concep<;ao deste projecto tomaram pessoalmente parte o primeiro ministro polaco Lasislau Sikorski e o presidente tchecoslovaco Eduardo Benes. Desde o come<;o, nao exclufram a extensao - no futuro - da federa<;ao aos outros Estados da area: Hungria, Romenia, Austria e Lituania. As bases da federa<;ao polaco-tchecoslovaca elaboradas em 1941 previam 0 estabelecimento de orgaos de poder comuns aos dais Estados, entre outros, o Conselho Superior Federal, a Assembleia Federal e o Chefe do Estado-Maior Geral. No infcio de 1942 foi conclufdo urn tratado entre os dais governos em materia de emigra<;ao. Este convenio mandatou a constitui<;ao nao de uma federa<;ao, mas de uma confedera<;ao polaco-tchecoslovaca. Por causa da aproxima<;ao politica do presidente tchecoslovaco a Uniao Sovietica, as negocia<;6es ulteriores entre ambos os lfderes politicos foram interrompidas.

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Ainda assim, a ideia da uniao corn a Tchecoslovaquia nao foi abandonada nem em circulos da emigra<;ao polacos na Europa Ocidental, nem em alguns meios politicos clandestinos no territ6rio nacional ocupado pela Alemanha de Hitler. Esta ideia era promovida entre outros por Edmundo Romer, urn dirigente politico polaco na Gra-Bretanha, que vinculou a esperan<;a para a sua realiza<;ao a vit6ria da Alian<;a das quatro potencias que lutavam contra o Ill Reich. Ao mesmo tempo, aconselhava os polacos a regular correctamente as rela<;6es corn a Uniao das Republicas Socialistas Sovieticas. E. Romer via de boa vontade - na futura federa<;ao tambem a Jugoslavia e a Bulgaria, bem como paises nao eslavos como Austria e Hungria. Os intelectuais nacionalistas polacos pensavam durante a Segunda Guerra Mundial numa federa<;ao muito mais vasta, cujas caracteristicas tinham muita afinidade corn a teoria federativa de entre-mares acima brevemente descrita. Contudo, nesse momento as concep<;6es mais populares eram - ja irreais em 1943 - as que sugeriam uma uniao polaco-tchecoslovaca. Nos primeiros anos depois da conflagra<;ao universal, referiam-se a esta federa<;ao do nosso pais corn o seu vizinho do sul os comunistas polacos governantes na Pol6nia. A crescente dependencia do nosso pais da Uniao Sovietica e a sua qualidade de membro do chamado campo socialista nao eram factores propicios para desenvolver na Pol6nia concep<;6es integracionistas europeias. Estas concep<;6es nao eram compativeis corn a divisao do continente em dois blocos politicos, econ6micos e militares: dum lado da Comissao das Comunidades Europeias (CCE) e da Organiza<;ao do Tratado do Atlantico Norte (OTAN) e de outro do Conselho de Assistencia Econ6mica Mutua (COMECON) e do chamado Pacto Militar de Vars6via. As concep<;oes polacas no que tange a constru<;ao da Europa Unida estavam presentes ap6s 1945 sobretudo nos circulos da nossa emigra<;ao na Europa Ocidental. Em 1949 foi inclusivamente fundada em Paris uma organiza<;ao para divulgar os ideais integracionistas - Uniao dos Federalistas Polacos. Os seus membros achavam que o bloco sovietico cairia - mais cedo ou mais tarde - e nesse momento toda a Europa seria capaz de unir-se definitivamente ao adoptar urn sistema de governo democratico e os principios da economia de mercado. Nesta possibilidade acreditava tambem uma parte da oposi<;ao anticomunista na chamada Pol6nia Popular. Nos anos setenta do seculo XX alguns representantes desta oposi<;ao politica polaca (entre outros Estanislau Stomma) juntavam a possibilidade de construir uma Europa Unida a solu<;ao da "questao alema", ou seja a reunifica<;ao da Republica Federal Alema corn a Republica Democratica Alema. Jose Lipski - o expoente da oposi<;ao anticomunista na Pol6nia - proclamava no inicio dos an os oitenta do seculo passado que a futura "casa europeia cornurn", deveria basear-se em alguns fundamentos, tais como: etica judaico-crista, heran<;a da antiguidade, humanismo renascentista e tradi<;ao iluminista. Faziam parte do grupo dos partidarios da unidade europeia na Pol6nia dos anos 1989-1990- ou antes da queda do comunismo- intelectuais, reconhecidos, como Adao Michnik, Bronislau Geremek ou Jacinto Kurom.

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A partir da introdw;ao na Pol6nia do regime liberal democratico no decenio anterior ha urn debate muito vivo, mesmo encarni~ado, concernente a participa~ao do nosso pais na comunidade europeia. 0 lugar das concep~oes anteriores da cria~ao da federa~ao regional eslava foi ocupado nos ultimos anos, pela ideia, mais ou menos concreta da integra~ao de toda a Europa. Ap6s a queda do regime comunista nao apareceram na Pol6nia nenhumas ideias particularmente originais neste dominio, comparaveis as teorias de Buszczynski ou Jastrzembowski. As elites contemporaneas polacas, intelectuais e politicas, reproduzem normalmente as visoes unificadores oriundas da Europa Ocidental. Nos ultimos tempos, apareceu - no debate publico - urn novo elemento: a forte defesa da razao do Estado por ocasiao da elabora~ao e entidade em vigor da chamada Constitui~ao Europeia. Para terminar - vale a pena frisar - que na Pol6nia contemporanea nao faltam tao pouco os adversarios declarados da nossa participa~ao na Uniao Europeia. Estes procedem habitualmente dos drculos nacionalistas e clericais (do chamado partido "Autodefesa" e da Liga das Familias Polacas) e tambem, por vezes, dos meios camponeses (uma parte dos militantes do Partido Popular Polaco ). Os opositores da Uniao Europeia nao sao na Pol6nia de hoje uma for~a politica apreciavel. 0 mesmo sucede nos outros paises do nosso continente. Nao obstante, muitos factores e circunstancias mostram que Pol6nia nao sera urn membra d6cil e quieta da Uniao Europeia.

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DESOBEDIENCIA CIVIL

Marcos Pereira da Silva*

CAPITULO 1 0 QUE

E "DESOBEDIENCIA

CIVIL"

Se buscarmos no dicionario o sentido da expressao "desobediencia civil" chegaremos a conclusao que, num primeiro momento, parece obvia para os operadores do direito ou ainda para os leigos; contudo o que se abstrai dos dicionarios e uma conceitua<;ao que gira em torno de uma falta de obediencia face as rela<;oes entre os cidadaos. Nao obstante a clareza face ao conceito implfcito de "desobediencia", nos parece que o conceito, tambem implicito, de "civil" encontra-se velado ou ainda obscurecido, e, devido a seu carater essencial para o desenvolvimento a que se propoe o presente, necessaria se torna o desvelamento da materia. Dentro deste diapasao cumpre-nos inicialmente, ainda observando o dicionario e mergulhando a fundo na teoria do Estado, firmar que o "civil" nada mais e do que urn sinonimo de "Estado", pois, em ultima analise o Estado nada mais e do que estas "tais" rela<;oes dos indivfduos balizadas pela norma, sendo assim, buscando conceituar a "desobediencia do Estado" somas for<;ados a nos voltar para a mais tenra essencia - a conceitual filosofica - e dentro dela encontramos pensamentos que nos conduzem a "verdade" sobre o conceito de Estado. Certo de que nao podemos dissecar completamente a materia vamos a semente do pensamento do Estado o qual reside inegavelmente no pensamento filosofico de Platao e, mas especificamente, em sua obra mestra "A Republica". Nela Platao descreve o Estado ideal como sendo " (.. .) o estado verdadeiramente fundado sabre 0 valor supremo da justir;a e do bem "1, e preciso, entao, saber 0 que significa a "justir;a" e o "bem"; "

* Universidade Estdcio de Sd. 1 REALE, Giovamti - Histdria da Filosofia: Antiguidade e Idade Media - Giovanni Reale, Dario Antiseri; - Sao Paulo: PAULUS, 1990 - (Cole<;:ao Filos6fica), p.162

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(.. .) Eis, porquanto, o conceito de justi<;a segundo a natureza: cada um fa~;a aquilo que lhe compete fazer. "2 Assim, Platao acaba por firmar que, a justi~a e a pratica do bem. Dentro da divisiio social de Platao3," (... ) o justo niio prevalece sabre o seu semelhante, mas sabre o seu contrdrio; o injusto sabre o seu semelhante e seu contrdrio. "4 ( a rep 33). No entanto, dentro de uma sociedade segmentada e corn papeis bem definidos, niio ha que se ÂŁalar em supremacia de uma classe social face a outra, uma vez que todos tern o seu o papel na sociedade e na ausencia de qualquer uma delas a justi~a, que e o proprio Estado, niio seria possfvel. 0 "prevalecer" descrito nos versos de Platiio nos parece, entiio, o que preferimos chamar de "superioridade inevitavel" uma vez os diferentes niio possuem os mesmos "dons", ou seja, o marceneiro sempre sera superior ao medica no oficio da marcenaria enquanto que 0 medica sempre sera superior ao marceneiro no oficio da medicina, sendo assim o medica niio quer prevalecer sobre o marceneiro nem vice-versa, siio eles, na verdade, completamente diferentes na sua propria essencia e complementares no fim do Estado. Quanta a rela~iio entre medicos corn medicos e marceneiros corn marceneiros a mesma e balizada bela singularidade, pela unidade e pela similitude, o que nos remonta ao verbo platonico de inexistencia de diferen~a e, porquanto, de necessidade de conflito face a superioridade. Dentro de uma outra linha encontramos o pensamento de Jean-Jacques Rousseau, politico e social, ele inicia seu "contrato social" corn a maxima, "o homem nasce livre, e par toda parte encontra-se a ferros" 5, o referido contrato tern como objetivo primordial, descrever a forma legitima da passagem de urn estado natural para urn estado social, ou seja, o Estado de rela~oes entre os cidadiios. Sendo, indiscutivelmente, uma critica ao Estado soberano arbitrario, e por quanta, em sentido amplo, ao Estado moderno, Rousseau, descreve em sua obra "0 contrato social", uma rela~iio que tern como pressuposto de existencia a nega~iio de urn direito, que e 0 direito a liberdade natural individual, em favor de uma liberdade geral, sendo esta Unica e verdadeira, a qual ira lhe conferir, enquanto direito, uma liberdade convencional, enquanto membra de urn corpo. Sendo certo que para Rousseau, o contrato social nada mais e do que "( ... )Cada um de n6s poe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a dire<;iio suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membra coma parte indivisivel do todo." 6, o homem niio e indivfduo enquanto uma consciencia

2

REALE, Giovanni - ob. cit., pg. 164 REALE, Giovanni - ob. cit., pg. 163 4 PLATAO, A Republica- Trad. Enrico Corvisieri- Sao Paulo: NOVA CULTURAL, Cole<;ao Os pensadores, 1997, p.33 5 ROUSSEAU, Jean-Jacques, Do Contrato Social - Trad. Lourdes Santos Machado - Sao Paulo: NOVA CULTURAL, Cole<;ao Os pensadores, 1999, p.53 6 ROUSSEAU, Jean-Jacques, ob. cit, p. 71 3

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individual mas sim a partir da conscit~ncia geral, a qual afasta a singularidade do homem, e aproxima a singularidade do Ser humano. Corn base na defini<;ao dada, inevitavel e o entendimento, o qual se abstrai dos proprios versos de Rousseau, e, ainda, da propria teoria dos contratos, de que, coma em todo contrato a uma presta<;ao e uma contra presta<;ao, o particular abdica direitos(presta<;ao do indivfduo) e passa a ter direitos eminentemente coletivos (contrapresta<;ao da "unidade"), sendo assim, "As clausulas desse contra to siio de tal modo determinadas pela natureza do ato, que a menor modifica~iio as tornaria viis e de nenhum efeito, de modo que embora talvez jamais enunciadas de maneira formal, siio as mesmas em toda parte, e tacitamente mantidas e reconhecidas em todos os lugares, ate quando, violando-se o pacto social, cada um volta a seus primeiros direitos e retoma sua liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela qual renunciara aquela." 7 "Imediatamente, esse ato de associa~iio produz, em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantos siio os votos da assembleia" 8• Nota-se entao que o Humanismo de Rousseau nao conserva nenhuma afinidade corn o individualismo, na realidade como se abstrai de seus versos. "( ... ) Jazendo-se a aliena~iio sem reservas, a uniiio e tiio perfeita quanta possa ser e a nenhum associado restara alga mais a reclamar, pais, se restassem alguns direitos aos particulares, coma niio haveria nesse caso um superior comum que pudesse decidir entre eles e o publico, cada qual, sendo de certo modo seu proprio juiz, logo pretenderia se-lo de todos; o estado de natureza subsistiria, e a associa~iio se tornaria necessariamente tiranica ou vii." 9 • A teoria, entao, versa sobre uma unidade maior, prega a certeza que o sociedade possui urn elo indissoluvel, o homem so tern tal atributo quando percebe e e percebido pelo outro coma tal. Por mais que pare<;a, o contrato nao prega o subjulgar-se a vontade de outro, nao prega a perda da qualidade de homem em fun<;ao da vida em sociedade, mas sim o subjulgar-se a propria vontade individual, pois, sendo todos homens parte do corpo social, 0 qual e eminentemente moral, nao ha que se falar numa vontade que nao seja comum a todos; logo o homem nao perde a sua qualidade passa apenas a possuir uma qualidade comum, coletiva, na qual a sua liberdade individual concedida e for<;a mantenedora, uma vez que esta nao se encontra extinta. A passagem do estado natural para o estado convencional de liberdade, nao pressupoe, entao, nenhuma abdica<;ao, o homem nao renega sua qualidade de homem, o que faz na verdade e compor corn a liberdade individual daqueles que se encontram em situa<;ao economica, polftica, ... , semelhantes, formando corn isso urn corpo unico dotado de liberdade. 7

8 9

ROUSSEAU, Jean-Jacques, ob. cit, p. 70 ROUSSEAU, Jean-Jacques, ob. cit, p. 71 ROUSSEAU, Jean-Jacques, ob. cit, p. 70

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Claro, entao, se encontra nos versos de Rousseau que a igualdade entre os indivfduos nao esta encrostada no papel social mas na propria vida em sociedade, ou seja, todos os cidadaos sao, de alguma forma, exatamente iguais - cabe ressaltar que o estar em sociedade encontra-se vinculado ao voto, coisa que mulheres e escravos nao fazem. Sendo assim, seja a luz de Platao ou de Rousseau, os cidadaos encontramse de alguma forma ligados atraves de alga que lhes e comum, assim, a luz dos citados pensadores, deduzimos facilmente que o Estado "sempre" se forma a partir da uniao em unidade 10 dos cidadaos. Mas sera que somas efetivamente de alguma forma iguais? Sera que e natural que o Estado surja da "auto-composic;ao" das vontades, ou mesmo do equilfbrio das virtudes? 0 que nos parece na verdade e que, independente da forma de origem, o Estado necessita da lei para que veja a sua historia prosperar no tempo; a lei e essencial para a manutenc;ao do Estado pois, conforme leciona Thomas Hobbes, o indivfduo e naturalmente mau e belicoso e, por isso, seu egofsmo e sua ganancia colocariam em risco a existencia do Estado. Comungando deste entendimento, vem, no que nos parece, a doutrina jurfdica a respeito do tema, pois, os doutrinadores, aqui representados pelo ilustre professor Sahid Maluf, pensam que: "0 estado e uma organiza(:iio destinada a manter, pela aplica(iio do direito, as condi96es universais de ordem social," 11 •

Ou seja, a doutrina defende implicitamente uma ordem social universal tendo o Estado, unicamente, o clever de zelar por tal ordem. Sendo assim, independente da "verdade" sabre o que e ou o que deveria ser o Estado, o que seria "desobedecer ao Estado"? 0 que podemos chamar de uma desobediencia civil? Sem preocupac;6es corn a simplicidade vislumbro que, num primeiro momento, e urn ato de subversao face a uma ordem emanada pelo Estado - independente de sua origem, forma ou direc;ao -, para tanto, e necessaria que tal comando seja injusto face a direitos naturalmente constitufdos e posteriormente, no caso do Brasil, garantidos, tais coma a vida, a propriedade e a seguranc;a, estes comandos nao seriam - dentro da otica do razoavel cumprfveis, pais caso fossem tentariam contra a ordem maior, a qual atribui supremacia hierarquica destes direitos.

CAPITULO 2 UMA GRANDE BUSCA TEORICA: ONDE E QUANDO DESOBEDECER Chegamos a conclusao, ainda facilmente, de que so e possfvel a desobediencia civil ou do Estado quando se tern uma situac;ao tal - provocada 10

Entende-se a unidade como urn que de singularidade nos versos cat61icos lembramos "na unidade do espfrito santo ... " 11 MALUF, Sahid, 1914-1975 - Teoria Geral do Estado/Sahid Maluf,. - 23. ed. rev. e atual./ /pelo Prof. Miguel Alfredo Maluf Neto.- Sao Paulo: SARAIVA, 1995, p. 1

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por ato legal porem injusto - que, ocorrida gerara urn dano a urn determinado direito. Devemos aqui, entao, comungar corn a doutrina de Hobbes, e frisar que as leis - ditadoras da vontade do Estado - sao criadas por homens, vindo daf a certeza de que, de alguma forma 0 homem e de fato 0 lobo do proprio homem, pois, caso nao fosse, nao haveria explica\ao para a cria\ao de leis que vem a tentar contra direitos universalmente maiores, os quais em ultima analise sao comuns a todos os homens. A luz desses argumentos necessaria se faz, finalmente, desmitificar o entendimento de alguns autores no sentido de que a desobediencia civil ou do Estado pode e de fato e uma previsao legal, pois na verdade cogitando a possibilidade de uma previsao de desobediencia na verdade nao terfamos uma forma de resistencia mas sim urn direito, lata sensu, de agir dessa ou daquela forma face ao arbftrio da lei; cabe ressaltar que se a desobediencia fosse da forma pretendida ela seria uma modalidade de revoga\ao da lei, pois, a norma que se pretende desobediente ÂŁaria corn que a norma que se pretende desobedecida ja estivesse essencialmente revogada. Mas de que forma entao, e em que condi\oes a desobediencia e legitima e nao e desmedida? Pretendendo urn corte epstemologico, o estudo desenvolvido ate aqui nos conduz as seguintes conclusoes: a) Seja nos versos de Platao ou de Rousseau, o Estado possui urn especie de unidade menor, a qual indiscutivelmente e aquilo que ha de mais essencial no homem - cidadao no caso de Rousseau -; b) Que a lei e imprescindfvel para a manuten\aO da Estado; c) Que a lei so e ruim porque 0 homem e ruim, logo a luz de tais conclusoes, passamos a ver a desobediencia de uma forma mais clara, se nao vejamos: Sendo assim, imagine urn Estado composto por apenas 2 (dois) indivfduos. Eles poderiam ter a sua uniao baseada na virtude - segundo Platao -, ou ainda baseado na liberdade - conforme leciona Rousseau -, contudo, sera que os dois indivfduos sao iguais de alguma forma ? Se fossem iguais e o indivfduo "A" tivesse urn problema renal e precisasse de uma doa\ao, fatalmente o indivfduo "B" seria urn doador, mas como nao sao iguais o indivfduo "B" provavelmente nao sera compatfvel corn o "A", daf chegamos a conclusao de que o que nos assemelha nao a parte ffsica. Porem, imagine essa outra situa\ao, dentro daquele mesmo Estado: Se "A" saca uma faca e pretende ferir de morte "B", este, que tambem tern uma faca, inevitavelmente ira saca-la e repelira a referida agressao, o que dentro de uma otica legal configura a legftima defesa e dentro do piano da justi\a, simplesmente uma medida de justi\a; e correto afirmar tambem que se a situa\ao se invertesse "A" tambem viveria a mesma experiencia , corn isso ve-se inegavelmente que 0 homem tern direito a vida 12, e, naturalmente, ira brigar por ela. 12 E precisa que se lembre que tal direita naa e a meramente garantida pela lei, pais, a defesa da vida, para naa dizer que e um direita natural, e par extinta e parquanta independe da lei para ser exercida.

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Apesar de estremado o exemplo anterior tern a finalidade unica de grifar a motiva<;ao do homem em defesa daquilo que lhe e de direito. Sendo assim todo e qualquer ato de imperio que vier a violar urn direito 13 sera passive! de resistencia. Contudo resta saber como ela pode ser exercida? Para tentar chegar a uma explica<;ao para tal questao vamos imaginar, dentro do supra citado Estado, que urn direito qualquer do cidadao "A" foi viola do pelo cidadao "B"; "A", entao, procura os meios legais existentes no Estado para ter o seu direito reparado, contudo o Estado lhe informa que e vedada a auto composi<;ao e que nada pode fazer no sentido de compor o dano. Deve ele entao permanecer inerte ou deve violar 0 preceito legal que informa que auto composi<;ao e vedada? Nos parece que nao deve, mas principalmente nao pode permanecer inerte diante de tal quadro; nao pode porque, fazendo uso dos versos de Platao e de Rousseau14, de alguma forma, mesmo que seja uma parcela menor que o minima, os horn ens sao iguais e porquanto "B" nao pode fazer corn "A" aquilo que ele nao quer para si, bem como "A" nao pode aceitar a diferen<;a, pais, caso tomassem tais dire<;6es estariam negando as suas condi<;6es de homem. E preciso no entanto que "A" conte corn urn determinado freio, pois, caso contrario "A" exacerbaria o seu direito de repara<;ao do dano sofrido e passaria a ser o agressor. Para tanto elege-se o bem maior humano que e a liberdade, a qual em ultima analise, nao e aquela profanada pelos programas humoristicos, mas sim aquela que, nos versos de Rousseau, e natural do homem15, que acaba por lhe conferir direitos de a<;ao e rea<;ao, e a propria motiva<;ao humana que em, estado natural, conduz o homem ao bem. Inegavel e o fato de que a luz da liberdade convencional - natural- 0 homem e livre para ser 0 que e e para lutar para nao perder a sua condi<;ao de homem. Inevitavel passa a ser entao adentrarmos no minima. Esse minima e algo que se encontra antes da liberdade e a ela e hierarquicamente superior, e algo que de fato e a propria essencia e que sem ela nao seria possivel ÂŁalar em especie humana; o vetor de que falamos, aqui, e a moral, a qual tern a fun<;ao ultima, dentro da sua essencia mais pura, bater a porta da liberdade e sinalizar o caminho a seguir, a moral verdadeira e aquela que representa a parte mais interior do Ser do homem, e a minima parte encontrada em qualquer "especime", e, ao contrario do pensamento de Platao e de Rousseau16, a celula que nos une, que esta em todos, que pratica a justi<;a e que ao final e o fundamento do Estado; observando a moral verdadeira desprezivel seria o conceito 13 Cabe lembrar aqui que os direitos do homem, em especial o nacional brasileiro, sao unicamente, em sentido amplo, aqueles garantidos fundamentalmente pela constitui~ao, ou seja, vida, liberdade, igualdade, propriedade e seguran~a, e os demais direitos sao meramente acess6rios que giram em tomo dos supra; na verdade todo outro direito nada mais e do que uma deriva~ao destes. 14 Idem ao 9 15 E natural ao homem, ou seja, a mesma vem completamente despida de preconceitos principalmente de propriedade e de poder- no sentido de lideran~a -, as quais sao na verdade ervas daninhas na realidade do homem. 16 Para eles a moral e apenas o pano de fundo.

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de propriedade, o conceito de diferen<;a, o conceito de desigualdade e todos aqueles que viessem a diferenciar urn homem do outro; mesmo respeitando o pensamento de Hobbes, o homem nao e mau por natureza, na verdade o homem e born, simplesmente por ser moral, simplesmente por que a unica coisa que tras consigo, desde a sua fecunda<;ao e a moral e esta e boa, pois, se assim nao fosse viver, amar, pensar, e, ate mesmo o presente, seriam inuteis. Reside na moral verdadeira, entao, o condutor da liberdade, o homem s6 deve agir corn liberdade quando assim a sua moral determinar. Fechando esse ciclo deduzimos, agora corn facilidade que, a desobediencia do Estado ou civil se fundamenta na moral, age corn liberdade e busca a igualdade (ambas em sentido amplo) para que veja os seus direitos (em sentido estrito ), respeitados. Pode parecer simples e ate mesmo pode conduzir a interpreta<;ao de que uma vez que se tern uma ofensa, caso esta atinja o limite moral do individuo, e passivel de desobediencia. E preciso, no entanto, atentarmos para a importancia dos conceitos implicitos, e preciso que se tenha uma reformula<;ao nos conceitos que Kant denomina como a priori17, e preciso que se mergulhe ÂŁundo nos conceitos de igualdade, liberdade e moral, e preciso que o homem saiba exatamente quem ele e; porem, tal descoberta so pode acontecer dentro do caos - da ordem so surge a estagna<;ao. 0 caos ao qual me refiro e o caos psicol6gico, o homem precisa se questionar para chegar a sua raiz e de la chegar a conclusao de que tipo de ofensa a seu direito realmente tenta contra sua moral, ai entao ele sai de uma mera subversao a lei e passa a agir corn legitimidade, ou seja, ele nao mais tenta contra uma ordem "constitucional", mas sim coaduna corn uma ordem superior. Cabe notas vincadas, retomando a questao do "quando", que o supra citado ato de imperio passivel de resistencia, s6 e somente so, podera ser resistido quando respeitado o "como", caso contrario este ato sera urn ato ilegal travestido de ato desobediente.

CAPfTULO 3 0 PROCESSO E A DESOBEDIENCIA

0 Estado entao pode ferir direitos dos cidadaos por uma via negativa, quando nao disp6e de meios eficazes na composi<;ao dos litigios, bem como por uma via positiva quando ele proprio fere direitos, seja na aplica<;ao da norma ou na elabora<;ao das leis. Dentro daquilo que ja foi plantado, respeitando-se o "como" e o "quando", os referidos atos podem ser resistidos pela via da desobediencia, contudo, uma vez que estamos num Estado amoral, fatalmente este nao ira entender o ato

17 PADOVANI, Humberto e CASTAGNOLA, Luis - Hist6ria da Filosofia - 4. ed. - Sao Paulo: EDI<::OES MELHORAMENTOS, 1961, pg. 308-309

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desobediente corno urn ato legitirno e buscani a restaura<;ao do "status quo anti" 18 • Pregar aqui a "rnoraliza<;ao" do Estado seria petulante e utopico urna vez que, observando a teoria filosofica do Estado, o hornern, celula essencial a este, nao vive urna perspectiva rnorat na verdade o hornern vive urna pseudo moral cheia de vfcios e presa as raias da ternatica de Locke 19 • Aguerrido e vingativo, o Estado buscaria entao saciar a sanha estatat ignorando cornpletarnente a condi<;ao moral humana. Sendo assim, tal Estado buscani, mesmo que satfricamente, cumprir a lei, colocara o desobediente atnis das grades, fara corn que este componha o dano provocado a terceiro e fara corn que o desobediente seja execrado pelos demais, que por sua vez nao comungam de sua moral e de sua liberdade, e por isso lhe sao completamente diferentes e residuais. Certo da impotencia intrfnseca julgamos importante teorizar que o Estado deve obedecer a princfpios maiores que o seu disfar<;ado fascismo, deve entao respeitar e legitimidade desobediente, pois esta lhe e mai01~ mais forte e mais importante; nao simplesmente por ser mas pelo fato de ter sido criado dentro dos limites da razao, o que de fato nao ocorreu corn a moral fundante do desobediente, a quat sem adentrarmos no assunto e indiscutivelmente ontologica corn tra<;os divinos. Nao prego aqui que o Estado perdoe o desobediente, mas sim que se prepare para julga-lo, abstraindo completamente o positivismo jurfdico e abra<;ando corn todas as for<;as, procedimentos que venham a apurar se de fato o desobediente agiu de acordo corn os princfpios do "como" e "quando", evitando corn isso que a desobediencia esteja fundada em "birras" ideologicas ou ainda em uma pseudo morat 0 que em ultima analise deveria ser a atividade mais evolufda do processo punitivo e restaurador proposto pela norma. E bem verdade no entanto, que se todos os hornens conhecessem o "como" desnecessario seria tal preocupa<;ao, pois toda a sociedade estaria balizada por ele, o mesmo acontecendo corn o Estado.

CAPITULO 4 UM CAPITULO

A PARTE

Muitos poderiam pensar aqui que estou pregando o regime da auto tutela a qual esta balizada pelos prindpios ausencia de juiz distinto das partes; imposit;iio da decisao de uma das partes a outra" 20 • Contudo nao e essa a If

18 Refiro-me aqui a repara~ao do dano dentro do sistema civil ou ainda a puni~ao dentro do sistema penal. 19 Otimista face ao homem e pessimista face a sociedade, seria ela, entao, a celula cancerfgena a corromper o homem. 2 ° CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO - Teoria geral do processo - 16. ed. rev. e atual., Sao Paulo: MALHEIROS EDITORES, 1999, pg. 21

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expectativa, na verdade o que buscamos e exatamente a refunda<;ao epistemica do direito a qual e tema em baila de inumeros juristas 21 , buscamos aqui a semente e nao a arvore. E preciso na verdade desmitificar mais urn conceito, o da propria desobediencia civil. Como consta nos livros te6ricos tal expressao foi criada e desenvolvida por estadistas, os quais, em ultima analise, estavam contaminados por esta tal "moral" inconseqi.iente e in路eal, ou seja, dentro de urn pensamento moral verdadeiro nao ha que se falar em desobediencia e sim em obediencia, nao ao Estado criado racionalmente, mas sim ao Estado verdadeiro. Reportome aqui a uma conversa academica que tive corn urn iluminado colega, nesta noticiou-me, criando est6ria ou nao - o que nao tern a menor importancia sabre a existencia de uma biografia nao autorizada de urn dos maiores pensadores que o mundo ja conheceu, Friedrich Nietzsche. Nesta relatava que ja no leito de morte Nietzsche empunhou urn crucifixo que supostamente cafra sabre a sua cama, abra<;ou-se a ele e falou: "Crista, tu sabes que nao falei de ti, mas sim daquilo que fizeram contigo" - reportando-se aqui a uma de suas principais obras "0 anticristo" - sem qualquer pretensao igualitaria, e preciso que falemos do Estado verdadeiro e nao daquilo que fizeram corn ele. Pode parecer que, corn tudo isso, vivo urn sonho, porem, caso assim seja, me conservo o direito e me obrigo para corn o meu sonho, para que possa, nao ser urn te6rico mas sim urn exemplo.

BIBLIOGRAFIA REALE, Giovanni - Hist6ria da Filosofia: Antiguidade e Idade Media - Giovanni Reale, Dario Antiseri; - Sao Paulo: PAULUS, 1990 - (Cole<;ao Filos6fica). PLATAO, A Republica- Trad. Enrico Corvisieri- Sao Paulo: NOVA CULTURAL, Cole<;ao Os pensadores, 1997 ROUSSEAU, Jean-Jacques, Do Contrato Social - Trad. Lom路des Santos Machado - Sao Paulo: NOVA CULTURAL, Cole<;ao Os pensadores, 1999 MALUF, Sahid, 1914-1975- Teoria Geral do Estado I Sahid Maluf,. - 23. ed. rev. e atual. I pelo Prof. Miguel Alfredo Maluf Neto. - Sao Paulo: SARAIVA 1995 PADOVANI, Humberto e CASTAGNOLA Luis- Hist6ria da Filosofia- 4. ed. - Sao Paulo: EDI(:OES MELHORAMENTOS, 1961 CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO- Teoria geral do processo- 16. ed. rev. e atual., Sao Paulo: MALHEIROS EDITORES, 1999

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"Teoria juridica e novas direitos". Receoso quanto a erros na cita prefiro nao incluf-la.

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A CONCORDATA ENTRE A SANTA SE E A REPUBLICA PORTUGUESA E A SUA INCIDENCIA NO DIREITO DA FAMILIA Mario Ferraz de Oliveira



A CONCORDATA ENTRE A SANTA SE E A REPUBLICA PORTUGUESA E A SUA INCIDENCIA NO DIREITO DA FAMILIA

Mario Ferraz de Oliveira*

I Em 7 de maio de 1940 celebrou-se entre a Santa Se e a Republica Portuguesa uma Concordata, atraves da qual e entre outros artigos, foi reconhecida plena eficacia civil aos casamentos celebrados em conformidade corn 0 direito canonico. II Estes casamentos pressupunham na letra do artigo 24Q, a renuncia a faculdade civil de requerer 0 divorcio, que portanto, nao lhes poderia ser aplicado pelos tribunais civis. Ill Por outro lado ficava reservado em exclusivo aos tribunais e reparti<;6es eclesiasticas o conhecimento das causas concernentes a nulidade do casamento catolico e a dispensa do casamento rato e nao consumado. IV E alem disso, e como seu corolario, as decis6es e senten<;as destas reparti<;6es e tribunais, quando definitivas, eram transmitidas por via diplomatica aos Tribunais da Rela<;ao competentes que as tornavam executivas e as mandavam averbar nos respectivos registos civis, sem revisao nem confirma<;ao. V 0 Codigo Civil de 1966, nos artigos 1625Q e 1626Q nQ 1, transcreve integralmente estes princfpios, definidos, como dissemos, no artigo 25Q da Concordata. E durante 35 anos estes foram os principios concordatarios que, recebidos no direito civil portugues, tiveram repercussao directa no direito da familia. VI Em 15 de Fevereiro de 1975, celebra-se entre a Santa Se e a Republica Portuguesa, urn protocolo adicional a Concordata de 1940, alterando o seu artigo 24Q, passando a ser possfvel aos c6njuges unidos por casamento canonico, o recurso a dissolu<;ao do casamento por divorcio, nos mesmos termos em que se aplicava aos casamentos civis.

* Universidade Lusfada de Lisboa.

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VII Mais 29 anos se passaram e em 18 de Maio de 2004, 64 anos depois de ter sido assinada, a Concordata e totalmente reformulada, dando lugar a uma nova Concordata entre a Santa Se e a Republica Portuguesa. VIII E em rela<;ao ao direito da farm1ia que prindpios estao agora nela vertidos? Que altera<;6es se produziram? Que reflexos dela decorrem? IX Pelo artigo 13Q, tal como pelo anterior 22Q, o Estado Portugues reconhece efeitos civis aos casamentos celebrados em conformidade corn as leis can6nicas, desde que o respectivo assento de casamento seja transcrito para os competentes livros do registo civil. X 0 artigo 14Q reproduz textualmente, nos seus dois mimeros, o expresso no anterior artigo 23Q, quanto ao momento da produ<;ao de efeitos do casamento can6nico. XI 0 artigo 15Qcontem o preceituado no artigo I do Protocolo Adicional a Concordata de 1940, celebrado em 1975, consagrando a possibilidade de dissolu<;ao dos efeitos civis do casamento can6nico atraves de div6rcio. XII E no artigo 16Q, correspondente ao artigo 25Q da Concordata de 1940, que se produziram as maiores altera<;6es, e corn maiores reflexos no ordenamento juridico interno, resultando na pratica na revoga<;ao tacita dos artigos 1625Q e 1626Q do C6digo Civil. XIII Pelo artigo 25Q da Concordata de 1940, transcrito integralmente nos artigos 1625Q e 1626Q nQ1 do C6digo Civil, o Estado Portugues aceitou reservar, em exclusivo, o conhecimento das causas concernentes a nulidade do casamento cat6lico, e a dispensa do casamento rato e nao consumado aos tribunais e reparti<;6es eclesiasticas competentes. XIV Alem disso concordou ainda que estas decis6es e senten<;as, quando definitivas, e verificadas pelo Supremo Tribunal da Assinatura Apost6lica, fossem aceites e produzissem efeitos civis, sem qualquer especie de controlo dos tribunais portugueses. Contudo, a constitui<;ao de 1976 no seu artigo 36Q, nQ 2, diz que "a lei regula os requisitos e os efeitos do casamento e da dissolu<;ao por rnorte e ou div6rcio, independentemente da forma de celebra<;ao" . Esta disposi<;ao abrangente parecia indiciar, de imediato, a inconstitucionalidade dos ja referidos artigos 1625Q e 1626Q, do C6digo Civil e 25Q da Concordata. XV 0 Prof. Jorge de Miranda, no entanto, em comunica<;ao proferida nas Jornadas de Estudo, na Universidade Cat6lica Portuguesa em Fevereiro de 1991 e reconhecendo que a Igreja Cat6lica nao e uma pessoa colectiva de Direito Publico Portugues, mas sim de Direito Internacional, afirma: "a esta luz, nao existe contradi<;ao entre a Concordata (e o artigo 1625Qdo C6digo Civil) e o artigo 36Q, nQ2 da Constitui<;ao ( o qual estipula que a lei civil regula os requesitos

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e a dissoluc;:iio do casamento ); nada impede que a norma concordataria desempenhe uma fun<;:iio analoga a que desempenha 0 artigo 50Q do C6digo Civil relativamente a casamentos celebrados no estrangeiro ; e mal se compreenderia que o Estado reconhecesse a jurisdi<;:iio de tribunais estrangeiros e niio de tribunais eclesiasticos, nuns e noutros casos julgando de harmonia corn os respectivos Direitos." XVI De resto ja o Prof. Mario de Figueiredo, em "A Concordata e o casamento" justificando o artigo 25Q escrevia "Este principio e apenas uma consequencia 16gica de se ter atribuido eficacia civil ao casamento celebrado em harmonia corn as leis can6nicas. Se o direito portugues tivesse recebido, nesta materia, coma parte de direito interno, o direito can6nico, ainda se compreenderia que os tribunais portugueses tivessem competencia para o aplicar, niio coma direito can6nico, mas coma direito portugues corn o mesmo conteudo.Mas o direito portugues niio recebeu o direito can6nico coma fonte de direito interno, atribuiu eficacia a urn acto celebrado de harmonia corn o direito can6nico. Logo siio os orgiios competentes para aplicar esse direito que hiio-de decidir se o acto foi ou niio celebrado de harmonia corn ele. Mais: e de harmonia corn ele que o casamento ha-de dissolver-se, nos casos em que isso e possivel, mesmo que tenha sido validamente celebrado. S6 por decisiio do orgiio eclesiastico competente (e e ainda o direito can6nico que sem fiscaliza<;:iio das autoridades civis fixa a competencia) pode ser anulado ou dissolvido urn casamento can6nico". XVII Alguma doutrina continuou, no entanto a considerar inconstitucionais os principios consignados nos artigos 1625Q e 1626Q do C6digo Civil, resultantes do artigo 25Q da anterior concordata. XVIII Avisadamente pais, o referido artigo 25Q foi alterado em dais aspectos, que, afastando quaisquer duvidas que pudessem continuar a levantar-se, niio alteraram contudo a essencia nele vertida. Por urn lado retirou-se o exclusivo da aprecia<;:iio das causas de nulidade e dispensa de casamento rata e niio consumado aos tribunais e reparti<;:6es eclesiasticas, da letra do artigo. Por outro as decis6es dos tribunais eclesiasticos competentes, passam a s6 produzir efeitos civis, a requerimento das partes, e ap6s revisiio e confirma<;:iio nos termos do direito portugues, pelo competente tribunal do Estado. E para este efeito deve o referido tribunal verificar se: a) Siio autenticas as decis6es e senten<;:as b) Se dimanam do tribunal competente, ou seja do Supremo Tribunal da Assinatura Apost6lica (neste momento) c) Se for am respeitados os principios do contradit6rio e da igualdade d) Se os resultados niio ofendem os principios da ordem publica internacional do Estado portugues Lusiada. Direito. Lisboa, n.Q 3 (2005)

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XIX Coma refere o Prof. Gon<;alves de Proen<;a em "Direito da Familia" 3!! edi<;ao, pag.143, "E substituida a afirma<;ao da competencia directa dos tribunais e reparti<;6es eclesiasticas no conhecimento das causas concernentes a nulidade do casamento cat6lico pela atribui<;ao de efeitos civis as decis6es relativas a tal nulidade; E em conformidade, deixa de vigorar tambem, a esse respeito, o sistema de reconhecimento de plana das senten<;as eclesiasticas, para em seu lugar ser instituido, o sistema mitigado de revisao e confirma<;ao, pelos competentes tribunais do Estado. Num aspecto pelo menos a polemica perde justifica<;ao face ao novo texto concordatario: os artigos 1625Q e 1626Q deixam de ter fundamenta<;ao, pelo que se devem considerar tacitamente revogados (enquanto nao o forem expressamente ). Corn o que, se gun do parece, tu do fica esclarecido, libertando o diploma constitucional das duvidas que aqueles textos suscitavam. Ao contrario, porem, das aparencias, a questao, na sua essencia esta longe de ficar esclarecida. Simplesmente tern de deslocar-se do seu aspecto formal para pianos mais profundos, relacionados corn a essencia das coisas. Nao ha duvida que e a lei civil que compete dizer quando e que urn matrim6nio can6nico produz efeitos na ordem estadual. A tal respeito, a competencia da ordem civil e incontestavel. 0 que esta verdadeiramente em causa, porem, nao e s6 isso. 0 que no ÂŁundo importa saber e qual a lei que estabelece os pressupostos essenciais para que aquela eficacia civil possa ser atribuida. Nao e saber quando e que sao atribuidos efeitos civis ao casamento cat6lico. Isso compete a lei civil. Mas sim, o saber porque lei aferir os requesitos essenciais da realidade a que sao atribuidos tais efeitos.E isso incontestavelmente compete, quanta aos casamentos religiosos, apenas a lei can6nica. 0 que, de resto, resulta claramente do proprio texto concordatario, ao afirmar, corn o acordo expresso de ambas as partes, que os "efeitos civis sao atribuidos aos casamentos celebrados em conformidade corn as leis can6nicas" Base XXII da Concordata de 1940 e artigo 13Q da Concordata de 2004- Fim de cita<;ao XX Diziamos atras que, avisadamente, o artigo 25Q da Concordata de 1940 foi alterado: Foi afastado o espectro da inconstituicionalidade corn a nova redac<;ao. No entanto e porque o direito can6nico nao e fonte de direito portugues, nao podem os tribunais portugueses aplica-lo, do que resulta, sem ser explicitado, que apenas os tribunais eclesiasticos irao continuar a ajuizar dos pressupostos concernentes a nulidade e a dispensa do casamento rato e nao consumado.Ao exigir-se agora a revisao e confirma<;ao, nos termos do direito portugues, pelo competente tribunal do Estado, e indicando-se os dominios de tal verifica<;ao, nao se toca, coma e evidente, na essencia do ordenamento can6nico. Confere-se sim, maior credibilidade a recep<;ao normativa, afastam-se possiveis tenta<;6es

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de excepcionalidade e mantem-se os prinCipws que ja tinham presidido a elabora<;ao da Concordata de 1940. E caso para saudar a justeza das solu<;6es entao encontradas, que passados 64 anos e profundas altera<;6es polfticas e sociais continuam a cmTesponder, na sua essencia, e no que concernem ao Direito da Familia, a uma realidade querida e sentida pela generalidade dos cidadaos portugueses.

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REFLEXOES ACERCA DE TEORIAS DE JUSTI~A: ALGUMAS CRITICAS A JUSTI~A COMO EQUIDADE EM JOHN RAWLS Paulo Jorge Fleury



REFLEXOES ACERCA DE TEORIAS DE JUSTI<;A: ALGUMAS CRITICAS A JUSTI<;A COMO EQUIDADE EM JOHN RAWLS

Paulo Jorge Fleury*

Em uma abordagem inicial, intuitiva, Rawls entende que a justi<;a se constitui como a primeira virtude das leis e das institui<;oes sociais, as quais, ainda que possam vir a ser eficientes e bem organizadas, deverao ser reformadas ou revogadas, caso sejam injustas. Neste sentido, a justi<;a deve garantir a inviolabilidade de cada pessoa, inviolabilidade esta que nao pode (ou nao deve ser) ignorado pelo bem-estar da sociedade como urn todo, nao se permitindo, portanto que, sacriffcios impostos a urn pequeno grupo possam ser considerados menos relevantes que as vantagens que possam ser usufruidas por uma maioria. Direitos assegurados pela justi<;a nao se submetem (ou nao devem) se submeter ao calculo de interesses sociais ou de negocia<;oes politicas. Para que se possam fixar alguns prindpios de justi<;a, pode-se partir da ideia de que uma sociedade e uma associa<;ao razoavelmente auto-suficiente de pessoas que reconhecem, em suas rela<;oes mutuas, nao apenas a existencia de certas regras de conduta obrigat6rias, mas a necessidade de, na maioria das vezes, agir de acordo corn elas, ao mesmo tempo em que tais regras delimitam urn sistema de coopera<;ao voltado para a promo<;ao do bem de todos os que dele compartilham. Todavia, ainda que a sociedade possa ser caracterizada como urn empreedimento ccoperativo, nao se pode esquecer que ela e tambem marcada pela existencia de conflitos e de identidades de interesses, os quais se estabelecem porque: - no caso dos conflitos, cada urn prefere uma participa<;ao maior do que menor na distribui<;ao dos bens e dos beneffcios maiores que sao produzidos por colabora<;ao mutua, e; no caso das identidades de interesses, haveria a possibilidade de que todos tivessem uma vida melhor a partir da coopera<;ao social, caso dependessem unicamente de seus pr6prios esfor<;os.

* Universidade Estacio de Sa.

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A existencia, portanto, de conflitos e de identidades de interesses na distribui<;ao dos bens e dos beneficios socialmente produzidos exige urn conjunto de princfpios capaz de garantir uma ordena<;ao social baseada na distribui<;ao adequada das vantagens, dos bens e dos beneficios. Tais princfpios seriam os princfpios de justi<;a social, princfpios estes que, se adotados, garantiriam, nas institui<;6es basicas da sociedade, uma forma de atribui<;ao de direitos e de deveres e de distribui<;ao adequada dos beneficios e dos encargos da coopera<;ao social. Uma sociedade bem-ordenada seria aquela em que todos aceitariam e que todos saberiam que os outros aceitariam os mesmos princfpios de justi<;a e em que as institui<;6es sociais basicas satisfariam estes princfpios de justi<;a. Haveria portanto urn ponto de vista de comum a partir do qual os participantes da sociedade teriam suas reivindica<;6as julgadas, ainda que pudessem fazer excessivas exigencias mtituas, corn objetivos e prop6sitos dispares - a convivencia cfvica estaria porem garantida pela existencia de uma concep<;ao partilhada de justi<;a, que limitaria a persecu<;ao de outros fins, configurandose coma uma carta fundamental de uma associa<;ao humana bem-ordenada. Sociedades bem-ordenadas no mundo concreto, entretanto sao raras, posto que nestas sociedades do "mundo real", o que e justo ou injusto encontra-se permanentemente sob disputa. Nesta disputa, os homens discordam sobre os princfpios que garantem os pantos basicos de sua associa<;ao e nesta discordancia cada urn teria sua concep<;ao de justi<;a, e mesmo defendendo concep<;6es de justi<;a variadas, Rawls acredita que os membros da sociedade podem concordar corn a ideia de que as institui<;6es se mostram justas quando nao fazem distin<;6es arbitrarias entre as pessoas na atribui<;ao de direitos e de deveres e quando determinam urn equilibrio adequado entre reivindica<;6es concorrentes da vida social. Ainda que esta percep<;ao nao ajude a resolver grandes problemas, ela pelo menos serve para identificar o papel dos princfpios de justi<;a. Tal consenso nao se apresenta, porem coma o tinico pre-requisito para uma comunidade humana viavel. Quest6es relacionadas a coordena<;ao, eficiencia, estabilidade dos pianos dos individuos devem ser levados em considera<;ao para que as expectativas por eles geradas levem a consecu<;ao de fins sociais adequados e coerentes corn a justi<;a. Quando nao existe uma medida coerente sobre aquilo que e justo ou injusto, a desconfian<;a e o ressentimento corroem os vinculos da civilidade, uma vez que, para os individuos, na ausencia de uma medida de consenso, fica dificil para os individuos coordenarem seus pianos corn eficiencia para que se mantenha a garantia da continuidade de acordos mutuamente beneficos. Uma concep<;ao de justi<;a, portanto, deve ir alem de uma proposta distributiva. Ela deve levar em considera<;ao aspectos mais amplos da vida social e que vao muito alem da mera questao quantitativa da distribui<;ao de bens e de beneficios. Ainda que a justi<;a se configure como a virtude fundamental das institui<;6es e das leis, uma concep<;ao de justi<;a deve ser preferida a outra, quando suas conseqiiencia mais amplas se mostram mais desejaveis. Para Rawls, o elemento fundamental de analise e a justi<;a social, mesmo que muitas coisas diferentes possam ser consideradas como justas ou injustas

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(as leis, as institui<;6es, as atitudes e disposi<;6es pessoais e as proprias pessoas). Neste sentido, o objeto prirneiro da justi<;a e a estrutura social, e o conjunto das institui<;6es sociais mais importantes responsaveis pela distribui<;ao de direitos e de deveres fundamentais e que determinam a divisao de vantagens derivadas da coopera<;ao social, entendendo-se por institui<;6es mais importantes a constitui<;ao polftica e os acordos economicos e sociais. Tais institui<;6es, tomadas em conjunto, definem os direitos e deveres dos homens, ao mesmo tempo em que produzem influencias consideraveis sobre seus pianos, sobre seus projetos de vida. A estrutura basica formada por estas instituic;oes e, para Rawls, objeto primario de justi<;a, porque seus efeitos sao profundos e marcam sua presen<;a desde o come<;o. Esta estrutura determina el ou contem varias posic;oes sociais, diferentes entre si, nas quais os homens se "encaixam" desde o nascimento e que definem expectativas de vida diferentes, moldadas em parte por circunstancias economicas e sociais, favorecendo certos pantos de partida mais do que outros, afetando, desde o inicio, as possibilidades de vida dos seres humanos. Estas desigualdades se mostram particularmente profundas, construindo-se ideologicamente como inevitaveis e e sobre elas que devem ser aplicados os princfpios de justic;a social, os quais irao regular a escolha de uma constitui<;ao polftica e os elementos principais do sistema economico e social. Assim, uma concep<;ao de justi<;a social deve fornecer primeiramente urn padrao que sirva para uma avalia<;ao dos aspectos distributivos da estrutura basica da sociedade, padrao este que nao deve se confundido corn os princfpios definidores de outras virtudes. Os princfpios de justi<;a representam, na verdade, uma parte de uma concep<;ao mais ampla, mais completa, definidora de princfpios para todas as virtudes da estrutura basica, ou seja, urn ideal social que, por sua vez, encontra-se referenciado a uma concep<;ao de sociedade, a uma maneira como os objetivos e propositos da coopera<;ao social podem e I I ou devem ser entendidos. Diferentes concep<;6es de justic;a resultam, por conseguinte, de diferentes concep<;6es de sociedade e somente podem aquelas ser entendidas quando se explicita a concep<;ao de coopera<;ao social que dela deriva. Rawls estabelece, portanto, uma distin<;ao entre o conceito de justic;a tratada como urn equilibrio adequado entre reivindicac;oes concorrentes e como uma parte de urn ideal social, e uma concep<;ao de justi<;a entendida como urn conjunto de princfpios correlacionados corn a identifica<;ao das causas principais determinadoras do equihbrio que configura o conceito de justi<;a. 0 objetivo de Rawls e apresentar uma concepc;ao de justi<;a capaz de generalizar e de levar a urn piano superior de abstra<;ao a teoria do contrato social tal como se encontra em Locke, Rousseau e Kant. Ou seja, ele busca uma concepc;ao contratual de justi<;a. Tal concep<;ao nao introduziria uma sociedade particular e nem estabeleceria uma forma particular de governo. A ideia fundamental e que o consenso original modelaria os prindpios da justi<;a para a estrutura basica da sociedade, devendo estes prindpios regular todos os acordos subseqiientes, especificando os tipos de cooperac;ao social que se

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poderiam assumir e as formas de governo que se poderiam estabelecer. Rawls denomina esta maneira de considerar os prindpios de justic;a como eqi.iidade. Deve-se imaginar assim que, numa ac;iio conjunta, os que se comprometem na cooperac;ao social vao escolher juntos os prindpios que irao nortear a distribuic;ao de direitos e deveres basicos e a divisao de beneficios sociais. Os membros da sociedade devem decidir a priori a regulac;ao de suas reivindicac;6es mtituas e a carta constitucional de fundac;iio de sua sociedade, ao mesmo tempo em que devem decidir de uma vez por todas tudo aquilo que entre elas sera considerado como justo ou como injusto. Tais escolhas, feitas em uma situac;ao hipoh~tica de liberdade equitativa, determinam os prindpios de justic;a. Esta posic;ao original de igualdade entre os membros da sociedade, presente na justic;a como eqi.iidade, corresponde ao estado de natureza na teoria tradicional do contrato social. 0 contrato social em Rawls nao e entendido como algo que tenha existencia historica ou que, em algum momento, tenha existido historicamente. 0 contrato rawlsiano e hipotetico, configurado em condic;6es consideradas como ideais, condic;6es estas que sao produto de especulac;ao teorica. Tratar-se-ia, em realidade, de urn contrato que envolveria prindpios supostamente aceitos em uma situac;ao primordial claramente definida. Os prindpios de justic;a, por sua vez, seriam escolhidos sob urn veu de ignorancia, garantindo (ou pressupondo-se garantir) que ninguem pudesse ser favorecido ou desfavorecido na escolha dos prindpios pelo resultado do acaso natural ou pela contingencia de circunstancias sociais. Assim, dadas as circunstancias da posic;ao original e a simetria das relac;6es entre as pessoas nesta posic;ao original, esta se apresenta como eqi.iitativa entre individuos, a prindpio, considerados como pessoas eticas, como seres racionais corn objetivos proprios, mutuamente desinteressados (ou seja sem interesses nos interesses das outras pessoas) e capazes de urn senso de justic;a. Assim, a posic;ao original de Rawls se apresenta como urn status quo inicial apropriado, capaz de garantir que o acordo nele encontrado seja eqi.iitativo. Este acordo representa uma primeiro estagio na formac;ao de uma sociedade bem-estruturada (ou aproximando-se o mais possivel de uma sociedade bem-estruturada), apos o qual, corn a suspensao do veu de ignorancia, as partes voltariam a seu lugar na sociedade, agora ja sob a egide de urn acordo eqi.iitativo, essencial para que se evite urn egoismo generalizado. 0 acordo original definiria os prindpios de justic;a os quais devem se mostrar gerais, universais, irrecorriveis e ptiblicos. Estes prindpios seriam o da igual liberdade para todos (prindpio da igualdade de tratamento) e o da repartic;iio eqi.iitativa das vantagens da cooperac;ao social. De acordo como o primeiro prindpio, cada pessoa teria urn igual direito ao mais extensivo sistema total de basicas liberdades iguais, compativeis corn urn similar sistema de liberdade para todos. Este prindpio corresponde ao da liberdade e dos direitos humanos fundamentais e comanda a atribuic;ao de deveres e de direitos basicos, devendo permitir 0 maximo de liberdade e de expressao de si por parte de cada membro da sociedade, devendo, todavia, a liberdade de cada urn ser contida pela necessidade de se proteger a dos outros - a compatibilizac;ao

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entre as liberdades dos membros da sociedade precisa estar estabelecida em sua regra constitucional, a qual configuraria o segundo eshigio de uma organiza~ao social bem-estruturada. 0 segundo prindpio, ou seja, o da reparti~ao eqiiitativa das vantagens da coopera~ao social, diz respeito aos interesses materiais, e preside a distribui~ao dos bens primaries s6cio-economicos definindo que as desigualdades sociais e economicas tern de ser ajustadas de maneira que sejam tanto para o maior benefkio dos menos privilegiados, consistente corn o prindpio justo de poupan~a e devem ser ligados a cargos e posi~oes abertos a todos, sob condi~oes de eqiiitativa igualdade de oportunidade. Segundo este prindpio, os cargos e posi~oes sociais devem estar abertos a todos (prindpio da igualdade de oportunidades), ao mesmo tempo em que as expectativas dos menos favorecidos sejam maximizadas (prindpio da diferen~a). Pelo prindpio da igualdade de oportunidades, nao se estabeleceriam outros criterios de acesso aos cargos publicos e posi~oes sociais que nao aqueles relacionados a aptidao, a forma~ao e a competencia. E pelo prindpio da diferen~a, Rawls se afasta das teses igualitaristas estritas, considerando que desigualdades sociais e economicas, posi~oes privilegiadas, podem ser consideradas justas desde que resultem em beneffcios para todos e, em particular, para os membros menos privilegiados da sociedade - neste sentido, as desigualdades precisam funcionar no sentido do favorecimento dos menos aquinhoados. Como conseqiiencia, qualquer altera~ao na estrutura social deve contemplar mudan~as que permitam o beneficiamento do grupo ou dos grupos que se encontre ou se encontrem em piores condi~oes. Este segundo prindpio de justi~a deve tambem sanar ou minimizar as desigualdades resultantes tanto de uma distribui~ao aleat6ria de habilidades e talentos, como de circunstancias hist6ricas e sociais casuais, em nome de uma maior igualdade democratica, uma vez que, para Rawls, nenhum individuo ou grupo deve estar condenado a posi~oes de exclusao, servidao ou inferioridade sob a alega~ao da existencia de uma hipotetica necessidade social ou de urn irreversivel destino individual. 0 ideal de solidariedade presente nas formula~oes rawlsianas acerca de uma justi~a como eqiiidade se estende as gera~oes vindouras. Tanto no que se refere a distribui~ao dos bens sociais e economicos como naquilo que diz respeito a op~oes de justi~a, as gera~oes presentes devem sempre buscar legar para as gera~oes posteriores prindpios que garantam a continuidade do que foi acordado no presente em termos da configura~ao de uma sociedade bem ordenada. Isto significa dizer que, para Rawls, as pessoas, em gera~oes diferentes, tern deveres e obriga~oes entre si, do mesmo modo que as gera~oes, nao podendo (ou nao devendo) a presente gera~ao agir como qui set~ estando sua a~ao limitada pelos prindpios que teriam sido escolhidos na posi~ao original, visando definir a justi~a entre as pessoas em diferentes momentos do tempo. Ao mesmo tempo, o estabelecimento de urn prindpio de poupan~a justa deve ser compreendido como urn entendimento entre as gera~oes para que possam carregar sua parcela eqiiitativa de realiza~ao e de preserva~ao de uma sociedade justa,

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resultando que cada urn receba de seus predecessores e fa~a sua parcela eqi.iitativa em favor dos que vierem depois. Os principios de justi~a preconizados por Rawls configuram-se no chamado equilfurio reflexivo, afastando a ideia de que tais principios seriam a-temporais, a-historicos, sem qualquer liga~ao corn a vivencia das gera~6es anteriores. Por este equiHbrio reflexivo, as convic~6es ponderadas que exprimem urn consenso publico sobre a no~ao de justi~a devem ser confrontadas corn os principios universais de justi~a como eqi.iidade, uma vez que aquelas convic~6es construfdas na percep~ao empfrica do cotidiano das sociedades podem conter (e na verdade contem) incoerencias, lacunas e contradi~6es - e nesta confronta~ao podem adquirir coerencia, precisao, consistencia. Os princfpios, por sua vez, devem se adaptar as condi~6es concretas de uma sociedade democratica quando se confrontam corn a experiencia historica. Segundo Rawls, este movimento de confronta~ao entre as convic~6es que exprimem urn consenso publico sobre a no~ao de justi~a e os princfpios universais de justi~a como eqi.iidade e urn equilfbrio pois princfpios e julgamentos coincidem. E e reflexivo desde que se sabe a quais princfpios os julgamentos se conformam e de quais premissas derivam. Rawls argumenta que os principios de justi~a devem se constituir como os pilares de toda a organiza~ao social que ao incorponi-los de maneira efetiva, produz o assentimento de todos os membros da sociedade que passa a gozar de nfveis cada vez mais elevados de estabilidade, for~a e dinarnismo, fortalecendo, por conseqi.iencia, a confian~a dos cidadaos entre si e entre eles e o sistema jurfdico e economico, promovendo tolerancia e perrnitindo as diferen~as de opini6es e cren~as. Estabelecidos os princfpios basicos de justi~a no acordo original, levantado o veu da ignorancia e verificando-se o retorno dos membros da sociedades a seus lugares, inicia-se uma segunda fase no processo de constru~ao formal de uma sociedade bem-ordenada, que e o da conven~ao constitucional, a qual vai escolher uma Constitui~ao e decidir acerca da justi~a das formas polfticas, devendo o primeiro principio de justi~a, ou seja, o princfpio da liberdade igual para todos, se constituir como o padrao primario para a conven~ao constitucional. Neste estagio, a Constitui~ao elaborara uma justi~a polftica que devera conter urn sistema para os poderes do governo e para os direitos basicos dos cidadaos, protegendo e incorporando as liberdades cidadas. Em urn terceiro estagio, as leis deverao satisfazer os princfpios de justi~a, respeitando os limites estabelecidos na Constitui~ao, enquanto que, em urn quarto estagio, verificar-se-ia a aplica~ao das regras aos casos particulares por jufzes e administradores e o cumprimento destas regras pelos cidadaos em geral. Esta seqi.iencia dos quatros estagios representa, para Rawls, uma parte da teoria de justi~a como eqi.iidade, constituindo-se, na verdade como uma concep~ao ideal. Rawls preconiza que a aplica~ao igualitaria das leis e das institui~6es a todos os que pertencem as classes por elas definidas, garante a legitimidade

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das expectativas, configurando 0 que e denominado pelo autor de justi<;a formal. Esta aplica<;ao igualitaria representaria o objetivo do contrato social que, de acordo corn Rawls, e a justi<;a coma eqi.iidade, imparcialidade, caracterizando a existencia de respeito as regras do jogo. Estas regras representadas pelos prindpios de justi<;a devem ser reconhecidas e cumprida como os termos essenciais da coopera<;ao voluntaria entre pessoas supostamente livres e iguais. Todavia, a partir do momento em que o pacto original vier a se desvirtuar da imparcialidade, ou seja, a partir do momento em que nao se verificar a aplica<;ao igualitaria das leis, abre-se o caminho para a desobediencia civil, constituindose, a rigor, como urn aviso previa, urn protesto publico, despido de violencia, corn o intuito de reverter situa<;6es de injusti<;a resultantes de abuso de autoridade e endere<;ado pela minoria a maioria, no sentido do sensa de justi<;a da comunidade ou da sociedade como urn todo. Na teoria de justi<;a construfda por Rawls, existiria uma tensao permanente entre o interesse individual e o interesse coletivo, que deveriam ser complemetares e convergentes (ainda que nem sempre o sejam). Somente corn a implementa<;ao dos prindpios de justi<;a na estrutura da sociedade e que, acredita Rawls, haveria uma mudan<;a na motiva<;ao das pessoas - a fusao dos interesses individuais e dos interesses comunitarios poderiam fazer surgir rela<;6es cooperativas, o que poderia conduzir a uma mobilidade social mais ampla, produzindo-se assim uma consideravel redu<;ao nas desigualdades sociais.

As criticas

a teoria

de justi-;:a de Rawls.

A obra de John Rawls provocou uma renova<;ao significativa nos estudos de filosofia moral e polftica, a panto de se poder afirmar que em qualquer lugar onde desenvolvam reflex6es sabre filosofia social e polftica, nao ha como deixar de se deter nas quest6es etico-polfticas do pensamento rawlsiano Nozick afirma que, a partir de Rawls, os filosofos politicos passaram a ter que trabalhar corn tais teoriza<;6es ou entao passaram a ter que explicar porque deixaram de faze-lo. Tais quest6es se tornaram portanto urn panto de referenda necessaria para as areas da filosofia moral e polftica. As teoriza<;6es de Rawls se constitufram como objeto de elogios significativos por parte de pensadores importantes. Segundo Dworkin, a influencia de Rawls se faz sentir de maneira expressiva tanto pela capacidade argumentativa, como pelo fato de que suas conclus6es, sua teoria, se mostram atrativas e humanitarias. Para Nozick, uma das maiores virtudes da teoria de Rawls e que ela teria realizado urn avan<;o consideravel sabre o utilitarismo - na verdade, Rawls e considerado urn dos mais, ou talvez, o mais influente crftico do utilitarismo na atualidade, enquanto que Walzer ressalta que nenhum estudo que se desenvolva na atualidade sabre justi<;a pode deixar de reconhecer e admirar o sucesso destas teoriza<;6es.

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Todavia os elogios a teoria rawlsiana nao impediram criticas por parte dos mesmos pensadores que enxergam nesta obra urn marco importante nos estudos de filosofia politica e moral. Em termos gerais, segundo Samuel Gorowitz, citado por Jose Nedel, pertenceriam a tres ordens distintas as criticas a Rawls: "1 - contra a adequa~ao do metodo (posi<;ao original, veu de ignorancia); 2 - contra a corre~ao do raciodnio (conclus6es nao rigorosas, primazia discutivel dos bens primaries); 3 - contra o contetido dos prindpios (prindpio da diferen~a, da igualdade de oportunidades. De acordo corn van Parijs, para Nozick e os chamados libertarianos, a liberdade seria o tinico valor importante, ou melhor, o tinico valor que deve se levado em considera~ao quando 0 problema e definr a estrutura basica da sociedade, entendendo-se liberdade, como liberdade de cada urn levar a vida como quer. Assim, tomando-se como base o prindpio ao qual aderem e as implica~6es politicas que a ele se seguem, os libertarianos consideram, por exemplo, como urn roubo, tanto mais grave se for perpetrado pelo Estado, qualquer forma de interven~ao publica voltada para o atingimento de algum determinado grau de eficiencia ou de eqi.iidade, nao cabendo ao Estado, portanto, promover interven~6es de qualquer natureza que venham a assegurar a igualdade de oportunidades ou promover a melhoria da sorte dos menos favorecidos. Tal posi~ao coloca os libertarianos em uma posi~ao muito distante em rela~ao ao posicionamento de John Rawls. Ainda segundo van Parijs, seria possfvel localizar esquematicamente a fonte desta diferen~a - os libertarianos expandiriam o domfnio de aplica~ao do primeiro prindpio rawlsiano (que atribui a cada urn liberdades fundamentais maximas ), sem deixar qualquer espa~o para a aplica~ao do segundo prindpio (aquele que exige igualdade eqi.iitativa de oportunidades e a maximiza~ao dos beneffcios dos mais desfavorecidos). Para os libertarianos, aderir as liberdades fundamentais afirmadas no primeiro prindpio significa perceber uma incoerencia entre os prindpios enunciados por Rawls, ou seja, uma contradi~ao entre a preocupa~ao corn a liberdade individual expressa pela prioridade absoluta que Rawls atribui ao primeiro princfpio e a "opressao" do indivfduo pela coletividade, opressao esta que estaria ligada a aplica~ao do segundo princfpio. Nozick come~a por criticar severamente os padr6es distributivos propostos por Rawls, alegando que as pessoas que compartilham de tais concep~6es pretendem come~ar tudo de novo, sem levar em considera~ao que as pessoas surgem no mundo ja vinculadas a outras pessoas que tern direito a coisas. A manuten~ao dos padr6es distributivos rawlsianos, pressup6e, segundo Nozick, uma interven~ao permanente nas atitudes e nas escolhas que as pessoas possam vir a ter ou fazer em rela~ao aquilo que possuem ou se querem tranferir alga para alguem. Nozick afirma que garantir urn padrao distributivo, qualquer que ele seja, e individualismo corn violencia - em outras palavras, e tirar de alguem o direito de fazer o que bem se entende corn aquilo que se tern. A interven~ao que se fa~a para garantir determinados padr6es distributivos, alem

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de violentar as decis6es pesssoais no se refere aos bens que possam ter ou a maneira como possam melhor dispor deles, produz, segundo Nozick, direitos as atividades e ao produto de todos, independentemente de terem vfnculos particulares corn as situa~6es geradores destes direitos. Isto representaria uma especie de posse parcial, por aqueles que nao apresentam vincula~ao corn situa~6es produtoras de determinados direitos, de pessoas, dos atos dessas pessoas, dos trabalhos dessas pessoas. Nozick tambem contesta Rawls no que se refere a apropria~ao daquilo que resulta dos dotes naturais, uma vez que, para o primeiro, os dotes nao tern que ser merecidos, ainda que possam vir a ser arbitrarios (alguem ja nasce corn uma determinada habilidade), nao carecendo, portanto, nem de justificativa para o uso daquele ou daqueles que os possuem e muito menos de argumento para que se eliminem ou se minimizem as diferen~as em propriedades derivadas das diferen~as em dotes. Nozick acredita que nao que se deve interferir na redistribui~ao daquilo que resulta dos talentos, para que se produza urn bem social. Para ele, todos os talentos e as habilidades das pessoas se constituem em urn bem para toda a comunidade que se pretenda livre. Isto significa dizer que nestas sociedades livres os talentos dos indivfduos beneficiam a todos e que as limita~6es que possam vir a se impor sobre as propriedades e os quinhoes resultantes do livre uso destes talentos levam a urn bloqueio das a~6es pessoais, impedindo que a responsabilidade se estabele~a plenamente. A nao-interferencia nas decis6es individuais acerca do se queira fazer corn aquilo que se tern ou de como se queira (ou de como nao se queira) distribuir o que se tern e a preconiza~ao de nao-interven~ao no que se refere a redistribui~ao daquilo que resulta dos talentos individuais encontram-se alicer~adas, em Nozick, em duas concep~6es basicas: uma, de direitos individuais que pertenceriam a urn estado de natureza ao "estilo lockeano", no qual os indivfduos seriam portadores de direitos e tftulos que garantiriam plenamente suas pessoas, suas liberdades e suas propriedades; outra, de urn Estado mfnimo que nao deve, em hip6tese alguma, cercear os direitos dos indivfduos, devendo portar-se tao somente como urn "estado guarda-noturno", limitado as fun~6es de prote~ao das pessoas e dos bens contra determinadas agress6es (assaltos, assassinatos, fraudes, roubos ... ). Segundo Nozick, tais concep~6es devem estar referenciadas a alguns prindpios de justi~a na propriedade: - urn prindpio de justi~a relacionado a aquisi~ao ou a apropria~ao daquilo que nao e possufdo por ninguem; urn prindpio de justi~a relacionado as transferencias de propriedades; urn prindpio de repara<;ao de injusti~as, caso se verifique a viola~ao dos outros dois prindpios.

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Tais princfpios de justi<;a teriam duas caracterfsticas basicas, a saber: - os princfpios de justi<;a em Nozick seriam procedimentais, sem que haja a fixa<;ao de urn resultado final e sem que se estabele<;a urn criteria, ou urn conjunto de criterios padronizados ex6genos que tenha, ou que tenham que ser satisfeitos; - segundo Nozick, tais prindpios seriam hist6ricos, uma vez que a justi<;a na propriedade estaria relacionada aquilo que realmente aconteceu, estaria referenciada a situa<;6es ou praticas ocorridas em epocas passadas possivelmente definidoras de direitos ou de merecimentos diferenciados em rela<;ao aos bens em geral (materias ou culturais). Levando-se em considera<;ao tais caracterfsticas, uma distribui<;ao justa, para Nozick, seria urn produto das condi<;6es geradas ou encontradas por cada pessoa que permitiram a aquisi<;ao de seus pertences - isto porque, o produto social e gerado por indivfduos que organizam a produ<;ao, ou que produzem por meio de seu trabalho ou por meio da utiliza<;ao de meios de produ<;ao ou da acumula<;ao realizada por outras pessoas. A justi<;a distributiva seria, nao uma questao de pauta, mas uma questao de hist6ria, pois, segundo van Parijs (1997), "para Nozick e os libertarianos (... ) a estrutura justa dos direitos de propriedade e 0 que e por raz6es que nada tern a ver corn as conseqiiencias que decorrem da reparti<;ao desses bens primarios". E neste sentido que a concep<;ao nozickeana e a dos libertarianos se mostra hist6rica, ja que, em termos hist6ricos (individuais ou coletivos), as possibilidades de se estabelecer previs6es ou de se determinar conseqiiencias bem-sucedidas em termos distributivos rawlsianos, seriam mfnimas (ou praticamente impossfv~is), exigindo, para tanto, ajustes permanentes na estrutura basica para garantir a preserva<;ao da igualdade de oportunidades e para aumentar a probabilidade de que as desigualdades economicas e sociais possam contribuir de maneira eficaz para que os pessoas mais destitufdos da sociedade possam ser beneficiadas. Para Nozick, portanto, uma distribui<;ao justa dos bens materiais e culturais produzidas individualmente somente o e se for resultado de uma outra distribui<;ao justa, o que significa dizer que, para que haja uma distribui<;ao justa de bens materiais e culturais e daquilo que resulta da distribui<;ao arbitraria de talentos e necessarios que se observem os princfpios de justi<;a em propriedade a que nos referimos anteriormente. Assim, de maneira bastante simples, Nozick afirma que se as propriedades das pessoas sao justas, entao todo o conjunto de propriedades em uma sociedade e justo, o que traz como corolario a ideia de que uma distribui<;ao se mostra justa quando todos tern direito a propriedade que se encontram sob seu controle de acordo corn a distribui<;ao. Nao haveria, portanto, necessidade de redistribui<;ao, caso se verificasse a aplica<;ao plena dos prindpios de justi<;a em propriedade, conforme se encontram propostos por Nozick. E se nao ha a necessidade da redistribui<;ao, uma vez que os princfpios de justi<;a em propriedade ao garantirem a justa

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distribui<;:ao da mesma, garantiriam por sua vez a justi<;:a de todo o conjunto das propriedades em uma determinada sociedade, nao ha tambem a necessidade da exish~ncia de urn Estado que seja mais extenso que o Estado minimo, uma vez que este ja seria mais do que suficiente para a garantia das liberdades e titulos individuais, para a garantia de uma justi<;:a distributiva de caracteristicas "historicas", tal como se encontra proposta em Nozick. Qualquer tentativa de se buscar o estabelecimento de padr6es redistributivos conseqiienciais, sem levar em considera<;:ao os direitos inalianaveis dos individuos as suas pessoas e as suas propriedades (e ao que fazer delas ), corn base em urn ente estatal que ultrapasse os limites do minimo necessaria a garantia da vida e da proprieda, se constituiria em interferencia indejavel e indevida, abrindo caminho para procedimentos tiranicos de governo. Se o conjunto das propriedades foi gerado de maneira correta, nao ha argumento valido que possa consubstanciar a existencia de urn Estado que va alem de urn Estado minimo, uma vez que nao existiria nenhum intitulamento previo, presente ao acordo original capaz de restringir e I ou anular a margem de manobra de que disp6em as pessoas no sentido da reparti<;:ao de seus interesse que lhes seja mais conveniente. Violar tal margem de manobra, significa para Nozick e para os chamados libertarianos, violar a liberdade, o que acontece quando uma institui<;:ao, urn Estado, se prop6e a aplicar de principios de justi<;:a redistributiva corn base nos principios rawlsianos, sobretudo corn base no segundo principio, ou seja, o principio da diferen<;:a. As criticas levadas a cabo por parte de Nozick aos principios de justi<;:a redistributiva rawlsianos nao foram as unicas, ainda que tenham se constituido em poderoso instrumento de reflexao acerca das garantias individuais ÂŁrente a interven<;:6es exogenas. Outro conjunto de reflex6es acerca das propostas de justi<;:a redistributiva de Rawls pode ser encontrado em Walzer que, apesar de compartilhar de algumas criticas realizadas por Nozick acerca do pensamento rawlsiano, nao se alicer<;:a em urn individualismo tao visceral quanto aquele presente nas formula<;:6es nozickianas. Segundo Cittadino (2000), a afirmativa de que os processos hist6ricos sao elementos definidores, conformadores das individualidades, o que colocaria Walzer na marca definit6ria do comunitarismo. A ideia de uma moralidade minima de carater universal, que permite a constru<;:ao de uma ideia de imparcialidade presente em Rawls, e compartilhada por Walzer, ainda que haja nele urn compromisso corn o particularismo. Estas tens6es entre uma moralidade minima de carater universal e o particularismo em Walzer sao pensados em termos de dois argumentos morais interrelacionados: - urn argumento denso que se encontra relacionado aos valores compartilhados por pessoas oriundas de uma historia e de uma cultura comuns; urn segundo argumento delgado que se refere a valores comuns compartilhados por qualquer pessoa, independentemente da cultura a que perten<;:a. Lusiada. Direito. Lisboa, n.Q 3 (2005)

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Esta dualidade de argumentos reflete, na verdade, segundo Walzet~ o carater essencial de qualquer sociedade humana, ou seja, toda a sociedade humana seria universal por ser humana ao mesmo tempo em que seria particular por ser uma sociedade. Neste sentido, as sociedades humanas seriam necessariamente particulares porque tern mem6rias, individuos corn mem6rias, corn hist6rias de si e da vida comunitaria. Portanto, a moralidade densa, ou seja, a moralidade referenciada aos valores compartilhados por pessoas advindas de uma hist6ria e de uma cultura comuns, ganha uma maior visibilidade em rela<;ao a uma moralidade minima comum a especie humana, ja que esta moralidade minima, para Walzet~ seria uma justaposi<;ao de aspectos comuns das moralidades densas, ou seja, urn consenso que representa a justaposi<;ao de regras e prindpios que sao compartilhados por culturas diferentes, em lugares diferentes. Esta perspectiva se diferencia da concep<;ao de Rawls, uma vez que nesta, o consenso justaposto legitima uma concep<;ao de justi<;a, enquanto que para Walzer, a eficacia social de uma concep<;ao de justi<;a depende da forma como os prindpios de justi<;a sejam interpretados no seio de sistemas culturais densos. A concep<;ao de justi<;a em Walzer trabalha corn a no<;ao de que existe uma diversidade de entendimentos acerca dos bens sociais e de que tal fato encontra-se relacionado a inevitabilidade do particularismo hist6rico e social. Estes bens sociais seriam portadores de significados, significados estes que sao compartilhados por todos os membros de uma sociedade e que configuram esta vida em comum, variando, portanto, conforme as sociedades. Assim, o particularismo e a historicidade das comunidades humanas devem ser levados em considera<;ao quando se procura estabelecer urn criterio acerca do carater justo ou injusto de urn determinado processo distributivo, 0 qual nao pode ser pensado independentemente do significado que o bem social possui, uma vez que nenhum bem social possui signficado "natural" - somente o processo social e nao individual (tal como propoe Nozick) e capaz de produzir entendimento e interpreta<;ao das significa<;6es que os bens adquirem em uma determinada comunidade. Isto significa dizer que culturas diferentes produzem, elaboram diferentes significados sobre os mais variados bens e estabelecem sua distribui<;ao em fun<;ao de prindpios e agentes distintos, inerentes a especificidade de cada cultura. Uma sociedade justa, segundo Walzer, deve desenvolver uma distribui<;ao dos bens em sintonia corn significados compartilhados por todos os membros desta sociedade, ainda que tais significados nao precisem se apresentar inteiramente harmonicos, podendo mesmo, no caso de urn genuino compartilhamento de significados, ocorrer uma consideravel distribui<;ao desigual de bens plenamente justa. Em outras palavras, a justi<;a pode ser compativel corn uma completa desigualdade na distribui<;ao dos bens sociais. Walzer entende a justi<;a como uma cria<;ao humana, hist6rica intimamente relacionada ao infinito numero de modos de vida possiveis que podem ser desenvolvidos de acordo corn a multiplicidade de religioes, condi<;oes geogra-

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ficas, organiza<;:6es e orienta<;:6es politicas e que necessariamente nao compartilham cren<;:as em princfpios de justi<;:a compartilhados por outras sociedades. A justi<;:a em uma sociedade se mede em rela<;:ao aos significados sociais do bens e a sociedade sera tao mais justa, quanto mais fielmente ela viver sua vida essencial de acordo com as no<;:6es partilhadas por seus membros. Uma sociedade injusta ou tiranica, para Walze1~ e aquela em que um grupo de indivfduos, por exercer um monop6lio sobre um determinado bem ou sobre um determinado conjunto de bens, domina os diversos processos distributivos, ao mesmo tempo em que violam os significados sociais dos bens e os prindpios de sua distribui<;:ao. Na maior parte das sociedades humanas, existe um bem ou um conjunto de bens que se apresenta ou que se apresentam como predominante ou como predominantes, ou seja bens que pennitem ao grupo que os possuem a ter acesso aos demais bens sociais da comunidade. Walzer estabelece uma distin<;:ao entre bens predominantes e bens monopolizados - no predomfnio haveria uma forma de utiliza<;:ao dos bens sociais nao-limitada pelos significados intrfnsecos destes bens sociais e/ I ou que fonnata tais significados em face de sua propria imagem, enquanto que no monop6lio se configuraria um meio de possuir e controlar os bens sociais a fim de explorar seu predomfnio. Quando se trata de justi<;:a, Walzer garante que e o predomfnio que deve ser restringido e reduzido. Restringir o predomfnio pela destrui<;:ao do monop6lio, todavia, nao garante um regime de igualdade simples em virtude da sua instabilidade. Uma situa<;:ao iniciat em que todos os integrantes estivessem em condi<;:6es de igualdade, nao se sustentaria, porque em breve manisfestar-se-iam as diferen<;:as entre as pessoas participantes da condi<;:ao inicial. Falar de justi<;:a, de acordo com Walze1~ nao quer dizer falar de uma igualdade simples, pois uma sociedade de iguais nao se sustentaria, pelo fato de, inevitavelmente diferen<;:as entre os indivfduos. A justi<;:a deve se voltar contra a submissao e a subordina<;:ao e nao se voltar para suprimir as diferen<;:as. A luta por uma politica igualitaria nao decorreria, segundo Walzer, das diferen<;:as entre ricos e pobres, mas da possibilidade dos mais ricos imporem a pobreza aos pobres e de determinarem seu comportamento submisso. Justi<;:a, por conseguinte, significaria ausencia de domina<;:ao, domina<;:ao esta que somente se viabiliza atraves do controle de um conjunto especffico de bens sociais. Esta condi<;:ao define o que Walzer chama de igualdade complexa, capaz de garantir tanto as diferen<;:as entre as pessoas, como o controle da domina<;:ao e da subordina<;:ao. Se gun do Cittadino (2000), "a igualdade complexa configura uma concep<;:ao de justi<;:a que procura erradicar a domina<;:ao atraves de um processo distributivo que respeita os significados dos bens sociais, e e neste sentido, autonomo." Nesta concep<;:ao de justi<;:a, haveria varias categorias de bens configurando esferas especfficas, dotadas de princfpios pr6prias de distribui<;:ao - obter justi<;:a, assim, seria verificar cuidadosamente os limites entre as esferas espedficas dos bens, impedindo a conversao entre bens, cujos significados e prindpios de justa distribui<;:ao se apresentam de maneira distinta.

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Uma concepc;ao de justic;a ampliada no pensamento de Walzer entende a justic;a coma uma arte de diferenciac;ao, a partir da qual diferentes resultados para pessoas diversas em esferas distintas configuram urn cenario tipico de uma sociedade justa - em tal concepc;ao mais ampla de justic;a exige-se que os cidadaos nao mandem, ou nao sejam mandados, mas que mandem, ou seja, que desfrutem de uma porc;ao maior de urn bem distribufdo em uma determinada esfera e que sejam mandados, ou seja, que desfrutem de uma porc;ao menor de urn outro bem distribufdo em uma outra esfera. Uma questao significativa que se constitui em urn contraponto importante do pensamento de Walzer em relac;ao a concepc;ao de justic;a de Rawls, encontrase justamente na ideia de igualdade complexa que sup6e que, em uma sociedade democratica, tanto a pluralidade de bens sociais, cujos significados e criterios de distribuic;ao sao designados por homens e mulheres de uma comunidade polftica atraves de urn processo deliberativo democratico e de esferas de justic;a por eles constitufdas, coma a existencia de cidadaos ativos, impedem que o predornfnio sabre os bens se converta em dominac;ao sabre as pessoas. Coma tais criterios e significados sao tornados coma parciais e incompletos, nao ha urn criteria pelo qual se possa avaliar suas verdades posto que nao ha urn panto de vista imparcial de onde se possa partir. A inexistencia, ou a secundarizac;ao de uma moralidade minima em detrimento de uma moralidade mais densa, afasta as concepc;6es de justic;a de Walzer da justic;a coma eqiiidade de Rawls. Uma outra crftica a perspectiva de justic;a redistributiva de Rawls provem de Hayek, ou mais precisamente da Escola Austrfaca e da Escola de Chicago que advogam urn capitalismo de extremo laissez-faire, que atribui ao governo, ou ao excesso de goveno a instabilidade no capitalismo. Qualquer intervenc;ao do governo limita a area de liberdade individual - a defesa seria 0 tinico bem que estas escolas aceitam coma urn bem social oferecido pelo governo. Tudo o mais deve ser obtido no mercado. A tarefa do governo e cuidar de certas deficiencias de mercado e aliviar a pobreza extrema, alem de proteger direitos. Os economistas destas escolas (destacando-se alem de Hayek, Milton Friedman) acham que qualquer papel maior do governo diminui necessariamente as liberdades. Segundo Hayek, a justic;a social e uma rniragem indefinfvel e sem sentido, ao mesmo tempo em que elogia e acredita no desenvolvimento de uma ordem espontanea social em oposic;ao a urn "construtivismo voluntarista" de uma pretensa ordem justa. Reconhece-se que a distribuic;ao dos bens e dos atributos se deu por acaso e e injusta - valer-se de qualquer intervenc;ao, especialmente governamental, para corrigir a distribuic;ao injusta somente piora a situac;ao, nao se alterando radicalmente o estado da injustic;a primeira. De acordo corn Anderson (1995), o texto de origem, o texto inaugurador do neoliberalismo e de autoria de Hayek, 0 Caminho da Servidao, escrito em 1944. N este texto, o economista austrfaco desfecha urn ataque visceral, apaixonado contra qualquer limitac;ao aos mecanismos de mercado por parte do Estado. As intervenc;6es estatais sao entendidas coma ameac;as letais a

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Reflexoes acerca de teorias de justi<;:a: algumas criticas a justi<;:a como eqiiidade ... , p. 439-455

liberdade economica e polftica. Hayek nao distingue, ou nao quer distinguir ideologicamente as interven~6es dos diversos tipos de Estado e de Governo, o que o leva a associar a social-democracia inglesa ao nazismo alemao no sentido da condu~ao ao mesmo desastre, ou seja, uma servidao moderna. Apesar da virulencia dos ataques a social-democracia, o pensamento de Hayek e de seus seguidores permaneceu secundario ao longo das decadas de 50 e 60, somente retomando sua visibilidade a partir da crise de meados da decada de 1970 - as raizes desta crise, de acordo corn Hayek, estariam localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, no plana mais geral, do movimento operario que havia corroido as bases da acumula~ao capitalista corn suas press6es reivindicativas sabre salarios e corn sua pressao para que o Estado aumentasse cada vez mais os gasto sociais. Para combater a crise, os remedios hayekianos sao claros e bastante conhecidos par nos, neste inicio de seculo XXI: manuten~ao de urn Estado forte para quebrar o poder dos sindicatos e para efetuar o controle monetario, porem modesto (e par que nao ausente) em gastos sociais e nas interven~6es economicas, disciplina or~amentaria corn estabilidade monetaria e conten~ao corn gastos voltados para o bem-estar social, restaura~ao de uma "taxa natural" de desemprego, redu~ao de impostos sabre os rendimentos mais altos e sabre as rend as. Este foi o modelo de "justi~a social" que vingou nas duas ultimas decadas do seculo XX e no inicio deste seculo XXI corn toda a intensidade e corn toda uma carga de perversidade. Neste sentido, as discuss6es em torno de concep~6es de just~a social ganham relevancia desde que contribuam para que se proceda uma supera~ao do padrao distributivo tiranico que se estabeleceu a partir do predominio da 16gica do mercado invadindo todas as esferas da vida social e subsumindo todos os bens e atributos individuais e coletivos aos ditames da reifica~ao mercadol6gica. Rio de Janeiro, Janeiro/2004

BIBLIOGRAFIA

ANDERSON, Perry. Balan~o do neoliberalismo in P6s-neoliberalismo: as polfticas sociais e o Estado Democratico, SP: Paz e Terra, 1995. CITTADINO, Gisele. Pluralismo, direito e justi~a distributiva, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. HUNT, E.K. Hist6ria do pensamento economico, RJ: Campus, 1981. NEDEL, Jose. A teoria etico-polftica de John Rawls, Porta Alegre: Edipucrs, 2000. NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia, RJ: Jorge Zahar, 1991. RAWLS, John. Uma teoria de justi~a, SP: Martins Fontes, 1997. VAN PARIJIS, Philippe. 0 que e uma sociedade justa, SP: Atica, 1997.

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TRABALHOSDEALUNOS



CONTRIBUTO PARA UM CONTRATO DE TRABALHO DESPORTIVO - ANOTADO (LEI 28/98 DE 26/06) Lucio Correia



CONTRIBUTO PARA UM CONTRATO DE TRABALHO DESPORTIVO - ANOTADO (LEI 28/98 DE 26/06) 1

Lticio Correia

NOTA INTRODUTORIA 0 presente trabalho, e o resultado de urn interesse cada vez maior pelo Direito do Trabalho, e pela crescente complexidade que vem assumindo as rela~6es laborais corn a actividade desportiva em Portugal, tendo presente, que as rela~6es juridicas de trabalho e de desporto estao cada vez mais conexas, sendo o regime geral do contrato de trabalho incapaz de dar respostas totalmente adequadas a este vinculo laboral espedfico devido a sua natureza e caracteristicas pr6prias. Este tema, e singularmente importante para mim, em virtude dos dezoito anos que pratiquei a modalidade Rainha do panorama desportivo portugues: o Andebol. Tendo tido, a possibilidade, de poder concluir a Licenciatura em Direito, ao mesmo tempo que praticava desporto a urn nivel de alta competi~ao, a realiza~ao do presente trabalho, significa como que, o "coroar" de alguns anos de sacrificio que passei em, conseguir conciliar duas actividades muitas vezes incompativeis, dai o prazer enorme que tive, de poder escrever sabre urn tema que me acompanhou ao longo dos meus tiltimos onze anos. Por isso, quero agradecer ao Prof. Dr. Ant6nio Jose Moreira, nao so a oportunidade que me concedeu para efectivar este trabalho, mas tambem, o incentivo e apoio a realiza~ao do mesmo. Urn agradecimento muito especial ao Dr. Albino Mendes Baptista, verdadeira personalidade de referenda do Direito do Trabalho actual, por ter disponibilizado, algum do seu acervo bibliografico para a realiza~ao deste trabalho e que em muito o influenciou e enriqueceu e pelo apoio dado em horas certas. Aos Drs. Fcitima Dias Dinis e ao Dr. Vitor Cruz dos Santos da ÂŤVitor Santos e Fcitima Dinis & Associados - Sociedade de AdvogadosÂť, agrade~o as dicas e a paciencia que tiveram para comigo.

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Trabalho de p6s

gradua~ao

na Universidade Lusiada

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Nao poderia igualmente deixar de agradecer a Federa<;:ao de Andebol de Portugal, principalmente ao seu carismatico Presidente Luis Santos, pela gentileza de ter acedido a coloca<;:ao na capa do meu trabalho da mascote (Utopias) do Campeonato do Mundo de Andebol de Seniores Masculinos, que se realizou em Janeiro de 2003 e, em que a nossa selec<;:ao atingiu a melhor classifica<;:ao de sempre. A todos o meu sincero agradecimento.

CAPITULO I Disposi.;oes Gerais Art. l.Q (Objecto) - 0 presente diploma estabelece o regime juridico do contrato de trabalho do praticante desportivo e do contrato de forma.;ao desportiva. A crescente complexidade que vem assumindo a actividade desportiva em Portugal aliada a sua crescente profissionaliza<;:ao e, consequentemente, a traduzir-se numa actividade econ6mica de consideravel relevo, representa uma area de neg6cios florescente e bastante apetecivel, corn premencia sempre maior para gerar conflitos de interesses que suscitam paix6es quase irracionais e arrastam multid6es, cabendo, por isso, ao direito harmonizar e preencher lacunas do regime juridico do contrato de trabalho desportivo que e incapaz de dar respostas adequadas devido a natureza e especificidades deste vinculo juridico. Se outrora ninguem, ou quase ninguem, se afoitava a ligar pratica desportiva e contrato de trabalho, hoje todos, ou quase todos, aceitam a adesao. A Lei n.Q 1/90, de 13 de Janeiro, alterada pela Lei n.Q 19/96, de 25 de Junho, denominada Lei de Bases do Sistema Desportivo (LBSD), prescreveu no seu artigo 14.Qn.Q4 que o regime juridico contratual dos praticantes desportivos profissionais seria definido por diploma proprio. Nao obstante o assinalavel atraso, esse diploma surgiu em 1995, atraves da publica<;:ao do Decreto - Lei n.Q 305/95 de 18 de Novembro, mais tarde revogado pela actual Lei n .Q 28/98, de 26 de Junho, que admitiu a figura do praticante I trabalhador desportivo, nao se incluindo no entanto os tecnicos ou treinadores, que de acordo corn o artigo 4.Qn.Q4 da LBSD sao "meros" agentes desportivos, olvidando-se a sua imporHincia no panorama desportivo actual. Art. 2. Q (Defini.;oes) - Para efeitos do presente diploma entende-se por: a) Contrato de trabalho desportivo aquele pelo qual o praticante desportivo se obriga, mediante retribui.;ao, a prestar actividade desportiva a uma pessoa singular ou colectiva que promova ou participe em actividades desportivas, sob autoridade e a direc.;ao desta; b) Praticante desportivo profissional aquele que, atraves de contrato de trabalho desportivo e apos a necessaria forma.;ao tecnico - profissional, pratica uma modalidade desportiva como profissao exclusiva ou principal, auferindo por via dela uma retribui.;ao;

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c) Contrato de forrna~ao desportiva o contrato celebrado entre urna entidade forrnadora e urn forrnando, nos terrnos do qual aquela se obriga a prestar a este a forrna~ao adequada ao desenvolvirnento da sua capacidade h~cnica e a aquisi~ao de conhecirnentos necessarios a pratica de urna rnodalidade desportiva, ficando 0 forrnando obrigado a executar as tarefas inerentes a essa forrna~ao; d) Ernpresario desportivo a pessoa singular ou colectiva que, estando devidarnente credenciada, exer~a a actividade de representa~ao ou interrnedia~ao, ocasional ou perrnanente, rnediante rernunera~ao, na celebra~ao de contratos desportivos; e) Entidade forrnadora as pessoas singulares ou colectivas desportivas que garantarn urn arnbiente de trabalho e os rneios hurnanos e h~cni­ cos adequados a forrna~ao desportiva a rninistrar; f) Forrnando os jovens praticantes que, tendo curnprido a escolaridade obrigatoria, tenharn idades cornpreendidas entre os 14 e os 18 anos e tenharn assinado o contrato de forrna~ao desportiva, tendo por firn a aprendizagern ou o aperfei~oarnento de urna rnodalidade desportiva. Analisarei de momento apenas as duas primeiras alineas uma vez que as restantes serao objecto de analise nos capitulos respectivos, isto e, nos capitulos IV e VI. I - Quanto a alinea a), podemos afirmar que pela defini«;ao aqui prevista, estamos perante urn contrato de trabalho de natureza especial, que se distingue das definic;6es de contrato de trabalho estatuidas nos arts. 1152.Q do Codigo Civil e lO.Qdo Codigo do Trabalho (antigo art.Q l.Q da LCT), come«;ando pelos sujeitos (praticante desportivo e entidade empregadora desportiva), depois quanto ao objecto (presta«;ao de uma actividade desportiva que e efemera, quando comparada corn as actividades laborais comuns ), e ainda, quanto a subordina«;ao juridica particularmente intensa do praticante relativamente ao empregador, que muitas vezes esmaece as fronteiras da sua vida profissional corn a sua vida privada. De qualquer forma, e de acordo corn o Prof. Dr. Joao Leal Amado « ..... o contrato regulado por esta lei se prefigura como urn contrato bidimensionat ou, se se preferir, urn contrato bifronte: estamos, e certo, perante urn contrato de trabalho (desportivo ), mas outrossim per ante urn contra to de desporto (trabalhado )........ Nao se trata, apenas, de qualificar desportivamente o substantivo trabalho; trata-se bem assim, de qualificar laboralmente o substantivo desporto. » (Vinculac;ao versus Liberdade, Coimbra, Coimbra Editora 2002, pag. 79) Conclui-se, assim, que este contrato especial d e trabalho nasce pela necessidade de coordenar o aspecto !aboral corn o aspecto desportivo e pela necessidade de harmonizar estes dois valores essenciais. 11 - Relativamente a defini«;ao contida na alinea b), podemos afirmar, em born rigor, que qualquer praticante, ao celebrar urn contrato de trabalho des-

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portivo, prestando a sua actividade a uma entidade empregadora desportiva sob retribuic;ao, quer seja a titulo exclusivo ou secundario, e urn profissional. Distinguindo-se do praticante amador que nada aufere pela sua actividade desportiva, ou que aufere, uma mera compensac;ao das despesas efectuadas, sem ter, no entanto, caracter retributivo. Segundo o Prof. Dr. Joao Leal Amado, (in Contrato de Trabalho DesportivoAnotado, Coimbra Editora 1995) existem duas acepc;oes de desportista profissional: - a acep~ao stricto sensu - aquele que exerce a actividade desportiva coma profissao exclusiva ou principal, isto e, aquele que depende economicamente da actividade desportiva par si prestada e em que a retribuic;ao auferida e meio de sustento e nao urn mero complemento e¡ - a acep~ao lato sensu - A qualidade de praticante desportivo profissional, lata sensu, resulta da celebrac;ao de contrato de trabalho desportivo, independentemente da configurac;ao federativa da modalidade em causa, isto e, ...de a respectiva federac;ao lhe conferir ou nao urn caracter profissional. ....... em suma, que o r6tulo podera nao corresponder ao contetido, que o praticante podera ter urn estatuto jurfdico desportivo de amador e urn estatuto juridico-laboral de profissional, sendo que apenas este releva para efeitos da aplicac;ao do presente diploma - rnuito embora o primeiro se traduza, par vezes, num factor de obnubilac;ao do segundo (falso amadorismo, profissionalismo encapotado ). (Contrato de Trabalho Desportivo - Anotado, Coimbra Editora 1995, pag. 19) I

No entanto, sern querer criticar tao douta opiniao, esta rigida qualificac;ao, a nosso ver restringe a ampla definic;ao prevista na alinea b) e, a nosso ver, esta pode sofrer algumas nuances, ou seja, quanta a 1. ~ acepc;ao nao nos choca a possibilidade da retribuic;ao auferida pelo praticante desportivo poder ser urn rnero complemento de outro tipo de rendimentos que ate podem nao advir, do exerdcio de outra actividade profissional, seguindo-se assim a definic;ao estatuida no artigo 2.Q b). E quanta a 2.il acepc;ao, afigura-se-nos de dificil aplicabilidade o facto da qualidade de praticante desportivo profissional, resultar, apenas da celebrac;ao de urn contrato de trabalho desportivo, olvidando-se par exemplo, urn montante retributivo adequado, ao epiteto que se pretende atribuir Contudo, nada impede que a actividade desportiva seja profissionalmente prestada ao abrigo de urn outro contrato: par exemplo, contrato de prestac;ao de servic;os em certas modalidades nao colectivas (tenis, golfe, etc) em que o trabalhador e aut6nomo e em que este diploma nao se aplica. Considerando, no entanto, que a celebrac;ao de urn contrato de prestac;ao de servic;os desportivos ern rnodalidades colectivas deve ter urn caracter residual, isto e, apenas devera ser utilizado em certas modalidades nao profissionalizadas e/ ou que 0 caracter competitivo nao tenha urn nivel elevado, em

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que o praticante desportivo goza de uma efectiva autonomia perante o "receptar" do servi~o, e uma subordina~ao jurfdica algo branda. Art. 3. Q (Direito subsidiario) - As rela~oes emergentes do contra to de trabalho desportivo aplicam-se, subsidiariamente, as regras aplicaveis ao contrato de trabalho. 0 Legislador instituiu urn regime espedfico para o contrato de trabalho desportivo, devido as suas especialidades e natureza, atribuindo apenas urn caracter subsidiario ao regime geral de contrato de trabalho, o que significa que, em tudo o nao previsto neste regime especial, recorre-se ao regime geral, nao obstante, as peculiaridades desta rela~ao laboral despartiva. Corn a remissao efectuada par este artigo, acrescido do siH~ncio da presente Lei em certas materias, leva muitas vezes a aplica~ao de certos diplomas que olvidam a natureza da rela~ao laboral desportiva e nao conseguem dar solu~oes totalmente adequadas aos hiatos daqui resultantes, par exemplo, serao aplicaveis sem qualquer adapta~ao os regimes anteriormente contidos no DecretoLei 398183 de 2111 - Suspensao do Contrato de Trabalho (actualmente arts. 333.Q, 334.Q e 335.Q a 349.Q do novo Codigo do Trabalho), ou da anterior Lei 651 177, de 26108 - Lei da Greve (arts. 59l.Q a 606.Q do actual Codigo do Trabalho )? Ou sera que, tera de existir alguma pondera<;:ao na aplica~ao de regimes jurfdicos previstos para o Regime Geral de Trabalho que nao podem ser aplicados per si a este Regime Jurfdico espedfico, sob pena, de desvirtuar este particular e caracterfstico diploma? Sem duvida, que esta questao e de diffcil resposta, contudo, a nosso ve1~ deve aceitar-se a aplica<;:ao dos diplomas, supra indicados, apesar de alguma adapta<;:ao ao caso concreto (ex vi este artigo 3.Q), ou seja, temos de imperativamente avaliar a situa~ao em analise e verificar se as consequencias da aplica~ao destas normas que nao foram concebidas para este espedfico Regime Jurfdico, nao o desvirtuam-no. Dai ter especial relevancia o direito de contrata<;:ao colectiva que os praticantes despartivos gozam, merce do seu direito de liberdade sindical, corn a possibilidade das associa~oes, entretanto criadas, poderem filiar-se em organiza~oes sindicais internacionais (vide arts. 55.Q e 56.Q da CRP e arts. 475.Q a 523.Q do Codigo do Trabalho (revogando a antiga Lei Sindical Decreto-Lei n.Q 215-B I 75, de 30 I 04), sendo as conven~oes colectivas, urn instrumento privilegiado de adequa~ao normativa as circunstancias particulares de cada modalidade (vide arts. 2.Q, 540.Q e seguintes do Codigo do Trabalho, que revogaram o Decreto-Lei n. Q 519-C I 79, de 29 I 12 ), e em que as normas destes instrumentos de regulamenta~ao colectiva de trabalho, so poderao ser afastadas por contrato de trabalho, quando este estabele<;:a condi~oes mais favaraveis para o trabalhador I praticante despartivo e se daquelas disposi<;:oes nao resultar o contrario (art.Q 53l.Q em conjuga~ao corn o art.Q 4.Q do Codigo do Trabalho, aprovado pela Lei n.Q 99 I 2003, de 27 de Agosto ).

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Art. 4. 2 (Capacidade) n. 2 1 - 56 podem celebrar contratos de trabalho desportivo os menores que hajam completado 16 anos de idade e que reunam os requisitos exigidos pela lei geral do trabalho. n. 2 2 - 0 contra to de trabalho desportivo celebrado por menor deve ser igualmente subscrito pelo seu representante legal. n. 2 3 - E anulavel o contra to de trabalho celebrado corn viola~ao do disposto no ntimero anterior.

Esta norma vem assim ao encontro do disposto dos arts. 122.2 e 123.Q da LCT, hoje em dia revogados pelos arts. 55.Q a 59.Q do novo Codigo do Trabalho que, conjugados corn o artigo 122.Qdo Codigo Civil suscita, no entanto, algumas observa~6es.

Desde logo, so os menores que hajam completado 16 anos, que tenha conclufdo a escolaridade obrigatoria e disponha de capacidade ffsica e psfquica adequadas ao posto de trabalho (art.Q55.Qn.Q1 do Codigo do Trabalho) podem celebrar este contrato e prestar a correspondente actividade desportiva; antes disso, o menor padece de uma especie de incapacidade negocial de gozo, que provocara a nulidade do contrato de trabalho desportivo de que e titular, nos termos gerais de direito. Acrescida a esta eventual incapacidade, podera ainda advir uma incapacidade negocial de exerdcio, uma vez que o praticante desportivo menor nao pode por si so celebrar o contrato de trabalho, ou seja, este tera de ser obrigatoriamente subscrito pelo seu representante legal, sob pena de anulabilidade como preve o n.Q 3. Regime este distinto do previsto no art.Q 58.Q n.Q2 do Codigo do Trabalho que corresponde corn as devidas altera~6es ao art.Q 123.Q n.Q 3 da ja revogada LCT, que apenas exige como condi~ao de validade do contrato, a nao oposi~ao do representante legal, visando assim, salvaguardar os interesses do praticante desportivo menor tendo em conta a natureza particularmente estavel do vinculo que assume. Sendo certo que, no regime geral, a oposi~ao dos representantes legais de menores, bem como a revoga~ao da autoriza~ao exigida no n.Q 1 do art.Q 56.Q, podem ser declaradas a todo o tempo, tornando-se eficazes decorridos 30 dias, podendo este prazo ser reduzido ate metade, se se demonstrar a necessidade de frequencia de estabelecimento de ensino ou de ac~ao de forma~ao profissional, nos termos do art.Q58.Qn.Q3 e 4 do Codigo do Trabalho. Por fim, de referir que, o contrato de trabalho declarado nulo ou anulado produz os seus efeitos como se fosse valido em rela~ao ao tempo durante o qual esteve em execu~ao ou, se durante a ac~ao continuar a ser executado, ate a data do transito em julgado da decisao judicial, conforme o disposto nos arts. 115.Q e 116.Qdo Codigo de Trabalho, correspondendo corn as devidas altera~6es ao revogado art.Q 15.Q da LCT. '

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Art. 5. Q (Forma) n .. Q 1 - Sem prejufzo no disposto em outras normas, na regulamenta~ao desportiva ou em instrumento de regulamenta~ao colectiva de trabalho, o contrato de trabalho desportivo e lavrado em duplicado, ficando cada uma das partes corn urn exemplar. n. Q 2 - 0 contra to de trabalho desportivo so e valido se for celebrado por escrito e assinado por ambas as partes, dele devendo constar: a) A identifica~ao das partes, incluindo a nacionalidade e a data de nascimento do praticante; b) A actividade desportiva que o praticante se obriga a prestar; c) 0 montante da retribui~ao; d) A data de inicio de produ~ao de efeitos de contrato; e) 0 termo de vigencia do contrato; f) A data da celebra~ao. n. Q 3 - Quando a retribui~ao for constitufda por uma parte certa e outra variavel, do contrato devera constar indica~ao da parte certa e, se nao for possfvel determinar a parte variavel, o estabelecimento das formas que esta pode revestir bem como dos criterios em fun~ao dos quais e calculada e paga. De acordo corn a regra geral prevista no art.Q 102.Q do C6digo de Trabalho a que corresponde em sentido identico ao revogado art.Q 6.Q da LCT, em conformidade corn o disposto no art.Q 219.Q do Cod. Civil, no contrato de trabalho impera a regra da consensualidade ou liberdade de forma: ÂŤA validade da declara\=ao negocial nao depende da observancia de forma especiat salvo quando a lei a exigirÂť. No entanto, esta regra admite excep\=6es, sendo a mais importante delas a que diz respeito aos contratos de trabalho a termo, por for\=a do art.Q 103.Q n.Q 1 alinea c) do novo Codigo do Trabalho a que correspondia o art.Q 42.Q n.Ql da revogada LCCT. Sendo certo que, o contrato de trabalho desportivo e obrigatoriamente urn contrato a termo, torna-se indispensavel a sua redu\=ao a escrito, tendo a inobservancia legal consequencias completamente distintas do contrato de trabalho "normal". Nos termos do disposto no art.Q 13U n.Q 4 do Codigo de Trabalho a que corresponde corn as devidas altera\=6es ao revogado art.Q 42.Q n.Q 3 da LCCT, que considera contrato sem termo aquele em que falte a redu\=ao a escrito ou a assinatura das partes; enquanto que no contrato de trabalho desportivo, estando excluida a possibilidade de se verificar urn contrato sem termo, a preteri\=aO de forma legal podera implicar em ultimo caso a invalidade do contrato, em consonancia corn o art. 220.Q do Cod. Civil, sem prejuizo, do previsto nos arts. 115.Q e 116.Q do novo Codigo do Trabalho. No contrato de trabalho desportivo pode ser aposto urn termo suspensivo ou inicial (n.Q 2 d)), ou seja, a produ\=ao de efeitos pode ser diferida para momento posterior ao da respectiva celebra\=ao (vide arts. 278.Q do Cod. Civil e 127.Q do novo Codigo do Trabalho), sendo, no entanto, e de acordo corn o

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Prof. Dr. Joao Leal Amado ÂŤ ... a lei e omissa relativamente a condi<;ao resolutiva. Existe, todavia, urn aspecto que importa p6r em relevo: o contrato de trabalho desportivo e, por for<;a dessa mesma lei, urn contrato a termo; e, sobretudo o termo aqui e estabilizador e nao limitativo .... ou seja, a condi<;ao resolutiva, que em geral se traduz num elemento de precariza9ao, pode aqui assumir contornos de autentico instrumento de liberta9ao.>> (Contrato de Trabalho Desportivo Anotado, Coimbra Editora, pag. 32) Sendo de dificil aceita<;ao a aponibilidade por escrito de tal clausula que tambem contraria o Prindpio da Estabilidade no Emprego consagrado no art. 53.Q da CRP. 0 n.Q 3 do presente artigo vem na senda do disposto nos arts. 25l.Q, 252.Q e 253.Q do Codigo do Trabalho a que correspondiam os arts. 83.Q, 84.Q e 85.Q da revogada LCT (isto e, caracteriza como retribui<;ao certa a calculada em fun<;ao do tempo de trabalho, entendendo-se por retribui<;ao variavel a calculada em fun<;ao do rendimento de trabalho e, como retribui<;ao mista aquela que se compoe por uma parte certa e outra variavel), defini<;oes estas corn elasticidade suficiente para se poder aplicar ao contrato de trabalho desportivo e que visam assegurar ao praticante o entendimento do seu calculo de retribui<;ao. Art. 6.Q (Registo) n. Q 1 - A participa~ao do praticante desportivo em competi~oes promovidas por uma federa~ao dotada de utilidade publica desportiva depende de previo registo do contrato de trabalho desportivo na respectiva federa~ao. n. Q 2 - 0 regis to e efectuado nos term os que forem estabelecidos por regulamento federativo. n. Q 3 - 0 disposto nos numeros anteriores e aplicavel as modifica~oes que as partes introduzam no contrato. n.Q 4- No acto do registo do contrato de trabalho desportivo a entidade empregadora desportiva deve fazer prova de ter efectuado o correspondente seguro de acidentes de trabalho, sob pena de incorrer no disposto no artigo 44.Q do Decreto-Lei n.Q 491/85, de 26 de Novembro. n. Q 5 - A falta de regis to do contra to ou das clausulas adicionais presume-se de culpa exclusiva da entidade empregadora desportiva, salvo prova em contrario. Para habilitar o praticante desportivo a participar numa competi<;ao desportiva e necessaria a formalidade complementar de se proceder ao seu registo no organismo competente, tendo em conta a natureza da competi<;ao em que se inscreve, sendo certo que esta nao e uma condi<;ao de validade do contrato de trabalho desportivo, isto e, nao sofre de quaisquer vicios e produz efeitos entre os seus outorgantes, mas e ineficaz relativamente a federa<;ao, impedindo o praticante de participar em competi<;oes por esta promovidas ou que se disputem no seu seio. Dai que se conclua que o registo do contrato na federa<;ao nao tern caracter constitutivo, mas apenas declarativo. 468

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Contributo para um Contra to de Trabalho Desportivo- Anotado (Lei n.Q 28/98 de 26/ 6), p. 459-526

Nas federa<;:oes desportivas em cuja modalidade se disputem competi<;:oes de cm路acter profissional (vide Decreto-Lei n. Q 303 I 99, de 06 I 08 ), deve ser constituido um organismo dotado de autonomia administrativa, tE~cnica e financeira (Ligas Profissionais ), cabendo-lhe exercer as competencias da federa<;:ao em materia de organiza<;:ao, direc<;:ao e disciplina relativamente a essas competi<;:oes (arts. 24.Q da Lei de Bases do Sistema desportivo (LBSD) e 39.Q n.Q 1 f) do Regime Juridico das Federa<;:oes Desportivas (RJFD), bem como 芦registar os contratos de trabalho dos respectivos praticantes desportivos profissionais>>. No entanto, e na nossa opiniao, por for<;:a do n.Q 2 do presente artigo, conjugado com o n.Q 2 do art. 39.Q do RJFD, o regulamento deste organismo aut6nomo (Ligas Profissionais ), quanto ao regis to dos contratos dos praticantes desportivos profissionais, deve obediencia aos termos definidos pelos estatutos federativos nessa materia, por respeito ao previsto no artigo 2l.Q do RJFD e ao protocolo celebrado entre a Federa<;:ao e a Liga Profissionat que norteia as rela<;:oes entre esse organismo aut6nomo, mas nao independente, e a respectiva Federa<;:ao (vide art. 40.Q do RJFD). De referir que o n.Q 4 deste artigo ja se encontra desactualizado, uma vez que o Decreto-Lei n.Q 491 I 85, de 26 de Novembro foi revogado sucessivamente pela Lei 116 I 99, de 04108, que veio instituir o regime geral das Contra-Ordena<;:oes laborais, tendo por sua vez, si do revogada pela Lei n. Q 99 I 2003 de 27 de Agosto que aprovou o novo C6digo de Trabalho e que agora estabelece os arts. 614.Q a 689.Q, em sentido semelhante ao regime anteriormente revogado. Contudo, aplaude-se a obrigatoriedade de exibi<;:ao de prova de realiza<;:ao de seguro de acidentes de trabalho obrigat6rio por parte da entidade empregadora desportiva, por determina<;:ao do Decreto-Lei n.Q 146193, de 26104 coadjuvado pela Portaria n.Q 757193, de 26108, garantindo um esquema de apoio social ao praticante desportivo que assim nao fica desprovido de qualquer indemniza<;:ao em caso de invalidez permanente, morte, ou em caso de necessidade de pagamento despesas de tratamento ou internamento hospitalar e ate de repatriamento se necessaria (art.Q 4.Q n.Q1 do Decreto-Lei supra referido). Art. 7. Q (Promessa de contra to de trabalho)- A promessa de contrato de trabalho desportivo so e valida se, alem dos elementos previstos na lei geral de trabalho, contiver indica~ao do inicio e do termo do contrato prometido ou a men~ao a que se refere a alinea b) do n.Q 2 do artigo 8.Q. 0 contrato-promessa nao e um contrato atipico no ordenamento juridico laboral (previsto no art.Q 94.Q do novo C6digo do Trabalho a que corresponde com as devidas altera<;:oes ao art.Q 8.Q da revogada LCT; disciplinado nos arts. 410.Q a 413.Q do Cod. Civil), pelo contrario, este pre-contrato, preliminar de um contrato de trabalho desportivo e cada vez mais frequente, visando, desta forma, sem infrac<;:ao de nenhum dos seus deveres laborais, que o praticante desportivo assuma a promessa de celebra<;:ao de um outro contrato com outra entidade empregadora desportiva, cujo infcio de execu<;:ao apenas ocorrera depois da cessa<;:ao do seu actual.

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Este contrato bilateral pressup6e o consenso de duas declara<;6es de vontade contrapostas, em que a sua validade depende da verifica<;ao da indica<;ao do inicio e do termo do contrato prometido e da men<;ao dos requisitos a que se refere o n .Q 1 do art.Q 94.Q e, que faz depender a validade do contrato ÂŤ ... se constar de documento, no qual se exprima, em termos inequfvocos, a vontade de o promitente ou promitentes se obrigarem a celebrar o contrato definitivo, a especie de trabalho a prestar e a respectiva retribui<;ao. >> Distinto sera o regime a aplicar em caso de incumprimento da promessa de celebra<;ao de contrato de trabalho desportivo, uma vez que atendendo a natureza pessoal da obriga<;ao assumida o n.Q 3 do art.Q 830.Q do Cod. Civil, declara inaplicavel a possibilidade de execu<;ao especffica do contrato promessa atraves de senten<;a que produza os efeitos da declara<;ao negocial do faltoso, remetendo-se para as normas gerais sobre o incumprimento da presta<;ao e obriga<;ao de indemniza<;ao (arts. 798.Q e segs. e 562.Q e segs. do Cod. Civil), sem prejufzo, do calculo da indemniza<;ao devida, apurada nos termos gerais e que, podera ate ser estabelecida por conven<;ao colectiva de trabalho (vide art.Q 6.Q n.Q5 da CCT dos Jogadores Profissionais de Futebol, ex vi art.Q 4.Q e 53l.Q do novo Codigo do Trabalho). Assim, nao obstante a aplica<;ao do regime geral do contrato de trabalho (arts. 442.Q e 830.Qdo Cod. Civil), no regime previsto nos n. 0 ' 2 e 3 do artY 94.Q do novo Codigo do Trabalho, verifica-se que a celebra<;ao do contrato-promessa representa, para o praticante desportivo uma maior vincula<;ao e potencialmente urn maior incomodo, em caso de incumprimento, do que para o trabalhador comum, uma vez que, este nao possui a mesma liberdade de desvincula<;ao, (ou seja o praticante apenas pode desvincular-se se existir justa causa) traduzindo urn caracter particularmente estavel as obriga<;6es assumidas decorrentes da celebra<;ao do contrato prometido.

Art. 8. Q

(Dura~ao

do contra to)

n. 2 1 - 0 contra to de trabalho desportivo nao pode ter dura~ao inferior a uma epoca desportiva nem superior a oito epocas. n. 2 2 - Sem prejuizo do disposto no mimero anterior podem ser celebrados por periodo inferior a uma epoca desportiva: a) Contratos de trabalho celebrados ap6s o inicio de uma epoca desportiva para vigorarem ate ao fim desta; b) Contratos de trabalho pelos quais o praticante desportivo seja contratado para participar numa competi~ao ou em determinado mimero de presta~oes que constituam uma unidade identificavel no ambito da respectiva modalidade desportiva. n. 2 3 - no caso a que se refere a alinea b) do ntimero anterior, nao e necessario que do contrato constem os elementos referidos nas alineas d) e e) do n.Q 2 do artigo 5. 2 •

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n. 2 4 - Considera-se celebrado por uma epoca desportiva, ou para a epoca desportiva no decurso da qual for celebrado, 0 contrato em que falte a indica~ao do respectivo termo. n. 2 5 - Entende-se por epoca desportiva o periodo de tempo, nunca superior a 12 meses, durante o qual decorre a actividade desportiva, a fixar para cada modalidade pela respectiva federa~ao dotada de utilidade publica desportiva.

Art. 9. 2 (Viola~ao das re gras sob re a dura~ao do contra to) - A viola~ao do disposto no n. 2 1 do artigo anterior determina a aplica~ao ao contra to em causa dos prazos minimo ou maximo admitidos.

Coniorme ja foi referido, o contrato de trabalho desportivo, ao contrario do contrato de trabalho comum, e sempre urn contrato a termo justificado pela propria natureza da profissao em causa, e pela competi\=ao desportiva em que se insere, sendo a esmagadora maioria das vezes, urn contrato a termo certo, de acordo corn o n.Q 1 e n.Q 2 alinea a) e n .Q 4 do art.Q 8. 2, e pouco frequentemente, urn contrato a termo incerto, de acordo corn a alinea b) do n. 2 2, mas sempre urn contrato de trabalho corn uma dura\=ao temporal, mais ou menos, certa. Segundo a alinea b) do n.Q2 do preceito em analise, o praticante desportivo e contratado para participar numa determinada competi\=ao (ex.: Competi\=oes Europeias de Futebol ou no Playoff da Liga de Basquetebol), estando a verifica\=ao do termo do contrato dependente dos resultados desportivos alcan\=ados pela entidade empregadora desportiva, pelo que, o contrato ficara sujeito a urn termo resolutivo incerto. Esta situa\=ao nao foi descurada pelo CCT dos Jogadores Profissionais de Futebol que no art. 2 7.Q n .os 1, 2 e 3, preveem a extin\=ao do respectivo contrato ÂŤ apos a realiza\=ao do ultimo jogo da competi\=ao a que se referia ou para que fora contratadoÂť, que assim ultrapassou a dificil questao, anteriormente prevista no ja revogado art.Q46.Qn.Q1 e 2 da LCCT, que exigia a demincia previa do contrato pelo empregador, sob pena da respectiva renova\=ao, que se aplica face a subsidariedade do regime geral do contrato de trabalho (art.Q 3.Q), e que foi olvidada pela presente Lei tendo esta situa\=ao pertinente, sido alterada devido a novidade estatuida nos arts. 140.Q n. 2 2 e 388.Q n .Q 1 do novo Codigo do Trabalho, uma vez que no regime actual o contrato so se renova no final do termo estipulado na falta de declaraÂŁao das partes em contrario, e, ao contrario do que sucedia no regime anterior, tern agora as partes, (a entidade empregadora o prazo de 15 dias, e o trabalhador de 8 dias) antes de o prazo estabelecido no contrato de trabalho expirar, de comunicar por escrito a contra parte a vontade de fazer cessar o contrato. Em suma, se eventualmente existiam duvidas quanta a aplicabilidade do antigo regime geral de trabalho (art. 2 46.Q n.Q1 e 2 da LCCT), a presente Lei; afigura-se-nos agora, em virtude das altera\=oes introduzidas pelo novo Codigo

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do Trabalho, que confere a possibilidade quer empregador, quer ao praticante desportivo de obstar a renova<;ao do contrato de trabalho, a nosso ver, nao nos resta quaisquer dtividas quanto a aplica<;ao dos arts. 388.Q e 140 n.Q 2 do novo Codigo a Lei n.Q 28/98, de 26 de Junho ex vi o art.Q 3.Qdo mesmo diploma e ao canicter bilateral que agora assume a renova<;ao. Relativamente a dura<;ao do contrato de trabalho desportivo, e de acordo corn Romano Martinez, ÂŤ O contrato de trabalho desportivo e celebrado necessariamente a termo certoÂť (Direito do Trabalho, vol. 11, 2.Q Tomo, pag. 87), podendo existir excep<;oes a celebra<;ao de contratos por periodos inferiores a uma epoca prevista no n.Q 1 (vide alineas do n.Q2, dando a alinea b) guarida a figura do termo incerto ). Tambem o Dr. Albino Mendes Baptista, na senda da opiniao do Autor anteriormente referido defende que (in A compensa<;ao de antiguidade a que se refere o art.Q 46.Q n.Q 3 da LCCT, e aplicavel ao contrato de trabalho desportivo?, RMP, n .Q 85, 2001, pp. 145-6) ÂŤO legislador quis manifestamente garantir a liberdade de contrata<;ao do praticante desportivo, exonerando-o de qualquer vincula<;ao indeterminada>> Nao existindo, no entanto, e a nosso ver bem, quaisquer excep<;oes ao prazo maxima (8 epocas), de acordo corn o art.Q 9.Q da presente Lei. Corn efeito, uma profissao de desgaste rapido, que requer urn aperfei<;oamento fisico e uma condi<;ao atletica apurada, deve ser compativel corn a juventude e pouco frequentemente ultrapassara os 30 a 35 anos, devendo por isso o praticante desportivo abandonar a carreira desportiva relativamente jovem, o que explica a inexistencia de excep<;oes ao prazo (bastante longo apesar de tu do) maxima de dura<;ao do contrato de trabalho desportivo.

Art. 10. Q (Direito de imagem) n. Q 1 - Todo o praticante desportivo profissional tern direito a utilizar a sua imagem publica ligada a pni.tica desportiva e a opor-se a que outrem a use ilicitamente para explora~iio comercial ou para outros fins economicos. n. Q 2 - Fica ressalvado o direito de uso de imagem do colectivo dos praticantes, o qual podera ser objecto de regulamenta~iio em sede de contrata~iio colectiva.

De acordo corn o n .Q 1 do art.Q 79.Qdo Cod. Civil, em consonancia corn o art.Q 26.Q n.Q 1 da CRP, << ... o retrato de uma pessoa nao pode ser exposto, reproduzido ou lan<;ado no comercio sem o consentimento dela>>, ressalvando o n.Q 2 do mesmo artigo do Cod. Civil que <<nao e necessaria o consentimento da pessoa retractada quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigencias de policia ou de justi<;a, finalidades cientificas, didacticas ou culturais, ou quando a reprodu<;ao de imagem vier enquadrada na de lugares ptiblicos, ou na de factos de interesse publico ou que hajam decorrido publicamente>>.

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Contributo para urn Contra to de Trabalho Desportivo- Anotado (Lei n. 2 28198 de 261 6), p. 459-526

Cabe ao praticante desportivo individual a opos1c;:ao a que outrem use ilicitamente a sua imagem para fins comerciais, ao contr<irio do que sucede na utilizac;:ao da imagem do colectivo de praticante (equipas ), cuja oposic;:ao pertence a entidade empregadora. Numa altura em que os investimentos publicit<irios sao cada vez maiores, potenciando a imagem dos praticantes individuais, ou pertencentes a modalidades colectivas, a figuras endeusadas, corn as "devidas" contrapartidas para os clubes ou sociedades desportivas que os empregam que projectam produtos ligados ou nao a pratica desportiva ou a modalidade que praticam, e que elevam esses mesmos produtos a urn numero de vendas verdadeiramente inatingiveis anteriormente, merce da sua imagem de grandes atletas, verificamos que progressivamente e de forma inelutavel 0 desporto sera urn dos maiores, senao o maior baluarte da publicidade actual. Dai que os Tribunais tenham uma atenc;:ao especial a protecc;:ao da imagem publica dos atletas e a sua utilizac;:ao sem a sua autorizac;:ao (vide por todos Ac6rdao do Tribunal da Relac;:ao de Lisboa, de 28/01/1999, proibindo a comercializac;:ao de cromos e cadernetas corn a imagem de jogadores de futebol sem a sua autorizac;:ao ou do Sindicato Nacional dos Jogadores Profissionais de Futebol, in Jose Manuel Meirim, 0 Desporto nos Tribunais, pags. 159 a 162, Centro de Estudos e Formac;:ao Desportiva, 2001)

Art. 11. Q (Periodo Experimental) n. Q 1 - A dura~ao do periodo experimental nao pode exceder, em qualquer caso, 30 dias, considerando-se reduzido a este periodo em caso de estipula~ao superior. n. Q 2 - Relativamente ao primeiro contrato de trabalho celebrado apos a vigencia de urn contrato de forma~ao, nao existe periodo experimental caso o contrato seja celebrado corn a entidade formadora. n. Q 3 - Considera-se, em qualquer caso, cessado o periodo experimental quando se verifique, pelo menos, uma das seguintes situa~oes: a) Quando o praticante participe, pela primeira vez, em competi~ao ao servi~o da entidade empregadora desportiva, nas modalidades em cuja regulamenta~ao tal participa~ao impe~a ou limite a participa~ao do praticante ao servi~o de outra entidade empregadora ou na mesma competi~ao; b) Quando o praticante desportivo sofra lesao desportiva que o impe~a de praticar a modalidade para que foi contratado e que se prolongue para alE~m do periodo experimental. 0 periodo experimental corresponde ao periodo inicial de execuc;:ao do contrato, tern uma importancia decisiva para a estabilizac;:ao do respectivo vinculo, proporcionando a entidade empregadora desportiva a avaliac;:ao das aptid6es do trabalhador I praticante desportivo, bem como aferir a este as condic;:6es e ambiente de trabalho em que vai exercer a sua actividade desportiva.

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:E por isso que qualquer das partes pode no perfodo maximo de 30 dias (considerando-se reduzido a este perfodo em caso de estipula~ao superior), rescindir o contrato de trabalho desportivo, sem incorrer em responsabilidade civil pelo incumprimento do mesmo, nos termos conjugados dos arts. 104.Q a 108.Q do Codigo do Trabalho e 27.Q n.Q 2 da presente Lei. a que correspondem corn as devidas altera~6es aos arts. 43.Q n.Q 1, 55.Q n.Q 2 da LCCT, revogados corn a entrada em vigor do novo Codigo do Trabalho. Face ao supra referido, o perfodo experimental tern para o trabalhador I I praticante desportivo uma importancia transcendente comparado corn o trabalhador "comum", uma vez que a este so lhe e permitido rescindir, sem responsabilidade civil neste momento, enquanto que para o trabalhador a termo comum "basta-lhe" emitir atempadamente o pre-aviso ao empregador comunicando-lhe a cessa~ao do contrato de trabalho independentemente de existir justa causa e corn a antecedencia minima de 30 dias, conforme o contrato tenha dura~ao igual ou superior a 6 meses, ou de 15 dias, se for de dura~ao inferior, de acordo corn o art.Q 447.Q do Codigo do Trabalho a que corresponde aos antigos arts. 38.Q e 52.Q n.Q 5 e 7 da LCCT, ora revogados. Prescreve o n.Q 2 deste artigo, referindo que no caso de o contrato de trabalho desportivo seja celebrado corn a entidade formadora, apos a vigencia de urn contrato de forma~ao, nao existe perfodo experimental, o que a nosso ver, e totalmente correcto face ao conhecimento mutuo e previo da entidade empregadora desportiva e do praticante desportivo, relativamente as aptid6es do atleta e as condi~6es de realiza~ao de trabalho desportivo esperadas, da mesma forma se for celebrado novo contrato de trabalho desportivo entre os mesmos sujeitos. Quanto as situa~6es previstas no n.Q 3, diga-se que faz todo 0 sentido a respectiva cessa~ao do perfodo experimental, sob pena de estarmos perante urn flagrante abuso de direito (art.Q 334.Q do Cod. Civil) por parte da entidade empregadora desportiva e, por consequencia, a urn total abandono dos direitos e garantias do praticante desportivo se se optasse por uma solu~ao contraria. (vide art.Q 53.Q CRP).

CAPITULO 11

Direitos, deveres e garantias das partes Art. 12 . . Q (Deveres da entidade empregadora desportiva) - Sao deveres da entidade empregadora, em especial: a) Proporcionar aos praticantes desportivos as condi~oes necessarias a participa~ao desportiva, bem como a participa~ao efectiva nos treinos e outras actividades preparat6rias ou instrumentais da competi~ao desportiva; b) Submeter os praticantes aos exames e tratamentos clinicos necessarios a pratica desportiva; 474

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c) Permitir que os praticantes, em conformidade corn o previsto nos regulamentos federativos, participem nos trabalhos de prepara~ao e integrem as selec~oes ou representa~oes nacionais.

Incumbe a qualquer entidade empregadora, desportiva ou nao, os deveres previstos no art.Q 120.Q do Codigo do Trabalho, antigo art.Q19.Q da LCT e que se podem classificar, segundo a formula do Prof. Dr. Motta Veiga (Li<;6es de Direito do Trabalho, 81! Edi<;ao, Universidade Lusfada 2000, pags. 347 e 348) ÂŤ ... em tres grupos: deveres de urbanidade (alfnea a)), deveres de assistencia (alfneas c) a f), completados pelos arts. 40.Q, 4l.Q e 42.Q da LCT) e deveres de coopera<;ao e ocupa<;ao efectiva. >>, uma vez que ÂŤ ... cumpre ao empresario proporcionar ao trabalhador as condi<;6es indispensaveis ao efectivo cumprimento da obriga<;ao assumida por este, trata-se do dever de coopera<;ao creditoria, nos precisos termos do art.Q 813.Q do Cod. Civil.>> e que esta directa e logicamente ligado corn aquilo que a doutrina germanica designa por dever de ocupa<;ao efectiva ÂŤ ... ou seja, a obriga<;ao de facultar efectivamente ao trabalhador a execu<;ao do seu trabalho, nao o mantendo inactivo.>>. Para alem da obriga<;ao principal que lhe compete, nos termos acordados do contrato que e 0 pagamento da retribui<;ao (alfnea b)) e que sera analisada adiante no artigo 14.Q do actual diploma. No entanto, devido a especialidade deste diploma deve atender-se em primeiro lugar, ao respeito dos deveres estatufdos no presente artigo, sem no entanto, olvidar os supra referidos porque tern urn caracter subsidiario, mas igualmente de atendibilidade imperativa (art.Q 3.Q do presente diploma). Cumpre agora analisar a alfnea a) deste artigo; assim, ao conferir ao praticante desportivo 0 direito as condi<;6es necessarias a participa<;ao desportiva (que na minha opiniao extravasam as meras condi<;oes de trabalho mas tambem devem estar contidas condi<;6es psicologicas que se traduzem num ambiente de trabalho favoravel a pratica desportiva), bem como a participa~ao efectiva nos treinos e outras actividades preparatorias ou instrumentais da competi<;ao desportiva, que nao significa que 0 praticante desportivo adquira o direito de participar nas competi<;6es, mas sim o dever da entidade empregadora desportiva em nao impedir de participar 0 trabalhador desportivo nos treinos e nas outras actividades preparatorias ou instrumentais da competi<;ao (por ex. visionamento de videos de equipas adversarias, ou impedir a sua presen<;a em reuni6es de equipa, ou ainda, coloca-lo a treinar a parte do restante grupo de trabalho para for<;ar uma cessa<;ao do contrato de trabalho desportivo) salvo lesao, san<;ao disciplinar ou suspensao preventiva, nos termos do art.Q 417.Qdo novo Codigo do Trabalho, (antigo art.Q ll.Qda LCCT), conjugados corn os arts. 366.Q a 368.Qdo diploma anteriormente referido a que corresponde aos revogados artigos 27.Q e 28.Q da LCT. Relativamente a aline a b), enaltece-se a obriga<;ao da entidade empregadora desportiva de submeter os praticantes desportivos aos exames e tratamentos clfnicos necessarios a pratica da actividade desportiva, mas na nossa opiniao, olvida-se uma questao importante, que consiste na obriga<;ao de reali-

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za<;:ao de urn seguro desportivo obrigat6rio destinados aos praticantes profissionais e aos formandos que participem em provas profissionais ou aos atletas nao profissionais que participem em competi<;:6es disputadas em regime de alta competi<;:ao, que cubram riscos de acidentes pessoais inerentes a actividade desportiva, bem como riscos de doen<;:a, morte, invalidez para a pratica do desporto ou por causa da mesma, incluindo os riscos decorrentes de transportes e viagens em qualquer parte do mundo. E que, nao obstante esta obriga<;:ao estar prevista no, art.Q 2.Q do Decreto-Lei n.Q 146/93, de 26/04, (corn a regulamenta<;:ao dos capitais minimos obrigat6rios previstos na Portaria n.Q 757/93, de 26/ 08), e a realiza<;:ao do seguro desportivo do praticante profissional competir, nas modalidades individuais, ao praticante e nas colectivas ao clube ou sociedade corn fins desportivos ou seus agrupamentos (vide art.Q 7.Q n.Q 2 do referido Decreto-Lei), deveria ser contemplada como obriga<;:ao contratual e especialmente sancionat6ria para a entidade empregadora desportiva que participa em competi<;:6es de natureza profissional, que e a principal beneficiaria da actividade do praticante profissional. Nao fazendo muito sentido, a nosso ver, a aplica<;:ao de san<;:ao igual as Federa<;:6es desportivas que aceitam a inscri<;:ao de agente desportivo nao abrangido pelo seguro obrigat6rio para participar em competi<;:6es nao profissionais, que organizem competi<;:6es desportivas 路sem terem celebrado o respectivo seguro, respondendo nos mesmos termos em que responderia a empresa seguradora se houvesse seguro, quando temos competi<;:6es de natureza totalmente distintas, corn praticantes de nivel e obriga<;:6es completamente diferentes (vide art.Q 10.Q nY 1 do Decreto-Lei n .Q 146/93, de 26/04). A questao acima despoletada torna-se ainda mais pertinente, devido a recente publica<;:ao da Lei n .Q 8/2003, de 12 de Maio em que estabelece urn regime espedfico de repara<;:ao dos danos emergentes de acidentes de trabalho dos praticantes desportivos profissionais, constituindo este diploma uma especificidade a Lei n.Q 100/97, de 13/09, (prevista para o regime geral de trabalho cuja aplica<;:ao torna-se agora de caracter subsidiario, de acordo corn o art.Q 6.Q dessa Lei, que como sabemos sera revogado corn a entrada em vigor de normas espedficas regulamentares, em virtude do estatuido no art.Q 2l.Q n.Q 2 alinea g) da Lei n.Q 99/2003, de 27 de Agosto que aprovou o novo C6digo do Trabalho), refor<;:ando a importancia da realiza<;:ao destes seguros desportivos e, da obrigatoriedade deste clever, merecendo, a nosso ver, ser plasmado, como clever da entidade empregadora desportiva no artigo em analise, impendendo sobre si uma maior responsabilidade na protec<;:ao do praticante desportivo profissional. A alinea c) deste artigo contempla a obriga<;:ao da entidade empregadora desportiva "autorizar" que os praticantes participem nos trabalhos das selec<;:6es ou representa<;:6es nacionais, sendo ilicito qualquer comportamento da entidade patronal desportiva que vise impedir essa participa<;:ao, podendo o praticante desportivo desobedecer a qualquer ordem nesse sentido, uma vez que se trata de uma ordem ilegal cedendo assim o seu clever de obediencia a

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Contributo para um Contra to de Trabalho Desportivo- Anotado (Lei n.Q 28/98 de 26/ 6), p. 459-526

entidade empregadora desportiva, permitindo-lhe realizar aquilo que a LBSD no seu art.Q 26.Q classifica, e bem, coma missao de interesse publico estando acima de quaisquer interesses individuais ou desportivos das entidades empregadoras. Por fim, tendo em conta as particularidades de uma actividade desportiva profissional e as particularidades do seu exercfcio, o artigo omite mais uma questao que julgo ser pertinente e que devia figurar nos deveres das entidades empregadoras desportivas por imposi<;ao legal, principahnente enquanto participantes de competi<;oes de natureza profissional que e a obriga<;ao contributiva dos clubes e sociedades desportivas que participam em modalidades colectivas e nao so, perante a Seguran<;a Social. Numa altura de grande dificuldade em que se encontra o Sistema da Seguran<;a Social em Portugal (devido a enorme evasao por um lado e a enonne sobrecarga de utentes por outro ), tendo em conta a dura<;ao curta das carreiras profissionais desportivas em que a contribui<;ao deve ser vista nao coma um fardo para os contribuintes, mas coma razao de ser do proprio sistema, devendo este criar condi<;6es para uma mudan<;a de mentalidade dos diversos agentes desportivos. Deveria este clever estar previsto neste artigo (aproveitando as benesses concedidas pela Lei e Governo, vide as taxas contributivas para a Seguran<;a Social, estabelecidas no art.Q 15.Q do Decreto-Lei n.Q 119 I 99 e ainda os Decreto-Lei n.Q 300189, de 04109 para os jogadores de futebol profissional e Portaria n.Q 456 I 97, de 11 I 07 para os jogadores profissionais de basquetebol), visando prevenir a evasao ao mesmo por parte de todos os agentes envolvidos e tentar assegurar um futuro mais abonado, ou mais justo, para os praticantes desportivos, que cedo tenninam uma carreira profissional, muitas vezes nao acautelada do panto de vista financeiro, e que enfrentam dificuldades em exercer uma outra profissao, que nao esteja ligada a modalidade que precedentemente praticavam (na trilha do nosso entendimento, veja-se o art.Q 69.Q da novissima proposta de Lei de Bases do Sistema Desportivo n.Q 80 /IX, que esperamos que em breve esteja em vigor e que nos diz: ÂŤ0 Estado assegura uma protec<;ao social adequada aos desportistas profissionais e aos desportistas de alta competi<;ao, sendo a sua integra<;ao no sistema de seguran<;a social definida por diploma proprioÂť. Tendo as entidades empregadoras desportivas uma importancia muito maiot~ do que as outras entidades empregadoras, devido a temporalidade das carreiras dos seus trabalhadores, nao obstante a total inadequa<;ao do actual do Sistema de Seguran<;a Social, quanta aos desportistas profissionais. Quanta ao controverso clever de ocupa<;ao efectiva, falarei no artigo seguinte, pelo que irei agora falar de uma questao conexa e cada vez mais frequente com esse clever que e o problema das "Equipas B" e a consequente viola<;ao do clever supra referido.

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0 problema das "Equipas B" e as razoes de sua existencia

E cada vez mais frequente, nos inicios de epoca, os Clubes alegarem as muito subjectivas raz6es de ordem tecnica para afastar o praticante desportivo do grupo normal de trabalho que segundo a entidade empregadora desportiva e muito numeroso e inseri-los nas "Equipas B", ou ainda, inseri-los no chamado grupo de dispensaveis e coloca-los a treinar a parte dos restantes colegas, em que e elaborado urn programa de trabalho distinto do outro grupo e que muitas vezes e realizado a urn horario tambem diferente. Ora quando urn praticante desportivo e contratado por urn Clube, nao e, em principio, contratado para jogar na "Equipa B" (vide Regulamento espedfico para a inscri~ao de "Equipas B" dos Clubes que disputam a Superliga, no Campeonato Nacional da II Divisao B- Comunicado Oficial n.Q 130, de 2/11/ I 2000, da FPF), porem sucede corn frequencia, que corn a mudan~a de treinador e a contrata~ao de novos jogadores, os atletas passam a deter o estatuto de dispensaveis, sendo por vezes afastados do grupo normal de trabalho, passam a ser considerados como responsaveis pelos insucessos da equipa, sendo renegados para estas equipas, que como veremos de seguida foram criadas corn outros intuitos. De acordo corn o Dr. Albino Mendes Baptista (in Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Raul Ventura - Grupo normal de trabalho, Equipas B e clever de ocupa~ao efectiva do praticante desportivo, FDUL 2003, p. 825 e vide por todos em Direito Laboral Desportivo - Estudos, Volume I - Quid Juris? sociedade editora, Lisboa 2003, pags. 9 a 24) ÂŤOS praticantes desportivos sujeitos quase inevitavelmente a cenarios assim configurados, tern de ser minimamente protegidos, o que nao e compatfvel, em caso algum, corn o afastamento do grupo normal de trabalho, que se traduz em verdadeiras viola~6es do clever de ocupa~ao efectiva.Âť Efectivamente, as "Equip as B", nao devem ser consideradas corn urn "reservat6rio de material excedente", a sua razao de ser, surge como uma forma de os jogadores jovens ganharem urn ritmo competitivo diferente dos escal6es de forma~ao e consequentemente amadurecerem, para mais tarde, poderem integrar o plantel da equipa principal. A incorpora~ao de urn praticante desportivo na equipa B, nao pode constituir urn mecanismo de gerencia de planteis numerosos, deixados ao livre arbitrio das op~6es do treinador que nao poucas vezes tern urn papel revolucionador na renova~ao completa de urn plantel, e que, por motivos por vezes poucos transparentes, colocam jogadores titulares durante toda uma epoca desportiva e corn internacionaliza~6es frequentes, repentinamente e qui ~a incompreensivelmente ao servi~o da "Equipa B", como forma de ostraciza~ao do atleta e de pressao sobre o mesmo visando uma resolu~ao do contrato antes tempo. Mais uma vez, de acordo corn o Dr. Albino Mendes Baptista, (Estudos em homenagem ao Prof. Dr. Raul Ventura, cit. p. 829 e em Direito Laboral Desportivo - Estudos, Volume I - Quid Juris? - sociedade editora, Lisboa 2003, 478

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pags. 20 e 21) as situa<;:oes em que os atletas passam temporariamente a integrar a "Equipa B" sao: ÂŤ1 ~ Processo de amadurecimento e obten<;:ao de ritmo competitivo; 2il Ma forma, fisica ou psicologica, do praticante desportivo, que tern de ser necessariamente temporaria (de outro modo teria de ser encontrada pelas partes uma solu<;:ao desoneratoria ), e que, em caso de litigio, teria de ser demonstrada pelo Clube, como pressuposto constitutivo do direito. 3~ Recupera<;:ao de lesoes ffsicas, para que o praticante desportivo adquira o normal ritmo competitivo. 4~ Comportamento desportivo incorrecto do atleta, como consequencia do exercfcio da ac<;:ao disciplinar.Âť Assim sendo, temos de atentar a forma de execu<;:ao do contrato de trabalho desportivo e verificar a existencia de urn eventual atropelo ao clever de ocupa<;:ao efectiva por parte da entidade empregadora desportiva, incorrendo por isso numa viola<;:ao dos seus deveres contratuais. Por isso, e totalmente de acordo corn o Prof. Dr. A. Menezes Cordeiro (Manual de Direito do Trabalho, Coimbra, p. 788) ÂŤna situa<;:ao jurfdica laboral o risco corre pela entidade empregadora>>, a nosso ver, desportiva ou nao, sendo desrazoavel pelas razoes ja indicadas que seja subvertida a razao de ser das "Equipas B", pelo facto dos dirigentes e treinadores nao conseguir gerir o mimero de recursos humanos que tern a sua disposi<;:ao, bem como os economicos, podendo a inser<;:ao dos praticantes desportivos nestas equipas afectar decisivamente o seu rendimento desportivo e a sua condi<;:ao psicologica necessaria para obten<;:ao de sucessos desportivos, comprometendo nao poucas vezes o seu futuro desportivo.

Art. 13. 2 (Deveres do praticante desportivo)- Sao deveres do praticante desportivo, em especial: a) Prestar a actividade desportiva para que foi contratado, participando nos treinos, estagios e outras sessoes preparat6rias das competi~oes corn a aplica~ao e a diligencia correspondentes as suas condi~oes psicofisicas e h~cnicas e, bem assim, de acordo corn as regras da respectiva modalidade desportiva e corn as instru~oes da entidade empregadora desportiva; b) Participar nos trabalhos de prepara~ao e integrar as selec~oes ou representa~oes nacionais; c) Preservar as condi~oes fisicas que lhe permitam participar na competi~ao desportiva objecto do contrato; d) Submeter-se aos exames e tratamento clfnicos necessarios a pratica desportiva; e) Conformar-se, no exerdcio da actividade desportiva, corn as regras pr6prias da disciplina e da etica desportivas.

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Da mesma forma que para a entidade empregadora desportiva, para ah~m dos deveres previstos no artigo supra referido, impendem os deveres previstos no ja citado art.Q 120.Q do novo Cod. do Trabalho, para o praticante desportivo aos deveres previstos neste artigo acrescem, por for<_;:a do art.Q 3.Q deste diploma os deveres previstos no art.Q 12l.Q do novo diploma, a que similarmente corresponde ao ja revogado art.Q 20.Q da LCT, e que, segundo o ja citado Prof. Dr. Motta Veiga «... se podem sistematizar em quatro grupos: deveres de zelo e diligencia (alfneas b) e) e f)), deveres de obediencia (alfnea c) e n.Q 2), deveres de lealdade ou fidelidade (alfnea d)) e deveres de urbanidade (alinea a)).» No entanto, os deveres aqui previstos neste artigo tern urn grau mais exigente para o praticante desportivo que para o trabalhador comum, desde logo porque na alinea a) impoe, para alem de prestar diligentemente a sua actividade desportiva, o clever de preservar as condi<_;:oes fisicas para as competi<_;:oes em que participa, violando o praticante desportivo este clever se tiver comportamentos extra-profissionais susceptiveis de afectar a sua condi<_;:ao psicofisica, condicionando automaticamente a liberdade de actua<_;:ao do atleta na sua vida privada. E cada vez mais frequente verificar que as entidades empregadoras desportivas confundem deveres do praticante desportivo corn liberdades da sua vida privada. Corn efeito, e de acordo corn o Prof. Dr. Joao Leal Amado (Contra to de Trabalho Desportivo - Anotado , Coimbra Editora 1995, pags. 48 e 49) «Algumas exigencias por vezes feitas pelos clubes aos praticantes - tais como nao sair de casa a partir de determinada hora, nao se deslocar para distancias superiores a n quilometros, nao frequentar certo tipo de estabelecimentos, deitar-se as x horas, recomenda<_;:oes/imposi<_;:oes no tocante a sua vida sexual, etc. - revelam-se, a este proposito, seguramente desproporcionadas, traduzindo uma inadmissivel militariza<_;:ao (para nao lhe chamar presidiariza<_;:ao) da rela<_;:ao laboral do praticante desportivo.» Nao se podendo considerar que o praticante desportivo esta ao servi<;:o da entidade empregadora 24 horas por dia, sujeito a uma vigilancia sufocante, em que esta em constante subordina<_;:ao juridica, desvanecendo-se as diferen<_;:as entre a sua vida profissional e a sua vida privada. Contudo, as condutas extra-laborais do praticante desportivo, poderao ser alvo de san<_;:ao disciplinar se se revelarem adequadas a comprometer as suas condi<_;:oes psicologicas e fisicas, devendo analisar-se a situa<_;:ao consoante o objecto do contrato de trabalho desportivo e respeitar-se imperativamente as regras da proporcionalidade da san<_;:ao a gravidade do comportamento do trabalhador/praticante desportivo, conforme determina as alineas a) e c) do presente artigo e o prindpio constitucional da estabilidade no emprego Porem, o prindpio deve ser o da irrelevancia disciplinar do comportamento extra-laboral do praticante desportivo, salvo flagrantes excessos e comportamentos censuniveis que se reflictam na presta~ao da actividade desportiva, ou seja, o direito a reserva da intimidade da vida privada do trabalhador (art.Q 80.Q do Cod. Civil e art.Q 16.Q do novo Codigo do Trabalho)

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deve cessa1~ apenas, perante particulares viola<;oes do clever (geral) de lealdade e do prindpio da mutua colabora<;ao e quando interesses superiores 0 exijam e quando verifica<;ao da justa causa tern na sua base factos e comportamentos que integram a intimidade da vida privada do trabalhadm~ 0 direito a reserva da mesma cessa apenas perante factos e circunstancias que sejam susceptiveis de p6r em causa o born nome ou a honorabilidade da entidade empregadora desportiva, quando a rela<;ao de confian<;a entre as partes seja defraudada e, em qualquer caso, per ante comportamentos do trabalhador I praticante que poderao tornar praticamente inviavel a subsish~ncia da rela<;ao laboral, pelos reflexos causados no ambiente de trabalho (sobre esta problematica Estudos do Instituto de Direito do Trabalho coordenados por Pedro Romano Martinez, Vol. II, Justa Causa de Despedimento, Editora Almedina 2001, pags. 88, 89 e 90). Ainda quanto a alinea a), o h路abalhador/praticante desportivo tern ainda o clever de agir em conformidade corn as regras da respectiva modalidade e, corn as instru<;oes da entidade empregadora desportiva que extravasam as meras regras tecnicas, e de treino da modalidade, abarcando tambem os chamados regulamentos internos (sobre esta materia veja-se o art.Q 153.Q do novo C6digo do Trabalho ), nao so para demonstrar as regras de conduta interna a que os atletas ficam adstritos, bem como urn conjunto de condutas que devem adoptar perante o "exterior" e as suas respectivas penaliza<;oes (por exemplo black out para os meios de comunica<;ao social), por determina<;ao da entidade empregadora desportiva, que muitas vezes, extrapolam os seus direitos e atropelam direitos basicos do praticante como por exemplo o seu direito de expressao. As alineas b) e d) mais nao sao do que uma consequencia das alineas b) e c) do artigo anterior, por isso nao se ira acrescentar mais do que ja foi dito. Cumpre agora analisar a alinea d) em que se exige do praticante desportivo 0 respeito pelas regras pr6prias da disciplina e da etica desportiva, podendo a viola<;ao destas re gras cumular dois tipos de san<;ao: 1~ san<;ao por falta de disciplina e a 2~ san<;ao disciplinar ]aboral, nao se verificando a viola<;ao do prindpio do non bis in idem, devendo no entanto imperar o prudente prindpio da proporcionalidade e da adequa<;ao ao caso concreto uma vez que a verifica<;ao de uma falta desportiva, ainda que grave, pode ser feita no cumprimento por vezes demasiado diligente do contrato de trabalho, nao justificando por isso a correspondente san<;ao !aboral, salvo se ofender clamorosamente as regras de fair-play, que devem estar presentes em todas as modalidades desportivas. Conforme referi no artigo anterior, o praticante desportivo tern ainda o clever/ direito de ocupa<;ao efectiva previsto na al. a), isto e, tern 0 clever de exercer a actividade desportiva para o qual foi contratado mediante instru<;oes da entidade empregadora desportiva (muitas vezes por intermedio da figura do treinador), nao podendo esta, sem qualquer motivo justificativo, deixa-lo inactivo ou ocupa-lo corn outras tarefas que nao constituam o objecto para o qual foi contratado. Alias no regime geral de trabalho, a jurisprudencia e unanime na afirma<;ao da existencia deste clever, resultante da conjuga<;ao dos arts. 59.Q n.Q 1 b), 58.Q

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n.Q1 e n.Q 2 da Constitui~ao e dos ja revogados arts. 18.Q, 19.Q n.Q 1 c), 22.Qn.Q 1. 42.Q n.Q 1 e 43.Qda LCT, a que ora correspondem corn as devidas altera~6es, aos arts. 119.Q, 120 alinea c), 15P n.Q1, 123.Qn.Q 1 e 15l.Q n.Q5 do novo C6digo do Trabalho (vide par exemplo Ac. STJ, 2210911993, CJ, acs. do STJ, 1993, III, 269; Ac. STJ, 2610611996, acs. do STJ, 1996, 11, 285 e ainda Ac. Tribunal Constitucional n.Q 951196, de 10107/1996 (DR, 11 Serie, de 18/1211996, 17 539). Mas se para alguns autores, a exish~ncia deste clever e alga controverso par falta de reconhecimento expresso e inequfvoco na lei, relativamente ao contrato de trabalho "normal", por exemplo para P. Furtado Martins (in Revista do Ministerio Publico, n.Q 47, 1991, pp. 35 e ss. e Despedimento ilfcito, reintegra~ao na empresa e clever de ocupa~ao efectiva, Lisboa, 1992, pp. 173 e ss.) <<A relevancia dos elementos pessoais na situa~ao jurfdica de trabalho subordinado rejeita a constru~ao deste clever corn base nas normas constitucionais e legais acima referidas, entendendo que a resposta adequada tera de ser procurada atraves da conjuga~ao dos prindpios gerais de direito privado, corn especial destaque para o prindpio da boa fe no cumprimento, corn os valores pr6prios do Direito do Trabalho, os quais estao subjacentes as normas citadas. E isto porque, o clever de ocupa~ao efectiva nao pode ter par fundamento normas, coma aquelas, de natureza claramente programatica.Âť, ou para o Prof. Dr. Pedro Romano Martinez, (Direito do Trabalho, 11 vol., l.Q tomo, 3~ ed., 1999, p . 321) para quem o direito de ocupa~ao efectiva <<existira tao s6, na medida em que 0 empregador actue de ma fe.>> No ambito do contrato de trabalho desportivo, a nosso ver, da sua exisb~ncia restam poucas dtividas, uma vez que tern consagra~ao legal expressa (art.Q12.Qalfnea a), sendo certo que, a inactividade de urn praticante desportivo tern consequencias muito mais gravosas para este do que para o trabalhador normal, podendo prejudicar irremediavelmente a sua curta carreira profissional e lesar os seus legftimos interesses, constituindo par isso motivo de justa causa de rescisao do contrato de trabalho desportivo por iniciativa do trabalhador nos termos do anterior art.Q 35.Qn.Q1 alinea e) da LCCT a que corresponde ao art.Q 44P n.Q 2 alfnea e) do novo C6digo do Trabalho, havendo ja alguma jurisprudencia neste sentido (por exemplo Ac. RL, de 27.4.1994: BMJ, 436.Q 426 e Ac. Do STJ de 25111/1988 do Meritfssimo Salviano de Sousa). Distinguindo-se, no entanto, o direito do praticante desportivo ao exerdcio da sua actividade profissional do direito de participa~ao na competi~ao desportiva, isto e, nao e lfcito por parte da entidade empregadora desportiva cingir-se apenas ao pagamento da retribui~ao devida, da mesma forma que o praticante nao pode exigir a participa~ao efectiva em todos os jogos da sua equipa. Situa~ao particularmente diffcil, preve a FIFA nos seus regulamentos (art.Q24.Qe explicitada no art.Q 12.Q do Regulamento de transferencia de jogadores aprovados em 05 I 07 I 2001 ), que confere ao jogador a possibilidade de rescindir corn justa causa desportiva do contrato se conseguir demonstrar que, ao longo da epoca desportiva, nao chegou a realizar 10% dos jogos oficiais pelo seu clube, o que e de discutfvel validade e p6e em causa o referido anteriormente.

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Para finalizar, de referir apenas a omissao de uma questao que considero pertinente, que o artigo nao contempla e que poderia estar aqui prevista, pelo menos quanta aos praticantes desportivos que disputam competi<;6es de natureza profissional que e a impossibilidade de presta<;ao simultanea da mesma actividade a mais do que uma entidade empregadora desportiva, ou de outras actividades desconformes corn a pnitica daquela, nao obstante o praticante estar adstrito ao cumprimento do clever de lealdade para corn a entidade empregadora desportiva e subentender-se que a verifica<;ao deste clever torna inviavel a pratica do comportamento supra referido. Contudo, nao se confunda o que foi dito, corn a impossibilidade total do praticante poder trabalhar para outra entidade empregadora (nao desportiva), desde que as suas fun<;6es, nao prejudiquem a presta<;ao da sua actividade desportiva; nao nos afigura raz6es, para que ao praticante seja vedado, o exercfcio de outra actividade laboral ou empresarial, desde que nao desfavore<;a a sua actividade principal, discordamos assim da redac<;ao do artigo 19.Q do CCT para os futebolistas profissionais que apenas permite ao jogador o exercfcio de outra actividade laboral, se estiver convencionado no contrato de trabalho desportivo, ou se houver autoriza<;ao pelo clube. Por isso, ousadamente, mas corn o devido respeito, nao poderemos deixar de discordar corn o meu caro e mui douto formador, o Prof. Dr. Ant6nio Jose Moreira, que em nota ao art.Q 13.Q alinea c) da Lei em analise (Preservar as condi<;6es fisicas que lhe permitam participar na competi<;ao desportiva objecto do contra to), afirma queÂŤ este parece ser urn caso onde o pluriemprego esta proibidoÂť (Compendia da Leis do Trabalho, 9~ Ed., Almedina, Coimbra, 2001, p. 596)

Art. 14. 2

(Retribui~ao)

n. 2 1 - Compreendem-se na retribui~ao todas as presta~oes patrimoniais que, nos termos das regras aplicaveis ao contrato de trabalho, a entidade empregadora realize a favor do praticante desportivo profissional pelo exerdcio da sua actividade ou corn fundamento nos resultados nela obtidas. n. 2 2 - E valida a clausula constante de contra to de trabalho desportivo que determine o aumento ou a diminui~ao da retribui~ao em caso de subida ou descida de escalao competitivo em que esteja integrada a entidade empregadora desportiva. n. Q 3 - Quando a retribui~ao compreenda uma parte correspondente aos resultados desportivos obtidos, esta considera-se vencida, salvo acordo em contrario, corn a remunera~ao do mes seguinte aquele em que esses resultados se verificarem. De acordo corn o art.Q 249.Q n.Ql do novo C6digo do Trabalho, a retribui<;ao consiste na contrapartida do trabalho prestado pelo praticante I trabalhador, ou conforme define Motta Veiga (Li<;6es de Direito do Trabalho, Universidade Lusiada 2000, pags. 428 e 429) ÂŤ... conjunto de valores, pecuniarios ou em especie,

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que a entidade patronal esta obrigada a pagar, regular e periodicamente, ao trabalhador, como contrapartida da presta<;ao laboral ou da simples disponibilidade do seu trabalho, ou ainda por virtude de normas legais e regulamentares aplicaveis.Âť. Na senda do artigo 59.Q da CRP, o direito ao salario resulta do acordo quantitativo que as partes determinam, ao celebrarem o contrato de trabalho, existindo no entanto, limita<;6es estabelecidas por instrumentos de regulamenta<;ao colectiva (por exemplo estao asseguradas as remunera<;6es mfnimas de 3 salarios minim os nacionais para os jogadores profissionais de futebol da 1~ Divisao vide o art.Q 32.Q do CCT dos jogadores profissionais de futebol, ou o art.Q 30.Q do CCT dos treinadores de futebol que assegura a remunera<;ao minima de 6 salarios nacionais se treinarem equipas da P Divisao, isto e, da Superliga). Prevendo o n.Q 2 deste artigo que, atraves de clausula escrita, constante do contrato, o quantitativo da retribui<;ao seja alterado em caso de mudan<;a de escalao competitivo, constituindo assim urn mecanismo de adapta<;ao do contrato as circunstancias posteriores a sua celebra<;ao, sem violar 0 prindpio da irredutibilidade da retribui<;ao (arts. 122.Q alinea c) do novo Codigo do Trabalho e 270.Q e 271.Q do mesmo diploma). 0 n.Q 3 concede o diferimento do pagamento da retribui<;ao correspondente a os resultados desportivos obtidos (premios de jogo, por exemplo) para urn momento ulterior que pode estar convencionado entre as partes, que a meu ver nao viola o disposto no artigo 269.Q n.Q 1 do Codigo do Trabalho, a que corresponde ao ja revogado art.Q 93.Q n.Q 1 da LCT, sendo a falta de pagamento pontual da retribui<;ao devida ao trabalhador constitui actualmente uma contra-ordena<;ao punida corn coima (Ac. RC, de 3/11/1987; Rec. N.Q 1530: BTE, 2~ Serie, n.os 1-2-3/90, pag. 153).

Art. 15.Q (Perfodo normal de trabalho) n.Q 1 - Considera-se compreendido no periodo normal de trabalho do praticante desportivo: a) 0 tempo em que o praticante esta sob as ordens e na dependenda da entidade empregadora desportiva, corn vista a partidpa~ao nas provas desportivas em que possa vir tomar parte; b) 0 tempo despendido em sessoes de apuramento h~cnico, tactico e fisico e em outras sessoes de treino, bem como em exames e tratamentos dinicos, corn vista a prepara~ao e recupera~ao do praticante para as provas desportivas, c) 0 tempo despendido em estagios de concentra~ao e em viagens que precedam ou se sucedam a participa~ao em provas desportivas. n.Q 2 - Nao relevam, para o efeito dos limites do periodo normal de trabalho previsto na lei geral, os periodos de tempo referidos na alinea c) do mimero anterior.

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n. Q 3 - A frequencia de dura-;ao dos est.igios de concentra-;ao devem limitar-se ao que, tendo em conta as exigencias proprias da modalidade e da competi-;ao em que o praticante intervem e a idade deste, deva ser considerado indispensavel. n.Q 4 - Podem ser estabelecidas por conven-;ao colectiva regras em materia de frequencia e de dura-;ao dos estagios de concentra~ao. Por perfodo normal de trabalho considera-se o tempo durante o qual o trabalhador I praticante esta a disposi<;:ao da entidade empregadora desportiva para executar o seu trabalho (nos termos do art.Q 158.Q do novo Codigo do Trabalho, em obediencia da chamada Lei das 40 horas Lei n.Q 21196, de 231 I 07), incumbindo a esta estabelecer o horario de trabalho dos praticantes ao seu servi<;:o dentro dos condicionalismos acima referidos. Para os praticantes desportivos, o perfodo normal de trabalho compreende: a) o tempo de competi<;:ao desportiva; b) o tempo de treinos e de recupera<;:ao ffsica para a pratica da competi<;:ao; c) o tempo despendido em estagios de concentra<;:ao e viagens que precedam ou sucedam a participa<;:ao na competi<;:ao. Ressalvando o n.Q 2 do artigo que, nao obstante o tempo despendido na alinea c) relevar para o perfodo normal de trabalho, este perfodo sera irrelevante para efeitos de dura<;:ao maxima de trabalho, ou seja, e tempo de trabalho mas nao conta para efeitos dos limites previstos no art.Q 163.Q do novo Codigo do Trabalho que revogou os arts 5.Q da LOT e P da Lei n.Q 21196, de 23 de Julho. Acresce que a dura<;:ao dos estagios previstos na alfnea c) estao sujeitos ao criterio da imprescindibilidade para as exigencias proprias da competi<;:ao, podendo a sua dura<;:ao serem estabelecidos limites ou regras atraves de instrumentos de regulamenta<;:ao colectiva, de acordo corn os n.os 3 e 4 do presente artigo. Veja-se por exemplo, o CCT para os jogadores profissionais de futebol relativamente a esta materia, preve o artigo 21.Q n.Q 2 ÂŤ ... o trabalho normal nao devera exceder 7 horas, nao relevando os perfodos de tempo referidos na alinea c) do numero anteriorÂť, que e igual ao do presente artigo e 0 n.Q 3 tambem do mesmo artigo do CCT que limita a dura<;:ao dos estagios consoante os jogos se disputem em campo proprio (36 horas ), ou (72 horas) se o jogo se realizar em campo alheio. Como observa o Prof. Dr. Joao Leal Amado (Contrato de Trabalho Desportivo - Anotado, Coimbra Editora 1995, pag. 56) ÂŤ .... A especificidade da actividade desportiva reclama, sem duvida, uma razoavel dose de flexibilidade na regulamenta<;:ao destas questoes.>>, estando esta materia pouco adequada as particularidades do contrato de trabalho desportivo.

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Art. 16. 2 (Ferias, feriados e descanso semanal) n. 2 1 - 0 praticante desportivo tern direito a urn dia de descanso semanal, bem como ao gozo do periodo de ferias previsto na lei, sem prejuizo de disposi~oes mais favoraveis constantes de conven~ao colectiva de trabalho. n . 2 2 - Quando tal seja imposto pela realiza~ao de provas desportivas, incluindo as nao oficiais, o gozo do dia de descanso semanal transfere-se para a data a acordar entre as partes ou, nao haven do acordo, para o 1. 2 dia disponivel. n. Q 3 - 0 disposto no numero anterior e aplicavel ao gozo de feria dos obrigat6rios ou facultativos. Como determina o art.Q 205.Q do novo C6digo do Trabalho, antigos art.Q 51.2 da LCT e art.Q37.Qdo Decreto-Lei n .Q409/71, de 27 de Setembro, os trabalhadores tern direito a urn dia de descanso semanal, sendo em regra o domingo. No entanto como observa o Dr. Albino Baptista (Revista do Ministerio Publico, n.Q 80, 1999, pags. 133 e 134) << ••• as competi<;6es desportivas ocorrem a maior parte das vezes ao domingo, de forma a coincidirem corn o dia de descanso semanal dos restantes trabalhadores. Isso implica que o dia de descanso nao possa, na generalidade dos casos, ser o domingo, sendo, em princfpio, o dia imediatamente subsequente aos jogos.», sem prejufzo do descanso semanal complementar- meio dia (semana inglesa) ou dia completo (semana americana), conforme disp6e o art.Q 206 do C6digo do Trabalho, anterior artY 38.Q da LDT e o CCT dos jogadores profissionais de futebol no art.Q24.Q, bem como o art.Q 23.Qdo CCT dos treinadores de futebol, verificando-se assim bastante flexibilidade quanta ao desfrute do prindpio do descanso semanal, que pode ser convencionado entre as partes. Quanta aos feriados, obrigat6rios e/ ou facultativos (arts. 208.Qe 209.Q do novo C6digo do Trabalho a que correspondem corn as devidas altera<;6es aos arts. 18.Q e 19.Qda LFFF), o praticante desportivo tern direito a estes, podendo o gozo dos mesmos ser transferidos para outro dia, nos termos do n.Q2 deste artigo. No tocante as ferias, remete-se para o regime geral de trabalho, ou seja, para os arts. 21l .Q a 223.Q do C6digo do Trabalho, sem prejufzo da existencia de conven<;6es colectivas que consagrem normas mais favoraveis para o trabalhador (vide art.Q 25.Q do CCT para os jogadores profissionais de futebol), de acordo corn o Prindpio do "favor laboratoris", ou seja, do tratamento mais favoravel ao trabalhador arts. 4.Q e 53l.Q do novo C6digo do Trabalho.

Art. 17. Q (Poder disciplinar) n . 2 1 - Sem prejuizo do disposto em conven~ao colectiva de trabalho, a entidade empregadora desportiva pode aplicar ao trabalhador, pela comissao de infrac~oes disdplinares, as seguintes san~oes: a) Repreensao

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b) c) d) e)

Repreensao registada Multa Suspensao do trabalho corn perda de Despedimento corn justa causa

retribui~ao

n. Q 2 - As multas aplicadas a urn praticante desportivo por infrac~oes praticadas no mesmo dia nao podem exceder metade da retribui~ao diaria e, em cada epoca, a retribui~ao correspondente a 30 dias. n. 2 3 - A suspensao do trabalho nao pode exceder, por cada infrac~ao, 24 dias e, em cada epoca, 0 total de 60 dias. n. 2 4 - A aplica~ao de san~oes disciplinares deve ser precedida de procedimento disciplinar no qual sejam garantidas ao arguido as adequadas garantias de defesa. n. Q 5 - A san~ao disciplinar deve ser proporcional a gravidade da infrac~ao e a culpabilidade do infractor, nao podendo aplicar-se mais de uma pena pela mesma infrac~ao.

0 poder disciplinar constitui urn corolario do poder de direc<;ao da entidade empregadora desportiva e destina-se a sancionar comportamentos desrespeitadores das suas ordens e instru<;6es, ou do seu regulamento interno, devendo o direito disciplinar acolher a maxima penal "nulla poena sine lege", e a san<;ao disciplinar aplicada proporcional a gravidade da infrac<;ao e a culpabilidade do infractor (n.Q 5 do presente artigo). 0 elenco sancionat6rio disciplinar descrito no n .Ql deste artigo coincidia corn o ja revogado n .Ql do art.Q 27.Q da LCT, hoje em dia, como se sabe, este artigo corresponde ao art.Q 366.Q do novo C6digo do Trabalho, tendo sido introduzido uma nova alfnea d) que consagra a perda de dias de ferias, como san<;ao disciplinar eventualmente aplicavel, tendo ainda acrescentado a san<;ao estabelecida na alfnea d) deste artigo «Suspensao do trabalho corn perda de retribui<;ao», a perda de antiguidade, correspondendo agora a alfnea e) do artigo supra referido do novo C6digo do Trabalho. No entanto, para aplica<;ao de uma san<;ao disciplinar ao trabalhador I I praticante desportivo, e necessaria a instaura<;ao de procedimento disciplinar, nos termos do 371Y e 41P e seguintes do C6digo do Trabalho e, de acordo corn o n.Q4 deste artigo, este procedimento reveste-se segundo Motta Veiga (Li<;6es de Direito do Trabalho, Universidade Lusiada 2000, pag. 345) «... corn dupla garantia para o trabalhador: a sua audiencia previa e o direito de reclamar da aplica<;ao da pena. », respeitando-se assim o prindpio do contradit6rio, garantindo ao trabalhador adequadas garantias de defesa, contra a aplica<;ao de eventuais san<;6es abusivas. 0 procedimento disciplinar, se a inten<;ao da entidade empregadora desportiva for o despedimento do praticante desportivo devera seguir a tramita<;ao prevista nos arts 41P, 418.Qe seguintes do C6digo do Trabalho (antigos artigos lO.Q e 15.Q da LCCT) consoante a dimensao da entidade empregadora desportiva, ou o trabalhador arguido for membro de uma associa<;ao sindical

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(por exemplo do Sindicato dos jogadores profissionais de futebol), devendo a entidade empregadora obrigatoriamente entregar uma nota de culpa corn a descris;ao dos factos violadores dos seus deveres profissionais que lhe sao imputaveis, e a sua intens;ao de despedimento, sem a qual o despedimento sera ilicito nos 60 dias subsequentes aquele em que a entidade empregadora desportiva teve conhecimento da infracs;ao (art. 2 372 n. 2 1) e arts. 429.Q aHnea a) e 430. 2 n.Q 2 alinea a) do Codigo do Trabalho aplicaveis atraves do art.Q 3.Q do presente diploma). Devendo a medida da punis;ao obedecer a alguns limites previstos nos n.os 2 e 3 que, nao obstante, nao corresponderem ao regime geral de trabalho e aos limites fixados no art.Q 368.Q do Codigo do Trabalho, sem prejuizo do estabelecido no art.Q 369.Q do mesmo diploma (que como se sabe, quanta as multas, nao podem ex ceder 1 I 3 da retribuis;ao diaria e em cada ano civil, a retribuis;ao correspondente a 30 dias e quanta a suspensao nao se pode ultrapassar 30 dias por cada infracs;ao e, em cada ano, o total de 90 dias ), pod endo estes limites serem elevados para o dobro, mediante instrumento de regulamentas;ao colectiva de trabalho ou, quando isso fosse justificado pelas especiais condis;oes de trabalho (vide ja citado art.Q 369.Q), devendo a sans;ao ser executada nos 3 meses subsequentes a decisao, nao violam qualquer diploma legal devido a especialidade deste regime e das normas desta Lei n.Q 28 I 98, em relas;ao ao regime geral anteriormente referido. De alegar ainda que, a infracs;ao disciplinar prescreve ao fim de 1 ano a contar do momento em que teve lugar, ou apos a cessas;ao do contrato de trabalho (art.Q 372.Q n.Q2), salvo se os factos que consubstanciam a infracs;ao constituirem igualmente crime, caso em que, sao aplicaveis os prazos prescricionais da lei penal, estabelecidos no art.Q 118.Q do Codigo Penal

Art. 18. 2 (Liberdade de trabalho) n. 2 1 - Sao nulas as dausulas inseridas em contrato de trabalho desportivo visando condidonar ou limitar a liberdade de trabalho do praticante desportivo apos o termo do vinculo contratual. n. 2 2 - Pode ser estabelecida por conven~ao colediva a obriga~ao de pagamento de uma justa indemniza~ao, a titulo de promo~ao ou valoriza~ao do praticante desportivo ha anterior entidade empregadora por parte da entidade empregadora desportiva que corn esse praticante desportivo celebre, apos a cessa~ao do anterior, urn contrato de trabalho desportivo. n. 2 3 - A conven~ao colectiva referida no mimero anterior e aplicavel apenas em rela~ao as transferendas de praticantes que ocorram entre dubes portugueses corn sede em territorio nadonal. n. 2 4 - 0 valor da compensa~ao referida no n. 2 2 nao pod era, em caso algum, afectar de forma desproporcionada, na pratica, a liberdade de contratar do praticante. n. 2 5 - A validade e a eficacia do novo contrato nao estao dependentes do pagamento de compensa~ao devida nos term os do n. 2 2.

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n. Q 6 - A compensa~ao a que se refere o n. Q 2 pode ser satisfeita pelo praticante desportivo. Este artigo consagra o princ1p10 de que o praticante desportivo tem a liberdade de mudar de clube ou entidade empregadora desportiva, ap6s a cessa<;ao do contrato de trabalho desportivo, prindpio este de caracter fundamental (art.Q 47.Q da CRP e art.Q 146.Q n.Q 1 do C6digo do Trabalho), sendo nula qualquer clausula nos termos da qual o praticante restrinja ou limite a sua liberdade de trabalho. Iremos agora analisar algumas quest5es que se levantam directamente cam a liberdade de trabalho do praticante desportivo:

a) Pactos de preferencia Nas palavras de Antunes Varela, (Das Obriga<;5es em Geral, Vol. I, Editora Almedina - Coimbra 1994 pag. 373), «pactos de preferencia sao os contratos pelos quais alguem assume a obriga<;ao de, em igualdade de condi<;5es, escolher determinada pessoa (a outra parte ou terceiro) coma seu contraente, no caso de se decidir a celebrar determinado neg6cio.» Coma exemplifica o Prof. Dr. Joao Leal Amado (Contrato de Trabalho Desportivo - Anotado, Coimbra Editora, 1995 pag. 85) «... E o que sucede se determinado praticante desportivo, transferindo-se do clube x para o clube y, acordar em inserir no contrato celebrado com este ultimo uma clausula nos termos da qual, cessada a rela<;ao contratual com y, ficara obrigado a conceder preferencia a x para seu futuro parceiro contratual. Deste modo, o praticante vincula-se a, em igualdade de condi<;5es, escolher x de preferencia a qualquer outro clube.>> Desta forma e na opiniao do supra referido aut01~ e tambem na nossa, cam a celebra<;ao do pacto de preferencia o praticante desportivo ve a sua liberdade de trabalho condicionada, pelo que, inelutavelmente acarreta a nulidade do acordo. A limita<;ao da liberdade de escolher qual a entidade empregadora desportiva que pretende representar implicara a nulidade deste pacto, em virtude do n.Q1 do presente artigo em analise, e por que se trata de preceitos imperativos inderrogaveis par vontade das partes. b) Pactos de op~ao De acordo cam Vaz Serra, (RLJ, ano llU, pag. 92-3) «Pacto de op<;ao consiste na conven<;ao pela qual uma das partes fica vinculada a sua declara<;ao ea outra corn a faculdade de a aceitar ou nao (... ) vinculando-se completamente uma delas e deixando-se a outra a liberdade de aderir posteriormente; esta fica, assim, titular de um direito potestativo de concluir o contrato>>. E o caso frequentemente, utilizado pelos clubes de celebrarem contratos de trabalho desportivo com x anos cam os praticantes, com op<;ao a favor do clube por mais uma epoca, ou mais. Esta clausula sera ou nao violadora do

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n.Q 1 do presente artigo? Podera ou nao 0 trabalhador I praticante, ab initio, isto e, no momento de celebra<;ao do contrato, condicionar a sua propria liberdade de trabalho? Mais uma vez de acordo corn o Prof. Dr. Joao Leal Amado (Vincula<;ao versus Liberdade - 0 processo de constitui<;ao e extin<;ao da rela<;ao laboral do praticante desportivo, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, pags. 128 e segs.) a resposta a primeira questao e positiva, ou seja, a clausula que atribui 0 direito de op<;ao ao clubel empregador de poder prorrogar o contrato de trabalho desportivo (por mais uma epoca, por exemplo ), ainda que corn urn prazo razoavel antes do terminus do contrato de poder ou nao exercer a op<;ao, apenas beneficia a entidade empregadora desportiva que desta forma manieta totalmente o praticante desportivo a sua conveniencia e que nao recupera a sua liberdade de poder contratar corn outro empregador. Na verdade, para o autor, o tinico efeito titil desta clausula e realmente contornar os limites rfgidos do n.Q 1 deste artigo e tentar desvirtua-lo, assegurando a entidade empregadora desportiva segundo os seus mui subjectivos criterios de conveniencia, a possibilidade de renova<;ao for<;ada do vinculo, limitando-se o praticante I desportivo a ficar num estado de sujei<;ao total a vontade do empregador desportivo, condicionando e limitando gravemente o principal efeito da cessa<;ao de urn contrato de trabalho desportivo, que e o recuperar da sua Liberdade de Trabalho e Contratual. Quanto a segunda questao, e na sequencia da resposta a primeira questao, a conclusao tera de ser negativa. Corn efeito, apos a analise dos efeitos desta clausula o Prof. Dr. Joao Leal Amado conclui que a verifica<;ao da mesma traduz para o praticante urn regime mais gravoso e, consequentemente, menos favoravel do que o legalmente previsto em materia de renova<;ao ou cessa<;ao do contrato de trabalho desportivo, pelo que estes preceitos imperativos, previstos no n.Q 1 do artigo em analise, nao podem ser afastados por clausula de contrato de trabalho desportivo, ex vi o art.Q 114 n.Q 2 do Codigo do Trabalho, a que corresponde corn as devidas altera<;oes ao revogado art.Q 14.Q n.Q 2 da LCT., operando-se a substitui<;ao dos preceitos que importem para o trabalhador I praticante urn regime menos favoravel que o estabelecido imperativamente. Sem querer por em causa, tao douta opiniao, deste brilhante autor, nao podemos deixar de referir que (e de acordo corn o Dr. Albino Mendes Baptista), frequentemente o exercfcio de direito de op<;ao tambem pode trazer consideraveis vantagens patrimoniais para o praticante desportivo. Corn efeito, se bem repararmos, e usual, instituir-se montantes patrimoniais significativos para o atleta se a entidade empregadora desportiva, exercer esse direito, nao podendo 0 praticante desportivo a posteriori, lamentar-se de limita<;ao a sua liberdade de trabalho (violando 0 art.Q 18.Q), quando essa limita<;ao foi consentida por si a priori e quando a mesma acarreta urn conjunto de vantagens patrimoniais superiores a recupera<;ao da sua liberdade de trabalho. Por isso a nosso ver, nao nos choca a validade destes pactos se a sua verifica<;ao beneficiar o atleta, devendo assim a sua admissibilidade ter urn

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caracter residual, pelas raz6es apontadas, sem preJmzo, do princ1p10 da liberdade de trabalho que tern entre nos caracter fundamental e imperativo (art.Q 47.Q da CRP e art.Q 146.Q n.Q 1 do C6digo do Trabalho). Cumpre agora analisar os n. 0 5 2 a 4 do artigo e comentar a obriga~ao de pagamento de uma justa indemniza~ao, a titulo de promo~ao ou valoriza~ao do praticante desportivo a anterior entidade empregadora por parte da nova entidade empregadora desportiva do trabalhador I praticante, sem afectar de forma desproporcionada a liberdade de contratar do praticante, nao obstante a compensa~ao por promo~ao ou valoriza~ao poder ser satisfeita pelo praticante desportivo nos termos do n.Q 6. A compensa~ao acima referida em certos moldes podera constituir uma lirnita~ao a liberdade de contratar do praticante desportivo, sendo certo que se revela de forma indirecta na sua liberdade contratual, uma vez que o valor desta compensa~ao podera levar a retrac~ao de entidades empregadoras desportivas interessadas nos seus servi~os desportivos, devendo ser adequada e proporcional, quer as despesas de forma~ao corn 0 praticante desportivo, quer aos limites estabelecidos por conven~ao colectiva (ex. art.Q35.Q a 42.Q do Anexo Ill do CCT para os jogadores de futebol profissional). Na verdade, este CCT concede a entidade empregadora inteira liberdade para fixar como bem lhe aprouver o montante da forma~ao I promo~ao a pagar por quem quiser contratar o praticante desportivo, permitindo-a estabelecer valores astron6micos, cerceando a liberdade de trabalho do praticante desportivo e a sua liberdade de escolher a entidade ao servi~o da qual deseja passar a respectiva actividade profissional, violando assim nao s6 disposto no art.Q 18.Q n.Q4 mas tambem o art.Q 47.Q da CRP. Sendo completamente distinto uma compensa~ao pelos gastos de forma~ao, de urn sistema de indemniza~6es de transferencia; enquanto que o primeiro trata-se de compensar o clube pelos seus gastos corn a forma~ao do atleta (mais adiante irei debater esta questao no ambito do contrato de forma~ao ), o segundo acompanha quase sempre toda a vida profissional do atleta. Note-se que as disposi~6es fixadas em conven~ao colectiva apenas se aplicam as chamadas transferencias internas, ou seja, entre clubes portugueses corn sede em territ6rio nacional, conforme disp6e o n.Q 3 do artigo, corn os limites do n.Q4 (sobre este assunto Processo Bosman, Ac6rdao do Tribunal de Justi~a das Comunidades Europeias, de 15 de Dezembro de 1995, Proc. C-4151 I 93, col. 4921 ). Alias, como demonstrou Carl Otto Lenz (advogado), quanto ao Processo Bosman, ÂŤ .... as clausulas de transferencia tern importancia directa e fundamental para urn jogador que quer mudar de clubeÂť, devendo por isso analisar-se casuisticamente as diversas quest6es que se levantam, devendo esta compensa~ao ser fixada segundo prudentes criterios de equidade e born senso e nao arbitrariamente pelo clube formador. Na verdade, o afamado Ac6rdao Bosman veio alterar urn conjunto de normas que ate af nao se julgavam discriminat6rias em rela~ao ao acesso ao

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emprego de desportistas nacionais de urn outro Estado membro da Uniao Europeia que se transfiram para urn clube de outro pais da UE, e claramente violadoras dos (entao arts. 48.Q e 85.Q do TCE) actuais 39.Q e 49.Q do mesmo diploma (e foi responsavel pela revoga<;ao do Decreto-Lei n.Q 305/95, de 18 de Novembro, pela presente Lei n.Q 28/98 de 26/06), bem como abolir as indemniza<;oes de transferencia interestaduais e manter as mesmas a nivel intraestadual condicionando a liberdade de trabalho dos praticantes desportivos portugueses no seu proprio pais. Para o Prof. Dr. Joao Leal Amado (in Vincula<;ao versus Liberdade, Coimbra Editora 2002, pags. 425 e 426) « .... este sistema e absurdo (porque vem colocar maiores dificuldades a circula<;ao de urn praticante desportivo portugues no interior do seu proprio pais do que se pretender emigrar), pernicioso (porque convidam os praticantes que actuam em Portugal a emigrm~ encontrando-se o clube de "Badajoz", dispensado de pagar uma indemniza<;ao ao clube portugues a quo) e potenciador de fraudes (porque leva a que muitas transferencias sejam efectuadas a dois tempos, como por exemplo aconteceu ao caso Paulo Madeira (C. F. Belenenses) e a sua curta (?) passagem por Espanha, antes de ingressar no S. L. Benfica). Podendo ate existir situa<;oes em que a transferencia intra-estadual pode nao ser uma situa<;ao puramente interna, como nos diz Alexandre Miguel Mestre (Desporto e Uniao Europeia, Coimbra Editora 2002, pags. 64 e 65), citando Joao Leal Amado: "Imagine-se, por exemplo, que, apos a extin<;ao do seu anterior contrato de trabalho, urn atleta profissional espanhol, frances ou alemao se transfere de urn clube portugues para outro clube portugues: nao havera aqui urn elemento de transnacionalidade suficiente para que a situa<;ao nao deva ser tida como <<puramente interna?», conclui o autor e corn o qual concordamos que « .... Se tudo se processar entre o desportista filiado na federa<;ao corn quem mantt~m a rela<;ao juridica corn vista a uma transferencia entre dois clubes do pais nessa federa<;ao filiados, nao ha qualquer caracter de externalidade, qualquer que seja a nacionalidade do atleta.», respeitando-se assim os arts. 39.Q , 43.Q e 59.Q do TCE, pondo em causa, por outro lado, os n. 05 2 e 3 deste art.Q 18.Q por parte dos clubes que exigem esta indemniza<;ao. Considerando o Parlamento Europeu (Resolu<;ao de 11/04/89, n.Ql) que as « . .indemniza<;oes de transferencia sao urn a forma moderna de esdavagismo>>, reconhecendo-se, no entanto, « .... a possibilidade de uma compensa<;ao dos custos de investimento na forma<;ao e prepara<;ao flsica dos jogadores que apenas podera ser requerida durante o periodo de forma<;ao>>. Mas, na nossa opiniao, existe uma questao pertinente que foi esquecida corn a altera<;ao do art.Q 22.Q n.Q 2 do DL n.Q 305/95, pelo art.Q 18.Q n.Q 2 da Lei n.Q 28/98, porque apenas atribui as conven<;oes colectivas o estabelecimento de regras quanto as indemniza<;oes de transferencia, nao prevendo que em algumas modalidades nao existe qualquer tipo de instrumento de regulamenta<;ao colectiva (corn as limita<;oes do art.Q 533.Q do Codigo do Trabalho, uma vez que nao podem limitar o exerdcio dos direitos fundamentais constitucionalmente garantidos) que estabele<;a parametros nest a materia ne m pre-

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v1soes, de que venha a existir, devendo ter sido mantido a competencia das Federa<;:6es Desportivas dotadas de utilidade publica desportiva, para regulamentar estas materias (no ambito do art.Q 2l.Q do RJFD), como previa o Decreta Lei de 1995, em vez de nao existir qualquer diploma espedfico regulador, garantindo assim as Federa<;:6es urn papel regulador e normativo numa area em que pelo exerdcio da sua actividade de natureza publica, desempenha fun<;:6es essenciais na defini<;:ao da polltica desportiva nacional quanta a modalidade que representa. De qualquer forma, e de acordo corn o n.Q 6 do presente artigo, e possfvel que o proprio praticante desportivo pague a sua liberdade desportiva e contramal, nao sendo fundamento de nulidade ou anulabilidade do contrato de trabalho desportivo entretanto celebrado corn outra entidade empregadora desportiva sem o pagamento da compensa<;:ao devida, conforme nos refere o n.Q 5.

CAPITULO HI (Cedencia e transferencia de praticantes desportivos) Art. 19.Q (Cedenda do praticante desportivo) n.Q 1 - Na vigenda do contrato de trabalho desportivo e permitida, havendo acordo das partes, a cedenda do praticante desportivo a outra entidade empregadora desportiva. n. Q 2 - 0 acordo a que se refere o mimero anterior deve ser reduzido a escrito, nao podendo o seu objecto ser diverso da adividade desportiva que o praticante se obrigou a prestar nos termos do contrato de trabalho desportivo.

Art. 20. Q (contrato de cedencia) n.Q 1 - Ao contrato de cedencia do praticante desportivo celebrado entre as entidades empregadoras desportivas aplica-se o disposto nos art. 5 e 6, corn as devidas adapta~oes. n. Q 2 - Do contrato de cedenda deve cons tar a dedara~ao de concordanda do trabalhador. n.Q 3 - No contrato de cedenda podem ser estabelecidas condi~oes remuneratorias diversas das acordadas no contrato de trabalho desportivo, desde que nao envolvam diminui~ao da retribui~ao nele prevista. n. Q 4 - A entidade empregadora a quem o praticante pass a a prestar a sua adividade desportiva, nos termos do contrato de cedencia, fica investida na posi~ao juridica da entidade empregadora anterior nos tennos do contrato e da conven~ao colectiva aplicada.

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Art. 21. Q ( Transferencia de praticantes desportivos) - A transferencia do praticante desportivo e regulada pelo regulamentos da respectiva federa~ao dotada de utilidade publica desportiva, sem prejuizo do disposto no art. 18. Q. Por cedencia ocasional de trabalhadores, e segundo (Maria Raquel Rei, Fernando Xarepe Silveiro e Susana Castela Gra<;a em Estudos de Direito Desportivo, Editora Almedina 2002, pag. 75) entende-se coma ÂŤ"o contrato atraves do qual uma empresa cede provisoriamente a outra, usualmente integrada no mesmo sector de actividade econ6mica, urn ou mais trabalhadores, conservando, no entanto, o vinculo juridico-laboral que corn eles mantem, e por conseguinte a qualidade de empregador." Âť 0 regime juridico da presente Lei contrapoe-se ao prindpio geral da proibi<;ao da cedencia de trabalhadores consagrado nos arts. 322.Q e 323.Q do C6digo do Trabalho, que correspondem corn as devidas altera<;oes ao revogado o art.Q 26.Q do Decreto-Lei n.Q 358/89, de 17/10 (Regime Juridico do Contrato de Trabalho Temporario em que o Capihllo Ill e dedicado a cedencia ocasional de trabalhadores ), tendo em aten<;ao a natureza espedfica do trabalho desportivo e os interesses envolvidos. Assim, este neg6cio juridico sera trilateral, em que o essencial, coma determina os n.os 1 e 2 do art.Q 19.Q e o n.Q 2 do art.Q 20.Q, e o consenso de todas as partes envolvidas: cedente (entidade empregadora desportiva que cede o praticante), cedido (praticante desportivo) e o cessionario (entidade empregadora desportiva que vai usufruir dos servi<;os do praticante desportivo temporariamente). Este contrato vem assim ao encontro dos interesses de todas as partes envolvidas, senao vejamos: ao cedente permite "emagrecer" as despesas corn os desportistas a seu cargo, ao cedido porque podera na nova entidade empregadora competir corn mais regularidade e consequentemente valorizar-se, evitando assim uma situa<;ao de inactividade e para o cessionario porque vai poder utilizar os servi<;os do praticante cedido que, de outra forma, e principalmente por razoes financeiras nao poderia usufruir, uma vez que a maior parte das vezes o cessionario e urn clube de menores dimensoes. No entanto, e a semelhan<;a do regime geral exige-se a forma escrita e que o objecto do contrato de cedencia seja identico ao estabelecido quanta ao contrato celebrado entre cedente e cedido (arts. 19.Q n.05 1 e 2), exigindo-se igualmente o insuperavel acordo do praticante desportivo, expressamente consagrado no n.Q 2 do art.Q 20.Q, exigindo ainda o n.Q 1 do mesmo artigo, as exigencias de forma (art.Q 5.Q, sob pena de nulidade , nos termos do art.Q 220.Q do C6d. Civil) e as necessidades de registo nas entidades competentes Federa<;oes e Ligas Profissionais e de duplicados (conforme determina o art.Q 6.Q da presente Lei), evitando-se assim a dupla inscri<;ao dos desportistas. Note-se que a necessidade de acordo do trabalhador constitui uma garantia para o praticante, pais que, perante urn contrato de cedencia, tera sempre a ultima palavra de o aceitar ou de o recusar, independentemente do cedente e

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do cessionano ja terem tudo acordado entre si, nao podendo o praticante desportivo antecipadamente, isto e, no momento de celebra<;ao do contrato de trabalho desportivo, renunciar a este direito fundamental. Como particularmente grave, na nossa opiniao, esta o disposto no art.Q 20.Q n.Q3 da presente Lei, prevendo a possibilidade de se poder estabelecer condi<;6es remunerat6rias diversas das acordadas no contrato de trabalho desportivo, nao envolvendo uma diminui<;ao da retribui<;ao nele prevista, descuidando que a grande maioria dos praticantes desportivos a remunera<;ao nao se restringe ao "mero" salario mensal, sendo a parte variavel da sua retribui<;ao uma componente decisiva nas suas regalias. No entender dos autores Maria Raquel Rei, Fernando Xarepe Silveiro e Susana Castela Gra<;a e na minha opiniao tambem (em Estudos de Direito Desportivo, Almedina 2002, pag. 87) «A lei, em nosso entender, o que pretendeu salvaguardar foi que, pela figura da cedencia temporaria, o que se visasse fosse unicamente uma diminui<;ao da retribui<;ao da parte fixa do desportista.», excepto a nosso ver, se constar de clausula escrita no contrato de cedencia. Face ao exposto, verificamos que a rela<;ao laboral entre o praticante desportivo e a sua entidade empregadora desportiva esbate-se, mas nao se extingue, em virtude da celebra<;ao do contrato de cedencia, podendo o cedente e o cessionario, no uso da sua autonomia contratual (art.Q 405.Q do C6d. Civil) configurar o conteudo deste contrato que podera variar entre «.... urn mfnimo (o desportista passara a prestar a sua actividade ao cessionario, cumprindo perante este os deveres de assiduidade, diligencia e obediencia, o qual detem os poderes de autoridade e direc<;ao) e urn maximo (corn a integral substitui<;ao do cedente pelo cessionario, limitada pela precariedade da cedencia e, pelo facto de esta nao romper o vinculo laboral entre o cedente e o desportista cedido ), vide (Estudos de Direito Desportivo, Editora Almedina 2002, pags. 87 e 88). De acordo corn o art.Q2l.Q, que nos remete para o art.Q 18.Q os instrumentos de regulamenta<;ao colectiva, tambem tern uma palavra a dizer quanto ao estabelecimento de determinadas regras, sem prejufzo das normas das federa<;6es nacionais e internacionais aplicaveis nestas materias. Atenda-se ao estabelecido no art.Q 9.Q n.Q 6 do CCT dos Jogadores profissionais de futebol, que preve : «Sempre que da cedencia resulte o pagamento de qualquer compensa<;ao ao clube ou sociedade desportiva cedente, o jogador cedido tera direito a receber, se outro acordo mais favoravel nao for estabelecido entre as partes, 7% daquela quantia.>>, ou ao art.Q lO.Qn.Ql do mesmo diploma que estabelece « Sem prejufzo de eventuais limita<;6es ou condi<;6es decorrentes dos regulamentos desportivos, sempre que se verifique revoga<;ao do contrato por mutuo acordo ou promovida par uma das partes corn invoca<;ao de justa causa, devidamente reconhecida, pode o jogador transferir-se definitivamente para outro clube ou sociedade desportiva durante 0 decurso da epoca desportiva e ser ainda nela utilizado pelo seu novo clube, desde que a extin<;ao do seu contrato seja comunicada a FPF e a LPFP ate 31 de Mar<;o.>>.

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Por fim, de referir que ao cessionario nao e permitido ceder o praticante desportivo a urn terceiro clube, salvo autoriza<;:ao expressa quer do cedente quer do cedido nesse sentido, sem exclusao da devida autoriza<;:ao do "primeiro cessionario".

CAPITULO IV (Empresarios desportivos) Art. 2 22. 2 (Exercicio da actividade de empresario desportivo) n. 2 1 - So podem ex ere er a actividade de empresario desportivo as pessoas singulares ou colectivas devidamente autorizadas pelas entidades desportivas nacionais ou internacionais, competentes. n. 2 2 - A pessoa que exer~a a actividade de empresario desportivo so pode agir em nome e por conta de uma das partes da rela~ao contratual. Art. 2 23. 2 (Registo dos empresarios desportivos) n. 2 1 - Sem prejuizo do disposto no artigo anterior, os empresanos desportivos que pretendam exercer a actividade de intermediarios na contrata~ao de praticantes desportivos devem registar-se como tal junto da federa~ao desportiva da respectiva modalidade, que, para este efeito, deve dispor de urn registo organizado e actualizado. n. 2 2 - Nas federa~oes desportivas onde existam competi~oes de caracter profissional o registo a que se refere o mimero anterior sera igualmente efectuado junto da respectiva liga. n. 2 3 - 0 regis to a que se refere o mimero anterior e constituido por urn modelo de identifica~ao do empresario, cujas caracteristicas serao definidas por regulamento federativo. Art. 2 24. 2

(Remunera~ao

da actividade de empresario)

n. 2 1 - As pessoas singulares ou colectivas que exer~arn a actividade de intennediarios, ocasional ou pennanentemente, so podem. ser remuneradas pela parte que representarn. n. 2 2 - Salvo acordo em contrario, que devera cons tar de dausula escrita no contrato inicial, 0 montante rnaximo recebido pelo empresario e fixado em 5% do montante global do contrato. Art. 2 25. 2

(Limita~oes

ao exercicio da actividade de empresario)

Sem prejufzo de outras limita~oes estabelecidas ern regulamentos federativos nacionais ou internacionais, ficarn inibidos de exercer a actividade de empresarios desportivos as seguintes entidades:

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a) b) c) d) e)

As Os Os Os Os

sociedades desportivas clubes dirigentes desportivos titulares de cargos em orgaos das sociedades desportivas treinadores, praticantes, arbitros, medicos e massagistas

0 Seculo XX , e sem duvida o Seculo do desporto, este originario fenomeno

social registou urn desenvolvimento explosive tal que fo1iou uma verdadeira industria economica virada para o espectaculo desportivo, em que se cria condi<;:6es ao aparecimento massivo de profiss6es e actividades ligadas a este fenomeno. A dinamiza<;:ao crescente do proprio mercado de trabalho desportivo em que os valores financeiros nao sao despiciendos, gera a necessidade do praticante recorrer ao auxflio de alguem que assuma a responsabilidade negocial de defender os seus interesses e o liberte para fazer aquilo que melhor sabe, que e a pratica da actividade desportiva para que foi contratado. Oaf o surgimento da cada vez mais polemica figura do empresario desportivo, que a alfnea d) do art.Q 2.Q deste diploma define como: ÂŤ ... a pessoa singular ou colectiva que, estando devidamente credenciada, exer<;:a a actividade de representa<;:ao ou intermedia<;:ao, ocasional ou permanente, mediante remunera<;:ao, na celebra<;:ao de contratos desportivos;Âť Esta profissao inovadora de final de seculo XX apenas pode ser exercida por pessoas que estejam autorizadas pelas entidades nacionais e internacionais competentes, isto e, federa<;:6es desportivas nacionais e internacionais da respectiva modalidade (el ou pelas ligas onde existam competi<;:6es de caracter profissional), habilitando assim os empresarios desportivos a exercer a sua actividade de agente interposto na rela<;:ao laboral desportiva que ira ser constitufda (vide arts. 22.Q n.Q1, n.Q 2 e 23.Q n.Q 1 e 2). 0 empresario desportivo adquire, mediante procura<;:ao, poderes representativos do praticante desportivo, agindo em nome deste, particularmente na composi<;:ao e negocia<;:ao do contrato de trabalho desportivo, corn as potenciais entidades empregadoras, cabendo sempre a palavra final ao trabalhador I I praticante de concluir ou nao o negocio jurfdico, ou seja, a emissao da declara<;:ao de vontade negocial definitiva e sempre desempenhada pelo representado e nao pelo representante. Em virtude dessa intermedia<;:ao tern o empresario desportivo direito a auferir uma remunera<;:ao pela celebra<;:ao de contratos desportivos, pela parte que representam (vide art.Q 24.Q n.Q 1), que, salvo acordo em contrario constante de clausula escrita nao podera exceder os 5% do montante global do contrato (n.Q 2 do art.Q 24.Q), evitando-se assim que haja a possibilidade de a remunera<;:ao poder ser multiplicada pelos intervenientes contratuais e, consequentemente, uma promiscuidade especulatoria em prejufzo dos interesses do praticante desportivo. No entanto, ha que reconhecer que nao obstante a previsao legal acima indicada, existem comportamentos, por vezes atentatorios da etica pessoal e

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desportiva, que levam a que os praticantes desportivos sejam muitas vezes vftimas da sua ignorancia em quest6es legais e que, envolvidos numa relac;ao de confianc;a corn o seu empresario, se desvinculem ilicitamente da anterior entidade empregadora desportiva permitindo que o empresario, em curtos espac;os temporais aufiram varias quantias por transferencias em que nao poucas vezes sao prejudiciais patrimonialmente ao praticante e em que 0 unico beneficiario e 0 intermediario. Sucede corn alguma frequencia, que o praticante desportivo sofra alguma pressao do seu empresario para que o contrato de trabalho desportivo em vigor corn a actual entidade empregadora desportiva cesse de alguma forma, sem que se atinja o termo prefixado no mesmo, sendo certo que, a insatisfac;ao por vezes criada no praticante cria a necessidade de realizac;ao de urn acordo trilateral (entidades empregadoras desportivas e praticante ), em que a "comissao" do empresario sobe em virtude do montante global da transferencia ser superior, do que no fim do prazo estabelecido no contrato. Sendo frequente que a referida comissao seja paga por qualquer das partes envolvidas em clara violac;ao do supra referido art.Q 24.Q. Na nossa opiniao, e inegavel a contribuic;ao dos empresarios desportivos para uma maior protecc;ao dos interesses do praticante desportivo, nao ficando assim a merce das entidades empregadoras desportivas, contudo, a pouca etica de alguns dos seus comportamentos e a crescente patronalizac;ao e subordinac;ao do praticante ao empresario, leva a que o atleta seja uma mera "coisa" subjugada de mao em mao (empresario I clube ), que apenas serve para realizar a obtenc;ao de dinheiro facil sendo o praticante desportivo profissional urn meio para atingir aquele fim, contribuindo decisivamente para urn jufzo negativo por parte da opiniao publica que conotam a sua actividade corn falta de transparencia e parasitismo. CAPITULO V (Cessa~ao

do contrato de trabalho desportivo)

Art. Q 26. Q (Formas de

cessa~ao)

n. Q 1 - 0 contrato de trabalho desportivo pode cessar por: a) Caducidade b) Revoga~ao, por acordo das partes c) Despedimento corn justa causa promovido pela entidade empregadora desportiva d) Rescisao corn justa causa por iniciativa do praticante desportivo e) Rescisao por qualquer das partes durante o periodo experimental f) Despedimento colectivo g) Abandono do trabalho n. Q 2 - A cessa~ao do contra to por abandono do trabalho aplicam-se as normas do art.Q 40.Q do regime juridico da cessa~ao do contrato individual de trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.Q 64-A/89, de 27 de Fevereiro

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Em sintonia corn a composi<;ao do artigo acima descrito, encontravam-se previstos no ja revogado art.Q 3.Q da LCCT as formas de cessa<;ao do contrato de trabalho do anterior regime geral, contudo, como se sabe, o novo C6digo do Trabalho sistematizou de forma mais adequada os regimes extintivos dos contratos de trabalho, agrupando-os em 4 grandes tipos, prevendo no art.Q 384.Q a caducidade na alinea a), a revoga<;ao na alinea b), a resolu<;ao na alinea c), que pode ocorrer por iniciativa do empregador (despedimento), ou por iniciativa do trabalhador, correspondendo similarmente a figura da rescisao corn justa causa da LCCT (art.Q 3.Q n.Q 2 d)), e a demincia na alinea d), que constitui urn direito facultado apenas ao trabalhador e que constitui uma especie de auto-despedimento. 0 legislador optou assim por atribuir uma qualifica<;ao ampla de resolu<;ao contratual (384.Q al. c)), e por inserir as restantes formas de cessa<;ao do contrato de trabalho, em sec<;6es diferentes das disposi<;6es gerais, veja-se : despedimento por facto imputavel ao trabalhador (art.Q 396.Q); o despedimento colectivo (arts. 397.Q a 40P); o despedimento por extin<;ao de postos de trabalho (arts. 402.Q a 404.Q); e o despedimento por inadapta<;ao (arts. 405.Q a 410.Q). Contudo, como ja verificamos anteriormente, o trabalhador no regime geral pode rescindir o contrato por sua iniciativa, licitamente, corn ou sem justa causa (arts. 384.Q c) e d) e 447.Qn .Q 1 e 3 do C6digo do Trabalho, enquanto que no dominio do contrato de trabalho desportivo a licitude da rescisao depende somente da verifica<;ao da existencia de justa causa, conforme a previsao da aline a d) do presente artigo, nao podendo o trabalhador I praticante desportivo, desvincular-se antes do decurso do prazo acordado, mediante aviso previo ao empregador desportivo. Desta forma, constata-se que o termo constante deste espedfico contrato de trabalho e urn termo particularmente estavel que fixa a sua dura<;ao comprimindo-se decisivamente as capacidades de rescisao do praticante desportivo, em troca de uma "eventual" estabilidade contratual, sendo certo que o actual mundo desportivo tern muito pouco de constancia e inalterabilidade, pelo que esta caracteristica se encontra em desuso. Irei agora construir uma breve analise critica das formas de cessa<;ao do contrato de trabalho desportivo previstas, tal qual, neste art.Q 26.Q, come<;ando pela caducidade prevista na alinea a) do mencionado artigo, olvidando deliberadamente a nova disposi<;ao do artigo 384.Q do novo C6digo do Trabalho e sem prejuizo do conteudo da mesma:

a) Caducidade Como sucede corn qualquer outro contrato a termo, o contrato de trabalho do praticante desportivo tern o seu futuro tra<;ado, extinguindo-se a maioria das vezes por for<;a do decurso do prazo estipulado aquando do momento da sua celebra<;ao. No entanto, o contrato de trabalho desportivo pode caducar por outras formas, nomeadamente, pela impossibilidade superveniente, absoluta e defini-

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tiva de o praticante desportivo prestar a sua actividade ou da entidade empregadora desportiva a receber (e o caso tfpico da morte ou incapacidade permanente para a pratica da actividade desportiva do praticante ou de extin<;:ao da entidade empregadora vide arts. 387.Q e 390. 9 do C6digo do Trabalho aplicaveis ex vi art.Q 3. 9 do presente diploma a que correspondem corn as devidas altera<;:oes aos antigos arts. 4. 9 e 6. 9 da LCCT), e se se considerar possfvel a aposi<;:ao de condi<;:ao resolutiva no contrato de trabalho desportivo (o que a nosso ver e algo dificil por ser extremamente penalizador para o praticante ), a sua verifica<;:ao tambem sera fonte de caducidade do contrato. Verdadeiramente complexa, senao de dificil aplicabilidade e aplicar ao contrato de trabalho desportivo os efeitos jurfdicos da caducidade previstos no regime jurfdico do novo C6digo do Trabalho quanto aos contratos de trabalho a termo certo ou incerto (arts. 388. 9 e 389.Q e 139. 9 e 140. 9 ), nao obstante, como ja referimos, aplicar-se subsidiariamente, ex vi art.Q 3. 9 da presente lei o regime geral do contrato de trabalho, sendo o diploma em analise totalmente omisso quanto a esta materia. Se poucas duvidas restam quanto a aplicabilidade "tout court" do n.Q 1 do art.Q 388. 9 que estipula que ÂŤO contrato caduca no termo do prazo estipulado desde que o empregador ou o trabalhador comunique, respectivamente, 15 ou 8 dias antes de o prazo expirm~ por forma escrita a vontade de o fazer cessar.>>. Muitas duvidas nos deixa, quanto a aplicabilidade do n.Q 2 do art. 9 140.Q que nos diz que: ÂŤ0 contrato renova-se no final do termo estipulado, por igual perfodo, na falta de declara<;:ao das partes em contrarioÂť, sendo certo que esta renova<;:ao automatica nao podera efectuar-se para alem de 2 vezes e a dura<;:ao do contrato tera por limite 3 anos consecutivos (art.Q 139.9 n.Q 1), sem prejufzo de ter decorrido 0 perfodo de tres anos ou verificado 0 numero maximo de renova<;:6es, poder o contrato de trabalho, ser objecto de mais uma renova<;:ao desde que a respectiva dura<;:ao nao seja inferior a urn nem superior a tres anos. (139.Q n.Q2), convertendo-se o contrato num contrato sem termo se o contrato cuja renova<;:ao tenha sido feita em desrespeito dos pressupostos indicados anteriormente, como estabelece o art.Q 140.Q n.Q4 do novo C6digo do Trabalho. Assim, nao faz muito sentido aplicar urn regime jurfdico em que a contrata<;:ao a termo e excep<;:ao (arts. 129.Q n. 9 1 a 3 e 130.Q n.Q 2 do C6digo do Trabalho ), e em que o legislador descreve as situa<;:6es da possibilidade de contrata<;:ao a termo (sem prejufzo do estabelecido no art.Q 128.Q e quanto a possibilidade dos instrumentos de regulamenta<;:ao, poderem estabelecer regras diferentes das previstas nos artigos supra referidos, excepto no que respeita a alfnea b) do n.Q 3 do art.Q 129.Q), restringindo-as quantitativa e temporalmente compelindo as entidades empregadoras a sucessivamente converter estes contratos em contratos sem termo, quando a regra em sede de contrato de trabalho desportivo e exactamente a inversa, isto e, 0 contrato desportivo e obrigatoriamente celebrado a termo certo ou incerto (art.Q 8.Q n. 9 2 b)), tambem nao fazendo muito sentido exigir-se das entidades empregadoras desportivas a comunica<;:ao referida nos (arts. 388.Q n.Q 1 do C6digo do Trabalho, ex vi art. 9

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