Lusíada
Série II, n.º 7 (2010)
Direito Universidade Lusíada • Lisboa
Universidade Lusíada Editora Lisboa • 2010
Mediateca da Universidade Lusíada – Catalogação na Publicação LUSÍADA. Direito. Lisboa, 2003 Lusíada. Direito / propr. Fundação Minerva – Cultura – Ensino e Investigação Científica ; dir. José Duarte Nogueira. – S. 2, n. 1 (2003). – Lisboa : Universidade Lusíada, 2003. - 24 cm. Anual Continuação de: Lusíada: revista de ciência e cultura. Série de direito ISSN 0872-2498 1. Direito - Periódicos CBC CDU ECLAS
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II
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Índice
SUMÁRIO I Doutrina §1 ARTIGOS A utilização livre da obra intelectual Carlos de Almeida Sampaio ........................................................................................ 9 Direito de Autor e comércio electrónico:aspectos internacionais Dário Moura Vicente .................................................................................................. 19 O direito de colocação à disposição do público José Cintra Matias ...................................................................................................... 37 O interior e o direito: percurso no tempo e no espaço José Duarte Nogueira .................................................................................................. 61 O dever de cooperação com o Provedor de Justiça José Lucas Cardoso ...................................................................................................... 75 Associativismo e sindicalismo judiciários (Nótula de apresentação de um livro) Manuel da Costa Andrade .......................................................................................... 99 A desejável flexibilidade da incapacidade das pessoas maiores de idade Marta Costa ................................................................................................................ 109 Retenção de dados de comunicações Miguel Pupo Correia .................................................................................................. 163 Fontes do direito contemporâneo: breve estudo sobre as fontes jurídicas da família romano-germânica Sara Maria de Andrade Silva ..................................................................................... 179
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A nova legislação francesa sobre obrigações dos ISP’S quanto à retenção dos direitos de propriedade intelectual Sónia Queiroz Vaz ...................................................................................................... 237 §2 Trabalhos académicos Implicações constitucionais da criação de uma base de dados genéticos para fins de investigação criminal: segurança versus privacidade Florentina Maria de Freitas ........................................................................................ 247 Garantia das Obrigações. Relatório José Alberto Rodriguez Lorenzo Gonzalez................................................................... 291 Direito das Pessoas e Situações Jurídicas. Relatório Pedro Cordeiro ............................................................................................................ 373 II VIDA DA FACULDADE -A§ 1 - Doutoramentos ............................................................................................... 447 § 2 - Mestrados .......................................................................................................... 447 -BConferências e Colóquios ....................................................................................... 451 -C§ 1 - Licenciados em Direito ................................................................................... 457 § 2 - Licenciados em Solicitadoria .......................................................................... 457
Doutrina
A utilização livre da obra intelectual
A UTILIZAÇÃO LIVRE DA OBRA INTELECTUAL1 Carlos de Almeida Sampaio2 Imaginemos dois casos: a venda on-line, não autorizada, de reproduções do “Tigre Azul” de J. P. promovida por uma webshop com servidor em Shanghai; e a oferta, contra a vontade do autor, de posters com uma reprodução fiel da mesma obra, a um grupo restrito de convidados de escolas de belas-artes chinesas, no pavilhão de Portugal na Exposição Universal que abriu as suas portas no dia 2 de Maio de 2010. Em ambos, o autor não obtém qualquer remuneração mas, nem por isso, estes casos são comparáveis do ponto de vista da licitude do uso da obra artística. Enquanto no primeiro exemplo, assistimos à livre utilização por terceiros sem título para tanto e em enquadramento que a lei não prevê, e consequentemente estamos perante uma utilização ilícita da obra, no segundo exemplo, uma mostra promocional sobre a pintura portuguesa do séc. XX pode ser entendida como de interesse público, não lesando os interesses do autor e com carácter não comercial, cabendo, por isso, no âmbito do art. 75º, alínea d) do Código de Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC). A questão da utilização livre de uma obra tutelada pelo direito de autor tem sido tradicionalmente abordada pela doutrina, nomeadamente pelos autores portugueses não como um direito de livre utilização, como a epígrafe do Capítulo I do CDADC pode dar a entender, mas como uma restrição ou limitação ao direito do autor da obra. O art. 75º do CDADC consagra esse entendimento e o propósito desta comunicação é dar nota da evolução do pensamento jurídico nesta matéria. Historicamente, as primeiras limitações ao direito do autor sobre a sua obra surgem com recurso à ideia de prazo de vigência da protecção e com a atribuição ao autor de um estatuto próprio por via de pertença a uma congregação ou associação e, posteriormente, pelo registo. No entanto, se não Conferência proferida na Universidade Lusíada de Lisboa, no Colòquio “Direito de Autor e Sociedade de Informação. Perspectiva no início do Séc. XXI”, em 6 de Novembro de 2009. 2 Mestre em Direito; Advogado Sócio (Cuatrecasas, Gonçalves Pereira e Associados, RL). 1
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está no aparecimento da obra impressa a génese do reconhecimento pela ordem jurídica vigente, aquela vai potenciar exponencialmente o conteúdo patrimonial do direito de autor. Com raízes diversas mas convergentes, a ideia de que o direito de autor ao reconhecimento da criação intelectual havia de corresponder a protecção jurídica do mesmo foi acolhida na consciência social dos povos e dos Estados. De um lado, por evolução das concepções de raiz jusnaturalista segundo as quais a obra intelectual se encontra desde a sua génese ligada ao seu criador em termos tais que o direito de autor mais não seria do que o reconhecimento pela lei do elo entre autor e obra, e esta concebida como a materialização da personalidade do autor: “O autor é protegido enquanto tal, na qualidade de criador, porque um elo o une ao objecto da sua criação”3. Nos sistemas de direito continental, o direito de autor tem vindo, com fundamentação diversa, a ser reconhecido e consistentemente defendida a orientação sintetizada do seguinte modo: “The author-orientation of the civil law system calls on the legislator to safeguard rights broad enough to concede to authors the opportunity to profit from the use of their self-expression”4. Deve notar-se que nestes sistemas jda common law a componente económica do direito está mais presente e que a protecção da obra intelectual e do direito de autor tem nas suas raízes explicativas a escola de pensamento económico que designamos por “utilitarismo”. Nesse quadro, não é já a expressão das capacidades individuais enquanto tais que são protegidas mas a protecção visa dominantemente o benefício da sociedade. Os princípios da economia de mercado fundamentam um quadro legal que favoreça a criação de bens socialmente e economicamente valiosos. A protecção emergente do reconhecimento do direito de autor junta o interesse social e o incentivo individual do ganho económico, entendendo-se que a remuneração do direito patrimonial do autor incentiva a produtividade intelectual do mesmo5. De um ponto de vista da cronologia histórica, refira-se que a common law promoveu o recurso à tradicional figura da concessão. Em 1534 o governo britânico concedeu a exploração, em regime de monopólio, da impressão e publicação de obras a uma companhia comercial, a Worshipful Company of Stationers and Newspaper Makers, conhecida como Stationers Company a qual exerceu durante longas décadas o monopólio sobre a indústria de impressão e publicação e foi por determinação régia a entidade que atribuía direitos de autor e aprovava e aplicava os regulamentos que tutelavam os direitos sobre a obra literária. Tais direitos tinham, as mais das vezes, uma natureza que não permitia Cfr. H. DEBOIS, Le droit d?auteur en France, (2.ª ed.), ed. Dalloz, Paris, 1978, pp. 538. Cfr. M. SENFTLEBEN, Copyright, Limitations and the Three-Step - An Analysis of the Three-Step in international and EC Copyright Law, ed. Kluwer, 2004, pp. 6. 5 O Statue of Anne manifesta esse entendimento na própria denominação original: “Act for the Encouragement of Learning by vesting the Copies of Printed Books in the Authors or Purchasers of such Copies”. 3 4
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ainda a sua qualificação autónoma senão como direito de exploração exclusiva de uma obra sob a forma de concessão por título régio em tudo semelhante a de qualquer outra actividade económica. Assim acontece com a Stationers Company que vê esse mesmo monopólio para o mercado de Reino Unido e suas colónias, domínios e feitorias ser-lhe concedido. O pagamento feito por aquela aos autores como reconhecimento e expressão retributiva do seu direito patrimonial de autor era então de pouca monta, prevalecendo sobre este o “interesse público” que à Stationers Company competia promover, fosse esse interesse público um interesse estratégico, educativo, assistencial ou outros. Embora tenha sido substituída em 1709 pelo Statute of Anna e perdido o monopólio até aí existente, nem por isso a Companhia abandonou a sua intervenção nesses domínios e antes evoluiu para uma entidade em que estão representadas empresas do sector das comunicações. O Statute of Anna de 1709 revogou a carta régia que outorgava a concessão exclusiva e transferiu para os autores o direito exclusivo que até aí tivera como titular a Stationer’s Company. Nos termos do Statute of Anna os autores viram serlhes reconhecido o direito exclusivo de publicar, fazer publicar ou autorizar a publicação das suas obras por um período de catorze anos. Sendo a mesma lei aplicável em todos os territórios sob domínio britânico, as colónias que em 1776 se constituíram nos Estados Unidos da América adoptaram o mesmo período de protecção de catorze anos somando a esta norma uma outra de grande relevância e impacto tanto jurídicos como económicos: se o autor fosse ainda vivo no termo do período de catorze anos este podia ser prorrogado, por exclusiva vontade do mesmo, por um novo período de catorze anos. Durante os dois séculos seguintes o direito patrimonial do autor viu o período de vigência da sua protecção ser sucessivamente alargado até atingir o prazo de setenta anos após a morte do autor, prazo esse hoje harmonizado, na União Europeia, pela Directiva 93/83/ EEC6, e, nos Estados Unidos, pelo Copyright Term Extension Act de 1998. Como decorre dos parágrafos anteriores, o reconhecimento, protecção e extensão do direito patrimonial do autor evidencia desde o primeiro instante uma ponderação entre o interesse público e o interesse privado em que, numa primeira fase, o interesse público foi dominante enquanto, numa segunda, se construiu a noção de tutela jurídica de um direito à “propriedade privada intelectual”, com um gradual reconhecimento da dimensão patrimonial do mesmo. Por mera curiosidade note-se que o ancestral modelo da companhia concessionária está ainda presente na terminologia dos sistemas jurídicos dos países da common law; copyright, o direito à cópia7. A emergência do conteúdo patrimonial do direito de autor e da consagração legal deste, tanto em países de tradição continental como nos países da common law, cedo teve como consequência o interesse dos Estados em limitar esse direito. A intensificação do comércio mundial e, de um modo geral, das relações económicas 6 7
Cfr. J. O. C. E., n.º L 248/15 de 27.09.1993. O ancestral modelo da campanha concessionária está ainda presente na terminologia dos sistemas jurídicos dos países da commo law: copyright, o direito à cópia.
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internacionais associadas à difusão e transferência dos conhecimentos científicos e culturais dos Estados sugeriu uma ronda de negociações que acabaram por levar à celebração da Convenção de Berna de 1884. O fundamento do “interesse público” pode, no entanto, ser lato e até contraditoriamente invocado, o que pode ser constatado na evolução das legislações de cada Estado e foi também reconhecido desde o início pela própria Convenção de Berna. Sendo certo que circunstâncias históricas, culturais ou sociais – para além dos interesses públicos ou económicos prevalecentes – determinam uma interpretação própria de interesse público, podemos retirar tanto do direito comparado como dos textos do direito internacional, a começar pela própria Convenção de Berna, que a utilização da ideia de interesse público como fundamento da limitação do direito de autor recomenda também a identificação e os “limites das limitações” à protecção do direito de autor e de como estes devem ser conceptualmente entendidos e traduzidos em disposições normativas. Como resultado, tanto dos trabalhos da Convenção como da doutrina já sedimentada, as limitações à protecção do direito patrimonial de autor puderam – quadro que não se alterou - ser construídas com recurso a figuras susceptíveis de inclusão em uma de três categorias: - limitações em razão da matéria; - limitações em razão de utilização; - limitações contra compensação pecuniária8. Quanto às limitações em razão da matéria, entende-se que a natureza da obra pode determinar a inexistência de fundamento para a sua protecção e, em consequência, a inexistência de protecção. São habitualmente as “limitações” resultantes da inexistência de pedido de protecção para determinadas categorias de obra. O art. 2º da Convenção de Berna identifica, ainda que exemplificativamente, este tipo de limitações9. As limitações em razão da utilização, também acolhidas pela Convenção, identificam diversos tipos de utilização em que o direito patrimonial do autor ou não é lesado ou é objecto de lesão mínima, designando estas situações como de “utilização permitida”, vide as utilizações para notícias ou fins educativos. A terceira categoria integra as limitações contra compensação pecuniária compulsória. A Convenção de Berna previu a possibilidade de impor a concessão de licenças de uso tendo por contrapartida uma compensação pecuniária fixada pelo poder político ou autoridade administrativa. O mesmo está previsto no art. 75º do CDADC e pela maioria das legislações nacionais da União Europeia. Como se retira com clareza da leitura dos textos convencionais e da evolução histórica, não estamos perante um conjunto de limitações com uma base jurídica comum. E, para o comprovar, veja-se como a questão é tratada pela lei portuguesa Cfr. S. RICKETSON, Jane C. GINSBURG, International Copyright and Neighbouring Rights - The Berne Convention and Beyond, 1.º vol., ed. Oxford Univesity Press, 2006, pp. 756 e ss. 9 Cfr. S. RICKETSON, Jane C. GINSBURG, op. cit., pp. 756 e ss. 8
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A utilização livre da obra intelectual
e em particular pelo CDADC. O Capítulo II do CDADC tem por epígrafe “Da utilização livre”. O art. 75º, o primeiro do mesmo Capítulo, ao determinar o âmbito da utilização livre usa uma tripla referência: a licitude, a ausência de consentimento do autor e a utilização que é dada à obra. “Artigo 75º Âmbito 1 – São excluídos do direito de reprodução os actos de reprodução temporária que sejam transitórios, episódicos ou acessórios, que constituam parte integrante e essencial de um processo tecnológico e cujo único objectivo seja permitir uma transmissão numa rede entre terceiros por parte de um intermediário, ou uma utilização legítima de uma obra protegida e que não tenham, em si, significado económico, incluindo, na medida em que cumpram as condições expostas, os actos que possibilitam a navegação em redes e a armazenagem temporária, bem como os que permitem o funcionamento eficaz dos sistemas de transmissão, desde que o intermediário não altere o conteúdo da transmissão e não interfira com a legítima utilização da tecnologia conforme os bons usos reconhecidos pelo mercado, para obter dados sobre a utilização da informação, e em geral os processos meramente tecnológicos de transmissão. E, no seu númro 2, o art. 75.º procede à enumeração dos casos de “utilização livre” da obra: 2 – São lícitas, sem o consentimento do autor, as seguintes utilizações da obra: a) A reprodução de obra, para fins exclusivamente privados, em papel ou suporte similar, realizada através de qualquer tipo de técnica fotográfica ou processo com resultados semelhantes, com excepção das partituras, bem como a reprodução em qualquer meio realizada por pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais directos ou indirectos; b) A reprodução e a colocação à disposição do público, pelos meios de comunicação social, para fins de informação, de discursos, alocuções e conferências pronunciadas em público que não entrem nas categorias previstas no artigo 7º, por extracto ou em forma de resumo; c) A selecção regular de artigos de imprensa periódica, sob forma de revista de imprensa; d) A fixação, reprodução e comunicação pública, por quaisquer meios, de fragmentos de obras literárias ou artísticas, quando a sua inclusão em relatos de acontecimentos de actualidade for justificada pelo fim de informação prosseguido; e) A reprodução, no todo ou em parte, de uma obra que tenha sido previamente tornada acessível ao público, desde que tal reprodução seja realizada por uma biblioteca pública, um arquivo público, um museu Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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público, um centro de documentação não comercial ou uma instituição científica ou de ensino, e que essa reprodução e o respectivo número de exemplares se não destinem ao público, se limitem às necessidades das actividades próprias dessas instituições e não tenham por objectivo a obtenção de uma vantagem económica ou comercial, directa ou indirecta, incluindo os actos de reprodução necessários à preservação e arquivo de quaisquer obras; f) A reprodução, distribuição e disponibilização pública, para fins de ensino e educação, de partes de uma obra publicada, contanto que se destinem exclusivamente aos objectivos do ensino nesses estabelecimentos e não tenham por objectivo a obtenção de uma vantagem económica ou comercial, directa ou indirecta; g) A inserção de citações ou resumos de obras alheias, quaisquer que sejam o seu género e natureza, em apoio das próprias doutrinas ou com fins de crítica, discussão ou ensino, e na medida justificada pelo objectivo a atingir; h) A inclusão de peças curtas ou fragmentos de obras alheias em obras próprias destinadas ao ensino; i) A reprodução, a comunicação pública e a colocação à disposição do público a favor de pessoas com deficiência de obra que esteja directamente relacionada e na medida estritamente exigida por essas específicas deficiências e desde que não tenham, directa ou indirectamente, fins lucrativos; j) A execução e comunicação públicas de hinos ou de cantos patrióticos oficialmente adoptados e de obras de carácter exclusivamente religioso durante os actos de culto ou as práticas religiosas; l) A utilização de obra para efeitos de publicidade relacionada com a exibição pública ou venda de obras artísticas, na medida em que tal seja necessário para promover o acontecimento, com exclusão de qualquer outra utilização comercial; m) A reprodução, comunicação ao público ou colocação à disposição do público de artigos de actualidade, de discussão económica, política ou religiosa, de obras radiodifundidas ou de outros materiais da mesma natureza, se não tiver sido expressamente reservada; n) A utilização de obra para efeitos de segurança pública ou para assegurar o bom desenrolar ou o relato de processos administrativos, parlamentares ou judiciais; o) A comunicação ou colocação à disposição do público, para efeitos de investigação ou estudos pessoais, a membros individuais do público por terminais destinados para o efeito nas instalações de bibliotecas, museus, arquivos públicos e escolas, de obras protegidas não sujeitas a condições de compra ou licenciamento, e que integrem as suas colecções ou acervos de bens; 14
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p) A reprodução de obra, efectuada por instituições sociais sem fins lucrativos, tais como hospitais e prisões, quando a mesma seja transmitida por radiodifusão; q) A utilização de obras, como, por exemplo, obras de arquitectura ou escultura, feitas para serem mantidas permanentemente em locais públicos; r) A inclusão episódica de uma obra ou outro material protegido noutro material; s) A utilização de obra relacionada com a demonstração ou reparação de equipamentos; t) A utilização de uma obra artística sob a forma de um edifício, de um desenho ou planta de um edifício para efeitos da sua reconstrução ou reparação. 3 – É também lícita a distribuição dos exemplares licitamente reproduzidos, na medida justificada pelo objectivo do acto de reprodução. 4 – Os modos de exercício das utilizações previstas nos números anteriores não devem atingir a exploração normal da obra, nem causar prejuízo injustificado aos interesses legítimos do autor. O enquadramento sistémico do art. 75º do Código levaria a supor que nele se contemplam, de um modo taxativo, as situações em que, embora com fundamentação diversa, é lícita a utilização livre da obra sem o consentimento do autor10. No entanto, desde logo o próprio Código prevê todo um conjunto de outras situações, em artigos com uma colocação sistémica diversa, em que se prevêem casos de utilização livre de uma obra sem que o autor se possa opor a essa utilização11. No seu fio condutor. o art. 75º segue nas suas nove alíneas o texto e as situações previstas na Convenção de Berna, já examinados supra. Todavia, tanto o Direito Internacional convencional mais recente como o Direito Comunitário (nomeadamente com a Directiva nº 2001/29 do Conselho) integraram no ordenamento jurídico aplicável em Portugal diversas outras situações que representam ou limitações ao direito de autor ou excepções ao direito deste enquanto direito patrimonial exclusivo12. Uma vez identificada a base legal importa saber como devem ser entendidas as situações em que o direito de autor é limitado e qual é o fundamento da consagração legal dessas mesmas situações. Isto porque estamos, na verdade, perante casos em que o ordenamento jurídico suspende a protecção à exploração pelo autor da sua obra e do direito exclusivo daquele a beneficiar do resultado ou do valor económico desta dando prevalência a interesses subsumíveis no É esse o entendimento nomeadamente de Luiz Francisco Rebello. Cfr. Código do Direito de autor e dos Direitos Conexos Anotado, 3ª edição revista e actualizada, 2002, Lisboa, págs. 130 e 131. 11 Cfr. Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, art. 8.º, n.º 2 e art. 77.ºº, n.º 2 inter alia 12 Cfr. J. O. C. E,, n.º L 167, 2001, pp. 10 e ss. 10
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interesse público de acordo com o legislador, que prevalecem, nos termos e com as limitações previstas na lei, sobre o direito patrimonial do autor. Na lei portuguesa, o CDADC pretende consagrar uma linha orientadora própria da teorização do direito de autor nos Estados de direito continental e afirmar – de resto na linha da tradição portuguesa – a natureza do direito de autor enquanto reconhecimento pelo sistema jurídico da obra como uma extensão intelectual do seu autor. Como no próprio preâmbulo do CDADC se diz, “a obra é (não apenas) o produto do esforço criador de uma pessoa mas deve ser original e reflectir (…) a personalidade do seu autor”. Uma vez identificada ou reconhecida a obra enquanto criação intelectual, a protecção é-lhe imediatamente reconhecida em termos prefixados por lei. É neste enquadramento que o legislador originário e parte da doutrina vêm as limitações ao direito de autor e a suspensão da protecção atribuída. Para Rebello, a enumeração constante do art. 75º dos casos em que é lícita a utilização de uma obra sem o consentimento do autor é uma enumeração taxativa “não sendo pois lícito”, continua Rebello “acrescentar-lhe quaisquer outras que não sejam expressamente declaradas, sendo sempre necessário ….”13. Mas, no entanto, logo em seguida reconhece que desde logo o próprio Código prevê outros casos de utilização livre citando exemplificativamente os casos dos artigos 8º- 2, 77º-2, 80º, 123º-2, 168º-1 e 173º-2. Com um entendimento diverso, refira-se Oliveira Ascensão para quem o direito de autor é por definição não um direito que seja reconhecido por lei mas eminentemente uma construção desta. Direito limitado no tempo, no seu conteúdo patrimonial e na apropriação do resultado económico da atribuição do direito, tanto por normas de conteúdo negativo como de conteúdo positivo14. Há pois que determinar os elementos essenciais que devem estar presentes em todos os casos de limitação do autor. Já linhas atrás se referiu que esta limitação, a existir, deve encontrar-se fundamentada por razões de interesse público. Esta é uma orientação constante que transparece com clareza nos textos de direito convencional internacional. Aí, desde a Convenção de Berna até ao Acordo TRIPS de 199415, passando pelo Tratado WIPT16 encontramos o entendimento das limitações ao direito de autor sempre como excepções ditadas pelo interesse público. O direito internacional de autor identifica uma técnica de leitura das limitações, técnica essa essencial para numa economia crescentemente dominada pelo recurso às tecnologias da sociedade da informação, distinguir os casos em Cfr. Luiz Francisco REBELLO, op. cit., pp. 130. Cfr. José de Oliveirra ASCENSÃO, Direito Civil, Direito de Autor e Direitos Conexos, ed. Coimbra Editora, 2008, pp. 212. 15 Agreement on Trade-Related Aspectos of Intellectual Propety Rights, assinado em Marraquexe em Abril de 1994. 16 World Intellectual Propety Organization Copyrights Treaty, assinado em Genebra em 20 de Dezembro de 1996. 13 14
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Direito de Autor e Comércio Electrónico: aspectos internacionais
que a limitação do direito de autor tem fundamento e coerência com o sistema jurídico. O “three-step test” permite a identificação de uma realidade que tem vindo a constituir, nos últimos anos, uma questão de importância crescente para o direito da propriedade intelectual e que é a existência de limites às limitações do direito de autor. Este instrumento é consistente com a fundamentação do direito de autor e com a própria existência deste enquanto figura jurídica consagrada pela lei nos moldes das duas grandes correntes doutrinárias atrás mencionadas. O “three-step test” encontra-se formulado pela primeira vez nos trabalhos da Conferência de Revisão da Convenção de Berna que teve lugar em Estocolmo em 1967 e na qual foi aprovado um novo parágrafo a introduzir no art. 9º: “Fica reservada às legislações dos países da União a faculdade de permitir a reprodução das referidas obras, em certos casos especiais, desde que tal reprodução não prejudique a exploração normal da obra nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses do autor”. E os trabalhos da mesma Conferência de Estocolmo exemplificavam, procurando fornecer uma ordem lógica de interpretação desta norma: “Se for entendido que a reprodução conflitua com a normal exploração da obra, a reprodução não é permitida. Se for entendido que a reprodução não entra em conflito com a normal exploração da obra, o passo seguinte será considerar se essa mesma reprodução causa um prejuízo não razoável aos legítimos interesses do autor; e apenas se não for esse o caso, será possível, em certas situações especiais, introduzir uma licença compulsória, ou mesmo, permitir a utilização sem qualquer pagamento ao autor”. É da conjugação interpretativa deste art. 9 da Convenção de Berna (na revisão que lhe foi dada pela Conferência de Estocolmo de 1967 e mantida pela Conferência de Paris de 1971) com o art. 75º do CDADC que deve resultar a leitura da faculdade de introduzir limites ao direito de autor mas também os termos da imposição ao legislador nacional de reconhecer os limites a essas limitações. O “three-step test” deve ser entendido em termos imperativos e de coerência do sistema pelo legislador nacional que pretende introduzir na sua ordem jurídica uma qualquer limitação ao direito de autor. Ao contrário do que parte da doutrina entende, este mecanismo não corresponde apenas a uma salvaguarda internacionalmente convencionada do direito de autor mas a um princípio fundamental da ordem jurídica a que o legislador nacional deve obedecer. Nos termos deste modelo o processo de construção de qualquer limitação do direito de autor deve realizar-se gradualmente através de uma sucessiva ponderação da não violação dos elementos essenciais do direito de autor17. Assim o primeiro passo corresponde à regra básica de que as limitações só são permitidas em casos especiais. Isto significa que uma norma que vise uma generalizada utilização livre da obra intelectual – tese hoje defendida por muitos no âmbito da difusão com recurso a meios digitais e à Internet – está em contradição com o 17
Cfr. M. SENFTLEBEN, op. cit., pp. 283.
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Direito Internacional da Propriedade Intelectual e com as normas que presidem ao reconhecimento generalizado da protecção da obra intelectual em benefício do seu autor mas também com as bases do novo modelo social e económico. O segundo passo espelha a regra segundo a qual nenhuma limitação pode ser introduzida se, com a mesma, vier a ser inviabilizada a exploração normal da obra. Este passo não corresponde nem se ultrapassa no quadro de uma lógica de remuneração mandatória do direito de autor. Deve antes ser entendida como um critério base que é ou não preenchido e, não o sendo, a limitação deve ser rejeitada pelo legislador nacional. O terceiro passo reflecte a natureza patrimonial do direito de autor e a construção do art. 9º da Convenção de Berna e expressa com clareza como deve ser alcançado o equilíbrio de interesses. Se o prejuízo for “injustificado” então existe um “legítimo interesse do autor” em impedir a utilização livre da obra. Mas, uma vez verificados os dois primeiros critérios, o legislador pode considerar a possibilidade de tornar lícita, sem o consentimento do autor, a utilização da obra mesmo contra a vontade e o interesse do autor desde que seja possível providenciar uma remuneração equitativa, elemento essencial da consagração legal de uma limitação. Ao longo destas linhas procurei chamar a atenção para um elemento constitutivo da própria natureza da limitação ao direito de autor: o reconhecimento deste em termos que vão para lá do ordenamento jurídico e que reflectem uma dada consciência social, histórica e juridicamente sedimentada. A alteração do modelo económico resultante do desenvolvimento tecnológico e o aparecimento de um outro plano da economia global que assenta na economia virtual e na sociedade da informação pode, em tese, significar uma alteração da apreensão social do direito de autor e consequentemente da utilização livre da obra. Esse será o pressuposto necessário para permitir ou impedir que a mesma tenha uma mais ampla consagração legal. Lisboa, Maio de 2010
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Direito de Autor e Comércio Electrónico: aspectos internacionais
DIREITO DE AUTOR E COMÉRCIO ELECTRÓNICO: ASPECTOS INTERNACIONAIS 1 Dário Moura Vicente2 I A exploração de obras e prestações protegidas pelo Direito de Autor mediante a sua colocação em linha à disposição do público constitui hoje uma das mais relevantes formas de comércio electrónico. Essa actividade suscita, no entanto, complexos problemas sempre que, como frequentemente sucede, transcende as fronteiras de um só país. Suponhamos, a fim de exemplificar, que uma empresa coloca num sítio Internet, de que é titular, interpretações de obras musicais fixadas em fonogramas por artistas célebres nos anos cinquenta, as quais podem ser descarregadas contra pagamento nos computadores pessoais dos utentes desse sítio. Pergunta-se: a) Pode fazê-lo sem autorização do titular dos direitos conexos sobre essas interpretações? b) E pode o respectivo utente fazer o descarregamento desses ficheiros para uso privado sem autorização do titular de direitos? c) Se essa actividade for levada a cabo sem autorização, pode o provedor de serviços de Internet que transportou e armazenou os ficheiros na rede ser chamado a responder pelos danos sofridos pelo titular de direitos autorais? Todas estas questões são de difícil resposta perante o Direito interno. Mas a dificuldade agrava-se quando os utentes do sítio Internet em causa acedem a ele a partir de países estrangeiros, para onde a informação em causa tem de ser transportada, ou quando o provedor de serviços de Internet que transportou ou armazenou essa informação se encontra estabelecido no estrangeiro. É que frequentemente as leis dos países com os quais as referidas situações 1 Conferência proferida na Universidade Lusíada de Lisboa, no Colòquio “Direito de Autor e Sociedade de Informação. Perspectiva no início do Séc. XXI”, em 6 de Novembro de 2009. 2 Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
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se encontram conexas apresentam soluções contraditórias para as referidas questões; o que suscita o problema de saber qual delas deverá ser aplicada. Assim, por exemplo, na Europa a interpretação e a fixação em fonograma de uma obra musical feita em 1958 encontra-se hoje no domínio público, podendo por isso ser livremente colocada em rede à disposição do público. Já nos Estados Unidos os direitos sobre fixações de interpretações musicais duram actualmente 95 anos, carecendo por isso a colocação em rede, na hipótese mencionada, de autorização do titular de direitos. Por outro lado, na Comunidade Europeia reconhece-se a liberdade de uso privado; mas esta é limitada a certos casos especiais, que não atinjam a exploração normal da obra e não causem prejuízo injustificado aos interesses legítimos do titular de direitos. Diferentemente, nos Estados Unidos utiliza-se, no mesmo contexto, o conceito de fair use, bastante mais maleável. Além disso, neste país a responsabilidade dos provedores de serviços de Internet é excluída desde que os mesmos não tenham conhecimento efectivo (actual knowledge) da ilicitude da informação que transportam ou armazenam, enquanto que Portugal se exige ainda, para esse efeito, que os referidos sujeitos não devessem, em face das circunstâncias, ter consciência do carácter ilícito da informação em causa. II Como é bom de ver, é vastíssimo o alcance social e económico dos referidos problemas. Da sua resolução em termos satisfatórios depende não só a viabilidade económica do comércio electrónico, mas também a própria subsistência das denominadas indústrias do copyright. Compreende-se assim que sobre eles hajam incidido nos últimos anos diversos instrumentos internacionais e actos de Direito Comunitário, que procuraram harmonizar as legislações nacionais sobre a matéria. Foi esse o objectivo, nomeadamente, dos denominados Tratados Internet, celebrados em Genebra em 1996 sob a égide da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI): o Tratado Sobre Direito de Autor e o Tratado Sobre Interpretações ou Execuções e Fonogramas. Consagrou‑se no primeiro deles, como direito exclusivo do autor, além de outros, o de autorizar a comunicação da obra ao público por fio ou sem fio, incluindo a sua colocação à disposição do público (making available to the public) onde e quando os membros deste escolherem (art. 8). Em consequência disso, não pode o titular de um sítio Internet, por exemplo, fornecer acesso em linha a obras literárias ou musicais sem o consentimento dos titulares dos direitos autorais sobre as mesmas. Acolheu-se assim uma nova faculdade jusautoral, que se distingue da de comunicação da obra ao público, por inexistir na situação por ela visada a simultaneidade entre a emissão e a recepção da obra que é característica desta forma de utilização; e por se tratar aqui, além disso, de uma transmissão interactiva. 20
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No segundo dos referidos Tratados conferiram‑se aos artistas direitos análogos aos que são reconhecidos no Tratado de Direito de Autor aos criadores de obras intelectuais, maxime o de autorizar a colocação à disposição do público das suas interpretações ou execuções fixadas em fonogramas (art. 10); e estenderam ‑se os direitos dos artistas aos produtores de fonogramas, mediante a criação de um novo direito de colocar fonogramas à disposição do público. A 22 de Maio de 2001, foi aprovada a Directiva comunitária 29/2001/ CE, sobre o direito de autor e os direitos conexos na sociedade de informação. Este acto comunitário visou dar execução no âmbito da Comunidade Europeia os Tratados da OMPI de 1996; mas foi muito além do que estes dispõem, pois, contrariamente ao que o seu título inculca, não se limitou a regular a utilização de obras e prestações no ambiente digital, estatuindo também acerca da sua utilização por outros meios; e inseriu ainda uma minuciosa regulamentação das excepções e limitações aos direitos exclusivos nela consagrados, que os Tratados da OMPI omitem. A Directiva consagrou, no art. 2.º, um amplo direito de reprodução, mediante o qual se teve manifestamente em vista abranger as reproduções digitais na memória dos computadores. O art. 5.º, n.º 1, acrescentou, porém, que estão ex cluídos do direito de reprodução previsto no artigo 2.º os actos de reprodução temporária que sejam transitórios ou episódicos e que constituam parte integrante e essencial de um processo tecnológico cujo único objectivo seja permitir: «a) Uma transmissão numa rede entre terceiros por parte de um intermediário, ou b) Uma utilização legítima de uma obra ou outro material a realizar, e que não tenham, em si, significado económico». Esta, portanto, a medida em que o legislador comunitário entendeu subtrair ao direito de reprodução os denominados caching e browsing: estes são livres enquanto se destinarem a assegurar uma transmissão em rede ou uma utilização legítima e não tiverem em si significado económico. Tal como os Tratados da OMPI, a Directiva consagra ainda, em benefício dos autores, artistas e produtores de fonogramas, o direito exclusivo de autorizar a colocação de obras e prestações à disposição do público. Também a regulação do comércio electrónico foi objecto de tentativas de harmonização à escala internacional e europeia. Estão no primeiro caso a Lei ‑Modelo da Comissão das Nações Unidas para o Direito do Comércio Internacional (CNUDCI) Sobre o Comércio Electrónico, de 1996, e a Convenção das Nações Unidas Sobre o Uso de Comunicações Electrónicas nos Contratos Internacionais, de 2005. Na Comunidade Europeia, a harmonização de legislações neste domínio foi levada a cabo através da Directiva 2000/31/CE, sobre o comércio electrónico, de 17 de Julho de 2000. A Directiva propõe‑se, nos termos do seu considerando 7, estabelecer «um quadro legal claro, que abranja certos aspectos legais do comércio electrónico no mercado interno», por forma a «garantir a segurança jurídica e a confiança do consumidor», bem como, de acordo com o considerando 8, «criar um enquadramento legal destinado a assegurar a livre circulação dos serviços da sociedade da informação entre os Estados‑Membros». Para tanto, estabeleceu um Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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princípio geral de liberdade de celebração de contratos por meios electrónicos, que os referidos instrumentos internacionais também acolhem; e isentou de responsabilidade os prestadores intermediários de serviços da sociedade da informação, sob certos pressupostos enunciados na Directiva. III Só em limitada medida, porém, os instrumentos normativos referidos lograram assegurar a harmonização de legislações através deles visada. Assim, o Tratado da OMPI Sobre Direito de Autor omite qualquer regulamentação específica da reprodução de obras literárias e artísticas em suporte digital – mormente a que é levada a cabo tendo em vista o seu armazenamento nos servidores ligados a redes de comunicações electrónicas e a sua visualização nos terminais conexos com estas. É certo que numa declaração anexa ao Tratado se afirma que o direito de reprodução consignado no art. 9, n.º 1, da Convenção de Berna Relativa à Protecção das Obras Literárias e Artísticas, assim como as excepções a esse direito nele permitidas, se aplicam plenamente à utilização de obras em formato digital; e que o armazenamento de uma obra protegida em suporte digital num meio electrónico constitui uma reprodução na acepção da mencionada regra da Convenção de Berna. Mas tal não impede os Estados partes do Tratado de disciplinarem autonomamente a reprodução de obras em suporte digital. Por seu turno, no Tratado Sobre Interpretações ou Execuções e Fonogramas a duração dos direitos conexos não é uniformizada: o art. 17 limita-se a estabelecer para eles uma duração mínima de 50 anos, contados, no caso dos artistas intérpretes ou executantes, a partir do fim do ano em que a interpretação ou execução foi fixada num fonograma e, no caso dos produtores de fonogramas, a partir do fim do ano em que o fonograma tenha sido publicado. Em consequência disso, a duração da protecção conferida às fixações de interpretações de obras musicais é hoje muito variável (50 anos na Europa comunitária e 95 nos Estados Unidos, como se disse acima). De limitações análogas enferma a Directiva 2001/29/CE. Assim, a referida excepção ao direito de reprodução pelo que respeita às utilizações que «em si» não tenham significado económico, consignada no n.º 1 do art. 5.º, está subordinada ao crivo do n.º 5 do mesmo preceito, que consagra a chamada regra dos três passos: a excepção em causa só se aplica em casos especiais, que não entrem em conflito com uma exploração normal da obra ou outro material e não prejudiquem irrazoavelmente os legítimos interesses do titular do direito. Trata ‑se, como é bom de ver, de um regime que, pela indefinição dos termos utilizados, é propenso a originar divergências na aplicação que dele for feita pelos tribunais nacionais. É, desde logo, muito problemático determinar o que são reproduções que não têm «em si» significado económico, pois toda a reprodução assume, em princípio, significado económico (sobretudo se for levada a cabo em larga escala, 22
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como sucede com as obras disponíveis em rede). E as dificuldades adensamse em virtude da aplicação da regra dos três passos. Admitem‑se além disso, nos n.ºs 2 e 3 do art. 5.º da Directiva, diversas outras excepções e limitações (em número de vinte) aos direitos de reprodução, de comunicação ao público e de colocação de obras e outros bens à disposição do público. Ao contrário, porém, da excepção constante do n.º 1, estas são facultativas. Donde resultou que, apesar da harmonização visada pela Directiva, subsistem neste particular importantes disparidades entre as leis dos Estados-Membros da Comunidade Europeia. Sucede, por outro lado, que nem a Directiva nem os referidos Tratados disciplinam questões como a titularidade do direito de autor, o reconhecimento de direitos morais sobre obras literárias e artísticas e a gestão de direitos – matérias em que os Direitos nacionais dos Estados‑Membros da Comunidade Europeia diferem ainda substancialmente uns dos outros. E essas diferenças sobem de grau se confrontarmos os Direitos europeus com aquele que vigora nos Estados Unidos da América quanto a questões como a duração da protecção jusautoral, o âmbito e os pressupostos desta (v.g. no tocante à originalidade das obras protegidas), os limites a que a mesma se sujeita e a admissibilidade de renúncia a estes, a atribuição de direitos sobre obras feitas por conta de outrem ou ao abrigo de contrato de trabalho, etc. Quanto ao comércio electrónico, refira-se que, apesar da harmonização de legislações induzida pela Directiva 2000/31/CE, de 8 de Junho de 2000, também não é uniforme o regime dos contratos celebrados por meios electrónicos, nem o da responsabilidade dos fornecedores de bens e serviços em linha, consagrado nas leis nacionais de transposição da Directiva. Senão vejamos. Tanto a Directiva como as leis nacionais de transposição disciplinam o processo de formação do contrato concluído por meios electrónicos. Mas fazem ‑no em termos que divergem substancialmente nalguns pontos capitais. Assim, perante a lei portuguesa, «a oferta de produtos ou serviços em linha representa uma proposta contratual quando contiver todos os elementos necessários para que o contrato fique concluído com a simples aceitação do destinatário» (art. 32.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 7/2004, de 7 de Janeiro de 2004), não tendo significado para a determinação do momento da conclusão do contrato o mero aviso de recepção da ordem de encomenda (ibidem, n.º 2). Outras leis, ao invés, estabelecem que o contrato se considera concluído quando o destinatário do serviço houver recebido, por via electrónica, da parte do prestador do serviço, o aviso de recepção da aceitação do destinatário do serviço: é o caso da lei luxemburguesa relativa ao comércio electrónico. Por outro lado, de acordo com a lei portuguesa, a encomenda feita on line apenas se torna definitiva, regra geral, com a sua confirmação pelo destinatário do serviço, dada na sequência do aviso de recepção enviado pelo prestador de serviços (art. 29.º, n.º 5): é o sistema dito do duplo clique, também adoptado em França. Diferentemente, porém, a legislação espanhola, assim como italiana e a inglesa, apenas exige uma confirmação da aceitação por parte do oferente de bens ou serviços em rede, maxime através de Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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um aviso de recepção a enviar por correio electrónico ao adquirente dos bens ou serviços em causa. Outro domínio objecto de harmonização pela Directiva é, como se disse atrás, a responsabilidade dos prestadores intermediários de serviços da sociedade da informação. A este respeito, o mencionado diploma legal português estabelece, no art. 16.º, n.º 1, que o prestador intermediário de serviços de armazenagem em servidor só é responsável, nos termos comuns, pela informação que armazena se tiver conhecimento de actividade ou informação cuja ilicitude for manifesta e não retirar ou impossibilitar logo o acesso a essa informação. Logo, porém, acrescenta, no n.º 2 da mesma disposição, que há também responsabilidade civil sempre que, perante as circunstâncias que conhece, o prestador do serviço tenha ou deva ter consciência do carácter ilícito da informação. Ora, neste ponto a lei portuguesa vai além do exigido pela Directiva, pois esta apenas impõe a responsabilização do prestador intermediário de serviços quando este tenha conhecimento efectivo da actividade ou informação ilegal ou de factos ou circunstâncias que a «evidenciem» (art. 14.º, n.º 1, alínea a)) ou quando o prestador, tendo tomado conhecimento da ilicitude, não actue com diligência no sentido de retirar ou impossibilitar o acesso às informações (idem, alínea b)). O mesmo se conclui do confronto do art. 16.º do Decreto-Lei n.º 7/2004 com disposições homólogas constantes das leis de outros Estados‑Membros da Comunidade. Tal o caso, por exemplo, da lei espanhola do comércio electrónico (n.º 34/2002, de 11 de Julho de 2002), que isenta de responsabilidade os prestadores de serviços da sociedade da informação sempre que estes não tenham conheci mento efectivo de que a actividade ou informação armazenada é ilícita ou de que lesiona bens ou direitos de um terceiro. IV Do que dissemos até aqui resulta, em suma, que, apesar da harmonização de legislações nacionais ensaiada pelos instrumentos internacionais e comunitários mencionados, não foi suprimida a diversidade das legislações nacionais no tocante às matérias que deles são objecto; pelo que se mantém, em larga medida, a necessidade de determinar a lei aplicável a estas matérias em situações interna cionais. Ora, que lei deve ser essa? Antes de ensaiarmos uma resposta a este quesito, importa reflectir sobre os interesses em jogo. Estes são de vária ordem, neles se reflectindo de alguma sorte o conflito intrínseco com que se debate a denominada sociedade da informação. Com efeito, esta assenta num espaço de liberdade – a Internet –, no qual se facultam ao público recursos informativos numa escala sem precedentes na História da humanidade e se possibilita a cada um a expressão e a divulgação quase instantânea do seu pensamento através de um meio de comunicação de 24
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âmbito universal. No entanto, o risco de uma hiper-regulação da Internet, por via da aplicação à actividade através dela desenvolvida, por tribunais de diferentes países, de uma multiplicidade de leis com os conteúdos mais diversos, é sus ceptível de coarctar aquela liberdade, restringindo o fluxo da informação através das fronteiras e o acesso do público a esta. Em especial, a atribuição de efeitos, no Estado do foro, a exclusivos de utilização de informação conferidos em países estrangeiros a determinadas pessoas, pela aplicação da lei desses países em lides instauradas naquele primeiro Estado, tem como efeito o cerceamento da disponibilização em rede de tal informação a partir desse Estado, restringindo em consequência disso a liberdade de actuação nele reconhecida aos particulares. Por outro lado, é hoje geralmente reconhecido que as tecnologias da informação e da comunicação oferecem novas oportunidades de desenvolvimento económico e social, em virtude, nomeadamente, das transformações que possibilitam nos processos de produção, no comércio, na criação intelectual, na investigação científica, na educação e até na actividade cívica. O efectivo aproveitamento dessas oportunidades pressupõe o favorecimento da iniciativa privada nacional e internacional e da competição empresarial. Estas, por seu turno, reclamam um quadro jurídico apropriado, que, além do mais, assegure a livre circulação dos serviços da sociedade da informação através das fronteiras. A preservação da liberdade individual, em qualquer das vertentes consideradas, é, pois, o primeiro interesse a acautelar na determinação da lei aplicável. Mas semelhante desiderato não pode, evidentemente, ser prosseguido descurando a protecção da ordem pública, dos consumidores e de outros in teresses sociais relevantes, os quais poderão impor certas restrições à liberdade de actuação neste domínio. V Não tem faltado quem sustente que o denominado ciberespaço é um meio juridicamente autónomo em relação aos Estados, sendo, por conseguinte, ilegítima ou inviável toda a regulação estadual da Internet. Na lógica desta orientação, as relações jurídicas estabelecidas por meio daquela rede de comunicações deveriam subtrair‑se às leis estaduais, submetendo-se exclusiva ou preferentemente a códigos de conduta elaborados por associações comerciais, profissionais ou de consumidores, a codificações extra‑estaduais de princípios jurídicos ou a usos mercantis, que integrariam uma nova lex electronica ou lex mercatoria numerica. Na raiz deste debate acha‑se a questão do papel reservado ao Estado na disciplina das relações sociais, matéria que não pode ser aqui desenvolvida. Importa em todo o caso assinalar que a referida tese tem vindo ultimamente a perder terreno. Por várias razões. Em primeiro lugar, porque a sujeição do comércio electrónico a um Direito nacional não levanta, ao contrário do que inicialmente se supunha, dificuldades Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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insuperáveis. É hoje viável, com efeito, impor restrições à circulação de informação através das fronteiras mediante o recurso a dispositivos de filtragem (havendo até quem fale, a este respeito, da criação de zonas, ou zoning, no ciberespaço); e estão actualmente disponíveis programas informáticos (passwords, cookies, certificados digitais, etc.) através dos quais é possível identificar os sujeitos das transacções realizadas em linha e a sua localização espacial. A própria «arquitectura» da Internet favorece pois, como observou Lawrence Lessig, a sua regulação. Em segundo lugar, porque está por demonstrar que se haja formado um sistema normativo a que, com propriedade, se possa chamar lex electronica. E mesmo que este se tivesse constituído, não seria inquestionável a sua legitimidade enquanto fonte de regulação da matéria em apreço. Em terceiro lugar, porque, consoante vem sendo reconhecido, a «deslocalização» do comércio electrónico e a sua exclusiva sujeição a normas de fonte extra‑estadual poderia envolver prejuízo não só para os interesses públicos, da parte mais fraca e de terceiros que são tutelados através de normas imperativas de Direito estadual, mas também para a própria autonomia privada. As relações jurídicas respeitantes à produção, utilização e transmissão de informação através de redes electrónicas de comunicação não devem eximir-se, por conseguinte, à regulação estadual. O ideal de liberdade que se acha associado à Internet carece, nesta medida, de ser compatibilizado com o exercício das soberanias nacionais. Eis por que a principal dificuldade suscitada pela disciplina do comércio electrónico e das demais formas de utilização das redes electrónicas internacionais não deriva, a nosso ver, da inexistência de uma lei aplicável, mas antes da circunstância de as situações jurídicas que o integram, na medida em que transcendam as fronteiras nacionais, se acharem potencialmente sujeitas a uma pluralidade de leis nacionais. Poderia supor-se que este problema se resolveria através de licençastipo, destinadas a aplicarem-se universalmente, como as denominadas licenças Creative Commons, que adquiriram recentemente certa projecção internacional. Estas, porém, não afastam o problema da lei aplicável. Trata-se, na verdade, de autorizações de âmbito mundial para certas utilizações de obras protegidas pelo Direito de Autor (v.g. a criação de obras derivadas a partir delas), as quais no entanto se encontram sujeitas a determinadas restrições (por exemplo, no tocante à utilização comercial ou à aposição de medidas tecnológicas de protecção à obras derivadas produzidas a partir da obra em questão). A autorização dada cessa em caso de violação dos termos da licença; e é apenas concedida pelo tempo correspondente à vigência do direito de autor sobre a obra em causa. Por aqui se vê que as licenças em questão não funcionam num vazio legal, antes se sujeitam a um quadro regulador, definido pelo Direito de Autor, o qual determinará, por exemplo, se a obra em questão é protegida (o que constitui, obviamente, um pressuposto da licença), em que termos o é (ou seja, quais os usos reservados ao seu criador, que este pode autorizar ou não a terceiros), 26
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quem é o titular do direito de autor (o único que pode licenciar o uso da obra), por quanto tempo aquela protecção vigora (o que é essencial para determinar a própria duração da licença), quais as utilizações livres por terceiros (que não podem ser vedadas pelo licenciante), etc. Mesmo as licenças Creative Commons carecem, pois, a fim de serem eficazes, de se conformar com a lei reguladora dos direitos autorais sobre as obras a que se referem, sobretudo quando impõem restrições à utilização dessas obras por terceiros. VI Vejamos então qual a lei aplicável às situações em apreço. Pelo que respeita à responsabilidade dos prestadores de serviços da sociedade da informação e aos contratos por estes celebrados, o art. 3.º, n.º 1, da Directiva 2000/31/CE – certamente a disposição mais controversa deste acto comunitário – consagra o princípio da aplicação da lei do país onde os prestadores se encontram estabelecidos: a lex originis. Aí se dispõe, na verdade, que «cada Estado-Membro assegurará que os serviços da sociedade da informação prestados por um prestador estabelecido no seu território cumpram as disposições nacionais aplicáveis nesse EstadoMembro que se integram no domínio coordenado». O fundamento desta regra encontra‑se enunciado no considerando 22 da Directiva 2000/31/CE, de acordo com o qual «[o] controlo dos serviços da sociedade da informação deve ser exercido na fonte da actividade, a fim de garantir uma protecção eficaz dos interesses gerais». E acrescenta‑se no mesmo lugar: «a fim de garantir a eficácia da livre circulação de serviços e a segurança jurídica para os prestadores e os destinatários, esses serviços devem estar sujeitos, em princípio, à legislação do Estado‑Membro em que o prestador se encontra estabelecido». Com efeito, a aplicabilidade aos serviços em apreço da lei do país do estabelecimento do respectivo fornecedor, na medida em que dispensa as empresas de se informarem acerca do teor das leis dos países de destino dos mesmos, bem como de conformarem a sua actividade com regimes porventura mais rigorosos do que o que vigora naquele país, facilita, pela diminuição de riscos e encargos que implica, a internacionalização da sua actividade mediante a prestação dos seus serviços em outros Estados‑Membros da Comunidade Europeia, sem presença física nos países de destino. Compreende‑se assim que o preceito mencionado seja encimado pela epígrafe mercado interno; e que esta disposição haja sido classificada pela Comissão Europeia como a pedra angular da Directiva.
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VII A competência da lex originis no domínio do comércio electrónico acha-se, no entanto, subordinada a certos limites: ela não vale, nos termos do n.º 3 do art. 3.º e do anexo à Directiva, quanto à propriedade intelectual e aos contratos celebrados por consumidores, matérias relativamente às quais outras ordens de considerações justificam a aplicação de diversas leis. Importa, pois, interrogarmo-nos sobre a lei aplicável aos direitos de autor e conexos quando a utilização dos bens que os mesmos tenham por objecto seja feita em linha. Nesta matéria, havemos de partir da regra fundamental do Direito Internacional de Autor, que o art. 5, n.º 2, da referida Convenção de Berna consagra. Nos termos dele, a lei competente para disciplinar a «extensão da protecção, bem como os meios de recurso garantidos ao autor para salvaguardar os seus direitos» é a do país para cujo território a protecção é reclamada – a lex loci protectionis – isto é, o país onde têm lugar os actos de utilização não autorizada da obra e onde, portanto, a violação do direito foi perpetrada; regra essa que deve, a nosso ver, considerar‑se extensiva à disciplina dos direitos conexos com o direito de autor. A mesma regra encontra‑se agora consignada, pelo que respeita à responsabilidade extracontratual emergente da violação dos direitos em causa, no art. 8.º, n.º 1, do Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho n.º 864/2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais («Roma II»), nos termos do qual: «A lei aplicável à obrigação extracontratual que decorra da violação de um direito de propriedade intelectual é a lei do país para o qual a protecção é reivindicada». Trata‑se, em princípio, da solução mais conforme com os interesses que dominam o regime do direito de autor e dos direitos com este conexos, bem como com a natureza destes. O direito de autor e os direitos conexos constituem, na verdade, monopólios de utilização e exploração económica, respectivamente de obras intelectuais e de certas prestações de artistas e outros sujeitos, que restringem a liberdade de comércio e o acesso do público aos bens culturais e à informação. Uma vez que esses monopólios apenas são reconhecidos pela ordem jurídica se e na medida em que tal se mostre conforme com o bem comum, está certo que cada Estado se reserve a prerrogativa de definir em que termos eles se constituem, exercem e extinguem no território sobre o qual detém poderes de soberania, assim como a faculdade de determinar o seu conteúdo e objecto e as sanções aplicáveis às respectivas violações ocorridas nesse território. De outro modo, ficaria comprometido o princípio de tipicidade a que o Direito de Autor se encontra submetido: como se sabe, só beneficiam da protecção estabelecida por este ramo do Direito os tipos de bens que se achem expressamente contemplados como tais na lei ou em outras fontes de Direito; 28
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todo o bem incorpóreo que não caiba no conceito jurídico de obra não é tutelado pelo Direito de Autor e é, por conseguinte, susceptível de ser reproduzido sem autorização de quem o criou (a menos que seja protegido pelo Direito Industrial). Ora, a tipicidade dos bens protegidos em determinado país nos termos do Direito de Autor só pode ser assegurada mediante a aplicação da lei desse país à protecção nele reclamada para certo bem. VIII Qual, porém, a lex loci protectionis quando a utilização da obra ou prestação protegida seja feita em rede? É esta uma das questões mais difíceis que a temática em apreço suscita. Não há, por enquanto, disposições legislativas sobre a matéria; e a doutrina e a jurisprudência de vários países mostram-se divididas a seu respeito. Na resolução do problema importa ter presente que a colocação da obra à dis posição do público é, como se disse acima, a principal faculdade jusautoral que aqui se encontra em jogo; e que ela é, em razão da ubiquidade da Internet, um facto complexo, que, embora se verifique tecnicamente no país onde se situa o servidor através do qual a obra é inserida na rede, tem também lugar no país ou países onde a obra fica disponível aos seus potenciais utilizadores, i. é, a partir dos quais estes podem aceder a esse servidor. O titular dos direitos sobre a obra protegida deve, por isso, beneficiar da protecção conferida pela lei de qualquer desses países, ainda que a competência de cada uma delas se cinja à violação de direitos de exclusivo ocorrida no território em que essa lei vigora – o que pode levar à aplicação distributiva de diferentes leis às lesões do mesmo direito ocorridas em diversos países. Admitimos, no entanto, que, à medida que se for concretizando a harmonização de legislações visada pela Directiva 2001/29/CE, possa justificarse, pelo que respeita a fornecedores online de conteúdos protegidos pelo Direito de Autor estabelecidos na Comunidade Europeia, a aplicação nos demais EstadosMembros da lei do país de inserção desses conteúdos na rede, sempre que este coincida com o do estabelecimento do fornecedor, como forma de incentivar a prestação em linha de serviços no domínio das obras e prestações protegidas pelo Direito de Autor e, reflexamente, de facilitar o acesso à informação e à cultura. A um resultado desta índole conduz o disposto no art. 1.º, n.º 2, alínea b), da Directiva 93/83/CEE, de 27 de Setembro de 1993, relativa à coordenação de determinadas disposições em matéria de direito de autor e direitos conexos aplicáveis à radiodifusão por satélite e à retransmissão por cabo, de acordo com o qual, no que respeita às emissões efectuadas a partir de Estados-Membros da Comunidade Europeia, se tem por verificada a comunicação ao público por satélite (e por conseguinte utilizada a obra ou prestação desse modo difundida) exclusivamente no país a partir do qual o sinal é emitido. As empresas de radiodifusão apenas têm, por conseguinte, de se conformar com as disposições Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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da lei desse país em matéria de direitos de autor e conexos. A lei aplicável será, nesta óptica, exclusivamente a do país de origem da emissão, e não a do país de recepção, ainda que perante esta última a utilização da obra fosse, no caso sub judice, ilícita (v.g. por carecer de autorização do titular de direitos). O país de origem da emissão pode também ser definido numa perspectiva organizacional, e não meramente técnica. Trata-se, de acordo com esta orientação, do país do estabelecimento do emissor em que se encontram centralizadas as suas actividades relacionadas com a emissão. Aproxima-se desta orientação, no resultado a que chegou, a sentença proferida pelo Tribunal de Grande Instance de Paris em 20 de Maio de 2008, no caso Google. A Google France, com sede em Paris, e a Google Inc., com sede na Califórnia, haviam sido demandadas perante aquele tribunal francês pela Société des Auteurs des Arts Visuels et de l’Image Fixe, uma sociedade de gestão colectiva de direito de autor sedeada em Paris, com fundamento na alegada contrafacção pelas rés de obras fotográficas pertencentes ao repertório da autora, as quais haviam sido tornadas acessíveis ao público através do motor de busca Google Images. As rés contestaram, alegando, além do mais, que a situação se integrava na excepção de fair use consagrada no Copyright Act norte-americano de 1976. O tribunal julgou a acção improcedente, por se encontrarem preenchidos, na espécie, os requisitos da excepção de fair use prevista na lei americana. Esta foi declarada aplicável ao caso, nos termos do art. 5, n.º 2, da Convenção de Berna, com fundamento em que a alegada contrafacção consistia, por um lado, na recolha de imagens e sua referenciação pelo motor de pesquisa Google Images e, por outro, no acesso ao servidor www.google.fr, sendo manifesto que esta era a actividade central e primordial da sociedade Google Inc.; e que era na sede social desta que as decisões relevantes eram tomadas e onde a actividade de motor de buscas era levada a cabo, devendo esse lugar, por conseguinte, determinar a lei aplicável ao litígio. Dois textos normativos recentes procuraram estabelecer uma solução para este problema. Referimo-nos aos «Princípios sobre o tribunal competente, a lei aplicável e o reconhecimento de sentenças em litígios transnacionais relativos à propriedade intelectual», publicados em 2008 pelo American Law Institute («Intellectual Property. Principles Governing Jurisdiction, Choice of Law, and Judgments in Transnational Disputes») e aos «Princípios para os conflitos de leis em matéria de propriedade intelectual», de que foi divulgado um preliminary draft em 2009 pelo European Max-Planck Group on Conflict of Laws in Intellectual Property («Principles for Conflict of Laws in Intellectual Property»). No § 321, n.º 1, do primeiro destes textos, admite-se que, quando uma violação de direitos intelectuais tenha carácter «ubíquo» («ubiquitous infringement»), os tribunais apliquem, no tocante à existência, validade, duração, atributos e violação desses direitos, assim como às sanções pela sua violação, a lei do Estado que possua a conexão mais estreita ou significativa com o litígio. A fim de determinar essa lei, estabelece-se no mesmo preceito que se terão em conta, por exemplo, o lugar de residência das partes, o lugar onde a relação entre estas (caso exista) se 30
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encontra centrada, o âmbito das actividades e do investimento das partes e os principais mercados para os quais as mesmas dirigem as suas actividades («When the alleged infringing activity is ubiquitous and the laws of multiple States are pleaded, the court may choose to apply to the issues of existence, validity, duration, attributes, and infringement of intellectual property rights and remedies for their infringement, the law or laws of the State or States with close connections to the dispute, as evidenced, for example, by: (a) where the parties reside; (b) where the parties’ relationship, if any, is centered; (c) the extent of the activities and the investment of the parties; and (d) the principal markets toward which the parties directed their activities»). No n.º 2 do mesmo preceito, determina-se todavia que, se uma das partes demonstrar que a solução do caso à face de qualquer das leis em presença difere da que resulta da lei tida como aplicável ao abrigo do n.º 1, o tribunal deverá «ter em consideração» essa diversidade de soluções na decisão que proferir («Notwithstanding the State or States designated pursuant to subsection (1), a party may prove that, with respect to particular States covered by the action, the solution provided by any of those States’ laws differs from that obtained under the law(s) chosen to apply to the case as a whole. The court must take into account such differences in fashioning the remedy»). Por seu turno, o art. 3:603, n.º 1, dos Princípios do European Max-Planck Group estabelece que nos litígios respeitantes a infracções cometidas através de meios de comunicação ubíquos, como a Internet, o tribunal pode aplicar a lei ou as leis do Estado ou dos Estados que tenham a conexão mais estreita com a infracção, se se puder considerar que esta última teve lugar em todos os Estados onde os sinais foram recebidos («In disputes concerned with infringement carried out through ubiquitous media such as the Internet, the court may apply the law or the laws of the State or the States having the closest connection with the infringement, if the infringement arguably takes place in every State in which the signals can be received»). Em ordem a determinar aquela lei, os tribunais deverão tomar em consideração, de acordo com o n.º 2 do mesmo preceito, todos os factores relevantes, em particular a residência habitual e o estabelecimento principal do infractor, o lugar onde houverem sido levadas a cabo actividades consideráveis em execução da infracção e o lugar onde o dano causado pela infracção seja tido como considerável («In determining which State has the closest connection with the infringement, the court shall take all the relevant factors into account, in particular the following: (a) the infringer’s habitual residence; (b) the infringer’s principal place of business; (c) the place where substantial activities in furthering of the infringement in its entirety have been carried out; (d) the place where the harm caused by the infringement is substantial in relation to the infringement in its entirety»). Ressalva-se contudo, no n.º 3, a hipótese de as regras aplicáveis em algum ou alguns dos Estados conexos com o litígio diferirem em aspectos essenciais da lei aplicável ao litígio nos termos do n.º 2. Se a aplicação dessas regras conduzir a decisões inconciliáveis, determina-se nesse preceito que as diferenças entre elas devem ser atendidas pelo tribunal na modelação de uma solução para o caso Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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(«Notwithstanding the law applicable pursuant to paragraph 2, any party may prove that the rules applying in a State or States covered by the dispute differ from the law applicable to the dispute in aspects which are essential for the decision. The court shall apply the different national laws unless this leads to inconsistent judgments, in which case the differences shall be taken into account in fashioning the remedy»). Observa-se em ambos estes textos uma tendência no sentido de uma certa atenuação do princípio da territorialidade do direito de autor, tendo em vista evitar a aplicação (ainda que distributiva) de uma multiplicidade de leis às mesmas situações, a que aquele princípio potencialmente conduz nas hipóteses de colocação de obras à disposição do público em rede. Para tanto, prevê-se, como regra geral, a aplicação da lei de um único Estado a estas formas de utilização de obras protegidas. O respeito devido pelas expectativas legítimas das partes terá, no entanto, levado a admitir a possibilidade de os tribunais atenderem, na decisão do caso, às regras de outra ou outras leis invocadas pelas partes, que difiram em aspectos relevantes da lei em princípio aplicável. IX Outro domínio relativamente ao qual a Directiva 2000/31/CE excluiu a aplicabilidade da lex originis é o da contratação por consumidores. Valem por isso, nesta matéria, as regras de conflitos comuns, entre as quais sobressai o art. 5.º da Convenção de Roma de 1980 Sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais. Esta, compreensivelmente, não contempla de modo expresso o problema da lei aplicável aos contratos celebrados por consumidores por meios electrónicos. Mas a situação alterar-se-á quando entrar em vigor o Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho n.º 593/2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais («Roma I»), que manda aplicar aos contratos celebrados por consumidores a lei do país em que estes tenham a sua residência habitual quando o contrato tiver sido celebrado com um profissional que, por qualquer meio, dirija as suas actividades comerciais ou profissionais para o país da residência do consumidor ou para vários países incluindo aquele país, desde que o contrato seja abrangido pelo âmbito destas actividades (art. 6.º, n.º 1). Trata-se de uma solução que já figurava, pelo que respeita à fixação da competência judiciária, no Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial e que alarga consideravelmente o leque de situações em que a lei do consumidor será aplicável ao contrato. O futuro dirá qual o impacto de semelhante solução sobre o comércio electrónico no mercado interno europeu, que alguns receiam possa conhecer certa retracção, caso as pequenas e médias empresas tenham de conformar a sua actividade com as exigências de uma multiplicidade de leis nacionais em matéria de protecção do consumidor. Um reconhecimento mais amplo da autonomia privada na definição da 32
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lei aplicável aos contratos de consumo poderia, nesta óptica, justificar-se. Neste sentido pode, além disso, aduzir-se que a solução constante do Regulamento assenta no pressuposto de que o consumidor carece ainda, na União Europeia, da protecção da lei da sua residência habitual. O facto, porém, de o regime dos contratos celebrados por consumidores se achar hoje em larga medida harmonizado – nomeadamente por força das Directivas sobre os contratos à distância, as cláusulas abusivas e a venda de bens de consumo –, permite duvidar do bem-fundado de semelhante pressuposto. X A temática em apreço entrecruza-se, como acabamos de ver, com a da integração económica regional. Nos espaços onde esta se tem concretizado, como o da União Europeia, os direitos de autor e conexos e o comércio electrónico são objecto de instrumentos normativos que visam harmonizar os regimes jurídicos nacionais; ao que não é, evidentemente, alheia a importância destas matérias para a economia europeia e a formação do mercado único. Essa harmonização não conduziu, no entanto – nem é provável que venha a conduzir –, a uma verdadeira unificação de regimes. Tão-pouco nos parece que esta seja desejável: a diversidade de modelos de solução para as mesmas questões jurídicas e a concorrência entre estes são valores que importa preservar, nomeadamente em ordem a assegurar o aperfeiçoamento e a evolução do Direito, que não raro se faz tendo em conta as soluções consagradas nas legislações estrangeiras. O desafio fundamental nesta matéria consiste, por isso, em assegurar que a preservação do pluralismo das leis nacionais no seio de espaços economicamente integrados não opere como uma barreira ao comércio electrónico. Como se verificou acima, as regras sobre a lei aplicável oscilam, no domínio em apreço, entre a atribuição de competência à lex originis e à lex destinationis – o mesmo é dizer, entre a aplicabilidade lei do país a partir do qual certos bens ou serviços são disponibilizados ao público e a daquele onde os mesmos ficam acessíveis. A necessidade de assegurar a livre prestação de serviços no mercado único, por um lado, e a redução dos custos das transacções, por outro, depõem fortemente no sentido da aplicação da primeira dessas leis. Mas nas matérias em que se têm feito sentir com particular intensidade interesses especiais, ligados à protecção dos titulares de direitos de exclusivo ou dos consumidores, é antes a aplicabilidade da lex destinationis que vemos consagrada nos instrumentos em vigor ou em preparação. A solução do problema estará, pois, na conciliação de uma harmonização de legislações que acautele estes interesses com o princípio do reconhecimento mútuo, por forma que, salvo em casos excepcionais, também nesta matéria os serviços licitamente prestados no respectivo país de origem possam ser oferecidos Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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nos demais países e territórios que integram o mercado único sem perderem as vantagens competitivas de que desfrutam no primeiro. Bibliografia sumária American Law Institute – Intellectual Property. Principles Governing Jurisdiction, Choice of Law, and Judgments in Transnational Disputes. As Adopted and Promulgated by the American Law Institute at San Francisco, California, May 14, 2007, St. Paul, MN, American Law Institute Publishers, 2008. Basedow, Jürgen, Josef Drexl, Annette Kur e Axel Metzger (orgs.) - Intellectual Property in the Conflict of Laws, Tubinga, Mohr Siebeck, 2005. Boschiero, Nerina - «Il principio di territorialità in matéria di proprietà intelletuale: conflitti di leggi e giurisdizione», AIDA, 2007, pp. 34 ss. Dessemontet, François – «Internet, la propriété intellectuelle et le droit international privé», in Katharina Boele-Woelki/Catherine Kessedjian (orgs.), Internet. Which Court Decides? Which Law Applies?, Haia, etc., Kluwer, 1998, pp. 47 ss. Drexl, Josef, e Annette Kur (orgs.), Intellectual Property and Private International Law. Heading for the Future, Oxford/Portland, Hart Publishing, 2005. Eechoud, Mireille van – Choice of Law in Copyright and Related Rights. Alternatives to the Lex Protectionis, Haia/Londres/Nova Iorque, Kluwer, 2003. European Max-Planck Group on Conflict of Laws in Intellectual Property – Principles for Conflict of Laws in Intellectual Property. Second Preliminary Draft, s.l., 2009 (disponível em http://www.cl-ip.eu). Fawcett, James, e Paul Torremans - Intellectual Property and Private International Law, Oxford, Oxford University Press, 1998. Geller, Paul Edward – «Internationales Immaterialgüterrecht, Kollisionsrecht und gerichtliche Sanktionen im Internet», GRUR Int., 2000, pp. 659 ss. — «Droit de la propriété intellectuelle, droit international privé et sanctions internet», Cahiers de Propriété Intellectuelle, n.º 12 (1999), n.º 1, pp. 227 ss. — «International Intellectual Property, Conflicts of Laws, and Internet Remedies», EIPR, vol. 22 (2000), n.º 3, pp. 125 ss. Ginsburg, Jane – «The Private International Law of Copyright in an Era of Technological Change», Rec. cours, t. 273 (1998), pp. 239 ss. Hoeren, Thomas – Internet- und Kommunikationsrecht. Praxis-Lehrbuch, Colónia, Otto Schmidt, 2008. Leible, Stefan (org.) – Die Bedeutung des Internationalen Privatrechts im Zeitalter der neuen Medien, Estugarda/Munique/Hanôver/Berlim/Weimar/Dresden, Boorberg Verlag, 2003. Lessig, Lawrence – Code and Other Laws of Cyberspace, Nova Iorque, Basic Books, 1999. Lucas, André – Aspects de droit international privé de la protection d’oeuvres et d’objets de droits connexes transmis par réseaux numériques mondiaux, Genebra, 2001 (polic.). Miguel Asensio, Pedro Alberto de – «La lex loci protectionis tras el reglamento “Roma II”», AEDIPr., 2007, pp. 375 ss. Nerenz, Jochen – Urheberschutz bei grenzüberschreitenden Datentransfers: Lex Loci Protectionis und Forum Delicti, Konstança, Hartung‑Gorre Verlag, 2000. Pinheiro, Luís de Lima – «A lei aplicável aos direitos de propriedade intelectual», RFDUL, 2001, pp. 63 ss. — «Direito aplicável à responsabilidade extracontratual na Internet»,
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O direito de colocação à disposição do público1 José Cintra Matias2 1. Introdução Quero começar por agradecer o convite à organização, na pessoa do Prof. Duarte Nogueira. É com grande honra que aqui estou. Um agradecimento especial para o Prof. Pedro Cordeiro, não só pelo apoio que me tem dado na elaboração da dissertação de mestrado, mas também por ter sido ele o responsável pela minha tomada de consciência da importância do Direito de Autor nos dias de hoje. O tema da nossa apresentação é o Direito de colocação à disposição do Público. O nosso objectivo principal é expor as razões porque cremos que o DCDP é um direito complexo com características próprias que o tornam insusceptível de ser reconduzido ao Direito de Comunicação ao Público e ao conceito que lhe subjaz, bem como a qualquer outro direito patrimonial já instituído. É fácil de ver as utilidades desta distinção: Antes de mais, a autonomização de uma faculdade patrimonial permitirá delimitar os actos específicos que lhe estão subjacentes, bem como permitir ao seu titular concretizar o princípio da independência entre as várias faculdades. Tal só será possível mediante a correcta especificação de cada uma das faculdades que permitem ao titular concretizar o seu exclusivo de exploração, exercendo o seu direito. Noutro plano, e concretamente em Portugal, mais urgente se torna definir o campo de aplicação dos vários direitos exclusivos de modo a que se possa concretizar a obrigação de certeza e determinabilidade das normas penais que sancionam uma sua violação. Numa primeira parte iremos descrever o ambiente que possibilitou a criação 1
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Conferência proferida na Universidade Lusíada de Lisboa, no Colòquio “Direito de Autor e Sociedade de Informação. Perspectiva no início do Séc. XXI”,em 6 de Novembro de 2009. Procrador-Adjunto substituto.
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de condições para a afirmação do Direito de colocação à disposição do público no âmbito legislativo internacional e nacional. Em seguida, numa segunda fase, será efectuado o recorte do direito em questão, nomeadamente através da determinação do que é colocar à disposição do público e pelo estudo da tensão existente entre o que é público e o que é privado. Por fim, concretizando o objectivo da nossa exposição, distinguiremos os vários direitos patrimoniais em sede de Direito de Autor. 2. Condições para o surgimento do Direito de Colocação à Disposição do Público O Direito de Autor nasceu e desenvolveu-se como forma de resposta a sucessivas criações tecnológicas que foram transfigurando o modo como o público passou a ter acesso às obras por si protegidas. A primeira dessas criações deu origem ao que Marshall MacLuhan denominou de Galáxia Gutenberg. Com efeito, o desenvolvimento da impressão em massa permitiu o acesso a obras que até aí estavam confinadas aos muros dos mosteiros. Mais tarde a revolução eléctrica trouxe-nos o telégrafo, o telefone e a radiodifusão, o que tornou desnecessária a deslocação física de pessoas, como até aí vinha sendo necessário. O cinema, a rádio, a televisão foram manifestações necessárias das fórmulas que se vinham formando. Foram duas as consequências fundamentais provocadas pela radiodifusão no crescimento do Direito de Autor: 1) Redefinição do Conceito de Público. O público, que até aí apenas podia aceder ao conhecimento através da deslocação a uma sala escura de cinema ou pela leitura de um livro, passou a obter o privilégio de, nas suas casas, aceder a conteúdos sonoros e/ou audiovisuais; tal como na imprensa, o público é anónimo, mas, ao contrário da imprensa, a radiodifusão permite a actualidade temporal e o acesso simultâneo de um maior número de pessoas a, consecutivamente, um superior montante de obras artísticas e literárias. 2) Outra consequência foi o surgimento de pretensões por parte de agentes que até aí pouca importância tinham no jogo do Direito de Autor: os artistas intérpretes ou executantes, os produtores de fonogramas e os organismos de radiodifusão passaram a querer uma parte do bolo dos lucros das indústrias que se iam formando e desenvolvendo com a sua colaboração, como a cinematográfica e a fonográfica. Assim, em 1971, o panorama legislativo internacional era demarcado no campo dos Direitos de Autor sobre as obras literárias e artísticas pela Convenção de Berna, revista nesse ano, e, no plano dos direitos conexos dos artistas intérpretes ou executantes, produtores de fonogramas e organismos de radiodifusão, pela 38
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Convenção de Roma de 1961. Mas já antes em 1969 tinha sido criada a ARPANET, cujo objectivo inicial seria «interligar universidades e organizações com fins militares», mas que constituiu os primórdios do que hoje conhecemos como INTERNET, rede composta de milhares de redes interligadas mundialmente, através do protocolo denominado TCP/IP (Transmission Control Protocol/Internet Protocol). A lógica de cliente-servidor é utilizada neste protocolo e transforma cada máquina ligada à rede num emissor e, em simultâneo, num receptor de dados. Podemos identificar dois momentos fulcrais na definição da Internet como «infra-estrutura padrão»3 da Sociedade da Informação: a criação do conceito de World Wide Web (WWW), em 1990, por Tim Berners-Lee, do European Laboratory for Particle Physics (CERN); e, em 1993, o lançamento de um programa chamado Mosaic X, «o qual continha muitas das características dos actuais browsers (motores de navegação), tais como o Internet Explorer», o que veio alargar o âmbito de utilização, dado que, até aí, «a Internet e a WWW estavam praticamente apenas ao serviço da comunidade científica»4. Associado a este desenvolvimento, esteve o processo de digitalização, de transformação das obras ou prestações em conjuntos binários que passaram a permitir a “virtualização” das mesmas; com a criação do formato MP3 e mais recentemente MP4, bem como com a criação dos modos de compactação de ficheiros (como os formatos “rar” e “zip”), estavam criadas as condições para tornar a INTERNET um veículo central de transmissão de obras, sejam elas, músicas, vídeos, livros. Os BBS - Bulletin Board System, os e-mails, como meios de transferência de ficheiros, rapidamente deram lugar aos sistemas de peer-to-peer (P2P). A transmissão de obras e prestações em rede tornou-se um hábito das gerações mais novas. Não se erra se se disser que grande parte dos membros da população entre os 15 e os 25 anos considera que a Internet deve ser um espaço de livre promoção e transmissão de obras, não dando relevo à necessidade de protecção pelo Direito de Autor. Perante o avolumar dos prejuízos sentidos pelos agentes do mundo autoral, logo se iniciaram esforços no sentido de inserir, no domínio internacional, normas que regulassem a transmissão em rede. Em 1991 realizou-se a primeira reunião de peritos da (OMPI) Organização Mundial da Propriedade Intelectual sobre um possível protocolo à Convenção de Berna. Todavia, no elenco dos temas propostos ainda não estava incluído o problema da transmissão em redes digitais. (Tenhamos em conta as datas atrás referidas de criação da WWW e o insuficiente desenvolvimento dos “browsers”, o que resultava num diminuto grau de consciência para os verdadeiros problemas adjacentes à transmissão de ficheiros). Ascensão, José de Oliveira, Estudos sobre Direito da Internet e da Sociedade da Informação, Almedina, 2001, pág. 85 4 Akester, Patrícia, O Direito de Autor e os Desafios da Tecnologia Digital, Principia, 2004, pág. 202 3
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Em Setembro de 1992, decidiu-se pela continuação dos trabalhos do comité de peritos para a revisão de Berna e criou-se o Comité para a Criação de um Novo Instrumento para a protecção dos direitos dos produtores de fonogramas e dos artistas intérpretes ou executantes (deixando de fora os Organismos de radiodifusão, relativamente à CR). Mas foi no seio das reuniões conjuntas dos dois comités que o problema das transmissões digitais foi tratado. As principais foram realizadas em Setembro de 1995 e Fevereiro e Maio de 1996. 3. Os modelos de controlo da difusão de obras na Internet As questões em debate eram as seguintes: Será que os Direitos Patrimoniais já concedidos pela Convenção de Berna e pela Convenção de Roma seriam aplicáveis à transmissão em rede na INTERNET? Quer a resposta seja negativa ou não, como empreender o controlo de tais actos? Começando por abordar a segunda interrogação, devemos referir que as respostas para fornecer modelos de controlo que foram sendo apresentadas foram as seguintes: Através do Direito de Reprodução, sendo necessária a autorização do titular logo à partida, de forma a impedir a gravação no disco rígido do computador? Ou ainda através do direito de reprodução, controlando, antes, a saída, o descarregamento, o download da rede? Ou, como era proposto pelos EUA (e pela União Europeia numa primeira fase no seu “Livro Verde sobre o Direito de Autor e os Direitos Conexos na Sociedade da Informação”), simplesmente operando-se a alteração do Direito de Distribuição de exemplares (que requer uma materialização da obra), de modo a abarcar as transmissões imateriais? Repare-se que o conceito de Direito de Distribuição já incluía a expressão “making available” – tornar disponível, havendo apenas que afinar o conceito relativamente ao meio de transmissão imaterial. Ou então através da aplicação dum direito geral de transmissão por cabo, tese do agrado do Governo Australiano? Aqui a solução centrava-se no acto de transmissão. Ou instituindo-se um Direito Geral de comunicação? Presente nos espíritos das várias delegações estava, igualmente, a teoria defendida por Mihaly Ficsor, denominada de “open umbrella”. Segundo esta teoria do “guarda chuva aberto” dever-se-ia optar por uma definição tão neutral quanto possível. Neutral na medida em que não deveria conter expressões especificamente tecnológicas (não deveria haver referência sequer ao digital), nem deveria haver uma inclinação do legislador para a adopção da qualificação
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jurídica do acto visado5. A 20 de Dezembro de 1996 foram adoptados pela Conferência Diplomática de Genebra os Tratados da OMPI sobre Direito de Autor (TODA/WCT) e sobre Interpretações ou Execuções e Fonogramas (TOIEF/WPPT), inserindo o DCDP a uma escala global internacional. Para esta nova redacção foi fundamental o papel da União Europeia, que no Seguimento ao Livro Verde sobre o Direito de Autor e os Direitos Conexos na Sociedade da Informação, em Novembro de 1996, redigiu uma proposta muito similar à adoptada a final, no sentido de se instituir um Direito Geral de Comunicação que preenchesse os vazios da Convenção de Berna e onde se incluísse a colocação à disposição do Público. 4. O Artigo 8.º do TODA/WCT O TODA/WCT adoptou a seguinte redacção do Art.º 8.º: “Sem prejuízo das disposições dos artigos 11 l) (ii), 11 bis 1) i) e (ii), 11 ter 1) (ii), 14 1) (ii) e 14 bis 1) da Convenção de Berna, os autores de obras literárias e artísticas gozam do direito exclusivo de autorizar qualquer comunicação ao público das suas obras, por fio ou sem fio, incluindo a colocação à disposição do publico das obras, de maneira que membros do público possam ter acesso a estas obras desde um lugar e num momento que individualmente escolherem” Vamos analisar o artigo passo a passo: i. Primeira Parte do artigo: “Sem prejuízo das disposições dos artigos 11 l) (ii), 11 bis 1) i) e (ii), 11 ter 1) (ii), 14 1) (ii) e 14 bis 1) da Convenção de Berna» ii. Segunda parte do Artigo: «os autores de obras literárias e artísticas gozam do direito exclusivo de autorizar qualquer comunicação ao público das suas obras, por fio ou sem fio»; iii. Terceira Parte do Artigo: «incluindo a colocação à disposição do publico das obras, de maneira que membros do público possam ter acesso a estas obras desde um lugar e num momento que individualmente escolherem» Com a primeira parte do artigo impediu-se a instituição de um Grande Direito de Comunicação ao Público mantendo-se inalterados os regimes dos artigos referidos. De facto, uma das preocupações da Conferência era preencher os vazios deixados pela Convenção de Berna e a instituição de um direito de comunicação de carácter geral seria o caminho mais eficaz. E que vazios eram estes? Dois tipos de vazio se podem perfilar: a) Quanto às obras abrangidas - o direito de comunicação ao público de Berna só abrange as obras dramáticas, dramático - musicais e musicais, a 5
Para uma descrição da teoria denominada de Open Umbrella ver: Ficsor, Mihály, The Law of Copyright and the Internet – The 1996 WIPO Treaties, their Interpretation and Implementation, Oxford, 2002, pág. 208, §4.87.
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recitação, as adaptações ou reprodução cinematográficas de uma obra ou a obra cinematográfica. Segundo alguns autores este vazio foi preenchido pelo art.º 8.º do TODA/WCT, passando a 2.ª parte do artigo a abranger esses espaços que a CB não cobria6. b) Já o segundo vazio seria discutível. Para quem entende que a CB já podia abrigar a transmissão digital, este vazio não se verificava. Segundo alguns autores este direito já seria aplicável ao acto de colocar à disposição do público. A transmissão por fio já permitiria este acolhimento. Desta forma, a colocação à disposição do público poderia ser englobado pelo Direito de comunicação ao público da CB. Todavia, entendemos que os requisitos do Art.º 31 da Convenção de Viena dos Tratados não se encontram preenchidos. A inexistência de qualquer prática subsequente nesse sentido e, principalmente, o facto de na revisão de Paris a internet ainda ser, na altura, um sonho distante fazem-nos crer que o DCDP não estaria abrangido pela CB. Ideia reforçada pelo facto de os Tratados Internet não se terem limitado a invocar uma interpretação dos artigos da CB, mas a inserir expressamente a descrição de um novo direito. E esta nova inserção era permitida, de acordo com o art. 20 da CB, porque ampliava os direitos já instituídos sem contrariar Berna. A terceira parte do artigo incorpora o DCDP. A Segunda Parte terá sido redigida de forma a frisar que o DCDP é um Sub - Direito do Direito de Comunicação ao Público? Acolher o DCDP no Direito de Comunicação ao Público foi sem dúvida uma das intenções, frustrando-se, aparentemente, a neutralidade jurídica qualificativa defendida pela tese de Ficsor. Todavia, de salientar que este “guarda-chuva meio aberto” poderá ser totalmente expandido através da apreciação da declaração interpretativa feita pela delegação dos EUA, à qual não foi efectuado nenhum tipo de contestação. O representante dos EUA vincou o seu entendimento de que os direitos contidos nos artigos 10 do projecto do WCT/TODA – art.º 8.º no texto final - e nos artigos 11 e 18 do projecto do WPPT/TOIEF – respectivamente, art.os 10.º e 14 do texto final - «poderiam ser implementados pelas leis nacionais através da aplicação de um qualquer direito exclusivo, mesmo que seja através de outro direito distinto do direito de comunicação ao público ou do direito de colocação à disposição do público, ou através da combinação de direitos exclusivos, desde que os actos descritos nos artigos referidos sejam cobertos por esses artigos»7. Esta declaração, que não foi comentada por nenhuma delegação, explanava a tese do “guarda – chuva “de Ficsor e suportava igualmente a ideia inicial dos EUA de não realizarem qualquer alteração aos direitos concedidos na sua legislação nacional, aproveitando o direito de distribuição já aí contido. E é com base neste entendimento que os EUA têm continuado a aplicar o 6
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Ricketson, Sam/ Ginsburg, Jane, International Copyright and Neighbouring Rights – The Berne Convention and Beyond, 2006, Vol I, cap. 12, págs. 745 e 746, §12.56. Documento CRNR/DC/102, pág. 41, §301. Disponível no sítio: http://www.wipo.int/ mdacsorchives/.
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seu Direito de Distribuição às transmissões interactivas digitais. Os artigos 10 e 14 do TOIEF/WPPT trazem-nos menos problemas, dado que aí não há qualquer alusão à incorporação do DCDP num Direito de Comunicação ao Público. 5. Transposição do DCDP a. União Europeia Os art.os 8.º do TODA, 10 e 14 do TOIEF, foram transpostos para as várias ordens jurídicas dos Estados Membro da União Europeia através da obrigatória transposição da Directiva 2001/29/CE, a qual continha no seu art.º 3, n.º 1 o DCDP dos Autores e no seu n.º 2 o DCDP para os artistas intérpretes ou executantes, produtores de fonogramas e, inovando relativamente ao TOIEF, concedendo igual direito exclusivo aos organismos de radiodifusão e aos produtores de primeiras fixações de filmes. A primeira parte do n.º 1 do art.º 3.º da Directiva Sociedade da Informação concedeu aos autores um Direito Geral de comunicação ao público, englobando todas as formas de transmissão imaterial, incluindo a radiodifusão (ver considerando 23 da Directiva). A segunda secção do n.º 1 do artigo referido incorporava o DCDP. b. Transposição nos Países Membros da União Europeia por transposição da Directiva 2001/29/CE – segundo três opções: i.Não alterando a lei: Espanha; Holanda (Direito de Comunicação ao Público); França (Direito de Representação); ii.Acrescentando à panóplia de actos sujeitos ao Direito de Comunicação ao Público: Itália e Alemanha (embora esta remetendo o DCDP para um artigo específico, ainda que abrangido sistematicamente pelo Direito de exploração sob a forma imaterial). iii. Destacando numa norma específica o DCDP, sem a relacionar com outro Direito: Portugal. c. A Transposição para a lei portuguesa Como modelo de incorporação expressa numa norma autónoma e não integrada num Direito de comunicação ao público (ou representação), temos o exemplo Português. Ao contrário de outros países europeus, o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC) não contém uma separação categorial dos vários direitos de autor. O artigo 68.º/1 contém uma fórmula assaz abrangente de todas as possíveis modalidades, conhecidas ou que o venham a ser, de exploração do exclusivo patrimonial do autor. A expressão «entre outros» no n.º 2 do mesmo artigo apenas reforça o carácter ilimitado das faculdades de exploração que Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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assistem ao autor. Daí que o catálogo das alíneas do n.º 2 do art.º 68 seja apenas exemplificativo. Não obstante o carácter aberto da lei portuguesa, a lei n.º 50/04, de 24 de Agosto transpôs a Directiva Sociedade da Informação, concedendo ao autor o DCDP na alínea j) do n.º 2 do art.º 68 do CDADC. Por sua vez, a alínea d) do n.º 1 do art.º 178 atribuiu o DCDP das suas prestações aos artistas intérpretes ou executantes. Idêntico direito foi concedido aos produtores de fonogramas e videogramas no art.º 184 do CDADC e aos organismos de radiodifusão sobre as suas emissões, na alínea d) do n.º 1 do art.º 187 do CDADC. O DCDP é autonomizado do direito de comunicação ao público. De facto, ao longo da Lei houve sempre a preocupação de acrescentar à previsão de comunicação ao público o DCDP. Assim, temos os seguintes exemplos em que a comunicação ao público e a colocação à disposição do público surgem lado a lado, sem haver uma absorção de uma pela outra: art.º 178; art.º 187; alíneas i), m), o), do n.º 2 do art.º 75, todos do CDADC. 6. A densificação do DCDP Instituído o direito, viremo-nos agora para o seu recorte. O DCDP prevê o acto de colocar à disposição do público num local e momento que estes individualmente escolherem O acto que é concedido ao titular do DCDP é a colocação à disposição do público. E a obra ou prestação é colocada onde? Inicialmente, o acto de colocar uma obra ou prestação num site ao qual os elementos do público tivessem a possibilidade de aceder, em qualquer momento e em qualquer lugar por eles escolhidos, terá orientado o legislador. De facto, ninguém coloca obstáculos a se considerar um sítio na Internet como público. Qualquer um de nós a ele poderá aceder, nas nossas casas, na rua, a qualquer hora, graças à Internet. Mas o problema colocou-se com a chegada dos Peer-to-Peer (P2P), mais concretamente dos P2P de 2.ª geração descentralizados, em que não há um servidor entre os computadores dos utilizadores. Como considerar o computador de cada usuário como passível de ser considerado um local de acesso público dada a privacidade inerente às nossas casas? Mas o ponto fundamental está, novamente, no acto de colocar à disposição do público. E quando se concretiza este acto? Precisamente quando o usuário coloca os ficheiros numa pasta à qual qualquer utilizador do programa de P2P pode aceder, a qualquer hora e a partir de qualquer local. Por isso, há que ter atenção na instalação dos programas P2P. Por exemplo, no Limewire, onde há uma opção de desactivar a colocação dos ficheiros descarregados numa pasta pública. Porém, dando o exemplo do E-mule, a rapidez de descarga de ficheiros aumenta com a quantidade de uploads que o usuário está a permitir. 44
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Poder-se-á ainda objectar que o facto de o ficheiro estar numa pasta do computador pessoal, o público não tem a liberdade de aí aceder no momento que escolher. Também aí não se verá problema: tal como num site ou servidor, o ficheiro poderá ser retirado a qualquer momento. Se esse momento depende dum acto activo de retirada de ficheiro ou dum acto passivo de desligar o computador, tal não impede a aplicação do DCDP. No momento e durante o espaço de tempo em que o ficheiro esteve à disposição dos membros do público, estes poderiam aceder num momento e num local que individualmente escolhessem. Mas o acto de colocar à disposição implica um público. E aí temos de ver o que é privado. Analisemos primeiramente as alterações na noção de público produzidas pela Internet: 1. Mudança Espacial a. Já antes do surgimento da Internet, mais especificamente com a Radiodifusão, se havia verificado uma mudança quanto ao local onde a obra ou prestação poderiam ser apreendidas: a comunicação começou a ser efectuada a um ambiente diferente - o público convidado, que nos estúdios apreciava o desenrolar da obra dramática, foi massiva e progressivamente substituído pelos milhares de telespectadores que visionavam em suas casas através da televisão. 2. Mudança temporal a. Com a radiodifusão os membros do público passaram a aceder aos conteúdos a partir de suas casas, ligando as suas televisões ou radiotelefonias; os programas eram emitidos pelos organismos de origem e simultaneamente davase a recepção ou pelo menos esta era potenciada. b. Ora o que a Internet nos trouxe foi o diferimento do momento da recepção ou da potencialidade da recepção. Colocar um ficheiro de uma música num sítio da Internet não implica um acesso simultâneo ou quase simultâneo ao momento em que o ficheiro é colocado na rede. No DCDP apenas este acto é protegido: colocar a obra ou prestação à disposição do público. Daí que este seja um dos pontos distintivos entre o DCDP e a Radiodifusão. Caminhemos agora no sentido de indicar o que é privado: Os Tratados Internacionais não nos fornecem elementos de recorte do que é privado. O CDADC fala-nos em uso privado; uso privado em meio familiar da representação cénica (art.º 108) e da recitação e da execução (art.º 108 ex vi 1rt.º 121). O CDADC no art.º 75/2 retira ao autor o controlo sobre a reprodução da obra por qualquer meio realizada por pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais directos ou indirectos – Esta alínea não se refere ao DCDP, mas apenas ao acto de reprodução, por exemplo, num disco rígido de um computador. Como norma orientadora podemos utilizar o art.º 108, n.º 2 do CDADC Alguns autores referem-se a família, amigos e “social acquaintances” – “conhecimentos sociais” cuja ligação é menos intensa que a de amizade. Assim: podemos questionar se os seguintes actos são abrangidos pelo DCDP. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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De facto, duvidosa poderá ser a aplicação do DCDP no caso em que o acesso à obra ou outro material protegido colocado num servidor só pode ser feito através de convite de um membro da comunidade. Será que haverá um público ou a ligação e conhecimento entre os membros da comunidade invalidam a sua designação como público para efeitos de aplicação do DCDP? Serão estes actos de colocação à disposição dos membros da comunidade lícitos? Veja-se o exemplo dum site como o BTNEXT ao qual apenas se pode aceder por convite. Cada membro pode fazer convite. Daí que se possa dizer que se estabelece uma relação entre o emissor do convite e o convidado. Estender-se-á essa ligação aos restantes membros após algum tempo de convívio em rede? Se sim, será essa ligação suficientemente forte para afastar a aplicação do DCDP? 7. Distinção face a outros direitos Patrimoniais De modo a concretizar a ideia inicial entramos por fim na fase da diferenciação entre os vários Direitos – Efectivamente, o DCDP tem vários pontos em comum com alguns dos direitos patrimoniais já atribuídos nas diversas legislações, sem, no entanto, se subsumir a algum. De facto, devido à sua estrutura global única deverá conservar a sua independência em relação aos demais. Porém, com o sucessivo desenvolvimento das tecnologias têm sido esbatidas cada vez mais intensamente as fronteiras existentes entre os vários direitos, mas sobretudo entre o DCDP e o Direito de Radiodifusão. 8. DCDP versus Direito de Distribuição Já vimos que uma interpretação cuidada dos trabalhos da conferência poderá ir no sentido da aceitação do acto de colocação à disposição do público como abrangido pelo Direito de Distribuição, desde que não seja sujeito ao esgotamento (de acordo com a declaração interpretativa anexa ao artigo 6.º do TODA). Como vantagem teríamos o próprio vocabulário que é semelhante ao do DCDP: “making available” – tornar disponível. Todavia, historicamente, o Direito de Distribuição tem sido aplicado a exemplares materiais. Para além disso, o Direito de Distribuição (v.g. nas suas variadas feições – Direito de Aluguer, comodato) implica a transmissão da posse sobre os exemplares. Foi esta a opção dos EUA e a dúvida tem estado instalada, tendo a querela da aceitação ou não do DCDP tido o seu momento apoteótico no caso Jammie Thomas em que após o Jurí a ter condenado, o Juiz, por sua iniciativa, anulou o julgamento com base no facto de entender ter induzido o júri em erro ao ter 46
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informado que tornar um ficheiro disponível numa rede informatizada para o “download” seria suficiente para cometer uma infracção ao direito exclusivo de distribuição do titular do direito. O certo, é que novo julgamento se fez; e desta feita Jammie Thomas foi efectivamente condenada a pagar a quantia de 1.92 milhões de dólares por ter “distribuído electronicamente” 24 músicas. 8.1. Os Livros Verde e Branco do Grupo de trabalho Lehman Inserido na Unidade de tratamento da Infra-estrutura Nacional de Informação, o grupo de trabalho encabeçado por Bruce Lehman desenvolveu dois projectos para a resolução dos desafios da Auto-estrada da Informação. Em primeiro, o Livro Verde, elaborado em Julho de 1994, tinha a seguinte designação: A Propriedade Intelectual e a Infra-estrutura Nacional da Informação – Projecto Preliminar do Grupo de Trabalho sobre os Direitos da Propriedade Intelectual. Por sua vez, o Livro Branco, de Setembro de 1995, teve a seguinte denominação: A Propriedade Intelectual e a Infra-estrutura Nacional da Informação - Relatório do Grupo de Trabalho sobre os Direitos da Propriedade Intelectual. A sugestão do Livro Verde de 1994, relativamente às transmissões de cópias de obras protegidas, passava por uma aplicação do direito de exibição e de representação pública, bem como do direito de distribuição. Como pano de fundo surgia a constatação que no processo de transmissão ocorria necessariamente uma série de actos que se deveriam reconduzir à aplicação do direito de reprodução: o processo de armazenamento temporário na memória RAM perfaz uma cópia; o upload de um ficheiro digitalizado num BBS ou noutro servidor constitui um acto de reprodução; sempre que um ficheiro é descarregado (download) também se realiza uma cópia. Já em 1993, no caso Playboy Enterprises, Inc. v. Frena, o Tribunal havia aplicado os direitos de distribuição e de exibição pública8 à colocação de fotografias da Playboy num BBS, as quais eram acedidas através de um serviço de subscrição9. Vincou o tribunal que o conceito de exibição da secção §101 da Lei de direito de Autor Norte-Americana (LDAA) de 1976 cobria a exibição de uma cópia de uma obra quer directamente, quer através de filme, slide, imagem televisiva, ou outro mecanismo ou processo. Considerou o tribunal que a visualização das fotografias no BBS violava o direito de exibição pública, já que era permitido o acesso a subscritores que não podiam ser considerados como fazendo parte de um normal círculo de família e dos seus conhecimentos sociais. 8
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O Tribunal apenas se debruçou sobre estes direitos, não se inclinando para a aplicação do direito de reprodução, na medida em que se adivinhava de difícil prova indicar quem havia feito o descarregamento (download) ou o carregamento (upload). Vide Livro Branco, pág. 68. Disponível em www.uspto.gov/web/offices/com/doc/ipmii/ipmii.pdf. Playboy Enterprises, Inc. v. Frena, consultado a 24 de Novembro no seguinte sítio da Internet: http://www.floridalawfirm.com/playb.html
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Consciente de que a maior parte das transmissões seriam efectuadas de computador a computador e que nesses casos não poderiam ser aplicados os direitos de representação e de exibição públicas, o Grupo de trabalho Lehman recomendou a utilização do direito de distribuição, realçando, no entanto, que este não estaria sujeito ao esgotamento10 e que a lei deveria ser mudada, «reconhecendo-se expressamente que cópias ou fonogramas de obras podem ser distribuídas ao público por transmissão e que essas transmissões são abrangidas pelo direito exclusivo de distribuição»11. O livro Branco de Setembro de 1995 apenas veio reforçar a ideia de combinação de vários direitos exclusivos já existentes na lei para proteger a transmissão de obras na Internet, «vendo a Internet como uma fotocopiadora gigante, uma ameaça aos fornecedores de conteúdos em vez de uma oportunidade»12. No mesmo sentido, Marybeth Peters, numa carta ao Congresso, ao defender que a secção §106 da LDAA não prevê um DCDP, entende que «as actividades que envolvem a colocação à disposição do público estão abrangidas pelos direitos de reprodução, distribuição, exibição pública e apresentação pública existentes na secção §106»13. 8.2. A Doutrina do “Making Available Right” Na sequência dos trabalhos da Conferência Diplomática de Dezembro de 1996, os EUA optaram por não inserir expressamente o Direito de colocação à disposição do Público, na suposição de que o acto de «colocar à disposição numa rede P2P para que outros utilizadores descarreguem constitui uma infracção ao Direito exclusivo de Distribuição, bem como ao Direito de Reprodução»14. Não obstante a veemência com que os delegados dos EUA e os seus congressistas defenderam a aplicabilidade das disposições da lei em vigor ao acto de colocação à disposição do público, o certo é que o entendimento não é pacífico quer na doutrina, quer na jurisprudência. Em Maio de 2008, no já referido caso Capitol Records, Inc. v. Thomas, Litman, Jessica, Digital Copyright, Prometheus Books, New York, 2006, pág. 92. Livro Branco INI, pág. 213. 12 Boyle, James, Intellectual Property Policy Online: a young person’s guide, Harvard Journal of Technology and Law, Vol. 10, n.º 1, 1996, pág. 52. 13 Carta de Marybeth Peters, Chefe do Gabinete de Registos de Direito de Autor, enviada ao Representante Berman, datada de 25 de Setembro de 2002, apud caso Atlantic Recording Corporation vs. Njuguna, n.º 4:06-cv-02341-CWH, consultado, a 4 de Dezembro de 2009, no seguinte sítio Internet: http://www.ilrweb.com/viewILRPDFfull.asp?filename=atlantic_njuguna _071115MotDisComplaintOppos 14 Peters, Marybeth, Register of Copyrights, apud Schlesinger, Michael, Legal Issues in Peer-to-Peer file sharing, focunsig on the making available right, obra coordenada por Strowel, Alain, Peer-topeer file sharing liability in copyright law, Cheltenham, Edward Elgar Publishing Ltd., 2009, pág. 62, nota 52. 10 11
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após Jammie Thomas-Rasset ter sido condenada por um júri a pagar 222 mil dólares por ter colocado 24 músicas numa pasta partilhável através do sistema de P2P Kazaa, o Juiz Davis decidiu pela repetição do julgamento, com base no facto de entender ter instruído erradamente o júri, ao redigir a instrução n.º 15 no sentido de afirmar que o acto de colocar gravações musicais disponíveis para distribuição electrónica em redes P2P, sem a autorização dos titulares, violaria o direito exclusivo de distribuição, ainda que essa distribuição não tivesse sido realmente efectuada. A questão central é saber se o simples facto de colocar à disposição do público é suficiente para reclamar a aplicação do Direito de Distribuição. E a solução é importante dado que o ordenamento jurídico americano, ao contrário dos sistemas de Droit D’auteur, não contém uma fórmula geral e abstracta susceptível de englobar qualquer faculdade que não esteja previsto na lei (princípio da indeterminação). Duas teses estão em confronto: a recondução do acto de colocar à disposição do público dos Tratados Internet ao Direito de Distribuição; a inexistência de qualquer direito capaz de abranger tal acto, tornando-o lícito por ausência de disposição legal que o preveja. A interpretação de acordo com obrigações internacionais, os próprios Argumentos Gramaticais (v.g. autorizar já significa distribuir) e a equiparação dos conceitos de distribuição e de publicação contribuem para que os tribunais devam aplicar o direito de distribuição ao momento inicial de colocação da obra à colocação do público. Noutro pólo, invoca-se o facto de um ficheiro digital não ser passível de ser objecto do direito de distribuição, dado que se apresenta sob a forma imaterial. Ainda assim, alguns tribunais têm entendimento distinto. Por exemplo, a decisão do processo London Sire Records assume que quando um utilizador «descarrega uma música num sistema P2P, recebe no seu computador uma sequência digital representando a gravação sonora». Por conseguinte, «o ficheiro electrónico (ou, talvez mais propriamente, o específico segmento do disco duro) é um fonograma» para efeitos da aplicação do direito de distribuição. Será esta forma exposta pelo tribunal em London Sire Records adequada a permitir aceitar a transmissão em redes digitais como permitindo a transferência de um objecto material? O Tribunal no caso em análise entende que a utilização da expressão “objecto material” (na definição de cópia e de fonograma) não tem como objectivo distinguir cópias tangíveis das não tangíveis, mas antes visa obter a separação entre a cópia, a obra original abstracta15 e a representação ou execução da obra16. Segundo este prisma, não se verá obstáculo a que a distribuição ocorra sobre a forma electrónica, através de sequências electrónicas de dados em vez Distinguindo a obra em si do corpus mechanicum onde ela é incorporada: «um livro não é uma obra de autoria, mas sim uma particular tipo de cópia», London Sire Records, pág. 29. 16 London Sire Records, pág. 29, disponível no sítio www.eff.org.. 15
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de objectos materiais17. Assim, o que se visa com a definição de cópia ou de fonograma não é limitar a distribuição a objectos tangíveis, mas tão-somente vincar a sua qualidade de meio incorporante da obra. Tal decisão não poderá vingar, na medida em que, quando, por exemplo, um utilizador descarrega uma fotografia de um sítio na Internet, este não transfere a sua cópia para aquele: «o ficheiro do sítio contendo a imagem permanece no disco rígido do servidor do sítio da Internet, mas a informação nesse ficheiro é transmitida para o computador do utilizador, que a usa para permitir que a fotografia seja visível no seu ecrã»18. 9. DCDP vs Direito de comunicação ao Público Em algumas legislações nacionais o termo comunicação ao público surge como categoria aglomerante de todas as modalidades de exploração sob a forma imaterial (como na Alemanha). O Direito de Comunicação ao Público, inicialmente criado para abranger, por exemplo, os espectáculos ao vivo, alargou o seu âmbito para se centrar numa Ideia de comunicação a um ambiente diferente. Exemplos: transmissão de um espectáculo de um grupo de música, através de altifalantes ou ecrãs gigantes localizados fora do estádio onde a actuação se realiza ao vivo; transmissão por cabo de obras dramáticas, dramático - musicais ou musicais, recitações ou da obra cinematográfica pela entidade de origem. Sendo a comunicação nestes casos um acto activo, determinado pelo emissor, autores como Ricketson e GInsburg, Lewinski19 ou Dreier20 alvitram que a característica da simultaneidade é dispensável, bem como defendem que o conceito de comunicação apenas exige que a obra seja transportada de um lugar para outro. Assim, reconduzem a comunicação ao acto de transporte. Ora, no DCDP o que está em jogo é o acto de colocar à disposição do público e não o acto de transmissão.
London Sire Records, pág. 29. Reese, R. Anthony, The Public Display Right: the copyrights act’s neglected solution do the controversy over ram “copies”, University of Illinois Law Review, Vol. n.º 1, 2001, pág. 128. 19 Lewinski, Silke von, International Copyright Law and Policy, Oxford, 2008, cap. 7, pág. 237, nota 47. Ver, também, Ricketson, Sam/Ginsburg, Jane C., International Copyright and…, Vol. I, cap. 12, pág. 742, §12.49. 20 Dreier, Thomas, Public communication of the work broadcast by means of loudspeakers or and other technical device in German speaking countries, pág. 233, apud Cordeiro, Pedro, Direito de Autor e Radiodifusão – Um estudo sobre o Direito de Radiodifusão desde os primórdios até à tecnologia digital, Almedina, Coimbra, 2004, pág. 146, nota 361. 17 18
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10 . DCDP vs Radiodifusão Pontos em comum Ambos potenciam o acesso a conteúdos protegidos pelo Direito de Autor e expressam-se por forma imaterial. Diferenças: 1. Interactividade temporal: a. Na Radiodifusão a recepção pelo público ocorre em simultâneo, «em acto contínuo à, ou concomitantemente com, a emissão originária. b. Na colocação à disposição do Público é o destinatário a escolher o momento de recepção. O acto decisivo protegido pelo DCDP foi a prévia colocação à disposição do público. 2. Interactividade quanto ao conteúdo: a. O organismo de radiodifusão é quem escolhe os próprios conteúdos, não havendo possibilidade de escolha por parte do membro do público; a directiva 2007/65/CE de 11 de Dezembro descreve a «“Radiodifusão televisiva” ou “emissão televisiva” (ou seja, um serviço de comunicação social audiovisual linear) como um serviço de comunicação social audiovisual prestado por um fornecedor de serviços de comunicação social para visionamento simultâneo de programas, ordenados com base numa grelha de programas». Aqui os conteúdos são lhe impostos. b. Já na colocação à disposição do público é este que acede aos conteúdos que deseja. Aqui a interactividade radica na liberdade de escolha dos conteúdos pelos membros do público. Porém, o desenrolar da técnica cria certas situações de fronteira: o webcasting em que os conteúdos são transmitidos através de redes informáticas e recebidos em simultâneo com a transmissão, de tal maneira que os membros do público podem ter acesso a eles desde um lugar e num momento que eles individualmente escolherem, sem no entanto determinarem o início da recepção nem o conteúdo que está a ser transmitido. Exemplos são as rádios que funcionam na net; as televisões que surgem como cogumelos mercê da facilidade técnica de proceder à sua transmissão através da Internet. Ocorre aqui uma transmissão ponto – a – ponto e não multiponto – ponto, própria das emissões televisivas. Todavia, estamos perante uma actividade em que é o emissor dos sinais que define o programa. Não há qualquer liberdade para que o usuário escolha os conteúdos. Daí que não se possa integrar tais actos no DCDP. A radiodifusão via Internet faz-se por meio do método de streaming. Daí que a outra dúvida seja saber se este colocar à disposição do público implica a obrigatoriedade de realização de download dos conteúdos. O Tribunal de Apelo de Hamburgo «considerou que os produtores de fonogramas têm o direito exclusivo de colocar os fonogramas à disposição do público, por um preço,
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através do processo de “streaming”»21; Streaming é a transmissão contínua – de pequenos blocos em tempo real - de informação digital, permitindo aos utilizadores visualizar ou ouvir os dados áudio ou vídeo, não autorizando, porém, o download, não havendo, assim, a possibilidade de guardar o conteúdo no disco rígido do utilizador. Os vídeos no youtube são um bom exemplo de streaming, se bem que com o software correcto possam ser facilmente descarregados no disco rígido do computador. 11. O Direito de Reprodução e o DCDP No momento de análise do ordenamento jurídico americano, deparámonos com a inata compreensão de que o acto de descarregamento (“download”) implica a mobilização do direito de reprodução. Desde 1993 com a sentença Playboy, Inc. vs Frena, que tal é assumido e constitui ponto assente nas orientações dadas aos jurados. Nos países europeus, a consideração do “download” como envolvendo o direito de reprodução é recente e tem como país charneira a França e a sua Lei HADOPI. 11.1. Os sistemas P2P e direitos envolvidos Já vimos no ponto seis o modo de funcionamento dos sistemas P2P. Estes implicam a existência duma pasta partilhável para onde se carrega o ficheiro e o subsequente descarregamento a quem é permitido o acesso, nas redes P2P a todos os usuários que utilizem o mesmo cliente, ou seja, o mesmo programa de partilha. Tecnicamente, estamos perante actos de reprodução: primeiro, o ficheiro digitalizado a partir de, por exemplo, um CD, é colocado na pasta partilhável; posteriormente, o usuário que a ela aceda poderá efectuar o “download” para o disco rígido do seu computador e, até, num suporte tangível, digital ou analógico: de todos os actos em análise vão resultar cópias da obra22. O primeiro acto de colocação da obra ou prestação no disco rígido do computador é um acto que não necessita da autorização do titular do direito (alínea a, do n.º 2 do art.º 75 do CDADC). Lewinski identifica dois momentos L. Guibault, G. Westkamp, T. Rieber-Mohn, P.B. Hugenholtz, (et al.), Study on the implementation and effect in member states’ laws of Directive 2001/29/EC on the Harmonisation of certains aspects of Copyright and Related Rights in the Information Society, Institute for Information Law, University of Amsterdam, 2007, pág. 26. Consultado, a 15 de Outubro de 2009, no seguinte sítio da Internet: http://www.ivir.nl/publications/guibault/Infosoc_report_2007.pdf . 22 Bautista, Eduardo, The Effects of digital technology on the protection of copyright and neighbouring rights on the “information highways” of Europe: problems and proposals, Copyright bulletin; XXXIII, 3, 1999, consultado no sítio da Internet: www.portal.unseco.org/culture/ pág. 5; Vide, Carlos Rogel, Estudios Completos de propriedad intellectual, Madrid, Reus, 2003, pág. 468. 21
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temporais. Assim, por exemplo, se é efectuada a digitalização de um CD no disco rígido do computador para a audição das músicas, tal uso é lícito, não havendo necessidade da autorização do autor ou titular do direito. Já a decisão será diferente se a reprodução no disco rígido tiver como objectivo a posterior colocação à disposição do público23. Para esta autora, «quem carregue uma obra ou fonograma num servidor de modo a que os membros do público possam ter acesso, não só reproduz mas também coloca à disposição do público no sentido dos artigos 8.º do TODA/WCT e 10 e 14 do TOIEF/WPPT e portanto nesse momento necessita da autorização dos titulares dos direitos»24. Todavia, os Tratados Internet e a Directiva 2001/29/CE não nos permitem tal entendimento. Devemos antes entender que «em relação àquele acto de colocação à disposição do público, o acto de reprodução que o torna possível reveste-se, em princípio, de uma função meramente instrumental». De facto, mesmo se não tiver havido autorização para o acto de colocação à disposição do público, o direito que é violado é o DCDP e não o de reprodução. Não obstante o facto de o acto de colocação da obra na pasta partilhável consistir numa reprodução, o que está em causa não é o direito de reprodução, mas sim o DCDP. Noutro plano como tratar o acto de “download” subsequente à colocação à disposição? Quatro caminhos podem ser trilhados. 11.1.1. A Reprodução em sentido jurídico e a excepção de cópia privada Entendendo o acto de descarregamento da obra como sendo abrangido pelo direito de reprodução, uma questão rapidamente surge no horizonte: estará tal actividade coberta pelo uso privado? A alínea a) do n.º 2 do art.º 75 vem permitir «a reprodução de obra, para fins exclusivamente privados, em papel ou suporte similar, realizada através de qualquer tipo de técnica fotográfica ou processo com resultados semelhantes, com excepção das partituras, bem como a reprodução em qualquer meio realizada por pessoa singular para uso privado e sem fins comerciais directos ou indirectos». Dando um exemplo relacionado com os actos que estamos a analisar, a primeira parte do artigo vem permitir a reprodução de um ficheiro digitalizado num computador, ou por meio da impressão. Outra questão é saber se o acto de download através de um programa de P2P ou, mesmo, directamente de um site como o www.megadownload.com, pode prescindir da autorização do autor ao abrigo do uso privado. E a resposta é-nos dada pela segunda parte da norma em análise, a qual permite a reprodução em Lewinski, Silke Von, Certain Legal Problems related to the making available of literary and artistic works and other protected subject matter through digital networks, e-copyright bulletin, Janeiro – Março de 2005, pág. 6. 24 Lewinski, Silke von, International Copyright…, cap. 17, pág. 457, §17.74. 23
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qualquer meio, não exigindo, como na primeira parte do artigo, que a reprodução se faça em suporte material similar ao papel, servindo qualquer suporte como a gravação num leitor de MP3 ou no disco rígido do computador. Para que o uso privado se possa concretizar de acordo com a lei terá de ser efectuada por pessoa singular e sem fins comerciais directos ou indirectos, o que afasta a licitude da reprodução quando efectuada no âmbito de uma actividade profissional do sujeito singular, bem como a realizada por parte de pessoas colectivas25. Com efeito, os artigos 75/2 –a), 81 –b) e 189/1 – a), permitem a reprodução que se dá com o descarregamento do ficheiro contendo a obra ou prestação. E este raciocínio vale mesmo para os casos em que «a colocação da obra à disposição do público através da rede tenha sido abusiva ou feita à revelia do titular dos direitos sobre a mesma»26. Considerando-se o uso privado como sendo um limite ou uma excepção, a sua aplicação deverá ainda passar pelo crivo da regra dos três passos constante do n.º 4 do art.º 7527 (a qual se encontra também expressa na alínea b) do art.º 81). A sua aplicação poderá corroborar o pensamento daqueles que entendem que «as utilizações posteriores não podem deixar de ser igualmente consideradas ilícitas, na medida em que, decorrendo de um acto ilícito anterior, causam também um prejuízo injustificado aos interesses legítimos do titular do direito na exploração económica da sua obra»28. De facto, as utilizações privadas, quando consideradas como um conjunto, podem envolver uma afectação da capacidade de exploração do titular do direito, traduzindo-se «num desvalor ou num impacto negativo sobre os frutos que o autor espera receber por via da exploração económica da sua criação»29. É um dado claro que o processo de colocação à disposição do público e os subsequentes “download” ou visualização podem causar um processo em cascata ou bola de Vieira, José Alberto, Download de obra protegida pelo Direito de Autor e uso privado, Direito da Sociedade da Informação (DSI) - APDI, Vol. VIII, Coimbra Editora, 2009, pág. 451; Pereira, Alexandre Dias, A reprodução para uso privado no ambiente analógico e no ambiente digital, DSI - APDI, vol. VII, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pág. 348. 26 Trabuco, Cláudia, De Par-em-Par, pois então?! – A partilha de obras protegidas pelo Direito de Autor através da Internet, Estudos Comemorativos dos 10 anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Vol. II, Coimbra, Almedina, 2008, pág. 133. 27 Vicente, Dário Moura, Cópia Privada e Sociedade da Informação, Texto que serviu de base às conferências proferidas na Faculdade de Direito de Lisboa, em 11 de Novembro de 2004, no I Encontro Nacional de Bibliotecas Jurídicas, e em 19 de Julho de 2005, no IV Curso de Verão Sobre Direito da Sociedade da Informação, pág. 3. Consultado, a 19 de Dezembro de 2009, no sítio www. apdi.pt 28 Marques, Mário Castro, O caso Napster, Maia Jurídica, pág. 59. 29 Trabuco, Cláudia, Direito de Autor, intimidade privada e ambiente digital: reflexões sobre a cópia privada de obras intelectuais, Revista Iberoamericana de Filosofía, Política y Humanidades, Ano 9, Nº 18 Segundo semestre de 2007, consultado a 19 de Março de 2010, no seguinte sítio da Internet: http://run.unl.pt/bitstream/10362/2499/1/CT_RevIBERAMER.pdf 25
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neve30imparável. A aplicação da regra dos três passos deverá ter como objectivo aferir se a excepção será, em concreto, adequada à prossecução do interesse público, oferecendo incentivos adequados para todas as partes envolvidas: titulares originários de direitos, titulares subsequentes de direitos e o público em geral31. José Alberto Vieira apresenta argumentos contra a aplicação da regra dos três passos em cada caso concreto, defendendo que a mesma apenas constitui um mandamento para os Estados na elaboração da legislação e que o entendimento contrário «oferece riscos sérios, muito em particular de segurança jurídica», dado que «o utilizador individual que supõe estar a actuar ao abrigo de uma permissão genérica, de um limite ao direito de autor, pode ser confrontado com uma ilicitude com que não contava, por força de um impacto na exploração da obra ou de um prejuízo para o titular do direito que não está em condições de medir»32. É certo que uma aplicação em concreto – a partir de um único caso particular – será insuficiente para se aferir do prejuízo do titular do direito em questão. Todavia, o tipo de utilização em jogo enquadra-se num género mais amplo. Um prejuízo derivado de concreto descarregamento de obra da Internet terá sempre de ser aferido através dum enquadramento geral de um estudo sobre o impacto dos vários actos de descarregamento numa dada – concreta sociedade, onde se insere o usuário que efectua o download. Assim sendo, a apreciação sobre um eventual impacto na exploração da obra ou de prejuízos terá sempre de se basear num estudo centrado na concreta sociedade onde habita o indivíduo que efectua o download. Por exemplo, um descarregamento em Kiev, na Ucrânia, trará menos prejuízo para o autor do que para os negociadores do mercado negro33. Por outro lado, um sistema de partilha de ficheiros terá muito menos impacto numa sociedade onde a velocidade de transferência de dados seja menor. 11.1.2. O Direito de Reprodução – não sujeição à excepção do uso privado Paralelamente a esta análise, poderá surgir a dúvida de saber se o descarregamento será ainda lícito ao abrigo do uso privado se o ficheiro reproduzido provier de uma fonte ilícita. Na Alemanha, a cópia privada só é admitida se não advier de uma «fonte ostensivamente ilícita»34. Em Espanha, Marques, Mário Castro, O caso Napster, Maia Jurídica, pág. 47. Geiger, Christophe/ Griffiths, Jonathan/ Hilty, Reto M., Declaração sobre o “Teste dos Três Passos” do Direito de Autor, tradução de Edson Beas Rodrigues Jr. E revista por Denis Barbosa e Fabíola Zibetti, in DSI - APDI, Vol. VIII, Coimbra Editora, págs. 473 e 474. 32 Vieira, José Alberto, Download de obra protegida…, pág. 456. 33 Haigh, Maria, Downloading Communism: file sharing as Samidzat in Ukraine, International Journal of Libraries and Information Services, Vol. 57, N.º 3, 2007, pág. 167. 34 Vieira, José Alberto, Download de obra protegida…, pág. 454. 30 31
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o art.º 31.2 da Lei Propriedade Intelectual «exige que a cópia privada se faça a partir de obras às quais se tenha acedido legalmente, pelo que a cópia de outra cópia pirata nunca será considerada cópia privada»35. À face da lei portuguesa não existindo nenhuma norma que permita este entendimento, o uso privado e a descarga poderão ser efectuados licitamente, ainda que a obra ou prestação tenha sido colocada à disposição do público sem a autorização do titular do direito36. Será esta uma solução justa tendo em conta que o titular do DCDP não deu o seu consentimento para o acto de colocação em rede? Sem dúvida que a Justiça estará em causa se o acto de descarregamento tiver como fonte obra ou prestação colocada à disposição do público sem a autorização do seu titular. Podemos, para contrapor, defender que, da mesma forma que não cometemos um acto ilícito quando estamos numa discoteca e ouvimos a música que é tocada pelo DJ sem a autorização, então também não cometemos um acto ilícito quando efectuamos o download de um ficheiro. Todavia, ainda aqui podemos encontrar um ponto de desequilíbrio, na medida em que com a audição não efectuamos nenhum acto de reprodução e com o “download” ocorre a criação de uma reprodução, a constituição de um acto de exploração que contende com o direito exclusivo do autor. Não obstante, a situação de ilicitude que é fonte do descarregamento, o certo é que o utilizador da Internet não poderá ser sobrecarregado com o ónus da investigação. O utilizador não tem de estar sempre alerta para conteúdos que foram colocados à disposição do público sem a autorização. Defender o contrário seria transformar os actos de navegação e de aquisição de conhecimento como conformando um estado de perpétuo receio. Daí que nos inclinemos para a justificação seguinte. 11.1.3. O download como acto de reprodução em sentido técnico, não jurídico A outra solução possível é considerar o acto subsequente à colocação à disposição do público como um acto meramente técnico, não reconduzível ao direito de reprodução. Já tivemos ocasião de referir o processo de discussão que culminou na adopção dos Tratados Internet em 1996. Quando incitados a decidir sobre o modo como seria atribuído um controlo aos autores sobre as transmissões em rede, a resposta dos vários delegados foi a introdução de um direito exclusivo Gil, Alicia Gil/ Fernández, Carlos Martín, Sobre la tipicidad de la conducta de colgar en la red una obra protegida con ánimo comercial y la atipicidad de su descarga a pesar de su ilicitud, InDret – Revista para el análisis del derecho, Maio de 2009, Madrid, pág. 13, consultado, a 20 de Dezembro de 2009, no seguinte sítio: www.indret.com 36 Vieira, José Alberto, Download de obra protegida, pág. 455; 35
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que proporcionasse ao seu titular a autorização ou proibição da colocação à disposição do público de obra ou prestação. Direitos como o de reprodução ou distribuição foram rejeitados, embora tendo sido deixado aos estados a liberdade na denominação do direito aplicável, desde que este garantisse aos titulares um exclusivo sobre o controlo da colocação à disposição do público. Foi este o acto que mereceu especial atenção por parte não só dos comités preparativos mas também da Conferência Diplomática de Dezembro de 1996. E desta premissa pode-se extrair duas conclusões: as subsequentes transmissões e reproduções são actos puramente técnicos. O acto de exploração dá-se com a colocação à disposição do público: «daí em diante tudo é coberto pelo exercício do direito ou violação deste; mas há então mero acto de execução e não exercício de qualquer faculdade do direito autoral de reprodução, porque o direito autoral já está exercido»37. Admitir o acto de download como envolvendo o direito de reprodução seria uma situação incompatível com o DCDP. Imaginemos o seguinte cenário: “A” coloca à disposição do público uma obra da sua autoria. Ora, não podemos defender que o acto de “B” ao executar o download é um acto que implica uma nova autorização de “A”. Aceitar este entendimento seria não só fazer um duplo pagamento38, mas sobretudo desprover de sentido o DCDP. E esta ideia não nos choca na medida em que pressupomos a existência de uma autorização do titular do direito. Mas e se a obra em causa é colocada à disposição do público sem a autorização do seu titular? Também ai o direito que é alvo de violação é, tão só, o DCDP. Se o choque de permitir o download do ficheiro é grande, tal advém do facto de não ter havido uma contrapartida para o autor. Todavia, foi esse o caminho seguido pelos Tratados Internet. E a mesma ideia serve, com mais clareza, para os casos de visualização da obra ou prestação em que, para percepcionar a obra, o computador receptor reproduz temporariamente na memória RAM os dados necessários à exibição no ecrã, no que se denomina processo de “Streaming”. Se o titular do direito concede autorização para a colocação de um ficheiro audiovisual na plataforma www.youtube.com, a visualização do mesmo considera-se já incluída no exercício do DCDP. E isto por duas razões, que valem também para o acto de “download”. Primeiro, pelo facto de que «o acto de autorização abrange tudo aquilo que for necessário para a obtenção do fim prático visado» por aquela39. É o que nos diz a teoria da disposição funcional (Zweckübertragungstheorie) segundo a qual «numa autorização devem considerar-se compreendidas todas as utilizações que
Ascensão, José de Oliveira, Os actos de reprodução no ambiente digital. As transmissões digitais, in APDI, DSI, vol. IV, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pág. 74. 38 No mesmo sentido, Cordeiro, Pedro, As Respostas dos Tratados da OMPI, in Sociedade da Informação - Estudos Jurídicos, Coimbra, Editora Almedina, 1999, pág. 43. 39 Ascensão, José de Oliveira, Estudos sobre Direito da Internet e da Sociedade da Informação, Almedina, 2001, pág. 116. 37
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estejam necessariamente associadas àquela que se autoriza»40. Segundo, e quanto a nós o ponto mais importante, considerar a existência de uma autorização para a visualização da obra ou prestação anteriormente colocada à disposição do público (com ou sem autorização do seu titular) é incompatível com a autorização para este último acto. Uma anula a outra: dar autorização à visualização ou descarregamento do ficheiro significa tão simplesmente que a colocação à disposição do público apenas teve uma função de índice enunciativo dos vários ficheiros disponíveis na rede. Ora, não foi esta a intenção dos legisladores da Conferência Diplomática de Genebra. O DCDP implica a colocação à disposição do público de uma obra ou prestação. Fazer depender o acesso a estas de uma nova autorização seria tão só transmutar o DCDP, transformando – o num direito de autorizar ou proibir a colocação à disposição do público de um índice de obras ou prestações susceptíveis de serem posteriormente reproduzidas consoante autorização do titular do direito de reprodução. 11.1.3. O download como acto de recepção Uma outra solução para a consideração do descarregamento como acto lícito depende de se considerar o acto de colocação à disposição do público como estando englobado pelo Direito de comunicação ao Público. Segundo esta teoria, se se considerar o DCDP como uma subespécie do género comunicação pública, então o acto de descarregamento da obra ou prestação poderá ser facilmente identificável com o acto que está subjacente a qualquer comunicação: recepção. Neste sentido, «a transmissão online/ telecomunicação digital em rede de obras protegidas constitui fundamentalmente um acto de comunicação pública destas, que é uma utilização independente da reprodução dessas obras, embora possa implicar a sua fixação efémera e, nessa medida, sujeita a autorização específica para a exploração apenas segundo aquela primeira modalidade de utilização»41. A recepção é um acto livre, distinto do uso privado dado que não há qualquer utilização da obra: eis o princípio da liberdade da recepção42, o qual pode ser retirado igualmente dos artigos 8.º e 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem43. Ascensão, José de Oliveira, Direito civil – Direito de Autor e Direitos Conexos, §293, pág. 432. Mello, Alberto de Sá e, A telecomunicação electrónica em rede de obras intelectuais na Sociedade da Informação – A Directriz 2001/29/CE e a sua transposição em Portugal pela Lei n.º 50/2004, in APDI, DSI, vol. VII, 2008, pág. 302. 42 Ascensão, José de Oliveira, Direito civil – Direito de Autor e Direitos Conexos, §204, pág. 302; Em defesa do Princípio da Liberdade da Recepção, justificando o papel determinante da emissão, ver Cordeiro, Pedro, Direito de Autor e Radiodifusão…, págs. 467 e 468. 43 Hugenholtz, P. Bernt, Hugenholtz, P. Bernt, Adapting Copyright to the Information Superhighway, in P.B. Hugenholtz (red.), The future of copyright in a digital environment. Proceedings of the Royal 40 41
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12. Conclusões a. Os Tratados Internet debruçaram-se sobre o tema das transmissões digitais. A solução encontrada foi o DCDP. O acto que lhe está subjacente está perfeitamente descrito nos artigos de ambos os tratados e distingue-se dos restantes direitos aí consagrados; b. A opção dos vários países foi atacar a entrada ilícita de conteúdos protegidos pelo Direito de Autor na Internet, tendo-se optado por aplicar uma “portagem” na entrada da Auto-estrada da Informação. c. Daí que se deva concluir que o DCDP não é um direito patrimonial complexo, mas que apenas se refere a um único acto: a colocação à disposição do público. d. As várias situações de dúvida que vão surgindo permitem-nos reforçar a ideia de que é essencial definir o quadro de aplicação do DCDP delineando os seus limites e especificando o enquadramento do que se deverá entender por uso privado. e. Para esta definição contribuirá também a descrição dos restantes direitos exclusivos dos titulares de direitos protegidos pelo Direito de Autor. Porém, tal caminho afigura-se-nos de difícil concretização tendo em conta o exemplo do Tratado da OMPI sobre Radiodifusão que está em preparação desde 1998 e que recentemente se encaminhou no sentido de desterrar temas como o webcasting para um outro tratado futuro. f. Relembrando o caso Jammie Thomas, eis que travada a batalha contra os P2P e não a tendo ganho porque a cada P2P que era fechado outro nascia. Agora as indústrias cinematográfica e fonográfica viram-se para os singulares, para os particulares. Urge encontrar soluções, de modo a evitar que se atinjam extremos. Mas antes de encontrar soluções é necessário consolidar conceitos e colocar dúvidas e foi isso que tentámos efectuar nesta apresentação. g. Não há fórmulas mágicas; mas decisivo será contribuir para um maior esclarecimento e harmonização universais, de modo a que todos os interesses em jogo sejam defendidos.
Academy Colloquium organised by the Royal Netherlands Academy of Sciences (KNAW) and the Institute for Information Law (Amsterdam 6-7 July 1995), Den Haag: Kluwer Law International 1996: http://www.ivir.nl/publications/intellectual-property.html , §2.7. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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O interior e o direito: percurso no tempo e no espaço1 José Duarte Nogueira2 1 – O conhecimento do passado não está necessariamente desfasado do presente. Quando os contornos de cada época são postos de lado em benefício de uma visão global, logo se verifica que a realidade se repete em momentos diferentes uma e outra vez, reduzindo-se as diferenças quase à modulação impressa pelo tempo, tal como as dunas traçam rugas moventes no deserto. O conhecimento histórico mostra-se assim, quando globalmente observado, largamente intemporal. O saber jurídico é ele prório também em grande medida intemporal. Pode mesmo afirmar-se que a maioria dos problemas jurídicos mais não são que controvérsias de sempre nas quais a novidade está mais no colorido próprio de cada momento do que na essência. Aliás, só isso permite compreender que regras jurídicas com dois mil anos estejam ainda plasmadas nos actuais Códigos sem que ao jurista informado pareça aberrante, sob palavras diferentes das originais é certo, mas substancialmente próximas no conteúdo. Da conjugação destas visões participantes da mesma intemporalidade é, não raro, possivel retirar conhecimento sinergético. Quando o contacto com interioridade ocorre em momentos particularmente formativos do percurso de vida, como foi o meu caso, é possível por acréscimo compreender, até certo ponto quase naturalmente, alguns dos seus problemas sem necessitade de os assimilar previamente através de um esforço puramente intelectual.É pois, aproveitando Exposição proferida no II Curso de Direito e Interioridade - Interioridade e Europa das Regiões, realizado em Bragança, no Auditório do Teatro Municipal, em 20 de Junho de 2009, organizado pela Faculdade de Direito de Lisboa e pela Câmara Municipal de Bragança, na qual foram também oradores os Doutores António de Menezes Cordeiro, Eduardo Paz Ferreira, Pedro Romano Martinez, Eduardo Vera Cruz Pinto, Manuel da Costa Andrade e Adriano Moreira. 2 Professor das Faculdades de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa e da Universidade de Lisboa. 1
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esta conjugação que me atrevo a vir a este magnífico burgo do nordeste transmontano partilhar reflexões sobre a interioridade. Mas é também com consciência do acréscimo de riqueza que essa partilha me confere que manifesto a satisfação em o fazer. 2 – Interioridade é conceito que traduz uma característica objectiva do meio humano e físico de uma totalidade geográfica, globalmente considerada. Em abstracto opor-se-ia a litoralidade, tal como centralidade a periferia e, se mais longe se não quiser ir no domínio da especulação intelectual, o espaço entre estes termos bastaria para nele encontrar aspectos dignos de atenção. Para além de característica de uma totalidade é, contudo, também circunstância e por arrastamento um conjunto de valências tipificantes de uma realidade complexa perceptível no plano económico, social, político e jurídico. Embora pudesse ser observado de modo neutro o conceito tem na realidade alcance negativo, sendo predominantemente olhado como tudo o que, por déficit de litoralidade não está ao alcance de alguns. Inversamente, por exemplo, em relação ao que se passou com o conceito originário de privilégio, ocorreu nesta palavra uma evolução semântica claramente em sentido desfavorável que deixou na penumbra o que de bom, não obstante, possa conter. Deste ponto de vista a interioridade respresenta um minus. Enquanto problema reveste-se de alguma modernidade. De facto, em décadas recentes foi identificado como conceito passível de análise científica. Ocorreu tal quando as valências económica e social que desde sempre o integraram, adquiriram visibilidade predominante entre as demais. Mas, no plano nacional, apenas subiu ao palco na esteira do esforço de reafirmação do poder local que o sistema democrático recente potenciou no país. Em suma, sendo multifacetado certas matizes surgem nele mais visíveis que outras. O quadro em que se posiciona é o do poder local, o qual sendo também jurídico é predominantemente tomado pela sociedade como de natureza política. De problema inominado aquelas valências permitiram-lhe pois, aceder ao espectro do visível e uma vez neste, a dominante política deu-lhe a projecção que justifica chamamento a este e outros fora. E todavia, nem por isso nele deixa de estar sempre presente a valência jurídica, porque as linhas que o condicionam e o podem atenuar, ou mesmo dissolver, concretizam-se para o bem e para o mal em normas. No caso, normas de natureza pública nas quais os intervenientes principais são, de um lado o Estado e do outro o poder local, sendo o cidadão quase mero figurante perfilado entre ambos. Poderá ser a interioridade considerada problema próprio deste poder? Não creio, pois não surge associado a todo e qualquer poder local como categoria abstracta dele naturalmente integrante, mas apenas a certas situações. Quais sejam é precisamente o quadro económico e social que o determina e percebendose diferentes realidades a este nível entre litoralidade e interioridade, mais desfavoráveis no caso desta última, acaba por surgir como problema específico do país que não tem acesso aos benefícios da outra e por inerência ao poder local 62
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que lhe está particularmente ligado. Também o será do país na sua totalidade, como é evidente, mas a este nível a percepção é essencialmente intelectual. Por tal razão municípios do quase litoral e, em tese, do próprio litoral podem ter problemas de interioridade. Mas no caso português não é essa a regra, o que desde logo permite estabelecer um padrão dentro do qual as excepções se tornam particularmente visíveis. Deixarei a valência económica e social para outros mais habilitados. Ficarme-ei pela jurídico-política, na parte que incorpora o sentido histórico, tendo em conta que a interioridade enquanto circunstância, nos casos em que existe reforça o que talvez se possa chamar de desdém atávico, ainda que disfarçado, do Estado pelas virtualidades da autonomia local e do poder politico que lhe está associado. 3 – Identifiquemos primeiro alguns parâmetros do problema. Nos dias correntes a interioridade sobressai como causa de dificuldades ao nível da dependência do Estado e ao do esforço exigido ao poder local por ela afectado, no que respeita ao desenvolvimento interno. Algumas são facilmente perceptíveis, mesmo pelos menos atentos: a) Desertificação, no duplo sentido da aparentemente inelutável diminuição da população, fruto da queda demográfica, do desaparecimento natural de gerações mais antigas sobre-representadas localmente e do abandono das gentes em idade jovem por carência de actividades de suporte; b) Escassez de recursos financeiros, no duplo sentido da dificuldade da sua captação a nível local, por ausência de actividades estáveis economicamente relevantes e a nível externo, designadamente do Estado, devido a factores que não são na totalidade controláveis localmente; c) Dificuldade em participar em receitas decorrentes da exploração de recursos naturais de origem local, mas que por via do processo de transformação ou da sede empresarial são deslocalizados para longe; d) Dificuldade em criar pólos de desenvolvimento, no duplo sentido da ausência de controle de mecanismos suficientemente atractivos e da ausência de sensibilidade prática do Estado para o problema; e) Aumento de custos directos e indirectos com serviços, designadamente os ligados ao apoio social, já que povoações há cuja única actividade económica relevante se cinge hoje do funcionamento de um lar de terceira idade; f) Dificuldade em manter localmente serviços públicos de âmbito nacional, como escolas, tribunais e repartições, face a uma lógica estadual de rentabilidade económica de curto prazo por vezes ligada a ciclos eleitorais; A troco de comparticipações calculadas de acordo com a visão economicista na qual o conceito-chave é a produtividade, medida por critérios empresariais que não têm frequentemente em conta as reais circunstâncias vividas, o Estado pede ou pressiona o poder local para assegurar necessidades em âmbitos tão diversos quanto: Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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a) Manutenção e melhoria de redes de caminhos, estradas pré-existentes catalogadas como municipais e de todas as vias de circulação de que entretanto desistiu; b) Apoio à educação básica local, através do transporte de alunos e sua manutenção nas escolas nos horários exigidos em situação de dignidade mínima; c) Criação de pólos culturais, ainda que a população não tenha apetência relevante para consumir a cultura disponível ou, na maior parte dos casos, capacidade para tal; d) Apoio à saúde local sempre que da sua prossecução o Estado tem a expectativa de se demitir; e) Participação em geral em serviços de apoio à sociedade; Com esta resenha limitada a algumas das dificuldades com que a interioridade afoga o poder local, quando este não cai na tentação de negligenciar as expectativas da população dele dependente, o que é geralmente a regra, percebe-se claramente a magnitude do embaraço. Coloca-se então uma primeira questão. Será esta problemática uma fatalidade, ou será específica do actual momento histórico particularmente conturbado no plano da mudança, um momento de crise como usualmente se ouve dizer, sendo certo que esta palavra significa apenas escolha de caminho e que escolhas em todo o tempo tiveram sempre de ser feitas? É aqui que um breve circuito histórico e jurídico pode contribuir para clarificar ideias e eventualmente discernir melhor eventuais saídas. 4 - Um olhar sobre a emergência do poder local permite identificar ao longo do tempo uma linha de relacionamento com o poder central. Por comodidade deixaremos de parte outros poderes que caberiam mais dificilmente no rótulo. De modo desapaixonado, como convém a quem intenta percebê-lo com objectividade, ainda que não necessariamente com neutralidade, cremos que desse olhar há imagens interessantes a reter. Antecipando-as, traduzem o que parece ser um despudorado ou mal disfarçado desprezo do centro pela periferia, da capital pela província, do litoral pelo interior. Quase desde sempre, de tal modo que se diria cultural, tanto quanto a palavra neste plano o pode significar. Com breves excepções. Para olharmos esse percurso, que a partir de certo momento, dependendo da região, é o da interioridade, partiremos de uma época na qual o Estado não corresponde ainda ao actual3. Porque razão não corresponde? Singelamente porque nele se não verificavam características apenas tardiamente sedimentadas na consciência 3
Não se vê obstáculo ao uso do vocábulo desde que feito com consciência de que não corresponde ao Estado moderno ou contemporâneo. Cf. J. Duarte Nogueira, Lei e Poder Régio. As Leis de Afonso II, ed. Associação da Faculdade de Direito da Universidade de Lisbia (AAFDL), Lisboa 2006, p. 47 e s.
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política reflectida na doutrina. Trata-se, em suma, de momentos em que o Estado se mostra ainda fortemente vinculado à pessoa que exerce o poder político superior. Esta personalização ocorre tradicionalmente na figura do rei, o qual inicialmente ocupa o cargo, não por alguma particular legitimidade divina ou popular mas simplesmente porque conjuga poder de facto e disponibilidade de um significativo número de membros da sociedade para aceitar tal poder, conjugação que no fundo pode ser entendida como modo de a legitimidade política se manifestar. Nessa fase, coetânea em Portugal dos primeiros séculos da nacionalidade, o rei tem consciência da dimensão conferida por tal acatamento. Mas sabe que depende de terceiros, sendo portanto frágil enquanto entidade política, embora acredite que a dimensão só lhe fugirá se uma improvável coligação opositora a questionar. Cautelarmente precisa conduto de garantir apoios permanentes e recolhe-os tanto junto de pessoas individualizadas como de entidades colectivas. Estas são os municípios e é deles que procurará retirar a força ocasionalmente negada por outras realidades sociais. Alguns municípios vinham de trás. A maioria surge porém após a independência e pode por isso dizer-se que é a partir desse momento que o poder local emerge verdadeiramente no país. O vector utilizado foi o foral e este, do ponto de vista político-jurídico não é mais que o documento que atesta externamente, por parte do detentor do poder político superior vigente na sociedade, o reconhecimento formal da comunidade como pessoa jurídica4. 5 - A relação entre Estado e municípios decorreu inicialmente sem sobressaltos significativos, para além dos inerentes a entidades que mantinham entre si cordial distanciamento. O poder local teve então a sua época de ouro, mostrando o rei apreciável identificação com a respectiva autonomia. Interioridade era conceito destituído de sentido, pois a centralidade era ainda inexistente e a litoralidade mera circunstância geográfica sem implicações a outro nível. Caracteriza-se então pela quase total autonomia política e jurídica. Era exercido através de magistraturas moldadas segundo as necessidades interpretadas pelo povo no quadro do costume, tanto no que respeita à nomenclatura aplicável aos cargos como à competência. Era a assembleia local que delineava as linhas da política local e era nela que se decidia, em geral, tudo o que de mais importante havia a decidir. Nem sempre o município conseguia fazer cumprir as decisões, mas tal ocorria apenas porque o poder de facto possuído por terceiros, circunstancialmente o impedia. Mas não raro impunha-se mesmo aos poderosos. Juridicamente apenas o foral o limitava, reflectindo-se nele o equilíbrio entre a autoridade que controlava superiormente a terra, frequentemente o rei mas ocasionalmente outrém e os habitantes. 4
Cf. J. Duarte Nogueira, Municipalismo e direito. Notas ao período pluralista português, in “Estudos em Homenagem ao Prof. Martim de Albuquerque”, Coimbra Editora, Coimbra 2010.
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Durou pouco mais de um século o tempo durante o qual o poder local foi verdadeiramente autónomo. A partir de então começaria a sofrer a subtil erosão que não mais cessaria até à actualidade. Porque razão e de que modo, iremos vêlo em seguida. 6 - Na segunda metade do seculo XIII a realidade política nacional começa a revelar matizes novos. Não era ainda a consciência plena de que na figura do rei, a pessoa pública e a privada eram juridicamente distintas, mas torna-se claro, por exemplo, a percepção de patrimónios distintos ao nível dos direitos sobre a terra e dos réditos cobrados. Ao património que não podia reclamar para uso privativo começa a dar-se a denominação de coroa. Esta pequena novidade foi então, talvez, o indício inicial de que o Estado na versão moderna se aproximava. A primeira agressão inflingida à autonomia local ocorreria no país a partir do último quartel de duzentos e estendeu-se pelo primeiro do seguinte. Foi disfarçada e como todas as que se seguiriam apresentou-se sob a capa do interesse público, neste momento não expressamente invocado pois não constava ainda da panóplia de recursos estílisticos com que a política no futuro aprenderia a brindar os néscios, mas estava já subjacente ao quadro legal em que os seus vários momentos se distribuiriam. Esse interesse era aquele que o poder político superior, do qual a regulamentação emanava, em cada momento como tal considerava. Referido como o da boa governação dos povos, na realidade identificava-se subtilmente com o aprofundamento da intervenção central. Como o rei, enquanto titular da coroa se apresentava já na veste de pessoa pública, podemos chamar-lhe interesse estadual. O que se passou então? Num primeiro momento tratou-se tão-somente da criação de inspecções extraordinárias ao poder local; num segundo, da criação das comarcas e da delimitação funcional do cargo de corregedor, ao qual se seguiria pouco depois o de juiz-de-fora. Deixemos este último de parte, porque foi sempre magistratura numericamente escassa. Já quanto às comarcas, a medida pode ser olhada como a primeira regionalização ocorrida no país. De específico deve contudo ter-se em conta que o objectivo foi então, não o de garantir maior autonomia ou agilidade ao poder local, mas o de o controlar através da responsabilização perante o central. Para o atingir institucionalizou-se a divisão do território nacional em regiões, passando a existir formalmente seis denominadas comarcas, cada uma dependente de um corregedor nomeado pelo poder central, cujo regimento será depois publicado. Longe ainda do sentido moderno, este corregedor era simultaneamente juiz com alçada e inspector estadual. A intervenção como juiz era limitada, embora contra todas as expectativas, tenha sido essa a vertente que prevaleceu subjacente ao título até ao século XX. A intervenção como inspector era pelo contrário, intensa. A ele, como representante do poder central, deviam os magistrados localmente eleitos responder pelo desempenho funcional. Dele receberiam 66
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louvor ou punição, tudo em nome do interesse dos povos interpretado pelo poder político superior. De responsáveis apenas perante o povo reunido em assembleia, ou como então se dizia, concelho, os eleitos locais passaram a sê-lo também perante o rei. Criou-se assim um sistema de responsabilidade política e jurídica dual. Em suma, através destas medidas observa-se já o Estado a ajustar pela primeira vez os limites do poder local aos seus próprios parâmetros, por via de um controle externo, mas não ainda a interferir no próprio âmago do poder local. 7 - Não passaria meio século e já o Estado delineava segunda investida. A percepção de que a lei era o instrumento do poder central estava então a ficar clara no espírito do legislador. A consciência de que através dela se podia moldar a realidade social tornava-se patente e lentamente compreendia-se que a autonomia começava a ser um estorvo político a quem o concentrava nas mãos. Seria esta consciência uma aquisição intelectual nova? De facto não era. Mil anos antes Bizâncio havia tido claramente essa visão da lei e plasmara-a no texto que ainda é hoje é a base do direito civil moderno. Mas entretanto muito da arquitectura então traçada fora esquecida. Recuperada essa consciência, o Estado português reformulou a sua relação com o poder local, mas agora de modo mais fundo. Dois dados novos permitirlhe-iam uma visão sofisticada; por um lado a percepção da diferença entre centralidade e localidade; por outro a de que a fiscalização externa do poder local não bastava já para o controlar. De facto, a ideia de centralidade surgira nos finais do século anterior, não como conceito abstracto de natureza arquitectónica ou urbanística mas jurídicopolítica, na decorrência da fixação das principais instâncias administrativas nacionais na cidade da foz do Tejo. Daqui decorrera naturalmente a ideia de capitalidade, na qual a capital por ser sede de facto, do poder, seria o seu centro. Daí a pensar que o resto do território e suas gentes fosse o objecto do poder, foi apenas um passo. Interior e capital começavam também a diferenciar-se enquanto distintas realidades. Não era ainda a contraposição clara entre interioridade e litoralidade, mas o facto de ser tradicionalmente na faixa marítima que se afirmavam os aglomerados capazes de disputar as maiores migalhas à capital, indiciava o caminho. Quanto ao segundo percebe-se então que um controle fiável do poder local exigia a entrada do poder central no seu âmago e tal objectivo apenas podia atingir-se através da interferência na escolha dos respectivos titulares. Surge então também, quase naturalmente, consciência de que tal controle se faria melhor normalizando os cargos locais, isto é delimitando-lhes competências precisas segundo um modelo comum à totalidade do país, inclusivamente com as mesmas denominações funcionais. A cultura local, a tradição e a vontade dos vizinhos deixavam de relevar neste campo. E tudo isto podia ser feito por via legal. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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Surge assim a regulamentação dos pelouros e a normalização dos eleitos em torno das categorias de juiz, vereador e procurador. Para trás ficavam muitas outras de significado essencialmente local, obnubiladas pela passagem do tempo ou postergadas para níveis funcionais inferiores quando as necessidades o aconselharam. Habilmente o Estado começava a manobrar a ilusão política como modo de melhor atingir os seus fins. Fê-lo, no caso concreto, restringindo a eleição dos titulares a listas de nomes previamente aprovadas, deixando viva a ideia de eleição mas retirando-lhe a álea com a qual começava a ter dificuldade em conviver. Pode pois dizer-se que remonta ao século XIV o primeiro embate de fundo claramente perdido pelo poder local. Na realidade foi o segundo, mas o anterior havia ocorrido apenas no plano externo, não possuindo portanto a profundidade deste. 8 - Na passagem do século XV para o seguinte ocorreria o terceiro embate. Qualificá-lo desta maneira pode contudo, ser exagero, pois na realidade tratou-se mais de uma desistência local livremente consentida, do que propriamente de uma imposição do centro. O resultado foi em qualquer caso o mesmo. Como imagem destinada a facilitar melhor a compreensão do que então se passou, diríamos que se tratou de um negócio entre alguém que, incomodado por não saber como usar o principal bem que herdou, tenta junto do único interlocutor disponível, trocá-lo por algo no qual via mais utilidade directa. Deparando com alguma relutância da parte deste, conhecedor da sua condição de único potencial destinatário, não o podendo pressionar ou motivar por falta de alternativa, conforma-se com o que lhe é disponibilizado em troca, aceitando-o em atitude reverenciadora e agradecida. Escusado será dizer que o primeiro foi o poder local e o segundo o Estado. O bem oferecido representava quase todo o património político-jurídico possuído pelo município: nem mais nem menos que o foral na sua versão, conteúdo e alcance originais. Pedia em troca a normalização da vida económica local, em particular da fiscal, através da definição de padrões de pesos, medidas e moedas epocalmente ajustados. O segundo ofereceu o que lhe foi pedido, matéria que por ter incidência predominantemente fiscal o tornava no beneficiário natural. Não deixou contudo de proclamar fazê-lo em nome do interesse público, por si mesmo interpretado como sendo o interesse do primeiro. Em concreto o Estado recebeu do poder local a desistência implícita do seu património moral jurídico-político tradicional e implicitamente qualquer pretensão de vir, por essa via, a reclamar poder de decidir dos destinos municipais em todas as áreas que o Estado entretanto quisera reservar para si. Em concreto o poder local recebeu a pedida normalização plasmada num texto quase despido de conteúdo juridica e politicamente significante. Não deixa de ser interessante notar que o Estado mais uma vez quis ficar
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na posição de outorgante magnânimo 5 e para que a suspeita de enriquecimento ilícito não surgisse, nada melhor que ajaezar o que lhe era pedido em invólucro magnífico capaz de encher o olho de aparente mas visível riqueza – os novos forais - concretizados em documentos primorosamente escritos e artisticamente belos, nos quais sobressaia a decoração renascentista mais ou menos elaborada conforme a importância do concelho a que se destinava. Quão diferente do antigo foral feito em pergaminho rude quando não manchado e roto, redigido em letra difícil. Assim recorria o Estado a mais uma ilusão, trocando o feio mas significante pelo belo mas vazio ornamento que, exibido em público, transformaria qualquer modesta domus municipalis na antecâmara de salão de mecenas renascentista. Não creio que este golpe magistral tenha sido premeditado. Nem de um lado nem do outro. Do poder local foi o resultado de anos de incapacidade em resolver problemas próprios, de incapacidade em criar elites e de dificuldade na imputação de conteúdo real à autonomia. A desistência levou a entregar a solução ao Estado. No que a este respeita teria sido cómodo não ter que lidar com o problema. Reiteradamente confrontado6, arrastou a solução por décadas, certamente ciente da onerosidade da empresa e sua escassa rentabilidade. Decidiu por fim assumi-la e o resultado foi a reforma manuelina dos forais. De então em diante os municípios, reverentes e agradecidos, ficaram possuidores de um texto emblematico confirmativo de que ainda existiam, mas já pouco contendo da herança autonómica da liberdade de séculos. 9 - Até ao seculo XIX o poder local vegetou em progressiva decadência, emparedado entre necessidades que não podia geralmente assegurar por falta de receitas e um foral que lhe garantia autonomia formal face ao Estado. Ocasionalmente, como foi o caso pouco depois de 1640, laivos da antiga dignididade ainda arrastaram os procuradores dos concelhos às Cortes a proclamar que tinham palavra própria a dizer. Idos os anéis pareciam sobreviver os dedos que antes tangiam a sineta a chamar os vizinhos para escolher os depositários da vontade colectiva. Foi sol de pouca dura. Logo o Estado, agora personficado no rei iluminado, se desinteressou de os voltar a sentar à sua mesa e as antigas Cortes deixaram pura e simplesmente de reunir. Porque os deveria o Estado ouvir se os procuradores, ainda que honrados não eram mais que brutos vilãos sem pinga de iluminação? Realidade dura e crua. De um lado autonomia formal despida de conteúdo, do outro os parâmetros que balizavam a vida municipal. De inanidade o poder local estava maduro para um último golpe, o qual seria final e mais violento. No rescaldo de uma guerra civil que alguns consideram a mais mortífera A outorga por parte do poder, de concessões, apresntada como acto magnânimo no interesse de todos, tal como o próprio poder o interpreta, é muito mais frequente do que se pode pensar. Como exemplo recorda-se apenas a outorga da Carta Constitucional de 1826 por Dom Pedro IV, a um país que a não esperava e a um povo que dela não precisava, cujas consequências não demorariam muito a fazer-se sentir. 6 Os pedidos de reformação dos forais arrastavam-se já por décadas, sem serem atendidos pelo rei. 5
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alguma vez ocorrida em solo nacional, na qual as elites se dividiram e reciprocamente agrediram e o povo, mal refeito ainda do massacre e espoliação francesa da primeira década de oitocentos, se via de novo envolvido na violência dos senhores, surgiria o liberalismo. Pouco impressionável pelas autonomias locais, só o modelo francês interessava à sua facção mais activa e este não era outro senão o do despotismo iluminado sem rei mas com imperador, embrulhado nas liberdades formais de Constituições que apenas reconheciam a plena dignidade política a uma minoria de priveligiados. Motivado por feroz ódio ao antigo regime o liberalismo extinguiu sem rebuço os forais em 1832. É certo que sobreviveram os municípios em si, mas estes, amputados da certidão que lhes garantia autonomia por formal que fosse, transformaram-se em mera categoria administrativa dependente de um Estado autoritário no qual a lei era a única fonte criadora de direito e o legislador abstracto o único agente. Chegava assim ao fim a aventura do poder local, inciada mil anos antes com os primeiros forais. É todavia interessante que mesmo no golpe final o Estado não tenha tido a coragem de revelar com clareza as razões pelas quais se obstinou contra o texto foraleiro, mais uma vez sentindo necessidade de as envolver na ilusão do interesse público de que se considerava regedor. Dizia o legislador de Castelo de Vide que se tratava de textos feudais conotados com o antigo regime. Que suportavam situações de iniquidade, afirmava, devendo por isso ser abolidos como símbolos da opressão. Feudalidade era então palavra mágica que, por execrável, servia para arregimentar furiosos revolucionários, tal como outras palavras o voltaram a ser em tempos muito posteriores. Singular afirmação que não passa pelo mais largo crivo da objectividade, já que se qualificação devia ser imputada a tais documentos seria justamente a de simbolos da liberdade local contra o Estado central, dignidade aliás louvada pelo insuspeito Herculano décadas mais tarde, quando a verve revolucionária já tinha reocupado lugar dentro dos limites da razão. Na realidade era o facto de serem um símbolo da liberdade que metia medo a Dom Pedro e seus amigos liberais, adeptos que eram de um Estado que sob a capa da liberdade convivia mal com qualquer poder politico não central. Era por isso preferível extingui-los, extirpando-se o risco pela raiz. Seria todavia afirmação de todo absurda? De facto não e neste caso, como talvez em muitos outros, por explicativa vale a conhecida quadra de António Aleixo sobre a verdade e a mentira. Um ou outro foral aludia ainda ao que na época se chamavam direitos banais, os quais, por protegerem injustamente alguns serviam facilmente de mote à apregoada feudalidade. Mas eram escassos tais casos e fácil teria sido ao mesmo legislador expurgar os textos de tais defeitos. Como aliás demostrou saber e poder fazer, quando na mesma altura extinguiuas terras da coroa e iniciou o desmantelamento dos vínculos, medidas essas sim, de indubitável valia económica e social. Mas não. O que o preocupava no final era o bicho, não a peçonha. 70
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Porque as situações históricas se repetem mesmo involuntariamente, algo de parecido ocorreria em 1977 quando, curiosamente sob o opróbrio da mesma palavra, a enfiteuse foi retirada do Código Civil e substituida pelo arrendamento rural, numa mudança que em nada beneficiou os enfiteutas e que no mínimo deveria ter sido opcional. De reter por isso a tendência intemporal da política em esconder as verdeiras razões que a movem quando sente que a verdade não é tão bela como deveria ser. A reorganização municipal feita poucos anos depois nada trouxe de novo, pois era já corolário da dependencia absoluta em que os concelhos se encontravam face ao Estado. 10 - O esboço acabado de traçar, ao realçar etapas particularmente marcantes pretendeu ilustrar a orientação milenar que pautou o relacionamento entre o poder local e o Estado, dele sobressaindo por parte deste uma permanente resistência à autonomia do outro. De facto, mais que parceiro foi historicamente interlocutor desconfiado, propenso a nela mais ver empecilho do que alvanca de progresso, tal como o entendia. O poder local, por seu lado, adoptou frequentemente uma atitude tímida quanto à defesa da autonomia institucional. Tendencialmente crédulo pareceu sempre confiar na boa vontade estadual, acreditando que o proclamado interesse público cobriria naturalmente a defesa dos interesses locais, mesmo os que com ele entravam em colisão natural. Não raro com alguma ingenuidade, numa postura que só pode ser compreendida à luz da ausência de meios humanos intelectualmente capazes de descodificar as subtis motivações centrais, ou da descrença na viabilidade de uma instransigente cultura de autonomia. Em contrapartida, factos históricos não faltam a comprovar a disponibilidade do mesmo poder local para prestar apoio ao Estado nas suas lutas internas ou externas, sempre que tal esforço lhe foi pedido. Se, enquanto característica e circunstância, a interioridade parece incorporar um pecado original de que a litoralidade está aparentemente livre, enquanto complexo de problemas tem no poder local a sede natural de resistência contra os efeitos dela advenientes. Não necessariamente a única, mas seguramente a principal, pois é nesse âmbito que em primeira mão são sentidos. A regionalização tem sido apresentada como panaceia possível. Confesso algum cepticismo, ao menos face a um modelo promovido por via estadual sob imposição da lei, pensado do centro para o interior. E a razão é simples. Poderá uma regionalização feita de fora para dentro dar preferência à solução de problemas de interioridade sobre as vantagens da centralidade, quando todo um passado mostra a subtil mas permanente postura do Estado na defesa desta contra aquela ? Tenho dúvidas. Diria mesmo que um modelo assim gizado correria o risco de não descolar das orientações que estiveram subjacentes à organização comarcal do século XIV, na qual os interesses tratados prioritariamente pela entidade promotora foram fundamentalmente os do centro e não os locais. Sem meios naturais para debelar os inconvenientes, consciente da escassez Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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de armas disponíveis e especialmente, da incapacidade em as utilizar por decisão própria, o poder local ou parte dele pode neste caso ser mais uma vez tentado a confiar a solução do problema ao Estado, tal como o fez quando da reforma manuelina dos forais, desistindo de radicar no seu prório braço a procura da solução. Mas poderá confiar quando todo um passado mostra à saciedade uma permanente agenda própria e todo um presente evidencia lições antigas não esquecidas? A busca de soluções para os problemas gerados na interioridade está pois perante novos problemas causados por essa mesma busca, os quais pela natureza interlocutória que lhes assiste deverão ser resolvidos previamente, antes de mais no seio da interioridade e, dentro desta, predominantemente através do poder municipal. Menor seria o cepticismo se a região fosse construída de dentro para fora, a partir da reflexão feita pelo poder local sobre os problemas e soluções, se necessário confrontando subsequentemente o Estado com um modelo de facto cuja consolidação jurídica, deixada para momento posterior, fosse então o resultado negociado de um confronto politico claramente assumido com a centralidade. Tal hipótese exigiria consciência inter-municipal da necessidade de o fazer em torno de objectivos comuns e ainda que cada pólo intra-regional estivesse disponível para desistir de parte da sua autonomia, por mirífica que fosse, em nome do interesse regional. Sendo, em qualquer caso, os municípios ciosos do que essa autonomia ainda representa, a tendência para cada um nada ceder face a vizinhos que, por circunstâncias geográficas, estivessem melhor colocados para abrigar, por exemplo, sedes de futuras regiões, é risco que teria de ser ultrapassado. Será aliás necessidade inelutável, pois a convivência entre região e os municípios que a integrarem tal como hoje os conhecemos, duplicaria custos e diminuiria receitas, constituindo erro inultrapassável. Significaria ainda que os construtores da região deveriam ter consciência de que a litoralidade ou, se se quiser, a não interioridade, deveria ficar dela excluída sob pena de se construirem embriões de pseudo estados exíguos futuros, dentro do Estado mais amplo, nos quais mais cedo ou mais tarde problemas de centralidade e interioridade se voltariam a repetir a partir da sua componente não interior. E não poderia uma tal iniciativa ser de algum modo extensível a espaços trans-fronteiriços cujos problemas fossem semelhantes, para os quais a fronteira seja hoje essencialmente um empecilho e a sua virtual eliminação ganho inestimável? Quem não reparou já, por exemplo, no absurdo de no espaço comunitário dos tempos que correm, olhar o boletim meteorológico oficial da vizinha Espanha e reparar que a previsão de chuva ou de sol, frio ou calor no espaço local fronteiriço, começa rigorosamente na fronteira, mesmo quando a deslocação das massas de ar surgem do ocidente sem autorização, como se o tempo pudesse ser associado à soberania do Estado? Tudo isto, nas várias dimensões possíveis, não será nunca tarefa fácil. 72
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Tenho contudo a sensação que não é impossível, quer no quadro de integração comunitária quer no da simples nacionalidade, através de muitas ideias a explorar, podendo o simples bom senso ser excelente ponto de partida. Uma, por exemplo, seria a constituição de um Observatório sobre a Interioridade seguindo a sugestão aqui deixada ontem pelo Prof. Eduardo Vera Cruz, com este ou outro nome, no qual em associação a entidades locais com componente científica (Universidades ou Politécnicos), se apurassem, seleccionassem ou construissem os dados que a enformam, dados que pelo seu dinamismo exigem atenção e conhecimento íntimo da realidade local, pelo que, à partida, só entidade verdadeiramente interessada e colocada no terreno estaria bem posicionada para trabalhar. Daí à construção de um modelo de região seria depois um caminho de pequenos mas rápidos passos. 11 - Por fim uma muito breve referência à globalização já aqui ontem referida pelo Prof. Menezes Cordeiro na sua brilhante intervenção. Também eu sou céptico para com a bondade do conceito, de cuja aplicação prática se tem infelizmente retirado talvez menos de bem de mal. Desde logo porque se uma novidade não fizer pender a balança claramente para o lado favorável, provavelmente não se justifica aceitá-la, devendo os benefícios supostamente dela dependentes ser procurados por outra via. Mas o que nele me preocupa nem é tanto a vertente económica, pois com ou sem globalização a economia encontrará sempre caminhos trans-fronteiriços europeus e continetais. O que preocupa é o seu impacto na desconsideração do dado cultural identitário do dado da diferença a que chamo identidade cultural, escondido sob a tendência para a homogenização da sociedade numa especie de cultura global. Não me incluo no número daqueles a quem as identidades culturais metem medo e que disfarçam a irracional fobia pela diferença acenando com medo do identitarismo, recorrendo a uma tecnica que no fundo é tão válida neste caso como nos anteriormente citados como exemplos da ilusão com que a política escondeu a verdade através de simples palavras, quando lhe conveio. Pelo contrário, acredito que a diversidade inerente às identidades culturais é motor da evolução. Não deixa ainda de ser interessante notar que o darwinismo, ao clarificar muito da evolução biológica fez a humanidade aprender a lutar pela defesa das espécies, tornando quase universal tal preocupação. Ora as identidades culturais não são mais que espécies da sociedade da cultura e para elas devem valer os mesmos princípios, receios e entusiasmos que valiam para as espécies biológicas, tanto no plano global como nacional. É aliás neste que a regionalização feita de dentro para fora pode também ter o seu papel. Não deixarão de existir riscos, mas desde que há vida humana no mundo o risco esteve sempre a ela associado. A minimização estará em acreditar que o Direito serve justamente para delimitar os campos do possível, separando-os dos do impossível, inaceitável ou punível serve também para proteger o campo dos francos contra o dos fortes, estando seguramente naquele dos municípios Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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de interioridade e nesta, o Estado. A sociedade do Direito, não a do direito meramente positivo que apenas serve de instrumento à visão política, mas a do Direito que através do saber dos juristas concretiza a justiça como valor perene dele antecedente, da qual provavelmente aqueles outros descreem.
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Uma tarefa de Sísifo na interpelação das autoridades públicas? José Lucas Cardoso2 Sumário A análise subjacente ao presente texto tem por objecto a busca e a delimitação de um regime jurídico dos mecanismos garantísticos do exercício digno e eficaz da função do Provedor de Justiça. Afinal, o Ombudsman investiga factos, analisa problemas, propõe soluções e, no momento de passar à acção, tendo em conta que não é titular de poderes de autoridade, será legítimo supor que as autoridades administrativas não estão obrigadas a respeitar a actuação do Ombudsman, mesmo que apenas dentro dos estritos limites das competências deste? A questão suscitada é, em certa medida, consequência da introdução de um órgão de controlo da Administração pública em sistemas políticos de configuração diversa do seu habitat natural pois o Ombudsmän sueco nasceu dotado de poderes que nos sistemas europeus continentais são próprios do Ministério Público, daí a possibilidade que lhe é reconhecida de agir com alguma eficácia no exercício da sua função de controlo da actividade administrativa. Neste contexto, propusemo-nos averiguar se o soft body 1
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O presente texto consiste na versão reformulada de uma informação elaborada pelo autor no âmbito das funções de Adjunto do Gabinete do Provedor de Justiça que exerceu entre Junho de 2002 e Novembro de 2008, quando era titular do cargo o Dr. Henrique do Nascimento Rodrigues. Apesar da génese institucional, o teor do artigo não vincula a Provedoria de Justiça, assumindo o autor integralmente a responsabilidade pelas posições sustentadas no texto. Agradecemos ao Dr. Nascimento Rodrigues o testemunho da sua experiência pessoal que contribuiu para o aperfeiçoamento da versão inicial do texto, assim como o incentivo à publicação. Agradecemos ainda ao nosso colega e amigo Dr. Filipe da Boa Baptista por nos ter facultado um exemplar da sua tese de mestrado, ainda inédita, assim como a disponibilidade para troca de impressões sobre o tema. Mestre em Direito; Assistente do Departamento de Direito da Universidade Lusíada; Bolseiro de Investigação da Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
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adoptado no resto do mundo se encontra habilitado a exercer dignamente a sua missão, mesmo desprovido das competências de procuradoria. A investigação realizada permitiu verificar que os mecanismos concretizadores do dever de cooperação com o Ombudsman se destinam apenas e somente a assegurar que as autoridades públicas facultem ao Ombudsman as condições necessárias para que a sua missão seja exercida com dignidade, nomeadamente para que as autoridades em questão se pronunciem expressamente em resposta às interpelações do Ombudsman, para que o façam num prazo razoável e de modo fundamentado e ainda para que a assembleia parlamentar ou o superior hierárquico sejam informados em tempo útil por forma a poderem desencadear os mecanismos de responsabilidade política, ou disciplinar, consoante os casos, sempre que as medidas adoptadas se revelarem de sentido contrário a uma recomendação, ou até a um simples reparo, do Ombudsman. Abstract The analysis underlying the present text has at its goal the search and the definition of a framework of the mechanisms as a protective nature dignified and effective exercise of the function of the Ombudsman. In effect Ombudsman investigates facts, analyzes problems, suggests solutions and, in time for concrete action, taking into account that does not hold powers, it is reasonable to assume that the administrative authorities are not obliged to observe the performance of the Ombudsman, even his only within the strict limits of his powers? The raisedquestion is, to some extent, with the introduction of a control body in the political systems of configuration different from their natural habitat because the Swedish Ombudsmän was created with powers which in continental European systems are unique to the Attorney, thereforce he is granted the possibility to act with some efficience in the control of the administrative action. In this context, we suggests to examine whether the soft body adopted the rest of the world, by is entitled to pursue its mission with dignity, even devoid of the powers of attorney. The research has shown that the mechanisms giving effect to the duty to cooperate with the Ombudsman intended only to ensure that public authorities provide the Ombudsman the necessary conditions for their mission to be carried out with dignity, in particular that the authorities concerned explicitly state their opinions in response to inquiries of the Ombudsman, to do so within a reasonable time and in a reasoned manner and also to the parliamentary assembly or the immediate superior should be informed in good time so that they can trigger the mechanisms of political accountability or disciplinary, as appropriate, where the action is to prove the contrary to a recommendation, or even a simple remark of the Ombudsman. Sommaire L’analyse qui sous-tendent le présent texte se rapporte à la recherche et la définition d’un cadre des mécanismes de la nature digne de protection et l’exercice effectif de la 76
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fonction du Médiateur. En effect, le Médiateur enquête sur des faits, d’analyser les problèmes, proposer des solutions et, à temps pour une action concrète, en tenant compte du fait que ne détient pas de pouvoirs, il est raisonnable de supposer que les autorités administratives ne sont pas tenus d’observer la performance du Médiateur, même seulement dans les strictes limites des pouvoirs de cette situation? La question est, dans une certaine mesure, suite avec l’introduction d’un organe de controle de l’Administration publique dans systèmes politiques de configuration différente de son habitat naturel car le Médiateur suédois est né avec des pouvoirs que dans les systèmes d’Europe continentale sont inhérentes au Procureur, puis la possibilité qu’elle soit reconnue à agir avec une certaine efficacité dans l’exercice de ses pouvoirs de contrôle de l’action administrative. Dans ce contexte, nous avons proposé d’examiner si le corps doux adopté dans le reste du monde est en droit de poursuivre sa mission avec dignité, même dépourvue de pouvoirs de représentation. La recherche a montré que les mécanismes qui donnant effet à l’obligation de coopérer avec le Médiateur sont destines seulement à assurer que les pouvoirs publics fournir au Médiateur les conditions nécessaires pour leur mission est effectuée avec dignité, en particulier, que les autorités concernées explicitement leurs opinions en réponse aux demandes de renseignements du Médiateur, à le faire dans un délai raisonnable et de manière motivée et aussi l’Assemblée parlementaire ou le supérieur hiérarchique doit être informé en temps utile afin qu’ils puissent déclencher les mécanismes de responsabilité politique ou disciplinaire, le cas échéant, lorsque l’action est de sens contraire à une recommandation, ou même une simple réparation du Médiateur. Todas as autoridades e agentes de autoridade devem prestar ao Provedor de Justiça o auxílio que lhes for solicitado para o bom desempenho das suas funções. (artigo 19.º do Estatuto do Provedor de Justiça) Introdução. 1. Quadro descritivo. 2. O alcance dos mecanismos de protecção do Ombudsman. 3. Quadro sinóptico 4. Conclusão. Introdução O Ombudsman, concebido e gerado na Suécia, foi acolhido noutros sistemas políticos ao longo do século XX, inicialmente arrastado por uma “vaga nórdica” que o exportou para os vizinhos Estados escandinavos ainda durante a primeira metade do século, à qual se seguiu uma vaga “anglo-saxónica” que o levou ao Reino Unido e ao então ainda pujante mundo da Commonwealth durante os anos sessenta e, em 1973, o acolhimento pela França pós-gaullista abriu-lhe as portas dos sistemas europeus continentais, onde se implantou durante o último quarto Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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do século. O resultado provocado por este fenómeno, que PATRICE GARANT popularizou através da expressão “ombudsmania”3, foi a adopção de uma instituição originariamente escandinava em Estados de todo o planeta, portanto em sistemas políticos de configuração diversa daquele que proporcionou a sua afirmação4. A ombudsmania foi essencialmente a expressão de um conjunto de vontades políticas convergentes em vários contextos diferentes e do empenho do legislador na aprovação de diplomas que permitissem a existência e o funcionamento da novel instituição e que abrissem as portas da mesma ao cidadão comum. A doutrina não ficou alheia a este fenómeno e antes, durante e depois dos procedimentos legislativos concretizadores, os autores, nomeadamente jurisconsultos, foram reflectindo sobre o fenómeno. Alguma coisa, ou mesmo muito, tem sido dito e escrito acerca do Ombudsman; neste contexto, os autores tem tentado indagar como ficaria melhor assegurada a sua independência perante o poder político, quais as competências que melhor se enquadram na função, quais os procedimentos que conferem maior eficácia à sua actuação e que melhor asseguram o acesso dos cidadãos5. Contudo, salvo melhor opinião em contrário, um aspecto essencial tem sido descurado: a busca, a delimitação e a consagração legislativa de um regime jurídico dos mecanismos garantísticos do exercício digno e eficaz da sua função. Afinal, o Ombudsman investiga factos, analisa problemas, propõe soluções e, no momento de passar à acção, tendo em conta que não é titular de poderes de autoridade, será legítimo supor que as autoridades administrativas não estão obrigadas a respeitar a actuação do Ombudsman, mesmo que apenas dentro dos estritos limites das competências deste? Ou seja, se quisermos colocar o problema As três expressões citadas no texto são de PATRICE GARANT, Du protecteur du citoyen québécois au médiateur français in L’Actualité Juridique – Droit Administrative, 1973, p. 237. 4 Curiosa é a observação de LUÍS GONZAGA DO NASCIMENTO E SILVA para quem o fenómeno, que qualifica como aparentemente “estranho”, da “extensão do Ombudsman a tantos países do mundo a[c]tual” é fundamentalmente uma consequência “do papel que a burocracia assumiu no quadro das instituições do Estado moderno” e da hegemonia da forma de domínio “legal-racional” (no sentido weberiano do termo) como modo de relacionamento entre o poder e o cidadão nas sociedades actuais, em prefácio à publicação de CELSO BARROSO LEITE, Ombudsman: Corregedor Administrativo – A instituição escandinava que o mundo vem adotando, Rio de Janeiro, 1975, p. 11. 5 Cfr., selectivamente, GIOVANNI NAPIONE, L’Ombudsman – Il controllore della pubblica amministrazione, Milano, 1969, ANDRÉ LEGRAND, L’Ombudsman Scandinave – Études comparées sur le contrôle de l’administration, Paris, 1970, PATRICE VERRIER, Le Médiateur in Revue du Droit Public, ano 89.º, 1973, p. 948 e ss., GIUSEPPE DE VERGOTTINI, Ombudsman in Enciclopedia del Diritto, vol. XXIX, p. 879 e ss., ALFONSO DI GIOVINE, L’Ombudsman in Scandinavia in COSTANTINO MORTATI (organização de), L’Ombudsman - Il difensore civico, Torino, 1974, p. 15 e ss., ALVARO GIL-ROBLES, El Defensor del Pueblo, Madrid, 1979, FERNANDO ALVES CORREIA, Do Ombudsman ao Provedor de Justiça, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, vol. IV, Coimbra, 1980, p. 133 e ss., GREGÓRIO PECES-BARBA MARTINEZ (coordenação), Diez años de la Ley Orgánica del Defensor del Pueblo – Problemas e Perspectivas, Madrid, 1992, e FILIPE DA BOA BAPTISTA, O Provedor de Justiça – A actividade e o fundamento, dissertação de mestrado, ainda inédita. 3
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numa linguagem metafórica, será que o Ombudsman está condenado, como Sísifo na fábula, a carregar com um pedregulho pela montanha (administrativa) acima que na hora da verdade o dirigente máximo do serviço se encarrega de fazer cair novamente por terra? A questão suscitada é, em certa medida, consequência da introdução de um órgão de controlo da Administração pública em sistemas políticos de configuração diversa do seu habitat natural e que nos Estados de acolhimento surge, assim, como órgão atípico. Com efeito, o Ombudsmän sueco nasceu dotado de poderes que nos sistemas europeus continentais são próprios do Ministério Público6, daí a possibilidade que lhe é reconhecida de agir com alguma eficácia no exercício da sua função de controlo da actividade administrativa, mas será que o soft body adoptado no resto do mundo se encontra habilitado a exercer dignamente a sua missão, mesmo desprovido das competências de procuradoria? 1. Quadro descritivo Atendendo à finalidade que motivou a introdução na organização institucional do Estado moderno, de um órgão auxiliar, e em certa medida sucedâneo, do Parlamento no exercício da função de controlo da Administração pública7, os Ombudsmen não são titulares de poderes de autoridade, não podendo nomeadamente fixar injunções às autoridades administrativas, pelo que a sua competência mais significativa se circunscreve à emissão de recomendações que por sua natureza não são vinculativas8. Neste sentido, é comum a doutrina identificar a função do Ombudsman como uma “magistratura de influência”9 ou como uma “magistratura de opinião”10. Apesar disso, as ordens jurídicas dos vários Estados não deixaram os Ombudsmen desprotegidos no exercício da sua função, como alguma doutrina parece querer denunciar quando afirma que a influência deste órgão “reside na sua auctoritas no sentido romano do termo”11, FILIPE DA BOA BAPTISTA, op. cit., p. 19 e ss. e JUAN FRANCISCO CARMONA Y CHOUSSAT, El Defensdor del Pueblo Europeu, Madrid, 2000, p. 66. 7 Sobre esta questão, cfr. os nossos Autoridades Administrativas Independentes e Constituição, Coimbra, 2002, p. 192 e Sobre o mandato do Provedor de Justiça - Os mecanismos concretizadores da independência do titular in PÓLIS - Revista de Estudos Jurídico-Políticos, n.º 17, p. 152, e ainda ALVARO GIL-ROBLES, Aperçu sur l’institution espagnole du défenseur du peuple in Études et documents du Conseil d’ Etat, n.º 35, 1983/84, p. 88, ANTÓNIO LA PERGOLA, Ombudsman y Defensor del Pueblo: apuntes para una investigación comparada in Revista de Estudios Políticos, n.º 7, 1979, p. 71/72, ENRIQUE GARCIA LLOVET, Ombudsman y Defensor del Pueblo: apuntes para una investigación comparada in Revista de Estudios Políticos, n.º 7, 1979, p. 90 e ss., GIUSEPPE DE VERGOTTINI, op. cit., p. 880 e F. ALVES CORREIA, op. cit., p. 158 e ss. 8 Sobre a natureza e o objecto da recomendação do Provedor de Justiça, cfr. FILIPE BAPTISTA, op. cit., p. 330 e ss. e ainda J. CARMONA Y CHOUSSAT, op. cit., p. 207. 9 Neste sentido, ANTONIO LA PERGOLA, op. cit., p. 81. 10 A expressão é de J. CARMONA Y CHOUSSAT, op. cit., p. 89. 11 VICTOR FAIREN GUILLEN, Temas del ordenamiento procesal, tomo III, Madrid 1982, p. 1515. 6
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ou então que “os seus poderes são tão limitados que ele é considerado um couraçado sem canhões”12, na medida em que consagram alguns mecanismos destinados a assegurar-lhes o exercício eficaz das suas funções. Com efeito, neste contexto, afigura-se necessário distinguir a eficácia da actuação do Ombudsman e a eficácia das suas decisões. Se, no que concerne a este último aspecto, é certo que a eficácia das decisões que o Ombudsman profere, e em consequência a solução material para os assuntos que lhe são apresentados, “depende da transparência democrática das instituições, da força da opinião pública e do prestígio pessoal do Provedor”13 ou ainda da “bondade dos argumentos invocados e da aceitação dos mesmos pelas autoridades administrativas”14, ao invés no que respeita à possibilidade de investigar com vista ao conhecimento detalhado das situações controvertidas que lhe são apresentadas, as autoridades administrativas estão sujeitas a um dever de cooperação com o Ombudsman cujo conteúdo específico15 assume dimensão variável consoante os vários ordenamentos jurídico-positivos. Assim, a Constituição federal austríaca consagra alguns mecanismos neste contexto, desde logo a imposição a todas as autoridades federais, estaduais e municipais de um dever genérico de prestar auxílio ao Volksanwaltschaft no exercício das suas funções e ainda os deveres específicos de permitir a consulta de documentos e de fornecer todas as informações que este lhes solicitar, mesmo que algumas destas informações ou documentos estejam a coberto do segredo de Estado16. Contudo, o Volksanwaltschaft fica vinculado a respeitar o segredo de Estado nos precisos termos que a lei o impõe à autoridade encarregue do assunto, devendo preservá-lo nomeadamente no relatório a apresentar anualmente ao Nationalrat17. Como é típico da função que o Ombudsman desempenha nos Estados modernos, o poder mais significativo do Volksanwaltschaft consiste na emissão de recomendações às autoridades administrativas mediante as quais pode indicar medidas a adoptar para a solução de casos concretos18. Considerando a sua natureza de mera recomendação, esta não compreende uma injunção para os seus destinatários, contudo estes devem responder ao Volksanwaltschaft no prazo de oito semanas após a formulação da recomendação e o não acatamento da mesma carece de ser fundamentado19. A legislação belga, por seu turno, confere também algumas prerrogativas CELSO BARROSO LEITE, op. cit., p. 55. Cfr. J. C. VIEIRA DE ANDRADE, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 2001, p. 355. 14 Neste sentido, J. CARMONA Y CHOUSSAT, op. cit., p. 218. 15 Sobre o conteúdo de um dever, MANUEL DE ANDRADE ensinava consistir num “vínculo entre pessoas determinadas por virtude do qual uma delas fica incumbida de realizar em benefício de outra uma dada actividade”, Teoria Geral da Relação Jurídica, Coimbra, 1983, vol. I, p. 16. 16 Cfr. artigo 148.º, b, § 1, da Constituição Federal Austríaca. 17 Câmara baixa do Parlamento federal. 18 Artigo 148.º, c da Constituição Federal Austríaca. 19 Secção 6.º da Volksanwaltschaftsgesetz. 12 13
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aos Médiateurs federais com vista a proporcionar-lhes as condições necessárias ao exercício da sua missão. Assim, sempre que interpelarem um agente ou serviço administrativo no exercício das suas funções, os Médiateurs belgas gozam da prerrogativa de fixar um prazo imperativo para resposta20 mas, caso não o façam, os agentes administrativos interpelados estão sempre obrigados a responder no prazo de quinze dias úteis e o incumprimento do dever de responder legitima o Médiateur a comunicar a omissão ao superior hierárquico21. A lei confere-lhes ainda a possibilidade de se deslocarem, pessoalmente ou por meio de assessor22, ao local para averiguações, de solicitar o envio de documentos e informações que entendam necessários e de inquirir as pessoas implicadas23. Contudo, o dever de cooperação cessa sempre que as pessoas inquiridas estejam, por algum motivo, obrigadas ao dever de sigilo24. Por outro lado, sempre que, no âmbito da instrução de um processo, de uma proposta de mediação, da formulação de uma mera sugestão, do apuramento de uma conclusão, um dos Médiateur enviar um documento ao agente visado, deverá enviar cópia ao dirigente máximo do serviço25 e em caso de formulação de recomendação deverá ainda dar conhecimento ao Ministro respectivo26. Além das prerrogativas consagradas na ordem jurídica relativamente à apreciação de casos em concreto, os Médiateurs gozam ainda de legitimidade para apresentarem ao Conselho dos Secretários Gerais da Administração Pública e ao Conselho dos Administradores Gerais dos Organismos Públicos de Segurança Social as observações que entendam necessárias para melhorar em termos genéricos as relações das Administrações federais com os Médiateurs federais, devendo ainda cada um destes órgãos consagrar, anualmente, uma das suas reuniões ao debate deste tema, para a qual deverão convidar os Médiateurs em funções27. O Ombudsman dinamarquês está habilitado a indagar os assuntos por sua própria iniciativa28, podendo realizar investigações gerais sobre o modo de actuação de qualquer autoridade pública29, instituição, empresa ou serviço administrativo desde que incidam sobre assuntos da sua competência30. As autoridades sujeitas à intervenção do Ombudsman estão obrigadas a fornecer as informações, assim como a entregar todos os documentos que este lhes
Cfr. artigo 11.º, § 1.º, da Loi de 22 Mars 1995 que instaurant des Médiateurs fédéraux. Cfr. artigo 4.º do Protocole d’accord concernant des relations entre le collège des Médiateurs fédéraux et les Administrations fédérales pour le traitement de plaintes de Mai 1997. 22 Artigo 11.º, § 4.º, da Loi. 23 Artigos 11.º, § 2.º, da Loi e 2.º do Protocole. 24 Artigo 11.º, § 3.º, da Loi. 25 Artigos 3.º e 6.º do Protocole. 26 Artigos 14.º, § 3.º, da Loi e 6.º do Protocole. 27 Cfr. artigo 7.º do Protocole. 28 Cfr. artigo 17.º, n.º 1 do Folkting’s Ombudsman Act, de 12 de Junho de 1996. 29 Idem, n.º 2. 30 Artigo 18.º 20 21
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solicitar31. O Ombudsman dispõe de alguns meios de obtenção de informação que poderá utilizar no decurso das suas investigações, como exigir resposta por escrito32, notificar pessoas para comparecerem pessoalmente a fim de prestar declarações sobre factos relevantes para as investigações33 e pode ainda investigar pessoalmente, dispondo de livre acesso, em todos as instalações das entidades sujeitas à sua actuação34. A Ley Orgánica del Defensor del Pueblo espanhol impõe às autoridades públicas um dever genérico de prestar auxílio, com carácter prioritário e urgente, ao Defensor del Pueblo nas suas investigações e inspecções35. No decurso destas investigações, o Defensor del Pueblo, os seus adjuntos ou pessoa por ele indicada estão habilitados a deslocarem-se a qualquer serviço administrativo a fim de averiguar factos relevantes para o assunto em apreciação, inquirir pessoas envolvidas ou consultar documentos36, mesmo que classificados como segredo de Estado37. Quando o Defensor del Pueblo solicitar informações a um funcionário ou agente administrativo sobre assuntos relacionados com a sua função, goza da possibilidade de fixar um prazo para resposta que não poderá ser inferior a dez dias38. O agente visado deverá responder por escrito, juntando os documentos relevantes39 mas o Defensor del Pueblo poderá sempre convocá-lo para prestar esclarecimentos adicionais40 e, em caso de recusa de comparência, o Defensor del Pueblo pode ainda intimá-lo a justificar por escrito os motivos da falta41. Por outro lado, sempre que se dirigir a um agente administrativo, o Defensor del Pueblo deverá ainda comunicar o facto ao respectivo superior hierárquico imediato42 que poderá impedir o funcionário em causa de responder, desde que o comunique por escrito e de modo fundamentado ao Defensor del Pueblo e ao visado mas nesse caso deverá assumir o lugar deste último43. Os poderes que o Defensor del Pueblo dispõe no epílogo da investigação consistem no seguinte: poderá formular uma recomendação, uma mera advertência ou limitar-se a sugerir ao agente visado as Artigo 19.º, n.º 1 Idem, n.º 2. 33 Idem, n.º 3. 34 Idem, n.º 4. 35 Cfr. artigo 19.º, n.º 1. 36 Idem, n.º 2. 37 Artigo 22.º, n.º 1; embora a Ley consagre como princípio geral a legitimidade do Defensor del Pueblo para consultar documentos classificados, a mesma consulta pode ser recusada por decisão do Conselho de Ministros mas, em contrapartida, se o Defensor del Pueblo entender que o conhecimento do documento em questão é indispensável para a sua investigação comunicará o facto à Comissão Mista Congresso-Senado encarregue das relações com o Defensor del Pueblo, idem. 38 Artigo 20.º, n.º 1 e 2; o prazo poderá ser prorrogado a pedido do interessado com o limite do período de prorrogação correspondente a metade do prazo inicialmente conferido. 39 Idem, n.º 2 40 Idem, n.º 3 41 Ibidem. 42 Idem, n.º 1 43 Artigo 21.º 31 32
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medidas necessárias à reintegração da legalidade44, devendo este responder no prazo de um mês45. Caso a autoridade administrativa visada não adopte medidas adequadas à reintegração da legalidade, nem justifique porque não o faz, o Defensor del Pueblo notificará o Ministro respectivo ou o dirigente máximo da autoridade em causa, consoante os casos, e se mesmo assim não obtiver resposta deverá mencionar o assunto no seu relatório anual, ou em relatório especial a apresentar também às Cortes Generales, com menção das autoridades e da identificação dos funcionários em causa46. O cumprimento do dever de cooperação goza de tutela criminal no ordenamento jurídico espanhol na medida em que o Código Penal tipifica como crime de desobediência a conduta de funcionário que coloque obstáculos à realização de investigação pelo Defensor del Pueblo, nomeadamente pela negação de informação solicitada ou pela dilação injustificada na prestação da mesma ou ainda pela resistência no acesso aos documentos administrativos relevantes para a investigação47. A ordem jurídica finlandesa confere ao Ombudsmän um conjunto amplo de prerrogativas com vista a permitir-lhe o exercício eficaz das suas funções48. Assim, logo a Constituição confere-lhe o direito de solicitar às autoridades públicas, ou a outras entidades que desempenhem tarefas públicas, as informações necessárias ao exercício da sua função, isto é, ao controlo da legalidade da actuação destas entidades49. A Constituição finlandesa revela-se amiga do acesso do Ombudsmän à informação a ponto de lhe reconhecer a possibilidade de assistir às reuniões do Conselho de Ministros, assim como às reuniões do Governo com o Presidente da República50. Complementarmente, o Eduskunnan Oikeusasiamies Act conferelhe o direito de realizar inspecções presenciais às autoridades públicas sempre que necessárias à averiguação de assuntos que se enquadrem no âmbito da sua função51, com possibilidade de aceder aos arquivos da autoridade visada, de debater assuntos, mesmo confidenciais, com os agentes envolvidos52, de obter fotocópias dos documentos que considere relevantes53 e de solicitar às autoridades policiais a realização de inquérito se necessário para esclarecimento de factos relevantes para as suas investigações54. Em contrapartida, o Ombudsmän tem o Artigo 30.º, n.º 1. Ibidem. 46 Idem, n.º 2. 47 Cfr. artigo 502.º, n.º 2, do Código Penal de 1995, que substituiu o regime inicialmente consagrado no artigo 24.º, n.º 2, da Ley Orgánica del Defensor del Pueblo e, no plano doutrinário, FRANCISCO M. BRUÑÉN BARRERÁ, in ANTONIO ROVIRA VIÑAS (organização de), Comentarios a la Ley Orgánica del Defensor del Pueblo, anotação 20 e ss. ao artigo 24.º 48 No mesmo sentido, J. CARMONA Y CHOUSSAT, op. cit., p. 69. 49 Secção 111.º da Constituição Finlandesa. 50 Ibidem. 51 Cfr. secção 5, § 1, do Eduskunnan Oikeusasiamies Act (Lei n.º 197/2002) 52 Idem, § 2. 53 Secção 6. 54 Secção 8. 44 45
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dever de permitir que a autoridade visada se pronuncie antes de formular uma conclusão55. O Ombudsmän finlandês dispõe dos seguintes meios para se dirigir às autoridades administrativas após conclusão das suas investigações: reparo, parecer e recomendação56. Apesar de apresentarem em comum o carácter não vinculativo, os actos em apreço distinguem-se pelo seguinte: o reparo destinase a fornecer uma orientação para futuras actuações57, o parecer circunscrevese ao aconselhamento sobre a conduta adequada a assegurar o cumprimento da lei ou das exigências da boa administração58, enquanto a recomendação tem por finalidade indicar às autoridades administrativas as medidas necessárias à reparação de uma ilegalidade59, podendo ainda ser dirigida aos órgãos legislativos e elaborada em termos genéricos com objectivo de sugerir medidas adequadas ao aperfeiçoamento da legislação vigente60. O Ombudsmän deverá apresentar anualmente ao Riksdag um relatório da sua actividade61, podendo apresentar relatórios sobre assuntos específicos sempre que o considere pertinente62. A legislação finlandesa não consagra qualquer mecanismo específico destinado a permitir ao Ombudsmän comunicar ao órgão superior o incumprimento das suas recomendações, pelo que os relatórios ao Parlamento constituem o único adequado para o efeito. O ordenamento jurídico francês impõe às autoridades públicas um dever genérico de facilitar a tarefa do Médiateur de la République e o legislador foi minucioso neste contexto ao ponto de especificar que este dever vincula os próprios Ministros63. Neste sentido, os dirigentes da Administração pública devem autorizar os subordinados a responder a questões, assim como às convocações do Médiateur64 que pode ainda solicitar ao Ministro responsável ou à autoridade competente que lhe dê conhecimento de qualquer documento ou processo referente a assunto sob sua investigação sem que o pedido possa ser contestado com fundamento em segredo de Estado, excepto em matérias de defesa nacional e de outras preiviamente classificadas como segredo de Estado65, mas em compensação está obrigado a respeitar confidencialidade nos documentos de sua autoria que divulgar66. O dever de colaboração vincula também os órgãos e serviços de controlo que devem, no âmbito da sua competência, satisfazer os
Secção 9. Secções 10 e 11. 57 Secção 10, § 1. 58 Idem, § 2. 59 Secção 11, § 1. 60 Idem, § 2. 61 Secção 12, § 1. 62 Idem, § 2. 63 Artigo 12.º, § 1, da Lei n.º 73/6, de 3 de Janeiro. 64 Idem, § 2. 65 Artigo 13.º, § 1 66 Idem, § 2. 55 56
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pedidos de verificação e de inquérito formulados pelo Médiateur67, nomeadamente o Conseil d’État e o Tribunal de Contas devem realizar todos os estudos que aquele lhes solicitar68. Por outro lado, a independência e a imparcialidade do Médiateur encontram-se protegidas criminalmente contra a utilização indevida do seu nome, com ou sem menção do cargo, em qualquer documento de propaganda ou de publicidade, qualquer que seja a sua natureza, que serão punidas com pena de prisão de um a seis meses e/ou multa de €304,90 a €1524,5069. A legislação grega também consagra algumas prerrogativas com vista a permitir ao Synigoros o exercício cabal das suas funções, como a possibilidade de solicitar a colaboração dos serviços administrativos nas suas investigações, nomeadamente dos serviços de investigação ou de inspecção, goza de legitimidade para solicitar informações às autoridades públicas, para consultar documentos ou outros elementos relevantes sobre os casos submetidos à sua apreciação, para inquirir pessoas, podendo ainda solicitar a realização de peritagens. As autoridades públicas devem facilitar a investigação por qualquer meio, não podendo nomeadamente invocar razões de confidencialidade para recusar a consulta de um documento ou de outro elemento de prova, excepto em matérias de defesa nacional, segurança do Estado ou relações internacionais. Sem embargo da especificação dos deveres específicos mencionados, as autoridades públicas estão vinculadas a um dever genérico de colaborar com o Synigoros nas suas investigações e se este não obtiver, de uma autoridade pública, a colaboração devida poderá comunicar o facto ao Ministro respectivo70. O National Ombudsman Act holandês impõe um dever genérico às autoridades administrativas, em especial ao agente responsável pelo assunto visado, assim como às testemunhas e ao reclamante no sentido de fornecerem ao National Ombudsman toda a informação necessária à sua investigação71, podendo ainda solicitar a comparência de qualquer pessoa para prestar depoimento72 que é obrigatória pois apenas os Ministros da Coroa se poderão fazer substituir por representante indicado para o efeito73. Contudo, o dever de colaboração das pessoas mencionadas cessa perante o dever de preservar a confidencialidade dos factos a que está obrigada em virtude das suas funções ou profissão, embora o Ombudsman possa sempre solicitar ao Ministro respectivo ou ao órgão superior de uma autoridade não integrada na Administração directa que confirme por escrito que o agente visado se encontra vinculado ao dever de confidencialidade, assim como pode solicitar a dispensa do cumprimento do mesmo mas em caso de Artigo 12.º, § 2 Idem, § 3. 69 Artigo 14.º bis que menciona os valores em questão ainda com referência aos montantes equivalentes em francos franceses. 70 Cfr. artigo 4.º, n.º 5, da Lei n.º 3094, de 22 de Janeiro de 2003. 71 Cfr. secção 19, n.º 1, do National Ombudsmän Act. 72 Ibidem. 73 Idem, n.º 2. 67 68
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deferimento fica o Ombudsman obrigado a manter sigilo74. O Ombudsman pode, se necessário, solicitar a colaboração de especialistas e de intérpretes nas suas investigações, podendo convocá-los injuntivamente para o efeito75. Se alguma das pessoas mencionadas anteriormente responder negativamente a uma convocatória, o Ombudsman pode solicitar a colaboração das autoridades policiais por forma a assegurar a sua presença sob custódia76. O Ombudsman pode ainda consultar os documentos que considere relevantes e obter cópias dos mesmos77, assim como pode investigar livremente em qualquer local, com excepção da residência do agente visado78, mas em contrapartida os Ministros da Coroa podem negar a entrada do Ombudsman em determinados locais se considerarem que a mesma poderá colocar em causa a segurança do Estado79. Concluídas as averiguações, o Ombudsman elabora um memorando com as suas conclusões80 que envia à autoridade administrativa competente e, se for acaso disso, ao funcionário visado e ainda ao reclamante81 e em cujos termos poderá indicar as medidas que considere adequadas para o caso82. O Ombudsman apresenta ainda um relatório anual da sua actividade ao Parlamento e ao Governo83, sem embargo de poder comunicar ao Parlamento em qualquer momento as conclusões de uma averiguação, se o considerar oportuno, assim como qualquer das Câmaras do Parlamento poderá solicitar a todo o tempo informação sobre um caso analisado pelo Ombudsman84. A organização político-administrativa italiana não comporta, como é sabido, um Ombudsman nacional. Contudo, a Itália tem uma importante rede de Difensori Civici ao nível das regiões autónomas, pelo que podemos adoptar como case stude o Difensore Civico della Regione Valle d’Aosta que actualmente desempenha funções de coordenador dos Difensori Civici regionais85. Assim, no âmbito das diligências necessárias para investigar os casos submetidos à sua apreciação, o Difensore Civico della Regione Valle d’Aosta está legitimado para solicitar às autoridades regionais sujeitas à sua intervenção86 informações sobre o andamento de um assunto nos serviços administrativos, podendo fazê-lo verbalmente ou por escrito87, para Idem, n.º 4. Cfr. secção 20.º 76 Idem, n.º 3. 77 Secção 24.º, n.º 1. 78 Idem, n.º 2. 79 Idem, n.º 3. 80 Secção 27.º, n.º 1 81 Idem, n.º 2. 82 Idem, n.º 3. 83 Secção 28.º, n.º 1. 84 Idem, n.º 3. 85 Cfr. www.euro-Ombudsman.eu.int/links/pt/it.htm. Para uma descrição sumária dos restantes Difensori Civici, cfr. J. CARMONA Y CHOUSSAT, op. cit., p. 93/94. 86 As autoridades administrativas sujeitas à intervenção do Difensore Civico são as mencionadas no artigo 11.º, n.º 1, da Legge regionale n.º 17, de 28 de Agosto de 2001. 87 Cfr. artigo 12.º, n.º 1, a). 74 75
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consultar e obter cópia de qualquer acto ou documento referente ao objecto da intervenção por forma a obter a informação necessária88, para convocar o agente responsável pelo procedimento a fim de prestar declarações89 e para aceder aos gabinetes com intuito de verificar os aspectos relacionados com a investigação que considere necessários90. Na sequência das suas averiguações, o Difensore Civico poderá formular recomendações às autoridades visadas91 e, apesar das mesmas não revestirem carácter vinculativo, o não acatamento carece sempre de ser fundamentado por escrito92. A lei não coloca obstáculos à prestação de informações pelas autoridades administrativas ao Difensore Civico, nem no acesso deste aos documentos administrativos em função de segredo profissional, nem sequer de segredo de Estado, mas obriga-o a manter confidencialidade sobre as matérias, mesmo após o termo do mandato93. O Difensore Civico pode comunicar ao superior hierárquico competente eventuais atrasos ou colocação de obstáculos ao desenvolvimento da investigação por parte do agente responsável pelo procedimento para efeitos de abertura de procedimento disciplinar, se for caso disso94. A ordem jurídica portuguesa impõe às autoridades e aos seus agentes um dever genérico de colaboração com o Provedor de Justiça na medida em que estão vinculados a prestar-lhe o auxílio que este lhes solicitar para o bom desempenho das suas funções95. O Provedor de Justiça português dispõe de poderes para, no exercício das suas funções: (i) efectuar visitas de inspecção a qualquer órgão ou serviço da Administração central, regional e local96, (ii) proceder a todas as investigações e inquéritos que considere necessários ou convenientes, podendo adoptar em matéria de recolha e produção de provas, todos os procedimentos razoáveis, desde que não colidam com os direitos e interesses legítimos dos cidadãos97, (iii) procurar, em colaboração com os órgãos e serviços competentes, as soluções mais adequadas à tutela dos interesses legítimos e ao aperfeiçoamento da acção administrativa98. O reconhecimento destes poderes é assistido pela imposição às autoridades administrativas de um dever de cooperação com o Provedor de Justiça que se consubstancia em vários mecanismos específicos de colaboração. Assim, encontramos à partida a prerrogativa de solicitar ao Ministério Público ou
Idem, b). Idem, c). 90 Idem, d). 91 Idem, n.º 2. 92 Ibidem. 93 Artigo 12.º, n.º 4. 94 Artigo 13.º, n.º 2 95 Cfr. artigo 19.º do Estatuto do Provedor de Justiça (EPJ), aprovado pela Lei n.º 9/91, de 9 de Abril, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 30/96, de 14 de Agosto. 96 Artigo 21.º, n.º 1, a). 97 Idem, b). 98 Idem, c). 88 89
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a qualquer outra autoridade pública a realização de diligências99 e a imposição aos órgãos e agentes das entidades públicas, civis e militares, do dever de prestar todos os esclarecimentos e informações que o Provedor de Justiça lhes solicitar100. Correlativamente, as autoridades mencionadas devem prestar ao Provedor de Justiça toda a colaboração que este lhes solicitar, devendo, nomeadamente, prestar informações, realizar inspecções através dos serviços competentes e facultar a consulta de documentos e processos101. O dever de colaboração destas autoridades cessa, no entanto, perante as restrições impostas pelo segredo de justiça, assim como pelo segredo de Estado em matérias respeitantes à segurança, à defesa ou às relações internacionais desde que devidamente justificados pelos órgãos competentes102. Por outro lado, sempre que o Provedor de Justiça se dirigir a uma autoridade visada, pode fixar prazo para resposta desde que não inferior a dez dias103, pode convocar funcionários, agentes administrativos e titulares de cargos públicos para comparecerem na Provedoria de Justiça a fim de prestar declarações104. A legislação portuguesa revela-se bastante aperfeiçoada em matéria de consagração dos mecanismos que permitam ao Provedor de Justiça exercer de modo eficaz a sua missão na medida em que confere tutela criminal ao incumprimento do dever de cooperação. Neste sentido, o incumprimento não justificado do dever de cooperação por funcionário ou agente da Administração pública central, regional e local, das forças armadas, de instituto público, de empresas pública ou de capitais maioritariamente públicos ou concessionária de serviços públicos ou de exploração de bens do domínio público configura a prática de um crime de desobediência105. Complementarmente, a lei tipifica ainda o crime de recusa de cooperação para o caso da conduta, omissiva, em apreço ser imputável a um titular de cargo político106. Por último, o Provedor de Justiça pode dirigir uma recomendação ao órgão competente para corrigir a irregularidade107, devendo simultaneamente dar conhecimento ao órgão ou ao agente visado108. O órgão destinatário da recomendação deverá responder no prazo de sessenta dias109 e em caso de não acatamento deverá fundamentar a sua decisão110. O não acatamento de uma recomendação legitima o Provedor de Justiça a comunicar
Artigo 28.º, n.º 2. Artigo 29.º; n.º 1. 101 Idem, n.º 2. 102 Idem, n.º 3. 103 Idem, n.º 4. 104 Idem, n.º 5. 105 Idem, n.º 6. 106 Cfr. artigo 25.º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho que prevê os Crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos. 107 Cfr. artigo 38.º, n.º 1, do EPJ. 108 Idem, n.º 7. 109 Idem, n.º 2. 110 Idem, n.º 3. 99
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ao superior hierárquico do destinatário do agente administrativo visado111, à Assembleia da República, em caso de recomendação dirigida a membro do Governo112, ou à Assembleia Municipal ou de Freguesia, se a recomendação for dirigida à Câmara Municipal ou à Junta de Freguesia, respectivamente113. A tipologia das competências do Ombudsmän sueco escapa um pouco à matriz descrita até ao momento na medida em que encontramos consagrados na Lag med instruktion för Riksdagens Ombudsmän alguns poderes de intervenção do Ombudsmän perante os tribunais que certamente constituem em grande medida resquícios da instituição sua antecessora que remonta ao ancien régime, denominada Konungens Hõgsten Ombudsmän, e posteriormente Justitiekansler, e na qual os mentores do Riksdag Justitie Ombudsmän colheram inspiração em 1809 por ocasião da revolução liberal e da subsequente aprovação da Regeringsform114. Assim, ao lado de prerrogativas também reconhecidas aos demais Ombudsmen analisados, como são a possibilidade de realizar, directamente ou através de colaborador115, as investigações necessárias à apreciação das queixas e de outros assuntos que tenha em análise116, de solicitar informações a qualquer pessoa sob pena de imposição de multa até 10000 coroas suecas em caso de incumprimento117, de emitir recomendação no termo de uma investigação pela qual formula um juízo sobre a legalidade da actuação de uma autoridade ou de um funcionário e em cujos termos pode ainda indicar as medidas correctivas que se lhe afigurem adequadas118, paralelamente o Ombudsmän sueco exerce uma função que nos sistemas políticos europeus continentais poderíamos designar por “procurador extraordinário”119 no âmbito da qual pode desencadear procedimento criminal ou disciplinar, respectivamente junto das autoridades judiciais ou da autoridade administrativa competente, contra funcionário caso existam indícios da prática de ilícito dessa natureza120, podendo ainda desencadear procedimento junto das autoridades reguladoras do exercício das profissões no âmbito da saúde contra quem (médico, dentista, cirurgião, farmacêutico) tenha agido com manifesta incompetência no exercício da profissão121 O Provedor de Justiça Europeu “dispõe de importantes poderes Idem, n.º 4. Idem, n.º 6. 113 Idem, n.º 5. 114 Sobre a génese e a difusão do Ombudsman, cfr. ANDRÉ LEGRAND, op. cit., p. 13 e ss., PATRICE VERRIER, op. cit., ano 89.º, 1973, p. 948 e ss., e ainda o nosso Sobre o mandato do Provedor de Justiça, p. 135 e ss. e restantes autores aí citados. 115 Cfr. artigo 22.º da Lag med instruktion för Riksdagens Ombudsmän (Lei n.º 765, de 13 de Novembro de 1986). 116 Artigo 21.º 117 Ibidem. 118 Artigo 6.º. 119 Em sentido análogo, J. CARMONA Y CHOUSSAT sustenta que o Ombudsmän sueco é titular de poderes residuais de procurador, op. cit., p. 66. 120 Ibidem. 121 Ibidem; sobre estes poderes do Ombudsmän, cfr. J. CARMONA Y CHOUSSAT, op. cit., p. 66/67. 111 112
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de investigação e de controlo que exerce em estreita colaboração com as autoridades comunitárias e nacionais”122. À partida, está habilitado a realizar os inquéritos que entenda necessários para esclarecer qualquer eventual caso de má administração na acção das instituições, de outros órgãos ou de serviços comunitários, por sua iniciativa ou na sequência de queixa, necessitando apenas de informar previamente a autoridade visada123. Correlativamente, as instituições e organismos em causa, assim como as autoridades dos Estados membros, neste caso através das respectivas Representações Permanentes, deverão fornecer ao Provedor todas as informações que este solicitar, devendo ainda permitir a consulta dos documentes relevantes124. Do mesmo modo, os funcionários e outros agentes comunitários são obrigados a prestar depoimento sempre que interpelados pelo Provedor de Justiça nesse sentido125. Contudo, os poderes de acesso do Provedor de Justiça Europeu à informação deparam com alguns limites uma vez que as autoridades comunitárias podem recusar a prestação de informações ou a consulta de documentos por motivos de sigilo, os quais terão que ser devidamente justificados126, enquanto as autoridades nacionais deixam de estar vinculadas ao dever de prestar informações no caso da legislação nacional, v. g. referente ao segredo de Estado, impedir a prestação da informação solicitada127. Caso as autoridades comunitárias tenham em seu poder documentos provenientes de um Estado e que estejam protegidos por classificação de segurança ao abrigo do Direito interno, só poderão ser conhecidos pelo Provedor de Justiça Europeu com acordo desse Estado128. As autoridades nacionais deverão ainda ser notificadas sempre que as autoridades comunitárias facultarem ao Provedor de Justiça Europeu a consulta de qualquer outro documento que respeite ao seu Estado129. A garantia do cumprimento do dever de cooperação com o Provedor de Justiça Europeu reveste natureza estritamente política na medida em que se encontra na inteira disponibilidade do Parlamento Europeu uma vez que, no caso de não lhe ser prestada a assistência pretendida, o Provedor de Justiça informará do facto o Parlamento e será esta instituição comunitária a realizar as diligências que considerar adequadas130. Cfr. RICARDO GOSALDO BONO, Médiateur, in Rép. Comunnautaire, 1995, cit. por J. CARMONA Y CHOUSSAT, op. cit., p. 210. 123 Cfr. artigo 3.º, n.º 1, da Decisão do Parlamento Europeu n.º 94/262, de 9 de Março, relativa ao Estatuto e às condições gerais de exercício da funções de Provedor de Justiça Europeu. Sobre os poderes de investigação do Provedor de Justiça Europeu, cfr. J. CARMONA Y CHOUSSAT, op. cit., p. 209 e ss. e 258 e ss. 124 Idem, n.º 2, § 1, e n.º 3, respectivamente. 125 Idem, n.º 2, § 5. 126 Idem, n.º 2, § 1; contudo não está definida uma tipologia dos motivos legitimantes da recusa de prestação de informação. 127 Idem, n.º 3. 128 Idem, n.º 2, § 2. 129 Idem, § 3. 130 Idem, n.º 4. 122
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Outra das especificidades apresentadas pelo ordenamento comunitário europeu consiste no reconhecimento de um direito de participação da autoridade visada na formulação da recomendação na medida em que recai sobre o Provedor de Justiça um dever de dialogar com a autoridade visada com vista a encontrar, na medida do possível, uma solução adequada para eliminar as condutas que configuram má administração e, em especial, para satisfazer a pretensão do reclamante131. Apenas no caso desta diligência prévia não permitir encontrar uma solução, avançará o Provedor de Justiça para a elaboração unilateral de um projecto de recomendação132 e, mesmo neste caso, a autoridade visada goza de um direito de audiência prévia na medida em que deverá responder fundamentadamente no prazo de três meses133 e só após a recepção deste parecer haverá lugar à formulação da recomendação propriamente dita, se o Provedor de Justiça assim o entender134. Além da notificação à autoridade visada, o teor da recomendação será também comunicado ao Parlamento Europeu em relatório especial que o Provedor de Justiça enviará a esta instituição135. Além disso, o Provedor de Justiça enviará ainda ao Parlamento Europeu um relatório anual da sua actividade136. 2. O alcance dos mecanismos de protecção do Ombudsman. Compulsados os vários ordenamentos jurídicos, verificamos que existem mecanismos comuns aos vários sistemas políticos, poderemos até falar em mecanismos típicos, com a vista a proporcionar ao Ombudsman as condições necessárias à realização eficaz da função que lhe está confiada. Os mecanismos descritos podem ser classificados em quatro grupos. Assim, em primeiro lugar identificamos um (I) dever genérico das autoridades administrativas colaborarem com o Ombudsman, ao qual acrescem um conjunto de (II) deveres específicos impostos igualmente às autoridades administrativas que permitem ao Ombudsman aprofundar o conhecimento da matéria de facto conexa com o objecto do processo. Os poderes cognitivos do Ombudsman poderão conhecer (III) limites expressos e poderão ainda ser assistidos por um conjunto de (IV) garantias do cumprimento dos deveres que recaem sobre as autoridades administrativas. Assim, verificamos que alguns ordenamentos jurídicos impõem, à partida, às autoridades administrativas um (I) dever genérico de colaboração, ou cooperação, com o Ombudsman como acontece na Áustria, Espanha, França, Idem, n.º 5. Idem, n.º 6. 133 Ibidem. 134 Idem, n.º 7. 135 Ibidem. 136 Idem, n.º 8. 131 132
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Grécia, Holanda e Portugal, sendo que no caso espanhol este dever assume carácter prioritário e urgente. Contudo, as ordens jurídicas não se circunscrevem normalmente a uma formulação vaga e de certo modo indeterminada pois, além deste dever genérico de cooperação, especificam outros (II) mecanismos que, por um ou por outro modo, contribuem para que o Ombudsman disponha das condições necessárias ao exercício da sua função. Assim, encontramos em primeiro lugar os mecanismos que permitem ao Ombudsman conhecer a matéria de facto necessária a uma apreciação adequadamente esclarecida dos casos que lhe são submetidos. Os mecanismos em apreço consubstanciam-se em deveres específicos de cooperação como são os deveres que recaem sobre as autoridades visadas de (i) permitirem ao Ombudsman a consulta de documentos inseridos em procedimentos administrativos em curso ou constantes dos seus arquivos que constituem deveres específicos de cooperação aceites pacificamente em todos os ordenamentos jurídicos analisados. O dever de cooperação com o Ombudsman não se circunscreve no entanto à adopção de uma atitude passiva como é a de consentir o acesso à informação administrativa mas assume uma componente activa137 que implica o dever de prestar os esclarecimentos sobre os aspectos relacionados com o objecto do processo que o Ombudsman considere necessários, podendo (ii) solicitar as informações por escrito, convocar os agentes administrativos envolvidos para inquirição ou deslocar-se aos serviços para dialogar com os agentes visados. Em qualquer caso, a prova não fica necessariamente circunscrita à componente documental, às respostas escritas e aos depoimentos prestados pelos agentes envolvidos pois o Ombudsman pode sempre tomar a iniciativa de (iii) realizar inspecções por investigação directa138, isto é, pessoalmente ou por intermédio de colaborador139, para apreciar os factos in loco, podendo na maioria dos casos realizar a inspecção de modo indirecto140, isto é, poderá solicitar a colaboração de outras entidades, nomeadamente de autoridades policiais, do Ministério público (caso português) ou de órgãos de controlo da Administração pública em matérias específicas, como o Conselho de Estado ou o Tribunal de Contas (caso francês). Algumas figuras excepcionais permitem um acesso à informação de modo mais abrangente como são o poder de (iv) participar nos Conselhos de Ministros e nas reuniões do Governo com o Chefe de Estado (caso finlandês) ou de (v) participar em reuniões de órgãos de composição interministerial ou interinstitucional incumbidos da avaliação da Administração pública (caso belga). Os poderes cognitivos do Ombudsman poderão, no entanto, deparar com alguns (III) limites no que concerne à informação protegida pelo segredo de Estado ou pelo segredo de justiça. Neste caso, deparamos com quatro soluções A dicotomia entre as vertentes activa e passiva da investigação é também realizada por J. CARMONA Y CHOUSSAT, op. cit., 209. 138 A classificação é de FILIPE BAPTISTA, op. cit., p. 308. 139 Neste preciso sentido, FILIPE BAPTISTA, op. cit., p. 310 e ss. 140 Cfr. FILIPE BAPTISTA, op. cit., p. 308. 137
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possíveis: a primeira, mais favorável ao Ombudsman, não estabelece quaisquer limites ao conhecimento dos arcana imperii (Áustria, Espanha e Valle d’Aosta, em Itália) embora o possa vincular a manter o segredo (Áustria, e Valle d’Aosta), uma segunda que permite ao Ombudsman obter conhecimento dos assuntos independentemente da classificação de segurança mas com limites objectivos na informação sobre certas matérias, como a segurança do Estado, a defesa nacional e as relações internacionais (França, Grécia e Portugal), podendo, à semelhança do sucedido na hipótese anterior, vinculá-lo a manter o segredo (França), uma terceira solução impede o depositário do documento classificado, ou pessoa que por qualquer meio tenha conhecimento do segredo, de fornecer ao Ombudsman informações conexas com o assunto (Bélgica e União Europeia), enquanto a última solução consiste em fazer cessar o dever de cooperação dos agentes administrativos com o Ombudsman perante um assunto sigiloso mas este pode solicitar ao Ministro, ou ao órgão máximo do serviço, no caso de não se tratar de um órgão da Administração directa, a dispensa do dever de confidencialidade e, no caso desta ser concedida, fica no entanto o Ombudsman obrigado a guardar segredo (Holanda). Complementarmente a este conjunto de mecanismos que permitem ao Ombudsman intensificar o conhecimento sobre a matéria de facto, por vezes os ordenamentos jurídicos estabelecerem algumas (IV) garantias de cumprimento do dever de cooperação com o Ombudsman por forma a impedir, ou pelo menos a dissuadir, eventuais resistências dos titulares de cargos políticos e dos agentes administrativos ao cumprimento desse mesmo dever. Apesar de, nalguns casos, o legislador ter revelado sensibilidade para a questão, os diplomas legais não se afiguram tão generosos neste contexto quanto nos aspectos anteriores. Sobre esta questão, verificamos que o (i) dever de responder às interpelações do Ombudsman pode estar sujeito a um prazo fixado pelo próprio (Áustria, Bélgica, Espanha e Portugal), podendo ainda a própria lei estabelecer um prazo supletivo, caso o Ombudsman não o fixe (Bélgica). Algumas normas especiais regulam o (ii) dever de responder no que concerne especificamente às recomendações e o consequente dever de fundamentar o não acatamento das mesmas. A especificidade destas regras consiste no estabelecimento de um prazo mais alargado para responder às recomendações que o prazo geral de resposta, como sucede nos sistemas austríaco, espanhol, italiano e português, podendo o prazo variar entre um mês no caso espanhol, oito semanas no caso austríaco, sessenta dias no caso português ou não se encontrar sequer sujeito a prazos, apesar da sua consagração expressa, como no caso do Difensore Civico do Valle d’Aosta. Contudo, podemos ainda considerar que os Ombudsmen belgas podem invocar a obrigatoriedade de responder às recomendações ao abrigo do dever genérico das autoridades administrativas responderem ao Ombudsman. Os Ombudsmen dispõem de alguns mecanismos que permitem reagir contra o incumprimento deste dever de responder pelas autoridades administrativas comunicando o teor das suas interpelações à autoridade política ou administrativa Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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que está habilitada a controlar a actividade do órgão, ou agente, visado. As soluções divergem no entanto entre (iii) o poder do Ombudsman comunicar automaticamente ao dirigente máximo do serviço qualquer ofício que envie à autoridade visada (Bélgica e Espanha), (iv) de comunicar o envio de qualquer ofício mas apenas em caso de incumprimento do dever de colaboração (Holanda e Itália) ou, na solução mais restrita, (v) de comunicar ao superior hierárquico, ao Ministro ou, em último caso, à assembleia (estadual, municipal ou de freguesia) que exerce o controlo político sobre a autoridade visada e apenas em caso de não acatamento de uma recomendação dentro do prazo (Portugal). Por seu turno, os relatórios a enviar ao Parlamento, seja o relatório anual, sejam relatórios específicos sobre determinadas matérias, constituem um mecanismo adequado para o Ombudsman comunicar factos relevantes para que este órgão possa desencadear o controlo político, se assim o entender por conveniente. Algumas soluções legislativas que se revelam de certo modo atípicas neste contexto encontram acolhimento nas ordens jurídicas espanhola, portuguesa e sueca. Assim, a primeira destas soluções consiste no reconhecimento de tutela criminal ao incumprimento não justificado do dever de cooperação com o Ombudsman e vigora nos ordenamentos português e espanhol que qualificam como crime de desobediência a conduta de funcionário ou agente administrativo que se revele incumpridora do dever de cooperação; sendo que a ordem jurídica portuguesa tipifica ainda o crime recusa de cooperação no caso da mesma conduta ser imputável a titular de cargo político. Por seu turno, o ordenamento sueco confere ao Ombudsman legitimidade processual para demandar funcionários públicos (em processos criminais e disciplinares) e também profissionais liberais junto das autoridades competentes. As soluções positivadas pelos vários ordenamentos jurídicos analisados em matéria de cooperação com o Ombudsman são passíveis de sintetização no seguinte quadro comparativo.
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a) O Ombudsman fica obrigado a manter segredo b) Prazo supletiv o c) Em caso de falta é necessário justificar d) A utoridades policiais e) C om excepções em certas matérias, como segurança do Estado e relações internacionais f) C onselho de Estado e Tribunal de C ontas
v i) C rime desobediência /R ecusa cooperação v ii) Acus ar f uncionários e prof . li berais
R ecomendação
Qualquer ofício
15 dias (b) *
sim
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*
Di namarca
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Bél gica
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*
Aus tria
iv ) Parti cipar reuniões do G ov erno v ) Parti cipar órgãos de av alia ção da A P III . L imites aos poderes gogniti vo s do Om budsma n não (a) O segredo de Es tado é li mite? I V . Ga rantia s de cumprimento do dev er de cola boração i) Su jei ção da resposta a prazo L egal Fixado pelo Ombudsman 8 semanas ii) R esponder às recomendações Fundamentar o não acatamento * iii) C omunicar ao dirigente máxi mo do serv iço Sempre Em caso de incumprimento iv ) C omunicar ao Mi nistro Sempre Em caso de incumprimento v ) C omunicar ao Parla mento R elatório anual R elatório especial
I .De v er genérico C ola borar com o O mbuds man C aracter normal C arácter prioritário e urgente II . De v eres específ icos i) Perm iti r a consu lta de documentos ii) Prestar i nform ações por escrito oralmente iii) R ealiza r i nsp ecções Pessoalmente ou com colaboração interna C om colaboração externa
* * *
Qualquer ofício
=>10 dias 1 mês *
não
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* * (c)
*
*
Esp anha
não (a) ( e)
* (f)
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*
*
Fr ança
Qualquer ofício
não (e)
* (d)
* *
*
*
G récia
* *
Qualquer ofício
sim (g)
* (j) * (d) ( l)
* *
*
*
H ola nda
Qualquer ofício (i)
* *
não (a)
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* *
*
V . d'A osta (I tália)
* * *
R ecomendação
=>10 dias 60 dias *
não (e)
* * (h)
* *
*
*
Portugal
g) o dev er de confidencialidade pode ser dispensado pelo M inistro ou pelo órgão superior mas neste caso o Ombudsman fica obrigado a manter segredo h) M inistério público ou qualquer outra entidade pública, com prioridade e urgência i) Especificamente em caso de atraso na resposta ou colocação de qualquer obstáculo j) o M inistro responsáv el pode impedir o acesso alegando que está em causa a segurança do Estado l) especialistas
* *
* * (d) *
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Finlâ ndia
3. Quadro sinóptico.
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*
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Su écia
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3 meses *
sim
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Un ião Eu ropeia
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4. Conclusão Analisados alguns ordenamentos jurídicos mais significativos nesta matéria, verificamos que os mecanismos que consubstanciam o dever de cooperação com o Ombudsman se destinam apenas e somente a assegurar que as autoridades públicas facultem ao Ombudsman as condições necessárias para que a sua missão seja exercida com dignidade, nomeadamente para que as autoridades em questão se pronunciem expressamente em resposta às interpelações do Ombudsman, para que o façam num prazo razoável e de modo fundamentado e ainda para que a assembleia parlamentar ou o superior hierárquico sejam informados em tempo útil por forma a poderem desencadearem os mecanismos de responsabilidade política, ou disciplinar, consoante os casos, sempre que as medidas adoptadas se revelarem de sentido contrário a uma recomendação, ou até a um simples reparo, do Ombudsman. Os mecanismos em apreço revelam-se contudo de alcance limitado na medida em que são escassas as garantias de cumprimento efectivo do dever de cooperação. Com efeito, pela natureza das competências do Ombudsman, que se circunscrevem a um mero poder de recomendação sobre as medidas adequadas para reposição da legalidade ou para adopção de regras de boa administração141, não faria sentido a ordem jurídica consagrar mecanismos de execução das decisões deste órgão142. Bibliografia AMARAL, Diogo Freitas de; A execução das sentenças dos tribunais administrativos, Coimbra, 1997. ANDRADE, José Carlos Vieira de; Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987. ANDRADE, Manuel de; Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. I, Coimbra, 1983. BAPTISTA, Filipe da Boa; O Provedor de Justiça – A actividade e o fundamento, dissertação de mestrado, ainda inédita. BRUÑÉN Barrerá, Francisco M.; in ROVIRA Viñas, A. (organização de); Comentarios a la Ley Orgánica del Defensor del Pueblo, Madrid, 2002, anotação 20 e ss. ao artigo 24.º CARDOSO, José Lucas; Autoridades Administrativas Independentes e Constituição - Contributo para o estudo da génese, caracterização e enquadramento constitucional da Administração 141 142
Cfr. supra. Sobre o dever de execução das decisões judiciais pelas autoridades administrativas, cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL, A execução das sentenças dos tribunais administrativos, Coimbra, 1997, p. 25 e ss.; contudo não é possível estabelecer o paralelismo entre a posição sustentado pelo autor segundo a qual “onde os valores do Estado de Direito se propõe servir são respeitados, se encontra consagrado o dever de executar as sentenças dos tribunais administrativos” (idem, p. 25/26) na medida em que os tribunais são órgãos de soberania e o dever de cumprir as suas decisões é uma consequência da separação, e do equilíbrio, de poderes entre os vários poderes do Estado.
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O dever de cooperação com o Provedor de Justiça
independente, Coimbra, 2002. ---- Sobre o mandato do Provedor de Justiça - Os mecanismos concretizadores da independência do titular in PÓLIS - Revista de Estudos Jurídico-Políticos, n.º 17, p. 131 e ss.. CARMONA y Choussat, Juan Francisco; El Defensor del Pueblo Europeo, Madrid, 2000. CORREIA, Fernando Alves; Do Ombudsman ao Provedor de Justiça, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, vol. IV, Coimbra, 1980, p. 133 e ss. FAIRÉN Guillén, Víctor; Temas del ordenamiento procesal, tomo III, Madrid 1982. GARCIA Llovet, Enrique; Ombudsman y Defensor del Pueblo: apuntes para una investigación comparada in Revista de Estudios Políticos, n.º 7, 1979, p. 61 e ss. GARANT, Patrice; Du proteteur du citoyen québécois au médiateur français in L’actualité juridique-Droit Administrative, 1973, p. 237 e ss. GIL-ROBLES, Alvaro; Aperçu sur l’institution espagnole du défenseur du peuple in Études et documents du Conseil d’Etat, n.º 35, 1983/84, p. 87 e ss. ---- El Defensor del Pueblo – Comentario en torno a una proposición de Ley orgánica, Madrid, 1979. GIOVINE, Alfonso di; L’Ombudsman in Scandinavia in MORTATI, Costantino (organização de), L’Ombudsman - Il difensore civico, Torino, 1974, p. 15 e ss. LEGRAND, André; L’Ombudsman Scandinave – Études comparées sur le contrôle de l’administration, Paris, 1970. LEITE, Celso Barroso; Ombudsman: Corregedor Administrativo – A instituição escandinava que o mundo vem adotando, Rio de Janeiro, 1975. NAPIONE, Giovanni; L’Ombudsman – Il controllore della pubblica amministrazione, Milano, 1969. PECES-BARBA Martínez, Gregorio; Diez años le la Ley Orgánica del Defensor del Pueblo – Problemas y perspectivas, Madrid, 1992. PERGOLA, Antonio la; Ombudsman y Defensor del Pueblo: apuntes para una investigación comparada in Revista de Estudios Políticos, n.º 7, 1979, 69 e ss. VERGOTTINI, Giuseppe de; Ombudsman in Enciclopedia del Diritto, vol. XXIX, p. 879 e ss. VERRIER, Patrice; Le Médiateur in Revue du Droit Public, ano 89.º, 1973, p. 948 e ss.
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Associativismo e sindicalismo judiciários
ASSOCIATIVISMO E SINDICALISMO JUDICIÁRIOS (Nótula de Apresentação de um Livro)
Manuel da Costa Andrade1 I 1. Num gesto de incomensurável generosidade, quis o Senhor Dr. JOÃO PALMA, Presidente do Sindicato do Ministério Público, dar-me o privilégio de ocupar esta tribuna como apresentador do Livro Associativismo e Sindicalismo Judiciários. Uma Realidade Incontornável na Democracia Moderna. O convite que nesse sentido me foi dirigido configura naturalmente uma grande honra, além do mais por me cometer uma tarefa de irrecusável responsabilidade. O que talvez se possa dizer é que a aceitação da minha parte só pode ser levada à conta de irremível irresponsabilidade. E isto porquanto, como pude certificar-me no primeiro instante de reflexão que se seguiu à declaração imprudente de aceitação, me faltam manifestamente as credenciais indispensáveis para o cumprimento da tarefa, ao menos segundo limiares mínimos de dignidade. Se bem vejo as coisas, o apresentador de um livro só pode ser um conhecedor — no limiar superior da exigência e da excelência — da área problemática versada no mesmo livro. Isto é, tem de conhecer e dominar a matéria ao nível dos grandes modelos e dos princípios basilares e fundantes. E estar, como tal, capacitado para formular e apresentar compreensões arquetípicas sobre o tema, para depois as erigir em referentes de valoração e de escrutínio crítico da obra a apresentar. E, a partir daí, fazer chegar aos destinatários da apresentação a sua mensagem sobre os créditos da obra. Mensagem que naturalmente leva consigo um estímulo ou desafio, mais ou menos aberto, mais ou menos subtil, à sua leitura. Ou, reversamente, a prevenção contra o desperdício desse gesto. Seria por demais ocioso protestar que não é, seguramente, esse o meu caso, quando está sobre a mesa um livro sobre associativismo/sindicalismo, de mais a 1
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
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mais sobre associativismo/sindicalismo judiciários. Desde logo, não sou um estudioso dos problemas sindicais, nem sequer ao nível dos problemas jurídicos, não dominando as leges artis do seu tratamento dogmático. Menos ainda sou detentor de construções teóricas sustentadas sobre os dados que dominam a experiência sindical. Não domino nem sequer tenho uma perspectiva correcta sobre os seus problemas, maxime sobre as linhas de afrontamento e conflito que lhes estão subjacentes. Menos ainda sobre os horizontes de convergência ou, ao menos, de superação normativa. E é assim tanto do lado dos paradigmas de enquadramento normativo (constitucional, legal ou convencional); como do lado da experiência daqueles cujos trabalhos e os dias são fundamentalmente consumidos em tarefas de reivindicação e de negociação quando não nas trincheiras dos combates abertos e expostos para que são, com maior ou menos frequência, mobilizados. Em definitivo, não tenho por mim nem a teoria nem a prática das coisas de que fala o livro e sobre as quais se espera que eu discorra. As carências sobem exponencialmente de tom — nessa mesma medida e proporção subindo as dificuldades e a complexidade — quando se faz intervir a especificação e a qualificação judiciário. A minha experiência e os meus contactos com os magistrados estão fundamentalmente circunscritos aos respectivos estatutos e regimes jurídicos, oferecidos pelas leis, nomeadamente as leis processuais-penais. É, por causa disso, um conhecimento preferencialmente centrado sobre as funções, os estatutos (espectro de competências, de direitos, deveres e comandos jurídicos ou mesmo deontológicos) e os papeis que lhes estão cometidos no drama judiciário. É um conhecimento abstracto e descarnado, distanciado das mulheres e homens concretos e reais que subjectivizam os papeis, se escondem e vivem por baixo das correspondentes máscaras. E têm preocupações, cuidados e, não raro, angústias. E são portadores de reivindicações. E são influenciados por códigos profissionais e idiossincráticos a que, por força do natural desfasamento de trajectórias, não tenho acesso. Ora, a verdade é que é precisamente este outro lado da lua, para mim no essencial desconhecido, que está em causa quando o tema é associativismo/ sindicalismo judiciários. 2. Claro que há um outro modo — há sempre uma outra perspectiva — de ver as coisas e dar sentido ao aparente sem-sentido desta circunstância. Pode ter sentido confiar a apresentação de um livro a um qualquer leitor, um leitor comum, até então completamente distraído e distanciado do tema. Trata-se então de escolher um leitor e erigi-lo numa espécie de leitor arquetípico e convertêlo em mediador entre o livro e o público de outros e potenciais leitores. Isto é, pôr esse leitor a falar da sua experiência de leitor: do que aprendeu com a leitura, das gratificações que dela colheu, da sua reacção às provocações de que o livro é explicita ou implicitamente portador e o que ficou na praia, depois do refluxo das ondas da leitura. Ou, noutros termos, o que ficou das mensagens, 100
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mais ou menos expostas, mais ou menos latentes e subliminares, que o livro leva consigo. Em síntese, em que medida, a leitura do livro lhe permite ver agora as coisas do livro — no caso, associativismo/sindicalismo judiciários — com outro olhar, no plano cognitivo, ou com outra atitude no plano emocional. E, em que medida, essa experiência o estimula a recomendar o livro aos destinatários da sua comunicação. É nesta veste e neste enquadramento, reconhecidamente mais modestos mas mais confortáveis, que arrisco esta participação. E arrisco o que parafraseando uma expressão conhecida, poderá ser “uma espécie de” apresentação. E, ouso acreditá-lo, desta feita, de forma responsável. II 3. Numa primeira aproximação, de pendor prevalentemente extrínseco e fenomenológico, uma nota começa por avultar: a diversidade e heterogeneidade de matérias e áreas problemáticas cobertas e a polifonia das vozes que as suportam e oferecem. No livro juntam-se magistrados, dirigentes de confederações sindicais, professores e jornalistas. Nacionais uns, estrangeiros outros. Uns convocam expressamente casos reais segregados pela vida e pedidos a uma história não muito distante, nem no tempo nem no espaço; outros apostam numa aproximação teórico-doutrinal, privilegiando categorias abstractas de enquadramento e sistematização bem como axiomas normativos gerais, capazes de oferecer imperativos preordenados a ordenar as atitudes e os comportamentos de destinatários universais. Uns trazem a armadura conceitual, os cânones interpretativos e as leges artis da projecção histórica e historiográfica dos eventos, das correntes de pensamento, da emergência e das vicissitudes das instituições; outros os modelos de recolha e interpretação próprios da investigação sociológica, onde não é difícil rastrear a influência da teoria dos sistemas (sociais). Alguns trazem flores aos altares do Estado de Direito e dos seus marcadores eidécticos (separação de poderes, independência dos tribunais, autonomia do Ministério Público, etc); outros preocupam-se com o desdobramento e desimplicação dos corolários normativos dos axiomas fundamentais do direito e das exigências nucleares e directamente decorrentes da ideia de justiça. Outros ainda mais voltados para o lado da aplicação efectiva da lei aos casos e às pessoas, procuram pôr a descoberto as regularidades sociológicas registadas, vale dizer os mecanismos de selecção e reprodução dos “clientes do costume”. E, de forma mais ou menos larvada mas indisfarçável, denotam o mal estar perante esta justiça de olhos vendados, mas que parece ver o suficiente para dar expressão fáctica a irredutíveis “afinidades electivas”. Em síntese, enquanto uns se comprometem com os problemas de law in books, outros mostram-se mais apostados em seguir a trajectória e as sequelas da law in Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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action. Neste contexto, enquanto uns curam de representar e interpretar os factos, outros procuram ler e reagir aos sinais de crítica que os dados trazem consigo. E isto de forma polarizada e antinómica: já tentando justificar, desvalorizar e racionalizar os dados, temperando o seu potencial de crítica; já, inversamente, procurando nos factos o ponto de apoio de programas de alteração do mundo e da vida. E aqui radica um primeiro e significativo motivo de espanto — termo aqui tomado no seu significado originário e etimológico, no sentido em que o utilizavam os primeiros pensadores gregos: o espanto como causa do filosofar. Espanto que se pode expressar na pergunta: de que trata verdadeiramente o livro? Não pode naturalmente passar-se por cima do título de capa, um título a este propósito, unívoco e cortante. Por via do título, este é, seguramente, um livro sobre associativismo/sindicalismo judiciários. Para além disso e no plano material, é irrecusável que o associativismo/sindicalismo judiciários tem uma presença recorrente ao longo das páginas do livro. Onde, uma após outra, vão sendo abordadas e escalpelizadas as diferentes dimensões e faces do problema, numa inequívoca convergência interdisciplinar, a que não faltam os contributos da história, da sociologia, do direito, da política, da teoria do Estado, da criminologia crítica. 4. Só que, par disso, o leitor vai sendo sistematicamente confrontado e surpreendido com toda uma pletora de outros e centrífugos problemas, distintos entre si e aparentemente sem significativos momentos de comunicabilidade com aquele outro e nuclear tema, associativismo/sindicalismo judiciários. a) Desde logo, é possível colher no livro informação e lição sobre a doutrina constitucional do Estado de Direito, pondo a tónica na separação de poderes e sublinhando os tópicos da independência dos tribunais e da autonomia do Ministério Público. Independência e autonomia que no plano institucional configuram hoje, pelo menos no contexto da nossa civilização, aquisições consolidadas e aproblemáticas. Mas cuja projecção no dia a dia da aplicação da justiça, acaba por conhecer importantes e comprometedoras lacunas e descontinuidades. Isto mercê da intervenção de second codes, normativamente apócrifos e não escritos em lugar nenhum lugar, mas reais nos seus efeitos e concorrentes com os códigos formal e juridicamente legitimados. Lacunas e descontinuidades tanto mais preocupantes — “irritantes” diria LUHMANN — e insustentáveis quanto é certo que elas redundam sistematicamente em desigualdades, de sentido invariavelmente único. De forma implícita e latente, mas nem por isso menos presente e impressiva, o livro remete para a problemática da selecção e dos mecanismos e regularidades da selecção, com uma presença tão óbvia como reconhecida pelos observadores e teorizadores dos dados atinentes à administração da justiça, mormente da justiça 102
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criminal. Onde, há-de reconhecer-se e assumir-se, os poderes fácticos, directa ou indirectamente associados ao poder económico e político, se movimentam em santuários relativamente imunes à devassa da justiça criminal. Neste contexto, e como o livro não deixa de sublinhar, hoje como ontem a reafirmação contrafáctica da independência dos tribunais e da autonomia do Ministério Público continua a fazer todo o sentido. Fazendo eco do último sublinhado do texto de LOUIS JOINET, “os perigos continuam a espreitar” (p. 36). Tal acontece seguramente em contextos e condicionalismos diferentes daqueles que estavam presentes alguns séculos atrás. Até porque, é bem conhecido, a marcha da história não está amarrada ao círculo do eterno retorno, antes se actualiza em avanços irreversíveis, numa lógica de espiral. Bem podendo assim dizer-se que também a independência e a autonomia não se banham duas vezes nas mesmas águas, nem têm que se afirmar perante as mesmas resistências. As resistências com que hoje se defrontam são seguramente menos óbvias, frontais e definidas. Mas nem por isso menos eficazes, precisamente porque invisíveis e nebulosas. b) Associado a este, aparece o tema da crise actual da justiça, traduzida em preocupantes marcas de perda de prestígio e de confiança. Tudo a projectar-se em disruptivos efeitos iatrogéneos no funcionamento da sociedade e do Estado. Sem prestígio da justiça, não há confiança: nem nos seus servidores nem nas decisões que constituem o output do sistema. E que os destinatários deixam de erigir em premissas das suas expectativas e da sua conduta futura. O que arrasta consigo a perda de confiança na validade das normas e da interiorização dos valores por elas servidos. Tudo a desembocar em perigosos processos de anomia e desregramento colectivos. É o que, de forma umas vezes implícita e sugerida, outras de forma explicitamente assumida, os autores do livro não deixam de sublinhar. E fazemno de maneira tanto mais notável quanto é patente que a”filosofia” do livro e os seus programas políticos não enveredam pelo caminho reducionista e fácil da invenção de bodes expiatórios e de projecção de culpas. Isto de acordo com a lógica de identificação do outro como a fonte ou a causa do mal e a auto-identificação como o princípio do bem. Com clarividência, ascese e corajoso sentido autocrítico, o livro assume o propósito de não “descurar a responsabilização dos membros do próprio corpo para com a sociedade, optando por uma defesa acrítica de classe” (p.49). c) Mesmo numa recensão intencionalmente sumária de algumas das áreas problemáticas versadas no livro e que mais me impressionaram no momento da leitura, cabe sublinhar também os clarificadores e pertinentes excursos de índole historiográfica. No caso, centrados sobre as experiências paradigmáticas da França e da Alemanha. Em que o registo da evolução e das transformações do lado do associativismo/sindicalismo judiciários é feito tendo como pano de fundo as Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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vicissitudes verificadas no plano da organização política, dos avanços e recuos, das vitórias e derrotas do Estado de Direito, aqui e ali pontilhadas por momentos apocalípticos de tragédia. Sobrando a este propósito, clara e sustentada, a evidência de que as mudanças e transformações ocorridas no plano político tiveram invariavelmente, e de forma impressivamente sincrónica, réplica do lado da experiência do associativismo/sindicalismo judiciários. O que vale paradigmaticamente para o caso alemão, em que a descida aos infernos desencadeada pela aventura totalitária, contou em medida não despicienda com o comprometimento e a cumplicidade não regateada das magistraturas, particularmente dos seus dirigentes, meros serventuários do poder. Com muitos dos seus protagonistas a chamar a si uma quota elevada no que Jaspers designaria “a culpa alemã”. De qualquer forma, tanto a experiência alemã como a francesa deixam atrás de si uma lição tão unívoca como cortante. A lição da vinculação indissociável entre: de um lado, o Estado de Direito e a democracia; e, do outro, o associativismo/ sindicalismo judiciários. Isto pressuposto que, deste lado, estejam em causa organizações representativas e, principalmente, livres. Dotadas de consistentes direitos de acção e reacção, a começar pela matricial liberdade de expressão e de tomada de posição sobre os assuntos pertinentes. Uma liberdade que importa reivindicar e reconhecer à margem de toda a coacção extrínseca e de toda censura, a começar pela sua manifestação mais insidiosa e dirimente, a auto-censura. d) Noutra direcção, o fenómeno do associativismo/sindicalismo judiciários é também projectado sobre o pano de fundo de uma reflexão sociológica sobre as associações no âmbito da sociedade moderna. Neste plano, são assinaladas as oscilações da sua presença e postas em evidência as suas funções de integração, tanto em benefício do indivíduo como da sociedade enquanto sistema. E é sobretudo na perspectiva da sua insuprível funcionalidade sistémica, que as coisas ganham fecundidade heurística. Tanto como colectores e difusores de informação e de contributos essenciais para a formação da opinião pública sobre que assenta a própria ideia democrática, como pela mediação e descodificação interpretativa dos impulsos emanados dos poderes centrais. Bem como pela representação e subjectivização dos interesses colectivos, maxime os que são polarizados pela administração da justiça. Tudo com reflexos positivos e funcionais para a integração e coesão sociais. Como pode ler-se numa das formulações-síntese do livro, a realidade e a vivência democráticas não se esgotam na participação e intervenção individuais. São as associações que “canalizam para a esfera pública informação, reivindicação e orientações normativas e valorativas que permitam enriquecer o processo deliberativo na esfera pública” (p. 57). Um topos que aponta directamente para o tema da publicidade e do “espaço público” habermasiano, por onde passa outro dos fios que suportam a legitimidade do associativismo/sindicalismo judiciários.
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5. A lista de temas presentes no livro, aparentemente autónomos e excêntricos em relação ao tema central, elevado à capa do livro — associativismo/sindicalismo judiciários — podia continuar a alongar-se. Os que ficam visitados, convocados de forma aleatória e a título meramente exemplificativo, oferecem já uma base bastante para emprestar plausibilidade à pergunta que deixei antecipada: de que trata verdadeiramente o livro? Ora, a resposta só pode ser uma, por mais paradoxal que ela possa soar, se tomada precisamente a terminar o percurso feito a recordar os temas aparentemente alheios e excêntricos. A resposta só pode ser concretamente: este é mesmo um livro sobre associativismo/sindicalismo judiciários. Mais, é um livro centrado sobre este tema e só inteligível a partir dele. Claro que então cabe continuar a questionar, na linha do espanto originariamente sublinhado, o que tem a ver com isto o Estado de Direito, a independência dos tribunais e a autonomia do Ministério Público, a sociologia das associações e dos sistemas sociais, os valores da publicidade e do espaço público, o prestígio da justiça, a confiança na justiça, a coesão e a integração normativas … E também agora a resposta só pode ser unívoca e simples: tudo! É um exercício de explicitação e fundamentação deste enunciado, adiantado como uma espécie de tese ou de conclusão que ora me proponho ensaiar. Tratase, noutros termos e fundamentalmente, de pôr a descoberto as múltiplas e recíprocas linhas de interpenetração que medeiam entre o tema associativismo/ sindicalismo judiciários, de um lado, e os temas-ambiente, do outro. a) As coisas são particularmente lineares do lado das relações entre associativismo/sindicalismo judiciários e Estado de Direito, ligados por múltiplos, umbilicais e decisivos momentos de comunicabilidade. A começar pelo problema da legitimação e da legitimidade do associativismo/ sindicalismo judiciários, matéria abordada no livro com pertinência e abertura. Bem patente na circunstância de a sua discussão integrar vozes que encaram o associativismo/sindicalismo judiciários com declinada distanciação, cepticismo e mesmo indisfarçada oposição. Ora, a equacionação e resposta aos problemas de legitimação e legitimidade do associativismo/sindicalismo judiciários entroncam directamente no cerne da ideia e da doutrina do Estado de Direito. Logo porque o associativismo/sindicalismo judiciário é, em si mesmo, expressão de uma liberdade ou de um direito fundamental de associação, constitucionalmente assegurado. Depois, porque o associativismo/sindicalismo judiciários está intimamente associado à independência e autonomia das magistraturas, corolário irrecusável da divisão de poderes, um dos rostos do Estado de Direito. Não sendo neste contexto arriscado acreditar que o direito ao associativismo/sindicalismo judiciário configura, mais do que um direito ou para além de um direito — de cada um dos magistrados, individualmente considerados, ou do respectivo colectivo como grupo ou classe — uma irrenunciável instituição do Estado de Direito e da sociedade democrática.
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b) A experiência do associativismo/sindicalismo judiciários está também estreitamente associado à procura de caminhos de recuperação do prestígio da justiça e da confiança, individual e colectiva, na realização da justiça. Logo, por vias do seu comprovado compromisso com os valores e as exigências da legalidade, objectividade e igualdade, procurando contrariar as manifestações mais expostas e chocantes de desigualdade e de privilégio, tão propícias à disseminação da desconfiança e do cinismo colectivos. Também pela sua assumida e sistemática oposição à multiplicação de imponderadas e precipitadas intervenções legislativas, ou numa impressiva expressão com curso no livro, de uma “justiça do joelho” ou “no joelho” (p.85). Acresce o inestimável serviço prestado pelo associativismo/sindicalismo judiciários ao nível do espaço público. Logo pela sua quase contínua presença na publicidade, a resgatar as coisas da justiça do modelo da arcana praxis e das servidões de velhos e novos poderes ocultos. E, intimamente associados, os esforços porfiados de vigilância contra as formas, mais expostas ou mais subliminares, de condicionar e, pior do que isso, orientar o sentido da investigação e da perseguição das condutas desviantes. Isto para contrariar, e na medida do possível neutralizar, o estereotipo — tão ancorado no consciente colectivo, e tão drasticamente comprometedor para o prestígio da justiça e a confiança que nela é depositada — de que a investigação e a perseguição caem sistematicamente sobre os mesmos lugares, os mesmos suspeitos. Como facilmente se intui, aqui é de reafirmação contrafáctica dos valores e dos princípios de legalidade, objectividade, igualdade que se trata. c) Ainda nesta linha de aproximação — associativismo/sindicalismo judiciários e prestígio da justiça — sobreleva claramente outro dado, particularmente marcante na experiência portuguesa e também ele, a justo título, oferecido à consideração do leitor. Refiro-me ao facto de serem as associações profissionais dos magistrados que, quase em exclusivo, vêm ao espaço público subjectivizar o contraditório. Apostando em explicar, justificar e, sendo caso disso, sustentar procedimentos e decisões do quotidiano dos tribunais. Que muitas vezes são acolhidas no espaço público sob um vendaval de críticas, por via de regra, adiantadas e amplificadas pelos media. Media que, frequentemente, apostam na exploração dos lados aparentemente mais chocantes, convidando a rasgar as vestes e a chamar a justiça e os seus agentes ao pelourinho. E isto sem o exigido exame das singularidades e especificidades do processo concretamente em causa e sem tomar na devida conta o sentido e as implicações dos normativos aplicáveis. E desatentos e distraídos da sua densidade teleológica e axiológica e dos avanços civilizacionais que eles têm atrás de si, muitas vezes feitos à custa do inenarrável sofrimento de tantos. Ora, à vista da indisfarçável falta de propensão das instâncias representativas das instituições judiciárias para cumprir este papel, têm sido as associações profissionais a colmatar a lacuna e ocupar a trincheira. Travando, quase sempre 106
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com acerto e eficácia, o combate. E, invariavelmente, animados da consciência e do propósito de em cada hora oferecer contributos para a salvaguarda e a recuperação do prestígio da justiça e da confiança que ela deve despertar nos seus destinatários. 6. Chegados aqui, julgo poder considerar confirmada a conclusão antecipada. E segundo a qual a dispersão e aparente excentricidade dos temas versados no livro — de mais a mais trazidos por diferentes vozes e diferentes rostos, com experiências, memorias, preocupações, “interesses cognitivos” dissonantes e constelações axiológicas não inteiramente sobreponívéis — estão longe de comprometer aquela unidade de sentido e aquele fio condutor que configuram uma exigência conatural de todo o livro. Bem vistas as coisas, todos os temas e áreas problemáticas são afinal convocadas pela discussão centrada sobre o associativismo/sindicalismo judiciários, o tema nuclear que emerge como alfa e ómega do trabalho, e oferece ao leitor um benvindo fio de Ariana. Bem podendo mesmo dizer-se que a discussão do associativismo/sindicalismo judiciário não faria sentido, não seria minimamente fecunda nem clarificadora, sem recuperar e reinterpretar de forma auto-referente — passe o eco da linguagem luhmanniana — a complexidade emergente dos sistemas-ambiente. Como aqueles que encontraram reconhecimento expresso no livro. E todos aqueles que nele têm presença, mais ou menos larvada e discreta mas que é possível, com um elementar exercício hermenêutico de desentranhamento, referenciar e chamar à linha do horizonte problemático. Fechado assim o círculo lógico e epistemológico do meu percurso, soa claramente a hora de encerrar o discurso. Não o farei sem antes trazer à mesa um topos final, que pode também ser visitado no livro. Que, além do mais, emerge no contexto desta apresentação como motivo de merecido e justo tributo ao associativismo/sindicalismo judiciários. Dito de forma intencionalmente breve, tenho em vista as singularidades da conflitualidade sustentada pelas associações profissionais das magistraturas, concretamente das portuguesas. Singularidades que contendem tanto com o traçado das linhas de divisão e afrontamento como com os motivos — se quisermos com os interesses trazidos ao conflito — bem como com o tom e o pathos postos na sua gestão e condução, na procura de equilíbrios de superação a cada momento possíveis. Sabe-se como a conflitualidade configura uma dimensão conatural à ideia e à experiência sindicais . O normal no panorama sindical é que os sindicatos se movimentem em nome de interesses e reivindicações, em princípio antinómicos com os interesses suportados e subjectivizados pela entidade — empresa, instituição, sistema — a que prestam trabalho. O quadro é aqui significativamente outro. Os dirigentes das associações e sindicatos das magistraturas levam muitas das suas intervenções e das suas reivindicações— vale dizer, também dos seus combates — em nome de valores e interesses que não são antinómicos face aos que são suportados pelo “outro lado”. Estranhamente, são os mesmos: de ambos os lados se pretexta brandir palavra e gládio pelos valores e interesses imanentes Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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ao sistema de justiça. A estranheza e a complexidade sobem de tom quando se toma em linha de conta que, numa primeira e mais linear consideração das coisas, são precisamente aqueles “outros” que emergem como os representantes institucionais e, como tais, os intérpretes mais credenciados dos valores e interesses em causa. Pelo menos foi este o papel que lhe terá sido distribuído pelo autor do Grande Teatro do Mundo. Por ser assim, compreende-se que este seja um combate que os autores do livro se propõem conduzir à custa da renúncia a muitas das suas próprias gratificações e ganhos. Numa emblemática proclamação do livro “as preocupações com o nosso estatuto sócio-profissional, actualmente um dos mais degradados da Europa … cedem perante questões estruturais fundamentais, como a configuração constitucional do Ministério Público português, os direitos dos cidadãos que o Ministério Público português, como defensor da legalidade democrática, deve lutar para preservar” (p. 23). Sendo assim as coisas, não será arriscado, na hora de concluir, sustentar que o sistema de justiça conta — em sua defesa, na promoção dos seus valores, na prossecução dos seus objectivos, no desempenho das suas funções, na preservação do seu prestígio — com o suporte das associações profissionais das suas magistraturas. Que ao contribuírem para a eficácia, o prestígio e a confiança na justiça, nessa mesma medida contribuem para a preservação e reforço do Estado de Direito. E nessa mesma medida emergindo credores de um tributo que não pode regatear-se. III 7. Vistas as coisas deste meu posto de observação, devo ao livro sob apresentação o privilégio de mo ter demonstrado. E devo ao Senhor Presidente do SMMP ter-me assegurado a oportunidade de ler criticamente a obra. Aos ouvintes, na medida em que a eles me tenha adiantado, devo o conselho de uma leitura atenta.
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A desejável flexibilidade da incapacidade das pessoas maiores de idade 1 Marta Costa 2 Sumário: I - Aspectos gerais. 1. Introdução. 2. Uma perspectiva global. 3. O conflito entre o regime da incapacidade e os direitos fundamentais. II - As incapacidades de pessoas maiores de idade no Direito Português 1. Contornos das incapacidades de pessoas maiores de idade na ordem jurídica portuguesa. 1.1. O regime da interdição. 1.2. O regime da inabilitação. 2. Breve confronto entre os regimes da interdição e da inabilitação. III - O caso italiano. A administração de apoio. 1. A reforma das incapacidades de pessoas maiores de idade: princípios gerais. 2. A relação entre interdição, inabilitação e administração de apoio. 3. A amplitude da administração de apoio e as funções do administrador. 4. Observações conclusivas. IV - Conclusões. Bibliografia I - Aspectos gerais 1. Introdução Vivemos numa época caracterizada por profundas transformações sociais em muito potenciadas pelo avanço que a ciência e a tecnologia têm vindo a conhecer. Marta Costa As sociedades de hoje confrontam-se com mutações estruturais significativas3, capazes de tornar, abruptamente, as concepções contemporâneas Indicações bibliográficas actualizadas por referência a 1 de Maio de 2009. Doutora em Ciências Jurídicas pelas Universidades de Coimbra e Bolonha; professora da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa; advogada. 3 Numerosíssimos autores reflectem esta visão plenamente dinâmica da sociedade, acentuada ao longo das últimas décadas. A título meramente ilustrativo, v. as palavras de Dominique Verani, no preâmbulo de L’enfant au coeur des nouvelles parentalités, Rapport annuel 2006, p. 4 (disponível 1 2
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insuficientes para responder às reivindicações de tutela crescentes de cada ser humano, no contexto dos transformandos costumes sociais. Este dinamismo incessante apresenta-se com um flagrante paradoxo, contrapondo os inúmeros benefícios do progresso ao árduo esforço de adaptação e de resposta aos sempre novos desafios que esse suscita a cada um de nós, à comunidade e, embora num ritmo mais lento, ao próprio direito4. O fervilhar da vida reclama, assim, uma permanente adaptação do direito5, também ele um constante constituendo6. A vivência actual é (potencialmente) cosmopolita, pelo que os Estados soberanos não devem ficar alheios às opções jurídicas das nações vizinhas, mas ser antes sensíveis às vantagens da adopção de soluções idênticas, sobretudo no contexto do mercado único, de livre circulação e concorrência. Apesar de em muitas áreas sócio-jurídicas essa sensibilidade ser já manifesta, persistem outras, normalmente ligadas a matérias detentoras de profunda susceptibilidade7, perante as quais a consciência geral e os vários formantes jurídicos8 de cada nação indicam caminhos divergentes para as questões que se vão suscitando. Um exemplo destes caminhos divergentes é o dado pelo tratamento jurídico no seguinte endereço electrónico: http://www.legislation-psy.com/spip.php?article1533, visitado em 1 de Outubro de 2008), onde é salientada a dificuldade da sociedade em acompanhar as suas próprias mudanças, trazidas pela evolução dos modos de vida e pelo isolamento. Emblemáticas são também as palavras de Francisco Pereira Coelho, que escreve, no Prefácio da 2.ª edição do livro Curso de Direito da Família, que «O mundo mudou nestes trinta e seis anos; todos mudámos com o mundo (...)» (Francisco Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, Curso de direito da família, Vol. I, Introdução ao Direito Matrimonial, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 12). 4 Elena Urso refere a grande capacidade de adaptação do direito, em particular do direito da família, o qual reflecte «– quasi fosse uno “specchio” – i mutamenti che incidono sul tessuto sociale, in un determinato momento storico» [«Il diritto di famiglia nella prospettiva “europea”», in Il diritto di famiglia nell’Unione Europea: formazione, vita e crisi della coppia, a cura di Francesca Brunetta d’Usseaux, Cedam, Padova, 2005, p. 515]. V. também Elisabeth Beck-Gernsheim, La reinvención de la familia. En busca de nuevas formas de convivencia, Paidós, Barcelona, 2003, passim. 5 Mark van Höcke escreve, a este propósito, que: «Every culture, including legal culture, is an open and dynamic, not a closed and static entity» [«The harmonisation of private law in Europe: some misunderstandings», in The harmonisation of European private law, Mark van Höcke/François Ost (eds.), Hart Publishing, Oxford, Portland Oregon, 2000, p. 5]. 6 A. Castanheira Neves, Curso de introdução ao estudo do direito (Lições), edição policopiada, Coimbra, 1971/1972, p. 408. 7 Marta Costa, «Forme di convivenza affettiva e diritti della persona nei paesi dell’Est Europa. Appunti per una ricerca», in Libertà di coscienza e diversità di appartenenza religiosa nell’Est Europa, Giovanni Cimbalo/Federica Botti (ed.), Bononia University Press, Bologna, 2008, p. 307. 8 Designação atribuída ao conjunto dos elementos que constituem um direito, o grupo formado maioritariamente pela legislação, jurisprudência e doutrina. Rodolfo Sacco, Autor que utilizou pela primeira vez a expressão formanti giuridici, assevera que, ao lado dos formanti citados (legislativos, jurisprudenciais e doutrinais), existem também os crittotipi, que não resultam de formas verbalizadas, tratando-se antes de modelos implícitos em cada sistema jurídico, assumindo para o seu jurista originário o carácter de “óbvio”, por fazerem parte integrante da sua mentalidade (Introduzione al diritto comparato, 5.a ed., UTET, Torino, 1992, pp. 43 ss e p. 128).
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oferecido aos sujeitos com capacidade diminuída9, grupo que se tem vindo a adensar visivelmente, com o aumento da esperança média de vida e consequente envelhecimento da população10. Com efeito, a esperança média de vida tem vindo a aumentar progressivamente, situando-se em Portugal já acima dos setenta e cinco anos para os homens e dos oitenta e um anos para as mulheres11. Completar cem anos não é hoje caso singular, mas, infelizmente, atingi-los num estado de capacidade diminuída também não o é. As doenças do foro psiquiátrico/neurológico adquirem proporções
Esta expressão, que foi usada pelos conferencistas de Wingspan – The Second National Guardiasnhip Conference dos Estados Unidos da América, em 2001, visa englobar todos os sujeitos tradicionalmente considerados incapazes. Na ordem jurídica portuguesa, recorre a esta expressão Paula Távora Vítor, Autora que intitula a sua monografia de “A administração do património das pessoas com capacidade diminuída” (Coimbra Editora, Coimbra, 2008). A presente expressão teve também acolhimento no Projecto de Lei n.º 788/X, relativo aos “Direitos dos Doentes à Informação e ao Consentimento Informado”, o qual foi aprovado, na generalidade, no Parlamento, no dia 28 de Maio de 2009. O art. 12.º, n.º 1, deste Projecto consagra mesmo uma definição de “adulto com capacidade diminuída”, nos seguintes termos: «(...) a pessoa que no momento da decisão, devido a qualquer causa, não tem o discernimento suficiente para entender o sentido do seu consentimento, ou não tem o livre exercício da sua vontade». 10 De acordo com os dados das Nações Unidas, actualmente 10% da população tem mais de sessenta anos, sendo que, em 2050, estima-se que essa percentagem duplique, atingindo os 20%. Em Portugal, no ano de 2006, verificava-se que 23% da população tinha sessenta anos ou mais, sendo que essa percentagem deverá aumentar para 36% em 2050. Desses 23%, 17% correspondiam a pessoas com oitenta anos ou mais, elevando-se a percentagem presumivelmente para 27% em 2050 (dados disponíveis nos seguintes endereços electrónicos: http://www.un.org/esa/socdev/ ageing/documents/ageing2006chart.pdf; e http://www.un.org/esa/socdev/ageing/popageing. html, ambos visitados em 10 de Setembro de 2008); v. também a Exposição de Motivos da “Proposta de Resolução do Parlamento Europeu que contém recomendações à Comissão sobre a protecção jurídica dos adultos: implicações transfronteiriças” – (2008/2123(INI)) –, de 24 de Novembro de 2008 [disponível no seguinte endereço electrónico: www.europarl.europa.eu (visitado em 28 de Novembro de 2008)]. 11 Indicadores Sociais de 2006, Instituto Nacional de Estatística, Lisboa, 2008, p. 21. A média nos Países da União Europeia, de acordo com os últimos dados disponibilizados, é idêntica à portuguesa: setenta e seis anos para os homens e oitenta e dois anos para as mulheres. V. «Protection sociale et inclusion sociale en Europe – Eléments et chiffres clés», in Memo/08/625, Bruxelles, 2008, disponível no seguinte endereço electrónico: http://europa.eu/ (visitado em 20 de Outubro de 2008). 9
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significativas12, afectando uma fasquia elevada da população13. Podemos afirmar com segurança que se vive mais, mas, frequentemente, à maior longevidade vem associada uma menor qualidade de vida. Esta é mais uma das antinomias que as sociedades têm agora de enfrentar, a qual não é naturalmente desprovida de consequências jurídicas. Por isso mesmo, a forma de considerar as relações nas quais intervêm pessoas com capacidade diminuída coloca-se com uma acuidade até há pouco tempo desconhecida14. O próprio foco de atenção tradicional nesta matéria requer, em nossa opinião, uma deslocação, relativizando o património do sujeito e centralizandose na pessoa enquanto tal, com a intrínseca valorização da dignidade humana15 e dos valores da socialização e da reintegração, ou seja, de uma cidadania inclusiva. Notamos que, em Portugal, à incapacidade jurídica de pessoas maiores de idade podem estar associados dois institutos formais distintos: a interdição e a inabilitação16. Como escreve Mota Pinto, «O (...) Código Civil não faz qualquer Cfr. André Dias Pereira, O consentimento informado na relação médico-paciente, Coimbra Editora, Coimbra, 2004, pp. 224 ss. Segundo dados disponibilizados no sítio electrónico da ANEM – Associação Nacional de Esclerose Múltipla (http://www.anem.org.pt, visitado em 2 de Janeiro de 2009), «Os estudos epidemiológicos apontam para a existência de 450.000 pessoas com Esclerose Múltipla só na Europa, sendo a incidência maior nos países nórdicos. Estima-se que o número de doentes em Portugal seja da ordem dos 5000». Élia Freitas escreve que: As doenças de Alzheimer e de
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«
Parkinson são duas problemáticas que afectam uma grande percentagem da Terceira Idade na Europa…» (Alzheimer e Parkinson afectam mais a Terceira Idade mas… Doenças degenerativas já surgem
aos 50 anos, disponível no seguinte endereço electrónico: http://www.srsdocs.com/parcerias/ revista_imprensa/jornal_madeira/2006/jm_2006_01_16_01.htm (visitado em 1 de Novembro de 2008). Em sentido próximo, afirmam Valéria Leite/Eduardo Carvalho/Kátia Barreto/Ilka Falcão, no estudo intitulado “Depressão e envelhecimento: estudo nos participantes do Programa Universidade Aberta à Terceira Idade” que: «O processo de envelhecimento populacional em curso no país tem aumentado a frequência de doenças psiquiátricas, entre as quais, a depressão, que é a desordem mais comum nesse segmento etário. As taxas de prevalência variam entre 5% e 35%, quando consideramos as diferentes formas e a gravidade da depressão» [disponível no seguinte endereço electrónico: http:// www.portaldoenvelhecimento.net/artigos/artigo1337.htm (visitado em 12 de Outubro de 2008)]. 13 De acordo com o Censo de 2001, em Portugal existem 634.408 pessoas portadoras de deficiência, numa população residente de 10.3 milhões de indivíduos, ou seja, 6,3 % da população (para ulteriores informações, v. informação disponível nos seguintes endereços electrónicos: http:// www.ine.pt e http://www.min-saude.pt/portal/conteudos/enciclopedia+da+saude/doencas/ doencas+degenerativas/default.htm (ambos visitado em 2 de Maio de 2009). 14 Em Portugal, o número de acções judiciais relativas a incapacidades findas em 2002 teve um aumento de quase 15% relativamente ao ano anterior, sendo que as concernentes à interdição atingiram uma percentagem de aproximadamente 69%, as de inabilitação de 3%, não tendo existido qualquer acção de levantamento de interdição ou inabilitação (Estatísticas da justiça: estatísticas oficiais, Portugal, 2001, Ministério da Justiça, Lisboa, 2003, pp. 145 e 290; Estatísticas da justiça: estatísticas oficiais, Portugal, 2002, Ministério da Justiça, Lisboa, 2004, pp. 134 e 311). 15 A. Castanheira Neves, «A imagem do Homem no universo prático», in Digesta, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, p. 336. 16 Parafraseando as palavras constantes do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no processo n.º 121/2000, de 11 de Julho de 2000, «Não pode padecer de deficiência de incapacidade negocial de gozo aquele que se não integra legalmente numa das modalidades de incapacidade de exercício legalmente previstas no
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referência à possibilidade de interdições parciais, pelo que pode haver lugar apenas à alternativa interdição ou inabilitação, consoante a gravidade das deficiências»17. A consagração da figura da interdição no direito português remonta ao Código Civil de Seabra. Já em 1867, o art. 314.º determinava que: «Serão interditos do exercício dos seus direitos os mentecaptos, e todos aquelles que, pelo estado anormal de suas faculdades mentaes, se mostrarem incapazes de governar suas pessoas e seus bens». Lado a lado com esta disposição, vigorava o art. 337.º, o qual estatuía que: «Os surdos-mudos, que não tiverem a capacidade para reger seus bens, serão postos em tutela», sendo completado pelo art. 338.º, que previa que: «A extensão e os limites d’esta tutela serão especificados na sentença, que a conferir, conforme o grau de incapacidade do surdo-mudo». Acrescentava ainda o art. 340.º que: «As pessoas maiores, ou emancipadas, que por sua habitual prodigalidade, se mostrarem incapazes de administrar seus bens, poderão ser interdictas da administração dos ditos bens, sendo casadas, ou existindo ascendentes ou descendentes legítimos. // Ficará ao prudente arbítrio do juiz avaliar, conforme as circunstancias, se os factos, que se allegaram, são ou não sufficientes para caracterizar a prodigalidade». Por seu lado, o art. 344.º estabelecia que: «O juiz por sua sentença, conforme a gravidade dos factos, que resultarem das provas, privará o pródigo da administração geral dos seus bens, ou conservar-lha-ha, inhibindo-o simplesmente de certos actos, quando não forem precedidos da approvação do curador». Assim, a legislação nacional oitocentista previa uma incapacidade geral aplicável aos dementes, atinente tanto à própria pessoa como aos seus bens, conciliada com incapacidades específicas aplicáveis (somente) à regência de bens dos surdos-mudos e dos pródigos, de acordo com a decisão judicial ad hoc18. Em 1930, a Reforma criou interdições parciais na demência19, as quais foram, todavia, novamente suprimidas em 1966, sendo então substituídas pela figura da inabilitação. Fruto da Reforma de 1966, passaram a coexistir no direito português a interdição e a inabilitação. E assim permaneceu o estado da questão até hoje, não obstante a nossa convicção de que este regime dualista, tal como configurado, não responde às necessidades reais de socialização e protecção do sujeito com capacidade diminuída, como veremos. Por um lado, as normas da interdição não respondem às exigências concretas de cada um dos seus “beneficiários”, premiando somente o protótipo da lei geral e abstracta20; por outro, a inabilitação não se ocupa do sujeito enquanto tal, nosso ordenamento civilístico, quais sejam a menoridade, interdição e inabilitação» [disponível no seguinte endereço electrónico: http://www.dgsi.pt (visitado em 19 de Abril de 2008)]. 17 C. MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed. (A. PINTO MONTEIRO e P. MOTA PINTO), Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 235. 18 José Dias Ferreira, Código Civil Português Annotado, Vol. I, Imprensa Nacional, Lisboa, 1870, pp. 318 ss. 19 Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, com a colaboração de Henrique Mesquita, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 147. 20 Ilustrativa desta constatação é a afirmação de C. Mota Pinto, de que: «Não há qualquer lugar para o instituto da assistência no suprimento de uma incapacidade por interdição» (Teoria Geral do Direito Civil, Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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na sua dimensão vulnerável de ser humano, com necessidades de interacção, dedicando-se estritamente dos “seus” actos patrimoniais. Ora, é o zelo pela própria pessoa e pela sua dignidade que deve constituir a cimeira preocupação desta matéria. Esta é, aliás, a razão pela qual este ensaio se centra no regime da interdição, preterindo, de certa forma, a inabilitação, que se reporta apenas àqueles indivíduos «que se mostrem incapazes de reger convenientemente o seu património»,, nos termos do art. 152.º, in fine, do CC. Pretendemos debruçar-nos, portanto, essencialmente sobre os contornos da figura da interdição no direito português, focando a sua inadequação, por causa da sua inflexibilidade, para responder às exigências específicas de cada um dos seus “beneficiários”. A inexistência legal de graduação e maleabilidade, atendendo ao eventual grau de incapacidade do interditando no caso concreto entrava qualquer possibilidade de auto-realização e verdadeira socialização do sujeito, sem sequer fomentar de forma notável a segurança do tráfego jurídico. Pelo que, e mesmo pressupondo que os dois valores em causa – socialização/integração do interditando, por um lado, e segurança do comércio jurídico, por outro – tivessem a mesma dignidade social, o que não concebemos, teríamos que constatar que a disciplina legislativa da interdição na ordem jurídica portuguesa não conduz a uma solução de compromisso entre eles, privilegiando nitidamente o segundo valor referido. Assim, os sujeitos interditandos vêem-se colocados à margem da sociedade21 – que os deveria acolher e reintegrar – e estigmatizados frontalmente pela anulação da sua capacidade de exercício de direitos e limitação da própria capacidade de gozo22. O respeito pela dignidade humana, princípio basilar de qualquer Estado de ob. cit., p. 236). E, nas palavras de Leite de Campos, «a pessoa não “existe” senão com-os-outros, pressuposto e referência constante da humanidade» (Nós, Estudos sobre o direito das pessoas, Almedina, Coimbra, 2004, p. 16). 22 Na ordem jurídica portuguesa, vigoram três casos de incapacidades de gozo: (i) resultante dos impedimentos matrimoniais dirimentes absolutos, nos termos do art. 1601.º do CC (idade inferior a 16 anos, demência notória, interdição ou inabilitação por anomalia psíquica e casamento anterior não dissolvido); (ii) incapacidade para perfilhar, de acordo com o art. 1850.º, n.º 1, do CC (dos menores de 16 anos, dos interditos por anomalia psíquica, dos notoriamente dementes no momento da perfilhação), e (iii) incapacidade para testar, nos termos do art. 2189.º do CC (dos menores não emancipados e dos interditos por anomalia psíquica). A regra é a capacidade de gozo, ou seja, a de que todas as pessoas são capazes de gozar a titularidade de quaisquer direitos, salvo havendo estipulação legal em contrário (art. 67.º do CC). As restrições são atinentes a uma proibição absoluta de celebração de negócios de natureza estritamente pessoal, baseada nas insuficiências da pessoa (V. Heinrich Hörster, A Parte Geral do CC Português, ob. cit., pp. 315 ss). Igualmente, quanto à capacidade de exercício de direitos, o princípio é o de que todas as pessoas maiores de idade a possuem, por terem o discernimento mínimo e necessário para poderem participar no tráfico jurídico, regendo a sua pessoa e os seus bens. Não obstante, sobressaem três modalidades de incapacidade de exercício: perante o sujeito menor, interdito ou inabilitado, nos termos que, quanto aos últimos dois casos ora enumerados, infra veremos. 21
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Direito23, impõe o acolhimento de uma normatividade diversa, de acordo, aliás, com o que outros legisladores já há muito fizeram. Na tentativa de demonstrar a necessidade/desejabilidade de alteração da configuração do instituto da interdição, partiremos da análise dos vários formantes jurídicos da ordem portuguesa, encarando-os, por um lado, como objecto autónomo de estudo e, por outro, enquanto comparando com os formantes de ordens jurídicas vizinhas, nomeadamente da italiana, a qual, em 2004, consagrou um instituto (a administração de apoio, ou, em italiano, amministrazione di sostegno24) dotado de algumas particularidades no que se refere ao tratamento dos sujeitos com capacidade diminuída25. A menção ora feita ao “comparando” pode suscitar equívocos, uma vez que são individualizáveis, pelo menos, dois modos distintos de compreender a comparação26, designadamente, enquanto disciplina científica autónoma, e como método, reportado a ordens jurídicas distintas daquela que identifica a nossa proveniência, ou seja, a portuguesa. Será nesta última acepção que aqui o utilizaremos, ou seja, no papel de método ao serviço do direito civil27. O comparando será o direito nacional, que se verá, assim, confrontado com o direito italiano, o qual se apresenta neste ensaio nas vestes de ignoto28. A escolha da ordem jurídica italiana como objecto privilegiado de confronto com o nosso comparando assentou em vários motivos: não só no facto de ambas partilharem aspectos sócio-político-jurídicos significativos – ou, nas palavras de Giuseppe de Vergottini29, ordens (apenas) aparentemente similares –, contraindo fortes relações de vários tipos entre si, em nome do património cultural comum, reforçados pela família/tradição de Civil law30, de raiz latina, a que pertencem, V., no direito português, os arts. 1.º e 2.º da CRP. Os contornos desta figura começaram a delinear-se na década de 80, através do projecto de Paolo Cendon, comummente designado em Itália por Bozza Cendon (V. Paolo Cendon, «Infermi di mente e altri “disabili” in una proposta di riforma del codice civile», in Giurisprudenza italiana, Vol. CXL, Parte IV, 1988, p. 121). 25 Denominação que se ficou a dever ao facto de se encarar o “problema” como o património a gerir (Paolo Cendon, «Infermi di mente e altri “disabili” in una proposta di riforma del codice civile», ob. cit., p. 121). 26 Para uma perspectiva global sobre os vários modos de entender o direito comparado, v., e.g.: João de Castro Mendes, Direito Comparado, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 1982-1983, p. 9; Harold Cook Gutteridge, Comparative Law. An introduction to the comparative method of legal study and research, Cambridge University Press, Cambridge, 1946, pp. 1 ss; Lucio Pegoraro, Diritto pubblico comparato, Giappichelli Editore, Torino, 2007, pp. 1-15. 27 Giorgio Lombardi, Premesse al corso di diritto pubblico comparato. Problemi di metodo, Giuffrè Editore, Milano, 1986, pp. 29 ss. De acordo com Lucio Pegoraro, esta acepção de comparação/direito comparado é sinónima de «in vari ordinamenti» (Diritto pubblico comparato, ob. cit., 2007, pp. 1-15). 28 Não obstante as referências que serão feitas, a título secundário, a outras ordens jurídicas. 29 Giuseppe De Vergottini, Diritto costituzionale comparato, Cedam, Padova, 1999, p. 43. 30 Para uma classificação das famílias de direito v., e.g.: René David, Les grandes systèmes de droit contemporains, Dalloz, Paris, 1969, pp. 23-33; Konrad Zwiegert/Hein Kötz, An introduction to comparative law (trad. Tony Weir), North-Holland Publishing Company, Amsterdam, New York, Oxford, 1977, pp. 57 ss. Jaakko Husa chama a atenção para a falta de unanimidade relativamente 23
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e pelo abraçar de projectos comuns, como a adesão à super-estrutura da União Europeia; mas, principalmente, por, como supra referido, a ainda relativamente recente legislação italiana ter consagrado um instituto dedicado à tutela dos sujeitos detentores de capacidade diminuída, atendendo às necessidades específicas de cada beneficiário, como resultado de uma profunda reforma do regime tradicional das incapacidades há muito desejada naquele País e tão incessantemente debatida pelas próprias forças políticas, a qual poderá ser de desejável importação, mesmo que com certas adaptações, para Portugal. Explicada a motivação e o âmbito deste estudo, metamos então “mãos à obra”. 2. Uma perspectiva global O número crescente de indivíduos com capacidade diminuída originou, um pouco por todo o Mundo, o espoletar de uma reflexão sobre a (in)adequação da normatividade existente nos direitos nacionais face às novas realidades sociais. As próprias organizações internacionais não se alhearam da discussão, intervindo activamente. Foi assim que, e.g., o Comité de Ministros do Conselho da Europa emitiu, em 29 de Fevereiro de 1999, a Recomendação n.º R (99) 4, sobre os princípios relativos à protecção jurídica dos maiores incapazes31, definindo como maiores incapazes as pessoas maiores de idade que, «em razão de uma alteração ou de uma insuficiência das suas faculdades pessoais, não se encontram em condições de compreender, exprimir ou tomar, de forma autónoma, decisões relativas à sua pessoa e aos seus bens, não podendo, em consequência, proteger os seus interesses»32�. O reconhecimento dos direitos da pessoa com capacidade diminuída tinha sido já anteriormente salientado pela Assembleia Geral das Nações Unidas que, em 1971 e 1975, proclamou o direito à integração social e ao desenvolvimento da capacidade destes indivíduos33. à forma de divisão dos direitos, nas suas palavras, «in families, cultures, traditions or perhaps even spheres. So, we may seem to have reached some kind of macro-comparative paradox» («Classification of legal families today, is it time for a memorial hymn?», in Revue internationnale de droit comparé, n.º 1, 2004, p. 16). Relativamente aos países escandinavos como partes, ainda que periféricas, do civil law, v. Jacob Sundberg, «Civil law, common law and the Scandinavians», in Scandinavian studies in law, n.º 13, 1969, pp. 181 ss. 31 Conseil de L’Europe, Principes concernant la protection juridique des majeurs incapables, Recommandation n. R (99) 4 et exposé des motifs, Éditions du Conseil de L’Europe, Strasbourg, 1999. 32 V. também a Recomendação n.º R (98) 9 da Comissão de Ministros aos Estados-Membros, onde se define a situação de dependência, que não se confunde com a de incapacidade. A primeira é definida como um «estado em que se encontram as pessoas que, devido à falta ou perda de autonomia física, psíquica ou intelectual, têm necessidade de uma assistência e/ou de ajudas importantes para realizar os actos correntes da vida» (trads. nossas). Ora, do confronto de ambas as definições, resulta que, embora todas as pessoas incapazes estejam dependentes, nem todos os dependentes são incapazes. 33 V. Declaração dos direitos do deficiente mental e Declaração dos direitos das pessoas deficientes. Com efeito,
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As respostas das várias ordens jurídicas europeias à incapacidade oscilaram maioritariamente entre soluções defensoras da autonomia34, numa perspectiva de socialização, e soluções adeptas da protecção, privilegiando simultaneamente, a segurança do tráfego jurídico. A mais recente tendência35 apresenta-se defensora da autonomia do indivíduo sacrificando ao mínimo possível a sua capacidade jurídica, e beneficiando a adopção de “soluções à sua medida”, tendentes à sua socialização numa perspectiva de cidadania inclusiva36. Claramente elucidativo da valorização deste princípio é, por exemplo, o teor do acórdão do Tribunal de Bolonha, de 7 de Fevereiro de 200837, o qual, ao caracterizar o supra referido instituto italiano da administração de apoio, denota a sua finalidade de oferecer a quem se encontre na impossibilidade, mesmo que parcial ou temporária, de zelar pelos seus interesses, um instrumento de assistência que sacrifique, ao mínimo possível, a sua capacidade de exercício, adequando-se às exigências concretas de cada sujeito. No entanto, acrescentemos que, embora tenha sido nos últimos anos que esta reflexão adquiriu visibilidade mundial, já em 1968 o legislador francês reformava a sua normatividade relativa à incapacidade de pessoas maiores de idade, consagrando, ao lado dos institutos da tutela e da curatela tradicionais, a as Nações Unidas têm tido um papel de alto relevo nesta matéria, visível, e.g., na recente Convenção das Nações Unidas sobre os direitos das pessoas com deficiência e no Protocolo Adicional, os quais entraram em vigor no dia 3 de Maio de 2009. 34 Para uma definição de autonomia e confronto deste conceito com o de autodeterminação v. Joaquim Sousa Ribeiro, O problema do contrato. As cláusulas contratuais gerais e o princípio da liberdade contratual, Almedina, Coimbra, 1999, pp. 21 ss. 35 E largamente predominante. Notamos que a maior parte das ordens jurídicas que em tempos adoptaram regimes defensores da segurança jurídica, em detrimento da socialização da pessoa, foram, com o tempo, alterando a sua perspectiva. Foi o que sucedeu, e.g., na Áustria, Alemanha, França, Espanha, Bélgica, Luxemburgo, Holanda, Suíça, e, recentemente, também em Itália (v., e.g., Karl A. von Sachsen Gessaphe, «La legge tedesca sull’assistenza giuridica e la programmata riforma della legge italiana in materia di interdizione e di inabilitazione», in Quaderni di Familia, 1, 2002, pp. 65 ss; Katja Klement, «Sintesi del sistema austriaco dell’amministrazione di sostegno (“Sachwalterschaft”)», in Quaderni di Familia, 1, 2002, pp. 79 ss; Emilio Vito Napoli, «Il sistema francese dell’incapacità d’agire quale modello per una riforma in Italia (In margine alla proposta di legge sull’amministrazione di sostegno)», in Quaderni di Familia, 1, 2002, pp. 89 ss; L. Diez Picaro, «Las líneas de inspiración de la reforma del Código civil en materia de tutela», in Documentación Jurídica, n.º 41, 1984, pp. 6 ss; Bozza Cendon 2007 (testo provvisorio), Abrogazione dell’interdizione e dell’inabilitazione, disponível no seguinte endreeço electrónico: http://www.personaedanno.it (visitado em 23 de Maio de 2009). Portugal apresenta-se-nos assim com uma excepção no contexto europeu. 36 Sobre a “cidadania inclusiva”, v., e.g., Maria Alfreda Cruz, «Cidadania e Desenvolvimento no Território Web», in Comunicação apresentada ao “VII Congreso Internacional del CLAD Sobre Reforma del Estado y de la Administratión Pública”, Lisboa, 8-11 de Outubro de 2002 (INA). 37 Acórdão do Tribunal de Bolonha, 1.ª secção, de 7 de Fevereiro de 2008, disponível no endereço electrónico da seguinte base de dados jurídica: http://bd.utetgiuridica.it (visitado em 1 de Setembro de 2008). Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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figura da sauvegarde de justice38, que, aliás, se mantém até hoje. De acordo com o art. 433 e ss do Code Civil, pode ficar sujeito à sauvegarde de justice o indivíduo maior de idade que deva ser protegido na prática dos actos da vida civil, em consequência da alteração das faculdades mentais por doença, debilidade ou por fragilidade devida à idade39. Notamos que a medida de protecção não tem implicações directas na capacidade jurídica do beneficiário40. Não obstante o vanguardismo na matéria à época, o legislador francês entendeu ser, posteriormente, necessária uma reforma do regime jurídico das incapacidades dos indivíduos maiores de idade, pelo que, em 5 de Março de 2007, publicou então a Lei n.º 2007-30841, que entrou maioritariamente em vigor 38 Loi n. º 68-5, de 3 de Janeiro de 1968, conhecida como Reforma de Carbonnier, cuja vigência se mantém até aos nossos dias. Foram os juristas franceses, conhecidos pela sua tradição na defesa das liberdades individuais, os primeiros na Europa a pôr em discussão o estado civil da pessoa portadora de deficiência mental. A Reforma de Carbonnier baseou-se nos princípios da flexibilidade, da individualização e da subsidiariedade, de forma a harmonizar as necessidades de protecção dos sujeitos «majeurs protégés par la loi» com as de autonomia e de socialização, privilegiando a segunda vertente [Renato Pescara, «Tecniche privatistiche e istituti di salvaguardia dei disabili psichici», in Trattato di Diritto Privato, Piero Rescigno (ed.), 4, T. Terzo, Giappichelli, Torino, 1997, p. 763; C. Ebene Cobelli, «La riforma in Francia delle leggi sulle persone e sulla famiglia», in Rivista di diritto civile, 1976, I, pp. 430 ss; Dominique Fenouillet, «Le mandat de protection future ou la double illusion», in Répertoire du Notariat, Spécial majeures protégés et personnes vulnérables, n.º 2, 2009, 3882 e ss]. 39 O regime francês das incapacidades foi objecto de uma ampla reforma, realizada pela Lei n.º 2007308, que entrou em vigor, em termos gerais, no dia 1 de Janeiro de 2009, dando lugar não só à alteração do conteúdo das disposições do Código Civil, mas igualmente a uma visível reestruturação sistemática. Assim, ao ex-art. 490 corresponde, actualmente, o art. 425, que determina que: «Toda a pessoa que se encontre impossibilitada de zelar pelos seus interesses devido a uma alteração, medicamente constatada, das suas faculdades mentais ou das suas faculdades físicas, de forma a impedir a expressão da sua vontade, pode beneficiar de uma medida de protecção jurídica prevista no presente capítulo. // Na falta de disposição em contrário, a medida destina-se tanto à protecção da pessoa como dos seus interesses patrimoniais. Pode, contudo, ser limitada expressamente a uma das duas finalidades» - (tradução nossa). A figura da «sauvegarde de justice» passou a ser disciplinada pelos art.s 433 ss, em cujo regime ficou expresso o seu carácter de medida de protecção jurídica temporária (tendo a duração legalmente prevista de um ano, embora renovável) ou de auxílio a quem precise de ser representado para a execução de certos actos (específicos). 40 V. art. 435 do Código Civil. Todavia, os negócios celebrados pelo beneficiário podem ser resolvidos por lesão dos seus interesses ou reduzidos por excesso, para além da possibilidade de anulação dos mesmos, com base no actual art. 414-1 (v. François Terré/Dominique Fenouillet, Droit Civil. Les personnes. La Famille. Les incapacités, Dalloz, Paris, 1996 p. 1084). O juiz tomará em consideração, para esta apreciação, o património do beneficiário, a boa ou má-fé de quem com ele tenha contratado, e a utilidade ou inutilidade da operação, critério este que, com última e recente, passou a ser o primeiro indicado, fazendo-nos pensar que poderá, por isso mesmo, ter uma importância superior na ponderação judicial. 41 Esta lei foi objecto de recurso para o Conseil Constitutionnel, com vista à declaração da inconstitucionalidade dos seus art.s 39 a 42, o que veio a ser efectivamente reconhecido. Nenhum dos art.s em causa se referia, contudo, directamente às medidas de protecção de pessoas maiores [Decisão n.º 2007-552, de 1 de Março de 2007, disponível no seguinte endereço electrónico: http:// conseil-constitutionnel.fr (visitado em 2 de Setembro de 2008)]; cfr. Anthony Astaix, «Protection
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no dia 1 de Janeiro de 200942, como supra referido. Através deste acto legislativo não só ficou consagrado um maior número de medidas de protecção – caso do acompanhamento social personalizado43 –, como saíram reforçados os princípios da necessidade e da subsidiariedade da protecção jurídica da pessoa com capacidade diminuída, e os valores trazidos pela “nova consciência” entretanto surgida. Em linhas gerais, podemos afirmar que, após 31 de Dezembro de 2008, deixou de ser possível decretar a tutela ou a curatela na ordem jurídica francesa sem que a alteração das faculdades do sujeito visado seja atestada por um certificado médico específico44. Além disso, foram suprimidos os casos de decretamento do estado de incapacidade por prodigalidade, intemperança ou ociosidade, sendo que, às pessoas cuja vulnerabilidade resulte de dificuldades sociais ou económicas, poderão ser aplicadas medidas de acompanhamento social. Esta reforma pretendeu garantir que as soluções menos gravosas que a tutela fossem examinadas previamente, consagrando expressamente a subsidiariedade desta figura, e valorizando medidas de protecção menos atentatórias da dignidade humana. A Lei n.º 2007-308 criou ainda uma outra nova figura, denominada mandato de protecção futura, consagrada nos novos art.s 477 e seguintes do Código Civil, a qual permite que qualquer pessoa organize o seu futuro, designando um terceiro que, caso necessite, zelará por si e pelos seus interesses. Este mandato aplicar-se-á a partir do momento em que haja a constatação da alteração das faculdades do mandante, sem necessidade de intervenção judicial. Em nome do princípio da prioridade da protecção da pessoa, o sujeito com capacidade diminuída deverá ser sempre ouvido quanto à oportunidade de ser decretada uma medida, bem como quanto à escolha da pessoa que o “auxiliará”, devendo as medidas ser revistas, pelo menos, de cinco em cinco anos. De acordo com juridique des majeurs: le Conseil constitutionnel censure les cavaliers législatifs», in Recueil Dalloz, 2007, n.º 10, p. 645; Olivier Le Bot, «Pratique des “cavaliers législatifs”: les rappels à l’ordre du Conseil Constitutionnel», in Revue française de droit constitutionnel, 2007, n.º 71, pp. 580 ss. 42 Os trabalhos preparatórios encontram-se disponíveis no endereço electrónico da Assembleia Nacional – http://www.assemblee-nationale.fr (visitado em 9 de Agosto de 2008). 43 Esta medida reporta-se a pessoas que estejam em grande dificuldade social, sem conseguir gerir os seus recursos, embora não apresentem alterações das suas faculdades mentais. V. novo art. 495 do Code Civil. 44 Em nome do princípio da subsidiariedade, realizou-se uma inversão sistemática da consagração legislativa das figuras da tutela e curatela. Diversamente do que sucedia no Code Civil ora reformado, a partir de 2009, prevê-se primeiramente a curatela e só depois a tutela, figura mais gravosa e atentatória da dignidade humana (cfr. os art.s 492 ss e 508 e ss da versão legislativa superada com os art.s 440 ss da versão em vigor). Com a nova lei, o regime da publicidade da curatela e da tutela passa a estar previsto no art. 444 do Code Civil, estatuindo-se que as sentenças que levem à abertura, modificação ou levantamento de uma destas medidas não são oponíveis a terceiros, salvo após dois meses a contar da sua transcrição à margem do registo de nascimento da pessoa protegida, nos termos previstos no CPC. Não obstante, mesmo perante a ausência dessa menção, a medida é oponível a terceiros que tenham conhecimento pessoal da medida. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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as suas possibilidades, o beneficiário toma decisões quanto aos seus interesses de carácter pessoal, nomeadamente em matéria de saúde e de habitação, tendo a pessoa encarregada de zelar pelos seus interesses o dever de o envolver ao máximo na gestão dos mesmos45. Devemos, contudo, relevar que o legislador português tinha inserido, já dois anos antes da reforma francesa de 1968, a figura da inabilitação no direito nacional, prevendo que os seus efeitos – não atinentes aos actos de disposição de bens entre vivos, os quais estão sujeitos a autorização do curador –, pudessem depender das circunstâncias de cada caso, conforme especificado pelo juiz na sentença. Todavia, não só esta flexibilidade ficou limitada a um campo objectivo de aplicação restrito, como, no que toca à figura da interdição, a desejável maleabilidade era (e é) inexistente. Reproduzindo as palavras de Carvalho Fernandes, «a incapacidade do interdito é fixa»46. Melhor esteve o legislador espanhol que, já através da Reforma de 198347, excluiu do regime legal dos meios de suprimento das incapacidades – nas modalidades de tutela, curatela e guarda de facto – efeitos pré-determinados, preocupando-se não só com a situação patrimonial do incapaz, mas igualmente com a sua situação pessoal. Demonstrativo de tal é o art. 223 do Código Civil espanhol que prevê que os pais do incapaz, por testamento ou documento público, possam dispor sobre a sua pessoa ou os seus bens. Acrescenta o art. 269 que o tutor está obrigado a promover a aquisição ou a recuperação da capacidade do tutelado e da sua melhor integração na sociedade48. É o juiz que estipula as medidas aplicáveis àquele específico sujeito incapaz, através da sentença49, determinando a extensão e limites da incapacidade, nos termos do art. 210. O beneficiário é definido como o sujeito que, devido a doença ou deficiência persistentes, de carácter físico ou psíquico, se encontra impedido de se governar50. Escolhas distintas foram realizadas pelos legisladores austríaco e alemão, os quais, em 1983 e 1990, respectivamente, revogaram as figuras correspondentes à interdição e inabilitação, criando uma nova figura51, precursora da recentemente V. Guide sur le mandat de protection future, Ministère de la Justice, 2008, disponível no seguinte endereço electrónico : www.justice.gouv.fr/art_pix/1_gt_mandatprotectionfuture_200604_bd.pdf (visitado em 28 de Maio de 2009); Dominique Fenouillet, «Le mandat de protection future ou la double illusion», ob. cit., n.º 2, 2009, 3882 ss. 46 CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, I, 4.º ed. revista e actualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2007, p. 326. 47 Ley n.º 13, de 24 de Outubro de 1983. 48 Angelo Venchiarutti, «La protezione giuridica del disabile in Francia, Spagna e Austria, Prospettive di riforma nel sistema italiano», in Il diritto di famiglia e delle persone, anno XVII, 1988, pp. 1475 ss. 49 A sentença é objecto de transcrição no registo civil. 50 Art. 200 do Código Civil. Sobre o regime da incapacidade face à ordem jurídica espanhola, v., e.g.: Luis Martínez, Incapacidad y Tuición, Tecnos, Madrid, 1986; Carlos Vide, La guarda de hecho, in Revista General de Legislación y Jurisprudencia, n.º 4, 2003, pp. 579 ss; Celestino Tello, La nueva regulación de la tutela e instituciones afines: un ensayo sobre la ley de 24 de Octubre de 1983, Cívitas, Madrid, 1984; Eloy Riva, La tutela, Ediciones Pegaso, Madrid, 1943. 51 Paula Távora Vítor, A administração do património das pessoas com capacidade diminuída, Coimbra 45
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adoptada pelo legislador italiano, tendente a proteger os interesses de carácter pessoal ou patrimonial dos sujeitos que, por enfermidade física ou psíquica, não sejam capazes de o fazer autonomamente, de forma proporcional às suas necessidades52. Não obstante o legislador italiano ter seguido de perto, relativamente a vários aspectos, este modelo, optou por manter as tradicionais figuras da interdição e inabilitação, ainda que “retocadas”. Assim, apesar de o panorama europeu se mostrar matizado quanto à tutela jurídica oferecida aos incapazes, vislumbra-se uma clara tendência para o predomínio da preocupação com as necessidades específicas de cada sujeito e com a valorização da defesa dos seus interesses pessoais. A mudança de perspectiva é patente. O próprio Tribunal Constitucional português dá conta disso mesmo, no acórdão n.º 561/95, processo n.º 64/94, de 17 de Outubro de 1995, onde se lê que: «Hoje assiste-se, na generalidade dos países, a uma revisão crítica do regime jurídico aplicável ao deficiente mental, desde logo no domínio da sua capacidade jurídica. A própria noção tradicional de incapacidade jurídica tem sido questionada: por exemplo, a lei austríaca nº 136, de 2 de Fevereiro de 1983 (SWG), abandonou os conceitos de interdição e de inabilitação, criando em seu lugar um regime mais flexível de administração de bens (Sachwalterschaft)»53. Contudo, o legislador português tem mantido uma postura relativamente atípica, por conservadora, como decorre dos contornos da figura da interdição que, embora tenha sido objecto de reforma em 1977, continua a apresentar-se como um instituto caracterizado por uma notável rigidez, actuando de forma geral e abstracta, sem atender às particularidades do caso sub judice. Nem a própria configuração da inabilitação aproxima mais a legislação portuguesa da tendência europeia, já que a sua flexibilidade se aplica apenas à esfera patrimonial e a situações de gravidade reduzida, decorrendo todos os outros efeitos directa e invariavelmente da lei. Podemos assim afirmar que o direito português se tem mostrado pouco receptivo à valorização da autonomia do sujeito com capacidade diminuída, bem como à sua inserção no tráfico jurídico como forma de atenuação, ou mesmo de eliminação, da estigmatização54, apesar de os progressos da ciência psiquiátrica
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Editora, Coimbra, 2008, pp. 168-169. Lei austríaca n.º 136, de 2 de Fevereiro de 1983, e lei alemã de 12 de Setembro de 1990. Disponível no seguinte endereço electrónico: http://www.tribunalconstitucional.pt (visitado em 2 de Setembro de 2008). Em causa estava a eventual inconstitucionalidade do art. 202.º, n.º 1, do Código penal de 1982 (“Violação de mulher inconsciente”) por, alegadamente, conter uma discriminação dos deficientes, impedindo-os de ter vida sexual. O Tribunal Constitucional entendeu que a referida disposição não violava os art.s 71.º, 13.º e 18.º da CRP, «porquanto, se restringe um direito dos deficientes mentais, fá-lo de modo adequado e proporcionado à necessária defesa de outros direitos da mesma classe de cidadãos, numa ponderação de interesses e valores que, podendo ser contestável no domínio das opções político-legislativas, se afigura, porém, não merecer qualquer censura do ponto de vista jurídico-constitucional». Paula Távora Vítor escreve que: «O dilema da protecção-promoção da autonomia não tem sido muito vivido até hoje pelo nosso sistema jurídico» (A administração do património das pessoas com capacidade
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irem em sentido oposto, promovendo o respeito pela vontade e liberdade humanas, de forma a invadir o mínimo possível a esfera de actuação de cada um. 3. O conflito entre o regime da incapacidade e os direitos fundamentais A valorização máxima do respeito pela vontade e liberdade do sujeito com capacidade diminuída deriva de forma directa, e até espontânea, da tutela dos direitos fundamentais em qualquer Estado de Direito. De acordo com a Lei Fundamental portuguesa, o direito à capacidade civil, consagrado no art. 26.º, n.º 1, é objecto da protecção reforçadíssima da categoria dos direitos, liberdades e garantias. Esta constatação não pode deixar de ter consideráveis implicações, sobressaindo de imediato o conflito entre o direito à capacidade civil, reconhecido a todo e qualquer cidadão, e o regime mutilador das incapacidades, como consagrado na legislação portuguesa, principalmente o das interdições. A colisão entre a interdição e a liberdade individual é, aliás, expressamente reconhecida pela jurisprudência portuguesa, como resulta, e.g., do acórdão de 29 de Junho de 2006, do Tribunal da Relação de Lisboa55, que assevera que, implicando a interdição uma restrição de direitos fundamentais, só deve ser possível com fundamento legal inequívoco, sendo de considerar os seus motivos legais exaustivos (constantes do art. 138.º do CC) e não susceptíveis de aplicação analógica56. Determina o Tribunal da Relação de Évora, no acórdão de 14 de Junho de 200757, que «a limitação da capacidade genérica de um cidadão por meio de decisão judicial, não poderá ser tomada de ânimo leve, pois ele passará a ser olhado como um[a] capitis diminutio». O próprio Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 564/2007, processo n.º 230/07, acrescenta que: «o reconhecimento constitucional da capacidade civil, como decorrência imediata da personalidade e da subjectividade jurídicas, cobre, tanto a capacidade de gozo, como a capacidade de exercício ou de agir. É certo que, contrariamente à personalidade jurídica, a capacidade, em qualquer das suas duas variantes, é algo de quantificável, um posse susceptível de gradações, de detenção em maior ou menor medida. Mas a sua privação ou restrição, quando afecte sujeitos que atingiram a maioridade, será sempre uma medida de carácter excepcional, só justificada, pelo menos em primeira linha,
diminuída, ob. cit., p. 16). Processo n.º 4883/2006-6, disponível no seguinte endereço electrónico: http://www.dgsi.pt (visitado em 5 de Janeiro de 2008). 56 Abrangendo também a inabilitação, v., e.g., o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 14 de Junho de 2007, processo n.º 731/07-2, onde se lê que: «A limitação da capacidade de gozo de um cidadão, por interdição ou inabilitação, tem que estar alicerçada numa prova bem segura quanto à necessidade de protegê-lo não só de si próprio como de terceiros que, utilizando a sua incapacidade, o levem a concretizar negócios que lhe sejam prejudiciais» (disponível no seguinte endereço electrónico: http://www.dgsi. pt, visitado em 5 de Janeiro de 2008). 57 Processo n.º 731/07-2, disponível no seguinte endereço electrónico: http://www.dgsi.pt (visitado em 19 de Abril de 2008). 55
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pela protecção da personalidade do incapaz»58. Notamos que o legislador ordinário português, nos termos do art. 18.º, n.º 2, da CRP, «só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». Por via destas restrições, não pode acabar por perder sentido a tutela oferecida aos valores em causa59, pelo que o limite é o núcleo essencial do direito fundamental, um mínimo sem o qual este ficaria, irremediavelmente, desprovido de sentido útil60. Assim, toda a restrição se deve conformar com o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, tendo de ser «adequada (apropriada), necessária (exigível) e proporcional (com justa medida)»61. Consubstanciando a sentença que decreta a interdição uma situação especial de restrição da liberdade – ainda que baseada na «protecção legislativa dos indivíduos contra si próprios»62–, torna-se necessária uma «especial fundamentação social do desvalor das actividades restringidas»63, em nome da sua ampla repercussão no livre desenvolvimento da personalidade64, o que deveria requerer uma avaliação particularmente exigente da proporcionalidade, e que, como referimos, não tem sido a prática em Portugal. Desde logo, por acreditarmos que a exigência descrita não se coaduna com a adopção de medidas gerais e abstractas aplicáveis Disponível no seguinte endereço electrónico: http://www.dgsi.pt (visitado em 1 de Setembro de 2008). Tratava-se de um processo de insolvência, onde foi invocada a inconstitucionalidade orgânica dos art.s 186.º, n.º 3, e 189.º, n.º 2, al. b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. O Tribunal Constitucional considerou ambas as normas constitucionais. 59 De acordo com Gomes Canotilho, é necessário «evitar a aniquilação dos direitos, liberdades e garantias» (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Livraria Almedina, Coimbra, 7.ª ed., 2003, p. 452). 60 Apresenta-se de extrema complexidade a configuração do conteúdo essencial de um direito fundamental; contudo, terá de estar sempre presente a protecção de uma dimensão de valor absoluto, a qual não se confunde com a ideia de proporcionalidade [Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ob. cit, pp. 458-461; Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Anotada, 4.ª ed. revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 394-396; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV – Direitos Fundamentais, 4ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2000, p. 340-341; Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2004, pp. 320 ss]. 61 Gomes canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, ob. cit., p. 457. 62 Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, ob. cit., p. 319. 63 VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, ob. cit., p. 320. 64 A propósito da consagração constitucional do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, Paulo Mota Pinto escreve que: «defendemos, portanto, que do artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, na parte em que consagra agora o livre desenvolvimento da personalidade, se devem desentranhar duas dimensões – a protecção geral da personalidade (e, em especial, um direito geral de personalidade) e o reconhecimento da liberdade geral de acção (um direito geral de liberdade) – afirmando, aliás, uma raiz comum nessas dimensões, que consiste na garantia das condições de surgimento de uma individualidade autónoma e livre» («O direito ao livre desenvolvimento da personalidade, in Portugal-Brasil ano 2000», in Studia Iuridica, 2000, pp. 149 ss). Sobre este direito em relação com as deficiências, v. António de Araújo, Cidadãos portadores de deficiência. O seu lugar na Constituição da República, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pp. 151 ss. 58
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a todos os interditos, sem dar relevância à situação ad hoc. Apesar de a análise da doença, a realização do diagnóstico e a consequente valoração judicial serem feitas individualmente, as consequências adstritas ao estado do sujeito, perante a interdição, são aplicáveis, indistintamente, a todos os seus “beneficiários”. Ora, esta consequência tabelada perde de vista o cumprimento do requisito da proporcionalidade em sentido amplo, imposto pelo legislador constitucional. Pelo que pensamos que se possa mesmo argumentar em favor da inconstitucionalidade das disposições normativas que determinam o regime dos negócios jurídicos praticados por todo e qualquer interdito em Portugal65. Ou seja, dada como adquirida a consagração, na CRP, no art. 26.º, n.º 1, de um direito fundamental à capacidade civil, integrante do catálogo dos direitos, liberdades e garantias, cumpre-nos verificar de que modo ele vincula o legislador de direito privado, de forma a legitimar ou, antes, ilegitimar, o regime talhante, total e geral, estabelecido para a interdição. O art. 18.º, n.º 1, da CRP determina que «os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas». Por sua vez, o n.º 2 do mesmo art. estatui, como referimos anteriormente, que «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». Perante estas disposições, facilmente concluímos que os preceitos relativos aos direitos, liberdades, e garantias assumem «carácter jurídico-positivo e não meramente programático»66. É possível, pois, não aplicar uma norma infra-constitucional com o fundamento de que ofende o conteúdo de um preceito constitucional relativo a um direito fundamental, o que mais não é do que a reafirmação do princípio da constitucionalidade. Para além disso, os direitos fundamentais garantem ainda um efeito imediato de aplicação, perante uma lei que regulamente o exercício dos direitos, podendo as normas que tutelam os direitos fundamentais ser aplicadas, se se justificar, contra a lei e em vez dela. Logo, o legislador de direito privado está vinculado aos direitos fundamentais67, dirigindo-se até a força vinculativa dos direitos, liberdades e garantias, antes de mais, ao legislador, o qual pode ser um «potencial “inimigo” das liberdades»68. V. Raúl Guichard Alves, «Alguns aspectos do instituto da interdição», in Direito e Justiça, Vol. IX, T. 2, 1995, p. 151. Cfr., na ordem jurídica italiana, face ao regime ora suplantado, Piero Perlingieri, «Gli istituti di protezione e di promozione dell’“infermo di mente”. A proposito dell’andicappato psichico permanente», in Rassegna di Diritto Civile, 1985, pp. 51 ss. 66 Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, ob. cit., p. 206. 67 Para ulteriores desenvolvimentos, v. Claus-Wilhelm Canaris, Direitos Fundamentais e Direito Privado, Almedina, Coimbra, 2003; Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, ob. cit., pp. 219; Marta Costa, «The effectiveness of fundamental rights in private law: restrictions on the right to adopt in light of the Portuguese Constitution», in European Review of Private Law, Vol. 16, n.º 5, 2008, pp. 733 ss. 68 VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, ob. cit., 65
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Ora, o regime legal da interdição é tradicionalmente justificado com base na protecção dos interesses do interdito e também, ainda que subsidiariamente, na segurança do tráfego jurídico, argumento este que, como salienta Guilherme de Oliveira69, tem o seu pleno valor no direito patrimonial – onde, aliás, surgiu –, mas não pode servir para justificar a anulação de interesses pessoais. Acresce que a protecção do interdito contra si próprio70 não pode ir ao ponto de amputar totalmente a sua capacidade civil. Vieira de Andrade71 estabelece uma distinção entre condição e restrição do exercício de direitos fundamentais. Analisando as relações entre a CRP e a lei, em matéria de vinculação desta aos direitos, liberdades e garantias, este Autor afirma que: «embora o artigo 18.º apenas refira expressamente a categoria das leis restritivas, as leis podem ainda ser (ou pretender ser) ordenadoras, condicionadoras, interpretativas (delimitadoras ou concretizadoras), constitutivas (ou conformadoras), protectoras, promotoras e ampliativas dos direitos fundamentais»72. Referindo-se às normas condicionadoras, sustenta que as leis «poderão estabelecer imposições que acabam por constituir condicionamentos ao exercício dos direitos», sem que se trate de verdadeiras leis restritivas, por não afectarem o conteúdo do direito. É nesta situação que existem leis condicionadoras»73. Todavia, como o mesmo Autor admite, «a distinção entre condicionamento e restrição é fundamentalmente prática, já que não é possível definir com exactidão, em abstracto, os contornos das duas figuras»74. Necessário se torna, portanto, aferir, numa perspectiva material, se o grau de condicionamento do direito em causa não o convola numa autêntica restrição. Por outras palavras, devemos verificar se a lei condicionou de tal modo o direito que, afinal, o restringiu. Somos de opinião que o direito à capacidade civil, aliás como quase todos os direitos, mesmo que fundamentais, é susceptível de ser legalmente condicionado. No entanto, acreditamos que o legislador, ainda que imbuído de um espírito condicionador, se tenha excedido, acabando por restringir o campo material deste direito, em violação dos comandos constitucionais aplicáveis. Com efeito, tal restrição viola o art. 18.º, n.ºs 2 e 3, da CRP, por não ser adequada nem proporcional, e por ofender o conteúdo essencial do direito fundamental em causa. Na verdade, o direito à capacidade civil do interdito é praticamente inexistente, por causa do regime legal – talhante e invariável –, aplicável à prática de actos jurídicos pelo interdito. p. 220. Guilherme de Oliveira, Caducidade das Acções de Investigação, in Revista Lex Familiae, n.º 1, 2004, pp. 7 ss. 70 Orlando de Carvalho, Teoria geral do direito civil, policopiado, Coimbra, 1981, p. 83. 71 Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, ob. cit., pp. 222 e ss. 72 Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, ob. cit., p. 222. 73 Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, ob. cit., pp. 223 e 224. 74 Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, ob. cit., nota de rodapé n.º 50. 69
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II - As incapacidades de pessoas maiores de idade no Direito Português 1. Contornos das incapacidades de pessoas maiores de idade na ordem jurídica portuguesa 1.1. O regime da interdição O regime da interdição é tratado no livro I do Código Civil português, dedicado às relações jurídicas, na Secção V, denominada “Incapacidades”, Subsecção III, sendo antecedido do regime da menoridade, para o qual remete75. Determina o art. 138.º, n.º 1, que: «Podem ser interditos do exercício dos seus direitos todos aqueles que por anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira se mostrem incapazes de governar suas pessoas e76 bens». A regra geral é a de que o interdito carece de capacidade de exercício de direitos77, não podendo, por isso, participar, por acto próprio, no tráfico jurídico. Trata-se de uma interdição total78, que o visa proteger tanto perante terceiros que tencionem aproveitar-se da sua situação de maior vulnerabilidade, quanto perante si mesmo, evitando potenciais danos, resultantes de acções ou omissões79. Os actos do incapaz encontram-se sujeitos a sanções distintas e legalmente predeterminadas, de acordo com a fase em que sejam praticados: no decurso da acção, anteriormente à sua publicidade, ou posteriormente ao registo da sentença. Recorrendo à fórmula adoptada por Heinrich Hörster, «A “cadeia de protecção” é, deste modo, a seguinte: até à propositura da acção, regime da incapacidade acidental80; durante o decurso da acção, regime da incapacidade acidental reforçado pelo Carvalho Fernandes considera que, em certos casos, a situação do incapaz interdito ou inabilitado pode ser mais grave que a do menor, mas que, no entanto, o interdito sofre de uma «incapacidade de exercício genérica, que, não obstante poder exceder, não deixa de ser similar à do menor» (Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., pp. 326 ss). 76 Pires de Lima e Antunes Varela usam a conjunção disjuntiva ou no que se refere à «incapacidade do interditando para governar a sua pessoa ou administrar os seus bens», e não a conjunção copulativa e prevista no corpo da disposição (Código Civil Anotado, Vol. I, ob. cit., p. 147). 77 Nos termos do art. 123.º, por remissão do art. 139.º, ambos do CC. V. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, ob. cit., p. 147. Não obstante, entendemos que o interdito pode praticar determinados actos, por aplicação do regime da menoridade, ou seja, do art. 127.º do CC. Notamos, contudo, que a doutrina portuguesa diverge quanto à aceitação desta aplicação (v., infra, nota de rodapé n.º 81). 78 Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Almedina, Coimbra, 1960, pp. 82 ss. Paula Távora Vítor afirma que: «Esta medida, tal como se encontra configurada no sistema jurídico português, funciona num “desequilíbrio de tudo-ou-nada”» (A administração do património das pessoas com capacidade diminuída, ob. cit., 2008, p. 37). 79 V., e.g., acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29 de Junho de 2006, no processo n.º 4883/2006-6, disponível no seguinte endereço electrónico: http://www.dgsi.pt (visitado em 5 de Janeiro de 2008). 80 Regulado no art. 257.º do CC. No anterior CC, a incapacidade acidental era disciplinada na secção das incapacidades e não, como actualmente sucede, com os vícios da vontade (Américo de Campos Costa, «Incapacidades e formas do seu suprimento – anteprojecto do Código civil», in 75
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regime resultante dos arts. 142.º/149.º; após o trânsito em julgado da sentença mas antes do seu registo, regime da interdição, embora não invocável contra terceiro de boa-fé para quem as coisas se passam como se a acção ainda estivesse pendente; a seguir ao registo, regime da interdição sem quaisquer restrições»81. Nestes termos, os negócios jurídicos celebrados pelo interdito após o registo da sentença são anuláveis82, salvo tratando-se de actos susceptíveis de inclusão nas situações descritas no art. 127.º, por força da remissão operada pelo art. 139. º83; os actos executados pelo interditando no decurso da acção são igualmente anuláveis mediante a verificação de dois requisitos – que o negócio tenha causado prejuízo ao incapaz84, e que a interdição venha efectivamente a ser decretada. Aos Boletim do Ministério da Justiça, n.º 111, 1961, pp. 216 ss). Certa doutrina portuguesa considera que a incapacidade acidental consubstancia uma figura situada na fronteira entre os dois institutos referidos, não obstante a posição maioritária parecer incluí-la, do ponto de vista material, no regime das incapacidades. Capelo de Sousa justifica a actual escolha legislativa pelo facto de a incapacidade acidental normalmente não se reportar a estados habituais, mas sim ocasionais. Todavia, o Autor insere-a na categoria das «incapacidades factuais de exercício» (Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, ed. policopiada, Coimbra, 2004, pp. 77 ss). Em sentido próximo, Oliveira Ascensão, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, p. 176. Sobre o regime da incapacidade acidental, v. Paula Távora Vítor, A administração do património das pessoas com capacidade diminuída, ob. cit., pp. 67 ss. 81 Heinrich Hörster, A Parte Geral do CC Português, ob. cit., p. 338. 82 A anulação pode ser requerida pelo tutor durante o ano a seguir ao conhecimento da prática do acto, pelo interdito no ano seguinte ao do levantamento da interdição, e pelo herdeiro do interdito no ano posterior à morte deste. A anulabilidade é sanável através da confirmação do tutor, podendo praticar o acto em causa na qualidade de representante, do interdito após o levantamento da interdição, ou do herdeiro, após a morte do interdito. Notamos que o art. 954.º do CPC determina que, aquando do decretamento da interdição ou da inabilitação, o tribunal deve fixar, sempre que possível, a data provável do começo da incapacidade, constituindo essa fixação uma presunção legal da verdade da mesma, embora possível de ser ilidida (v. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7 de Julho de 1992, in Colectânea de Jurisprudência, n.º 4, p. 61). 83 Neste sentido, Pires de Lima/Antunes Varela, Código civil anotado, Vol. I, ob. cit., p. 148; Heinrich Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, ob. cit., pp. 340-341. Já Carvalho Fernandes entende que a aplicação do regime do art. 127.º do CC deve ser feita casuisticamente (Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, ob. cit., p. 328, nota de rodapé n.º 1). Castro Mendes também defende a aplicação do art. 127.º do CC, embora «com algumas dúvidas» (Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, Lisboa, AAFDL, 1978, p. 161). Opinião próxima é sustentada por António Pais de Sousa/Carlos Frias de Oliveira Matias, Da incapacidade jurídica dos menores, interditos e inabilitados, Almedina, Coimbra, 1983, pp. 238 ss. Em sentido oposto à aplicação do art. 127.º aos actos do interdito se pronuncia Pedro pais de Vasconcelos, Teoria geral do Direito Civil, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2005, p. 123. 84 Considera-se haver prejuízo quando um contratante sensato e prudente na gestão dos seus bens não tivesse celebrado o negócio em causa nos termos em que foi realizado. É entendimento comum que as doações são sempre prejudiciais ao interdito (por todos, Heinrich Hörster, A Parte Geral do CC Português, ob. cit., p. 336), posições com as quais concordamos. Não obstante ter sido anteriormente discutido pela doutrina qual o momento relevante para a averiguação do prejuízo, face à redacção actual da lei é certo que a referência é ao momento da realização do negócio jurídico. Esta interpretação assenta não só no elemento literal, uma vez que o art. 149.º utiliza a expressão “causa de prejuízo”, mas sobretudo na necessidade de evitar uma estigmatização completa destes indivíduos que, de outro modo, faria com que os interditandos Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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actos praticados em momento anterior ao do anúncio da acção aplica-se o regime previsto para os actos realizados por quem esteja acidentalmente incapacitado85. Aliás, esta remissão parece-nos de todo supérflua, pois mesmo que não existisse, o regime da incapacidade acidental continuaria a aplicar-se86. A interdição apenas pode resultar de uma das causas previstas no art. 138.º, ou seja, anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira, se o interditando for, com carácter de permanência, incapaz de governar a sua pessoa e os seus bens. Ficam afastadas, portanto, as situações de índole temporária, não obstante não ser de exigir uma continuidade absoluta, podendo a anomalia variar de intensidade87. Assim, a causa tem de ser habitual, duradoura e actual88. O conceito de anomalia psíquica é utilizado pelo legislador ordinário em sentido amplo89, abrangendo não só a noção clínica stricto sensu, mas também o conjunto de perturbações nas faculdades intelectuais e volitivas90. A opção foi, «fossem postos como que em quarentena pelos restantes indivíduos, perigo particularmente impressionante quanto é certo poder acabar por se reconhecer tratar-se de pessoas normais» (C. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., p. 238; no mesmo sentido, Heinrich Hörster, A Parte Geral do CC Português, ob. cit., p. 336). V., por todos, C. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., pp. 237 e 238. 85 V., e.g., acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de Dezembro de 1993, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 432, p. 320; acórdão do mesmo Tribunal, de 5 de Julho de 2001, no processo n.º 01A437, disponível no seguinte endereço electrónico: http://www.dgsi.pt (visitado em 5 de Janeiro de 2008). V. também Galvão Telles, «Valor do acto realizado por demente antes de instaurada a acção de interdição», in Separata da Revista dos Tribunais, n.º 1677; C. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit, pp. 239 ss. Portanto, nos termos do art. 257.º do CC, a declaração negocial feita por quem se encontrava acidentalmente incapacitado de entender o seu sentido ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável desde que o facto seja notório ou conhecido do declarante. 86 Cfr., Pedro pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., p. 123. 87 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Julho de 1983, in Boletim do Ministério da Justiça, n. 329, p. 523; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no processo n.º 78061, de 18 de Dezembro de 2002, disponível no seguinte endereço electrónico: http://www.dgsi.pt (visitado em 2 de Março de 2008); acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 29 de Janeiro de 2003, no processo 1476/02, que caracteriza a causa da interdição como «incapacitante, actual e permanente». Na doutrina v., e.g., Alberto dos Reis, Processos Especiais, Coimbra Editora, Coimbra, 1955, Vol. I, p. 119; Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, ob. cit., pp. 272 ss; Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, ob. cit., p. 252. 88 C. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., p. 235. 89 O mesmo conceito foi adoptado pela Lei da Saúde Mental (art. 1.º da Lei n.º 36/98, de 24 de Julho – que foi alterada pela Lei n.º 101/99, de 26 de Julho, a qual não introduziu qualquer alteração neste art. –, que se refere a «portadores de anomalia psíquica»). 90 Heinrich Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, ob. cit., p. 333; Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., p. 323; Ferrer Correia e Eduardo Correia, «Fundamento da interdição por demência», in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 86.º, 1954, n.ºs 3016, 3017, 3018, 3019, 3020; Paula Távora Vítor, A administração do património das pessoas com capacidade diminuída, ob. cit., p. 22. Notamos que, já em 1960, Manuel de Andrade definia a anomalia psíquica em termos genéricos, enquanto «perturbação ou desarranjo mental ou apenas pobreza de espírito» (Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, Almedina, Coimbra, 1960, p. 81; também Dias Marques, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 1958, p. 126; Américo de Campos Costa, «Incapacidade e formação do seu suprimento – anteprojecto do Código civil», in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 111, 1961, p. 199).
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portanto, a de não consagrar uma definição de anomalia psíquica, escolha que se, por um lado, pode comportar uma certa ambiguidade interpretativa – suscitando dúvidas quanto à extensão do seu conteúdo e pondo, de certa forma, em perigo o carácter taxativo dos seus motivos –, por outro, apresenta o incontornável benefício de permitir uma constante interpretação evolutiva91, de acordo com as contemporâneas noções médico-científicas. Assim, a interdição não depende da verificação de uma doença mental típica, “bastando”, no que a este aspecto se refere, «a presença de uma qualquer perturbação, desarranjo ou defeito patológico das faculdades psíquicas, dando lugar a uma incapacidade para prover aos interesses pessoais»92. Na densificação desta expressão, o papel primário cabe então à jurisprudência. A título ilustrativo atentemos no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Julho de 1983, no qual se lê que a “anomalia psíquica” abrange «não só as deficiências do intelecto, de entendimento ou discernimento, como as deficiências da vontade e da própria afectividade e sensibilidade»93, e que essa servirá de fundamento à interdição apenas se for duradoura ou habitual, excluindo-se a anomalia meramente acidental ou transitória94. O mesmo Tribunal voltou a caracterizar a supra referida expressão no acórdão de 1 de Julho de 2004, nos seguintes termos: «conjunto de perturbações mentais graves que alteram a estrutura mental da pessoa em causa, com profunda diminuição da sua actividade psíquica (funções intelectuais e afectividade), tornando-a incapaz de reger a sua pessoa e bens»95. Já o Tribunal da Relação do Porto afirmou, no acórdão de 13 de Março de 2001, que a interdição se destina «a salvaguardar os interesses não só do interdito mas também da família e da sociedade em geral», tendo a protecção de terceiros operado como motivo – apesar de associado a outros – para que o tribunal decretasse a interdição, asseverando que: «Deve ser interdito, por anomalia psíquica, aquele que, sofrendo de psicose esquizofrénica, tem um comportamento socialmente reprovável, perturbando os demais, insultando terceiros, sendo ávido de dinheiro e vendendo por baixo preço tudo o que possui»96. Não pode deixar de causar alguma surpresa a No mesmo sentido se pronuncia o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29 de Junho, de 2006, no processo 4883/2006-6, que passamos a transcrever parcialmente: «o nosso legislador prescindiu de fornecer uma definição do conceito de anomalia psíquica, o que constitui um necessário reenvio às correspondentes noções científicas, médico-psiquiátricas, permitindo a actualização do seu conteúdo» [disponível no seguinte endereço electrónico: http://www.dgsi.pt (visitado em 5 de Janeiro de 2008)]. 92 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29 de Junho de 2006, no processo n.º 4883/20066, disponível no seguinte endereço electrónico: http://www.dgsi.pt (visitado em 5 de Janeiro de 2008). 93 Processo n.º 070840, disponível no seguinte endereço electrónico: http://www.dgsi.pt (visitado em 19 de Março de 2008). 94 No mesmo sentido, acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 9 de Março de 1995, in Colectânea de Jurisprudência, T. 2, ano XXI, p. 182. 95 No processo n.º 04B4602, disponível no seguinte endereço electrónico: http://www.dgsi.pt (visitado em 19 de Março de 2008). 96 Processo n.º 0120012, disponível no seguinte endereço electrónico: http://www.dgsi.pt (visitado 91
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mobilização da protecção de terceiros como motivo para decretar uma figura a cuja ratio subjaz a protecção do incapaz97, na qual, parafraseando as palavras do Tribunal da Relação de Lisboa, proferidas no acórdão de 29 de Junho de 200698, «A protecção do incapaz e dos seus interesses constitui o fim precípuo da regulamentação legal». A surdez-mudez e a cegueira, únicos dois outros motivos legislativamente previstos para a interdição para além da anomalia psíquica, somente devem levar o juiz a decretar a interdição se forem a causa da incapacidade do sujeito de se governar; se não excluírem totalmente a sua aptidão para gerir os seus interesses, deverá ser decretada apenas, perante a incapacidade efectiva, a inabilitação, por ser menos invasiva da capacidade civil do sujeito. A ratio primária da figura da interdição materializa-se na resposta a problemas de carácter patrimonial, não obstante ela produzir igualmente efeitos cortantes na esfera pessoal. O interdito por anomalia psíquica não pode casar (art. 1601.º, al. b), do CC), perfilhar (art. 1850.º, n.º 1, do CC), testar (art. 2189.º, al. b), do CC), exercer as responsabilidades parentais (art. 1913.º, n.º 1, al. b), do CC99), ser nomeado tutor (art. 1933.º, n.º 1, al. a), do CC), vogal do conselho de família (art. 1953.º, n.º 1, do CC) ou administrador de bens (art. 1970.º do CC). Ora, perante efeitos tão amputadores da própria personalidade e dignidade humana, o processo tendente ao seu decretamento deve ser rodeado de fortes garantias100. Por isso, a interdição tem de ser o resultado de uma sentença, no seguimento da propositura de uma acção judicial com essa causa de pedir101. em 19 de Março de 2008). Concretizando mesmo a sua eventual legitimidade constitucional. 98 Processo n.º 4883/2006-6, disponível no seguinte endereço electrónico: http://www.dgsi.pt (visitado em 5 de Janeiro de 2008). 99 Notamos que o art. 1913.º do CC foi alterado pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, que procedeu à substituição da expressão “poder paternal” pela de “responsabilidades parentais”, nos termos do seu art. 3.º, n.º 1. Todavia, o legislador parece ter-se esquecido de fazer a respectiva alteração noutras disposições legislativas, como é o caso dos arts. 141.º, n.º 2, e 144.º do CC, que se continuam a referir ao “poder paternal”. 100 Neste sentido escreve Heinrich Hörster que a interdição, visando a máxima protecção do sujeito, constitui uma intervenção bastante forte e gravosa na sua vida e personalidade, condicionando o seu livre desenvolvimento. Por este motivo, o interditando dispõe, obrigatoriamente, de um defensor que o representa no processo, nos termos dos art.s 946.º, 947.º, n.º 2, do CPC (A Parte Geral do Código Civil Português, ob. cit., pp. 334 e 335). 101 A interdição também pode ser decretada perante o pedido de inabilitação, e vice-versa, nos termos do art. 954.º do CPC. V, e.g., acórdão de 29 de Maio de 1980, do Supremo Tribunal de Justiça, que refere que: «O artigo 954.º do Código do Processo Civil permite não só que se decrete a inabilitação quando inicialmente tenha sido pedida a interdição, mas também que se decrete a interdição quando só tenha sido requerida a inabilitação» (in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 297, ano 1980, p. 292). O Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 29 de Junho de 2006, acrescenta que, para o decretamento de um dos regimes incapacitantes, diverso daquele pedido pelo Requerente, «podem ser tidos em consideração todos os factos provados, mesmo que não alegados pelas partes» (processo n.º 4883/2006-6, disponível no seguinte endereço electrónico: http://www.dgsi.pt, visitado em 1 de Fevereiro de 2008). 97
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A legitimidade processual para fazer o pedido102 é reconhecida aos seguintes sujeitos: cônjuge, tutor ou curador, qualquer parente sucessível e Ministério Público. Se o interditando estiver sob responsabilidade parental, a legitimidade restringe-se aos progenitores a quem compita o seu exercício, e ao Ministério Público, nas vestes de defensor dos interesses dos mais débeis. Cremos que, por um lado, o leque de pessoas com legitimidade para requerer a interdição de um sujeito é demasiado restrito, por deixar à sua margem não só o principal interessado, ou seja, a pessoa a interditar103 – independentemente do seu grau de discernimento –, mas também o unido de facto ou a pessoa que com ele viva em economia comum, que, em princípio, conhecerá detalhadamente a situação do sujeito, estando-lhe ligada por laços afectivos fortes e que, para diversos efeitos, são mesmo reconhecidos pela ordem jurídica portuguesa104; por outro, que o âmbito subjectivo é demasiado extenso, na medida em que confere legitimidade ao cônjuge, independentemente do seu eventual estado de separado (judicialmente ou, de acordo com o espírito da Lei n.º 61/2008, também administrativamente) de pessoas e bens105. A incapacidade dos interditos é suprida pela tutela, forma de representação legal106, cabendo, nos termos do art. 143.º, sucessivamente: ao cônjuge107, à pessoa Art. 141.º do CC. Notamos que, com o pedido de interdição, pode ser acumulado o pedido de internamento compulsivo de portadores de anomalia psíquica, bem como o internamento de urgência, ambos previstos na Lei de Saúde Mental (Lei n.º 36/98, de 24 de Julho, alterada pela lei n.º 101/99, de 26 de Julho), desde que as regras de competência do tribunal não obstem a tal (V. Carlos Francisco de Oliveira Lopes do Rego, Comentários do Código do Processo Civil, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2004, p. 167). 103 V. sobre este aspecto, v. E. Vito NAPOLI, «L’infermità di mente, l’interdizione, l’inabilitazione», in Il Codice Civile: Commentario, Giuffrè editore, Milano, 1991, p. 3. Pensamos que não constitui uma válida justificação para a falta de legitimidade do interessado o facto de se poder parecer que o interditando seria autor e réu na mesma acção, uma vez que se trata de matéria de processo de jurisdição voluntária, na qual não se visa dirimir conflitos de interesses, mas antes regular, pela forma mais adequada, a protecção de interesses relevantes (v. acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17 de Abril de 2007, disponível no seguinte endereço electrónico: http://www.trp.pt, visitado em 22 de Maio de 2009). 104 Nos termos das Leis n.º 6/2001 e 7/2001, ambas de 11 de Maio. 105 Solução oposta foi adoptada noutros países, como é o caso de Itália. 106 André Dias Pereira, O consentimento informado na relação médico-paciente, ob. cit., 2004, p. 215. 107 Salvo se estiver separado administrativa ou judicialmente de pessoas e bens, separado de facto por culpa sua, ou se for, por outra causa, legalmente incapaz. Heinrich Hörster considera que a contemplação preferencial do cônjuge, preterindo os pais do sujeito, se apresenta como «uma solução não sem problemas em atenção à relativa fragilidade do casamento hodierno, influenciado pelo espírito hedonista da sociedade actual» (A Parte Geral do Código Civil Português, ob. cit., p. 541). Em sentido próximo Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, ob. cit., p. 152. Pensamos que, devido à importância que o casamento detém na ordem jurídica portuguesa, sendo a escolha do cônjuge livre e voluntária, ele estará, em princípio, numa posição privilegiada para realizar os interesses do interdito. Heinrich Hörster acrescenta que a disposição em causa, ao excluir da hierarquia só o cônjuge separado de facto por culpa sua, acaba por representar uma punição do cônjuge não culpado na separação de facto. Efectivamente, julgamos que seria bastante mais justo excluir o cônjuge separado de facto, independentemente de ter tido ou não culpa na separação, até 102
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designada pelos pais ou pelo progenitor que exercer as responsabilidades parentais108; a qualquer dos progenitores do interdito que, de acordo com o interesse deste, o tribunal designe; aos filhos maiores, preferindo o mais velho, salvo se o tribunal, ouvido o conselho de família, entender que algum dos outros oferece mais garantias de bom desempenho do “cargo”. Reiteramos não compreender o porquê da não inclusão do unido de facto neste elenco. Notamos que o reconhecimento legal e sociológico das relações de convivência more uxorio como relações familiares, em Portugal, é hoje indiscutivelmente aceite no âmbito de diversos domínios jurídicos109. O dever especial, porque primário, do tutor é cuidar da saúde do interdito, de acordo com o artigo 145.º do CC. Não se trata apenas de zelar pela sua saúde no sentido técnico do conceito, mas também, e sobretudo, de procurar a sua recuperação mental e física110. O tutor é investido com poderes gerais, que incidem sobre o património e sobre a própria pessoa do beneficiário, devendo exercê-los com «a diligência de um bom pai de família» (art. 1935.º do CC), ou seja, como uma pessoa normalmente precavida, de acordo com um critério de avaliação objectivo111. A interdição pode ser levantada quando cessem as causas que a originaram, através de um requerimento com essa finalidade112, feito por qualquer das pessoas com legitimidade para requerer a interdição ou ainda pelo próprio interdito113. O levantamento só deve poder ser invocado se tiver sido objecto de registo, privilegiando-se assim a segurança jurídica. Com o trânsito em julgado da sentença que ordena o levantamento, termina a interdição. Porém, isto não significa que cesse igualmente a incapacidade, uma porque apenas esta interpretação está de acordo com a ratio da Lei n.º 61/2008, que visa afastar/ diminuir a relevância da culpa do âmbito da matéria da separação e divórcio, não obstante, e mais uma vez, o legislador se tenha esquecido de proceder à necessária alteração dos art.s 143.º e 1675.º do CC. 108 Em testamento ou documento autêntico ou autenticado. Reiteramos que o legislador não alterou a expressão “poder paternal” no seio desta disposição por mero lapso (v., supra, nota de rodapé n.º 97). 109 E.g., no domínio do arrendamento urbano (art. 1106 do CC). 110 Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, ob. cit., p. 169; Abílio Neto, Código Civil Anotado, 9.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1995, p. 70; Pedro pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., p. 121. 111 V., e.g., acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16 de Março de 2006, no processo n.º 1505/200-6, disponível no seguinte endereço electrónico: http://www.dgsi.pt (visitado em 28 de Maio de 2009); Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, pp. 456-457. 112 Este processo corre por apenso ao anterior processo de interdição, nos termos do art. 958.º, n.º 1, do CPC. 113 O qual, no entanto, como referimos, não tem legitimidade para requerer a interdição. Significa isto que, para efeitos de requerer o levantamento da interdição, ao interdito é reconhecida, excepcionalmente, a capacidade para o exercício judiciário (Heinrich Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, Coimbra, ob. cit., p. 341).
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vez que o estado de interdito pode ser substituído pelo de inabilitado, modalidade de incapacidade mais ligeira que a primeira. 1.2. O regime da inabilitação De acordo com o art. 152.º do CC114, «Podem ser inabilitados os indivíduos cuja anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira, embora de carácter permanente, não seja de tal modo grave que justifique a sua interdição, assim como aqueles que, pela sua habitual prodigalidade ou pelo abuso de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes, se mostrem incapazes de reger convenientemente o seu património». Acrescenta o art. 153.º, n.º 1, que: «os inabilitados são assistidos por um curador a cuja autorização estão sujeitos os actos de disposição de bens entre vivos e todos os que, em atenção às circunstâncias de cada caso, forem especificadas na sentença». Decorre da primeira disposição referida que as causas da inabilitação podem ser comuns à interdição (a anomalia psíquica, a surdez-mudez e a cegueira), ou específicas desta incapacidade (a habitual prodigalidade, o alcoolismo ou a toxicodependência), sendo que, no que concerne às causas comuns, a diferença é sobretudo quantitativa115. Resulta igualmente do mesmo preceito que, tal como se depreende da disciplina da interdição, apenas a permanência e actualidade da causa justificam a inabilitação116. Carvalho Fernandes chama a atenção também para a necessária verificação da característica da prejudicialidade – ou seja, a incapacidade de reger convenientemente o património –, a qual, segundo o Autor, constitui mesmo a pedra de toque na sua diferenciação das causas da interdição. Com efeito, assevera este Autor que: «o carácter prejudicial da causa da inabilitação em contraposição com o carácter que ela deve revestir na interdição, marca a fronteira entre os dois institutos. Essa fronteira reside assim, nas causas comuns, na maior ou menor relevância que elas assumem na limitação da capacidade das pessoas»117. Pensamos que, mais importante do que verificar o eventual carácter prejudicial da causa, será assegurar que a interdição somente seja decretada como última ratio, perante sujeitos que possam pôr em situações potencialmente perigosas a sua própria pessoa, e não apenas o seu património. Diversamente do que sucede face à configuração legal da figura da interdição, apenas devem ser inabilitadas as pessoas que se mostrem incapazes de reger convenientemente o seu património, não sendo dada relevância ao
Recordamos que as inabilitações, enquanto fonte de incapacidade, são uma inovação do CC de 1966, embora tenham surgido numa lógica de substituição das anteriores incapacidades parciais. 115 Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, ob. cit., pp. 338 e 339. 116 Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, ob. cit., pp. 338 ss. 117 LUÍS CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, ob. cit., p. 340. 114
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governo da própria pessoa118. Elucidativo desta constatação é, e.g., o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Janeiro de 2005, no processo 04 A 4480, que sustenta ser «patente, no caso sub judicio, que nada de concreto ficou provado acerca de comportamentos anómalos (e habituais)119 do requerido que evidenciem incapacidade de tal forma grave para cuidar dos seus bens que se justifique a intervenção dos tribunais para o proteger de si próprio». À inabilitação está essencialmente associada a limitação da capacidade de exercício de direitos do sujeito. Todavia, não se trata já de uma incapacidade geral e predeterminada – salvo no que concerne aos actos de disposição entre vivos –, uma vez que a sua medida é concretizada pelo juiz, na sentença que a decreta120, tendo em conta as exigências específicas do inabilitando. Trata-se, portanto, de uma figura dotada de uma certa maleabilidade. Após o decretamento da inabilitação, os seus beneficiários são assistidos por um curador, de acordo com a previsão do art. 153.º do CC, supra transcrito, a cuja autorização estão sujeitos os actos de disposição de bens entre vivos e todos aqueles que, atendendo às circunstâncias de cada caso, fiquem especificados na sentença121. Esta última expressão tem-se mostrado de interpretação controvertida na doutrina portuguesa. Autores como castro mendes e carvalho fernandes defendem que a sentença de inabilitação pode visar direitos não patrimoniais122. Carvalho Fernandes baseia-se na amplitude da expressão normativa, aliada à consagração de certas incapacidades de gozo para os inabilitados, de forma a propugnar que a inabilitação possa afectar também a capacidade do sujeito quanto à prática de actos não patrimoniais. Escreve o Autor que: «esta expressão é suficientemente ampla para contemplar direitos não patrimoniais, se o juiz assim o considerar conveniente, em face do tipo e grau de gravidade da causa de que o inabilitado se mostra afectado»123. O Autor argumenta ainda que o art. 152.º do CC admite uma interpretação diversa da “tradicional”, no sentido de que as causas comuns à interdição e à inabilitação podem afectar os hemisférios pessoal e patrimonial do sujeito, enquanto que as Não obstante haver divergências doutrinais quanto a este aspecto, como infra veremos. Por “habitual” deve-se entender a «atitude continuada e uma propensão nítida, próprias de um estado ou de uma maneira de ser da pessoa» (Heinrich Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, ob. cit., p. 343). Tendo as causas de incapacidade de se mostrar habituais ou duradouras, ficam fora do âmbito tanto da interdição como da inabilitação as situações temporárias. 120 V. art.s 954.º, n.º 2, do CPC, e 153.º, n.º 1, e 154.º do CC. São estes preceitos normativos que permitem ao juiz determinar, oficiosamente, se decreta a interdição ou a inabilitação, independentemente do pedido do autor da acção. Já no que se refere à incapacidade de gozo do inabilitado, essa não está dependente de uma apreciação jurisprudencial, resultando exclusivamente da lei. 121 Notamos que, como salienta Menezes Cordeiro, «a regra básica do nosso sistema é a da liberdade económica. Por isso, a inabilitação dos pródigos deve operar [apenas] perante efectivas anomalias de comportamento, não apenas perante maus negócios» (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, III, Almedina, Coimbra, 2007, p. 427.) 122 Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, ob. cit., p. 164; Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, ob. cit., pp. 341 ss. 123 CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., p. 341. 118 119
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específicas somente teriam efeitos no seu hemisfério patrimonial124. A base de legitimação desta interpretação seria o art. 17.º do Projecto para o actual Código Civil125, que apresentava o seguinte conteúdo: «Podem ser sujeitos à inabilitação, relativamente aos actos que o tutor de menores não pode praticar sem autorização, os maiores cujo habitual estado de anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira não seja tão grave que justifique a interdição, e bem assim os maiores que se exponham ou à sua família a graves prejuízos económicos, em consequência da habitual prodigalidade, alcoolismo ou outra toxicomania». Não nos parece que esta disposição fundamente a posição ora referida; não acreditamos que a demarcação legislativa do campo de actuação das causas específicas (relativamente às causas comuns) da inabilitação tenha esse objectivo. Unicamente se trata de tipos de causas distintas, não dando, contudo, origem à aplicação de regimes tão diversos como os que resultariam da interpretação propugnada por este Autor. Já mota pinto exclui os actos não patrimoniais126 do âmbito de aplicação da inabilitação, bem como pedro pais de vasconcelos127 que, contrapondo a inabilitação à interdição, conclui que a primeira apenas diz respeito ao património, enquanto que a segunda se refere à capacidade de governar pessoas e bens. Como deixámos antever, a nossa tendência é para adoptar a última posição mencionada, por entendermos que a interpretação mais restrita se ancora não só no elemento literal decorrente da conjugação dos art.s 152.º e 151.º do CC, mas também na própria ratio do instituto. No entanto, não podemos deixar de admitir que se verifica uma certa incoerência entre esta interpretação e determinadas especificidades previstas no regime jurídico da inabilitação, já que, sendo o seu fundamento a anomalia psíquica, o beneficiário “sofrerá” de incapacidade de gozo128 perante certas situações129, ou seja, não pode casar (art. 1601.º, al. b), do CC), ser nomeado tutor (art. 1933.º, 1, al. a), do CC), vogal do conselho de família (art. 1953.º, n.º 1, do CC) ou administrador de bens (art. 1970.º do CC), e não pode exercer as responsabilidades parentais (art. 1913.º, n.º 1, al. b), do CC130). Do que ficou exposto resulta, então, que, pelo menos, para a prática dos actos de disposição de bens entre vivos – que constitui assim o conteúdo mínimo de uma sentença de inabilitação –, o inabilitado deve ser assistido pelo curador. No entanto, a título excepcional, a administração – total ou parcial – do seu património pode ser judicialmente entregue ao curador131, situação em que este Todavia, o Autor afirma não conhecer defensores desta interpretação. Também nós desconhecemos doutrina que se posicione nesse sentido. 125 Para observações ao art. 17.º do Projecto do Código Civil, v. Américo Campos Costa, «Incapacidade e formação do seu suprimento – anteprojecto do Código Civil», in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 111, 1961, pp. 221 ss. 126 C. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., p. 242. 127 Pedro Pais De Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., Coimbra, Almedina, 2003, p. 120. 128 V., e.g., C. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., p. 237. 129 Pais De Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., p. 120. 130 V., supra, nota de rodapé n.º 97. 131 Nos termos do art. 154.º do CC. 124
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agirá já em representação do inabilitado, e não a seu lado132. Esta possibilidade contribui para o afastamento da pessoa com capacidade diminuída do tráfico jurídico, levando a uma potencial discriminação, e aproximando, neste aspecto, a figura da inabilitação da inflexibilidade característica da interdição. Não deixa de causar alguma estranheza o facto de o legislador português não ter consagrado a incapacidade dos inabilitados para testar. De acordo com a formulação legal, todo o inabilitado tem capacidade para testar e para realizar pactos sucessórios133, enquanto actos mortis causa, bem como os actos não patrimoniais, e ainda todos os actos patrimoniais de administração não especificados na sentença que a decrete134. Ora, a justificação para não estatuir também aqui uma excepção à regra da capacidade de testar parece advir da consagração do art. 2199.º do CC, o qual determina ser «anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória». Relativamente a este aspecto, pode ler-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7 de Julho de 1992, que: «sendo o testamento, predominantemente, um negócio de vontade e não de declaração, não têm aplicação ao problema da sua validade ou invalidade, por anomalia psíquica, as normas gerais (artigos 148.º; 149.º; 150.º e 257.º do Código Civil), bastando-se a solução de tal problema com as regras específicas consagradas para tal acto»135. O regime instituído pelo art. 2199.º do Código Civil é bastante mais favorável para o protegido do que o da incapacidade acidental em geral, constante do art. 257.º do Código Civil, pois não requer que os factos sejam conhecidos ou notórios, uma vez que a sua ratio não é a protecção de terceiros, mas a vontade real do testador136. Ora, resulta do estabelecido que o interdito por anomalia psíquica é incapaz de testar, mas quem não estiver interdito, seja qual for a gravidade do seu estado, não sofre de incapacidade testamentária activa, podendo apenas verificar-se uma “deficiência da vontade” que pode conduzir à anulabilidade do acto137. O acto será anulável se ficar provado que o testador o praticou em estado de incapacidade acidental, encontrando-se, nesse momento, sem as faculdades necessárias. Logo, o que releva para a eventual anulabilidade do testamento é saber se a vontade do testador se formou ou não com a necessária capacidade de entender o sentido da declaração, exprimindo o seu livre exercício138. Resulta do que precede que o inabilitado, mesmo que por anomalia psíquica, Havendo assim representação, e não assistência. Na medida em que esses sejam permitidos na ordem jurídica portuguesa, ou seja, quando estabelecidos em convenção antenupcial (art. 1701.º do CC). 134 C. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., p. 237. 135 In Colectânea de Jurisprudência, 1992, 4, pp. 57 ss. 136 Neste sentido v., e.g., acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Fevereiro de 2003, in Colectânea de Jurisprudência – Supremo Tribunal de Justiça, 2003, 1, pp. 109 ss). 137 V., e.g., Oliveira Ascensão, Direito Civil. Sucessões, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, pp. 73 ss. 138 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7 de Julho de 1992, in Colectânea de Jurisprudência, 1992, 4, p. 61. 132 133
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tem capacidade de gozo para testar, não sendo o acto por si praticado nunca nulo, mas só e eventualmente anulável perante a prova de que, aquando da realização do testamento, o testador se encontrava incapaz de entender a sua declaração, ou de que o acto não foi praticado com o livre exercício da vontade. Sendo o acto de testar de natureza patrimonial – já que determina a disposição dos bens do testador para depois da sua morte – e, potencialmente, detentor de grande relevância económica, pensamos que a manutenção da capacidade de gozo de todo e qualquer inabilitado para tal é incongruente com o regime civil da própria figura incapacitante, mesmo que atendendo unicamente ao conteúdo mínimo possível de uma sentença de inabilitação. Como referimos, o inabilitado não pode praticar actos de disposição entre vivos sem a assistência (autorização)139 do curador – e pode até ficar sujeito a representação quanto à administração da totalidade dos seus bens140 – pelo que, confrontando a solução normativa para as situações em causa com a relativa à capacidade de testar, parece haver um certo desequilíbrio e incoerência. Como última nota relativa à figura da inabilitação, referimos que lhe é aplicável, supletivamente141, embora com as necessárias adaptações, o regime da interdição142, não obstante o carácter maleável desta figura, confrontado com a total inflexibilidade da interdição143. 2. Breve confronto entre os regimes da interdição e da inabilitação Tanto a figura da interdição como a da inabilitação consubstanciam processos complexos, longos, estigmatizantes e, muitas vezes, custosos, seja do ponto de vista económico, seja na vertente emocional – a qual sai ainda mais abalada pela publicidade que os mesmos implicam144, publicidade essa que, A autorização do curador pode, no entanto, ser suprida judicialmente, nos termos do art. 153.º, n.º 2, do CC (Rui Alarcão, Confirmação dos negócios anuláveis, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 1971, p. 158). 140 Pedro pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., p. 119. Perante a representação do inabilitado, a curatela passará a ter uma organização mais completa. Haverá lugar ao conselho de família, sendo um dos vogais subcurador, tendo as funções normalmente atribuídas ao protutor, nos termos do art. 154.º do CC. 141 Melhor seria dizer subsidiário, uma vez que as disposições supletivas são aquelas que se aplicam na falta de escolha de regulamentação das partes, em matérias que estejam na sua disponibilidade, o que não sucede no regime das incapacidades (Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, ob. cit., p. 338). 142 V. art. 156.º do CC. 143 O que leva a questionar a relação entre estas duas figuras, sendo que, normalmente, são vistas numa relação de alternatividade (C. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, ob. cit., p. 235; Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, ob. cit., p. 342). 144 Nos termos do art. 945.º CPC. Relativamente à problemática da publicidade, v. Paula Távora Vítor, A administração do património das pessoas com capacidade diminuída, ob. cit., p. 46. Contudo, de acordo com a redacção daquele art., nos processos de interdição e de inabilitação, o juiz aprecia 139
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simultaneamente, representa a pedra de toque para determinar a invalidade dos actos praticados no decurso da acção pelos sujeitos em causa. São processos bastante burocratizados145, que dão uma atenção residual à óptica da pessoa, ou porque a eliminam, ou porque não se lhe reportam. Demos já conta da existência de causas comuns a ambos os regimes de incapacidade bem como de causas específicas de um deles – o da inabilitação. Resulta dos regimes legalmente previstos que a “deficiência” que justifica a interdição deve ser mais gravosa que aquela que fundamenta a inabilitação, parecendo, assim, que esta se apresenta como figura subsidiária relativamente à outra, em desfavor da cabal caracterização que deve assumir o princípio da subsidiariedade na protecção da dignidade humana num verdadeiro Estado de Direito. Concluímos que, não obstante as divergências doutrinais, haverá lugar ao decretamento da interdição quando a “deficiência” impeça o sujeito de governar a sua pessoa e os seus bens, devendo o juiz, diversamente, decretar a inabilitação se a “deficiência” impedir a pessoa de reger convenientemente apenas o seu património. Esta distinção justifica a não aplicação do art. 145.º do CC à inabilitação – consubstanciando, por isso, uma das necessárias adaptações ao regime subsidiário –, que consagra o dever especial do tutor de «cuidar especialmente da saúde do interdito». O regime português da incapacidade de pessoas maiores de idade, sobretudo na figura da interdição – que constitui, aliás, o objecto central do presente ensaio –, é susceptível de suscitar várias críticas. A sua inflexibilidade e, logo, completa inadequação ao caso concreto, é hodiernamente chocante. A tendência da autonomia e a preocupação com a singularidade do indivíduo devem ser juridicamente latentes, como forma de potencializar a realização pessoal de todo o ser humano. Foi esse o espírito que imbuiu o legislador italiano de 2004 que, como referimos, instituiu a figura da administração de apoio, bem como reformou as figuras tradicionais da interdição e inabilitação, numa óptica de maximização da capacidade de cada sujeito, seguindo o trilho já desenhado anteriormente por outros legisladores europeus. Passaremos à sua análise, enquanto ignoto do presente ensaio.
liminarmente os articulados para determinar se se procede ou não à afixação de editais. Esta singularidade é justificada pela «particular delicadeza das situações que estão na base destes processos e os danos que podem decorrer no liminar publicamente da acção» (Relatório do Decreto de Lei n.º 329-A/95, transcritas por Abílio Neto, Código de Processo Civil Anotado, 17.ª ed. actualizada, Ediforum, Lisboa, 2003, p. 1209). 145 V. Art.s 944.º e ss do CPC. V. também André Dias Pereira, O consentimento informado na relação médico-paciente, ob. cit., p. 215.
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III - O caso italiano. A administração de apoio 1. A reforma das incapacidades de pessoas maiores de idade: princípios gerais O legislador italiano procedeu a uma reforma da disciplina das “incapacidades” de pessoas maiores de idade, através da criação do instituto da administração de apoio146, introduzindo-o – não sem controvérsias – no corpo do Código Civil147, e da (ligeira) remodelação dos contornos jurídicos das figuras tradicionais da interdição e da inabilitação. A Lei n.º 6/04, de 9 de Janeiro, operativa da dita reforma, transmutou a configuração das medidas de protecção dos sujeitos com capacidade diminuída, maiores de idade, elevando a princípio basilar da matéria o seu direito a participar activamente na vida da relação jurídica, na medida em que sejam idóneos a fazêlo148. Consequência directa deste princípio é a possibilidade de o juiz que decreta a interdição legitimar o beneficiário a realizar actos de administração ordinária, de per si ou com assistência do tutor, permitindo evitar aquilo que Cesare Bianca denunciava, já na década de 80, como a inadequada resposta da incapacidade total, que coloca a pessoa numa condição de inferioridade jurídica, capaz de sancionar e agravar a sua condição de marginalização social149. Sobressaem, como principais traços da reforma de 2004, por um lado, a limitação do recurso à figura da interdição150 – que, enquanto figura meramente residual, somente deverá ser decretada se não for possível proteger de outra forma (menos gravosa) os indivíduos não auto-suficientes151 – e, por outro, a possibilidade de o juiz nomear um “administrador de apoio”, com funções judicialmente delimitadas, de forma a que tudo o que não ficar previsto na sentença se mantenha na competência do beneficiário, o qual conserva (pelo menos parcialmente) a sua capacidade de exercício. Notório indício destas características é, desde logo, o primeiro capítulo da lei, formado por uma única Lei n.º 6/2004, de 9 de Janeiro. Paolo Cendon, «La tutela civilistica dell’infermo di mente», in La riforma dell’interdizione e dell’inabilitazione, Salvatore Patti (ed.), Giuffrè editore, Milano, 2002, pp. 30 ss. 148 Posição já defendida na década de 80 por C. Massimo Bianca, «La protezione giuridica del sofferente psichico», in Rivista di diritto civile, I, 1985, p. 30. 149 C. Massimo Bianca, «La protezione giuridica del sofferente psichico», in Rivista di diritto civile, I, 1985, p. 27. Piero Perlingieri, «Gli istituti di protezione e di promozione dell’infermo di mente. A proposito dell’andicappato permanente», in Rassegna di diritto civile, 1985, pp. 51 ss. Notamos que já anteriormente alguns juízes tutelares tinham tentado introduzir esta medida de protecção através da via pretória [Giampaolo Zancan, «Intervento», in La riforma dell’interdizione e dell’inabilitazione, Salvatore Patti (ed.), Giuffrè editore, Milano, 2002, p. 3]. 150 Como tem vindo a ser repetidamente sublinhado pela jurisprudência italiana. Referimos, e.g., a recente sentença do Tribunal de Bari, de 9 de Fevereiro de 2008, onde se lê que: «a interdição está destinada a colocar-se como ratio extrema à qual recorrer nos casos limite» [in Corriere del Merito, 2008, n.º 5, p. 548 (trad. nossa)]. 151 Bem como limitar o recurso à inabilitação, uma vez que esta figura jurídica não oferece uma verdadeira preocupação com a pessoa, mas somente com o seu património. 146 147
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disposição, consagrador do princípio da tutela das pessoas não autónomas, onde se lê que: «A presente lei tem a finalidade de tutelar, com a menor limitação possível da capacidade de exercício, as pessoas desprovidas total ou parcialmente de autonomia no desempenho das funções da vida quotidiana, através de intervenções de apoio temporário ou permanente»152. O legislador italiano tentou, desta forma, conciliar a protecção do sujeito com capacidade diminuída com a sua necessidade de integração social; tanto assim que determinou que a nomeação do administrador não provoca sequer um estado de incapacidade153. À presente opção político-legislativa esteve subjacente o princípio da graduação, significando que o juiz deve escolher, no âmbito dos instrumentos de tutela previstos pelo ordenamento jurídico, aquele que protege cabalmente o indivíduo, mas que, simultaneamente, restringe ao mínimo indispensável a sua capacidade, permitindo-lhe uma verdadeira integração no “mundo real”. Como corolário dos principais traços supra identificados, surge o princípio da flexibilidade, dado o objecto da administração de apoio ser definido casuisticamente, através da sentença, de acordo com as específicas necessidades do beneficiário. É em nome desta flexibilidade que o juiz pode, e.g., revogar esta medida de protecção, bem como ampliar ou reduzir o seu objecto154, ou ainda prever que esta opere por tempo determinado (até ao momento em que o sujeito readquira plena capacidade)155. Não obstante o facto de esta reforma ter sido acerrimamente reivindicada, a Lei n.º 6/2004 acabou por causar um certo sentimento de desilusão, sobretudo naqueles que não duvidavam da bondade da substituição dos institutos tradicionais da interdição e da inabilitação pela nova figura da administração de apoio156. Efectivamente, a nova disciplina suscita dificuldades no relacionamento entre as três figuras ora legislativamente previstas, tornando árdua a tarefa de proceder a uma correcta delimitação das suas fronteiras157.
Trad. nossa. Malavasi, «L’amministrazione di sostegno: le linee di fondo», in Notariato, 2004, pp. 322 ss. Na jurisprudência, v., e.g., sentença do Tribunal de Modena, de 3 de Fevereiro de 2005, in DVD-Rom La Legge, IPSOA, 5/2006, IPSOA editore. Esta opção segue de perto a escolha do legislador francês, no âmbito da “sauvegarde de justice”, como supra referimos (Capítulo I, 2. Uma perspectiva global). 154 Giovanni Bonilini, «Compiti dell’amministratore di sostegno», in L’amministrazione di sostegno, Giovanni Bonilini / Augusto Chizzini (ed.), Cedam, Padova, 2004, p. 167. 155 Eleonora Montserrat Pappalettere, «L’amministrazione di sostegno come espansione delle facoltà delle persone deboli», in Nuova giurisprudenza commerciale, 2005, pp. 32 ss. 156 C. Massimo Bianca, «Premessa», in L’amministrazione di sostegno, Salvatore Patti (ed.), Giuffrè editore, Milano 2005, p. 108. 157 I. Triconi, «Così uno strumento flessibile introduce una graduazione nelle misure», in Guida al diritto, 2004, p. 26; Umberto Morello, «L’amministrazione di sostegno (dalle regole ai principi)», in Notariato, 2004, p. 225, nota de rodapé n.º 4. 152 153
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2. A relação entre interdição, inabilitação e administração de apoio Aquando do início da discussão relativa à reforma do regime da incapacidade de pessoas maiores de idade, delineou-se de imediato uma divergência de posições nas vozes políticas e jurídicas: de um lado, uma forte corrente veio defender a manutenção dos institutos tradicionais ao lado da nova figura da administração de apoio158; de outro, foi vivamente apregoado que a administração de apoio deveria substituir as figuras da interdição e da inabilitação, em nome da sua ampla flexibilidade159. Para o texto da lei passou a primeira tese, pelo que, ao lado da administração de apoio, continuam a vigorar as figuras da interdição e da inabilitação, embora “reformadas” de maneira a adequarem-se à nova concepção do sujeito com capacidade diminuída160. Perante o actual quadro legislativo, a instituição da medida da administração de apoio é possível em todas as situações em que o sujeito apresente um grau, ainda que mínimo, de “incapacidade”, sendo as limitações à sua capacidade directamente proporcionais às suas condições específicas161. Esta constatação tem sido invocada como pedra de toque na diferenciação entre esta figura e a interdição, a qual manteria, por isso, uma certa autonomia, enquanto instituto residual162. Tem-se sustentado ainda que a anomalia psíquica é somente uma das possíveis causas da administração de apoio, não tendo sequer que apresentar os requisitos de gravidade e habitualidade que caracterizam a interdição, aspectos que também conduziriam à cabal diferenciação entre esta e a interdição163. Acresce que o próprio Código Civil prevê a distinção entre as figuras ora em confronto, ao determinar, no art. 413, que o juiz, mesmo oficiosamente, se entender que a administração de apoio é insuficiente para a tutela do beneficiário, pode ordenar a sua cessação e informar o Ministério Público para que promova a interdição, medida, portanto, mais gravosa. Tratava-se de uma posição sustentada maioritariamente a nível político. V. Salvatore Patti, «Introduzione», in La riforma dell’interdizione e dell’inabilitazione, Salvatore Patti (ed.), Giuffrè editore, Milano, 2002, pp. 20 ss. 159 Giampaolo Zancan, «Intervento», in La riforma dell’interdizione e dell’inabilitazione, Salvatore Patti (ed.), Giuffrè editore, Milano, 2002; Mario Milone, «Il disegno di legge n.º 2189 sull’amministratore di sostegno», in La riforma dell’interdizione e dell’inabilitazione, Salvatore Patti (ed.), Giuffrè editore, Milano, 2002, pp. 114 ss. 160 Maria Rossetti/Mimma Moretti/Carola Moretti, L’amministrazione di sostegno e la nuova disciplina dell’interdizione e dell’inabilitazione, IPSOA, 2004, n.º 4. 161 Recordamos que o beneficiário conserva a capacidade para todos os actos não indicados no decreto judicial. 162 Gilda Ferrando, «Protezione dei soggetti deboli e misure di sostegno», in La riforma dell’interdizione e dell’inabilitazione, Salvatore Patti (ed.), Giuffrè editore, Milano, 2002, p. 132; a já referida sentença do Tribunal de Bari, de 9 de Fevereiro de 2008, in Corriere del merito, 2008, n.º 5, pp. 548 ss. 163 V., e.g., Franco Anelli, «Il nuovo sistema delle misure di protezione delle persone prive di autonomia», in Ius. Rivista di scienze giuridiche, 52, n.ºs 1-2, 2005, pp. 163 ss. 158
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Argumento ainda mobilizável na tentativa de diferenciar estas duas figuras é o facto de, não obstante o carácter residual da interdição, esta não exigir um prévio decretamento da administração de apoio164. Tanto a Corte Costituzionale como a Corte di Cassazione já tiveram oportunidade de se pronunciar sobre a eventual sobreposição do campo de aplicação da nova figura com o da interdição e da inabilitação, decidindo-se ambas por uma resposta negativa. A Corte Costituzionale, através do acórdão n.º 440, de 9 de Dezembro de 2005, decidiu declarar não fundadas as questões de legitimidade constitucional dos art.s 404, 405, n.ºs 3 e 4, e 409, todos do Código Civil, na formulação introduzida pela Lei n.º 6, de 9 de Janeiro de 2004, salientando que é agora função do juiz individualizar o instituto que, por um lado, garante ao incapaz a tutela mais adequada à sua situação e, por outro, limita ao mínimo possível a sua incapacidade; não sem acrescentar, aliás, que o novo regime permite que, sendo a escolha a administração de apoio, o âmbito dos poderes do administrador seja delimitado de forma a adequar-se às características do caso concreto. Apenas não existindo medidas de apoio que protejam adequadamente o sujeito, pode o juiz recorrer «às medidas bastante mais invasivas da inabilitação ou da interdição, que atribuem um estado de incapacidade, abrangendo para o inabilitado os actos de administração extraordinária e para o interdito também os de administração ordinária»165. Para além do exposto, este Tribunal entendeu que o art. 411, n.º 4, permite ao juiz tutelar166, na instituição da administração de apoio, ou sucessivamente, determinar que «certos efeitos, limitações ou restrições, previstos pelas disposições legais para o interdito ou inabilitado, se apliquem ao beneficiário da administração de apoio. Resulta assim que em nenhum caso os poderes do administrador podem coincidir “integralmente” com os do tutor ou do curator (...)»167. Este tribunal sustentou também a diferenciação entre estas figuras em outras duas disposições normativas: no art. 413, n.º 4, que prevê a possibilidade de a administração de apoio cessar com a nomeação de tutor ou curador provisório ou com a declaração de interdição ou de inabilitação, se o juiz tutelar considerar a cessação da administração inidónea para realizar a plena protecção do beneficiário; e no art. 418, n.º 3, que estatui que se o tribunal entender, no decurso de uma acção de interdição ou de inabilitação, V. Maria Rossetti/Mimma Moretti/Carola Moretti, L’amministrazione di sostegno e la nuova disciplina dell’interdizione e dell’inabilitazione, IPSOA, 2004, n.º 5. 165 Trad. nossa. 166 A escolha, quanto à competência, para o processo de administração de apoio recaiu sobre o juiz tutelar por ser um órgão com maior distribuição no território nacional, encontrando-se mais próximo das pessoas e dos factos, e por exigências de simplificação do processo [e.g., Giampaolo Zancan, «Intervento», in La riforma dell’interdizione e dell’inabilitazione, Salvatore Patti (ed.), Giuffrè editore, Milano, 2002, p. 6]. Será competente o juiz tutelar onde o beneficiário tem a sua residência ou o seu domicílio. 167 Trad. nossa; cfr. MICHELE SESTA, «Amministrazione di sostegno e interdizione: quale bilanciamento tra interessi patrimoniali e personali del beneficiario?», in Familia e diritto, 2007, pp. 31 ss. 164
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que é oportuno instituir a administração de apoio, transmitirá o procedimento ao juiz tutelar. No mesmo sentido, chamou ainda o art. 429, n.º 3, através do qual, perante o levantamento da interdição ou da inabilitação, se for oportuno que o sujeito passe a ser assistido por um administrador de apoio, o tribunal determina a transmissão do processo para o juiz tutelar. Igualmente a Corte di Cassazione, através do acórdão n.º 13584, de 12 de Junho de 2006, veio sustentar posição idêntica, ou seja, a diferenciação entre a administração de apoio e as figuras tradicionais, afirmando que o legislador pretendeu, através daquela, configurar um instrumento elástico, modelado de acordo com as exigências do caso concreto, que se distinguisse da interdição pelo aspecto funcional, e não quantitativamente, pois o seu âmbito de aplicação determina-se, não de acordo com o diverso e menos intenso grau de doença ou de impossibilidade de zelar pelos interesses do sujeito sem autonomia, mas, sobretudo, de acordo com a sua maior capacidade para se adequar às exigências concretas do beneficiário, pela flexibilidade e agilidade do processo de aplicação. O instrumento da interdição tem carácter residual, pretendendo o legislador reservá-lo, em consideração da gravidade dos efeitos que desse derivam, para aquelas hipóteses em que uma medida diversa não teria qualquer eficácia protectora. Vários Autores sustentam, de acordo com as ora referidas linhas de argumentação, que a consistência e complexidade do património do beneficiário poderia permitir diferenciar a administração de apoio da interdição, preferindo-se aquela quando o património fosse muito reduzido168. Todavia, esta interpretação não está manifestamente de acordo com a filosofia da nova legislação, por valorizar a dimensão patrimonial em detrimento da pessoal, privando um sujeito das vantagens da figura da administração de apoio apenas porque detém um património considerável, o que poderia até, em última instância, consubstanciar uma violação dos princípios da igualdade e da não discriminação. Cremos que a delimitação do campo de aplicação entre estas figuras é demasiado frágil. Julgamos que a administração de apoio, como configurada legislativamente, pode incluir todos os casos de interdição e inabilitação, aceitando apenas excepções residuais em nome de argumentos meramente formais, como os supra referidos169. A nível substancial, não vislumbramos qualquer situação que não possa ser inserida na figura da administração de apoio. No entanto, a Cassazione Civile, no acórdão n.º 13584, de 12 de Junho de 2006, reforçou a posição anteriormente sustentada, pois, confrontada com um pedido V. doutrina referida por Stefano Delle Monache, «Prime note sulla figura dell’amministratore di sostegno: profili di diritto sostanziale», in Nuova giurisprudenza civile e commentata, 2004, p. 37. 169 Determinou o Tribunal de Lodi, e.g., por Decreto de 1 de Setembro de 2008, que: «Não há dúvida, de facto, que mesmo um profundo estado de desequilíbrio ou de desconforto existencial que exclua a possibilidade equilibrada de zelar autonomamente pelos seus interesses, pode justificar a nomeação, em nome da protecção do sujeito, de um administrador de apoio, em vez das medidas mais invasivas da interdição e da inabilitação – trad. nossa (in DVD-Rom La Legge, IPSOA, 5/2006, IPSOA editore). 168
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de instituição de administração de apoio para um sujeito em coma, manteve a interdição, decretada em Primeira Instância e reforçada pelo Tribunal da Relação de Salerno, o qual tinha afirmado que, de acordo com a Lei n.º 6 de 2004, o destinatário da administração de apoio deve manter, mesmo que em medida reduzida, autonomia e capacidade próprias170. Ora, tal não resulta necessariamente da formulação legal, que é muito abrangente171. Aliás, em sentido oposto a esta distinção foi o decreto do juiz tutelar do Tribunal de Reggio Emilia, de 4 de Novembro de 2005, que determinou a instituição da administração de apoio relativamente a um sujeito que se encontrava em coma vegetativo, baseando-se na maior flexibilidade e maior economia, mesmo a nível processual, desta medida, para ir ao encontro dos interesses da pessoa. Assim, cremos que a única razão substancial para o legislador italiano ter mantido as figuras da interdição e da inabilitação tenha sido a da existência de um certo receio de uma ruptura brusca com o passado, ou, utilizando as palavras de Enrico Carbone, a de desejar manter figuras clássicas que poderão desempenhar «o útil papel social de contentores do estigma psiquiátrico»172. Aliás, esta foi também a escolha de outros legisladores, como o francês ou o belga173, legislador este que, de acordo com Paula Távora Vítor, também considerou que as medidas tradicionais cairão em desuso, sendo gradualmente substituídas pelo novo instituto de administração criado174. Diversamente, a distinção entre as figuras da inabilitação e da interdição italianas mantém-se clara, nos termos do art. 415 do Código Civil – disposição que não sofreu alterações –, estabelecendo que o estado do doente mental não deve ser de tal forma grave a dar lugar à interdição. A jurisprudência italiana sempre entendeu que, perante «uma alteração das faculdades mentais de forma a determinar uma incapacidade parcial de zelar pelos seus
Neste sentido v. também Giovanni Campese, «L’istituzione dell’amministrazione di sostegno e le modifiche in materia di interdizione e di inabilitazione», in Famiglia e diritto, 2004, p. 127. 171 Não obstante o teor do supra referido art. 413 do Código civil italiano. 172 Trad. nossa. Enrico Carbone, «Libertà e protezione nella riforma dell’incapacità di agire», artigo de 7 de Fevereiro de 2004, p. 13 disponível no seguinte endereço electrónico: http://www. personaedanno.it/cms/data/articoli/000316.aspx (visitado em 1 de Setembro de 2008). No mesmo sentido, v. Umberto Roma, «L’amministrazione di sostegno: i presupposti applicativi e i difficili rapporti con l’interdizione», in Nuove leggi civile commentate, 2004, p. 1037. 173 Não obstante a figura do administrador belga respeitar apenas «à protecção dos bens das pessoas incapazes» (trad. nossa – Lei de 18 Julho de 1991, integrada no art. 488-bis do Código civil, com as modificações trazidas pela Lei de 3 de Maio de 2003, relativa à protecção de pessoas total ou parcialmente incapazes de assumir a sua gestão devido ao seu estado físico ou mental). 174 Paula Távora Vítor escreve que: «No que diz respeito ao “administrador” belga, este não aboliu as tradicionais medidas de protecção, embora o legislador considere e espere que estas caiam em desuso, sendo gradualmente substituídas pelo novo instituto» (A administração do património das pessoas com capacidade diminuída, ob. cit., p. 175). 170
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interesses»175, se deveria decretar a inabilitação176, ficando a interdição reservada para os casos em que se verificasse a incapacidade não só de reger as relações patrimoniais, mas também todos os actos da vida civil susceptíveis de serem prejudicados por actos jurídicos177. O interdito deve ser considerado completamente incapaz e, portanto, incapaz de realizar validamente actos de natureza patrimonial, com excepção dos actos de administração ordinária indicados na sentença ou em providência sucessiva. Somente a condição de total e absoluta impossibilidade para cuidar da própria pessoa e dos seus interesses patrimoniais legitima a interdição – meio de suprimento da incapacidade que tutela o enfermo em todo e qualquer aspecto da sua vida –, de acordo com a nova óptica de invasão mínima da esfera pessoal. Já a administração de apoio não atinge a capacidade de gozo do seu beneficiário, que pode casar178, perfilhar, ou fazer testamento. Estes actos serão avaliados nos termos do direito comum. Não obstante o exposto, o Tribunal de Trieste determinou, em 28 de Setembro de 2007, que, no caso de uma rapariga de vinte e dois anos, esquizofrénica agravada, incapaz de compreender o significado dos deveres matrimoniais, dever-se-ia instituir um regime de administração de apoio, com a previsão de proibição do casamento, pelo menos temporariamente179. Do que ficou exposto, resulta que não vislumbramos uma clara diferenciação entre o campo de aplicação da administração de apoio, da interdição e da inabilitação, pelo que defendemos a substituição das duas últimas pela primeira, figura dotada de grande flexibilidade e capaz de abarcar no seu seio todas as situações em que, por qualquer motivo, o sujeito se apresente com capacidade diminuída. Todavia, reconhecemos o mérito deste sistema tripartido, que substituiu a rigidez do modelo anteriormente vigente, no qual à interdição – única alternativa à inabilitação – se associavam efeitos legislativamente predeterminados, com a preocupação fundamental, ou mesmo única, de salvaguardar os interesses patrimoniais do sujeito e dos seus familiares, tal como sucede hodiernamente na ordem jurídica portuguesa. A adopção deste sistema “incapacitante” dotado de flexibilidade permite respeitar a dignidade de cada pessoa, que deixa, assim, de estar despojada das suas liberdades fundamentais quando tal não seja estritamente necessário para a sua efectiva protecção. É evidente a preocupação com a maleabilidade Trad. nossa. V., e.g., acórdão n.º 1388 da Corte di Cassazione, de 11 de Fevereiro de 1994, in DVD-Rom La Legge, IPSOA, 5/2006, IPSOA editore. 177 Acórdão n.º 11131 da Corte di Cassazione, de 21 de Outubro de 1991, in DVD-Rom La Legge, IPSOA, 5/2006, IPSOA editore. 178 Já antes da Reforma C. Massimo Bianca se mostrava defensor de não impedir a comunhão de vida a quem se mostrasse capaz de amar e se dedicar de forma estável (Diritto Civile – La norma giuridica – I soggetti, Vol. 1.º, Giuffrè, Milano, 2002, pp. 251-252). 179 In Giurisprudenza italiana, 2007, 12, p. 2738, com anotação de Paolo Cendon. 175 176
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e proporcionalidade mesmo no seio da própria figura da interdição, de acordo com o novo regime consagrado. Prova inequívoca dessa preocupação é o teor do art. 427 do Codice Civile, que dispõe que o interdito pode ser admitido a realizar certos actos de administração ordinária180, sendo que o art. 414 do Codice Civile estatui que o juiz apenas deve decretar a interdição quando essa for oportuna para assegurar ao seu destinatário uma protecção adequada181. Logo, como deixámos antever, entendemos que, perante o regime mais favorável da figura da administração de apoio, o âmbito de aplicação da interdição e da inabilitação fica, em termos práticos, vazio. Por isso, estamos ao lado daqueles que defendem a substituição, com o decorrer do tempo, das figuras da interdição e da inabilitação pela medida de protecção da administração de apoio. Acreditamos que a adopção de um “processo semelhante” poderia ser frutuosa na ordem jurídica portuguesa – o objectivo seria, portanto, o alcance da flexibilização do regime actual, ainda que através da adopção de um “período de transição”, em nome da tradição, onde subsistiriam as figuras clássicas da interdição e da inabilitação, ligeiramente retocadas, lado a lado com uma medida de protecção, centrada na óptica da pessoa concreta. 3. A amplitude da administração de apoio e as funções do administrador A administração de apoio pode ser decretada relativamente a todas as pessoas incapazes, independentemente da origem da incapacidade, bem como do grau e da natureza das suas dificuldades. Trata-se de uma providência tomada por medida182, de acordo com as necessidades singulares do seu beneficiário, com o objectivo de limitar ao mínimo a sua capacidade de exercício. Por isso, idealmente, não existirá um decreto judicial de administração de apoio igual a outro183. A regra geral é agora, perante esta figura, a da incapacidade parcial184. O juiz tutelar tem sessenta Bem como o inabilitado pode praticar actos excedentes de administração ordinária, ainda que sem a assistência do curador. Assim, mesmo estas figuras foram imbuídas de um critério de flexibilidade e proporcionalidade. 181 V. sentença do Tribunal de Génova, de 8 de Novembro de 2007, disponível no seguinte endereço electrónico: http://bd.utetgiuridica.it (visitado em 1 de Agosto de 2008). 182 Emmanuel Calò, «L’amministrazione di sostegno al debutto fra istanze nazionali e adeguamenti pratici», in Notariato, 2004, p. 252. 183 Paolo Cendon, «La follia si addice ai convegni», in Diritto della famiglia e di persone, 1999, pp. 727-745. Esta é a razão pela qual nos parece ser de criticar a jurisprudência que, perante contextos bastante diversos, atribui ao administrador de apoio o poder genérico de representação do beneficiário relativamente a todos os actos de administração extraordinária e ordinária (v., e.g., Decreto do Tribunal de Roma, de 22 de Março de 2004, in Notariato, 2004, p. 249). 184 Umberto Morello, «L’amministrazione di sostegno (dalle regole ai principi)», in Notariato, 2004, p. 225. 180
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dias, após a entrada do requerimento, para se pronunciar sobre o mesmo, com decreto fundamentado. Entretanto, pode decretar providências urgentes, como a nomeação de um administrador provisório. O decretamento da administração de apoio depende de uma causa – a doença ou diminuição física ou psíquica das capacidades – e de um efeito – a impossibilidade185, temporária186 ou permanente187, mesmo que parcial, de zelar pelos próprios interesses –, devendo a situação do beneficiário ser actual188. A patologia em questão deve ser a causa da debilidade do sujeito. Nestes termos, a ignorância, o analfabetismo, ou a idade avançada189 não justificam, de per se, a nomeação de um administrador de apoio190. Pode tratar-se de qualquer tipo de alteração do estado de saúde, não tendo o legislador pretendido dar um significado técnico aos conceitos usados, pelo que podem ser abrangidas perturbações causadas pelo uso de estupefacientes, pelo consumo de álcool, entre muitas outras191. A expressão ampla consagrada deixa V. Paolo Zatti, «Oltre la capacità di intendere o di volere», in Follia e diritto, Gilda Ferrando / Giovanna Visintini (ed.), Giappichelli, Torino, 2003, pp. 49 ss. 186 As dificuldades podem ser transitórias, mas não momentâneas [Maria Dossetti, Mimma Moretti e Carola Moretti, L’amministratore di sostegno e la nuova disciplina dell’interdizione e dell’inabilitazione (L. 9 gennaio 2004, n. 6), IPSOA, 2004, 9.1.3.1.)]. 187 O carácter temporário – e não momentâneo – ou permanente da causa é relevante para que o juiz possa decidir a duração da medida de protecção, indicando um termo ou estabelecendo-a por tempo indeterminado, de acordo com o art. 405, n.º 2, do Código Civil. 188 Como decorre da expressão prevista na disposição legal «se encontre na impossibilidade» (trad. nossa). Diversamente, a interdição apenas pode ser decretada perante doença mental habitual, que provoque um estado que impossibilite o sujeito de compreender o significado dos actos jurídicos ou que provoque a incapacidade de decidir, ou seja, uma verdadeira incapacidade natural, que, além de habitual, deve corresponder ao seu estado normal. 189 No projecto unificado, a idade avançada era considerada causa autónoma para a nomeação de um administrador de apoio, fazendo com que vigorasse, na prática, uma presunção de incapacidade parcial do idoso, o que de um ponto de vista da dignidade humana seria inaceitável. V. C. Massimo Bianca, «L’autonomia privata: strumenti di esplicazione e limiti», in La riforma dell’interdizione e dell’inabilitazione, Salvatore Patti (ed.), in Familia, Giuffrè, Milano, 2002, pp. 117 ss. 190 Maria Dossetti, Mimma Moretti e Carola Moretti, L’amministratore di sostegno e la nuova disciplina dell’interdizione e dell’inabilitazione (L. 9 gennaio 2004, n. 6), IPSOA, 2004, 9.1.1. 191 Maria dossetti, Mimma Moretti e Carola Moretti, L’amministratore di sostegno e la nuova disciplina dell’interdizione e dell’inabilitazione (L. 9 gennaio 2004, n. 6), IPSOA, 2004, 9.1.1. Estas Autoras entendem que, perante debilidade ou doença que incida exclusivamente sobre as habilidades físicas da pessoa, ou seja, sobre a possibilidade de ocupar-se materialmente de tudo quanto lhe respeita e de realizar os actos relativos, não deve haver lugar à nomeação de um administrador de apoio, por exagerado e mesmo contraditório, já que «comportaria uma formal e duradoura limitação da capacidade do sujeito, mesmo que bem circunscrita» (ponto 9.1.3 – trad. nossa). Divergimos desta opinião, não só por a medida em causa poder ser utilizada perante dificuldades como físicas quanto psíquicas, mínimas ou máximas, temporárias ou definitivas, mas também, e sobretudo, por, sendo uma figura configurada à medida de cada sujeito, não existir o risco de as medidas concretas estabelecidas serem desproporcionadas. Aquelas Autoras, diversamente, entendem que, nestes casos, se deverá recorrer à figura do procurador (também assim Stefano delle Monache, «Prime note sulla figura dell’amministratore di sostegno: profili di diritto sostanziale», in Nuova giurisprudenza civile commentata, 2004, II, p. 31 e pp. 38 ss). 185
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espaço à inclusão tanto de actos patrimoniais, como de actos de âmbito pessoal192, sendo que as funções do administrador devem reportar-se não somente à gestão do património do beneficiário, mas também – e sobretudo – à cura da própria pessoa, compreendendo, designadamente, decisões relativas a tratamentos médicos. De acordo com as disposições normativas da administração de apoio, parece haver fronteiras a respeitar perante a nomeação de um administrador. Assim, o juiz pode recusar a sua nomeação sempre que considerar que o potencial beneficiário pode receber a assistência de que necessita sem recorrer a esta medida de protecção193; em outra fronteira, situam-se os casos em que o juiz igualmente se recusa a nomear um administrador por entender não ser essa a figura adequada, sugerindo antes a instauração dos regimes clássicos de protecção, a inabilitação ou a interdição, e informando o Ministério Público para que a promova194. O objecto do decreto judicial deve ser rigorosamente delimitado, definindo os poderes do administrador, os sujeitos envolvidos, a duração das suas funções, os actos que o administrador pode praticar em nome e por conta do beneficiário e os actos que o beneficiário só pode realizar com assistência do administrador. Tudo o que não estiver previsto no decreto manter-se-á na competência do beneficiário, contrariamente ao que sucede na inabilitação e na interdição. Os actos executados irregularmente pelo administrador de apoio são anuláveis195, tanto por violação de disposições legais como por excesso relativamente ao objecto do decreto ou aos poderes conferidos pelo juiz. Também os actos realizados de forma irregular pelo beneficiário são anuláveis. Questionamo-nos se o decreto pode atribuir ao administrador poderes Notamos que a fórmula é idêntica à anteriormente vigente para a interdição, onde também era indiscutível que podiam estar em causa actos pessoais (v., e.g., acórdão n.º 5652 da Cassazione Civile, de 18 de Dezembro de 1989, in Nuova giurisprudenza civile e commentata, 1990, I, pp. 513 ss; Renato Pescara, «Tecniche privatistiche e istituti di salvaguardia dei disabili psichici», in Trattato Rescigno, T. 4, V. 3, Giappichelli, Torino, 1997, pp. 795 ss). 193 A instauração de uma medida de protecção a favor de uma pessoa que não necessita da mesma violaria os princípios constitucionais da dignidade humana e do respeito pela pessoa. Nestes termos, v. Maria Dossetti, Mimma Moretti e Carola Moretti, L’amministratore di sostegno e la nuova disciplina dell’interdizione e dell’inabilitazione (L. 9 gennaio 2004, n. 6), IPSOA, 2004, 9. 194 O princípio da discricionariedade vigora actualmente também no que concerne à interdição. 195 A requerimento do próprio administrador, do Ministério Público, do beneficiário ou dos seus herdeiros; já relativamente aos actos irregularmente praticados pelo beneficiário, esses só podem ser anulados a requerimento do administrador, do beneficiário ou dos seus herdeiros, nos termos do art. 412 do Código Civil. Paula Távora Vítor não parece fazer esta distinção, não reconhecendo a legitimidade do Ministério Público no primeiro caso referido (A administração do património das pessoas com capacidade diminuída, ob. cit., p. 197). Continua a Autora que: «Já padecerão de ineficácia aqueles [actos] que implicam uma invasão da esfera da acção reservada ao beneficiário» (p. 197). Não podemos concordar, pois, se os actos praticados pelo administrador invadem a esfera de acção reservada ao beneficiário, esses são excessivos relativamente ao objecto das suas funções ou aos poderes conferidos pelo juiz e, portanto, de acordo com o art. 412, são anuláveis, e não eficazes. 192
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de representação concorrentes com os do beneficiário. Uma resposta positiva conduziria a uma flagrante contradição, já que, sendo o beneficiário capaz de praticar os actos em causa, em nome da sua dignidade e da invasão mínima da sua liberdade, só ele é que deve ser considerado competente para tal, perante a hodierna regra geral da capacidade. Além de que, de outra forma, poderse-ia suscitar uma grande insegurança no tráfego jurídico. Assim, cremos ser criticável o decreto do Tribunal de Parma n.º 536 de 2 de Abril de 2004196, que, não obstante atribuir ao administrador poder de representação para todos os actos de administração ordinária e extraordinária, manteve a plena faculdade de o beneficiário também os praticar, sem sequer exigir a assistência do primeiro197. Aliás, tal retira-se da formulação do próprio art. 409, 1, que determina que: «o beneficiário conserva a capacidade para a prática de todos os actos que não exijam a representação exclusiva ou a assistência necessária do administrador de apoio»198. A nova legislação atribui capacidade específica ao beneficiário da administração de apoio para realizar os actos que se mostrem necessários ao desenrolar da vida quotidiana, estabelecendo mesmo que o sujeito não pode ser privado dessa capacidade, a qual representa uma contratualidade mínima199. Transcrevendo as palavras de Maria Dossetti, Mimma Moretti e Carola Moretti, «se um acto pode ser considerado “necessário”, por isso mesmo não pode ser prejudicial para o sujeito, nem relevante o estado subjectivo do terceiro contraente»200. Assim, apesar de não ser fácil determinar quais os actos que se inserem nesta categoria, tais actos – sejam eles quais forem – são válidos quando praticados pelo sujeito administrado, pois, sendo necessários, não podem ser prejudiciais. A administração de apoio deve ser, em princípio, decretada por tempo determinado201, podendo, contudo, o mandato ser prorrogado; não obstante, se a situação específica do beneficiário assim o exigir, esta medida pode ser decretada por tempo indeterminado. Embora a legislação não o preveja expressamente, deve-se entender que, no In DVD-Rom La Legge, IPSOA, 5/2006, IPSOA editore. Problemas similares têm-se suscitado na Alemanha, onde a nomeação do Betreuer não retira a capacidade de exercício ao beneficiário, nem mesmo para as matérias da competência daquele. Há, portanto, uma competência concorrente entre ambos os sujeitos, que poderá levar à prática de actos contraditórios entre eles. Assim, parece que, pelo menos por parte dos bancos e das companhias de seguros, tem-se assistido a uma prática de recusa de contratar apenas com o assistido, exigindo também a intervenção do Betreuer [Sachsen Gessaphe, «La legge tedesca sull’assistenza giuridica e la programmata riforma della legge italiana in materia di interdizione e di inabilitazione», in La riforma dell’interdizione e dell’inabilitazione, Salvatore Patti (ed.), Giuffrè editore, Milano, 2002, p. 73]. 198 Trad. nossa. 199 V. Angelo Venchiarutti, La protezione civilistica dell’incapace, Giuffrè, Milano, 1995, pp. 427 ss. 200 MARIA DOSSETTI, MIMMA MORETTI e CAROLA MORETTI, L’amministratore di sostegno e la nuova disciplina dell’interdizione e dell’inabilitazione (L. 9 gennaio 2004, n. 6), IPSOA, 2004, 14.2. (trad. nossa). 201 Em princípio, com a cessação das funções do administrador termina, automaticamente, a administração de apoio. Todavia, há excepções previstas no art. 413 do Código Civil. 196 197
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processo tendente a nomear um administrador de apoio, o potencial beneficiário deve ser assistido por um advogado. Aliás, a Cassazione Civile já por várias vezes reiterou a posição de que em todos os processos em que estejam em causa direitos subjectivos ou que se reportem ao estado das pessoas é necessário o patrocínio judiciário202. Em nome das garantias do beneficiário, o art. 407, 2, dispõe agora que o juiz deve ouvir o interessado, e já não examiná-lo, como sucede na interdição e inabilitação203. A nomeação do administrador fica sujeita a uma dupla forma de publicidade: a anotação no registo específico da administração de apoio criado no tribunal e a anotação à margem no registo de nascimento, não contemplando este as limitações da capacidade do beneficiário, mas apenas a nomeação do administrador. Este sistema, que não constitui uma novidade, era já anteriormente objecto de críticas relativamente às figuras da interdição e da inabilitação, pelos efeitos estigmatizantes que trazia às relações sociais do sujeito, tornando-o “um separado”, ou mesmo um marginalizado204. O presente aspecto não foi, contudo, melhorado pela reforma, não tendo esta servido para alcançar um equilíbrio pleno entre a socialização do incapaz e a protecção dos interesses de terceiros. A nomeação do administrador pode ser requerida pelo próprio interessado – possibilidade ora inserida em nome do máximo respeito pela sua dignidade e da conservação da sua capacidade de exercício –, bem como pelos sujeitos taxativamente indicados no art. 417, que, aliás, são os mesmos a quem é reconhecida legitimidade para pedir a interdição ou inabilitação – ou seja: o cônjuge, mesmo que separado de facto205, escolha que não nos parece ser a mais adequada, por (poder) não existir a necessária relação de proximidade e convivência; o convivente, discutindo-se se a previsão normativa integra apenas o convivente more uxorio206 ou também o simples convivente estável em economia comum207, sendo que a nossa inclinação vai para esta segunda hipótese, uma vez que a convivência diária permite avaliar as necessidades do sujeito, mesmo que não se trate de uma convivência de natureza afectivo-sexual; os parentes até V., e.g., o acórdão de 29 de Maio de 1990, n.º 5025, in Diritto Ecclesiatico, 1992, II, pp. 57 ss; ou o acórdão de 22 de Junho de 1994, n.º 5967, in DVD-ROM La Legge, IPSOA, 5/2006, IPSOA Editore. 203 V. art. 714 do CPC. 204 Renato Pescara, «Tecniche privatistiche e istituti di salvaguardia dei disabili psichici», in Trattato Rescigno, 4, 3/2, Giappichelli, Torino, 1997, p. 838. 205 Maria Dossetti, Mimma Moretti e Carola Moretti, L’amministratore di sostegno e la nuova disciplina dell’interdizione e dell’inabilitazione (L. 9 gennaio 2004, n. 6), IPSOA, 2004, 13.2.1.; Piero Rescigno, «Introduzione», in Follia e diritto, Gilda Ferrando/Giovanna Visintini (eds.), Giappichelli, Torino, 2003, pp. 21 ss. 206 Francesco Ruscello, «“Amministrazione di sostegno” e tutela dei “disabili”. Impressioni estemporanee su una recente legge», in Studium Iuris, 2004, p. 150; Umberto Morello, «L’amministrazione di sostegno (dalle regole ai principi)», in Notariato, 2004, p. 225. 207 Giovanni Campese, «L’istituzione dell’amministrazione di sostegno e le modifiche in materia di interdizione e di inabilitazione», in Famiglia e diritto, 2004, p. 132, nota de rodapé n.º 31; B. Malavasi, «L’amministrazione di sostegno: le linee di fondo», in Notariato, 2004, p. 324, nota de rodapé n.º 55. 202
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ao 4.º grau; os afins até ao 2.º grau; o tutor, o curador e o Ministério Público208. Não há qualquer ordem de preferência na escolha dos sujeitos, como resulta da formulação do art. 417 – o único critério para a selecção é o da idoneidade de cada sujeito209. A escolha do administrador deve ser indicada pelo beneficiário sempre que as suas condições o permitam210, embora tal possibilidade seja expressamente prevista no texto da lei apenas para a «propria eventuale futura incapacità»; na ausência dessa indicação cabe ao juiz a opção pela pessoa que considere mais idónea para assumir as funções. Esta possibilidade de o administrador poder ser indicado pelo interessado, para obstar a uma eventual incapacidade futura, foi recentemente utilizada pela jurisprudência italiana para validar o chamado testamento biológico211, ou seja, para considerar válida a declaração de vontade do testador, que se encontra em condições de perfeita saúde mental, relativamente às terapias que pretende que lhe sejam ou não administradas, se vier a ficar em condições de não poder dar o seu consentimento informado. O administrador tem um dever de informação, o qual se apresenta bastante complexo, porque dotado de duas faces: por um lado, o administrador deve informar tempestivamente o beneficiário dos actos a cumprir; e, por outro, deve informar o juiz tutelar em caso de discordância do beneficiário. Da análise da disposição normativa (art. 410 do Código Civil) resulta que o administrador tem a obrigação de informar preventivamente o beneficiário e de discutir com ele a oportunidade de qualquer acto proposto, obtendo o seu consentimento, pois, de outra forma, teria de informar o juiz do seu desacordo. A assim ser, as consequências poderiam roçar o absurdo, uma vez que, em rigor, o administrador deveria ter o consentimento do beneficiário mesmo para a prática de actos da sua exclusiva competência; não o obtendo, deveria informar o juiz tutelar, o qual, notamos, recebe a informação mas não emite providências de autorização. Se o administrador agisse de outra forma, ou seja, não cumprindo os passos descritos em caso de falta de consentimento do beneficiário, o acto poderia ser anulado por ter sido praticado «in violazione delle disposizione di legge»212. Relativamente aos responsáveis dos serviços sanitários e sociais vigora uma obrigação de propor ao juiz tutelar a nomeação de um administrador de apoio para os sujeitos que por eles são assistidos ou relativamente aos quais, no exercício das suas funções, tomem conhecimento do estado de pessoa nas condições de aplicação deste instituto. 209 Maria Dossetti, Mimma Moretti e Carola Moretti, L’amministratore di sostegno e la nuova disciplina dell’interdizione e dell’inabilitazione (L. 9 gennaio 2004, n. 6), IPSOA, 2004, 13.2.2. Em sentido diverso, Paula Távora Vítor, A administração do património das pessoas com capacidade diminuída, ob. cit., p. 177. 210 V. art. 408 do Código Civil. 211 V. notícia publicada em 29 de Maio de 2008, no Jornal “Corriere della Sera”. 212 Relativamente ao regime da anulabilidade, o legislador estendeu à amministrazione di sostegno a regra geral da prescrição de cinco anos, cuja contagem se inicia no dia da cessação da administração. Trata-se de uma escolha que privilegia o beneficiário em detrimento do tráfico jurídico, o que confirma que, em certa medida, o administrado, se bem que tenha capacidade de exercício, quando pratica actos vedados ou que não podem ser realizados por ele sem assistência, é tratado como 208
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Ora, esta interpretação desvirtuaria por completo a medida de protecção de administração de apoio, esvaziando o conteúdo dos poderes de iniciativa e gestão do administrador previstos no decreto de nomeação, danificando a sua ratio, ou seja, o zelo dos interesses pessoais e patrimoniais do beneficiário. Acresce ainda que tal interpretação bloquearia a gestão concreta da administração de apoio. Além disso, a determinação dos actos de competência exclusiva do administrador tornar-se-ia supérflua, por ser necessária uma duplicação de providências. Propugnamos, assim, uma interpretação diversa, entendendo que o dever de informação deve ser conjugado com o modo como o administrador deve envolver o beneficiário nas decisões que lhe dizem respeito, na medida da sua capacidade de discernimento. Por isso, este dever, nos termos supra definidos, vigora não para qualquer acto, mas somente para aqueles relativamente aos quais o beneficiário seja capaz de exprimir um parecer. Tanto assim que a informação devida ao juiz relativa ao não consentimento do beneficiário não é destinada a provocar uma intervenção substitutiva – pois a norma não a prevê, como mencionámos – sendo antes dirigida a ter sob controlo as condições do beneficiário, assegurando a melhor prossecução do seu bem-estar. Recordamos que o juiz tutelar pode, a todo o momento, modificar, mesmo ex ufficio, as decisões plasmadas no decreto de nomeação, se o considerar adequado à cabal protecção do beneficiário. Os deveres de informação não são, pois, elementos necessários para o correcto cumprimento de um acto de administração de apoio, funcionando antes como estímulo à participação do beneficiário nas decisões que lhe dizem respeito, como parece, aliás, resultar do facto de o legislador não ter estatuído qualquer sanção directa para a sua “violação”. Todavia, a violação reiterada ou gravosa pode ser indício de negligência ou causar até um verdadeiro dano, situações nas quais os sujeitos legitimados podem recorrer ao juiz tutelar para que adopte as providências adequadas213. Não existe nenhuma norma específica a regular a situação de conflito de interesses entre beneficiário e administrador. A única indicação na matéria é a remissão feita do art. 411 para o art. 378 relativo aos actos vedados ao tutor por causa de conflito de interesses in re ipsa. Nada se menciona, no entanto, quando o conflito não dependa tanto do acto a praticar, mas sim do facto de o administrador ter, em concreto, interesses contrastantes com os do beneficiário. Poderá o legislador ter acreditado que o conflito não se pode verificar pelo facto 213
incapaz. O recurso para o juiz tutelar por parte dos sujeitos legitimados é previsto em caso de: a) contradição: ou seja, fundado desacordo com as escolhas realizadas pelo administrador, pelo beneficiário ou pelas pessoas próximas (o desacordo deve ser motivado); b) escolhas ou actos danosos: referese a actos singulares ou específicos que tenham causado um dano ao beneficiário, de natureza patrimonial ou pessoal, mas danos que se tenham efectivamente verificado – se forem só previsíveis podem-se incluir na “contradição”; e c) negligência na prossecução do interesse ou na satisfação das necessidades ou pedidos do beneficiário: reporta-se predominantemente às carências do administrador no cumprimento dos seus deveres de cura da pessoa do beneficiário.
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de os poderes do administrador não terem carácter geral, sendo limitados ao cumprimento de actos específicos indicados no decreto de nomeação, para os quais se poderia excluir a priori o conflito de interesses? Julgamos que semelhante tese não é defensável, pois tal tornaria inútil a remissão para o art. 378, que indica os actos vedados ao tutor. Na verdade, não podemos excluir que, mesmo nas relações entre administrador e beneficiário, haja um conflito de interesses. Não obstante a amplitude dos poderes do administrador ser variável, pode ser impossível determinar a priori cada acto necessário à execução das suas funções. Acresce que, embora o decreto de nomeação deva indicar de forma analítica os actos de competência do administrador, essa previsão nunca será tão articulada que não deixe nenhum espaço de autonomia na escolha dos actos concretos a realizar, potencializando-se assim o conflito de interesses. Sem prejuízo do que precede, é possível que a ausência de regulação se justifique por, nos poderes do juiz tutelar, estar compreendido o de individualizar o remédio adequado a um eventual conflito de interesses, sem ser necessário chamar outras normas. Outro aspecto a merecer especial referência a propósito do regime da administração de apoio é o facto de a categoria dos sujeitos obrigados a continuar como administradores por mais de dez anos ser mais reduzida do que aquela que tem legitimidade para requerer a nomeação de administrador ou a revogação da administração de apoio, incluindo apenas o cônjuge, o convivente estável, os ascendentes e os descendentes. Com efeito, não seria razoável impor a uma pessoa que não conste dos “familiares” mais directos um ónus tão gravoso como o de assistir um sujeito com capacidade diminuída. No entanto, o administrador pode continuar a exercer voluntariamente essas funções. A concreta cessação do cargo exige uma providência do juiz para evitar que o beneficiário fique sem protecção214. Para finalizar, salientamos que não existe uma remissão total do regime desta medida de protecção para outras normas; há somente uma remissão individual, que especifica os grupos de normas referentes à figura da tutela aplicáveis à administração de apoio, o que se mostra de acordo com o princípio subjacente de que o beneficiário tem, em princípio, capacidade de exercício. Portanto, a remissão ocorre apenas perante um chamamento expresso ou uma lacuna específica. Nestes casos, deve-se averiguar a ratio concreta da norma à qual se pretende recorrer215, pois a remissão é feita unicamente “in quanto compatibile”.
Renato Pescara, «Tecniche privatistiche e istituti di salvaguardia dei disabili psichici», in Trattato Rescigno, T. 4, V. 3/2, Giappichelli, Torino, 1997, pp. 845 ss. 215 Maria Dossetti/Mimma Moretti/Carola Moretti, L’amministrazione di sostegno e la nuova disciplina dell’interdizione e dell’inabilitazione, IPSOA, 2004,16.1. 214
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4. Observações conclusivas A reforma italiana apresentou uma grande amplitude e profundidade, em nome da atenção dada a cada pessoa com capacidade diminuída, na sua singularidade, tendo, contudo, importado alguns dos seus princípios orientadores de outras ordens jurídicas vizinhas. A máxima popular de que cada caso é um caso tem assim inteira aplicação nesta matéria face à ordem jurídica italiana. A personalização do regime potencia o equilíbrio entre as exigências de protecção e de liberdade do sujeito beneficiário, permitindo uma maior equiparação entre sujeitos tradicionalmente qualificados como incapazes e os sujeitos capazes216. Ao lado das figuras tradicionais “remodeladas” da interdição e da inabilitação, vige agora também a administração de apoio, com uma potencial extensão de beneficiários não menosprezável. A administração de apoio reformula a própria noção de protecção, indo muito para além da tutela da esfera patrimonial e centrando-se na realização das aspirações pessoais do seu beneficiário; garante, por um lado, a valorização da pessoa, enquanto assegura, por outro, a sua participação activa nas relações jurídicas que lhe dizem respeito. Podem ser seus beneficiários tanto os sujeitos que tenham uma capacidade diminuída leve como aqueles onde essa seja bastante mais forte, sendo irrelevante o carácter temporário ou definitivo da mesma. À ampla potencialidade de aplicação do instituto e ao princípio da flexibilidade que o caracteriza, acresce a discricionariedade conferida ao juiz para determinar o “objecto” do decreto. Por isso mesmo, pensamos que a administração de apoio poderia substituir as figuras da interdição e da inabilitação, deixando nas mãos desse mesmo juiz o poder de adequar a sentença à situação concreta. A manutenção das figuras tradicionais justifica-se apenas como forma de «atrair e concentrar o estigma que desde há séculos acompanha a enfermidade psíquica, libertando o novo regime de tal»217. Perante uma incapacidade total e tendencialmente permanente, o juiz pode decretar a administração de apoio, estendendo o seu objecto até ao ponto de incluir todos os actos de ordinária e de extraordinária administração. No entanto, como abundantemente referimos, a opção do legislador italiano foi a de, por agora, manter a nova figura lado a lado com os institutos tradicionais da incapacidade. IV - Conclusões Paolo Cendon, «Profili dell’infermità di mente nel diritto privato», in Rivista critica di diritto privato, 1986, pp. 34 ss. 217 ENRICO CARBONE, «Libertà e protezione nella riforma dell’incapacità d’agire», 2004, ponto 7, disponível no seguinte endereço electrónico: http://www.personaedanno.it/cms/data/ articoli/000316.aspx (visitado em 1 de Setembro de 2008). 216
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A presente era caracteriza-se por incessantes e profundas transformações sociais, potenciadas, em muito, pelo avanço que a ciência tem vindo a conhecer. Graças aos contínuos progressos da ciência médica218, hoje a esperança média de vida dos cidadãos é significativamente mais alta do que o era há apenas uma década atrás. A longevidade aumentou exponencialmente; porém, paralelamente a este fenómeno, cresceu igualmente a percentagem de adultos com capacidade diminuída, sendo até, em certa medida, um fenómeno reflexo do outro. Nestas condições, o ser humano em geral – e principalmente o jurista – não pode ficar indiferente à disciplina normativa prevista para a prática de actos por parte das pessoas com capacidade diminuída, devendo-se centrar, em nome do princípio da dignidade humana vigente em qualquer Estado de Direito, na óptica da pessoa, mesmo que com preterição do seu património. É o zelo pela própria pessoa e pela sua dignidade que deve constituir a cimeira preocupação nesta matéria. Em Portugal, existem apenas duas figuras formalmente consagradas que disciplinam as incapacidades das pessoas maiores de idade – a interdição e a inabilitação –, mostrando-se-nos claramente insuficientes na resposta aos problemas que hoje se suscitam. Por um lado, as normas da interdição não respondem às exigências concretas de cada um dos seus “beneficiários”, premiando somente o protótipo da lei geral e abstracta – os sujeitos interditos vêem-se completamente à margem da sociedade, que os deveria acolher e reintegrar, estigmatizados frontalmente pela anulação da sua capacidade de exercício de direitos e limitação da própria capacidade de gozo. Por outro lado, a própria inabilitação, figura mais maleável quanto ao conteúdo objectivo, onde vigoram preocupações de adaptação ao caso concreto, não se ocupa do sujeito enquanto tal, na sua dimensão vulnerável de ser humano, com necessidades de interacção, debruçando-se estritamente sobre os seus actos de carácter patrimonial. Assim, é o próprio respeito pela dignidade humana que impõe o acolhimento no direito nacional de uma normatividade diversa, de acordo, aliás, com o que muitos outros legisladores já fizeram. As respostas das várias ordens jurídicas europeias à incapacidade têm oscilado maioritariamente entre soluções que favorecem a autonomia do sujeito, numa perspectiva de socialização, e aquelas que favorecem a protecção, privilegiando simultaneamente a segurança do tráfego jurídico. No entanto, a mais recente tendência apresenta-se claramente defensora da autonomia do indivíduo, sacrificando ao mínimo a sua capacidade jurídica e beneficiando a adopção de “soluções à medida”, tendentes à sua socialização 218
Ainda que associada a muitos outros factores, como sejam a prevenção, os cuidados paliativos, uma certa recuperação de hábitos alimentares e de estilos de vida.
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numa perspectiva de cidadania inclusiva. Todavia, o legislador português tem-se mantido à margem da discussão, conservando uma postura relativamente atípica. Mostra-se ainda pouco receptivo à valorização da autonomia do sujeito com capacidade diminuída, bem como à sua inserção no tráfego jurídico como forma de atenuação, ou mesmo de eliminação, da estigmatização, apesar de os progressos da ciência psiquiátrica irem em sentido oposto, promovendo o respeito pela vontade e liberdade humanas, de forma a invadir o mínimo possível a esfera de actuação de cada um. Notamos que a valorização máxima do respeito pela vontade e liberdade do sujeito com capacidade diminuída deriva de forma directa, e até espontânea, da tutela dos direitos fundamentais de qualquer Estado de Direito e, em Portugal, do art. 26.º, n.º 1, da CRP, integrante do catálogo dos direitos, liberdades e garantias. Pelo que pensamos o regime da interdição, que amputa a capacidade do interdito, restringe mesmo o campo material daquele direito em termos inconstitucionais. O regime português da incapacidade de pessoas maiores de idade, sobretudo na figura da interdição, é susceptível de crítica, também em razão da sua inflexibilidade e, consequentemente, da sua inadequação ao caso concreto, que chega a ser chocante. A tendência da autonomia e a preocupação com a singularidade do indivíduo deve ser juridicamente latente, como forma de potencializar a realização pessoal de todo o ser humano. Este foi o espírito do legislador italiano de 2004, que instituiu a figura da administração de apoio, bem como reformou as figuras tradicionais da interdição e inabilitação, numa óptica de maximização da capacidade de cada sujeito, seguindo o trilho desenhado anteriormente por outros legisladores europeus. Assim, determinou que a nomeação do administrador de apoio não provoca sequer um estado de incapacidade. Não obstante a reforma italiana ter sido acerrimamente reivindicada, a Lei n.º 6/2004 acabou por causar um certo sentimento de desilusão, sobretudo naqueles que não duvidavam da substituição dos institutos tradicionais da interdição e da inabilitação pela nova figura da administração de apoio. Efectivamente, a nova disciplina suscita dificuldades no relacionamento entre as três figuras ora legislativamente previstas, tornando árdua a tarefa de proceder a uma correcta delimitação das suas fronteiras. Parece mesmo que a delimitação do campo de aplicação entre estas figuras é demasiado frágil, já que a administração de apoio, afigura-se-nos passível de incluir todos os casos de interdição e inabilitação, com excepção de situações residuais (e mesmo nestas, atendendo a argumentos meramente formais). De tudo quanto ficou exposto, resulta que não acreditamos numa clara diferenciação entre o campo de aplicação da administração de apoio, da interdição e da inabilitação; defendemos a substituição das figuras tradicionais pela primeira, figura dotada de grande flexibilidade e capaz de abarcar no seu seio todas as situações em que, por qualquer motivo, o sujeito se apresente com capacidade diminuída. A adopção deste sistema “incapacitante” dotado de 156
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flexibilidade permitiria, com efeito, respeitar integralmente a dignidade de cada pessoa, que deixaria assim de estar despojada das suas liberdades fundamentais quando tal não fosse estritamente necessário para a sua efectiva protecção. Assim, defendemos a substituição material, com o decorrer do tempo, das figuras da interdição e da inabilitação pela medida de protecção da administração de apoio. Acreditamos que a adopção de um “processo semelhante” – embora com certas adaptações – poderia ser frutuosa na ordem jurídica portuguesa. O objectivo seria, portanto, o alcance da flexibilização do regime actual, ainda que através da mediação de um “período de transição”, em nome da tradição, onde subsistiriam as figuras clássicas da interdição e da inabilitação, ligeiramente retocadas, lado a lado com uma medida de protecção, centrada na óptica da pessoa concreta, semelhante à do administrador de apoio. Propomos, deste modo, a importação do regime, nos moldes supra referidos, aproveitando a oportunidade para introduzir algumas alterações, “melhorando-o” e adaptando-o às necessidades do direito português. Assim advogamos, designadamente, a proficuidade de o beneficiário poder – quando o seu discernimento o permita – escolher a pessoa que considere mais idónea para zelar pelos seus interesses, tanto perante uma situação de capacidade diminuída contemporânea, como futura. Defendemos igualmente a limitação da duração do cargo de administrador de apoio a cinco anos (em vez dos dez anos legislativamente previstos em Itália), atendendo ao desgaste associado ao correcto desempenho das suas funções; a renovação do cargo seria obrigatória – salvo em caso de invocação de motivos atendíveis, apreciados discricionariamente pelo juiz – apenas para os familiares mais próximos, incluindo neste conceito o convivente estável (enquanto a relação durar). Propugnamos também que o cônjuge separado deve ficar excluído da lista de potenciais administradores, bem como da própria legitimidade para requerer o decretamento da medida de protecção jurídica. Por outro lado, mantendo-se, ainda que transitoriamente, a figura da inabilitação, cremos que a prática de qualquer acto pelo tutor deva ser orientada pelo bem-estar da pessoa que assiste (ou, em certos casos, que representa). Demonstrada a necessidade da reforma do regime das “incapacidades” de pessoas maiores de idade face ao direito e à própria sociedade portuguesa, restanos esperar que as forças políticas e a própria comunidade jurídica se mostrem sensíveis à mesma e que intervenham em tempo útil e no sentido da defesa de uma cidadania mais inclusiva.
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Marta Costa
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RETENÇÃO DE DADOS DE COMUNICAÇÕES1 Miguel Pupo Correia2 1 Introdução: o confronto de valores da intimidade pessoal e da segurança pública O tema que me proponho tratar situa-se na encruzilhada de duas ordens de valores que são reconhecidos como de altíssima relevância para as sociedades humanas no mundo actual: De um lado, o valor fundamental da reserva de intimidade da vida privada, que respeita à dignidade do Homem enquanto Pessoa e, por isso, radica no Direito Natural. Face a ele, posiciona-se o valor da defesa da segurança das sociedades organizadas, que implica particulares exigências no tocante ao combate à criminalidade, em particular nos domínios, tecnologicamente mais sensíveis, das comunicações electrónicas e outras manifestações da chamada Sociedade da Informação. Irei procurar traçar uma panorâmica deste confronto, descrevendo depois as suas principais repercussões na evolução recente do direito positivo. 2. Protecção da intimidade pessoal 2.1. A primeira ordem de valores cujo confronto delimita as fronteiras do tema ora em apreço reside na defesa dos direitos pessoais, designadamente o da intimidade (ou privacidade) pessoal. Tema de implicações muito variadas, que acabam todas, mais ou menos 1
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Texto de apoio para intervenção no Colóquio “Direito de Autor e da Sociedade de Informação”. Perspectivas no início do Séc. XXI”, realizado em 6.11.2009 na Universidade Lusíada de Lisboa Mestre em Ciências Jurídico-Empresariais (FDUC); Professor na Universidade Lusíada de Lisboa; Advogado.
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directamente, por nos conduzir à indagação do suporte axiológico das relações na Sociedade de Informação, ou seja, de como salvaguardar os valores que devem nortear nesse contexto a convivialidade das pessoas e das instituições, tendo como essencial preocupação a salvaguarda da dignidade humana (3). No quadro da ética atinente à Sociedade de Informação, a questão da privacidade pode sintetizar-se assim: «Que informação acerca de si próprio ou das suas relações deve uma pessoa revelar a outros, sob que condições e com que salvaguardas? Que coisas podem as pessoas conservar para si mesmas e não ser forçadas a revelar a outras?» (4). Sob esse prisma, em tema de informação e comunicação, ocorre de imediato a necessidade de preservar o direito à reserva da intimidade da vida privada (5), que radica no próprio Direito Natural (6). Na verdade, é vox communis a consagração superlativa deste direito dentro do núcleo mais inquestionável dos direitos fundamentais. Assim sucede ao nível internacional, como exprimem o art. 12º da Declaração Universal dos Direitos do Homem (7), o art. 17º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (8), o art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (9), os arts. 7º e 8º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia(10). Também a ordem jurídica do nosso País – tal como as da maioria dos Estados ditos civilizados - consagra o «direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar» como direito fundamental de carácter pessoal (art. 26º, nº 1 da CRP), corroborando a sua inclusão nos direitos civis de personalidade (art. 80º do Cód. Adapto nesta parte, com actualizações, um extracto do meu estudo “O Caso Echelon: Aspectos Jurídicos”, publicado em “Direito da Sociedade de Informação”, APDI e Coimbra Editora, Coimbra, 2003, pp. 323 e ss. 4 RICHARD O. MASON, “Four Ethical Issues of the Information Age”, in “Management Information Systems Quarterly”, (10:1) March, 1986. 5 Terminologia que prefiro por corresponder à consagrada, com manifesta conotação personalista, na nossa Constituição e no nosso Código Civil. Isto sem deixar de ter em conta o cada vez mais frequente emprego, por influxo anglo-saxónico, do termo privacidade (“privacy”). 6 ÁLVARO D’ORS, “Derecho y sentido común – Siete lecciones sobre el derecho natural como límite del derecto positivo”, Civitas Ediciones, Madrid, 1999, p. 136. 7 «Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito à protecção da lei.» 8 Praticamente idêntico ao art. 12º da Declaração Universal dos Direitos do Homem. 9 «1. Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2. Não pode haver ingerência de autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.» 10 “Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua vida privada e familiar, pelo seu domicílio e pelas suas comunicações”. 3
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Civil), para além de consagrar diversos outros direitos que podem considerar-se a justo título como corolários ou garantes daquele. Trata-se de um dos direitos que estão «directamente ao serviço da protecção da esfera nuclear das pessoas e da sua vida», integrante da mesma categoria específica do direito à vida e à integridade pessoal (11). É evidente a dificuldade de determinar de modo geral o alcance da intimidade ou privacidade da informação referente a uma pessoa, atendendo a que cada qual tem necessidades pessoais e consequentemente percepções próprias acerca do âmbito que pretende preservar do alcance dos outros. Mas é comum a opinião de que há certos factos e, consequentemente, certos dados que, em homenagem à protecção da intimidade pessoal, devem formar uma «esfera privada de cada pessoa» a ser preservada da intromissão, seja das outras pessoas, seja dos poderes política ou juridicamente constituídos, que os mesmos Autores propõem sejam subordinados ao critério da privacidade e da dignidade humana (12). 2.2. A protecção do direito à intimidade pessoal no tocante às realidades características da Sociedade de Informação apresenta múltiplas cambiantes, que dão origem a variados problemas e a profusa produção normativa. É particularmente relevante, neste domínio, a clássica detecção neste direito fundamental de duas vertentes (13) que originam normativos legais de cariz diferenciado: a) O «direito de impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar»; e b) O «direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem». Estas duas vertentes manifestam-se de forma específica no direito ao sigilo das comunicações - instrumental do direito à intimidade, mas nem por isso secundarizável -, que o nosso ordenamento jurídico consagra de maneira enfática no art. 34º, nº 1 da CRP, ao declarar invioláveis «…o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada…», acrescentando o nº 4 do mesmo artigo: «É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª ed. 1993, p. 179. 12 Ibidem, p. 182. Vd. tb. sobre este tema PAULO MOTA PINTO, “O Direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, Bol. Fac. Dir. Univ. Coimbra, nº 69, p. 526 e ss, apud GARCIA MARQUES - LOURENÇO MARTINS, “Direito da Informática”, IJC e Almedina, Coimbra, 2006, p. 129 e ss.; MARIA EDUARDA GONÇALVES, “Direito da Informação”, Almedina, Coimbra, 1994, p. 74 ss.; FRANCISCO EUGENIO DIAZ, “La Protección de la Intimidad y el uso de Internet”, in “Informática y Derecho - Revista Iberoamericana de Derecho Informático”, nºs 30-31-32, Mérida, 1999, p. 149 e ss. 13 A que GOMES CANOTILHO – VITAL MOREIRA (obra cit., p. 181) chamam “direitos menores”, qualificação de que discordo, por me parecer que se trata antes de duas variações ou modalidades do direito à intimidade, que devem compartilhar o mesmo nível e força de dignidade e protecção constitucional que lhe está atribuída. 11
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matéria de procedimento criminal.» (14). Este direito comporta as duas vertentes atrás assinaladas, ou seja, tanto a proibição do acesso não autorizado de terceiros ao conteúdo das comunicações – a por vezes chamada vigilância ou intercepção das comunicações - como a proibição da divulgação e utilização por terceiros desse conteúdo e das circunstâncias (tais como a hora, a duração, os endereços, etc.) das comunicações estabelecidas (15). Mais voltado para a segunda vertente – proibição de divulgação de dados pessoais reservados - é o chamado princípio da liberdade informática, «ou seja, o direito de controlar (conhecer, corrigir, retirar ou agregar) os dados pessoais inscritos num programa electrónico», a que corresponde a construção da doutrina alemã da autodeterminação informática, concebida como direito de cada pessoa à informação, ao acesso, e ao controlo dos dados que lhe digam respeito, com a sua derivação processual designada por “habeas data” (16). Esta linha temática dá lugar ao ordenamento da protecção de dados pessoais, que tem assento constitucional no art. 35º da CRP e desenvolvimento normativo actualmente em dois diplomas legais: - a Lei nº 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Protecção de Dados Pessoais), que transpôs para a ordem interna a Directiva nº 95/46/CE, de 24.10.1995, relativa à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento dos dados pessoais e à livre circulação desses dados; e - a Lei nº 41/2004, de 18 de Agosto, que regula o tratamento de dados pessoais e a protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas, transpondo para a ordem interna a Directiva 2002/58/CE. Vale referir também aqui a Convenção do Conselho da Europa para a Protecção das Pessoas relativamente ao Tratamento Automatizado de Dados de Carácter Pessoal (aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 23/93) (17).
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No mesmo sentido vd. tb. o art. 4º da Lei nº 41/2004, de 18 de Agosto, que regula o tratamento de dados pessoais e a protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas. A efectividade da tutela jurídica deste direito resulta do art. 384º do Cód. Penal (Crime de violação de segredo de correspondência ou de telecomunicações). Sobre este último aspecto, vd. FARIA COSTA, “Direito Penal da Comunicação”, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, pp. 63 e ss., e 143 e ss. Cfr. GOMES CANOTILHO-VITAL MOREIRA, obra cit., p. 213; e PEDRO GONÇALVES “Direito das Telecomunicações”, IJC e Almedina, Coimbra, 1999, p. 190. A.-H. PEREZ-LUÑO “Manual de Informática y Derecho”, Ariel Derecho, Barcelona, 1996, p.43/44. Vd. tb. AGOSTINHO EIRAS, “Segredo de Justiça e Controlo de Dados Pessoais Informatizados”, Coimbra Editora, Coimbra, Col. Argumentum/4, 1992, pp. 9 e 65 e ss. e doutrina aí citada. Sobre o tema, vd. GARCIA MARQUES - LOURENÇO MARTINS, obra cit. pp. 381 e ss.; IAN WALDEN, “Data Proteccion”, in CHRIS REED, “Computer Law”, Blackstone Press Ltd., London, 3ª ed. 1996, p. 329 e ss.
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3. Protecção dos dados pessoais nas comunicações electrónicas 3.1. É, como acabamos de ver, na Lei nº 41/2004, de 18.8, que o nosso direito interno (por transposição da Directiva nº 2002/58/CE), estabelece o regime do tratamento de dados pessoais e da protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas (ou telecomunicações, como tradicionalmente eram designadas) acessíveis ao público (18). Como este regime tem um cariz complementar em relação ao regime geral da protecção de dados pessoais, importa ter aqui presentes, pelo menos os aspectos nucleares da disciplina constante da já citada Lei nº 67/98, a qual se aplica subsidiariamente naquelas matérias. Assim, importa reter a extrema amplitude do conceito de dados pessoais, revelando o intuito de proteger de modo muito alargado e eficaz a intimidade pessoal: abrange informações de todo e qualquer tipo, em qualquer tipo de suporte (informático, papel, som, imagem, etc.), referentes a uma determinada pessoa singular, que a lei designa por titular dos dados (p. ex.: nome, morada, residência, local de trabalho, endereço electrónico, nº de telefone, nº de BI, NIF, NIB da conta bancária, tipo sanguíneo, impressões digitais, etc.) Ademais, a nossa ordem jurídica (art. 35º/3 da CRP; art. 7º da Lei nº 67/98) confere uma protecção enfaticamente reforçada aos denominados dados sensíveis, como tais se designando os referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada, origem racial ou étnica, saúde e vida sexual, incluindo os dados genéticos. Essa protecção acrescida traduz-se na punição criminal do tratamento indevido de dados dessa natureza – crime de devassa por meio de informática: art. 193º do Código Penal -, bem como num regime especialmente restritivo do tratamento destes dados: este carece de autorização da autoridade reguladora específica desta matéria – a CNPDComissão Nacional de Protecção de Dados -, salvo se houver consentimento dos interessados, ou ocorrerem motivos de interesse público relevante. Tem também uma importância essencial o conceito de tratamento de dados pessoais, que é amplíssimo, pois abrange qualquer tipo de operação que incida sobre dados pessoais (usando ou não meio informáticos). Em princípio, a licitude do tratamento depende de consentimento dos titulares dos dados, o qual, no entanto, é dispensado em certos (e não poucos) casos, designadamente os previstos no art. 6º da L. nº 67/98. O controlo da licitude do tratamento de dados pessoais implica a sua notificação à CNPD, salvo casos de isenção por categoria ou de exigência legal de autorização. 3.2. Pois bem: a Lei nº 41/2004, de que agora quero tratar, rege o tratamento de dados pessoais no contexto das redes e serviços de comunicações electrónicas 18
O regime das actividades de comunicações electrónicas está traçado na Lei das Comunicações Electrónicas (REGICOM), constante da Lei nº 5/2004, de 10 de Fevereiro.
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acessíveis ao público, de modo a zelar pela privacidade tanto dos assinantes – que contrataram com uma empresa a prestação por esta de serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público – como dos utilizadores desses serviços, mesmo não sendo assinantes. A propósito, convém assinalar uma diferença relevante no que toca ao âmbito de aplicação das duas leis acabadas de mencionar: enquanto a Lei nº 67/98 (lei geral da protecção de dados pessoais, como disse) se aplica apenas a dados pessoais de pessoas singulares, a Lei nº 41/2004 protege os interesses dos assinantes e utilizadores dos serviços quer sejam pessoas singulares quer colectivas, estas na medida em que a protecção seja compatível com a sua natureza. A compreensão do dispositivo da Lei nº 41/2004 implica a consideração da variedade de tipos de dados pessoais inerentes às comunicações electrónicas: – Dados de base: são os dados relativos à conexão à rede (p. ex.: nome e morada do assinante, número de acesso, endereço electrónico); – Dados de conteúdo: trata-se dos dados que formam o conteúdo das comunicações (ex: voz, imagens e/ou texto, etc.); – Dados de tráfego: são aqueles que permitem a identificação de uma comunicação para efeitos do encaminhamento ou da facturação da mesma (ex.: número ou endereço do destinatário; data, hora, tipo, duração da comunicação; volume de dados transmitidos; protocolo utilizado; redes de origem e destino da comunicação; formato em que a comunicação é enviada pela rede; dados de localização dos equipamentos terminais; etc.); – Dados de localização: consistem naqueles dados que permitem detectar a posição geográfica do equipamento terminal do assinante ou utilizador do serviço de comunicações electrónicas. Precisamente pela diversidade de natureza e implicações desses vários tipos é que os respectivos dados são sujeitos a regimes diferenciados de protecção da privacidade, como vamos ver. 3.2.1. Quanto aos dados de base, porque praticamente se trata de informações constantes da generalidade das listas de assinantes dos serviços, é geralmente assumido o entendimento de serem elementos abertos ao conhecimento público. No entanto, também está consagrado o direito de opção pela preservação do sigilo destes dados, por parte dos titulares respectivos. Assim, o regime deste tipo de dados reflecte a menor sensibilidade da privacidade a eles respeitante, sem prejuízo da aplicabilidade das regras gerais da Lei nº 67/98 - a que atrás aludimos –, estando apenas previstas as soluções acauteladoras da escolha pessoal de cada titular. Para tal, o art. 13º da Lei nº 41/2004 faculta aos assinantes a opção, no respectivo contrato, pela inclusão ou não destes dados nas listas de assinantes disponíveis para consulta pública. Mas há que distinguir: - Aos assinantes de um serviço fixo de comunicações é garantida a prévia informação sobre a inclusão dos seus dados numa dessas listas e a 168
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possibilidade de optar pela retirada dos seus dados (sistema de opt out); - Mas aos assinantes de um serviço móvel, está estabelecido - por decisão da ANACOM - que a inclusão dos seus dados numa dessas listas depende da sua prévia autorização (sistema de opt in). 3.2.2. A garantia constitucional da inviolabilidade dos meios de comunicação privada ou sigilo das comunicações (art. 34º/1 e 4, da CRP) situa-se no plano da proibição do acesso à informação respeitante à vida privada. Dela decorre, no contexto da L. 41/2004, que se atinja o nível de tutela da privacidade mais elevado no tocante aos dados de conteúdo e aos dados de tráfego: o que bem se entende, dado que os primeiros encerram a própria substância de cada acto de comunicação electrónica e os segundos permitem identificar os elementos nucleares de tal acto. Daí, desde logo, o enquadramento criminal para as violações dessa garantia, definido nos arts. 192º/1/a) (crime de devassa da vida privada, quanto a conversa telefónica) e 194º/2 (crime de violação de telecomunicações), do Código Penal. Daí, também, que o art. 4º/1 da L. nº 41/2004 imponha às empresas prestadoras de serviços e redes de comunicações electrónicas o dever de garantir a inviolabilidade de tais comunicações (isto é, dos respectivos dados de conteúdo) e dos dados de tráfego a elas inerentes; e que o nº 2 do mesmo artigo proíba a escuta, instalação de dispositivos de escuta, armazenamento ou outros meios de intercepção ou vigilância de tais comunicações e seus dados de tráfego. Esta regra comporta, no entanto, algumas excepções, muito restritas aliás: a) Para efeitos de processo criminal (art. 34º/4, da CRP, e arts. 179º e 187º a 189º do Cód. de Processo Penal) – sendo esta excepção aquela que vai suscitar os problemas de equilíbrio normativo que adiante vou referir; b) Consentimento prévio e expresso dos utilizadores (art. 4º/2/in fine, da Lei nº 41/2004); c) Gravações legalmente autorizadas, no âmbito de práticas comerciais lícitas, para prova de uma transacção comercial, ou outra comunicação no âmbito de uma relação contratual, mediante prévia informação e consentimento do titular dos dados (art. 4º/3 da Lei nº 41/2004); d) Gravações de comunicações de e para serviços públicos destinados a prover situações de emergência (art. 4º/4 da Lei nº 41/2004). 3.2.3. A par do que antecede, o tratamento dos dados de tráfego é alvo de um regime especialmente restritivo no que toca à outra vertente da protecção da privacidade – a proibição da divulgação das informações - , que assenta na regra geral de que tais dados devem ser eliminados ou tornados anónimos logo que deixem de ser necessários para a transmissão da comunicação (art. 6º/1 da Lei nº 41/2004). Esta regra admite apenas, como excepções, a permissão do tratamento dos dados de tráfego necessários para efeitos de: Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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a) Facturação aos assinantes e pagamento das interligações; embora apenas até ao final do prazo de contestação da factura ou de reclamação do pagamento das interligações, e mediante fornecimento prévio de informações aos assinantes (art. 6º/2, 3 e 5 da mesma Lei)(19); b) Comercialização de serviços do operador e fornecimento de serviços de valor acrescentado - mediante consentimento prévio do titular dos dados, que pode ser retirado a todo o momento (art. 6º/4, idem)(20) c) Prestação de informações aos tribunais e demais autoridades competentes, com vista à resolução de litígios (art. 6º/7, idem - ao remeter para a legislação aplicável, esta norma remete-nos para a disciplina processual que adiante iremos referir). E, na mesma orientação protectora da privacidade, o art. 9º/1 da mesma Lei confere aos assinantes e utilizadores a faculdade de, ao efectuarem chamadas, «através de um meio simples e gratuito» impedirem a identificação da linha chamadora», inibindo assim a percepção desse dado de tráfego pelo destinatário. A mesma opção deve ser proporcionada ao assinante titular da linha conectada (art. 9º/4). 3.2.4. Pelo que toca aos dados de localização, também só é permitido o seu tratamento em casos e condições muito limitados: a) Quando forem processados dados desse tipo, para além de dados de tráfego, relativos a assinantes ou utilizadores das redes e serviços de comunicações electrónicas, se tais dados forem tornados anónimos (art. 7º/1 da Lei nº 41/2004); b) As organizações com competência legal para receberem chamadas de emergência podem proceder ao registo, tratamento e transmissão de dados de localização para efeitos de resposta a essas chamadas (art. 7º/2, idem); c) Às empresas prestadoras de serviços de comunicações electrónicas, para a prestação a assinantes ou utilizadores de serviços de valor acrescentado, mas apenas mediante prévio consentimento dos titulares dos dados (art. 7º/3, idem), aos quais devem ser prestadas as informações e garantias previstas na lei (art. 7º/4 e 5).
O fornecimento de facturação detalhada implica a conciliação do direito dos assinantes a receberemna com o direito à privacidade dos utilizadores autores das chamadas e dos assinantes chamados. Para tal, está prevista a aprovação dos meios adequados pela CNPD, sob parecer prévio da Anacom (art. 8º da Lei nº 41/2004). 20 O art. 2º, al. f), da Lei nº 41/2004 define serviços de valor acrescentado como: todos aqueles que requeiram o tratamento de dados de tráfego (ou de dados de localização que não sejam dados de tráfego), para além do necessário à transmissão de uma comunicação ou à facturação da mesma. 19
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4. Criminalidade e comunicações electrónicas 4.1. Fez-se notar atrás que a Lei nº 41/2004 consagra excepções às garantias de privacidade relativas à inviolabilidade dos dados de conteúdo e de tráfego das comunicações electrónicas, para efeitos de processo criminal (art. 34º/4, da CRP); e à proibição do tratamento de dados de tráfego, na medida do necessário para prestação de informações aos tribunais e demais autoridades competentes, com vista à resolução de litígios (art. 6º/7 da Lei nº 41/2004). Estas excepções, no domínio que agora nos ocupa, são de molde a justificar uma interrogação preliminar quanto à sua razão de ser e quanto ao modelo de equilíbrio que deve ser mantido entre as duas ordens de valores em presença: a garantia constitucional do direito à intimidade da vida privada versus as necessidades da prestação eficaz da justiça. Desde logo, salta à vista a actual e cada vez maior importância dos dados relativos às comunicações electrónicas como meios de prova, principalmente no domínio do processo penal. Impõe-se, como realidade incontornável, que os dados – ou parte deles - relativos às comunicações electrónicas, que ficam ou podem ficar ao alcance das empresas prestadoras dos respectivos serviços, constituem um meio de prova directo, forte e muitas vezes único dos factos que as autoridades de investigação criminal e os tribunais carecem de apurar. Em paralelo, torna-se cada vez mais notório que os meios de comunicação electrónica – com especial destaque para a Internet – constituem instrumentos vantajosos para actividades ilícitas - em especial as levadas a cabo por redes de crime organizado -, que gozam de elevado grau de impunidade devido à celeridade e fácil ocultação de identidade com que operam, com consequentes ausência de riscos físicos e obtenção fácil de lucros ilícitos. A colheita de provas sobre práticas criminosas carece, assim, de meios de investigação proporcionais às vantagens com que actuam esses agentes criminosos, que operam com meios cada vez mais poderosos e sofisticados, numa escalada de consequências danosas cada vez mais graves. Redes de tráfico de armas e de droga, terrorismo internacional, contrabando, evasão fiscal de grande escala - são realidades indesmentíveis, cujos efeitos se fazem sentir em termos notoriamente nocivos e demolidores para a sanidade das sociedades humanas do nosso tempo. Por isso, a criação de meios organizativos e de uma armadura legal que permita conferir eficácia à investigação criminal no contexto das comunicações electrónicas constitui de há largo tempo preocupação da Comunidade Internacional e dos Poderes Públicos nacionais, sendo disso exemplos marcantes o Sistema “Echelon” e outros similares criados por autoridades de segurança e inteligência, para fins de investigação criminal e de segurança pública (21). Ademais, a escalada do terrorismo internacional, já no actual século, gerou 21
Vide o meu estudo citado na nota (2) supra.
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uma tendência de correlativo incremento dos meios de prevenção e repressão criminal - o chamado “efeito Bin Laden”, devido ao impacto dos atentados de 11.9.2001 e outros (Madrid e Londres), que se concretizou, por exemplo no “USA Patriot Act” de 2001; na Convenção sobre o Cibercrime adoptada pelo Conselho da Europa, em Budapeste, em 23.11.2001; e na Directiva 2006/24/CE, a par de iniciativas replicadoras nas legislações nacionais, como aquelas de que vou falar adiante quando à ordem jurídica Portuguesa. 4.2. A propósito, importa evocar aqui a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) - ratificada por todos os Estados-membros da União Europeia, que também acataram a jurisdição do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) -, cujo art. 8º/2 procura estabelecer um equilíbrio entre a salvaguarda do direito fundamental de que aqui se trata com os interesses públicos que podem entrar em colisão com ele (22). Ressaltam nesta norma pressupostos restritivos das ingerências das autoridades públicas, que se devem notoriamente ter em conta a respeito da intercepção das telecomunicações: a) Legalidade, ou seja, a vigilância só poderá ter lugar quando prevista em lei; b) Democraticidade, já que os motivos invocados como justificativos têm de conformar-se com os princípios que devem reger uma sociedade democrática; c) Proporcionalidade, isto é, a necessidade da devassa para a prossecução de determinados fins de interesse público: segurança nacional, segurança pública, bem-estar económico do país, defesa da ordem, prevenção das infracções penais, protecção da saúde ou da moral, protecção dos direitos e das liberdades de terceiros. 5. A Directiva nº 2006/24/CE e a Lei nº 32/2008, de 17.7 5.1. Entretanto, sobreveio a publicação da Directiva nº 2006/24/CE, que teve o condão de clarificar a solução dos problemas de colheita de provas através dos dados gerados ou tratados no âmbito de redes e serviços de comunicações electrónicas, de forma harmonizada para todo o espaço da União Europeia, pelo menos no tocante à investigação, detecção e repressão de certos crimes graves. Baseada no já citado art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), esta Directiva procura estabelecer uma solução de equilíbrio entre a salvaguarda da privacidade em geral e no sector das comunicações electrónicas, e a necessidade de consagrar restrições para salvaguarda da segurança nacional (do Estado), da defesa, a segurança pública, da investigação, detecção e repressão das infracções penais (graves) e da utilização não autorizada do sistema de 22
Vd. supra nota 8.
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comunicações electrónicas. 5.2. A transposição para o nosso direito interno da Directiva nº 2006/24/ CE foi efectuada pela Lei nº 32/2008, de 17.7 (23), pelo que importa descrever os termos em que este diploma permite o tratamento dos dados gerados nas comunicações electrónicas. Antes de mais, no entanto, convém mencionar dois pontos fundamentais da finalidade desta Lei – que, recorde-se, visa regular a conservação e transmissão de dados relativos a comunicações electrónicas com a finalidade exclusiva de investigação, detecção e repressão de crimes graves, pelas autoridades competentes. O primeiro é, precisamente, que se entendem por crimes graves – cuja definição foi relegada pela aludida Directiva para o direito nacional de cada Estado-membro -, para os efeitos desta Lei, os de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, crimes contra a segurança do estado, falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima (art. 2º/1/g)). O segundo ponto que releva é a designação como autoridades competentes no nosso País das autoridades judiciárias e das autoridades de polícia criminal das seguintes entidades: Polícia Judiciária; Guarda Nacional Republicana; Polícia de Segurança Pública; Polícia Judiciária Militar; Serviço de Estrangeiros e Fronteiras; Polícia Marítima (art. 2º/1/f)). 5.3. Abordando agora os diversos tipos de dados pessoais inerentes às comunicações electrónicas, começa-se por ressaltar a proibição de conservação de dados de conteúdo, ressalvando apenas o disposto na Lei nº 41/2004 e na lei processual penal quanto à intercepção e gravação de comunicações (art. 1º/2 da Lei nº 32/2008, e arts. 179º e 187º a 189º do Cód. de Processo Penal). 5.4. Por outro lado, constitui princípio geral da Lei nº 32/2008 o da obrigatoriedade da conservação, pelos fornecedores de serviços de comunicações 23
Antes da publicação da recente legislação portuguesa de que adiante vou tratar, foram sucessivamente presentes à Assembleia da República três projectos de lei sobre o regime da então chamada “prova digital electrónica”: nº 208/IX-PS; nº 217/IX-CDS-PP e nº 240-X-PSD. Estes projectos suscitaram fortes polémicas e nenhum deles chegou a ser aprovado, o que não é para lamentar, pois foi geralmente reconhecido que apresentavam graves deficiências: Por um lado, nenhum deles se mostrava harmonizado com a então já publicada Lei nº 41/2004, o que ameaçava criar dentro do sistema jurídico uma inconsistência particularmente indesejável, devido à delicadeza da matéria em causa, no plano das garantias dos direitos fundamentais. A par disso, os especialistas que sobre eles se pronunciaram apontavam-lhes numerosas incorrecções de carácter jurídico e técnico, que igualmente geravam o receio de se suscitarem problemas candentes na sua aplicação. Enfim, foram alvo de críticas acerca da sua constitucionalidade, sendo de destacar que os Pareceres 10/2003 e 27/2004 da CNPD, emitidos a este respeito, destacaram que o acesso a dados sujeitos a sigilo de comunicações, sem controlo prévio da autoridade judiciária, violaria o art. 34º, nº 4, da CRP.
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electrónicas ou de uma rede pública de comunicações dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e colectivas e os dados conexos necessários para identificar o assinante ou utilizador (art. 1º/1), dados esses gerados ou tratados no contexto da oferta ao público dos referidos serviços e detalhadamente discriminados no art. 4º da Lei em apreço. Os titulares dos dados não podem opor-se à sua conservação (art. 3º, 4). Os serviços a que se aplica esta regra básica são os que cabem na ampla definição de “serviço telefónico”, a saber: os serviços de chamada (chamadas vocais, correio vocal, teleconferência, transmissão de dados), serviços suplementares (v.g., reencaminhamento e transferência de chamadas), serviços de mensagens e multimédia (SMS, SEM, MMS), incluindo os serviços de comunicações telefónicas fixas e móveis e os de acesso à Internet, e-mail por Internet e comunicações telefónicas via Internet (art. 2º/1/b)). Mas esta obrigação de conservação dos referidos dados é rodeada de condicionamentos restritivos, que conferem substancialidade à garantia da privacidade nas comunicações electrónicas. Destacamos os seguintes: a) O prazo de conservação é limitado a um ano, a contar da data da conclusão de cada comunicação (art. 6º); b) A obrigação de conservação dos dados de tráfego e de localização abrange os dados relativos a chamadas telefónicas estabelecidas e falhadas, mas não abrange os relativos a chamadas não estabelecidas (art. 5º); c) Os ficheiros onde sejam conservados os dados devem estar separados de quaisquer outros ficheiros destinados a outros fins (art. 3º, 3). Idêntica preocupação se nota nos requisitos relativos à transmissão dos dados às autoridades competentes, a qual só pode ser ordenada ou autorizada por despacho fundamentado do juiz, a requerimento do Ministério Público ou da autoridade de polícia criminal competente, só podendo, ademais, ser transmitidos dados referentes ao suspeito ou arguido, um seu intermediário de recepção ou transmissão de mensagens ou à vítima do crime (arts. 3º, 2, e 9º). Dentro do mesmo espírito, prevêem-se medidas especiais de protecção e segurança dos dados (art. 7º), cabendo aqui ressaltar a importância das competências atribuídas, como autoridade independente de controlo, à CNPD – Comissão Nacional de Protecção de Dados, designadamente quanto a: velar pela protecção e segurança dos dados (art. 7º, 5); manter registo electrónico permanentemente actualizado das pessoas autorizadas a aceder aos dados (art. 8º) e instruir processos de contra-ordenações e aplicar as respectivas coimas (art. 14º). 6. A protecção de dados e a legislação da criminalidade informática 6.1. A evolução da realidade tecnológica e do ciberespaço tornou de há muito sentida a necessidade de uma evolução na legislação publicada em numerosos países, numa primeira fase, para combater as práticas ilícitas relevantes a 174
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respeito da informática. Foi o que sucedeu relativamente à nossa primeira Lei da Criminalidade Informática, a Lei nº 109/91, de 17.8. Em 23.11.2001, o Conselho da Europa adoptou, em Budapeste, a Convenção sobre o Cibercrime, a qual, no entanto, tardou quase oito anos a ser acolhida no nosso ordenamento jurídico nacional: foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 88/2009, de 10.07.2009, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 91/2009, de 15 de Setembro . São objectivos desta Convenção: a) Impedir os actos praticados contra a confidencialidade, integridade e disponibilidade de sistemas informáticos, de redes e de dados informáticos; b) Impedir a utilização fraudulenta desses sistemas, redes e dados, prevendo a criminalização desses comportamentos; c) Criação de competências suficientes para combater eficazmente essas infracções, facilitando a detecção, a investigação e a acção penal relativamente às referidas infracções, tanto ao nível nacional como ao nível internacional, e adoptando medidas que visem uma cooperação internacional rápida e fiável. 6.2. Entretanto, o Conselho de Ministros da União Europeia adoptou, em 24.02.2005, a Decisão-Quadro 2005/222/JAI, tendo em vista a aproximação das disposições penais sobre cibercriminalidade dos Estados-Membros para combater os ataques contra os sistemas de informação – tais como a pirataria, os vírus e os ataques de negação de serviço -, bem como através do reforço da cooperação entre as respectivas autoridades judiciárias e de investigação criminal. 6.3 Foram estas as fontes da Lei nº 109/2009, de 15.9, já conhecida por Lei do Cibercrime, que revogou e substituíu a Lei n.º 109/91, pondo em vigor um moderno quadro legal de direito penal, quer substantivo, quer processual, adequado às actuais realidades das condutas criminosas nos domínios da informática e das comunicações electrónicas, designadamente de modo a fomentar a utilização de novas formas de investigação e novas vias de cooperação internacional para combatê-las. Importa desde já sublinhar a distinção, quanto ao objecto de aplicação da Lei 109/2009 face à Lei nº 32/2008, para além da diversidade das suas fontes, a que já fiz alusão: Assim, a Lei nº 32/2008 tem um âmbito essencialmente limitado a questões processuais de direito probatório – a conservação de dados de comunicações electrónicas para fins de prova – e apenas se aplica à instrução de determinados crimes graves. Já a Lei do Cibercrime (Lei nº 109/2009) – que, aliás, ressalva a aplicabilidade da Lei nº 32/2008 - disciplina de modo consistente o regime substantivo relativo a todo um conjunto de crimes informáticos, ao mesmo tempo que contém regras processuais de direito probatório adequadas à criminalidade em ambiente informático. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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6.4. Assim, a Lei do Cibercrime (Capítulo II) remodela as normas penais materiais referentes aos tipos de crimes informáticos, que são os de: falsidade informática; dano relativo a programas ou outros dados informáticos; sabotagem informática; acesso ilegítimo; intercepção ilegítima; reprodução ilegítima de programa protegido. Trata-se de crimes que, na generalidade, já estavam previstos na Lei nº 109/91, embora a sua caracterização tenha recebido algumas alterações em conformidade com a aludida Convenção. 6.5. Quanto às normas processuais da mesma Lei (Cap. III), importa notar que o seu âmbito de aplicação ultrapassa a instrução daquela categoria de crimes informáticos, pois essas normas serão também aplicáveis aos crimes – de qualquer natureza - cometidos por meio de um sistema informático e aos crimes – também de qualquer natureza - em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico. Estando, no entanto, fora do meu alcance e propósito fazer aqui uma análise detalhada do regime processual da Lei do Cibercrime, desejo apenas destacar as inovações que dela resultam no tocante ao tema que me ocupa, ou seja, quanto à recolha e tratamento de dados pessoais inerentes a comunicações electrónicas. Assim: 6.5.1. No que se refere à conservação desses dados – aqui re-denominada como “Preservação de dados” -, o art. 12º permite que seja ordenada, pela autoridade judiciária ou um órgão de polícia criminal, com vista à produção de prova no decurso de um dado processo, quanto a dados informáticos específicos armazenados num sistema informático, incluindo dados de tráfego, a quem tenha disponibilidade ou controlo desses dados. designadamente a um prestador de serviço de comunicações electrónicas. Essa preservação não deve perdurar por mais do que 3 meses, prazo este prorrogável por iguais períodos até ao limite máximo de um ano. 6.5.2. Uma novidade desta Lei consiste no dever de cooperação com a investigação criminal imposto ao prestador de serviço ao qual a preservação de dados tenha sido ordenada: ele deverá dar conhecimento à autoridade judiciária ou ao órgão de polícia criminal, logo que o souber, de outros prestadores de serviço através dos quais aquela comunicação tenha sido efectuada (art. 13º). 6.5.3 No artigo 14º desta Lei surge um outro meio processual consistente na injunção para apresentação ou concessão do acesso a dados informáticos específicos e determinados, que pode ser ordenada pela autoridade judiciária competente, para produção de prova num processo em curso. Essa ordem pode ser dirigida a prestadores de serviços – nomeadamente de comunicações electrónicas -, relativamente a dados relativos aos seus assinantes, neles se incluindo qualquer informação – desde que não constituída por dados 176
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do tráfego ou de conteúdo - detida pelo prestador de serviços, e que permita determinar: a) O tipo de serviço de comunicação utilizado, as medidas técnicas tomadas a esse respeito e o período de serviço; b) A identidade, a morada postal ou geográfica e o número de telefone do assinante, e qualquer outro número de acesso (dados de base), os dados respeitantes à facturação e ao pagamento, disponíveis com base num contrato ou acordo de serviços; ou c) Qualquer outra informação sobre a localização do equipamento de comunicação, disponível com base num contrato ou acordo de serviços (dados de localização). 6.5.4. O art. 15º permite que a autoridade judiciária competente autorize ou ordene, para produção de prova no decurso dum processo, que se proceda a uma pesquisa num sistema informático, para obter dados informáticos específicos e determinados nele armazenados, devendo, sempre que possível, presidir à diligência. O órgão de polícia criminal pode proceder à pesquisa, sem prévia autorização da autoridade judiciária, quando: a) Com consentimento voluntário e documentado de quem tiver a disponibilidade ou controlo desses dados; b) Nos casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa. A pesquisa pode ser estendida, mediante autorização ou ordem da autoridade competente, a outro sistema informático ou numa parte diferente do sistema pesquisado, se surgirem razões para crer que os dados procurados nele(a) se encontram, mas que tais dados são legitimamente acessíveis a partir do sistema inicial. 6.5.5. Nos termos do art. 16º da Lei nº 109/2009, pode ser autorizada ou ordenada pela autoridade judiciária competente a apreensão de dados ou documentos informáticos necessários à produção de prova, encontrados no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático. O órgão de polícia criminal pode efectuar apreensões, sem prévia autorização da autoridade judiciária, no decurso de pesquisa informática legitimamente ordenada e executada nos termos do art. 15º, bem como quando haja urgência ou perigo na demora. Se forem apreendidos dados ou documentos informáticos cujo conteúdo seja susceptível de revelar dados pessoais ou íntimos, esses dados ou documentos são apresentados ao juiz, que ponderará a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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6.5.6. Permite o art. 17º desta Lei que, caso no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, sejam encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio electrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante (que constituem, face à classificação atrás referida, dados de conteúdo), o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no art. 252º do Código de Processo Penal . 6.5.7. A intercepção de comunicações é outra das medidas mais fortemente intrusivas no domínio da intimidade da vida privada, já que pode destinar-se ao registo de dados relativos ao conteúdo das comunicações ou visar apenas a recolha e registo de dados de tráfego. Daí que o art. 18º da Lei nº 109/2009 a permita apenas em termos muito restritos. Assim, ela apenas é admissível em processos relativos a crimes previstos naquela lei ou cometidos por meio de um sistema informático ou em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico, quando tais crimes se encontrem previstos no artigo 187.º do Código de Processo Penal. Por outro lado, a intercepção e o registo de transmissões de dados informáticos só podem ser autorizados durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, mediante requerimento do Ministério Público e por despacho fundamentado do juiz de instrução, o qual deve especificar o âmbito dos dados que a intercepção pode abranger, de acordo com as necessidades concretas da investigação. 6.5.8. Permite-se, ainda, no art. 19º desta Lei, o recurso a acções encobertas - desenvolvidas por funcionários de investigação criminal ou por terceiro actuando sob o controlo da Política Judiciária, com ocultação da sua qualidade (Lei n.º 101/2001, de 25.8) – apenas no decurso de inquérito relativo aos crimes: a) Previstos na Lei do Cibercrime; ou b) Cometidos por meio de um sistema informático, quando lhes corresponda, em abstracto, pena de prisão de máximo superior a 5 anos ou, ainda que a pena seja inferior, e sendo dolosos, os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual nos casos em que os ofendidos sejam menores ou incapazes, a burla qualificada, a burla informática e nas comunicações, a discriminação racial, religiosa ou sexual, as infracções económico-financeiras, bem como os crimes consagrados no título IV do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos. Caso seja necessário recorrer, nestas acções encobertas, a meios e dispositivos informáticos, serão aplicáveis as regras previstas no art. 18º para a intercepção de comunicações.
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Fontes do Direito contemporâneo
FONTES DO DIREITO CONTEMPORÂNEO: BREVE ESTUDO
Sobre as fontes jurídicas da família Romano-germânica Sara Maria de Andrade Silva Resumo O presente artigo tem como finalidade realizar um breve estudo sobre as fontes do direito contemporâneo, particularmente aquelas que consagram as normas jurídicas das sociedades de tradição romano-germânica. Para tanto, dedica-se, num primeiro momento, a traçar os limites e escolhas metodológicas da pesquisa, abordando as características da historicidade e mutabilidade do fenômeno jurídico, de modo a situá-lo no contexto da contemporaneidade, enquanto período histórico da linha do tempo. No que tange à formação do direito contemporâneo, resgata o movimento constitucionalista moderno e o processo de codificação das normas como seus antecedentes mais marcantes, aspectos que colaboram para a compreensão da experiência do sistema romanogermânico e das suas respectivas fontes jurídicas. Finalmente, discute-se o paradigma da primazia da lei como critério de racionalidade do modelo romanogermânico, apontando seus aspectos positivos e negativos dentro do processo de desenvolvimento do direito, com destaque para seus sinais de esgotamento e os desafios da realidade atual. Resumen Fuentes del Derecho Contemporáneo: breve estudio sobre las fuentes jurídicas de la familia romano-germánica El presente artículo tiene como finalidad realizar un breve estudio sobre las fuentes del derecho contemporáneo, particularmente aquéllas que consagran las normas Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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jurídicas de las sociedades de tradición romano-germánica. Para ello, se dedica, en un primer momento, a trazar los límites y elecciones metodológicas de la investigación, abordando las características de la historicidad y mutabilidad del fenómeno jurídico, para situarlo en el contexto de la contemporaneidad, en tanto periodo histórico de la línea del tiempo. En lo que se refiere a la formación del derecho contemporáneo, rescata el movimiento constitucionalista moderno y el proceso de codificación de las normas como sus antecedentes más destacables, aspectos que colaboran para la comprensión de la experiencia del sistema romano-germano y de sus respectivas fuentes jurídicas. Por último, se discute el paradigma de la primacía de la ley como criterio de racionalidad del modelo romano-germano, apuntando sus aspectos positivos y negativos dentro del proceso de desarrollo del derecho, con énfasis en sus señales de agotamiento y los desafíos de la realidad actual. Résumé Sources du Droit Contemporain: une brève étude des sources juridiques de la famille romano-germanique Le présent article a pour but de réaliser une brève étude des sources du droit contemporain, particulièrement celles qui consacrent les normes juridiques des sociétés de tradition romano-germanique. Pour cela, nous proposons dans un premier temps de définir les limites et les choix méthodologiques de la recherche, en abordant les caractéristiques de l’histoire et la mutabilité du phénomène juridique, de façon à le situer dans le contexte contemporain, en tant que période historique de la ligne du temps. Pour ce qui concerne la formation du droit contemporain, nous nous intéresserons au mouvement constitutionnel moderne et au processus de codification des normes ainsi que à ses antécédents les plus marquants, aspects qui collaborent pour la compréhension de l’expérience du système romano-germanique et de ses respectives sources juridiques. Finalement, nous discuterons le paradigme de la suprématie de la loi comme critère de rationalité du modèle romano-germanique, en indiquant ses aspects positifs et négatifs dans le processus de développement du droit, et en soulignant les signes de épuisement et les défis de la réalité actuelle. Abstract Sources of Contemporary Law: a brief study on the juridical sources of the romanogermanic family This article aims at realizing a brief study on the sources of contemporary law, in particular those consecrating the juridical regulations of the traditionally Romano Germanic societies. Firstly, the limits and methodological choices of the investigation are delimited, dealing with historical and mutability characteristics of the juridical 180
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phenomena, situating it in the context of contemporaneity. Concerning contemporary law formation, this article recovers the modern constitutionalist movement and the regulation codification process as the most significant antecedents, aspects collaborating to the comprehension of the experience of the Romano Germanic system and its respective juridical sources. Finally, the paradigm of the preeminence of law as a rational criterion of the Romano Germanic model is discussed, highlighting the positive and negative aspects within the development process of law, emphasizing the exhaustion signals and the challenges of actual reality. SUMÁRIO 1. Apresentação. 2.Aspectos Metodológicos do Estudo. 2.1. Os “Direitos” Contemporâneos. 2.2. Historicidade e Mutabilidade do Direito. 2.3. O “Problema” da Periodificação. 3. Idade Contemporânea: aspectos para a configuração de sua unidade enquanto fase do processo histórico-jurídico. 4. Aspectos Jurídicos da Contemporaneidade. 4.1. O Movimento Constitucionalista Moderno. 4.2. O Processo de Codificação. 5. Fontes do Direito: o fenômeno criador das normas jurídicas. 5.1. Classificação das Fontes do Direito. 5.2. A Experiência do Sistema Romano-Germânico.5.2.1. Precedentes do Surgimento da Família RomanoGermânica. 5.2.2. As Fontes da Família Romano-Germânica. a) A Lei. b) Os Costumes. c) Os Princípios Gerais do Direito. d)A Doutrina. e)A Jurisprudência. 6. Conclusão: o paradigma da primazia da lei e os desafios do direito atual. 7. Bibliografia. 8. Resumo. 1. Apresentação Estudar as fontes do direito nos sistemas jurídicos contemporâneos se configura uma tarefa assaz desafiadora. Isto se dá não apenas por força da grande diversidade de ordenamentos jurídicos atualmente em vigor, cuja raiz merecerá em nosso trabalho um particular destaque, mas também pela circunstância de “presente”, de algo ainda “em acontecimento”, que o tempo a que iremos nos deter inspira: a Idade Contemporânea. Assim, antes de atingir o objeto central do trabalho, não podemos prescindir de abordar aspectos adjacentes ao tema, uma vez que possuem estreita relação com a linha de raciocínio que pretendemos desenvolver. Deste modo, como plano de exposição do estudo ora apresentado, faremos de início algumas observações a respeito dos recortes metodológicos aqui aplicados. Para tanto, necessário se faz abordar o problema da periodificação da história em geral e da historiografia jurídica em particular, a fim de esclarecer sobre o marco cronológico que adotaremos para designar os limites e o alcance do objeto central de nossa breve exposição: as fontes do direito contemporâneo. Finalmente, convém, outrossim, realizar um rápido estudo a respeito da teoria das fontes, com vistas a compreender Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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seus aspectos mais relevantes para o recorte temporal aqui proposto. Reconhecendo as limitações da pesquisa em apreço, também é conveniente realizar outros recortes, a exemplo dos aspectos estruturais do direito contemporâneo a serem examinados. A tal respeito, grande contribuição nos forneceu a obra de René David, intitulada Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. Nela, o autor formula um trabalho de fôlego sobre o que ele denomina de ‘sistemas’, para designar os ordenamentos jurídicos marcados por aproximações e características que possam lhes dar uma identidade ou filiação às grandes famílias do direito na contemporaneidade. No seu estudo sistematizador, distingue os sistemas jurídicos entre a família romano-germânica, a common law, os direitos socialistas, o direito muçulmano, o direito indiano, os direitos do extremo oriente e, finalmente, os direitos da África e de Madagáscar. Sendo impossível realizar um estudo, à luz da teoria das fontes, de todos estes grandes sistemas, tão pouco não cabendo a mera reprodução do estudo em comento, optamos por caminhos que consentiram um tratamento vertical e próprio para o tema, na busca de lhe conferir certa identidade. Neste sentido, nossas escolhas metodológicas nos conduziram a eleger o direito ocidental como o universo empírico deste pequeno exame e, dentro deste, o atual sistema da família romano-germânica como seu objeto central. Esta eleição pode ser justificada por vários motivos, em particular por ser, ao lado do sistema jurídico da Common Law, a família de direito que mais influenciou os ordenamentos jurídicos modernos e contemporâneos, assumindo grande visibilidade na história do direito em geral. Certamente, não se pretendeu aqui suscitar qualquer critério de hierarquia quanto à importância ou desenvolvimento dos sistemas jurídicos entre si, a ponto de, por exemplo, deixar margem para uma interpretação eurocêntrica ou de valorização da visão de mundo ocidental, em detrimento dos sistemas jurídicos do oriente. Tão pouco se pretendeu fazer uma distinção entre o direito desenvolvido numa sociedade liberal e burguesa, em face de um direito socialista, como expressão de inclinações ideológicas1. A intenção aqui perseguida foi tão somente a de investigar o sistema jurídico que mais parece contribuir para a nossa própria experiência de evolução jurídica, seja na sua forma direta – por relação de pertencimento à tradição romano-germânica - ou indireta, por relações mais remotas de influência ante o crescimento dos estudos de direito comparado. 1 Neste sentido também se posiciona Mário G. Losano (1978, p. 26-27), ao falar do ‘caráter paritário dos direitos positivos vigentes’. Segundo o autor, existiu sim uma tendência de estudar os diversos sistemas jurídicos conforme uma perspectiva ‘eurocêntrica’, tendo-se o direito europeu como ‘melhor’ que os direitos dos seus povos colonizados. Igualmente, já se comparou os sistemas jurídicos do presente com os do passado, atribuindo-se aos primeiros superioridade quanto aos segundos, inclusive se negando a estes últimos o caráter jurídico de seus ordenamentos. Hoje, estas concepções eurocentristas estão superadas, assim como a concepção linear da história, no sentido de que o tempo caminha para o progresso e a evolução. Para Losano, “não existe um direito positivo intrinsecamente melhor do que outro: existem apenas direitos historicamente mais ou menos adequados para regular certas relações de produção e de propriedade” (1978, p. 27-28).
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2. Aspectos Metodológicos do Estudo 2.1 - Os “Direitos” Contemporâneos Já é pacífico entre os teóricos do direito que as sociedades atuais não se estruturam sobre bases de um suposto direito universal. Mesmo que sejam admitidos fundamentos comuns para o direito - e algumas escolas ou correntes de pensamento jurídico nos ajudam a melhor compreender tais fundamentos -, não se pode olvidar da enorme diversidade de sistemas e ordenamentos jurídicos que variam conforme cada sociedade em concreto. Por isso, no período contemporâneo, uma das evidências herdadas da formação dos Estados Modernos é que cada sociedade política e juridicamente organizada possui o seu próprio direito. Falar neste sentido nos conduz a admitir o grande prestígio dos direitos nacionais nos dias de hoje, muito embora as transformações do mundo contemporâneo já possam ser sentidas diante do fenômeno global e da formação de um direito comunitário, que inovam nas concepções marcadas por noções fronteiriças de território e soberania. De qualquer modo, o modelo nacional de ordens jurídicas imprime uma diversidade de direitos que, por sua vez, acarreta grande dificuldade ao jurista que se preste a examinar o tema em apreço, já que teria de recorrer a um estudo do direito de cada nação para ter a idéia, ainda que genérica, do direito contemporâneo universal. Contudo, a diversidade mitiga-se quando se adota outro viés de investigação e exposição, qual seja, o estudo do direito conforme suas relações com as grandes famílias ou sistemas jurídicos. Esta foi a opção do jurista francês René David em obra já comentada, o que também orientará o estudo que agora iniciamos. Conforme o próprio autor assinala, “se no mundo contemporâneo existem muitos direitos, estes deixam-se classificar em um número limitado de famílias”2. Aqui, a referência feita à diversidade de direitos não quer significar a mera multiplicidade de regras, isto é, o que seja ou não permitido, proibido ou regulado em uma dada sociedade. Diferentemente, o autor usa a expressão para designar o que se encontra na base estrutural de cada ordenamento jurídico, considerando seu vocabulário, seus conceitos, suas técnicas de formulação e interpretação de normas e a própria concepção que goza o direito em cada sociedade - seja como um instrumento de ordem social geral, seja o considerando como mero instrumento de resolução de litígios. Tudo isto faz a grande diferença entre a idéia de simples ‘regra de direito’ e a de ‘fenômeno jurídico’ propriamente dito, sendo a primeira questão de superfície e deveras mutável, enquanto que a segunda, questão de fundo e de maior estabilidade, haja vista estar ligada a uma cultura civilizacional e à própria forma de pensar o direito. A esse respeito, muito contribuem os estudos de direito comparado, que 2 René David, 1998, p. 15. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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auxiliam na identificação de pontos de convergência e similitude, assim como dos pontos de afastamento e conflituosidade entre as várias ordens jurídicas existentes, de modo a autorizar o agrupamento das experiências jurídicas em sistemas ou famílias. Como ressalta Rodolfo Sacco, “A comparação chegou à conclusão de que os vários sistemas são dotados de conotações que determinam os seus respectivos caracteres profundos e constantes, e utilizou tais conotações para qualificar dois sistemas como afins ou como distantes”3. Daí as diferenças entre os sistemas europeus continentais e os anglo-americanos, entre os sistemas burgueses-capitalistas e os socialistas e, enfim, entre os sistemas extra-europeus reciprocamente considerados, como o direito indiano, chinês, muçulmano ou africano. Convém, contudo, advertir que o parâmetro aqui seguido, ao dividir os sistemas jurídicos em grandes ‘famílias do direito’, não é o único possível. Existem outros modos de realizar este ‘agrupamento’, o que traz para o tema certa divergência doutrinária que não cabe nesta altura reproduzir. Diante de todos os esclarecimentos postos, nos propomos ao conciso estudo sobre as fontes de uma das mais representativas famílias do direito contemporâneo e ocidental: a família romano-germânica, tendo como aspectos de fundo a historicidade e mutabilidade do fenômeno jurídico, o que lhe confere caráter de produto e processo cultural4. 2.2 – Historicidade e Mutabilidade do Direito Sabe-se que o fenômeno jurídico é de tamanha magnitude e complexidade que se esboça muito difícil o seu conceito pleno e bastante. A construção de uma noção para o direito enquanto ‘fenômeno’ requer um esforço mental que, embora muitos tenham intentado, a nenhum se atribui o êxito de realizá-la em sua totalidade. Deste modo, cada área de conhecimento, escola filosófica, perspectiva de abordagem ou domínio de disciplina há de estruturar os limites de sua própria definição do jurídico para, enfim, delimitar o seu próprio objeto de investigação. No campo dos estudos históricos do direito, igualmente, este esforço de delimitação das fronteiras de um estudo historiográfico também é realizado. Definir o objeto de estudo da disciplina História do Direito, portanto, é tarefa 3 Rodolfo Sacco, 2001, p. 226. 4 Enquanto “fenômeno”, podemos distinguir o Direito como um aspecto da realidade passível de observação. Sendo este fenômeno de caráter “cultural”, pode-se dizer que o Direito é um acontecimento que brota do mundo da cultura, sendo decorrência dela. Deste modo, podemos, enfim, compreender o direito como um fenômeno cultural, considerando-o tanto como um processo quanto como um produto da Cultura. Segundo José Flóscolo da Nóbrega (1981, p. 09 e 10), o direito se caracteriza como um processo cultural, por força de ser ele a expressão de um “processo de adaptação social”. Ainda abrigados na tese de José Flóscolo da Nóbrega (1981), o direito também é compreendido como produto cultural, já que ele é o resultado de um processo de valoração, no qual se distinguem os valores mais elevados e importantes da sociedade, passando estes a serem protegidos pela norma. É a norma ou as regras de conduta jurídicas, portanto, a forma como o direito se reveste enquanto produto cultural.
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essencial para se enveredar pelos primeiros passos de uma investigação científica que tanto requer métodos das ciências jurídicas, quanto requer métodos das ciências históricas. Ao realizar um estudo histórico do direito, o jurista deve se ater sobre o seu autêntico objeto, ou seja, a vida do direito ao longo do tempo, como necessária via para a apreensão e compreensão da essência do fenômeno jurídico. No reconhecimento de tal fenômeno, para além de lhe atribuir como fim a realização de valores, particularmente o valor do justo, o direito tem como traço fundamental o seu aspecto cambiante. Evidentemente, qualquer estudo histórico do direito há de admitir seu caráter cultural, isto é, o direito tanto como produto quanto como processo da cultura. Por sua vez, a cultura possui variantes de tempo e espaço que lhe atribuem, como conseqüência, vínculos aos seus contextos [históricos] de produção, mais que a qualquer determinismo da natureza ou influência divina. Contudo, compreender o direito como fenômeno cultural - o que nos aproxima da corrente do culturalismo jurídico - , não é a única forma possível de entendê-lo e explicá-lo, uma vez que existem várias correntes de pensamento jurídico que o explicam à luz de outras teses quanto à sua origem e finalidade, a exemplo do direito natural e do juspositivismo. Sem ingressar, contudo, na discussão a respeito da gênese do direito, o que fugiria ao objetivo deste trabalho, vamos estruturar nossa exposição sobre as bases de uma premissa fundamental: a historicidade do fenômeno jurídico e, por conseguinte, o pressuposto da mutabilidade de sua estrutura (evolução). Falar de evolução e historicidade, portanto, traz em si o reconhecimento de que o direito possui uma existência marcada por circunstâncias concretas, sujeitas a transformações ao longo do tempo5. Como assinala José Duarte Nogueira, “Falar-se na historicidade do direito significa ter consciência que a ordem jurídica se realiza na história, que está concretamente relacionada com um determinado meio social, político, econômico e cultural, nele nasce e se desenvolve (...) o particularismo da experiência jurídica só se revelará em todas as suas facetas, através da concreta apreensão histórica da sua realização”6. Neste sentido, a mutabilidade e a estabilidade do fenômeno jurídico, nas suas circunstâncias concretas de produção e existência, são de interesse para a história do direito: tudo o que se transforma e se preserva no direito cabe à disciplina histórico-jurídica examinar, ou, em poucas palavras, compete a esta disciplina o estudo da ‘experiência jurídica’ enquanto dado social que é, interessando-lhe as condições de seu surgimento e desenvolvimento, seu conteúdo e, enfim, seu grau de aplicabilidade e eficácia. Acresce-se ao perfil da historicidade do direito o que José Manuel PerezPrendes Muñoz-Arraco defende como sendo a ligação entre a estrutura do direito e a estrutura social geral. Isso quer significar que, embora a história 5 Embora também seja possível constatar traços de continuidade e persistência do jurídico, o que não deixa de ser um modo peculiar da evolução do direito. 6 José Duarte Nogueira, 2003, p. 245. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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do direito tenha um objeto próprio e uma metodologia específica, seu manejo requer tratamento semântico dentro do contexto de uma história social geral ou história total. Neste sentido, sendo a sociedade mutável, o direito há de refletir as transformações que lhe tocam, seja direta ou indiretamente, a fim de moldar-se às novas situações. O argumento central deste olhar historiográfico para o direito gravita sobre o fundamento de que cada sistema jurídico traz em si o esforço de adaptação a circunstâncias diferentes daquelas que o originaram, transpondo certos elementos constituintes do sistema original. Portanto, partindo do pressuposto de que o direito é mutável, vislumbrase como coerente dividir seu estudo histórico em fases ou períodos. O estudo do direito ao longo da história pode ser assim sistematizado conforme ‘etapas’, ‘contextos’ ou ‘momentos’ que, na linha do tempo, desenvolveram-se dentro de uma história social total. Para traçar um estudo ou exame histórico-jurídico, o investigador há de recorrer a uma metodologia particular ao seu objeto, que tanto contemple processo de pesquisa, quanto o modo de exposição do conhecimento alcançado, tarefa que muitos realizam lançando mão do método da periodificação das grandes etapas da evolução jurídica. Por este motivo, é imprescindível, mesmo que em breves palavras, abordar a questão da periodificação da história do direito. 2.3 - O “problema” da Periodificação Ao se tratar de uma investigação histórica, evidentemente que o jurista deve conceder especial atenção ao aspecto temporal, ou seja, a um recorte cronológico que lhe permita observar seu objeto de forma precisa e localizada no tempo. Daí ser muito importante o aspecto da cronologia e da sucessão dos acontecimentos históricos relevantes para a pesquisa, considerando, inclusive, qual o nível de influência que certo acontecimento exerce sobre outro que lhe sucederá e assim por diante, ou seja, a influência do passado sobre o futuro. Por isso, a questão da periodificação histórica é essencial a uma boa compreensão do trabalho que nos propomos a realizar. A divisão do tempo em fases, ou seja, a sua periodização, resulta de uma necessidade didática e científica, com fins de facilitar o estudo do curso histórico dos acontecimentos. Deste modo, a divisão do tempo em períodos finda por colaborar a uma compreensão da história como um processo, constituído por etapas, chamadas, enfim, de ‘períodos históricos’7. Numa perspectiva histórica geral, ou seja, da história como ciência, adotase o modelo denominado “periodização clássica”, que se construiu no final do século XIX, tendo como critério os grandes acontecimentos que marcaram o devir da sociedade ocidental. Filiados a este grande princípio, Ruy de Albuquerque e Martim de Albuquerque definem o processo de periodificar dentro da História: 7 Ramon Fernandez Espinar, 1985, p. 14.
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“Periodificar significa aceitar datas-barreira, separando, em função de certos eventos delimitadores de épocas, os fatos históricos. É como uma espécie de compartimentação – embora a realidade histórica nunca se detenha no seu desenvolvimento cronológico”8. Neste aspecto, nunca é demais ressaltar que a divisão do tempo em fases ou períodos é um recurso plenamente artificial e pode se servir de critérios distintos, o que resulta na possibilidade aberta de outras tantas divisões quantos sejam os diferentes aspectos considerados. Por isso, não existe um único modelo que sirva aos fins de traçar os limites da periodificação da história em geral ou da história do direito em particular. Decorre disto que, sendo qualquer divisão do tempo artificial, muitos discordam sobre os marcos temporais ou acontecimentos que demarcam a passagem de um período para outro e até sobre o próprio tratamento cronológico da totalidade histórica. Neste sentido, assim como os historiadores puros enxergam as deficiências das divisões artificiais da história geral, a doutrina especializada na historiografia jurídica também faz referências a tais problemas, embora igualmente venha a aderir ao método cronológico, como meio didático e inteligível de exposição do devir histórico de seu objeto de estudo, seja por motivos meramente didáticos, seja pela defesa da própria legitimidade do método. Assim, vários historiadores promovem esforços na delimitação de fronteiras que indiquem os períodos da história da humanidade ou da história aplicada, voltada para algum âmbito específico do passado humano, a exemplo da história do direito. Neste tema, dentre aqueles que reconhecem e defendem a legitimidade da periodificação, destaca-se Nuno Espinosa Gomes da Silva, para o qual: A História não é catálogo de factos, mas sim conhecimento, compreensão, estudo do porquê. (...) a periodização não é algo de arbitrário, e, pelo contrário, se liga a essa compreensão do fato histórico. A ação do homem (...) é determinada pela imagem que ele faz da realidade; por seu turno, essa imagem é, forçosamente, influenciada pelas concepções dominantes da época, do período (...) em que ele vive. (...) Assim, correspondendo a essas épocas, em que se encontram características comuns, vai o historiador criar períodos. (...) o período histórico é caracterizado em função do que de novo e dominante existe nele [de modo que] só por abstração, apresenta o período [aparência] de homogeneidade9. Nesta mesma perspectiva da literatura histórico-jurídica, Espinar10 assinala dois conceitos que são básicos para um esforço de periodificação da história do direito: o conceito de tempo e o de processo. A idéia de ‘tempo’ é fundamental e parece prescindir de explicação quanto à sua centralidade em qualquer que seja o estudo histórico realizado, incluindo, obrigatoriamente, a noção de passado, presente e futuro. Já a idéia de ‘processo’ diz respeito ao critério de divisão da própria existência do direito em etapas que possuem um sentido homogêneo dentro do percurso evolutivo do qual fazem parte. O processo da história, 8 Ruy de Albuquerque e Martim de Albuquerque, 2005, p. 09. 9 Nuno Espinosa Gomes da Silva, 2006, p. 34-36. 10 Op. Cit., p. 71. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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portanto, comporta etapas que serão denominadas de períodos históricos. Estes, por possuírem características próprias, singularizam-se, enfim, no devir da história total do direito. Citado por Espinar, Franz Neumann (1900-1954) assinala que períodos históricos são “espacios de tiempo bien individualizados de la vida histórica que, por su contenido y sustancia, se ligan en unidad y que, justamente por ello, se destacan de los que les preceden o les siguen”11. Tal individualização, portanto, presume a idéia de fragmentação, típica de qualquer processo de periodificação da totalidade histórica. Contudo, não podemos reduzir a periodificação à idéia de cronologia. A periodificação é mais ampla, enquanto que a cronologia se presta a apenas encerrar os acontecimentos históricos em datas estanques. Ao se falar em períodos históricos, portanto, há de se ter em mente todo o subjetivismo que sua concepção traz, haja vista não ser possível separá-los da totalidade histórica em que se inserem. Deste modo, embora tenham de atingir grande individualidade e precisa configuração – a fim de se distinguirem do que lhes precedeu ou sucedeu -, os períodos históricos devem ser compreendidos de forma elástica e ampla. Por isso, ao delimitar nosso objeto de estudo historiográfico às fontes do direito contemporâneo, todos estes aspectos devem ser considerados, a fim de se compreender o período histórico do direito em apreço. Daí a dificuldade de fixar em datas limite o início da contemporaneidade, bem como a ausência do seu fim, já que se trata de um período ainda ‘em acontecimento’. Por todo o exposto, mais do que a datas emblemáticas, os períodos históricos são mais bem desenhados quando os fatos históricos em si mesmos são levados em conta. Neste sentido, ao utilizar fatos históricos como referentes para a periodificação histórica, não se deve perder de vista o critério de escolha de tais fatos (seja ele de natureza política, econômica, social ou cultural, dentre outras), a fim de existir necessária coerência interna no raciocínio utilizado para as grandes divisões da história, tanto da história geral, quanto da história do direito. Garantir-se-á, portanto, que a divisão consagrada pelo historiador traga em si o traço da uniformidade, ou seja, de um critério único para a demarcação das etapas do processo histórico em estudo. Com tudo isso, a questão agora a ser resolvida é saber qual o critério válido e eleito para demarcar as épocas do suceder jurídico, em particular o período contemporâneo. Assim, dedicaremos um conciso esforço de caracterização da idade contemporânea, enquanto etapa do processo histórico do direito.
11 Idem.
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3. Idade Contemporânea: aspectos para a configuração de sua unidade enquanto fase do processo histórico-jurídico Falar sobre Idade Contemporânea - ou sobre qualquer outro período da história - exige do historiador, inclusive do historiador do direito, o esforço teórico de identificação de seus traços característicos, bem como o esclarecimento dos limites e deficiências de sua razão de ser. Neste último desígnio, José Antonio Escudero, embora reconheça a utilidade inegável da periodificação, não oscila em fazer sua crítica à expressão que qualifica a presente época e seu sentido intrínseco, alegando que há uma “impertinência científica” ao se nomear com o termo “contemporânea” nossa própria época, uma vez que este é um “nombre que habrá de ser rectificado por historiadores de siglos futuros, por cuanto para ellos esta etapa histórica ya no será ‘contemporanea’”12. Esta e outras críticas podem ser colhidas da literatura especializada sobre as reservas que se aplicam ao termo “contemporaneidade”. Contudo, não nos cabe dentro dos objetivos do presente estudo aprofundar os pormenores de tal discussão, motivo pelo qual apenas registraremos esta como uma das críticas que o tema suscita. Em prosseguimento, visto que adotamos a denominada periodização clássica comumente utilizada pela história geral, o que denominamos como Idade Contemporânea corresponde ao momento que teve seu início em 1789, com a Revolução Francesa, e que se estende até nossos dias13. A caracterização mais dominante da época contemporânea pode se dar em virtude das grandes transformações que a Revolução Francesa trouxe para a Europa e para a América, tanto no que diz respeito às suas estruturas políticas, quanto sociais e jurídicas. A Revolução na França, como revolução burguesa que foi, visou romper com o Ancien Régime do feudalismo clássico e das monarquias absolutas. Com isso, superam-se as estruturas e realidades residuais da Idade Média, inaugurando uma nova fase na história da humanidade. A marca da passagem do período moderno para o período contemporâneo, não está, contudo, apenas nas rupturas que as Revoluções Burguesas do século XVIII fazem em relação ao Antigo Regime, mas também nas forças do inaugurado século XIX que virão influenciar o século XX e XXI. Ou seja, a Idade Contemporânea possui traços de rupturas e de fixação de novas tendências para os 12 José Antonio Escudero, 1985, p. 29. 13 Segundo este critério clássico de periodização, a história possui cinco grandes períodos: PréHistória (surgimento do homem na Terra até a invenção da escrita no Crescente Fértil, por volta de 4.000 a.C.), Idade Antiga (de 4.000 a.C. até 476 d.C., quando ocorre a queda do Império Romano do Ocidente), Idade Média (476 d.C. a 1453, com a conquista de Constantinopla pelos turcos otomanos, resultando na queda do Império Romano do Oriente), Idade Moderna (1453 a 1789, quando ocorre a Revolução Francesa) e Idade Contemporânea (1789 até nossos dias). Contudo, vale reforçar que existem outros marcos temporais propostos na literatura para o início da contemporaneidade, sobretudo nos últimos anos, a exemplo daquele que prestigia a primeira guerra mundial (19141918), por força das mudanças que este acontecimento trouxe para o planeta. Porém, esta tese é minoritária e pouco aceita. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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dias atuais, forças estas que o historiador J. R. de Salis denomina como “históricogenéticas” do século XIX. Na opinião deste autor, tais forças se desenvolvem em nosso século com efeitos construtivos e destrutivos, sendo elas: 1. Las fuerzas nacionales, creadoras de estados. 2. La fuerza de la democracia, transformadora del orden jurídico y político y de la estructura social. 3. La fuerza de la economía capitalista, productora de bienes en unión con la técnica y con el sistema industrial moderno. 4. La fuerza revolcionaria de las masas asalariadas, organizadas sindical y politicamente, en unión con la doctrina socialista. 5. La fueza expansiva del imperialismo, en relación con los modernos medios de transportes, el tráfico marítimo y la economía de dimensiones mundiales. 6. Las fuerzas politico-morales de la humanidad moderna, que aspiran a conseguir la liberdad de los individuos y de los pueblos, el bienestar social y la eliminación o resolución de los conflictos internacionales14. Para que o século XIX forjasse todos estes elementos que repercutem nos séculos XX e XXI, necessário se fez uma alteração profunda na forma de sociabilidade existente até o triunfo das revoluções burguesas, nomeadamente até a Revolução Francesa de 1789, episódio aqui tomado como divisor de águas entre a Idade Moderna e a Idade Contemporânea. Conforme o pensamento de Mariano Peset, em obra coletiva intitulada Historia del Derecho, o processo revolucionário francês possui dois aspectos essenciais. O primeiro aspecto se refere ao período de transição econômica e social que a sociedade da época atravessava. Desde séculos anteriores, formas novas de produção de riquezas começaram a surgir, distinguindo-se daquelas que se baseavam na terra ou nas jurisdições senhoriais. O comércio e a indústria, com a utilização de novas máquinas e técnicas de produção de bens, emergem como variáveis intimamente ligadas ao processo de câmbio econômico. No sentido das alterações sociais presentes no processo revolucionário, a nobreza e o clero perdem em forte medida o seu prestígio e o antigo sistema estamental é substituído por uma nova escala de organização social. A burguesia assume grande peso na sociedade, tanto pelas novas idéias que sustentam as mudanças já em construção, quanto pelo status financeiro que possui. O segundo aspecto trata das circunstâncias concretas do momento histórico da Revolução, particularmente as más condições econômicas e conjunturais da época somadas à desavença entre o monarca e a nobreza. Isso propicia a tomada de poder pela burguesia, em detrimento da nobreza e do rei enfraquecidos15: “La nueva sociedad supone la destrucción de la nobleza señorial, de todas las rentas, primero conservando algunas y, a partir de 1793, con más profundidad. (...) El clero y la nobleza (...) desaparecen como estamento, quedan reducidos a simples ciudadanos”16. Por 14 J. R. Salis, 1960, p. 13-14. 15 Neste momento histórico, a burguesia falava em nome do povo, o ‘terceiro estado’, que se situava abaixo do clero (primeiro estado) e da nobreza (segundo estado), contando com grande apoio popular. 16 Mariano Peset [et al], 1993, p. 293.
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tal razão é que Peset finalmente afirma: “la revolución de 1789 en Francia significa el inicio de las transformaciones europeas del siglo XIX. El ritmo de las revoluciones se incrementa y, por ello, se ha considerado como el comiezo de uma nueva época, la edad contemporánea”17. Ao lado de tais circunstâncias, destacam-se ainda os aspectos políticos e jurídicos das grandes transformações revolucionárias na França. Estes se caracterizam, primeiramente, por uma política de soberania nacional, cuja nova formatação de Estado fez substituir a monarquia e sua administração por novas formas de organização estatal, agora baseadas na razão, na uniformidade e no centralismo de um poder despersonificado. Na perspectiva jurídica, promovese a unificação, além da organização administrativa francesa, também de uma legislação que vigorará em todo o país. Esta unificação já tinha seus sinais de anúncio desde a monarquia do Antigo Regime, mas foi com a revolução burguesa que ela se consagrou definitivamente, ainda podendo contar com vários outros elementos de identidade nacional, como a existência de um mercado e exércitos próprios, a escolha do idioma francês como língua oficial e suas grandes festas cívicas. Pela densidade de suas transformações é que a Revolução Francesa se destaca como acontecimento emblemático da grande passagem da modernidade para a contemporaneidade. Neste sentido é que o jurista e constitucionalista brasileiro Luís Roberto Barroso, em comentário a este acontecimento histórico, assinala: A Era das Revoluções se completa com a Revolução Francesa. Mais do que um evento histórico com seu próprio enredo, desempenhou ela um papel simbólico arrebatador no imaginário dos povos da Europa e do mundo que vivia sob sua influência, no final do século 18. Coube-lhe - e não à Revolução Inglesa ou à Americana - dar o sentido moderno do termo revolução, significando um novo curso para a história e dividindo-a em antes e depois. Foi a Revolução Francesa, com seu caráter universal, que incendiou o mundo e mudou a face do Estado - convertido de absolutista em liberal - e da sociedade, não mais feudal e aristocrática, mas burguesa18. Numa abordagem mais estrita ao universo jurídico – e que para nós reserva particular interesse -, a Revolução Francesa também inaugurou uma nova fase. Segundo Antonio Escudero19, a Idade Contemporânea trouxe influências decisivas para o direito que, tocado pelas idéias iluministas e racionalistas, experimentou dois grandes fenômenos que lhe atribuem uma marca própria dos períodos antecedentes: o Constitucionalismo e a Codificação. Embora eles estejam intimamente ligados entre si, já que as bases sócio-econômicas e 17 Idem, p. 285-286. 18 Luís Roberto Barroso, A História das Constituições, 2007 (documento eletrônico acessado em 03/03/2008). 19 Op. Cit., 1985, p. 31. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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ideológicas são comuns, vale à pena, contudo, pontuá-los separadamente20, tarefa que cumpriremos nos itens a seguir. 4. Aspectos Jurídicos da Contemporaneidade 4.1 - O Movimento Constitucionalista Moderno Pode-se afirmar que o constitucionalismo moderno fundou as bases do Estado de Direito contemporâneo. Na linha temporal, a Idade Moderna principia no ano de 1453 e se estende até 1789, marco da Revolução Francesa, estando sua origem associada a uma fase que teve início com a invasão de Constantinopla pelos turcos e com as grandes navegações. Em tal período, também se experimenta o nascimento dos Estados Modernos, que tiveram suas características largamente determinadas pela deficiência do modelo político medieval, o que conduziu sua sociedade a aspirar pela unidade de um poder supremo e de dimensão territorial delimitada. Os novos Estados, então, consolidaram-se resgatando as antigas formas das monarquias absolutas. Uma vez consolidado o poder político na figura destes novos Estados, pode-se identificar suas etapas de desenvolvimento até o triunfo do movimento constitucionalista, que forjava a formação de um Estado submisso à lei e despersonalizado, opondo-se à representação de um poder político unipessoal, ilimitado e absoluto (Ancien Regime). Num primeiro período, temos a experiência do ‘Estado Estamental’, ou seja, da monarquia ainda limitada à convivência com diversos estamentos sociais, bem como herdeira das conseqüências do regime feudal. Assim, caracterizase como uma fase de transição em que, embora já presente a idéia de Estado, este ainda era pouco desenvolvido em suas potencialidades. Quando o monarca ganha força para promover a unificação do poder, ingressamos num segundo período do desenvolvimento dos Estados: a época dos ‘Estados Absolutos’. O absolutismo pode ser aqui entendido como o sistema de governo fundado na máxima concentração de poderes nas mãos do Rei, cuja trajetória pode ser considerada conforme dois momentos característicos: o primeiro – que perseverou até início do século XVIII – representa o período do poder divino do Rei, ou seja, a etapa de seu desenvolvimento em que a autoridade do Rei tinha origem religiosa; e o segundo – configurado segundo uma nova fundamentação para os poderes do soberano – que deixa de ser teológico para ser racional, haja vista a influência do iluminismo reinante. A este segundo momento corresponde a expressão “despotismo esclarecido” ou, noutra perspectiva e em certos países, “Estado de Polícia”. Em oposição ao absolutismo tradicional, o déspota esclarecido 20 Segundo Francisco Tomas y Valiente (2001, p. 465-466), as razões para a exposição em separado dos dois fenômenos não se dá apenas por necessidade de clareza didática, mas também por não terem tais processos ocorrido em concomitância histórica em todos os países.
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não precisava responder perante ninguém, inclusive perante Deus, haja vista que sua autoridade era resultado da iluminação racional que ele próprio possuía. Deste modo, embora tenha sido largamente combatido pelo movimento constitucionalista, o regime absolutista desempenhou papel extremamente importante para a transição da ordem medieval para a ordem do Estado Constitucional que inaugura a contemporaneidade. Nas palavras de Jorge Miranda, “A função histórica do Estado absoluto consiste em reconstruir (ou construir) a unidade do Estado e da sociedade, em passar de uma situação de divisão com privilégios das ordens (sucessores ou sucedâneos dos privilégios feudais) para uma situação de coesão nacional, com relativa igualdade de vínculos ao poder (ainda que na diversidade de direitos e deveres)”21. Finalmente, chegamos ao momento histórico em que as forças sociais, políticas, econômicas e filosóficas vão operar a grande viragem na definição de Estado. As revoluções liberais do final do século XVIII, culminando com a Revolução Francesa de 1789, marcam a transição de um regime de concentração de poderes nas mãos do monarca para entregá-lo ao povo, detentor, a partir de agora, dos poderes soberanos da nação22. Com a mudança que se registra, o súdito cede lugar ao cidadão, titular de novos direitos que farão frente ao anterior poder absoluto do soberano. Eis a vitória do movimento constitucionalista que, segundo J.J. Gomes Canotilho, (...) é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do governo limitado, indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. (...) Numa outra acepção – históricodescritiva – fala-se em constitucionalismo moderno para designar o movimento político, social e cultural que, sobretudo a partir de meados do século XVIII, questiona nos planos políticos, filosóficos e jurídicos os esquemas tradicionais de domínio político, sugerindo, ao mesmo tempo, a invenção de uma nova forma de ordenação e fundamentação do poder político23. Pode-se afirmar, assim, que o constitucionalismo moderno fundou os alicerces do Estado de Direito nascido ao final da Idade Moderna e consagrado definitivamente na fase contemporânea. Contudo, vale salientar que tal movimento constitucionalista não possui uma face única, ou seja, não se trata de um movimento homogêneo que, com características idênticas, alcançou as 21 Jorge Miranda, 2002, p. 43-44. 22 Na opinião de Horst Dippel, em sua obra História do Constitucionalismo Moderno: novas perspectivas (2007, p. 09-10), o grande marco para esta passagem foi a Declaração de Direitos de Virgínia, em Junho de 1776. Na sua carta de direitos foram traçados os aspectos intrínsecos do movimento constitucionalista e do Estado de Direito, sendo o modelo que há mais de 200 anos permanece intocável para a configuração dos Estados constitucionais: “Encontravam-se aqui os princípios fundamentais e os elementos estruturais que as subseqüentes constituições deviam integrar, princípios e elementos tidos como pré-condição indispensável tanto para assegurar a liberdade individual como para garantir um governo racional e regulado pelo direito, em vez de um governo regulado pelo arbítrio, pelo privilégio ou pela corrupção”. 23 J.J. Gomes Canotilho, 2000, p. 51-52. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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mesmas características ou os mesmos traços temporais e espaciais. Como bem descreve Gomes Canotilho, “será preferível dizer que existem diversos movimentos constitucionais”24 e, neste sentido, é que o autor assinala a diferença entre o movimento constitucionalista inglês, francês e americano. Ao tratar do modelo inglês, destaca o autor que houve uma espécie de evolução dos ‘momentos constitucionais’, iniciando-se com a Magna Charta (Carta do Rei João Sem Terra), em 1215, passando pela Petition of Rights, de 1628, pelo Habeas Corpus Act, em 1679 e, finalmente, atingiu o Bill of Rights, em 1689. Todo este percurso histórico, contudo, possui traços que nos permitem abstrair os conceitos estruturantes do constitucionalismo britânico, quais sejam: a) a garantia da liberdade de todos e da segurança dos indivíduos e dos seus bens; b) a criação do devido processo legal, consagrando a idéia de um processo justo e regulado pela lei, no que tange ao disciplinamento de regras sobre a privação da liberdade ou da propriedade (due process of law); c) a interpretação das leis pelos juízes do país e não pelo legislador, desenvolvendo o direito comum do povo (common law) e d) a criação de uma nova categoria política: a representação e a soberania parlamentar, que atuaria ao lado do monarca como órgão de governo, bem como seriam pelo parlamento editadas as leis que regulariam o exercício do poder supremo, nos moldes de uma ‘constituição mista’. Já em relação ao constitucionalismo francês, Gomes Canotilho assinala que na França o movimento revolucionário queria ir ainda mais além do que atingiu a experiência inglesa, uma vez que esta não havia realizado a completa ruptura com o regime de estamentos do sistema tardo-medieval. Sendo assim, o movimento constitucionalista francês ambicionava romper com os privilégios, garantindo direitos individuais que ultrapassavam a mera garantia da liberdade e da propriedade: “os direitos do homem eram individuais: todos os homens nasciam livres e iguais em direitos e não ‘naturalmente desiguais’ por integração, segundo a ‘ordem natural das coisas’, num dado estamento”25. Outrossim, a nova ordem a ser criada pela convenção entre os indivíduos deveria passar para um ‘plano escrito’, de modo a garantir os direitos e regular o poder político, daí a idéia de Constituição e de poder constituinte. Por fim, quanto ao constitucionalismo americano, a grande marca foi a centralidade que o povo assumiu no processo democrático de tomada de decisões. Ao povo, em momentos tidos como raros, cabia tomar certas decisões, o que se dava através do exercício do poder constituinte. Por outro lado, o governo também atuaria na tomada de decisões, neste caso para as situações mais freqüentes (democracia dualista). Na experiência americana, o poder judicial também assume grande importância, mais do que se admite no constitucionalismo inglês e francês, nos quais a figura do parlamento (legislativo) assume primazia. Aqui, o juiz é o verdadeiro fiscal e defensor da constituição que, mediante o controle 24 Op. Cit., p. 51. 25 Idem, p. 57.
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de constitucionalidade das leis, examinará a devida adequação entre normas ordinárias e a lei fundamental (judicial review). Deste modo, realizadas as devidas advertências quanto às diferenças entre os movimentos constitucionalistas vivenciados na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos da América, também é oportuna a lembrança de que todo o movimento constitucionalista foi antecedido pela própria formação dos Estados Modernos, pressuposto lógico e cronológico do modelo de Estado de Direito que se edificou com a vitória do ideário constitucional da modernidade. Quanto a isto, pode-se dizer que a história da formação dos Estados permite diversos pontos de vista. Se adotássemos uma perspectiva histórica linear, consideraríamos que, pelo menos em tese e por ficção, se extrai da experiência grega sua primeira forma de manifestação, emblematizada na figura da polis. Em seguida, houve a experiência do poder político romano nas suas variadas formas de governo, passando pela Monarquia, pelo regime republicano e pelo poder imperial (Principado e Dominato). Com a queda do Império Romano do Ocidente (476 d.C.), uma nova fase da história se inicia: a Idade Média. A história tradicional descreve este período como marcado por uma profunda fragmentação de poderes, nomeadamente dos poderes políticos e jurídicos. Nesta linha de pensamento, como afirma Jorge Miranda26, no período medieval o poder real estava fragilizado em razão dos poderes da Igreja e dos senhores feudais. Para o autor, excluindo-se algumas experiências de Reinos e Impérios27, não se pode reconhecer no medievo a presença de um Estado que se caracterizaria dentro dos moldes que lhe qualificam os teóricos do constitucionalismo atual. Contudo, esta não é a única leitura possível do período medieval, momento histórico que, segundo José Duarte Nogueira, não se ajusta com precisão aos parâmetros do conceito de poder político moderno, cuja lapidação última se deu com a influência do iluminismo e do liberalismo. Para o autor, existem várias formas de Estado que podem ser consideradas conforme as realidades correspondentes. Deste modo, o mesmo vocábulo pode encerrar conteúdos distintos, variando de acordo com a época a que se reporta. No caso medieval, estamos diante de um período de difícil associação entre os conceitos e os traços caracterizadores do poder político-jurídico que hoje denominamos de ‘Estado’. Assim, embora não seja possível aplicar os parâmetros modernos àquela época, não significa afirmar que seja impensável a idéia de Estado Medieval, desde que se identifique a base e fundamento da sua organização societal, de modo a desvelar sua vocação para estadualizar-se, configurando, assim, a idéia de um “Estado essencial”28. De qualquer modo, verifica-se a crise do sistema político medieval, cujo início já pode ser sentido desde os séculos XIII e XIV, conduzindo ao processo 26 Op. Cit., p. 30. 27 A existência dos Reinos Bárbaros, do Império Romano do Oriente (que subsiste até 1453), do Império Carolíngio e do Sacro Império Romano-Germânico. 28 José Duarte Nogueira, 2006, p. 52 e ss. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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de criação dos Estados europeus. Com o período moderno, ressurge a idéia de Estado enquanto organização de poder político centralizado, neste caso representado pela figura do monarca: o Rei concentraria todos os poderes, irradiando dele toda autoridade. Segundo Jorge Miranda, o Estado Moderno europeu terá características próprias de sua circunstância histórica, tais como: 1) é dotado de unificação política - e não de unificação religiosa ou qualquer outro fator de coesão -, correspondendo ao conceito de ‘comunidade nacional’; 2) tem natureza laica e secularizada, separando-se o temporal do espiritual/religioso; e 3) possui poder soberano, capaz de fazer frente às resistências internas e às ameaças externas, confirmando sua autoridade, independência e autonomia em relação aos seus membros e a outros Estados29. Assim, estão postas as condições para a grande transição engendrada pelo constitucionalismo, valendo advertir, igualmente, que seu movimento fomentador não se dá isolado de outras transformações relevantes para a época, nem delas está isento, representando, ao contrário, um fenômeno amplo, que reúne e é influenciado por aspectos que extrapolam a esfera estritamente jurídica. Um dado de grande relevância é que sua idéia de Estado submetido ao direito emerge no contexto sócio-econômico da ascensão da burguesia como classe social. Assim, adequado aos novos princípios evocados pelo iluminismo, este Estado terá a face de um Estado liberal, “imbricado ou identificado com os valores e interesses da burguesia”30, possuidora, desde antes, do poder econômico e agora também do poder político. Outrossim, o processo de ‘constitucionalização do direito público’ caminha, igualmente, em íntima relação com o processo de codificação das regras jurídicas. Deste modo, com raras exceções, os Estados de Direito vieram a organizar seus postulados sob a forma de códigos políticos, que seriam denominados de ‘constituições’, geralmente com suas normas reduzidas a escrito. Estas ‘constituições’ viriam realizar a organização do novo Estado liberal e burguês que se consolidou com as revoluções do século XVIII. Todos estes aspectos findam, portanto, por moldar o direito contemporâneo, caracterizado não apenas pelo movimento constitucionalista, mas também pelo fenômeno da codificação, que tanto atinge o direito político e constitucional, quanto todas aquelas matérias consideradas importantes para o novo Estado liberal e já amadurecidas pela doutrina. 4.2 - O Processo de Codificação Como assinalado acima, uma das grandes marcas da Idade Contemporânea no âmbito jurídico foi o fenômeno da codificação do direito. Seu impulso se deu em virtude da necessidade de criar um sistema jurídico logicamente estruturado que, 29 Jorge Miranda, Op. Cit., p. 32-33. 30 Jorge Miranda, 2002, p. 47.
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segundo uma ordenação racional, oferecesse condições de validez permanente e universal. Dando vazão aos princípios proclamados pela Revolução Francesa de modo particular, e pelas revoluções liberais de modo geral, na perspectiva de Rogelio Perez-Bustamante31, a codificação do direito pode ser analisada sob três aspectos distintos, porém complementares. No aspecto filosófico, a codificação se fundamenta na ideologia racionalista, que vislumbra para o direito uma idéia de ‘todo complexo’, de um sistema sem lacunas e harmônico que decorre do esforço da razão humana. Na perspectiva política, compreende-se a codificação como um processo que contribui para a cristalização do Estado-nação, caracterizado pela centralização e uniformidade. Ou seja, se o Estado nacional se edifica sobre as mesmas instituições, devem existir códigos uniformes e vigentes em todo território estatal que contribuam para a sua unidade. Por fim, o viés sócio-econômico tem na codificação um elemento fortalecedor da sociedade burguesa em ascensão, que necessita de uma nova ordem jurídica para estabelecer um novo tipo de sociabilidade. Pode-se dizer que os antecedentes do fenômeno codificador emergiram já no século XVII, com o jusracionalismo (ou Direito Natural protestante) que defendia a possibilidade de organizar o direito com base em princípios estabelecidos pela razão e expressos em regras claras e simples. Seu início na Europa data do século XVIII, com a contribuição das doutrinas racionalistas e, particularmente, da escola do Direito Natural em sua nova fase, cuja busca era escapar ao ‘caos’ e ao obscurantismo medieval pela via da exaltação da ratione. A idéia desenvolvida pelos jusnaturalistas racionalistas conduzia para a criação de uma ordem jurídica de caráter universal, imutável e baseada na razão, o que fazia cambiar a idéia de direito como produto histórico para sua concepção como produto racional. Segundo Franz Wieacker, o jusracionalismo é um dos vários capítulos da história do direito natural, que remonta desde os tempos da filosofia helenística e se mantém até a atualidade. Nas suas várias manifestações históricas, o direito natural funda-se na crença em uma ordem imutável e válida para todos, de modo a reger as relações intersubjetivas nos seus direitos e deveres dentro da sociedade. Muito de seu desenvolvimento e conservação se deve à filosofia e à teologia, já que nem sempre a tradição do direito natural esteve presente no cotidiano da técnica jurídica. Na Idade Moderna, o direito natural, sob a forma de jusracionalismo, vem suprir uma deficiência da ciência jurídica positiva no que diz respeito à nova imagem de mundo que se constrói depois do início do século XVII. Os métodos da filosofia e das ciências naturais se revolucionam, construindo uma nova forma de ver e interpretar a realidade. Ao lado da nova imagem “fisicalista” do mundo, emerge também a explicação jusracional da sociedade: No jusracionalismo médio, os métodos das novas ciências da natureza estendem-se à ética social. Eles transformam também o homem, como ser social, 31 Perez-Bustamante, 1994, p. 255 e ss. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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em objecto de observação e de conhecimento liberto de pressupostos, procurando, assim, as leis naturais da sociedade. [...] E, tal como a conexão lógica das leis naturais produz o sistema do mundo físico, [...] também as leis naturais do mundo social produzem um sistema fechado da sociedade, um ‘direito natural’. Eis aqui a origem remota deste novo reflexo do direito natural da antiguidade ocidental a que chamamos jusracionalismo32. Aqui, mais do que um processo de secularização do pensamento, o jusracionalismo se especifica como um método de conhecimento que se emancipa da teologia moral e adquire autonomia, uma vez que não era incompatível, num mesmo homem, a crença na revelação divina e a prática do pensamento jusracional. A principal ambição desta nova fase do direito natural era converterse na teoria de fundamentação da validade de todo o direito vigente, o que colocava em evidência um clássico problema a ser enfrentado: a relação entre o direito natural e o direito positivo já existente. Para tanto recorreria, a princípio, ao método da argumentação como técnica de raciocínio, canalizando-se os primeiros esforços teóricos desta primeira fase na defesa da teoria do contrato social, muito embora sem obter o êxito esperado na superação de dito problema fundamental. Explicamos. A crença no ‘pacto de sociedade’ não era suficiente para superar a oposição entre a ordem natural e a ordem positiva e apenas com a teoria sobre o ‘pacto da submissão’, em Hobbes, é que o jusracionalismo constrói a justificação supra-positiva do direito vigente. O conteúdo deste pacto é o abandono dos direitos naturais da sociedade em benefício do soberano, engendrando um direito positivo absoluto. Contudo, embora fosse possível encontrar a solução teórica para o problema em termos ideais (convivência de paz), ainda assim persistia a hipótese de quebra deste pacto em situações de conflito, o que levou Hobbes a defini-lo como ‘irrevogável’, sanando a questão intelectual mediante o fundamento de uma submissão inalterável dos súditos à autoridade do soberano: o direito natural se dissolve no direito positivo, sendo por ele superado. Diferentemente de Hobbes, Rousseau elabora uma solução oposta para o mesmo problema, sugerindo que, mediante a vontade geral e recorrendo ao princípio da soberania popular, o pacto de sociedade deveria ser renovado permanentemente, relacionando o direito natural com o direito positivo, de modo a justificá-lo, desta vez, com a primazia do primeiro sobre o segundo33. Nesta perspectiva mais idealista, o direito natural moderno passou a ser a fundamentação ética do direito positivo, de modo que qualquer desarmonia com seus pressupostos passava a ser por ele combatido. Isso levou o jusracionalismo a se erguer contra a submissão do direito da época, contra alguns princípios e fontes do direito romano, bem como contra a submissão do pensamento jurídico às antigas ‘autoridades’ cultivadas pela Idade Média. Com sua visão de conjunto, 32 Franz Wieacker, 2004, p. 288. 33 Idem, p. 302.
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o jusracionalismo contribuiu para construir uma nova sistemática, incentivando a elaboração de normas e instituições jurídicas originais, diferentes daquelas herdadas da tradição romana. Até este momento histórico, a ciência jurídica já tinha experimentado a fase da exegese, do comentário e de um projeto humanista de sistematização frustrado34. O jusracionalismo, finalmente, desenvolve o seu ‘sistema fechado’, fundado no raciocínio e na demonstração lógica, garantindose pela via da plausibilidade metodológica. No século XVIII - período das últimas fases jusnaturalistas, caracterizadas como sistemáticas e matemáticas -, seu método começa a orientar e ordenar as exposições do direito positivo, passando a dominar os códigos e manuais positivistas até os dias atuais. No âmbito do direito, matéria que a nós interessa pormenorizar, o jusracionalismo influenciou diretamente na ciência positiva, ainda carente de uma sistemática metodológica capaz de atender não apenas às novas exigências epistemológicas do mundo moderno, mas também aos impactos de uma viragem na ordem social, política e econômica da época35. A crise do ius commune já era observável desde o século XV e veio a se acentuar com o surgimento da racionalidade cartesiana aplicada ao direito. Segundo o historiador do direito brasileiro José Reinaldo Lima Lopes (2002), aquela jurisprudência tradicional que se consolidara no ius commune contrastouse duramente com as duas correntes que alimentavam a modernidade: uma nova subjetividade filosófica e o empirismo científico. A nova filosofia dos séculos XVI e XVII põe em dúvida toda autoridade exterior à razão, desconfiando dos sentidos e intuições que, segundo o próprio pai do pensamento cartesiano – Descartes -, podem nos induzir a erro (Cogito cartesiano). Neste sentido, a tradição escolástica que estaria eivada de equívocos (os escolásticos acreditavam que a aparência correspondia de alguma maneira ao próprio ser), não colaborava para a construção do conhecimento. Daí a grande valorização da descoberta e da razão especulativa e reflexiva, cujo triunfo se completa com o pensamento de Kant, ao afirmar que “há categorias completamente ideais, pensadas, a priori, anteriores à experiência e aos sentidos, pelas quais o sujeito pensante pode pensar o mundo” (LOPES, 2002, p. 215). O empirismo moderno, por sua vez, vem também indagar até que ponto os sentidos podem ser fonte do saber, visto que para se obter um conhecimento 34 Segundo Mario Reis Marques (2003, p. 308), o humanismo foi o primeiro movimento intelectual que endereçou críticas ao direito e à ciência jurídica baseada no ius commune. A multiplicidade de fontes (doutrina, jurisprudência, lei e costumes) e o excesso de casuísmo eram alguns dos objetos dos ataques humanistas que, porém, não chegaram a lograr uma verdadeira mudança no “figurino” das fontes jurídicas e na ciência do direito, apenas obtida com o jusnaturalismo racionalista. 35 “… a Europa assiste neste momento à descaracterização dos traços de universalidade dos dois grandes poderes que a uniam: a Igreja e o Império. Se a primeira deixa de ser a única forma social de vida cristã (Reforma protestante), o segundo sofre o embate de uma nova realidade dinamicamente vitoriosa (Estados nacionais). De facto, a busca de bases para uma nova organização da vida social (...) [levanta] problemas de fundamentação e de legitimidade, dando origem a novos discursos sobre o direito” (Marques, 2003, p. 359-360).
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‘verdadeiro’, há de se experimentá-lo, medindo-o, quantificando-o e calculando-o. Neste sentido, os empiristas da época - como Hume - rejeitavam a tradição escolástica até então vigente, uma vez que lhe faltava raciocínio abstrato e experimental sobre os fatos e coisas existentes. Particularmente no âmbito do direito, coloca-se em causa a validade das normas, ou seja, a validade do Corpus Iuris e do ‘princípio da autoridade’ - este fundado no prestígio dos doutores da ciência jurídica que expressavam suas opiniões (opinio communis doctorum) sobre o ius commune. Assim, há uma rejeição ao quadro vigente, no sentido de que ele meramente servia como instrumento de adaptação dos velhos valores aos novos fatos, o que, na opinião de muitos, apenas escamoteava as manipulações patológicas da lei. Diante dos seus visíveis sinais de esgotamento “o novo ideal de objectividade incorpora a idéia de descoberta e deixa na penumbra a interpretatio e suas redes de sentido. A problemática da interpretação, os topoi, os standards valorativos e os esquemas lógicos utilizados desde os comentadores, deixam de ter lugar cativo nos tratados do jusnaturalismo racionalista”36. A fim de atender aos propósitos de clareza matemática propugnados para a nova ciência jurídica, era necessária uma ferramenta capaz de descobrir e reunir as regras de direito por via racional, bem como dar-lhe um suporte de elevada organização lógico-formal. Neste sentido, foi no ‘Código’ que a ambição jusracionalista se concretizou. Os Códigos, portanto, representam, na Idade Moderna, o instrumento através do qual o direito natural da época interferiu na organização do direito positivo de uma vez por todas. Contudo, o Código não é uma criação exclusiva da modernidade. A palavra “código” deriva do termo latino codex, cujo significado representava, em seu início, apenas a idéia de um volume de folhas de pergaminho unidas ou costuradas. Na passagem do século III para o IV d.C., o termo adquire semântica propriamente jurídica, significando as compilações das leis imperiais romanas, a exemplo do Código Teodosiano ou Justiniano. Na Idade Média, evolui-se para um conceito mais abstrato do termo, que passa a designar as obras jurídicas marcadas por certa uniformidade de elaboração e organização formal. Hoje, depois da influência das idéias racionalistas e iluministas da segunda metade do século XVIII37, pode-se designar Código como “una ley de contenido homogeneo por razón de la materia, que de forma sistemática y articulada, expresada en un lenguaje preciso, regula todos los problemas de la materia unitariamente acotada”38. Neste sentido, o Código diferencia-se das simples compilações de leis, caracterizadas pela (i) heterogeneidade de matérias – o que as torna excessivamente volumosas -, (ii) pela variedade de autoridades outorgantes e 36 Marques, Op. Cit., p. 369. 37 Franz Wieacker (Op. Cit., p. 353-354) alerta que, embora ligados, jusracionalismo e iluminismo não representam o mesmo significado. O primeiro consiste numa versão atualizada da tradição filosófica ocidental antiga, enquanto que o segundo diz respeito a uma quebra de continuidade no âmbito moral e religioso em relação à atitude humana diante da vida até então reinante. 38 Tomas y Valiente, Op. Cit., p. 465.
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(iii) pela diversidade de momentos de sua elaboração. Outrossim, as compilações ainda podem trazer conteúdos incompletos de leis, o que as tornam ainda mais confusas. O Código, portanto, configura-se como a antítese da experiência das compilações, pois é marcado pelo traço da homogeneidade: uma só lei, (i) de conteúdo único em razão da matéria, (ii) produzida por um só legislador e (iii) promulgada em um momento específico. A forma de exposição do conteúdo legal (plano lógico-dedutivo) e a linguagem utilizada (clara e precisa) também são grandes diferenças entre o Código e a compilação. Esta preocupação sistematizadora que conduz o processo codificador, bem como o cuidado com a clareza e precisão da matéria jurídica, são típicos do pensamento racionalista do direito e da filosofia, preocupações estas que faltavam aos juristas que precederam o século XVIII (particularmente os juristas dos séculos XVI e XVII). A ambição racionalista, contudo, não era apenas sistematizadora e inovadora da matéria jurídica. Como bem acentua Mário Reis Marques, trata-se verdadeiramente de uma nova cultura jurídica que se edifica e vem a substituir aquela do ius commune. Consideram-na, inclusive, como um novo sistema, que era oposto e alternativo à então opinio communis doctorum, último método da ciência jurídica que gravitava na órbita da cultura do ius commune, particularmente girando em torno da redescoberta do Corpus Iuris Civilis. Aqui, a atividade do jurista mais valorizada era o labor doutrinal e jurisprudencial, enquanto que no período da codificação é a figura do legislador que assume centralidade: “O Estado, através do poder legislativo, passa a observar a criação do direito, introduzindo profundas alterações no papel até aí desempenhado pelos juristas”39. Tomados por uma razão otimista e radical, os juristas, os ilustrados e os políticos do liberalismo acreditavam que conseguiriam abarcar toda a realidade através do direito codificado que, além de pleno, seria justo do ponto de vista do conteúdo: uma nova ordem, de caráter natural, apreensível pela razão e capaz de fornecer leis universais e imutáveis para toda a sociedade40. Esboçavam, para tanto, a idéia de direito como um sistema logicamente ligado e encadeado de proposições normativas (concepção sistêmica do direito). Fundamentavam-se na crença de que cabe ao filósofo do direito elaborar os princípios gerais e máximos do jurídico, de modo que qualquer caso concreto singular pudesse ter sua solução inferida - pela via da lógica dedutiva - destes princípios descobertos racionalmente. Assim, a racionalidade jurídica que impulsiona a codificação faz grande ruptura com a racionalidade que vigorava entre os séculos XIII e XVII, muito caracterizada pelo casuísmo e pela valorização da experiência e prática dos juristas. Aqui, ganham centralidade os grandes conceitos e princípios gerais, bem como o alto grau de abstração e rigor lógico que domina o século XVIII. 39 Marques, Op. Cit., p. 07. 40 Contudo, frustrados no seu intento e reconhecendo as limitações de tal pretensão, hoje a ambição codificadora se reduziu para alcançar apenas os aspectos principais e mais genéricos dos problemas que cabe ao direito regrar. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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Esta nova racionalidade jurídica atribui ao Código a melhor forma de expressão do direito e ao legislador o papel de criá-lo conforme este novo entendimento, fortalecendo a tese de que a lei é o seu melhor veículo de criação. Com isso, o processo racionalista de codificação relega a um plano inferior e secundário outras fontes criadoras do direito, particularmente os costumes. Para o prestígio da lei converge a característica de oferecer maior segurança para as relações jurídicas, uma vez que, como afirma Jeremy Bentham, tem origem certa e vontade inequívoca41, do mesmo modo que pode ser compreendida por qualquer cidadão ante sua legibilidade e clareza. Em torno do processo de codificação também se soma uma tendência unificadora das leis de uma mesma sociedade. Na busca da mencionada segurança jurídica, o Código se tornou depositário das expectativas de unificação do direito vigente em âmbito nacional, uma vez que a existência de leis distintas dentro de um mesmo território propiciava a ‘desordem’ e o ‘caos’. A universalidade do direito, uniformizando a ordem jurídica dentro de um determinado território nacional, era fundamental para os Estados de Direito: “El Derecho justo, en cuanto producto de la razón natural debe ser universal en su vigencia”42. Essa tendência unificadora, universalizante e fundada na razão e na lógica formal, além de romper com a racionalidade anterior (tradição doutrinal romanística), também faz uma ruptura com o Antigo Regime. A velha ordem precisava ser superada para que emergisse a ordem da garantia das liberdades, do constitucionalismo democrático e do fim dos privilégios estamentais. Neste aspecto, a importância do processo codificador não interessava apenas a juristas e filósofos, mas também à classe burguesa em ascensão. Um novo Estado garantiria novos direitos, mediante uma nova racionalidade jurídica. A burguesia, que cresceu pelo desenvolvimento do comércio e da ciência, tinha no processo codificador - também dominado pela fé na razão - o instrumento para construir sua própria ordem jurídica. Assim, o processo de codificação do direito é a síntese de um contexto filosófico, político e econômico que marca uma nova fase na história jurídica. O direito contemporâneo, intimamente relacionado à centralidade do Estado na cena pública de nossa época, pode ser entendido, em linhas gerais, por esta nova razão jurídico-política, como bem conclui António Manuel Hespanha, na sua obra Panorama Histórico da Cultura Jurídica Européia:
41 “El Derecho escrito es el único que puede merecer en verdad el nombre de ley. El Derecho no escrito es propriamente hablando tan sólo un Derecho conjetural, una ficción de ley. En la base de la ley escrita hay algo seguro, manifesto: hay un legislador, hay una voluntad, hay una expresión de voluntad y se conoce perfectamente la época de su nacimiento. El Derecho no escrito no tiene nada de eso. Se desconoce su origen, crece continuamente, nunca puede estar terminado y se modifica sin que nadie se aperciba de ello... La gran utilidad de la ley es su certidumbre” (Jeremy Bentham, citado por Francisco Tomas y Valiente, Op. Cit., p. 471). 42 Tomas y Valiente, Op. Cit., p. 472.
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Os novos códigos, se, por um lado, procediam a um novo desenho das instituições, correspondente à ordem social burguesa liberal, instituíam, por outro, uma tecnologia normativa fundada na generalidade e na sistematicidade e, logo, adequada a uma aplicação do direito mais quotidiana e mais controlável pelo novo centro do poder - o Estado. Estadualismo (i.e., identificaçcão da ordem social com a ordem estadual), certeza do direito e previsibilidade vão, assim, de braço dado, permitir a efectivação e a estabilização dos novos arranjos sociais, políticos e jurídicos43. 5. Fontes do Direito: o fenômeno criador das normas jurídicas Uma vez descritos os caracteres que marcam a Idade Contemporânea como etapa do devir histórico total, bem como relacionados os traços essencialmente jurídicos deste momento na história do direito, podemos agora ingressar no estudo das fontes do direito propriamente ditas, a partir, primeiramente, da retomada breve da atual ‘teoria das fontes’. Contudo, antes de iniciar o estudo de tal teoria, relembraremos algumas idéias de base para a compreensão dos pontos de partida de uma pesquisa jurídico-historiográfica. Um primeiro aspecto ao se considerar o tema das fontes do direito é definir o que se entende por fonte histórica e por fonte jurídica, bem como qual o método de investigação a ser utilizado para o seu estudo. A importância das fontes históricas para o jurista está no que assinala Ramon Fernandez Espinar, ou seja, no fato de todo o trabalho de investigação se basear nos indícios fornecidos pelas fontes históricas do direito, também denominadas de “fontes de conhecimento”44. Segundo José Manuel Pérez-Prendes Muñoz-Arraco45, as fontes de conhecimento correspondem aquilo que pode ser examinado fisicamente e que informa sobre a essência ou conteúdo de um princípio ou regra jurídica em dado momento histórico. As fontes de conhecimento, como fontes da história, possuem um traço bastante particular quanto ao seu objeto: uma vez que estuda os fatos históricos e estes possuem a característica da irrevocabilidade (impossibilidade de repetição), apenas podemos recorrer às suas “marcas” ou “pegadas” que se conservaram ao longo dos tempos. Em outras palavras, os fatos históricos não se repetem, motivo pelo qual somos impedidos de observá-los diretamente. Isso nos impõe conhecê-los apenas por aproximações, isto é, pelos reflexos dos acontecimentos. Assim, as fontes da história são os registros ou marcas que nos informam sobre estes fatos, sendo o único meio hábil para se conhecer o passado. O esforço de uma investigação historiográfica do direito, portanto, terá nos fatos histórico-jurídicos seu primeiro ponto de partida. O fato a que nos referimos aqui, tratando-se de uma pesquisa especializada, ou seja, concentrada 43 Antonio Manoel Hespanha, 1998, p. 169. 44 Ramon Fernandez Espinar, Op. Cit., p. 13. 45 Perez-Prendes, Op. Cit., p. 97. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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no fenômeno jurídico, é aquele que diz respeito ao nascimento, aplicação, conservação, modificação ou extinção do direito de maneira geral. Certamente o leque é bastante amplo e seria por demais temerário não propormos um recorte para a breve pesquisa que ora apresentamos. A primeira das delimitações, tendo nós como fim o estudo das fontes do direito contemporâneo, é, como se vê, dirigida ao seu próprio objeto. Desde já o recorte necessário se faz no sentido de que o fato histórico que estudaremos será a própria criação do direito, idéia que se liga, por essência, ao conceito de fonte. Enquanto que para o historiador puro o fato histórico geral é um potencial objeto de estudo, para nós, enquanto juristas, interessa a investigação sobre o que nomeadamente chamamos de fatos jurídicos. Dentro desta primeira delimitação, e em conformidade com os objetivos a serem alcançados pelo nosso trabalho, diznos respeito o estudo das fontes de criação do direito, ou seja, aquelas que criam o direito historicamente examinado. Aqui, portanto, já podemos apresentar a diferença entre fonte histórica (fonte de conhecimento) e fonte jurídica (fonte de criação). Às fontes de conhecimento, como frisa Fernandez Espinar46, atribui-se o sentido daquilo em que o direito pôs sua marca, manifestando-se através de escritos ou objetos e configurandose não como o direito em si, mas sim como o meio de conhecê-lo. As fontes jurídicas, como assinala Angel Latorre, associam-se à maneira como as normas se manifestam ou exteriorizam. Estas fontes de criação são as próprias normas e princípios que vigoram como prescrições jurídicas obrigatórias em determinada época47. Marcello Caetano bem ilustra esta distinção na sua obra “História do Direito Português: Fontes-Direito Público (1140-1495)” quando afirma: Apesar da semelhança de expressões, não há que confundir fonte de Direito com fonte da História do Direito. Há fontes de Direito que não são fontes da história (todas as leis, e costumes, que vigoram e que hoje desconhecemos de todo ou de que só temos vagas notícias) e, inversamente, há muitas fontes da história jurídica que não são fontes de Direito (todas as inscrições, escritos e tradições que nos dão notícia de factos jurídicos passados e que todavia não são a própria forma tangível da norma revelada para ser observada)48. Todo o desenvolvimento atual para o estudo das fontes do direito tem origem na teoria nascida ao final da modernidade. Costuma-se atribuir a Friedrich Carl von Savigny (1779-1861) e à Escola Histórica do Direito a elaboração da configuração moderna da Teoria das Fontes. Para o principal representante da Escola Histórica, o que se denomina como as diversas fontes jurídicas são, na verdade, formas de manifestação exterior da essencial fonte do direito, o que denomina “espírito do povo”. Neste sentido, haveria uma deficiência no modo de tratar o tema, ao se confundir a essência e origem do direito com a sua maneira de 46 Fernandez Espinar, Op. Cit., p. 82. 47 Angel Latorre, 2002, p. 67. 48 Marcello Caetano, 1992, p. 19.
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manifestar-se ou exteriorizar-se. Como bem observa Francisco Balaguer Callejón, “Para Savigny, estas formas exteriores tienen solamente un valor declarativo respecto de las reglas de Derecho que se crean en otro lugar”49. Deste modo, dá-se ênfase ao direito já produzido e manifesto, em vez de sua origem ou verdadeiro processo de produção. Pode-se dizer que esta doutrina das fontes de origem moderna corresponde a uma formulação contemporânea à transição para o Estado Liberal e, portanto, unida à codificação e ao constitucionalismo. Nesta época, grande valorização assumiu o tema da segurança jurídica, indispensável para assegurar o desenvolvimento social e econômico que se firmava. Mesmo divergindo quanto ao método em relação à Escola da Exegese (primazia da obra legal codificada), Savigny e sua Escola Histórica do Direito (prioridade para o direito científico, como a via capaz de apreender o “espírito do povo”) pretendiam este mesmo fim: um direito não duvidoso, inequívoco, e que estivesse a salvo das arbitrariedades e injustiças. Contudo, foi exatamente a tese que Savigny combateu vivamente que findou por se impor, ou seja, prevaleceu a doutrina tradicional das fontes, cuja essência estava em assegurar o predomínio da lei dentro do sistema jurídico. Com a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, a doutrina tradicional sofre uma incontestável objeção. Para o pensamento kelseniano, a questão da produção jurídica ganha centralidade, já que seu sustentáculo é a idéia de um direito criado, fruto da atividade humana, de modo a se substituir a expressão “fontes do direito” por “modos de produção jurídica”. A teoria das fontes em Kelsen tem a finalidade de examinar os procedimentos de criação ou produção do direito segundo as suas regras de validez e não descobrir de onde ele ‘brota’. Aqui, a análise que interessa é quanto a forma e não quanto ao conteúdo, pois as normas, para serem criadas, necessitam atender à regulação de outras normas (a norma fundamental), atingindo, portanto, sua validez. Já o conteúdo, este dependerá dos atos de vontade dos órgãos autorizados para a produção normativa. Neste sentido é que a teoria das fontes de Kelsen diferencia as normas de conteúdo e as normas reguladoras da produção de outras normas e são nas ‘formas de normação’ a que deve se deter a análise jurídica. Esclarecido este primeiro aspecto, podemos delimitar nosso estudo nas fontes do direito contemporâneo, época em que nos encontramos desde finais do século XVIII e que não cessa de se desenvolver. Ou seja, o estudo se debruçará dentro de uma perspectiva histórica do fenômeno jurídico que vem passando por processos de mutação e continuidade ao longo dos tempos, atribuindo-se ênfase particular ao período histórico designado. Vale como segundo esclarecimento salientar que iniciaremos aqui um trabalho de estudos das fontes do direito propriamente ditas e não de suas instituições no período demarcado. Aqui também realizamos uma eleição para fins de abordagem metodológica do tema, eleição esta que se baseia em uma 49 Francisco Balaguer Callejón, 1991, p. 32. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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das alternativas de divisões da história do direito, segundo certos critérios, isto é, alternativas de seu estudo à luz de dois referentes principais: a) o resgate da história externa ou interna do direito ou b) o resgate das fontes ou das instituições jurídicas. Quanto ao primeiro critério - a divisão entre história externa e história interna do direito -, grande contribuição nos forneceu o pensamento de Leibniz, segundo o qual a história externa é “la historia de todo el movimiento social de un pueblo, en tanto las ideias y los hechos que la constituyen se traducen en legislación”50. Já a história interna diz respeito às próprias normas jurídicas que se fixam nas várias sociedades. Ou seja, no primeiro caso, recorre-se a aspectos extrajurídicos para explicar o fenômeno jurídico, enquanto que, no segundo caso, o direito se explica por si mesmo, à luz de uma perspectiva interior. No que tange ao segundo critério – a divisão entre o estudo das fontes e das instituições jurídicas –, temos, no primeiro, o exame do modo de formulação das normas jurídicas, a exemplo das leis e dos costumes, existentes e reconhecidas pela comunidade para regê-la. Já na segunda expressão temos o estudo das situações, relações e ordenações básicas e fundamentais na vida social, a exemplo do casamento ou do contrato51. Na lição de Duarte Nogueira, este conceito se revela claro: Dá-se o nome de instituição jurídica o conjunto de regras que regulam situações ou objectos típicos da vida social, como são o casamento, a filiação, a sociedade comercial, a herança, a responsabilidade civil, a locação, e muitíssimas outras poder-se-iam apontar. Daqui resulta a específica denominação de História das Instituições à história que se dedica a conhecer e descrever as soluções materiais que determinada ordem jurídica estabeleceu e consagrou, como evoluíram essas soluções e quais as causas porque evoluíram52. Sobre o estudo das instituições jurídicas, Antonio Manoel Hespanha (1982) ainda acrescenta que seu nascimento refere-se a uma reação contra os dois modelos de estudo historiográfico existentes: a história das fontes (evolução das normas jurídicas) e a história da dogmática (evolução das doutrinas e sistemas de conceitos de direito). Para o autor, o que havia de comum entre estas duas orientações, embora distintas quanto ao objeto, era a sua tendência a “isolar as realidades que tratavam de outras realidades... [partia-se do pressuposto] de que o modo de ser da ordem jurídica está dependente da vontade do legislador ou das construções intelectuais dos juristas (isto é, num caso e noutro, de factores individuais), pouco ou nada tendo que ver com os restantes aspectos da vida social”53. Portanto, sua grande deficiência estaria no fato de descartar ou, pelo menos, não considerar relevante, a relação entre o direito e outros setores da realidade, já que não pertenceria à essência do direito e, por conseguinte, não comprometeria - para 50 Leibniz, citado por Fernandez Espinar, Op. Cit., p. 74. 51 Alfonso Garcia-Gallo, 1967, p. 01. 52 José Duarte Nogueira, 2003, p. 257. 53 Antonio Manoel Hespanha, 1982, p. 11.
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sua compreensão histórica - sacrificá-la. O estudo das instituições, portanto, viria a se contrapor a este isolacionismo do fenômeno jurídico, examinando-o a partir de suas relações concretas com a vida social, de modo a examinar a influência que cada setor exerce sobre a criação e aplicação do direito (o condicionamento do direito pela realidade que o cerca). A partir do conceito de “instituição” divulgado pelas teorias sociológicas, as normas jurídicas são vistas como que “arrancadas” da realidade social, o que escapa ao idealismo e recorre ao tratamento comparativo entre a teoria e a prática jurídicas. Neste aspecto – o aspecto da atividade jurídica -, a função do direito é solucionar conflitos, o que requer, para além de um sistema de normas, o funcionamento de um conjunto de instituições (burocráticas), como os órgãos legislativos, tribunais, cartórios notariais, profissionais especializados, presídios, polícias, escolas, sociedades científicas e bibliotecas. Todas estas instituições condicionam o direito, tanto na sua formulação, quanto na sua aplicação. Assim, se a resolução de conflitos de interesse é uma resposta do setor jurídico às demandas sociais, estas respostas estão certamente condicionadas pela instituição que as expressa ou produz. Não obstante, mesmo reconhecendo a relevância teórica e empírica dos pontos levantados pelo autor, não será nossa tarefa aqui tratar de uma história das instituições jurídicas contemporâneas, exame que demandaria um trabalho vertical e pormenorizado que foge à ambição deste pequeno ensaio. Deste modo, considerando as distinções metodológicas já expostas, nossa escolha será no sentido de realizar um exame a respeito da história das fontes do direito, expressão que também exige algum esclarecimento antes de seu tratamento minucioso. Segundo Javier Perez Royo, la expresión ”fuentes del Derecho” puede ser entendida en dos sentidos distintos. Uno primero, com el que se haría referencia a las fuerzas sociales con capacidad para crear normas jurídicas. Y otro segundo, con el que se designarían las categorías básicas a través de las cuales se exteriorizan dichas normas jurídicas. Entre ambos existe una clara relación, de tal suerte que las formas de manifestación de las normas jurídicas varían considerablemente según sean unos u otros los titulares de la capacidad para producirlas. Y en consecuencia, un estudio de las “fuentes del Derecho” con alguna pretensión de abarcarlas en su integridad tendría que tomar en consideración ambos aspectos54. No estudo das fontes do direito, portanto, a expressão abarca um duplo sentido. Entretanto, a doutrina dogmática tradicional tem consagrado apenas o segundo aspecto existente (forma de exteriorização da norma), em detrimento do primeiro (poder ou faculdade de criação da norma), igualmente importante para a compreensão do fenômeno jurídico. Certamente, isto se explica pelo quadro teórico positivista em que a dogmática tradicional se insere, deixando-se de examinar a razão remota (material) pela qual uma norma é criada ao se valorizar o tratamento formal (razão imediata) de sua produção. 54 Javier Perez Royo, 1984, p. 13. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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Além daqueles que consideram a insuficiência de tal escolha, existem outros que enxergam nesta segunda opção conceitual uma impropriedade teórica, a exemplo de Fernando Flores García, ao afirmar que não se pode entender como fonte do direito a sua forma de manifestação, haja vista que isto já configura o direito em si e não sua gênese: trata-se da diferença entre a maneira de ser do direito e o fenômeno que lhe dá nascimento55. Neste sentido, afasta-se do pensamento de Hans Kelsen (1998) e se alia ao pensamento de Del Vecchio (1969) 56 e Carnelutti (1955) 57. Certamente, delimitar o tratamento do estudo das fontes do direito apenas ao sentido de sua forma de exteriorização resulta insuficiente, sobretudo porque, além dos aspectos psicológicos e subjetivos sustentados por Del Vecchio e Carnelutti, os aspectos políticos e sociológicos da criação do direito são extremamente importantes, como adverte Luis Díez-Picazo. Isso se dá pelo fato de estar nestes últimos aspectos a explicação sobre o que determina o lugar de onde emergirá a norma, sobre o estabelecimento da hierarquia que se fixa entre as diferentes fontes e sobre o reconhecimento dos âmbitos de poder (poder de ordenar e poder de se fazer obedecer) que atuam e se conflitam numa sociedade58. Embora o acolhimento das opiniões quanto às lacunas que um estudo estritamente formal das fontes jurídicas pode nos conduzir - o que atinge a integralidade de uma pesquisa que se debruce sobre as fontes do direito nas suas várias perspectivas -, nossas limitações de objeto impõem a escolha de uma abordagem de síntese, fixando-se finalmente no estudo das formas de manifestação ou exteriorização da norma jurídica, valendo sempre lembrar do conteúdo parcelar e parcial dos resultados que serão atingidos com nossa pesquisa. 5.1 - Classificação das Fontes do Direito Considerando que o direito é produto da cultura e da história, certamente algo de caráter contextual e arbitrário (no sentido de construído) em cada 55 Fernando Flores García, 1973, p. 238. 56 Para o jurista italiano Giorgio Del Vecchio, fonte do direito em geral é a natureza humana, destacando-se o elemento psicológico da criação da norma jurídica: “el espíritu que brilla en las consciencias individuales” e apenas no sentido técnico é que ela corresponde ao direito positivo (Filosofía del Derecho. Barcelona, 1969, p. 365 e ss.). 57 O também consagrado jurista italiano Francesco Carnelutti exalta o elemento subjetivo do fenômeno jurídico, sustentando que a fonte do direito é a própria sociedade, o grupo de homens de caráter não efêmero que acata as disposições normativas para solucionar conflitos intersubjetivos de interesses. Em respeito à coesão social, atua o direito, disciplinando e consolidando a convivência da comunidade (Teoría General del Derecho. Madrid, 1955, p. 69 a 71). 58 Para Luis Díez-Picazo (1987, p. 126), a questão da hierarquia das fontes do direito retrata o problema das tensões entre grupos sociais que disputam pelo poder, a exemplo da disputa, na Idade Média, entre a lei e o costume como representativas da própria luta entre o poder real (poder central) e o poder dos senhores feudais (poderes locais).
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sociedade lhe dará origem. Sabe-se que, em linhas gerais, o direito se expressa como forma de controle das condutas humanas, manifestando-se através de um conjunto de normas que disciplinam as liberdades, limitando-as para garantir uma convivência social estável e harmônica. Para se tratar da classificação das fontes do direito, vale o esforço de reunir, didaticamente, os vários modos de compreendê-las, mesmo que isso resulte em algumas repetições ou antecipações que ao longo do texto o leitor há de reconhecer. Nossa intenção aqui não seria fazer um estudo exaustivo da teoria da classificação das fontes jurídicas, mas apenas o trabalho exploratório e sistemático que venha a conferir clareza à exposição e aos fins que ela persegue. Sabemos do sentido dúbio da expressão “fontes do direito”, ou seja, de uma orientação dualista que prefere separar o sentido de fonte como causa, origem e meios de produção daquele seu outro sentido, como forma de expressão (meio de apresentação e de exteriorização do direito). Ou seja, a definição dualista, como bem assinala Luiz Otávio de Oliveira Amaral, separa a causa da manifestação: “Por fonte do Direito pode-se entender as causas, as origens, as causas remotas ou próximas, geradoras/produtoras do Direito, dos preceitos normativos. A locução fontes do Direito também tem sido entendida como meio de manifestação, de expressão do próprio Direito (direito objetivo/preceitos normativos)”59. As duas acepções da expressão ‘fontes do direito’ podem também ser entendidas como correspondentes à classificação que as divide entre fontes materiais e fontes formais. Coerente com a própria concepção de Carnelutti, tal divisão confere às primeiras a idéia dos fatores que condicionam a origem da norma jurídica. Trata-se daquelas circunstâncias materiais que deram impulso à sua criação e que são objeto de estudo, por exemplo, da Sociologia Jurídica, da Ciência Política ou da Economia. Tais forças impulsionadoras da criação do direito podem emergir de duas possíveis categorias de causas essenciais: a) os valores sociais, necessidades humanas e os elementos culturais que influenciam a criação das normas jurídicas (Teoria Funcionalista); e b) as forças políticas e dos grupos sociais que determinam o seu conteúdo, a exemplo da vontade de um povo, de uma classe social ou de um grupo de poder (Teoria do Conflito). Num segundo sentido - fontes formais do direito – temos a idéia dos seus meios de expressão, ou seja, dos dispositivos juridicamente válidos através dos quais as normas jurídicas se exteriorizam. Assim, busca-se identificar, nas fontes formais do direito, o lugar onde se encontram as normas que são introduzidas no ordenamento jurídico, fixando novas regras de conduta social. Por sua vez, tais fontes formais podem se classificar em duas grandes categorias: a) fontes formais estatais (aquelas que expressam o resultado de processos legislativos, que dependem da atividade do legislador estatal, e aquelas que decorrem da atividade jurisdicional do Estado), sendo elas as leis, sob a forma de legislações ou códigos, assim como a produção jurisprudencial); e b) fontes formais não59 Luis Otavio de Oliveira Amaral, 2006, p. 128. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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estatais (aquelas que introduzem novas normas ao ordenamento jurídico, mediante processos não controlados pelos poderes do Estado, como as práticas costumeiras, os estudos científicos do fenômeno jurídico ou os poderes negociais de indivíduos ou grupos de indivíduos organizados), sendo elas os costumes, a doutrina e as normas jurídicas particulares e ou de grupos individualizados, a exemplo dos sindicatos. Há quem inclua uma terceira classificação das fontes dos direitos, que além do seu sentido material e formal, também carregam um sentido racional, como é o caso do mexicano Edgardo Peniche López. Para o jurista latino-americano, as fontes racionais correspondem aos elementos necessários que devem presidir o processo de criação de uma norma jurídica, como as razões de conveniência, a justiça e a história60. A esta classificação ainda se pode acrescentar aquela defendida por Eduardo García Máynez61, para o qual as fontes do direito podem ser materiais, formais e históricas. As fontes históricas, conforme o pensamento do jurista, são os documentos que encerram a norma jurídica, como as inscrições, os papiros e os livros, dentre outros. Contudo, conforme já examinamos, as fontes históricas não podem se confundir com as fontes de criação do direito, motivo pelo qual esta última classificação tende a ser rechaçada pela doutrina e não será por nós adotada. Fácil é observar que não existe consenso que fixe os termos e os limites da expressão “fontes do direito”, tão pouco é homogêneo o pensamento da doutrina para fixar sua classificação. De igual modo, não existe uma só maneira de investigar da história do direito ou de seu método de exposição. Assim, cabe-nos aqui fazer mais algumas escolhas, considerando a pertinência das alternativas abertas - cada uma com suas vantagens e desvantagens - e tendo em vista os fins do nosso trabalho. Como já assinalado, nossa opção teórico-metodológica será no sentido de apresentar uma síntese das fontes do direito contemporâneo no seu sentido formal, ou seja, a maneira através da qual a norma se manifesta em nossa época, seja ela estatal ou não estatal. Contudo, não deixaremos de traçar alguma análise a respeito das razões de ser que forjaram o sistema de fontes do direito atual, recorrendo a aspectos relativos ao cenário extrajurídico, muito embora numa perspectiva ampla e abrangente que não consentirá maiores aprofundamentos. Assim, ao se falar em fontes do direito, nos referimos, de maneira geral, às fontes do direito objetivo, aquele que fixa, por suas várias formas de exteriorização, as normas de agir de cada um, determinando limites, proibições e imperativos de deveres legais necessários a uma convivência equilibrada. Daqui por diante, finalmente, reportar-nos-emos ao direito objetivo contemporâneo produzido no âmbito da Família Romano-Germânica, sistema jurídico por nós 60 Introducción al Derecho, México, 1969, p. 63. 61 Citado por Fernando Flores García, 1973.
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eleito para objeto deste estudo. 5.2 - A Experiência do Sistema Romano-Germânico Tida como uma das grandes famílias do direito contemporâneo, a família do direito romano-germânico se caracteriza pela sua relação com a produção jurídica da Roma Antiga, muito embora o sistema do qual falamos tenha em muito se distanciado daquilo que era admitido no tempo dos imperadores romanos. Inegavelmente, o sistema romano-germânico também é um dos mais difundidos pelo mundo continental, o que se deve ao processo de colonização promovido pelos países da Europa Ocidental e à facilidade de recepção da técnica jurídica romana, mediante as codificações do século XIX. 5.2.1 - Precedentes do Surgimento da Família Romano-Germânica Segundo o já citado René David, do ponto de vista científico, o sistema jurídico romano-germânico teve seu início no século XIII, nomeadamente com os estudos do direito romano nas universidades. Antes deste primeiro passo para a formação do sistema em apreço, o quadro do direito europeu era essencialmente consuetudinário. O contexto extrajurídico deste cenário se explica pela convivência, entre os povos bárbaros (germanos em particular) e as populações romanizadas, a partir da queda do Império Romano no século V. Esta convivência se deu, no seu início, sem alterações no sistema jurídico que cada povo seguia, tendo cada um sua própria estrutura legal, caracterizando a experiência que adotou o denominado “princípio da personalidade das leis”. A este princípio sucede o da “territorialidade das leis”, segundo o qual passa a vigorar o costume territorial em vez das normas que cada povo trás de suas origens quando em convivência num mesmo espaço geográfico. Em outras palavras, como esclarece o historiador do direito brasileiro Walter Vieira do Nascimento, “o indivíduo, independentemente de sua nacionalidade, é regido pela lei do lugar onde se encontra” (2001, p. 138). Isso se dá ao lado e, talvez, como conseqüência, da aproximação gradual dos modos de vida entre os povos e por uma feudalidade nascente. Estima-se que do século VI ao século XII, o direito escrito e erudito perdeu sua centralidade para ceder lugar a um direito vulgar. Recorria-se a processos irracionais para dirimir conflitos e não se tinha nas autoridades políticas o poder de coerção necessário para que um direito oficial pudesse vigorar com eficácia. As leis bárbaras que foram redigidas até o século XII não abarcavam toda a vida social, mas sim um âmbito tímido das suas relações. Ao mesmo tempo, o direito das compilações romanas tornou-se erudito em excesso, sendo substituído pelas práticas espontâneas das populações. Apenas nos séculos XII e XIII é que renasce a idéia de direito, com o próprio Renascimento do Ocidente Europeu. No plano jurídico, o direito é reconhecido como único instrumento que poderá garantir a ordem e a segurança das novas Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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formas de sociabilidade. O progresso das cidades e do comércio necessitava de uma moldura jurídica que assegurasse seus desdobramentos com estabilidade e certeza para as novas relações que ali nasciam. Neste período, também se dá a cisão entre direito, moral e religião, distinguindo-se o laico do religioso, o delito do pecado. Assim, seria o direito, e não mais a religião ou a moral, o melhor recurso para reger a moderna sociedade. Embora esta separação já tenha sido experimentada pelos romanos, a Alta Idade Média, porém, foi marcada por um período de domínio das doutrinas e visões de mundo teológicas. Com o renascimento da idéia de direito (século XII), promove-se, então, uma grande revolução no campo das idéias e no âmbito jurídico: “filósofos e juristas exigem que as relações sociais se baseiem no direito e que se ponha termo ao regime de anarquia e de arbítrio que reina há séculos. Querem um direito novo fundado sobre a justiça, que a razão permite conhecer; repudiam, para as relações civis, o apelo ao sobrenatural”62. A alteração nas formas de sociabilidade, portanto, exigem uma ordem jurídica nova, capaz de lhes fornecer as bases normativas de suas relações sociais, agora baseadas nos pressupostos de ordem e progresso. Esta recente cultura, contudo, ainda estava imersa numa estrutura descentralizada, inexistindo qualquer unidade política na Europa Ocidental dos séculos XII e XIII. Assim sendo, o ressurgimento do direito romano vai gravitar sobre bases essencialmente culturais, independentes de instituições políticas determinadas. Trata-se de um fator epistemológico que se vincula à “libertação da razão laica”, de modo que a razão clerical, que antes era antagônica daquela, passa a com ela coexistir, desde que se mantivessem, cada uma, dentro de sua esfera específica63. Para que esta nova cultura (laica) fosse difundida, um novo espaço emergiu como locus de excelência: a universidade, particularmente a Universidade de Bolonha, na Itália, a primeira de todas as que surgiram a partir deste marco histórico e onde pela primeira vez se realizou um estudo ordenado do Corpus Juris Civilis (primeira metade do século XII). Nestas universidades, o que se ensinava não eram técnicas de prática jurídica, mas o ethos do direito, ou seja, os métodos que permitiam lhe retirar a essência intrínseca, baseada na moral e na justiça. Neste sentido, o direito é visto como um modelo de organização social, relacionando-se com a filosofia, a teologia e a religião, bem como buscando estabelecer os parâmetros do justo. A inclinação por um direito abstrato em detrimento da prática processual dos conflitos pode ser explicada, dentre outros fatores, pelo fato de não haver na época um direito positivo organizado, sistemático e uniforme, mas sim um direito ‘caótico’ e ‘retalhado’, inexistindo o que hoje chamamos de direito nacional. Diante do quadro posto, considerado confuso e atrasado, o direito romano atraía a admiração e respeito de todos. A herança jurídica romana tanto era organizada e sistemática, quanto estava acessível a um maior número de 62 René David, 1998, p. 31. 63 Argemiro Cardoso Moreira Martins, O Direito Romano e seu Ressurgimento no Final da Idade Média, 2001, p. 208.
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pessoas, haja vista ser a escrita de sua principal fonte (o Código de Justiniano) na língua prestigiada e vulgarizada pela Igreja: o latim. Sendo elemento de interseção cultural entre os vários povos, o direito romano, finalmente, adquire grande valorização: “Utilizando a mesma língua, o latim, tendo como agentes um escol manifestamente internacionalizado e buscando a solução de problemas comuns às várias nações, o direito romano medieval vai pois impor-se pela via prudencial como direito comum e factor de convergência cultural em toda a Europa”64. Por todas estas razões, estima-se que o direito romano constituiu ensino básico nas universidades da Europa até o XVIII, período a partir do qual o ensino do direito passou a tratar do direito nacional. Até tal fase, o direito romano, ao lado do direito canônico, era o conteúdo dos estudos jurídicos, excetuando-se poucas experiências, a exemplo do ensino do direito sueco já em 1620 e a inclusão de uma disciplina de direito francês no ensino jurídico da Sorbone, em 1679. Mesmo assim, o ensino do direito romano perseveraria como conteúdo básico das escolas jurídicas até século XX, muito embora, ao longo de seu largo percurso, tenha passado por escolas que alteravam seu cerne e fundamento. Primeiramente, a Escola dos Glosadores (consagrada em meados do século XIII pela Magna Glosa de Acúrsio), que buscou “reencontrar e explicar o sentido originário das leis romanas” (René David, Op. Cit., p. 34-35). No século XIV, a Escola dos Pós-Glosadores inaugura uma nova perspectiva para o ensino do direito romano, buscando sua modificação para adaptá-lo à sociedade da época (usus modernus Pandectarum). Esse direito, agora ensinado pelos pós-glosadores (séculos XIV e XV), revela um grande afastamento daquele direito romano herdado de Justiniano. Aqui, busca-se uma compreensão de direito que ambiciona a universalidade, baseado na intenção de explicar os princípios de um direito essencialmente racional e sistemático. Diferentemente da escola dos glosadores, que se utilizava do método exegético, a nova escola vai substituir as anotações sobre o sentido do texto (glosa) pelo comentário, lançando mão do método dialético ou escolástico que visa, “através de sucessiva análise e síntese, a superação de aparentes contradições e a construção de um sistema lógico”65. A esta fase sucedem as escolas humanistas e racionalistas. Com elas, surge uma tensão entre direito romano e razão, de modo que se afasta a antiga presunção de que o Corpus Juris estava já coberto pelo manto da racionalidade. Agora, toda e qualquer norma do Código de Justiniano teria de passar pelo filtro do novo padrão racional que emerge. Assim, o direito romano deixa de ser a fonte jurídica por excelência e a razão passa a assumir, ela própria, este papel. Renunciando a escolástica até então prestigiada, o novo movimento jusracionalista vai libertarse da submissão às “autoridades”, reivindicando a plena liberdade frente ao texto, desligada de posições pré-concebidas. 64 José Duarte Nogueira, Op. Cit., p. 256. 65 Nuno Espinosa, Op. Cit., p. 231. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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O direito passa a ser entendido à luz da lógica e como obra da razão humana, diferentemente de uma explicação teológica. O homem assume centralidade neste período, exaltando-se os direitos naturais dos indivíduos, o que confere grande prestígio à idéia de direito subjetivo dentro do pensamento jurídico. Todo este pensamento, portanto, insere-se na premissa da filosofia iluminista, na qual se cultivou um ideal de universalismo e de regras de justiça que formariam as bases de um direito planetário e imutável. Neste novo contexto, o direito romano recebeu tratamentos distintos: no âmbito das normas privadas, observa-se uma continuidade em relação à substância daquilo que Roma já havia deixado de herança, propondo-se alterações apenas de métodos de aplicação e interpretação da antiga produção jurídica romanista. Já em relação ao direito público, observa-se, ao contrário, uma cisão, exigindo-se que fosse elaborado um direito que consagrasse os direitos naturais e garantisse as liberdades fundamentais do homem, algo que o direito romano não havia desenvolvido. Contudo, adstrito ao universo da academia, o direito romano poderia se converter em uma experiência eminentemente teórica. O perigo do academicismo levou as universidades a oferecerem duas soluções para a época: a primeira, seria tirar o direito romano do mundo das idealizações, inserindo-o também no âmbito da vigência dos direitos nacionais, com os ajustes que se fizessem necessários; já a segunda, seria o desenvolvimento de um direito totalmente novo, inspirado nos costumes existentes e, diante de sua ausência, nas decisões jurisprudenciais. Ou seja, escolher entre um direito já construído e a possibilidade de inovar, concebendo algo original. A escolha diante destas alternativas é o que define a divisão do direito nas duas grandes famílias do direito contemporâneo ocidental, marcando o início da existência da família romano-germânica e da família do common law. As nações que optaram pelo revigoramento do direito romano muito devem à influência das universidades, que colaboraram para o restabelecimento da própria importância do direito – que havia se perdido após a queda do Império Romano - e de sua necessidade como fundamento de uma ordem social laica. Vale salientar que o renascimento do direito romano ocorrido nas universidades, e depois incorporado às práticas dos juristas, não consistia necessariamente no resgate das regras e soluções jurídicas romanas, a fim de que fossem aplicadas aos casos da época, mas sim representava o revigoramento da concepção de direito e da forma de raciocinar para sua aplicação na solução dos casos concretos. Assim, o que se tinha como fundamental e prioritário era o modo de pensar romano, com suas divisões, classificações e conceitos, com vistas a encontrar o melhor direito e identificar o caminho para o seu conhecimento. Por isso, existe uma nítida diferença entre o renascimento dos estudos do direito romano e a sua recepção. Evidentemente, a influência dos estudos vai incidir sobre a prática, fazendo com que se valorize as próprias regras do direito romano ou aquilo que dele derivou. A recepção, portanto, veio num segundo 214
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momento e teve um devir lento e progressivo, vindo a substituir os princípios do direito aplicados na época e atender às suas novas exigências: a certeza e generalidade das normas jurídicas, bem como o respeito aos novos critérios de justiça. Com isso, a fragmentação dos costumes locais é rechaçada e apenas os grandes direitos consuetudinários se preservarão frente ao avanço e valorização do direito romano. Além do mais, os costumes da época não davam conta das novas matérias que surgiram após o século XIII, nem poderiam se expandir para além de sua comunidade, tendo, portanto, uma aplicação muito restrita: os costumes estavam presos ao passado e ao território. Isso, em boa medida, explica tanto o renascimento quanto a recepção e expansão do direito romano: sua vocação aberta, universal e sua potencialidade para resolver novos problemas, projetando-se ao futuro. Todavia, esta recepção não se deu de modo homogêneo no tempo e no espaço por toda a Europa. Em alguns países, o direito romano tinha função apenas supletiva ou subsidiária, em outros, valia como uma ‘razão escrita’. Aos poucos, sobretudo pela influência do Direito Natural, o direito assume tendência codificadora. Iniciando o período moderno do sistema jurídico romano-germânico, o direito deixa de ser concebido como obra divina e passa a ser tido como descoberta e criação do legislador, a quem cabe também promover o seu desenvolvimento. Inaugura-se, assim, o período legislativo na história da família romano-germânica do direito. Diante de todo o exposto, atribui-se à escola do jusnaturalismo racionalista o mérito do desenvolvimento do direito em dois sentidos particulares, que se deram a partir do século XVIII: a produção jurídica em matéria de direito público66 e a codificação67. Enquanto que a expansão da produção jurídica, ao abarcar o direito publicista, foi um efeito positivo desta nova fase, a codificação, por outro lado, trouxe alguns sintomas negativos. René David os nomeia como sendo o positivismo legislativo e o nacionalismo jurídico. Ambos os fenômenos desnaturaram a pretensão original da escola do Direito Natural, fulminando a relação entre direito e justiça para estabelecer a relação entre o direito e a ordem do legislador, assim como afastando a idéia de um direito comum (jus commune) europeu: forma-se uma unidade jurídica territorializada, a fim de dar centralidade à nacionalização do direito. Em virtude deste desenvolvimento dos direitos nacionais, coloca-se, hoje, em causa a unidade da família romano-germânica, haja vista as diferenças dos ordenamentos jurídicos de cada país na atualidade. O jurista francês René David 66 A tradição romana não desenvolveu o seu direito público ao nível do direito privado. Alguns autores chegam a cogitar que a produção publicista romana foi até inexistente ou não merecedora de registro histórico. 67 A nova tendência da Escola do Direito Natural via na codificação o meio de superar as velhas e caóticas compilações dos séculos anteriores, os arcaísmos e a fragmentação do direito, devido à multiplicidade dos costumes. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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é um daqueles que tanto levanta a questão, quanto a afasta. O autor a levanta quando admite os perigos do surgimento de diferentes categorias ou conceitos no plano jurídico nacional, que podem se distanciar daqueles pertencentes à família romano-germânica. Contudo, a afasta quando sustenta que, embora tudo isso, existe um pano de fundo comum, que liga os direitos de influência romanogermânica por sua estrutura, ou seja, pelas suas grandes divisões e conceitos, bem como pelas categorias segundo as quais se ordenam as regras jurídicas de cada país68. Outrossim, defende que os planos políticos e filosóficos que influenciaram na constituição de cada ordenamento jurídico nacional são semelhantes entre si, forjando uma tendência de pensamento comum. Na busca desta unidade, para além dos conceitos e divisões do direito, um aspecto assume relevância central na análise do jurista para relacionar dado ordenamento normativo a alguma das famílias jurídicas existentes ou até inaugurar um novo sistema de direito, genuinamente original. Este aspecto é a noção de regra de direito. A ‘regra de direito’ é concebida na família romano-germânica, não como um mero instrumento capaz de oferecer solução a um caso concreto. Mais do que isso, a regra de direito é regra de conduta, com caráter de generalidade, abstraindo-se dos particularismos dos casos e situações pragmáticas. Por isso, a produção científica romano-germânica não terá no núcleo de suas preocupações a formulação de regras que dêem conta dos acontecimentos insurgentes, mas sim daquilo que orientará o julgador e os práticos do direito em relação a situações novas e futuras. Tal visão decorre da própria concepção de fenômeno jurídico vislumbrada pela escola jusnaturalista racional, ao atribuir ao direito a função de ordenador da sociedade, construído sobre as bases da moral e da justiça. Assim, não se trata apenas de uma ordem estritamente jurídica ou contenciosa, mas também de uma ordem política: o direito deve configurar-se, enfim, como um modelo de organização social. Este nível de abstração e generalidade que deve perseguir a regra de direito romano-germânica tem a finalidade de fornecer elementos que favoreçam o julgador a tomar conhecimento de como solucionar determinado caso concreto, evidenciando os aspectos que concorrem para o alcance da justiça. O trabalho inerente à aplicação do direito é, antes de tudo, identificar o sentido preciso da regra jurídica, o que é realizado pelo ofício da jurisprudência que, neste aspecto, finda por produzir uma espécie de ‘regra secundária de direito’ (interpretação que os juristas fazem a respeito das fórmulas produzidas pelo legislador – regras primárias). Assim, os pormenores são evitados, a fim de conferir ao jurista uma moldura geral na qual ele encontrará pistas, conferindo-lhe grande margem interpretativa para adaptar os casos concretos à norma. 68 A clássica divisão entre direito público e direito privado, com suas correspondentes categorias, conceitos e instituições internas é exemplo disso.
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Por tal razão, mesmo com o prolongamento dos efeitos da codificação pelos séculos XIX e XX, o autor considera que tanto o positivismo legislativo, quanto o nacionalismo jurídico estão em vias de mitigação. Trata-se daquilo que denominou como o estágio do “envelhecimento dos códigos”, traduzido no reconhecimento cada vez maior da importância essencial que assumiram a doutrina e jurisprudência na formação e evolução do direito: “(...) nenhum jurista pensa mais que apenas os textos legislativos sejam importantes para conhecer o direito”69. 5.2.2 - As Fontes da Família Romano-Germânica Depois de realizar um esboço sumário sobre os antecedentes históricos e as características gerais do sistema jurídico romano-germânico, podemos iniciar agora a tarefa para a qual viemos traçando o fio condutor do presente raciocínio: o seu sistema de fontes. Diante dos aspectos observados até o presente momento, é forçoso admitir que se trata de um trabalho que não escapa a discussões e pontos de vista diversos, uma vez que as várias experiências de ordenamentos jurídicos nacionais dentro desta mesma família revelam tanto traços de semelhança, quanto elementos de originalidade. Deste modo, também não há homogeneidade no que tange ao sistema de fontes adotado em cada sociedade. Contudo, com as reservas necessárias, pode-se encontrar pontos de aproximação entre estas várias experiências que nos consentem trilhar o caminho das fontes jurídicas na família romano-germânica contemporânea. De uma forma geral, pode-se afirmar que a lei escrita é a fonte por excelência do direito romano-germânico contemporâneo. Numa relação hierárquica com outras fontes normativas, a lacuna de uma regra legislada pode ser preenchida pelos costumes, pelos princípios gerais do direito, pela jurisprudência e pela doutrina. Contudo, o sistema de fontes de cada comunidade nacional irá definir a estrutura desta hierarquia, as fontes nela admitidas e qual a ordem de subsidiariedade que elas irão, entre si, constituir. Essa primazia da lei, vale salientar, não é absoluta. A própria previsão de um sistema de fontes, fixando um relacionamento de hierarquia entre elas, é uma admissão implícita de que a lei positivada não pode abarcar por completo a realidade mutante e imprevisível que o direito há de regular. Evidente que existiram – e ainda existem – defensores de uma exclusividade da produção estatal-legislativa como fonte do direito, idéia emblematizada, sobretudo, pela corrente do positivismo jurídico e pela exponencial figura de Hans Kelsen, cujo esforço visou conferir status de cientificidade ao saber jurídico, excluindo dele o que não fosse lógico, racional e preciso. A posição da lei e das demais fontes no sistema jurídico romano-gernânico contemporâneo será, agora, objeto de nossa exposição um pouco mais pormenorizada, como apresentaremos nos itens a seguir: 69 René David, Op. Cit., p. 55. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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a) A Lei Embora a palavra “lei” possa suscitar muitos significados dentro da linguagem jurídica, será a sua acepção mais restrita que tomaremos em nosso trabalho. Entende-se por “lei” a “regra imperativa de caráter geral, emanada do detentor da autoridade dentro de um grupo social, imposta exteriormente ao homem e sancionada pela força pública”70. Falamos, portanto, da lei escrita, produto da razão do legislador que, no período contemporâneo, assumiu o papel de depositária da certeza e segurança jurídicas. Presume-se que se trata da fonte jurídica que melhor conduz ao encontro de soluções de direito justas, ganhando grande força no século XIX, ante a tendência codificadora que atingiu quase a totalidade das comunidades da família romano-germânica. Igualmente, trata-se de uma das expressões da norma jurídica que mais tem ganhado destaque a partir da constituição dos Estados Modernos. No rastro de sua evolução, segue a tendência codificadora do direito, como forma de garantir segurança e certeza às relações, bem como de dar maior mobilidade para a produção atualizante do direito face às constantes mudanças da realidade concreta. Como destaca Maria Helena Diniz, Há no Estado Moderno uma supremacia da lei ante a crescente tendência de codificar o direito para atender a uma exigência de maior certeza e segurança para as relações jurídicas, devido à possibilidade de maior rapidez na elaboração e modificação do direito legislado, permitindo sua adaptação às necessidades da vida moderna e pelo fato de ser de mais fácil conhecimento e de contornos mais precisos, visto que se apresenta em textos escritos71. Emanada do Estado, a lei eleva a autoridade e papel do legislador, resultando, em tese, na melhor técnica de enunciação de regras jurídicas claras e precisas. Por isso, segundo Angel Latorre, a partir dos Estados Modernos, a lei passa a fornecer a maior parte das normas de controle social pela via jurídica, alcançando primazia em relação a qualquer outra fonte ou forma de criação do direito. Isso, portanto, requer que no sistema de fontes de cada sociedade, estabeleça-se uma hierarquia entre os diversos tipos de fontes, sejam elas escritas ou não. Nos regimes democráticos, a base de todo sistema de hierarquia normativa é a Constituição, tida como lei fundamental dos ordenamentos jurídicos de cada Estado. Seu status hierárquico aqui mencionado diz respeito ao sentido formal do termo, ou seja, atribui-lhe o sentido de “norma jurídica que ocupa el lugar más elevado dentro de la jerarquía normativa; las normas inferiores no poden derogar o modificar las normas constitucionales. (...) La Constituición es siempre un conjunto de reglas que se tienen por fundamentales para la perpetuación de una determinada forma política”72. O desenvolvimento desta tese da hierarquia normativa muito se deve ao 70 André-Jean Arnaud [et al], 1999, p. 463. 71 Maria Helena Diniz, 2006, p. 288. 72 Francisco Lopez Ruiz, 1997, p. 26-27.
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jurista Hans Kelsen, que formulou o conceito de norma básica para dar sentido à estrutura de um sistema jurídico coerente. A norma básica, segundo Kelsen, caracteriza-se como independente de todas as demais, posto que é a norma primeira, que funda os pressupostos das restantes. Nas palavras de Francisco Lopez Ruiz “funda sin ser fundada y es un presupuesto gnoseológico que permite ‘pensar’ el derecho no como la sucesión de normas aisladas, sino como un conjunto normativo unitário”73. Segundo Hans Kelsen, na sua Teoria Pura do Direito, o sistema de fontes jurídicas que se baseia na lógica de uma hierarquia normativa tem na Constituição a norma que irá fixar os limites de criação e aplicação de qualquer regra jurídica, determinando sua validade quanto ao ordenamento jurídico do qual faz parte. Nenhuma norma, portanto, terá validade se estiver em desacordo com a regra fundamental da estrutura hierárquica kelseniana. Abaixo da Constituição existem outros tipos de leis, igualmente organizadas entre si segundo um critério hierárquico, e que compõem uma cadeia sucessiva de estatutos superiores e inferiores dentro do mesmo sistema normativo. Partindo deste pressuposto, se as normas jurídicas não estão no mesmo plano, seu processo de produção também não escaparia a uma regulação de caráter hierárquico, ou seja, para que uma norma seja criada, há de se submeter às regras estabelecidas por outras hierarquicamente superiores, que lhes darão fundamento: Como, dado o caráter dinâmico do Direito, uma norma somente é válida porque e na medida em que foi produzida por uma determinada maneira, isto é, pela maneira determinada por uma outra norma, esta outra norma representa o fundamento imediato de validade daquela. A relação entre a norma que regula a produção de uma outra e a norma assim regularmente produzida pode ser figurada pela imagem espacial da supra-infra-ordenação. A norma que regula a produção é a norma superior, a norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior. A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas74. Seguindo o raciocínio da estrutura hierárquica do sistema de fontes kelseniano, o estatuto que ocupa o segundo plano da sua pirâmide normativa é a lei ordinária. Esta, por sua vez, está geralmente agrupada sob a forma de códigos que, como já assinalamos, têm na contemporaneidade o sentido de um conjunto organizado de regras que possuem uma lógica interna clara e um conteúdo relativo à matéria específica. Diante do fenômeno da codificação, a fórmula de reunir as legislações em razão da matéria em códigos foi adota por quase a totalidade dos países de influência romano-germânica, com grande impulso nos séculos XIX e XX. Contudo, vale salientar que as leis ordinárias não incorporadas 73 Lopez Ruiz, Op. Cit., p. 64. 74 Hans Kelsen, 1998, p. 155. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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aos códigos possuem em relação a estes o mesmo status hierárquico, não havendo qualquer tipo de proeminência do código no sentido da interpretação que se dá à autoridade destas leis. Tendo em vista que o legislador parlamentar não conseguiria abarcar todas as matérias a serem reguladas pela norma, caberá a ele lançar mão do instituto da delegação, a fim de conferir autoridade de produção normativa a outros setores de vocação não legislativa. Deste modo, delega poderes a autoridades administrativas, a fim de que fixem regulamentos em matérias específicas. O produto normativo desta delegação ocuparia, na estrutura hierárquica das leis, a posição piramidal que se situa abaixo das leis ordinárias. Sob a forma de regulamentos e decretos, estas leis têm origem na produção normativa que é delegada ao poder executivo, ente encarregado de dirigir a própria administração estatal. Assim, temos nestes tipos legais as variadas formas de expressão da lei em sentido estrito e formal, enquanto fontes do direito romano-germânico contemporâneo. Contudo, não é apenas a similitude quanto aos tipos e hierarquia de leis escritas que pode constituir o vínculo de unidade ou de pertencimento dos variados ordenamentos jurídicos a uma mesma família do direito. Ainda merece grande destaque a maneira como estas leis são interpretadas e aplicadas, cujas características podem ser agora apontadas. Tratando-se de dois procedimentos que estão inteiramente ligados ao oficio do julgador, a interpretação é um recurso de aplicação do direito aos casos concretos. Por sua vez, o trabalho interpretativo sofreu diversas influências, desde aquela que orientava pela obediência restrita e gramatical ao texto legislativo, vislumbrando a existência de uma mens legislatoris75, até aquela que buscava encontrar a mens legis76, passando ainda pela Escola Livre do Direito e pela Escola da Jurisprudência dos Interesses. Embora estes modelos hermenêuticos sejam variados e de vocações distintas, é possível, num grau de generalidade amplo, apontar o que René David denomina de princípios comuns de interpretação da lei na família romano-germânica de direito. Estes princípios comuns representam uma “via média” observável na prática da doutrina e dos juízes, o que se admite sem prejuízo ao reconhecimento das variações de época, de lugar ou de ramo jurídico. Com estas reservas, podese indicar que os países de tradição romano-germânica têm como ponto de partida para a resolução de um caso concreto o recurso à lei escrita, mediante o 75 Segundo João Batista Machado (2000, p. 178), esta corrente interpretativa, ligada às idéias subjetivistas da interpretação normativa, orientava que “De entre as várias acepções que o texto legal comporta, deve prevalecer aquela que corresponda à vontade ou ao pensamento real do ‘legislador’”. 76 Trata-se de uma corrente que sucede a teoria subjetiva da interpretação jurídica, buscando superar a fase do codicismo e recebendo grande contribuição da Escola Histórica do Direito. A idéia central desta corrente é aquela segundo a qual a norma possui uma “vontade objetiva” que se desprende da vontade do legislador (autor). Deste modo, a norma possui um sentido imanente que cabe ao intérprete apreender.
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emprego de um raciocínio lógico que preserve a obediência ao texto elaborado pelo legislador. Contudo, nos dias atuais, esta obediência apenas se justifica se a interpretação gramatical e lógica do texto de lei conduzir a uma solução de justiça. Por isso, o intérprete e aplicador da lei possui certa liberdade no seu ofício, embora a forte tradição positivista o induza a dissimular, consciente ou inconscientemente, esta liberdade. Este aspecto da dissimulação da liberdade do aplicador da lei tem uma razão de ser: a fim de que não seja julgado como “arbitrário”, o juiz procura respaldar suas decisões em materiais legais, extraindo deles princípios que fundamentem sua atitude. Finalizando este primeiro esforço para descrever o estatuto da lei no cenário das fontes do direito contemporâneo, pode-se afirmar que nos encontramos hoje diante de certa independência dos juízes em relação à norma legislada, haja vista que, para a tradição romano-germânica, direito e lei não se confundem. Ou seja, no contexto do reconhecimento da lei como fonte hierarquicamente superior às demais, não se admite, porém, que ela atue sozinha, tão pouco que ela possa regular toda a realidade social sem recorrer a fatores extrajurídicos. Trata-se, enfim, de afirmar que “Os códigos apenas representam, para os juristas, um ponto de partida, não um resultado”77. b) Os Costumes Considerados como fontes jurídicas subsidiárias no regime adotado pela família romano-germânica, os costumes são caracterizados como usos duradouros, constantes e gerais que possuem força obrigatória78. Trata-se das mais antigas manifestações do direito, que predominaram até o aparecimento da lei escrita. Na lição de Angel Latorre costume é a “norma de conduta nascida na prática social e considerada obrigatória pela comunidade (...), de forma que sua violação acarreta uma responsabilidade de tipo jurídico e não meramente uma reprovação social”79. Dentre os principais defensores do costume como fonte jurídica, destacamse aqueles ligados à corrente do historicismo jurídico, destacadamente o jurista alemão Friedrich Carl von Savigny. Como grande representante da Escola Histórica do Direito, Savigny sustenta que o costume é a base da concepção do fenômeno jurídico e que este, assim como a linguagem e outras manifestações culturais, é fruto espontâneo do espírito popular. Tal escola sucede a tendência legalista (racionalista) que se formou na marcha da Revolução Francesa, fazendolhe oposição. Contudo, é tida por muitos juristas como uma tendência romântica, 77 René David, Op. Cit., p. 110-111. 78 Duradouros por se prolongar no tempo; Constantes [e uniformes] por serem aplicados em idênticas situações, agindo-se sempre da mesma maneira; e Gerais por alcançar a totalidade de pessoas e atos. Estes aspectos distinguem o costume jurídico dos meros usos sociais (mores e folkways), pois a estes últimos falta a convicção que gera a sua obrigatoriedade. 79 Angel Latorre, Op. Cit., p. 81. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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assim como são românticos os seus conceitos de povo e espírito. Quanto à caracterização dos costumes enquanto fontes de regras jurídicas obrigatórias, Savigny defende que o costume possui dois elementos, sendo apenas o segundo deles considerado de caráter essencial: 1º) elemento objetivo (o uso reiterado) e 2º) elemento subjetivo (a convicção jurídica de sua necessidade e obrigatoriedade – o reconhecimento do uso como idôneo para regular os comportamentos de determinado grupo). Já outros juristas, como Jellinek e Ferrara, consideram que apenas a constante repetição do costume é o que dá origem à sua juridicidade. A uma terceira corrente, entretanto, é que se filia a maioria dos juristas contemporâneos, dentre os quais juristas brasileiros como Clóvis Beviláqua, Washington de Barros Monteiro e Vicente Rao. Para esta maioria de estudiosos da natureza jurídica dos costumes, eles são formados por dois elementos necessários: o uso e a convicção jurídica de que a norma é necessária e obrigatória. Contudo, uma vez que os costumes são de difícil prova, requer do julgador elevada perspicácia para identificá-lo enquanto fonte de comportamentos obrigatórios:“O bom órgão judicante, como nos ensina Machado Neto, deverá sempre, ao aplicar quaisquer das espécies de costume, estar armado de um certo grau de sensibilidade e faro sociológico para descobrir o ponto de saturação em que um uso pode ser invocado como jurídico”80. Embora entre os melhores doutrinadores o costume tenha ainda papel preponderante para o direito – haja vista constituir a base sobre a qual o direito é construído, condicionando inclusive sua interpretação e aplicação -, ele não encontrou na tendência positivista que dominou os séculos XIX e XX a devida valorização. Ao contrário, seu estatuto foi reduzido a um papel secundário, submetendo-se à lei. Segundo Mario G. Losano, duas explicações podem traduzir a razão pela qual se deu esta desvalorização do costume enquanto fonte jurídica, uma de ordem prática e outra de natureza teórica. No que tange ao aspecto pragmático, fala-se do recurso quase exclusivo do prático do direito ao direito escrito, o que lhe afasta da busca de soluções jurídicas concretas no âmbito consuetudinário. Já no sentido teórico, é a primazia da doutrina positivista que lhe retira o valor, uma vez que se trata de fonte não estatal do direito81. Hoje, admite-se o costume como fonte subsidiária do direito legislado quando este apresenta lacunas de previsão, desde que assim a própria lei disponha. De tal modo, como fontes supletivas que são, os costumes estão abaixo da lei e o magistrado apenas poderá a eles recorrer quando esgotadas as potencialidades legais para preencher a lacuna legislativa. Os costumes, portanto, são valiosa contribuição para a integração do 80 Maria Helena Diniz, Op. Cit., p. 465. 81 Mario G. Losano, 1978, p. 114.
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direito, não somente diante da lacuna normativa (caracterizada pela ausência de lei para regular certo caso concreto), mas também, no entendimento dos mais alternativistas, diante da lacuna axiológica (configurada diante da existência de lei aplicável ao fato que, porém, sendo norma injusta ou inconveniente, merece ser afastada)82 e da lacuna ontológica (ocorre quando há desajustamento entre os fatos e as normas – como se infere da interpretação dada ao art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro em vigor83). Por este papel regulado que os costumes possuem no sistema do direito contemporâneo romano-germânico é que Angel Latorre afirma: “Nestas circunstâncias, não é ousado sustentar que o costume existe no âmbito dos Estados modernos por concessão do próprio Estado...”84. Para René David, não se deve ceder a exageros, ou seja, na análise de seu verdadeiro papel como fonte do direito, o jurista não deve se influenciar excessivamente, seja pela tendência a uma subestimação, seja pela supervalorização do costume. Segundo o autor, “ele [o costume] não é senão um dos elementos que permitem descobrir a solução justa. Esse elemento, nas sociedades modernas, está longe de ter a importância primordial que se atribui à legislação. Mas está igualmente longe de ser tão insignificante como tem pensado a doutrina do positivismo legislativo”85. c) Os Princípios Gerais do Direito Como forma de fazer do direito instrumento de alcance da justiça, admitese, também enquanto fonte subsidiária da lei positivada, o recurso aos princípios gerais do direito. Na lição de Angel Latorre86, tais princípios são enunciados de caráter geral que devem inspirar as particulares resoluções de casos concretos. Como princípios que são, comportam aplicações indefinidas e esta é uma das características do direito romano-germânico: o uso de expressões e conceitos abertos que possam ser interpretados conforme cada época e que consintam seu emprego elástico. Trata-se de preceitos que preexistem ao ordenamento jurídico positivo e que, por isso, fornecem-lhes as bases para o seu fundamento, muitas vezes relacionadas aos argumentos do direito natural (doutrina tradicional). Segundo Tércio Sampaio Ferraz Júnior, os princípios gerais são “reminiscência do direito natural como fonte”87. A tradição do Direito Natural acredita que estamos todos sujeitos, involuntariamente, a tais preceitos (ou leis), em razão da nossa 82 Neste caso, Maria Helena Diniz assinala que até os costumes contra legem são admitidos pelos juízes e tribunais, embora esta posição suscite muitas polêmicas (Op. Cit., p. 464 e 465). 83 “Art. 5º - Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. 84 Angel Latorre, Op. Cit., p. 85. 85 René David, Op. Cit., p. 113. 86 Op. Cit., p. 87. 87 Tércio Sampaio Ferraz Júnior, 2008, p. 247. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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natureza humana. Por isso, segundo a tese jusnaturalista, o direito positivo deve ser elaborado segundo os fundamentos desta ordem da natureza: “Os princípios de direito, assim, seriam normas não-positivas – quer dizer, não editadas por autoridade investida de competência – reveladas pelos estudiosos do direito, a partir do estudo da natureza do ser humano, e às quais deve conformar-se o ordenamento jurídico”88. Contudo, existem autores que preferem identificá-los com a idéia de equidade ou com os antigos preceitos do direito romano. Sua melhor compreensão teórica e conceitual é a de que os princípios não são verdadeiramente ‘normas’, mas sim fazem parte das regras estruturais do sistema normativo que elas integram: “são regras de coesão que constituem as relações entre as normas com um todo”89. Seu caráter obrigatório, portanto, não repousa num sentido estritamente dogmático, mas no seu papel de garantir coesão global para o sistema normativo, dando-lhe o sentido geral de imperatividade. Por isso é que a idéia hoje dominante considera os princípios como preceitos que devem se referir ao sistema jurídico de cada Estado, não tendo vinculação a um direito natural universal. Na realidade concreta, o que se tem em prevalência nos dias atuais é a compreensão de que os direitos naturais apenas podem ser evocados na medida em que correspondem à substância do ordenamento jurídico estatal em vigor, condição sem a qual não teriam eles êxito enquanto fonte do direito. Assim, deve existir harmonia entre os princípios descobertos pelo julgador e o ordenamento no qual ele se insere, não podendo haver oposição entre ambos. Isso é medida preventiva, que busca evitar o emprego arbitrário de tais preceitos, ao sabor das convicções pessoais do julgador. Outrossim, uma contradição entre a ordem dos princípios e a ordem da normatividade acarretaria a fragilidade da própria organicidade e unicidade lógica do ordenamento jurídico em vigor, o que seria incompatível com a racionalidade do sistema de fontes de tradição romano-germânica, ainda dominado pela tradição positivista. Por força desta necessidade de harmonia, os princípios do direito podem estar expressos na norma ou da norma serem revelados. Para o primeiro caso, é pacífica a força normativa do princípio, diferentemente para o último caso, muito embora o ponto de partida desta ‘revelação’ resulte do trabalho dos estudiosos do próprio direito positivo, labor que procura encontrar na norma positivada os seus valores fundamentais. Os princípios gerais de direito, assim, são mais uma alternativa deixada à disposição do julgador para integrar o direito diante de lacuna. Neste caso, esgotadas as possibilidades de aplicar a lei e os costumes, supre-se a insuficiência de previsão legal com estes princípios, que, embora nem todos estejam expressamente normados, podem ser ‘descobertos’, uma vez que implícitos no próprio ordenamento jurídico vigente. Deste modo, hoje se observa com maior 88 Fabio Ulhoa Coelho, 2006, p. 67. 89 Ferraz Júnior, Op. Cit., p. 248.
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freqüência o próprio legislador remetendo o juiz à aplicação de princípios, o que caracteriza uma espécie de delegação de poderes concedida pelo ente legiferante (princípios gerais expressos). Noutros casos, quando não há a remissão expressa do legislador, o julgador pode, dependendo de sua visão de mundo e inclinação ideológica, valer-se dos princípios gerais quando assim vislumbrar necessário para alcançar a justiça, pois, como bem assinala René David, “os juristas da família romano-germânica não estão prontos a aceitar uma solução que, no plano social lhes pareça injusta”90. O recurso aos princípios gerais finda, portanto, por ser laço entre o direito e justiça91, devendo aquele se subordinar a esta. Ao lado do direito legislado, atua o poder persuasivo e normativo destes princípios, que colaboram para completar aquilo que o direito objetivo não alcança, seja por suas insuficiências, seja por sua tendência deliberada de fornecer apenas diretrizes gerais, utilizando expressões abertas que permitem ao aplicador do direito a produção de uma norma particular para cada caso concreto. d) A Doutrina Entende-se por “doutrina” a atividade desenvolvida pelos estudiosos do direito ou o trabalho científico de juristas na análise e sistematização de normas, na elaboração de conceitos e na interpretação das leis, com vistas a facilitar o processo de aplicação do direito. Em alguns países da comunidade romano-germânica, a exemplo do Brasil, ainda existe um resíduo de divergência quanto a saber se a doutrina constitui ou não fonte jurídica. Embora nossa Lei de Introdução ao Código Civil, no seu art. 4º, não a considere como tal92, entre os teóricos ainda sobrevivem posicionamentos distintos: aqueles que negam o status de fonte jurídica para a doutrina, fundamentam-se no argumento de que o trabalho doutrinário não gera direito novo, nem pode modificar normas em vigor, mas apenas colabora para melhor compreender a prescrição já existente; ou seja, enquanto que o efeito da norma é prescritivo, a doutrina é descritiva93. O jurista brasileiro Miguel Reale94 também nega a natureza de fonte para a doutrina, ao afirmar que ela apenas produz esquemas teóricos e não modelos dogmáticos com força obrigatória, como é o caso das fontes jurídicas. Nesta linha de raciocínio é que também se situa Angel Latorre95, para quem a doutrina exerce uma influência apenas persuasiva e não 90 René David, Op. Cit., p. 136. 91 É comum nas várias doutrinas jurídicas ter a justiça como elemento nucleador dos princípios gerais, podendo ser eles entendidos como verdadeiros “princípios gerais de justiça”. 92 “Art. 4º - Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. 93 Paulo de Barros Carvalho, citado por Maria Helena Diniz, 2006, p. 320. 94 Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, 1977. 95 Angel Latorre, Op. Cit., p. 91. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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de norma vinculativa. Contudo, existem aqueles que a consideram como fonte material do juiz e do legislador, que nela se inspiram para aplicar corretamente o direito ou para elaborar as leis. No mesmo sentido existem aqueles que a consideram fonte indireta, uma vez que, se a obra doutrinária não pode ser obrigatoriamente aplicada, pode ser acatada pelo julgador ao sentenciar ou ser utilizada pelo legislador ao produzir ou emendar a lei. Assim, sua influência dependerá do prestígio do autor e de sua reputação no universo jurídico. Sob a forma de ‘argumentos de autoridade’, a doutrina exerce papel inegável na elaboração, interpretação e aplicação do direito. Para além de mera fonte de inspiração, porém, a doutrina já representou uma das fontes do direito mais importantes de nossa história. No esplendor da Roma Antiga, a opinião dos juristas exerceu papel importantíssimo na definição do direito a ser aplicado. Recebendo a designação de “Respostas dos Prudentes” (Jurisprudência), manifestava-se por meio de pareceres ou decisões daqueles juristas que possuíam a prerrogativa de fixar o direito, pois tinham em si investido o poder de responder oficialmente às consultas que lhes eram endereçadas, poder esse outorgado por Augusto. Com a recepção do direito romano na Europa, a doutrina também exerceu grande influência ao realizar a interpretação do Corpus Juris e ao assumir a posição de ‘argumento de autoridade’ na ciência jurídica medieval. A communis opinio doctorum96 tem nesta época valor vinculativo e, antes dela, não se questionava a autoridade da Glosa Magna de Acúrsio: ... o personagem que guiava a interpretação era, acima de todos, o douto, na sua dúplice vestimenta de escritor de obras reconhecidas e de docente universitário. Segundo as épocas e os lugares vigorava a opinião deste ou daquele teórico ou a opinião comum de um certo número de doutores. A citação da passagem romana surgia pela forma, mas era acompanhada da menção ao intérprete. Assim, a legitimação (incontestada) conferida à fonte romana se refletia na fonte doutoral97. [...] Na vida do direito, as páginas mais belas são escritas quando o direito é criado pelos sábios98. Assim, neste período de resgate dos estudos de direito romano nas universidades (séculos XIII a XIX), a doutrina exerceu grande força obrigatória. Ali, os estudos da ciência jurídica foram a base essencial para a melhor criação e aplicação do direito, assumindo centralidade os princípios que eram ensinados nos bancos escolares. Contudo, com o fenômeno da codificação, a doutrina perde prestígio e se eleva a fonte legislada como aquela de nível superior. Embora a regra geral não atribua à doutrina força vinculante, fixando-se como regra obrigatória, seu papel continua a ser da maior importância, cabendo-lhe a tarefa de delimitação dos conceitos jurídicos e dos seus métodos de aplicação e 96 Largamente tratada por Bártolo e seu discípulo Baldo. 97 Rodolfo Sacco, 2001, p. 100-101. 98 Idem, p. 248.
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interpretação. e) A Jurisprudência Segundo Maria Helena Diniz, a jurisprudência é “o conjunto de decisões uniformes e constantes dos tribunais, resultantes da aplicação de normas a casos semelhantes, constituindo uma norma geral aplicável a todas as hipóteses similares ou idênticas. É o conjunto de normas emanadas dos juízes em sua atividade jurisdicional”99. Pode-se dizer que está na sua admissão – ou não – como fonte de direito que reside uma das principais diferenças entre a família romano-germânica e o sistema jurídico da Common Law. No primeiro caso, a jurisprudência (precedentes judiciais/jurisprudenciais) não constitui fonte do direito oficial, enquanto que neste último, caracteriza-se como a principal expressão de sua ordem vinculativa. Segundo Tercio Sampaio Ferraz Júnior, essa diferença se deve ao papel que o julgador desempenha em um e noutro sistema. No sistema da Common Law, o juiz mantém o prestígio que gozava desde a Idade Média, desfrutando de proeminência social e política. Desde o século XIII, a cultura anglo-saxônica costumava citar os precedentes (os casos e suas decisões: os Case Law), embora ainda sem força vinculante. Aos poucos foi sendo aceita pela doutrina seu caráter obrigatório, o que definitivamente vem a ser aceito nos séculos XVII e XVIII. Neste sistema, as instâncias inferiores estão vinculadas às decisões das instâncias superiores, valendo salientar que o que vincula é a ratio decidendi do precedente, de modo que é o princípio geral do direito que fundamenta a decisão que está no centro da obrigatoriedade do sistema. Assim, a ratio decidendi nunca perde sua validade, podendo ser evocada desde que se demonstre sua utilidade para o caso concreto em análise. Já a tradição romanista não admite a jurisprudência como fonte do direito desde as prescrições existentes no Código de Justiniano (“non exemplis, sed legibus judicandum est” – Codex 7, 45, 13). A Idade Moderna reforça este preceito ao submeter o julgador à lei positiva, fundada, dentre outras razões, na “desconfiança social em face da figura do juiz [...]. Essa desconfiança é bem clara na época da Revolução Francesa, pois os juízes eram vistos como homens do Antigo Regime, tanto que o direito pós-revolucionário cuidou de limitar-lhes o poder, no que foi acompanhado pela doutrina, segundo a qual o juiz aplica o código e nada mais do que isso”100. Portanto, o sistema romano-germânico, diferentemente do anglo-saxão, não confere à jurisprudência ou ao precedente força vinculante, não criando direito novo, nem obrigando o 99 Maria Helena Diniz, Op. Cit., p. 295. 100 Ferraz Júnior, Op. Cit., p. 245. Angel Latorre (Op. Cit., p. 88 e ss) também confirma nos princípios da Revolução Francesa a forte rejeição à jurisprudência como fonte do direito, dada a exaltação à supremacia da lei e ao princípio da separação de poderes. Neste sentido, além de prestigiar uma fonte que nascesse da razão legislada do Estado em prejuízo das demais, a Revolução de 1789 consagra a diferença entre criação e aplicação da norma, cabendo ao poder legislativo a primeira tarefa e ao poder judiciário limitar-se à segunda. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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julgador a seguir sua razão. O princípio aplicado é o da ‘livre convicção do juiz’, segundo o qual o aplicador do direito deve julgar dentro dos limites da lei e conforme sua consciência. Mesmo dentro da tradição romanista, existem aqueles que defendem o poder de fonte jurídica para a jurisprudência, fundados no fato de que a atuação dos tribunais gera um conjunto de decisões que se incorporam à vida do direito, adquirindo os traços de uma espécie de “costume judiciário que se forma pela prática dos tribunais”101. Assim, a jurisprudência se aplica como normas individuais para os casos concretos: Logo, a jurisprudência atua como norma aplicável a todos os casos que caírem sob a sua égide, enquanto não houver nova lei ou modificação na orientação jurisprudencial... É fonte não só porque influi na produção de normas jurídicas individuais (sentença, p. ex.), mas também porque participa no fenômeno de produção do direito normativo, desempenhando relevante papel, apesar de sua maleabilidade102. Contudo, esta posição é minoritária, mesmo não se negando o papel orientador da jurisprudência para a prática do direito ou seu caráter integrador da norma legislada em alguns casos, configurando verdadeiro ‘costume praeter legem’. Neste sentido, sob uma ótica mais pragmática, observa-se que ao aplicador da lei a importância da jurisprudência tem sido cada vez mais crescente, muito embora, como destaca René David, esse crescimento seja escamoteado pelo fato de nossos juízes não assumem sua função criadora, protegendo-se sempre sob o manto da interpretação da lei. Portanto, embora não reconhecida pela doutrina dominante e tradicional como fonte do sistema romano-germânico, torna-se difícil mensurar a exata influência da jurisprudência como fonte jurídica, bem como de que modo ela contribui para a evolução do direito, mesmo sendo sua contribuição diferente daquela realizada pelo legislador – ou seja, a diferença existente entre a regra de direito produzida pela jurisprudência e a regra jurídica legislada. Antes de tudo porque a jurisprudência somente atua (e cria) sobre aquelas bases pré-fixadas pelo legislador, ou seja, seu movimento apenas se dá dentro da moldura legislativa já existente. Em segundo lugar, porque as regras de direito criadas pela produção jurisprudencial têm alcance limitado, vinculam apenas as partes envolvidas no processo e ao possuírem apenas o potencial de se expandir para outros casos, sua força é maleável, podendo ser rejeitadas ou modificadas a qualquer momento103.
101 Maria Helena Diniz, Op. Cit., p. 297. 102 Idem, p. 299. 103 Desta opinião também comunga René David (Op. Cit., p. 120) para o qual “A regra jurisprudencial apenas subsiste e é aplicada enquanto os juízes – cada juiz – a considerarem como boa”.
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6. Conclusão: o paradigma da primazia da lei e os desafios do direito atual O estudo das fontes do direito contemporâneo do sistema romanogermânico nos levou a temas tangenciais que, embora pareçam secundários, são fundamentais para a compreensão da racionalidade do sistema de fontes nesta família adotado. Numa síntese simplificadora, pode-se dizer que hoje o estado da questão se resume a três grandes categorias teóricas e práticas do direito: a postura monista (o direito como produto da criação exclusiva do Estado), a postura dualista (o direito tem, além da lei positivada, sua expressão nos costumes, embora de maneira limitada) e a postura pluralista (o direito pode ter origem num conjunto variado de fontes, como a lei, os costumes, a jurisprudência, as práticas extrajudiciais, dentre outras). Vimos que a racionalidade do direito contemporâneo deu grande primazia à lei positivada como fonte por excelência do direito, o que tem relação com uma série de condicionantes de caráter extrajurídico. Ou seja, “Um sistema de fontes não é fruto do acaso ou do capricho, mas sim conseqüência de múltiplos factores políticos, sociológicos e ideológicos, e através dele transparece um conjunto de idéias e de factos dominantes na comunidade a que se aplica. O predomínio da lei como fonte indica a intensidade crescente do poder do Estado e da sua organização e actividades perante as normas espontâneas de criação do Direito, como o costume”104. Deste modo, e conforme podemos verificar, o que forjou as características do direito contemporâneo aqui estudado muito se relaciona com as expectativas e conseqüências das revoluções burguesas, que marcaram uma transição de um quadro caracterizado pela instabilidade e pelo uso do poder despótico - vigente no Antigo Regime - para um novo período de exaltação do racionalismo e de limite de poderes pela via da legalidade. Investigar o porquê do conteúdo de um dado sistema jurídico e de sua forma nos levaria a um trabalho que extrapola os limites do presente estudo. Contudo, é desejável assinalar a sua importância para que tenhamos a mais verossímil interpretação do fenômeno jurídico, tarefa que vai além do estudo apenas de suas fontes. Como nosso trabalho se deteve às formas de criação do direito, embora as sucessivas recorrências ao contexto extrajurídico deste formalismo, não chegaremos a conclusões no âmbito da razão dos conteúdos do direito na contemporaneidade, mas apenas suscitaremos reflexão a respeito dos motivos que explicam o sistema de fontes jurídicas em nossa época e dentro da tradição romano-germânica aqui tratada. Como o grande traço do direito contemporâneo é o fenômeno da codificação, com sua conseqüente valorização da lei enquanto fonte jurídica, podemos desta experiência extrair duas conseqüências ou conclusões dialéticas, ou seja, os seus aspectos positivos e negativos. Enquanto aspecto positivo, o grande benefício da codificação foi a formulação lógica e racional de um direito sistematicamente 104 Angel Latorre, Op. Cit., p. 68-69.
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organizado, conferindo maior clareza e certeza ao ordenamento jurídico vigente, assim como destaca-se sua contribuição em grande monta para a própria disseminação do direito romano-germânico, tanto na Europa, quanto em outros sítios105. O aspecto negativo, entretanto, liga-se à redução da idéia de direito: as universidades deixam de estudar o fenômeno jurídico enquanto a busca do justo para exaurir seu exame nos novos textos legais, retomando o raciocínio exegético que prevalece no denominado ‘positivismo legislativo’. Para além desta questão epistemológica, o sistema de fontes em apreço vem suscitando outras conseqüências negativas, o que evidencia, cada vez mais, os sinais de esgotamento de seu modelo de racionalidade. Estamos nos referindo à conseqüência prática da redução do direito à lei e da sua inevitável desatualização em face da realidade concreta. Ora, uma vez que a lei positivada tem vocação estabilizadora, ou seja, tende a se estabilizar no tempo, bem como tem a ambição de estabilizar a realidade, o contexto em permanente mutação no qual vivemos apenas reforça a inaptidão desta racionalidade para gerir a vida social contemporânea. Assim, aquele ânimo que estava no cerne das revoluções liberais e no espírito das codificações, no sentido de que a lei é a forma mais adequada e segura de expressar o direito e garantir a certeza das relações sociais, finda por ser a razão de seu próprio perigo nos dias atuais. Ademais de designar o método de descoberta ou criação do direito contemporâneo, o ideário dos finais do período moderno também tem demonstrado seus sintomas de desgaste no aspecto material, em face da consagração meramente formal de certos direitos até hoje nunca realizados. Para sanar estas distorções, a mudança no papel do Estado (que passa de liberalabstencionista para Estado de bem-estar-intervencionista) foi fundamental, embora não tenha resolvido, de maneira estruturante, os problemas sociais gerados pelo funcionamento do capitalismo como modo de produção burguês. Outra questão que também se coloca como fonte de preocupação diz respeito ao afastamento que a tendência codificadora gerou entre o direito e a justiça e a conseqüente crise que os órgãos judiciais enfrentam na atualidade, atingindo a própria credibilidade do direito enquanto forma de regulação e resolução de conflitos. O direito, que se configura como a última instância à qual recorre o cidadão para resolver a colisão de interesses, não é mais o depositário da confiança pública, o que vem resultando num fenômeno que atinge a alguns ramos do direito, denominado por Boaventura de Sousa Santos como o “declínio da litigiosidade”, que nada mais é que o reflexo da descrença no judiciário, da dificuldade do acesso à justiça e da busca de formas alternativas de resolução de litígios106. Assim, a postura monista que tem no Estado a fonte exclusiva de criação e aplicação do direito é um paradigma que merece ser devidamente repensado. 105 A família romano-germânica teve grande expansão para fora da Europa, sobretudo por força dos processos de colonização empreendidos pelos franceses, espanhóis, portugueses e holandeses. 106 Boaventura de Sousa Santos, Pela Mão de Alice: o social e o Político na Pós-modernidade, 2001.
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Os sintomas de sua incapacidade em abarcar toda a realidade pelos princípios e preceitos dos códigos já podem ser sentidos, do mesmo modo que sua deficiência já é evidente na tentativa de monopolizar a administração da justiça, ante a infinidade de causas que não consegue solver, seja no aspecto formal (decisão do poder judiciário para pôr fim a uma demanda) seja no sentido material/ substancial, oferecendo soluções de justiça para os casos concretos. As críticas ao modelo de racionalidade que aqui destacamos ainda não cessam nestas questões. Pode-se dizer que existe um conjunto teórico de produções que se filiam em torno das críticas que endereçam ao modelo positivista como eixo central do sistema de fontes atual, muito embora tal produção crítica não constitua um movimento homogêneo de pensamento ou integrado nas suas diversas perspectivas. Contudo, já parece ser suficiente para constituir uma reunião de enunciações hábeis a gerar um conhecimento do direito que enseje o seu questionamento social mais profundo. Conforme bem assinala o jurista brasileiro Clèmerson Merlin Clève, neste conjunto de novos olhares para o direito, pode-se encontrar um ponto de interseção epistemológica que aqui merece destaque: o objetivo de “estabelecer, concreta e positivamente, a cientificidade de um saber interrogante, crítico e questionador”107. Para o autor, muito embora as diferenças de perspectivas existentes dentro do próprio pensamento crítico, alguns propósitos comuns podem ser, por outro lado, identificados, convergindo para a denúncia ideológica, a recusa aos dogmas e a reconstrução da ciência jurídica. Por outro lado, embora já se reconheça no mundo jurídico que o direito não pode ser reduzido aos limites da lei codificada, ainda não temos uma superação completa do paradigma vigente. O reconhecimento de suas limitações e deficiências apenas atenua seus excessos, mas não representa a emergência de uma nova forma de pensar, criar, organizar e aplicar o direito. A fuga ao positivismo legislativo já pode ser tido como um avanço na prática jurídica, muito embora algumas tradições se conservem imutáveis em certos ordenamentos jurídicos ou na visão de mundo de muitos juristas. Contudo, para além de se redefinir o sistema de fontes do direito contemporâneo, muitos problemas que influenciam ou que cabe ao direito solver surgem com impactos nunca vistos. As mudanças são consideráveis e já não se pode pensar na atualidade como um período que mantém traços uniformes desde a Revolução Francesa. Alguns historiadores do século XX, a exemplo de Eric Hobsbawm108 e Hannah Arendt109, assinalam que a história contemporânea vem passando por sobressaltos violentos, particularmente em virtude da experiência das grandes guerras e das barbáries que o homem já foi capaz de cometer. O 107 Clèmerson Merlin Clève, O Direito e os Direitos: elementos para uma crítica do Direito Contemporâneo, 2001, p. 79. 108 Eric Hobsbawm, Historia del siglo XX. Barcelona: Crítica, 1995. 109 Hannah Arendt, “O Totalitarismo”, In Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 339-531. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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desencanto que experimentamos coloca em causa o projeto político e jurídico moderno, hoje incapaz de gerir muitos dos males do século XX. Por isso, é muito comum o balanço pessimista que os mais diversos intelectuais têm da atualidade, o que só revela a falência dos modelos vigentes. A expectativa que animava o iluminismo e que construiu as bases do Estado e do Direito contemporâneo são hoje irrealizáveis. A história, com as experiências do século XX, já demonstrou que não é linear, ou seja, que não progride sucessivamente para o avanço e para a evolução, rumo ao que há de “melhor” ou mais “desenvolvido”. Igualmente, a idéia de cálculo e de previsão, cerne do racionalismo que animou a tendência codificadora, também se curva aos acontecimentos imprevisíveis ou incontroláveis dos novos tempos. Assim, a grande questão que se coloca é saber até que ponto a racionalidade jurídica da codificação estatal e do controle do poder pelo direito dá respostas aos problemas da atualidade. Por tudo isso é que, em virtude dos novos desafios para o direito e as demais ciências, muito se fala em ‘crise de paradigmas’. Segundo Thomas Kuhn110, uma crise de paradigma representa uma alternativa de mudança, ou seja, a crise é condição prévia para o surgimento de novas teorias. No tema em apreço, muitas teorias vêm surgindo em reação ao dogmatismo formalista que endereça ao Estado o status de única fonte válida do direito e que tem na lei a sua única e legítima forma de criação. Estas reações têm pontos de vista variados, mas todas coincidem no esforço de descrever o momento atual da racionalidade jurídica como um momento de crise e de propor alternativas a esta racionalidade. Contudo, antes de avaliar se estamos ou não diante de uma tendência que vislumbre a mudança do paradigma jurídico das revoluções liberais, é necessário caracterizar se estamos realmente diante de uma crise do direito atual e para tratar deste ponto, não podemos deixar de situar o tema jurídico dentro do contexto científico e epistemológico geral. Ao examinar o estatuto da ciência no presente, pode-se reconhecer algumas ‘fraturas’ em relação às crenças que edificaram o mito da cientificidade moderna. A ciência foi concebida como forma de produção de conhecimentos válidos e verdadeiros, uma vez que submetidos a métodos rigorosos e apreendidos pela razão humana. No pensamento ocidental moderno, várias dialéticas eram suscitadas para distinguir a realidade: a dialética do ‘verdadeiro-falso’, do ‘refutável-irrefutável’, do ‘laico-religioso’, da ‘ordem-desordem’. A ciência estaria no lugar donde seria possível descobrir as leis que regulam o funcionamento das coisas, resultando no próprio controle (ordem) da natureza. Este axioma não ficou apenas adstrito às ciências naturais, mas foi expandido para os saberes sociais e humanos, na tentativa destes obterem, com o emprego de seus métodos e princípios, o status de conhecimento científico. O direito não escapou a tal tentação e trouxe para seu universo uma forma de racionalidade que incluía as 110 Thomas Kuhn, As Estruturas das Revoluções Científicas, 1997.
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regras lógicas das ciências físicas, simbolizada na tese do positivismo jurídico de Hans Kelsen. Também entendendo a realidade à luz da dialética ordem-desordem, caberia ao direito garantir a ordem mediante leis lógico-formais, extraídas da razão humana e isentas de influências subjetivas (extrajurídicas). A ordem, segundo entendimento científico geral, significaria um estado de unidade, já a desordem se daria quando os elementos constituintes de um determinado conjunto se comportam como se não formassem parte de um todo. Com as descobertas da ciência desde o século XVIII, já se admite uma nova forma racionalidade científica em que não se busca mais fulminar radicalmente a desordem em benefício da ordem, uma vez que ambas caminham juntas e inseparáveis na realidade concreta: este é o entendimento que define a epistemologia contemporânea e a distingue da racionalidade moderna... os termos ‘desordem’ e ‘contingência’ já fazem parte das reflexões e do vocábulo científico como léxicos normais. Esta descoberta, contudo, não veio de revelações inteiramente abstratas, mas da constatação de que quando um paradigma tem dificuldades de ajustarse à realidade, logo se deve pôr em causa sua estabilidade e validade. Estas constatações decorrem de aspectos observáveis, como as contradições do paradigma vigente, com seus resultados não desejados ou a falsidade de suas conclusões. Quando estes problemas aparentam não ter solução, já podemos admitir a existência de ‘anomalias’ dentro do paradigma. No âmbito do direito, fala-se em crise desde meados do século XX, o que se converteu em modismo pouco tempo depois. A idéia de que a lei positivada seria fonte inesgotável de ordem, paz e equilíbrio não se sustenta diante da realidade concreta, inabarcável e incontrolável pelas leis do legislador. Ora, ao historiador do direito é consentido observar que as crises do direito ao longo da história da humanidade estão intrinsecamente ligadas às grandes crises históricas que dizem respeito aos diversos aspectos da vida social. Diante das evidências do século XX e dos problemas hoje enfrentados no alvorecer do século XXI, cabe ao jurista examinar se os fenômenos agora percebidos caracterizam uma verdadeira crise histórica e até que ponto isto interfere no paradigma jurídico tradicional. Os problemas do controle dos poderes, a questão ambiental, o surgimento de uma nova forma de terrorismo, o fenômeno da globalização, as deficiências do Estado Social e sua incapacidade de criar as condições de realização de direitos cada vez mais crescentes são alguns destes fenômenos que cabe ao direito administrar. Por fim, ao colocar em causa todos os aspectos que denunciam o esgotamento do paradigma do legalismo iluminista, não queremos operar uma apologia ou previsão apocalíptica, tão pouco tomar a voz dos alarmistas e pessimistas ante o futuro. Sambemos que o primeiro passo para alcançar uma solução viável é se debruçar sobre os pontos frágeis que se encontram na raiz dos problemas e por isso nos permitimos esta última provocação, com o único fim de fomentar Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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o esforço reflexivo em torno da presente questão. Portanto, aqui não temos a pretensão de dar respostas, mas apenas de colocar perguntas que mobilizem a inteligência humana na busca de novas alternativas. Estas alternativas não excluem ou abandonam o direito como principal ferramenta para viabilizar os meios exeqüíveis da resposta que precisamos, pois apenas ele, no seu sentido mais amplo, pode conter o indesejável e instituir o pretendido, embora nunca sozinho. Como bem coloca María José González Ordovás111, “las normas sieguen siendo (...) el cemento de la sociedad y que las perguntas que nos hagamos en el ámbito jurídico pueden seguir siendo las mismas, pero las respuestas son otras”. O que importa, portanto, não é abandonar as perguntas de partida que sempre animaram o direito, mas sim atingir novas respostas, pois são outros pontos de chegada que nos desafiam na atualidade, impondo definitivamente nossa responsabilidade no condicionamento do futuro. Bibliografia ALBUQUERQUE, Ruy de; ALBUQUERQUE, Martim de. História do Direito Português: 1140-1415. Vol. I. Lisboa: Sintra, 2005. AMARAL, Luiz Otávio de Oliveira. Teoria Geral do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. ARNAUD, André-Jean ...[et al]. Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. BALAGUER, Francisco Callejón. Fuentes del Derecho: princípios del ordenamiento constitucional. Madrid: Tecnos, 1991. BARROSO, Luís Roberto. A História das Constituições. O Estado de São Paulo. Publicado em 08/07/2007. Disponível em: http://www.revan.com.br/catalogo/0361e.htm. Acesso em: 03 de Março de 2008. CAETANO, Marcello. História do Direito Português. Lisboa: Editorial Verbo, 1992. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2001. CARNELUTTI, Francesco. Teoría General del Derecho. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1955. CLÈVE, Clèmerson Merlin. O Direito e os Direitos: elementos para uma crítica do direito contemporâneo. São Paulo: Max Limonad, 2001. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil, Vol. I. São Paulo: Saraiva, 2006. DAVID, René. Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1998. DE SALIS, J. R. Historia del Mundo Contemporaneo. Tomo I – Los Fundamentos Historicos del Siglo XX. Madrid: Ediciones Guadarrama, 1960. DEL VECCHIO, Giorgio. Filosofía del Derecho. Barcelona: Bosch, 1969. 111 Ineficacia, Anomia e y Fuentes del Derecho, 2003, p. 115.
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A nova legislação francesa sobre obrigações dos ISP’S quanto a retenção dos dados dos ...
A nova legislação Francesa sobre obrigações dos ISP’s quanto à retenção dos dados dos infractores e o respeito dos direitos de propriedade intelectual1 Sónia Queiroz Vaz2 I. Enquadramento do tema O Acordo Olivennes foi um contrato assinado em França entre os ISP’s e a indústria de entretenimento, após o pedido dirigido em Setembro de 2007 pela Ministra Francesa da Cultura, Christine Albanel ao então CEO da FNAC, Denis Olivennes, para criar uma comissão de estudo, entre outros temas relacionados, de uma possível sanção por violação do direito de autor devido a utilizações não autorizadas de obras protegidas através da Internet. Após a audição de representantes da indústria de entretenimento, de fornecedores do serviço de acesso à Internet e de associações de consumidores, foi apresentado um relatório de conclusões do estudo em Novembro de 2007. O relatório foi assinado por cerca de 40 empresas e foi apresentado como Acordo Olivennes. Este acordo esteve na base da conhecida Lei francesa HADOPI3, também conhecida como Lei “Creation and Internet” que procedeu à alteração do Código da Propriedade Intelectual Francês. O objectivo desta alteração legislativa foi, entre outros, o de promover a distribuição e a protecção de obras criativas, protegidas pelo direito de autor, na Internet e a mesma foi aprovada em 2009. A lei pretende controlar e regular o acesso à Internet como forma de estimular o respeito das leis relativas ao direito de autor.
Conferência proferida na Universidade Lusíada de Lisboa, no Colòquio “Direito de Autor e Sociedade de Informação. Perspectiva no início do Séc. XXI”, em 6 de Novembro de 2009. 2 Advogada (Cuatrecasas, Gonçalves Pereira e Associados, RL). ... 3 Loi n. 2009-699 du 12 juin 2009 - Loi favorisant la diffusion et la protection de la création sur Internet. 1
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II. A criação da HADOPI No âmbito da referida lei foi criada a Haute Autorité pour la Diffusion des Œuvres et la Protection des Droits sur Internet (“HADOPI”), autoridade pública independente criada para supervisionar o cumprimento do diploma legislativo em causa e que acabou por dar o nome ao mesmo. a) Missão e funções da HADOPI A referida autoridade tem como missão e funções: i) o encorajamento ao desenvolvimento da oferta legal e da observação da utilização lícita e ilícita de obras e prestações protegidas pelo direito de autor ou por direitos conexos através da rede de comunicações electrónicas utilizadas para o fornecimento de serviços de comunicação ao público em linha, ii) a protecção das obras e prestações face às violações dos direitos a elas relativos através da rede de comunicações electrónicas utilizadas para o fornecimento de serviços de comunicação ao público em linha, iii) a regulação e observação no domínio das medidas técnicas de protecção e de identificação das obras e das prestações protegidas pelo direito de autor ou por direitos conexos, iv) a proposta de alterações legislativas, iv) ser consultada pelo Governo a respeito de qualquer projecto de lei relativo à protecção dos direitos de propriedade literária e artística ou a qualquer dos seus domínios de competência, v) bem como apresentar relatórios anuais ao Governo sobre a sua actividade, o cumprimento dos seus objectivos e a execução da sua missão. b) O procedimento administrativo junto da HADOPI Para a protecção dos direitos e prossecução das suas atribuições, a HADOPI dispõe de agentes públicos nomeados pelo Presidente da HADOPI, nas condições legalmente fixadas. Conforme se referiu anteriormente, a Lei HADOPI tem como principal objectivo instituir o respeito pelos direitos de propriedade intelectual na Internet, sendo que, de acordo com a referida lei, o início de qualquer procedimento de reacção a uma alegada violação de direitos de propriedade intelectual passará pela constatação pontual de um download ilegal de uma música, de um filme, de um livro ou de qualquer outra obra criativa e original, do domínio literário, científico ou artístico, susceptível de protecção e pela queixa do titular do(s) direito(s) alegadamente violado(s) junto do tribunal ou da HADOPI. A HADOPI pode posteriormente obter dos operadores de comunicações electrónicas informações necessárias à identificação do alegado infractor: a identidade, a morada, o endereço de e-mail e os dados telefónicos do assinante a partir dos quais o acesso aos serviços de comunicação ao público em linha foi utilizado para a reprodução, colocação à disposição ou comunicação ao público 238
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das obras ou prestações protegidas sem a autorização dos titulares dos direitos. Após a identificação, a HADOPI enviará ao alegado infractor um primeiro e-mail de aviso. Em caso de reincidência nos 6 meses seguintes, o internauta receberá um segundo aviso, desta vez através de carta registada. Se a HADOPI constatar novo incumprimento no período de 1 ano será decretada a suspensão da assinatura/do acesso, suspensão essa que poderá ser de 3 meses a 1 ano, sendo o internauta impedido de, nesse período de “interdição” celebrar qualquer contrato com outro fornecedor de acesso à Internet. Verifica-se uma possibilidade de transacção com o infractor: a sanção poderá ser reduzida, de 1 a 3 meses, se o internauta se comprometer a não voltar a infringir os direitos de propriedade intelectual. Para além disso, poderá ser imposta uma sanção alternativa à suspensão de acesso à Internet, se o titular da assinatura para acesso à Internet a partir da qual os downloads ilegais foram feitos for uma pessoa colectiva, atendendo a que a suspensão poderia, neste caso, ter consequências desproporcionadas, relacionadas com o funcionamento da empresa em causa. Os fornecedores de acesso à Internet poderão ser igualmente punidos ao abrigo da Lei HADOPI com penas de multa que poderão ascender aos € 5000, se não aplicarem as decisões de suspensão da assinatura/do acesso à Internet ou se renovarem a assinatura/acesso de um cliente que tenha sido alvo de aplicação de uma medida de suspensão. Qualquer pedido dirigido aos fornecedores de acesso à Internet de filtragem de conteúdos ou serviços, bem como de suspensão, terá de ser dirigido pelo titular dos direitos ao tribunal competente. A aplicação das medidas supra mencionadas pela HADOPI é susceptível de recurso para o tribunal competente. III. Os argumentos a favor e contra a aprovação da Lei HADOPI Antes da aprovação da Lei HADOPI foram aduzidos vários argumentos contra o diploma legal em causa. Primeiro, foi a Decisão do Conseil Constitutionnel de 10 de Junho de 2009 que expressamente declarou inconstitucionais algumas disposições da lei HADOPI com destaque para as que autorizavam o corte de acesso à Internet directamente pela HADOPI, sem uma decisão judicial prévia. Corroborando-se o entendimento vertido nesta decisão defendia-se que o legislador não pode conceder poderes a uma autoridade administrativa como a HADOPI para, em defesa do direito de autor e dos direitos conexos, restringir ou impedir o acesso à Internet dos cidadãos, uma vez que a livre comunicação de pensamentos e de opiniões é um dos direitos mais preciosos do Homem. Alegavam igualmente os defensores desta tese que o desenvolvimento generalizado dos serviços de comunicação ao público em linha é essencial para a participação por via democrática na partilha Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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de pensamentos e de opiniões e esse direito implica o acesso a esses serviços. Alguns argumentos prendiam-se mais com questões procedimentais: a proposta inicial da lei HADOPI, ao permitir a suspensão imediata do acesso à Internet, decretada por uma autoridade administrativa implicava uma inversão do ónus da prova e instituía uma presunção de culpa, sem possibilidade de exercício do contraditório e para além disso questionava-se o efeito pedagógico dos «avisos» da HADOPI por não descreverem os factos praticados. Muitos avançaram a polémica questão da protecção dos dados pessoais como uma das mais sensíveis: durante a intervenção da HADOPI eram tratados dados pessoais sem legalização por parte da CNIL. Outros consideravam os custos económicos excessivos para os fornecedores de acesso à Internet, com a adaptação das suas infra-estruturas à necessidade de conservação dos dados e de resposta aos pedidos de colaboração e de divulgação de informação da HADOPI. Em síntese, os que se opunham à Lei HADOPI alegavam que a mesma continha medidas que violavam direitos do Homem e princípios de proporcionalidade, eficácia e efeito dissuasivo. No entanto, não se podem desconsiderar os vários argumentos favoráveis à aprovação e implementação das medidas preconizadas pela Lei HADOPI. Senão vejamos: Tal como defendia a própria ministra da Cultura Francesa, não se trata tanto de criminalizar nem de suprimir liberdades fundamentais, a menos que possamos qualificar o crime de furto como uma liberdade fundamental. Na verdade, as medidas instituídas pela Lei HADOPI são, designadamente, uma forma de combate à constante e reiterada diminuição da capacidade de obtenção de receitas dos artistas e intérpretes, relacionada com as dificuldades financeiras atravessadas pela indústria discográfica e uma tentativa de contrariar uma diminuição brutal das receitas das produtoras discográficas, constatada na última década, na ordem dos 50%, maioritariamente atribuída à partilha não autorizada através da Internet de obras protegidas pelo direito de autor e que implica a necessidade de redução de postos de trabalho na indústria, a perda de capacidade de investimento em novos talentos e de produção de gravações inovadoras, a falta de capacidade para promoção dos artistas e autores, a incerteza quanto à recuperação dos investimentos realizados, bem como o enfraquecimento do dinamismo cultural das gravações a nível europeu. As formas de gerar receitas adicionais permitirão combater o clima de desmotivação, desinteresse e instabilidade que, designadamente, a indústria discográfica atravessa. Tenta-se assim, reforçar o direito de autor e os direitos conexos, através de medidas que enfatizam o respeito pelos direitos de propriedade intelectual e que, por outro lado, impõem punições fortes e efectivas contra as utilizações não consentidas de tais direitos. Na esteira do que defendeu em determinado momento Denis Olivennes, 240
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mesmo que a Lei HADOPI não constitua a solução destinada a acabar com a pirataria da noite para o dia, pelo menos dificulta a vida a quem faz downloads ilegais de forma reiterada e favorece o desenvolvimento de uma oferta legal, que até poderá ser gratuita. Mas cabe aos titulares de direitos tomar essa decisão. IV. O respeito dos direitos de propriedade intelectual na Lei Portuguesa. A contrafacção e a pirataria têm um impacto negativo de cerca de 500 mil milhões de euros na economia mundial, o que equivale a entre 5% e 7% do total de mercadorias transaccionadas no comércio global, segundo dados da Associação de Marcas Comerciais das Comunidades Europeias (ECTA), associação que representa empresas com marcas registadas (mais de 1500 membros). Ou seja, por cada cem euros que são transaccionados em todo o mundo, uma parte, de entre 5 a 7 euros, é tomada pela economia paralela dos produtos pirateados e contrafeitos. Por outro lado, estima-se que a União Europeia perdeu 100 mil postos de trabalho só em 2008 por causa da contrafacção e da pirataria, também segundo dados daquela Associação4. O ordenamento jurídico português conta com vários diplomas legais que preconizam a defesa dos direitos de autor e dos direitos de propriedade industrial, genericamente designados direitos de propriedade intelectual. A Directiva Enforcement (Directiva n.º 2004/48/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Abril, relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual) é disso exemplo. Foi transposta pela Lei n.º 16/2008, de 1 de Abril e procedeu a várias alterações ao Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC ) e ao Código da Propriedade Industrial (CPI) tendo em vista efectivar o respeito por estes direitos e as medidas de reacção à violação dos mesmos. Mas muito antes dessas alterações resultantes da Directiva Enforcement já o CDADC tinha uma secção especificamente dedicada à violação e defesa do direito de autor, donde se destacava (e continua a destacar) a respectiva tutela penal (art.º 185.º a 200.º), a responsabilidade civil (art.º 211.º) em que poderá incorrer aquele que causa prejuízos aos titulares dos direitos de autor e de direitos conexos. O legislador adiantou inclusivamente os critérios para determinar o valor da indemnização devida (lucro do infractor, lucros cessantes e danos emergentes do lesado e encargos com a protecção do direito de autor e dos direitos conexos, investigação e cessação da conduta lesiva, danos não patrimoniais, gravidade da lesão e grau de difusão ilícita da obra ou prestação, entre outros). Para além da consagração da tutela penal e do reconhecimento da 4
Informação disponível no site do INPI em http://www.marcasepatentes.pt/index.php?action=vie w&id=224&module=newsmodule.
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responsabilidade civil por prejuízos causados, o CDADC prevê igualmente a possibilidade de apreensão e perda de coisas relacionadas com a prática do crime (art.º 201.º). O tribunal competente pode igualmente impor ao infractor ou ao intermediário cujos serviços sejam utilizados pelo infractor, uma medida destinada a inibir a continuação da infracção verificada, designadamente, a interdição temporária do exercício de certas actividades ou profissões, a privação do direito de participar em feiras ou mercados ou o encerramento temporário ou definitivo do estabelecimento. Para além disso, estão ao dispor dos lesados titulares de direitos procedimentos cautelares (art.º 209.º), sendo que, para além das providências cautelares previstas na lei de processo, o autor pode requerer das autoridades policiais e administrativas do lugar onde se verifique a violação do seu direito a imediata suspensão de representação, recitação, execução ou qualquer outra forma de exibição de obra protegida que sejam realizadas sem a devida autorização e, cumulativamente, requerer a apreensão da totalidade das receitas. Foram igualmente adoptadas na transposição da Directiva Enforcement para o ordenamento jurídico Português várias medidas para obtenção da prova (art.º 210.º - A) e medidas para preservação da prova (art.º 210.º - B) que conferem aos interessados a possibilidade de requerer medidas provisórias urgentes e eficazes para preservar provas da alegada violação, mesmo sem audiência prévia da parte requerida, se o atraso na sua aplicação puder causar danos irreparáveis ao requerente (art.º 210.º - C). Para além disso, foi instituída a obrigação do alegado infractor de prestar informação sobre a origem e as redes de distribuição dos bens ou serviços em que se materializa a violação do direito de autor ou de direitos conexos (art.º 210.º - F). Acresce que, apesar das reacções que também se fizeram sentir no nosso país a propósito da Lei HADOPI, designadamente por se considerar que implementava um verdadeiro “Big Brother” no sentido de haver um controlo dos internautas que poderia conduzir à limitação e restrição de um direito “fundamental” de acesso à Internet, tendemos a considerar que no nosso ordenamento jurídico se encontram já em vigor disposições que em muito se assemelham ao procedimento instituído pelo diploma francês. Senão vejamos a título exemplificativo. A Lei n.º 32/2008 de 17 de Julho regula a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes. Nos termos da Lei n.º 32/2008 de 17 de Julho, os fornecedores de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações devem conservar pelo período de 1 ano a contar da data de conclusão da comunicação os dados necessários para encontrar e identificar a fonte de uma comunicação, o seu destino, o tipo de comunicação, a data, hora e a 242
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duração da comunicação, o equipamento de telecomunicações dos utilizadores e para identificar a localização do equipamento de comunicação móvel. A transmissão desses dados (os dados de tráfego, dados de localização e dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador) às autoridades competentes poderá ser ordenada por despacho do juiz para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves. Sendo que no âmbito da referida lei “crime grave” significa crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou títulos equiparados a moeda e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima. Designadamente dados como os códigos de identificação atribuídos ao utilizador da Internet ou do e-mail, os códigos de identificação do utilizador e o n.º de telefone atribuídos a qualquer comunicação, o nome e o endereço do assinante ou do utilizador registado, a quem o endereço do protocolo IP, o código de identificação de utilizador ou o número de telefone estavam atribuídos no momento da comunicação podem ser dados a transmitir pelos fornecedores de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações às autoridades competentes. V. Conclusões A Constituição da República Portuguesa, no seu art.º 42.º reconhece expressamente a Liberdade de criação cultural intelectual, artística e científica, sendo que esta liberdade compreende o direito à invenção, produção e divulgação da obra científica, literária ou artística, incluindo a protecção legal dos direitos de autor. Não se pode, por isso, questionar a importância do respeito dos direitos de propriedade intelectual e da instituição de medidas firmes de combate às utilizações não autorizadas de direitos, porque elas constituem uma forma de restabelecer o clima de confiança necessário para o aumento do contributo criativo, original e artístico dos nossos autores, artistas intérpretes e executantes, produtores e organismos de radiodifusão, que se reflecte no efectivo enriquecimento do nosso património cultural e histórico. O nosso contributo poderá ser simplesmente o reconhecimento e o respeito desses direitos e a sua utilização nos termos autorizados pela lei e pelos titulares. Os titulares dos direitos podem autorizar utilizações gratuitas. Se não for esse o caso, reconhecer e respeitar os nossos autores, artistas ou outros titulares de direitos passará pelo pagamento da remuneração devida pelo acesso e utilização das obras e prestações em causa.
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Trabalhos acadĂŠmicos
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Implicações constitucionais da criação de uma base de dados genéticos para fins de investigação criminal: Segurança Versus Privacidade1 Florentina Maria de Freitas2 Resumo O crescente uso do ADN com finalidades forenses, nomeadamente o processamento e armazenamento de informação de carácter genético em bases de dados, com o objectivo de auxiliar a investigação criminal tem sido entendida como uma técnica capaz de substituir as tradicionais bases de dados de impressões digitais, uma vez que os perfis de ADN constituem uma estrutura biológica que é única em cada indivíduo. Contudo, a utilização deste instrumento no domínio forense não é isenta de polémica, face ao “carácter sensível” da informação genética e o receio do uso indevido de tal informação. Por outro lado questiona-se a legitimidade da politica de controlo e reforço dos poderes do Estado e de ingerência na vida privada dos cidadãos perante o enfraquecimento dos direitos, liberdades e garantias destes últimos, em nome da prevenção e repressão criminais. O ensaio que agora apresentamos pretende, à luz do regime jurídico da Lei 5/2008, de 12 de Fevereiro, demonstrar que a base de dados de perfis de ADN com a finalidade de auxiliar a investigação criminal, identificando suspeitos mediante a comparação de perfis de ADN do material celular, constitui um poderoso instrumento de politica criminal, satisfazendo objectivos socialmente aceitáveis, perante alguma restrição do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar do visado. Palavras-chave: Perfil de ADN; Base de dados de perfis genéticos; Investigação criminal; Privacidade; direito à intimidade da vida privada e intimidade genética. O presente artigo constitui uma versão abreviada da nossa dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais apresentada na Universidade Lusíada de Lisboa em Junho de 2010. 2 Procuradora-adjunta na Comarca da Grande Lisboa-Noroeste; Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade Lusíada de Lisboa. (contactos: e-mail - florentina.m.freitas@mpublico.org.pt). 1
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Abstract The growing use of DNA for forensic purposes, including processing and storage of profiles information in databases with the aim of assisting the criminal investigation has been understood as a technique able to replace traditional fingerprints databases, since the DNA profile is a biological structure that is unique to each individual. However, the use of this tool in the forensic field brings a handful of controversy, given the “sensitivity” of genetic information and fear of its misuse. On the other hand doubts are raised about the legitimacy of political control and government strengthening powers before the weakening of citizen’s rights and liberties on behalf of crime fighting. The essay we now present intends, based on the legal regime of the Law 5 / 2008 of February 12, to show that the DNA profiles database is a powerful instrument of criminal policy, meeting socially acceptable targets before any restriction of the defendant’s right to privacy. Keywords: DNA profile; Database of genetic profiles, criminal investigation, privacy, right to genetic privacy and intimacy. Sumário 1. Do mecanismo da hereditariedade à genética: a descoberta do património genético. 2. ADN com interesse forense: ADN codificante e ADN não codificante. 3. Bases de dados genéticos e o direito à intimidade genética e à autodeterminação informacional. 3.1. Características singulares dos dados genéticos.3.1.1. Conceito de dados genéticos. 3.1.2. A natureza dos dados genéticos: dados íntimos ou privados. 4. A base de dados genéticos na legislação portuguesa. 4.1. A Lei de criação da base de dados de perfis de ADN para efeitos de identificação criminal.4.1.1.Objectivos e princípios reguladores.4.1.2.Critérios de colheita de amostras para efeitos de investigação criminal: o artigo 8º da Lei 5/2008, de 12 de Fevereiro. 4.2. A base de dados genéticos e os pressupostos de garantia do direito à reserva da intimidade da vida privada. 4.2.1.O princípio da proporcionalidade na restrição de direitos fundamentais. 4.2.2. A previsão e reserva legal da lei de restrição de direitos liberdades e garantias de acordo com os artigos 18°, nº 2, e 165º, nº 1, alínea b) da Constituição da República portuguesa. 4.2.3. A valoração concreta dos interesses constitucionalmente protegidos, nos termos e para os efeitos do artigo 18°, nº 2, 2ª parte da Constituição da República portuguesa. 4.2.4. O princípio da reserva judicial. 5. A Jurisprudência do Tribunal Constitucional Português e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. 6. Conclusões: o direito à autodeterminação informativa perante o direito à segurança.
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1. Do mecanismo da hereditariedade à genética: a descoberta do património genético “Every human being carries with him from his cradle to his grave certain physical marks which do not change their character, and by which he can always be identified - and that without shade of doubt or question. These marks are his signature, his physiological autograph, so to speak, and this autograph cannot be counterfeited, nor can he disguise it or hide it away, nor can it become illegible by the wear and the mutations of time. This signature is not his face - age can change that beyond recognition; it is not his hair, far that can fall out; it is not his height, for duplicates of that exist; it is not his form, for duplicates of that exist also, whereas this signature is every man’s very own- there is no duplicate of it among the swarming populations of the globe!” Pudd`nhead Wilson3 Quando James Watson e Francis Crick, descobriram a estrutura da molécula de ADN, em Março de 1953, feito que lhes valeu, juntamente com Maurice Wilkins, o Prémio Nobel de Fisiologia e Medicina em 1962, estavam longe de imaginar as importantes repercussões de tal descoberta no campo da engenharia genética e da medicina forense. Não obstante a teoria da selecção natural exposta por Darwin oferecer uma explicação razoável para a ideia da evolução biológica, mais próxima do ateísmo do que do sentimentalismo cósmico do cristianismo e, por isso, mais atraente para a comunidade científica da época, a verdade é que, sem o apoio de uma teoria genética plausível, aquela perdia muito da sua força explicativa. Enquanto a Europa se bastava com o conhecimento trazido por Darwin, no mosteiro agostiniano de São Tomás, na cidade, à data austríaca, de Brünn, Gregor Mendel estudava, através de experiências realizadas com ervilheiras, a hereditariedade de certas características específicas de natureza fenotípica transmitidas dos progenitores para os seus descendentes. A partir de resultados empíricos, Mendel demonstrou que a hereditariedade era determinada por uma série de factores que transmitiam os traços genéticos, hoje denominados genes, de geração em geração. Já no final da década de 1860, Friedrich Miescher escolhe a Universidade de Tübingen, cidade situada no sul da Alemanha, como local ideal para desenvolver o estudo da química celular, bem como as ideias respeitantes ás origens e funções das células. Perante o descrédito crescente da teoria da geração espontânea entre os cientistas, Miescher concentrou a sua pesquisa no estudo aprofundado da composição química do núcleo celular, de onde viria a isolar uma substância que denominou nucleína, uma vez que se concentrava no núcleo das células. A 3
Mark Twain, “Pudd’nhead Wilson and those extraordinary twins”, 108 (W.W. Norton and Co. 1894).
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existência de tal substância, sempre posta em causa pela comunidade científica da época, apenas foi confirmada em 1889 por Richard Altmann, que sugeriu uma nova designação, ácido nucléico, devido ao seu carácter ácido. Em 1930, Phoebes Levine e colaboradores do Instituto Rockefeller em Nova Iorque identificaram as pentoses – um tipo de açúcar composto por cinco átomos de carbono – no ácido nucléico das células, que denominaram 2-deoxi-D-ribose, pelo facto de possuir, no carbono 2 de sua cadeia, um átomo de oxigénio a menos que a ribose, uma pentose já conhecida encontrada pelos pesquisadores em dois tipos de ácidos nucléicos: o ácido ribonucleico, ou ribose, e o ácido desoxirribonucleico, ou ADN. Levine concluiu que o ADN era um polímero bastante longo, constituído por unidades repetidas de quatro bases nitrogenadas: a adenina (A), a guanina (G), a timina (T) e a citosina (C), mas teve dúvidas quanto ao seu papel na transmissão das características hereditárias. A resposta a tais interrogações surgiu após a reprodução dos resultados de pesquisas realizadas por Fred Griffith, um médico inglês envolvido na investigação do pneumococo responsável pela epidemia de pneumonia, em 1928, em Londres. As experiências desenvolvidas demonstraram que a informação genética não era mediada pelas proteínas, mas sim pelo ADN, o que, necessariamente, implicava que sendo esta a única substância transportadora de informação hereditária, teria de ter uma estrutura muito mais complexa. Essa estrutura, ainda desconhecida, viria a ser revelada pelo físico inglês Francis Crick e o geneticista americano James Watson, sob a forma de espiral de dupla hélice, juntamente com a compreensão do modo como, através de um mecanismo de replicação de si próprio, o ADN consegue transmitir a informação genética. Apontado como a maior revolução científica no domínio forense desde o reconhecimento das impressões digitais, o ADN, hoje elevado a “Santo Graal”, nas palavras de Carole McCartney,4 bem como as técnicas de identificação baseadas na sua análise, quando utilizadas de forma correcta, apresentam vantagens apreciáveis em relação aos métodos convencionais de identificação, desde logo, pela sua estabilidade química e ocorrência em todas as células nucleadas do organismo humano. Com a descoberta da impressão digital genética, passada que se encontra a euforia inicial, e com base num principio da individualização de determinadas secções do ADN, com o objectivo de investigação e prevenção criminal é possível isolar perfis de ADN de arguidos, bem como de vestígios biológicos de desconhecidos encontrados em cenas de crimes. Estes progressos realizados no campo da medicina e da biologia molecular, verdadeiros “atrevimentos científicos”5 na expressão sugestiva de Guilherme 4
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Cfr. Carole McCartney, “Forensic Identification and Criminal Justice, Forensic science, justice and risk, William Publishing, 1st Edition, July 2006, onde a autora usa a expressão anglo-saxónica “holy grail”. Cfr; Guilherme de Oliveira, in “Temas de Direito da Medicina”, 2ª Edição Aumentada, Coimbra
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de Oliveira, prepararam-nos para a resolução de problemas outrora insolúveis e concederam-nos um poder interventivo no curso do nosso próprio destino,6 ao mesmo tempo que conduziram a uma redefinição do conceito de dignidade humana. No dizer de Maria Luísa Portocarrero Silva, este “poder, libertador e gerador de autonomia, tem-se revelado ambíguo e perigoso: desencadeia efeitos extremamente benéficos e simultaneamente acções, cujas consequências perigosas têm uma dimensão cósmica e muitas vezes irreversíveis.” Num contexto de aprofundamento das possibilidades da genética humana é relançada a discussão lombrosiana sobre a determinação genética do comportamento humano, ao mesmo tempo que um novo darwinismo emergente pretende ver inscrito nos nossos genes um comportamento naturalmente delitivo, sem atender ás variantes decorrentes do tempo, lugar ou ambiente histórico e social em que nos inserimos.7Naturalmente que este é o terreno fértil para a germinação de propostas políticas de “higiene e profilaxia social” e ideias de eugenia,8através da manipulação genética, já não com uma finalidade terapêutica, mas antes com o objectivo de desenvolver e melhorar geneticamente o indivíduo.9 Desde o conhecimento dos primeiros resultados sobre o genoma humano, fruto do impressionante Projecto do Genoma Humano levantaram-se vozes receosas de que tal projecto, de início considerado fantasia dos geneticistas, atentasse contra a dignidade humana, ao legitimar práticas baseadas na discriminação do indivíduo com fundamento nos seus genes. O estudo da universalidade dos genomas de todas as células, identificando e estabelecendo o mapa da localização de todos os genes contidos no interior dos 23 pares de cromossomas, bem como a sua sequenciação
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Editora, 2005:200, que utiliza a expressão a propósito da investigação clínica. Maria Luísa Portocarrero Silva, “Autonomia da pessoa e determinismo genético”, in Genoma e Dignidade Humana, Gráfica de Coimbra, Lda., Outubro de 2002:10. Daniel Serrão, sintetiza esta questão no sentido de que “os genes são necessários mas não são suficientes para determinar uma função ou uma disfunção nas células e organismos multicelulares.” Cfr., Daniel Serrão, “Os desafios contemporâneos da Genética”, Estudos de Direito da Bioética, Vol. II, Almedina, Janeiro de 2008: 373. Francis Galton (1822-1911), primo e amigo de Darwin introduziu a expressão “eugenia”, no seu livro “A Faculdade Humana”, publicado em 1883, sugerindo que, apenas as pessoas desprovidas de defeitos físicos fossem autorizados a casar, a fim de ser garantida uma descendência saudável. Cfr., neste domínio, A. Eser, obra citada p.70-71. Colocamos reservas à argumentação apresentada pelo autor, quando defende poder a eugenia constituir “uma política social global”. De facto, e segundo o autor, “ Enquanto estiver em causa a eliminação de patrimónios genéticos deficientes, no sentido da chamada «eugenia negativa», parece evidente a existência de uma utilidade individual e social, devendo-se, no entanto, reflectir sobre o perigo de uma discriminação da vida deficiente. Já quanto à “eugenia positiva”, isto é o “apuramento eugénico da raça”, refere o citado autor que “ (…) os critérios de selecção a autorizar e quem deve ser responsabilizado, não podem ficar entregues ao puro arbítrio do médico ou do cientista: assim que a selecção genética humana for orientada por critérios de maior ou menor valia social, ela conterá valorações da vida humana que não se podem obter num plano empírico-descritivo, mas tão-só de uma perspectiva normativa (…)”.
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veio reequacionar o lugar do homem no universo. Seria possível, agora, livrarmo-nos, finalmente, de um inexorável determinismo biológico? Esta apelativa e irresistível tentação de, através da intervenção genética criar uma espécie de homens superiores10, tem encontrado nas memórias das experiências médicas realizadas na Alemanha nazi11, algum travão relembrandonos, diariamente, que todo o conhecimento traz consigo a responsabilidade de uma correcta utilização12, em benefício de toda a humanidade, e em convocação de uma ética de responsabilidade13. Naturalmente que, nas sociedades contemporâneas a utilização das novas tecnologias, nomeadamente da informática é uma realidade incontornável. Porém, essa mesma utilização amplia, substancialmente, as probabilidades de ofensa dos direitos e liberdades individuais, requerendo um enquadramento jurídico específico do uso dos conhecimentos científicos quando colocados ao serviço da justiça. Questiona-se em que medida será lícito ao Estado a recolha e armazenamento, numa base de dados, de perfis genéticos com o objectivo de identificar criminosos. Como se opera a convivência entre o direito do cidadão à reserva de uma esfera de intimidade com a necessidade que o Estado tem de, no prosseguimento de uma política criminal eficiente, invadir o núcleo mais íntimo da sua vida? Pretendemos dar resposta a estas questões, partindo do conceito de direito à reserva da intimidade da vida privada e a natureza jurídica dos dados genéticos, realçando as vantagens, como auxiliar na investigação criminal, da criação de uma base de dados genéticos, através de registo informatizado dos perfis de zonas não codificantes de ADN, seguindo de perto o regime jurídico da Lei 5/2008, de 12 de Fevereiro.
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Cfr., Marta Mendonça, in “Melhoramento Humano em geral – perspectiva Ética, Investigação Biomédica, Reflexões Éticas”, coordenação de Paula Martinho da Silva, Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Gradiva, 2008, p. 205, quando utiliza a expressão “melhoramento humano”, tradução do inglês “Human enhancement”, para designar, não obstante a ambiguidade do termo, “ (…) uma das possibilidades abertas pela investigação biomédica, que se revelou nos últimos anos capaz de proporcionar os recursos tecnológicos que permitem potenciar de modos diversos as capacidades humanas e os resultados da acção humana, de modo a fazê-los alcançar níveis e padrões que antes não alcançava e que não poderia alcançar sem essa intervenção potenciadora. “ Com grande interesse nesta matéria veja-se a divulgação sobre experiências médicas em seres humanos nos campos de concentração que Christian Bernadac faz no seu livro “Os Médicos Malditos”, Editorial Inova, Porto, 1967, baseado em relatos dos raros sobreviventes e depoimentos de algumas testemunhas presenciais. Cfr., Stela Barbas, in “Direito ao Património Genético”, Almedina, 1998:12, faz referência a uma “ética da responsabilidade”, que partindo do princípio de que o absoluto não é a ciência mas sim o homem fixe princípios normativos, uma nova geração de direitos e na sua primeira linha o direito a um património genético não manipulado.” Conceito desenvolvido por Hans Jonas Cfr., “El principio de responsabilidad. Ensayo de una ética para la civilización tecnológica”, Barcelona, Herder, 2004.
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2. ADN com interesse forense: ADN codificante e ADN não codificante. O ADN (ácido desoxirribonucleico) constitui o material genético de todos os seres vivos e encontra-se presente em todas as células nucleadas do organismo humano. Nele estão armazenadas, em forma de código químico, todas as informações genéticas, referentes ás características físicas e metabólicas, com as instruções para a síntese de proteínas. Em termos estruturais, cada cadeia de ADN é formada por uma sequência de unidades de nucletídeos, compostos por uma base nitrogenada, uma molécula de fosfato e a desoxirribose de açúcar. Nos nucleótidos do ADN as bases são de adenina (A), timina (T), guanina (G) e citosina (C). A combinação e sequência destes quatros nucleótidos de uma forma específica caracterizam determinado indivíduo, tornando-o num ser único, com a excepção dos gémeos homozigóticos.14 O ADN que contém o código genético encontra-se sob a forma de 23 pares de cromossomas, alojadas no núcleo das células. Porém, apenas uma pequena parte do genoma é constituído por genes codificadores de proteínas. Este ADN representa 3% do genoma e é designado como ADN codificante, responsável pelo armazenamento da informação genética nos genes, através de uma determinada disposição que determina a sequência dos aminoácidos das proteínas, contendo, por isso, informação genética individual. Os genes do ADN codificante contêm caracteres genotípicos, como a cor do cabelo, a cor dos olhos, deficiências pessoais, enfermidades hereditárias e predisposições patológicas, não tendo interesse para efeitos de identificação forense de indivíduos por ser pouco polimórfico. Os restantes 97% do genoma, contêm ADN não codificante, com função meramente estrutural, isenta de qualquer informação sobre as características fenotípicas do indivíduo e é composto por sequências repetitivas, cuja a hipervariabilidade e polimorfismo lhe conferem um alto poder de individualização de seres humanos, sendo, por isso, objecto de análise forense. A identificação, com objectivos médico-legais através da análise de ADN, realiza-se nas regiões genómicas hipervariáveis não codificantes do genoma chamadas minisatélites e microsatélites. As bases para a utilização dos testes de identificação da individualidade humana, pelo estudo do ADN, encontram-se na diversidade ou polimorfismo dos diversos “loci” de minisatélites e microsatélites. No entanto, apenas algumas regiões denominadas marcadores genéticos ou moleculares, são escolhidas para análise, uma vez que apresentam maior variação individual. Aqui, a molécula de ADN formada por milhões de nucleotídos em cadeia sofre, algumas vezes, alterações chamadas mutações, que consistem na substituição de certos nucleotídos por outros em determinadas regiões “loci” ou “sítios”. Estas alterações, conhecidas por polimorfismos genéticos, variadas no 14
Uma vez que os gémeos homozigóticos são geneticamente idênticos, se ambos forem suspeitos da prática de um facto, havendo vestígios deixados no local, a análise do ADN em nada poderia colaborar para o esclarecimento da situação, pela impossibilidade da sua distinção. Aqui, a dactiloscopia convencional seria útil, sobretudo se forem deixados no local vestígios lofoscópicos.
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número e no tipo, porque se tornam estáveis, sendo transmitidas de geração em geração, tornam possível a identificação de um indivíduo apenas com base no seu padrão de polimorfismo. Aqui chegados, e sabendo que o perfil de ADN de um indivíduo pode ser obtido pela análise do seu material genético, uma vez que nele se localizam os genes que constituem o fenótipo de cada um de nós,15aquele pode ser extraído de qualquer tipo de tecido ou fluido biológico que contenha células, já que é no núcleo e fora deste, nas mitocôndrias,16 que se encontra o ADN com interesse forense. Uma vez que o número de repetições em tandem difere de um indivíduo para o outro, é possível isolar um padrão altamente individual de fragmentos de ADN, chamado de fingerprint. A comparação dos tamanhos dos fragmentos obtidos após a separação das moléculas da amostra da cena do crime e daquela fornecida pelo suspeito, bem como a interpretação do resultados por referência ás duas amostras, e ainda os resultados estatísticos da frequência dessa coincidência no grupo populacional a que pertence o indivíduo dador da amostra, permite estabelecer uma relação, próxima da realidade biológica, entre as referidas amostras.17 Esta técnica tem um grande potencial na medicina forense, com grandes vantagens relativamente aos testes convencionais, conhecidos como exames serológicos por permitir obter uma “impressão digital de ADN”, hoje designada de “perfil de ADN”, analisando-se regiões polimórfïcas, em amostras de ADN humano ínfimas, e já com algum grau de degradação,18 possibilitando, assim, comparações com aquelas obtidas por colheita em vítimas de infracção penais. 15
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Embora existam fenótipos, como as impressões digitais e os grupos sanguíneos que são, desde longa data, utilizados na investigação criminal, as características genéticas individuais, constantes das células humanas, apresentam maior grau de fiabilidade e de credibilidade, já que se mantém imutáveis, tendo, ainda, a vantagem de utilizarem um método de recolha menos invasivo. Nas situações em que não é possível a tipagem utilizando-se ADN nuclear, pode ser usado ADN mitocondrial, de origem apenas materna, o que pode acontecer quando a amostra é em pequena quantidades ou não apresenta ADN nuclear. É este o marcador genético usado nos casos dos fios de cabelos que não possuem mais bolbos ou nos casos dos ossos antigos em que a extracção de ADN é feito a partir dos mitocôndrias. O interesse forense do ADN mitocondrial reside no facto de ser mais resistente à degradação do que o nuclear, sendo muito utilizado nem situações em que a identificação de corpos se torna mais difícil. A probabilidade da amostra pertencer a determinado indivíduo baseia-se em dados da estatística genética, que permite saber qual a frequência com que um alelo específico permanece constante, numa população ao longo do tempo. A este propósito refere Susana Costa que: “As controvérsias suscitadas pela utilização da tecnologia de PCR na identificação de indivíduos convergem num aspecto crucial: a fiabilidade da técnica. (…) As críticas mais fortes a uma fiabilidade considerada fraca dizem respeito, (…), à forma como se determina a inclusão ou exclusão de um indivíduo, à forma como se estimam as frequências estatísticas das inclusões e, por último, à forma como se determina a população de referência. Estamos num plano de análise que não se reporta já à execução da técnica propriamente dita. Trata-se de um problema que transcende a prática laboratorial, de natureza institucional e científica, da análise dos resultados e sua interpretação e das suas implicações para além do espaço laboratorial.” Costa, Susana, “ A Justiça em Laboratório. A identificação por perfis genéticos de ADN: entre a harmonização transnacional e a apropriação local”, Livraria Almedina – Coimbra Fevereiro, 2003:77.
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A partir daqui é já possível constituir o perfil genético da amostra, ou seja, o conjunto de características hereditárias ou padrões fenotípicos que um indivíduo possui para um determinado número de marcadores genéticos, detectável em qualquer amostra biológica que lhe pertença. Considerando os conhecimentos que hoje possuímos sobre a estabilidade química e térmica do ADN nuclear, presente em todas as células nucleadas do organismo humano o estudo dessa individualidade biológica directamente do código genético constitui uma tecnologia de grande importância no domínio da criminalística biológica onde, geralmente, os vestígios se apresentam em pequena quantidade e, não raras as vezes, degradados. É este o objectivo da genotipagem forense: estabelecer correspondências genéticas entre as amostras recolhidas no local da infracção e aquelas colhidas a vítimas, suspeitos e/ou condenados, no sentido de ser determinada a origem individual de cada amostra e, assim, reconstruir-se o acto delituoso. Com tal propósito, a análise do ADN com aplicação médico-legal, foi usada pela primeira vez no Reino Unido, em 1985, tendo sido aplicada à resolução de um caso de agressão sexual, em Leicestershire, conduzindo à condenação, em pena de prisão perpétua, de Colin Pitchfork, através da comparação e coincidência da impressão digital do seu sangue com a do sémen encontrado nos corpos de duas adolescentes que haviam sido estranguladas depois de terem sido violadas. Após o caso Queen v. Pitchfork, as impressões digitais genéticas, hoje extraídas através de técnicas mais avançadas, revolucionaram não só a ciência forense, tornando-se numa das armas mais confiáveis e potentes da ciência forense, pela sua capacidade e grau de certeza na absolvição dos inocentes e identificação de culpados, através da utilização de pequenas amostras de tecidos corporais, como muco nasal, saliva, cabelo ou osso de um corpo cadáver há muito tempo. Por possuir uma alta estabilidade química, enorme sensibilidade, imutabilidade, poder de discriminação e resistência à passagem do tempo e às agressões ambientais, mesmo em condições altamente destrutivas, a técnica de a análise de ADN tem sido frequentemente utilizada, com resultados úteis em situações em que os métodos mais antigos, como a sorologia tradicional (uso dos grupos sanguíneos) e enzimas, têm fracassado. A sua determinação e identificação são de grande utilidade na investigação criminal, embora, por si só não se mostre suficiente para provar a culpabilidade ou a inocência do arguido, podendo apenas estabelecer uma ligação entre determinado indivíduo e a cena do crime, o que torna determinante o modo como é feita a colheita, manuseio, processamento e armazenamento dos vestígios biológicos. 3. Bases de dados genéticos e o direito à intimidade genética e à autodeterminação informacional A possibilidade de comunicação, troca de informações e armazenamento Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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de dados através de sistemas informáticos, ao mesmo tempo que permitiu uma ligação comunicacional entre os indivíduos, facilitada e em tempo real trouxe ameaças, cujos contornos não são ainda integralmente conhecidos, nomeadamente à privacidade dos cidadãos, pela exposição a que tais dados, geralmente de carácter pessoal se encontram sujeitos. Tem cabimento, aqui, por elucidativa da importância do ADN na investigação criminal, a frase retirada do Parecer apresentado pelo Professor Doutor Gomes Canotilho e transcrito no Acórdão nº 155/2007, do Tribunal Constitucional, proferido no processo nº 695/06 e publicado no Diário da República, II Série, nº 70, de 10 de Abril de 2007.Segundo este Ilustre Professor, “ (…) o recurso ao Ácido Desoxirribonucleico (DNA) na investigação criminal é, pelo seu elevado grau de fiabilidade, certamente o caminho do futuro, discutindo-se, quando muito, os limites que devem rodear a utilização da informação assim obtida (…).” De facto, as recentes descobertas no domínio da genética, vieram ampliar o campo tradicional do direito à intimidade e reserva da vida privada. Como expressa Gonzalo Figueroa Yañez, “(…) junto con la intimidad territorial y con la intimidad psicológica o espiritual, debe agregarse ahora - posiblemente como una ampliación de la intimidad corporal - todo el ámbito de la intimidad genética. Porque no existe nada más íntimo que el código genético individual de cada persona en particular.”19Reconhece-se, assim, um novo domínio inviolável de cada pessoa constituído pela sua estrutura genética, no âmbito da qual, qualquer intromissão é ilícita e arbitrária. Esta intimidade genética, pela sua importância foi elevada à categoria de Direito Humano, merecendo, desde logo, o direito ao genoma e a informação nele contida, protecção internacional ao ser considerado património comum da humanidade pela Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos do Homem da UNESCO, de 11 de Novembro de 1997. O conhecimento do genoma humano veio expôr um novo tipo de intimidade, diferente da intimidade tradicional ou vida privada, e que diz respeito a informações do nosso mundo mais intimo, a nossa identidade genotípica e que deve ser protegida contra qualquer agressão não consentida. Neste sentido e a nível individual, o genoma, por constituir a essência biológica de cada pessoa, merece a protecção que os direitos subjectivos exigem, impondo-se contra a apropriação e instrumentalização por parte de terceiros. Este poderoso conhecimento suscita inquietudes pelas consequências que poderão advir de uma utilização abusiva da informação genética do indivíduo com grave amputação da sua liberdade e autonomia. Jorge Seña sintetiza esta dualidade de sentimentos perante a engenharia genética, referindo que“(…) la investigación genética incrementa nuestra información y que, en consecuencia, aumenta la posibilidad de ejercer nuestra autonomía de una forma exitosa. Pero, al mismo tiempo, esa información en manos de terceros vuelve a los hombres y mujeres seres transparentes, 19
Gonzalo Figueroa Yañez, “El Derecho a la intimidad, reserva o secreto. Cambios de perspectiva partir de las investigaciones sobre el genoma humano,” Revista del Derecho e del Genoma Humano, nº 11, ano 1999:67.
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casi sin secretos, y, en ese sentido, vulnerables ante los demás. Y ello afecta negativamente, por cierto, también a nuestra autonomía y el ejercicio de nuestros derechos.” 20 Com os avanços na tecnologia de ADN e a descoberta dos seus polimorfismos foi aberta a possibilidade científica e técnica de construção de bases de dados de perfis genéticos, com o objectivo de identificação criminal, os quais constituem um instrumento estratégico de colaboração internacional na investigação criminal e de combate à criminalidade cada vez mais violenta. Como tecnologia ao serviço da justiça penal, a base de dados de ADN veio dar novo sentido à já útil ferramenta, denominada de “impressão digital genética”, revelando-se um precioso auxiliar na investigação criminal, ao possibilitar maior rapidez e precisão na identificação dos sujeitos e, consequentemente, na exclusão de pessoas que nada têm a ver com o delito em investigação. Tendo já em vista esta possibilidade, em 1992, o Conselho Europeu considerou que a “luta contra o crime, exige o recurso a métodos mais modernos e eficazes” e que as “técnicas de análise de ADN podem ter interesse para o sistema de justiça penal”, devendo ser postas em prática de maneira fiável, sem prejuízo do respeito por “princípios fundamentais, como a dignidade intrínseca do indivíduo, o respeito do corpo humano, os direitos de defesa e o princípio da proporcionalidade na administração da justiça penal”. Salientando-se as vantagens de um intercâmbio de dados genéticos que não contenham informações sobre determinadas características hereditárias específicas, a Resolução do Conselho Europeu, de 9 de Junho de 1997 convidou os “Estados-Membros a considerarem a possibilidade de criar bases nacionais de dados de ADN, segundo as mesmas normas e de forma compatível, tendo em vista o intercâmbio dos resultados das análises de ADN e a futura criação de uma “base de dados europeia”. 21 Na sequência do apelo lançado pelo Conselho Europeu, nos últimos anos foram criadas por toda a Europa, bases de dados de perfis de ADN, as quais têm tido resultados positivos na identificação civil de pessoas vivas, pessoas desaparecidas e de cadáveres de vítimas de acidentes em massa e de catástrofes naturais. Estas bases de dados “foram inicialmente estabelecidas com finalidades criminais precisas e restritas, mas rapidamente foram sendo alargadas, por sucessivas medidas legislativas, vulgarizando as razões da sua criação e suscitando preocupações nas respectivas sociedades.”22 Actualmente, as bases de ADN estão em funcionamento no Reino Unido, Holanda, Áustria, Alemanha, Finlândia, Noruega, Dinamarca, Bélgica, França, Espanha, Suíça e Suécia e, desde 20
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Cfr. Jorge Seña, “Privacidad y mapa genético”, Revista del Derecho e Genoma Humano, nº 21, 1995:26. Resolução do Conselho de Europeu, de 9 de Junho de 1997, Jornal Oficial das Comunidades nº 193, p.2-3. Parecer nº 52/2007 da CNECV, 52/CNEVC/07, de Junho de 2007, p.2, emitido ao abrigo das competências previstas na alínea b) do n.º 1 do artigo 2°, conjugadas com o estatuído na alínea c) do artigo 7°, ambos da Lei n.º 14/90, de 9 de Junho.
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Março de 2008, regulada em Portugal. Um percurso pelas várias legislações europeias, cujo estudo comparativo deixamos de fora, propositadamente, dada a natureza do presente estudo revela que não existe um modelo consensual de bases de dados de perfis de ADN a nível europeu. De facto, regista-se uma grande heterogeneidade no que respeita aos critérios de inserção e armazenamento dos perfis de ADN, a necessidade de despacho judicial para o efeito, de inclusão e remoção dos mesmo e da permanência das amostras na base de dados ADN, diversidade que tem, naturalmente, subjacente as próprias características do sistema judicial de cada país e as específicas opções de política criminal, a capacidade técnica e financeira de cada estado e o debate ético-jurídico da utilização de ADN nas investigações criminais a nível dos direitos de privacidade e a confidencialidade das informações genéticas. Nesta medida, tendo como ponto de partida a inviolabilidade e irrenunciabilidade da informação pessoal genética tentaremos averiguar até que ponto a inserção de dados genéticos numa base de dados criada para efeitos de auxílio à investigação e prevenção criminal, colidirá com a dignidade e autonomia genética do indivíduo sob investigação ou do arguido já condenado, ao ponto de violar o seu direito fundamental à reserva da sua intimidade e, assim, o bem jurídico reserva da vida privada. 3.1. Características singulares dos dados genéticos 3.1.1. Conceito de dados genéticos O conceito “dados genéticos” convoca, antes de mais, uma definição a nível jurídico, no sentido de delimitar a matéria aqui tratada. Na definição constante da Recomendação do Conselho da Europa nº R (97) 5, constituem dados genéticos, todos os tipos de dados que digam respeito a características hereditárias do indivíduo ou que relacionadas com aquelas características constituem o património de um grupo de indivíduos. Na Declaração Internacional sobre Dados Genéticos Humanos, UNESCO, de 16 de Outubro de 2003, os “dados genéticos” aparecem como informações não óbvias relativas às características hereditárias das pessoas, obtidas por análise de ácidos nucleicos ou por outras análises científicas. A noção adoptada no artigo 3º, alínea a) pela Lei de Protecção de Dados Pessoais,23Lei nº 67/98 de 26 de Outubro, referente a dados pessoais, consagra que estes incluem “qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do 23
A Lei de Protecção de Dados Pessoais transpôs para a ordem jurídica portuguesa a Directiva n.º 95/46/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995, relativa à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento dos dados pessoais. Cfr., Manuel Curado, Direito Biomédico, Colectânea de Legislação e outros Textos, Quid Juris, 2008:653.
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respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável (titular dos dados).”Não obstante a LPDP não se referir directamente à natureza dos dados genéticos, acaba por “denunciá-los” como sendo dados pessoais, quando referindo-se ao tratamento de dados sensíveis24, no nº 1 do artigo 7º, proíbe o “ tratamento de dados pessoais referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem racial ou étnica, bem como o tratamento de dados relativos à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos.”Assim sendo, os dados sensíveis são elementos de informação pessoal, cujo tratamento informático, além de poder contender com a privacidade do sujeito, pode vir a dar origem a tratamentos desiguais ou discriminatórios. Então cabem no conceito de dados pessoais, dados ou elementos informativos da mais variada natureza, entre os quais os dados genéticos. A Lei 12/2005, de 26 de Janeiro25, que regulamenta a informação genética pessoal e informação de saúde, a circulação dessa informação, as intervenções no genoma humano, bem como as regras para a colheita e conservação de produtos biológicos para efeitos de testes genéticos ou de investigação avançou, igualmente, uma definição. Assim, o nº 1 do artigo 7º, sob a epígrafe “Bases de dados genéticos”, estabelece que, “Entendese por “base de dados genéticos” qualquer registo, informatizado ou não, que contenha informação genética sobre um conjunto de pessoas ou famílias.” Não obstante as definições de “dados pessoais” e “ficheiro de dados pessoais” serem substancialmente coincidentes com aquelas constantes da LPDP, já a noção de “base de dados”constante da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro,26tem uma natureza mais restrita, pelos próprios objectivos prosseguidos pelo diploma: a criação e manutenção de uma base dados de perfis de ADN, para fins de identificação, a regulamentação da recolha, tratamento e conservação de amostras de células humanas, e a respectiva análise para obtenção de perfis de ADN. Uma base de dados de perfis de ADN, segundo o artigo 2º, alínea l) da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro, é o “conjunto estruturado constituído por ficheiros de perfis de ADN e ficheiros de dados pessoais com finalidades exclusivas de identificação”, finalidade esta que é, depois, expressa no corpo do artigo 4º da referida Lei. Delimitado que se encontra o conceito de “base de dados”, com interesse para a matéria em tratamento, importa, pois, identificar a natureza dos dados genéticos a incluir na base de dados de perfis de ADN, o que, necessariamente, terá de passar pela destrinça entre a informação pertencente à vida privada e aquela respeitante à vida íntima de cada um de nós. 3.1.2. A natureza dos dados genéticos: dados íntimos ou privados Torna-se tarefa penosa, nos nossos tempos, tentar delimitar o que pertence à vida privada e íntima de cada um de nós. 24 25 26
Itálico nosso. Publicada no Diário da República nº 18, Iª Série – A, de 26 de Janeiro de 2005:606. Publicada no Diário da República nº 30, Iª Série – A, de 12 de Fevereiro de 2008:962.
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Sabemos já que o perfil de ADN é um dado de natureza genética e, por isso, pessoal, dotado de uma especial sensibilidade e vulnerabilidade, na medida em que, a partir do mesmo, é possível a identificação da herança genética de um indivíduo, expondo-o, assim, a decisões discriminatórias. Importa, agora, antes de mais, – abstraindo-nos das imensas questões, por não integrarem o objecto do presente trabalho, que se levantam quanto à recolha das amostras biológicas, o consentimento do dador destas, o seu estatuto processual e a admissibilidade probatória do perfil genético, questões que não cumpre, nesta sede, analisar – apurar se o perfil de ADN extraído de material biológico humano e que contém, atento o estado actual da biologia molecular, apenas elementos genéticos referentes à identificação do indivíduo, é um dado respeitante à sua privacidade ou intimidade. Resolvida que seja esta questão, o passo seguinte será o de averiguar se a inserção numa base de dados genéticos com fins criminais, dos perfis de ADN isolados do material celular, contende com o direito à intimidade genética do visado. A questão da reserva da intimidade da vida privada é geralmente discutida num quadro de situações de conflito entre direitos com dignidade jurídico-constitucional. O direito à reserva da intimidade da vida privada, como expressão da dignidade humana, é, por isso, um direito de personalidade, que engloba, também, o direito à protecção dos dados pessoais e, bem assim, à autodeterminação informativa, não obstante não ter a abrangência que lhe é dada pela jurisprudência americana, onde o right to privacy “surge como a expressão paradigmática de todos os direitos pessoais.”27 Na realidade entre os direitos de personalidade situa-se, aquele que alguns autores italianos qualificam de diritto alla riservatezza, isto é, direito ao resguardo traduzível através do modo de ser da pessoa que consiste na exclusão do conhecimento pelos outros daquilo que só a ela refere.28Ora, esta noção de direito à intimidade/privacidade não é pacífica quer do ponto de vista doutrinário quer do legal. Historicamente, o direito à privacidade está ligado à evolução do direito à expressão da comunicação social. Em 1890, a imprensa sensacionalista de Boston publicou factos relativos à vida privada de Samuel Warren, advogado de profissão. Este, juntamente com o jurista Louis Brandeis, e em resposta, publicou um artigo, na revista “Harvard Law Review”, revista de especialidade jurídica, onde abordava a questão da intimidade da vida privada defendendo o chamado “Right to be let alone”, expressão que ganhou corpo na doutrina jurídica norte-americana e é, ainda hoje, entendida como sinónimo de direito à privacidade.29Tal direito surge configurado como “the right of an individual to live a life of reclusion and anonymity”, “the right to be let alone” e a salvaguarda 27
28 29
Jorge Miranda e Rui Medeiros, “Constituição da República Portuguesa Anotada” Tomo I, Coimbra Editora, 2005:290. Cfr., entre outros Carnelutti, “II diritto alla vita privata”, Rivista trism. dir. pubbl, 1955, p. 5. Vítor Mendes,”Casos e Temas de Direito da Comunicação”, Legis Editora, 1996:144.
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da própria “peace of mind”.30 A dificuldade na clarificação do conceito de direito à privacidade é, ainda hoje apontada por Carole McCartney, precisamente quando refere que “Such a goal may be impossible when privacy is defined as inherently personal, with a lack of consensus over the intimacy of different Information making it ‘very difficult to collectively agree on the legitimate boundaries of the privacy bubble”.31De facto, alguma doutrina anglo-saxónica propõe, no sentido de se alcançar o verdadeiro sentido daquele conceito, a sua consideração como um valor social. Assim, S. Margulis explica que “(…) framing privacy as an individual right (value, interest) had a weak impact on congressional policy-making on technological threats to privacy … [enabling] those with competing concerns to eventually shape privacy legislation by invoking social interests, that is, by asking that ‘individual’ privacy interests be balanced with interests that served the public good such as effective law enforcement (…)”.32 Entre os autores espanhóis, enquanto alguns identificam a intimidade com a privacidade, outros, como Romeo Casabona consideram que a privacidade é um conceito mais amplo que a simples intimidade. A Constituição Espanhola, porém não resolveu a questão, embora no artigo 18º nº 1 da Constituição tenha considerado a intimidade genética como uma variante do direito à intimidade e, como tal, susceptível de protecção, nos termos do nº 4 daquele artigo 18º, mediante as intromissões informáticas. Na doutrina jurídica alemã, é conhecida a “teoria das três esferas”, “Sphärentheorie” que distingue diversas zonas do viver individual, representadas através de círculos concêntricos, com necessidades diferentes de protecção perante a ingerência de terceiros. Assim, do centro para a preferia identifica-se a zona da esfera íntima, a Imtimsphäre correspondente ao núcleo essencial da vida íntima de qualquer pessoa e que esta pretende manter secreta perante a colectividade. Tratase, no dizer de Costa Andrade, “de uma esfera inviolável e, como tal, subtraída ao princípio geral da ponderação de interesses e em particular à prossecução de interesses legítimos”.33 Já a esfera privada, coincide com a privacidade “stricto sensu” e, bem assim, ao segundo círculo correspondente ao Geheimnisphäre e que embora mais ampla que a esfera íntima, admite a participação de alguns indivíduos familiares e conhecidos do titular do direito deixando de fora o resto da comunidade. Na última esfera, a Privatsphäre, incluem-se todos os factos e acontecimentos do conhecimento de um círculo mais amplo de pessoas mas onde, ainda assim, a colectividade continua excluída. Admite-se aqui alguma 30 31
32
33
Samuel Warren e Brandeis, “The right to privacy”, Harvard Law Review, 1890:193. Carole McCartney, “Forensic Identification and Criminal Justice, Forensic science, justice and risk”, William Publishing, 1st Edition, July 2006:156. S. Margulis, “Privacy as a social issue and a behavioural concept”, Journal of Social Issues, 59(2) 2003: 249. Manuel da Costa Andrade, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999:729.
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ingerência com recurso a critérios de proporcionalidade e de ponderação de interesses . Entre nós, Paulo Mota Pinto considera que definir o conceito de privacidade “chega a raiar os limites do impossível” e conclui que a esta dificuldade de definição de um conceito que “é necessariamente indeterminado, acaba por se revelar imprestável, como um verdadeiro “conceito elástico”, afirmação que prova ser verdade no plano que aqui nos interesse: o da relevância jurídica da “privacidade”. Se é um facto que se empreenderam tentativas de definição filosófica, política, sociológica ou psicológica da “privacy”, não parece que se tenha logrado extremar o conceito com o mínimo de precisão, indispensável para poder servir de base a um regime jurídico coeso.”34 Porém, não obstante uma certa fluidez do conceito de intimidade da vida privada, que, aliás, a nossa Constituição não ajuda a fixar, temos por assente que tal conceito refere-se à intimidade da vida privada de cada um por oposição à vida pública, isto é, a um recanto de privacidade e anonimato de todos nós. Compreende, pois, aqueles actos que, não sendo secretos em si mesmos, devem subtrair-se à curiosidade pública por naturais razões de resguardo, melindre e pudor individual, como os sentimentos e afectos familiares, problemas físicos e psíquicos de cada um. Em suma, incluirá todos aqueles aspectos que façam parte do domínio mais particular e íntimo que se quer manter afastado de todo o conhecimento alheio, que todos nós pretendemos reservar ao segredo e ver respeitado pelos outros. Neste sentido, a intromissão na privacidade alheia por parte de quem a tal não está autorizado constitui, uma violação ao direito a intimidade da vida privada, direito protegido pelos ordenamentos constitucionais e ordinário. A protecção do direito constitucional à reserva da intimidade da vida privada e familiar faz-se, em primeira linha através da protecção dos dados pessoais, conferindo-se aos cidadãos o direito de preservar uma zona de não ingerência, inviolável e intangível da sua vida privada, protegida de intromissões por parte de estranhos e de não acesso à utilização dos dados pessoais de que são titulares,35em pleno respeito pelo seu direito à autonomia e liberdade. Coerentemente, a Constituição da República Portuguesa estipula, no artigo 26º, nº 2, o estabelecimento por parte da lei de “garantias efectivas” do direito à reserva da intimidade da vida privada pessoal. Refere, assim, o artigo 26º da CRP, na parte da sua redacção que interessa à matéria deste trabalho que “1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva 34
35
Paulo Mota Pinto, “O Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada”, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Volume 69, 1993:504-505. O direito à protecção dos dados pessoais, para além de integrar o elenco dos direitos, liberdades e garantias da CRP, integra outros instrumentos jurídicos nacionais regionais e internacionais, dos quais citamos a título de exemplo, a Lei de Protecção de Dados Pessoais, a Lei nº 67/98 de 26 de Outubro, Lei n.º 12/2005, de 26 de Janeiro e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
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da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.2.A lei estabelecerá garantias efectivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias. 3. A lei garantirá a dignidade pessoal e a identidade genética do ser humano, nomeadamente na criação, desenvolvimento e utilização das tecnologias e na experimentação científica (…).” O artigo 26º da Constituição da República Portuguesa, ao proclamar que, a todos os cidadãos são reconhecidos os direitos à identidade e historicidade pessoal, bem como o direito à reserva da intimidade da vida privada impõe o estabelecimento de garantias efectivas contra a utilização abusiva ou contrária à dignidade humana, de toda a informação relativa às pessoas e às famílias. Por isso mesmo, os interesses do processo criminal encontram limites na dignidade da pessoa humana e nos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, respectivamente consagrados nos artigo 1º e 2º da CRP, não podendo, portanto, terem-se com o válidos e legítimos actos que ofendam direitos fundamentais básicos. As garantias do direito à reserva da intimidade da vida privada encontram-se concretizadas em vários diplomas, nomeadamente e no que à nossa matéria respeita, nos artigos 35° a 49°, da Lei nº 67/98, de 26 de Outubro, Lei de Protecção de Dados Pessoais, referentes ao tratamento ilícito de informações e no Código Penal, no artigo 192° (Devassa da vida privada) e artigo 193° (Devassa por meio de informática). No tocante a normas internacionais a protecção da privacidade, referente às intromissões arbitrárias na vida privada e familiar encontra eco no artigo 8° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no artigo 12° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, bem como nas Directivas do Parlamente e Conselho Europeu nº 95/46/CE, de 24 de Outubro de 1995, nº 97/66/CE, de 15 de Dezembro de 1997, e nº 2002/53/CE, do 12 de Julho de 2002, respeitantes ao tratamento de dados pessoais e protecção da privacidade na sua circulação. A nível constitucional o âmbito de protecção da reserva da intimidade da vida privada e, assim, dos dados pessoais perante a utilização das bases de dados genéticos é reforçado no artigo 35° da Constituição da República. Esta disposição foi objecto de importantes alterações introduzidas pelas revisões constitucionais de 1982, 1989 e 1997, tendo sido concedido maior intensidade à protecção, em matéria de registo e tratamento informático, fruto dos desenvolvimentos tecnológicos e do crescente recurso a meios electrónicos. Esta acrescida preocupação constitucional reflecte a rejeição da tese da inocuidade da informática. Efectivamente, o recurso ao computador representa um perigo de violação dos direitos e liberdades individuais muito mais agudo do que os clássicos ficheiros manuais, o qual reside na concentração, interconexão, tratamento e difusão das informações que o ficheiro computorizado permite efectuar. O direito que é consagrado no artigo 35° é, segundo Jorge Miranda e Rui Medeiros “um direito de natureza negativa que permite que o indivíduo negue informação pessoal ou que se oponha à sua recolha e tratamento. Está em causa a tutela da reserva da vida privada da pessoa, a tutela do direito de estar Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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só, de não revelar factos relativos a uma esfera íntima de vida, e que só a ela dizem respeito, independentemente dos factos ou elementos em apreço levados à praça pública poderem ser em concreto muito bem valorados.”Porém, ainda segundo os mesmos autores, “assume-se como um direito a uma acção positiva/ prestação normativa por parte do Estado, vinculando-o a tomar medidas legislativas para a realização plena da autodeterminação da pessoa em face do uso da informática.”36 As providências imposta ao Estado - legislador pelo artigo 35º da CRP, com o objectivo de proteger o direito à autodeterminação incluem o estabelecimento, em diploma legal, de condições do tratamento, utilização, armazenamento e divulgação de dados pessoais, bem como de instrumentos de garantia da confidencialidade como um dos meios de exercício do direito à intimidade da vida privada dos titulares dos dados a serem tratados. Ora, o artigo 35º da CRP, (Utilização da informática), consagra, no seu nº 2, que “A lei define o conceito de dados pessoais, bem como as condições aplicáveis ao seu tratamento automatizado, conexão, transmissão e utilização, e garante a sua protecção, designadamente através de entidade administrativa independente.” Conforme referem, Gomes Canotilho e Vital Moreira, “o enunciado linguístico dados é o plural da expressão latina datum e está utilizada na Constituição no sentido que hoje lhe empresta a ciência informática: representação convencional de informação, sob a forma analógica ou digital, possibilitadora do seu tratamento automático (introdução, organização, gestão e processamento de dados).”37 Uma vez que a informatização dos dados pessoais contende inquestionavelmente com a intimidade da vida privada exige-se que a informatização obedeça a um princípio de justificação social, no sentido de que a criação e manutenção de ficheiros, bases de dados e bancos de dados deve ter um objectivo geral e usos específicos socialmente aceites; a sua criação deverá ser transparente, quanto à clareza dos registos, quanto às espécies ou categorias de dados recolhidos e tratados, quanto à existência ou não de fluxos de informação, quanto ao tempo de tratamento, e quanto à identificação do responsável do ficheiro, garantindo-se a segurança, e protecção que impõem a adopção de medidas tendentes a proteger e garantir os dados contra a perda, destruição e acesso de terceiros e de limitação, devendo ser cancelados, uma vez obtida as finalidades a que se propunham. “Todos estes requisitos permitem o controlo dos fins, impedindo-se, designadamente, que haja tratamento de dados relativos a finalidades não legítimas ou não especificadas (…)”.38A este propósito também Jorge Miranda e Rui Medeiros alertam para o facto de “ (…) a linearidade com que se deixa tratar a questão da compatibilidade entre o direito de autodeterminação informacional e a necessi36
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Cfr, Jorge Miranda e Rui Medeiros – Constituição da República Portuguesa Anotada – Tomo I, Coimbra Editora, 2005:290. Cfr., Gomes Canotilho e Vital Moreira – Constituição da República Portuguesa Anotada – Volume I, 4ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007:550. Cfr., Gomes Canotilho e Vital Moreira – Constituição da República Portuguesa Anotada – Volume I, 4ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007:553.
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dade da prevenção de crimes, designadamente crimes violentos, capazes de colocar em perigo da forma mais violenta o Estado e a sobrevivência dos cidadãos, não permite disfarçar um mal estar evidente com a possibilidade da utilização legítima (pois em causa está a finalidade que se serve) por parte da polícia, de dados informativos que permitem o acesso aos espaços mais privados da vida das pessoas“.39 Na doutrina britânica a mesma preocupação encontra voz em Kristina Staley, que expressou alguma apreensão quanto ao equilíbrio entre o princípio da boa administração da justiça e os interesses individuais de privacidade. Assim, numa referência à base de dados genéticos do Reino Unido, refere a autora que “It is not clear that the police use of DNA databases represents a ‘fair and just’ restriction of our right to privacy. The NDNAD contains information about people convicted of a wide range of offences; people arrested but never charged; people who have been acquitted; and people who have given their samples voluntarily. They all face the same threats to their rights. “40 Torna-se perfeitamente compreensível a posição e grande precaução assumida por estes e outros autores, nomeadamente constitucionalistas. De facto, os elementos de identificação constantes dos perfis de ADN a serem inseridos num banco de dados contêm informação genética que individualizam e caracterizam cada indivíduo, tornando-o singular e único. A informação sobre o genoma de um indivíduo representa a mais íntima expressão de quantos factores endógenos intervieram na conformação do seu estado de saúde presente e futura, uma vez que, atento o estado actual da ciência, calcula-se que cerca de 4000 patologias revestem carácter hereditário. Por isso mesmo, tais elementos pertencem, sem qualquer dúvida, ao núcleo da esfera da vida privada de cada um de nós, fazendo parte da nossa intimidade, como, aliás, ilustra bem a expressão de Stela Barbas, “o genoma é tão íntimo que está no cerne mais oculto da célula e do cromossoma.”41 Perante a sensibilidade do material genético, a Convenção Sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina estabeleceu logo no seu artigo 1º sob a epígrafe “Objecto e finalidade” a seguinte disposição: “As Partes na presente Convenção protegem o ser humano na sua dignidade e na sua identidade e garantem a toda a pessoa sem discriminação, o respeito pela sua integridade e pelos seus outros direitos e liberdades fundamentais face às aplicações da biologia e da medicina.” Mais adiante e prevendo a possibilidade do uso indevido das informações genéticas, hoje conhecidas através da aplicação das biotecnologias refere ser proibida toda a forma de discriminação contra uma pessoa em virtude 39
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Cfr, Jorge Miranda e Rui Medeiros – Constituição da República Portuguesa Anotada – Tomo I, Coimbra Editora, 2005:384. The Police National DNA Database: balancing crime detection, human rights and privacy”- A Report for Genewatch UK, Kristina Staley, January 2005, in www.genewatch.org. Acedido em 26 de Junho de 2009. Cfr., Op. cit, p. 203.
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do seu património genético. É que estes dados de natureza genética, por serem dados de carácter íntimo do indivíduo a que se referem, expondo também toda a sua família – as características genéticas adquirem-se e transmitem-se de forma hereditária – requerem uma protecção no domínio da confidencialidade, mais enérgica. Aliás, a Assembleia da República, no ponto VII, da sua Resolução nº 48/2001, resolveu recomendar ao Governo “o aprofundamento do debate nacional sobre a defesa e salvaguarda da informação genética pessoal, com constante apreciação das implicações sociais, científicas, jurídicas e éticas, no sentido de maior consciencialização colectiva e melhor resposta às questões emergentes do desenvolvimento da ciência genética humana.”42 Neste domínio, a Lei n.º 12/2005, de 26 de Janeiro, veio considerar a informação genética como aquela “ (…) informação de saúde que verse as características hereditárias de uma ou de várias pessoas, aparentadas entre si ou com características comuns daquele tipo (…), concluindo que essa mesma informação “ (…) deve ser objecto de medidas legislativas e administrativas de protecção reforçada em termos de acesso, segurança e confidencialidade.” 43Por outro lado, esta informação genética, como dado pessoal que é, ao ser submetido a tratamento informatizado, com vista à sua inclusão numa base de dados, deverá sê-lo “ (…) no estrito respeito pela reserva da vida privada, bem como pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais.”44 De tudo o que supra ficou exposto concluímos que a informação constante de um perfil de ADN a ser informatizado numa base de dados, é um dado genético, pessoal, íntimo e “sensível” pelas suas características singulares. Deste ponto de vista é forçoso concordar com a afirmação de Silva Rodrigues, quando refere que “ (…) a recolha de amostras biológicas, com vista à fixação dos perfis de ADN, a integrar numa base de dados de perfis de ADN, contende, por regra, com o direito à reserva da intimidade da vida privada pessoal e familiar, quer ao nível da colheita, quer ao nível da identificação da informação genética e seu tratamento informático.” O mesmo autor conclui ainda que, “ dada a natureza ’’sensível” dos dados genéticos, pode, até um certo ponto falar-se num verdadeiro “direito à reserva da intimidade genética”, no sentido de que existe uma esfera informacional genética cuja entrada pode perturbar, em alto grau, a reserva exigida em termos de vida privada”.45
Cfr., Manuel Curado, Direito Biomédico, Colectânea de Legislação e outros Textos, Quid Juris, 2008:307. Cfr., artigo 6º, nº 1 e 6, Lei n.º 12/2005, de 26 de Janeiro. 44 Cfr., artigo 2º da Lei nº 67/98 de 26 de Outubro. A noção de “ficheiro de dados pessoais”, consta da alínea c) do artigo 3º e refere-se a “qualquer conjunto estruturado de dados pessoais, acessível segundo critérios determinados, quer seja centralizado, descentralizado ou repartido de modo funcional ou geográfico”. 45 Benjamim Silva Rodrigues, “Da Prova Penal. A Prova Científica: exames, análises ou perícias de ADN? Controlo de velocidade, Álcool e substâncias Psicotrópicas”, Tomo I, Coimbra 2008:148-149. 42 43
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4. A base de dados genéticos na legislação portuguesa Em Portugal, antes da lei 5/2008, de 12 de Fevereiro, sobre a matéria vigorava a Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro, Lei de Protecção de Dados Pessoais, que transpôs para a ordem jurídica portuguesa a Directiva n.º 95/46/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995, relativa à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento dos dados pessoais e a livre circulação desses dados. A possibilidade da criação de uma base de dados para fins de investigação criminal era já indirectamente admitida pela Lei nº12/2005, de 26 de Janeiro, Lei sobre Informação Genética Pessoal e Informação de Saúde, que consagra no seu artigo 19º a regulamentação específica da criação de bancos de produtos biológicos para fins forenses de identificação criminal. No entanto, foram razões que se prendem em primeira linha com compromissos internacionais assumidos pelo Estado Português, bem como com o facto de Portugal se encontrar, à data, isolado na Europa quanto a criação de um instrumento que permitisse uma cooperação em matéria policial e judicial, no âmbito do Tratado de Prüm, que levaram à aprovação da Lei 5/2008, publicada em Diário da República, no dia 12 de Fevereiro de 2008, com entrada em vigor a 12 de Março de 200846, conforme o seu artigo 41º e que regula a criação da primeira base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e de investigação criminal. O processo legislativo iniciou-se em 08 de Junho de 2007, com a Proposta de Lei 144/X, tendo o Ministro da Justiça justificado a iniciativa legislativa referindo que “sem decair na defesa dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos, sejam eles arguidos, condenados ou vítimas — e isto quer à luz das regras constitucionais quer das boas práticas europeias — propõe-se um passo relevante na modernização dos mecanismos de investigação pericial quer no plano criminal quer no plano civil, ao mesmo tempo que se torna possível a nossa plena participação na cooperação europeia em matéria policial e judicial, em especial na era aberta pelo Tratado de Prüm”.47 A Lei 5/2008, de 12 de Fevereiro, não entrou em vigor sem alguma resistência, tendo sido a falta de consenso evidente logo aquando da votação da Proposta de Lei, atendendo aos riscos que representa a massificação do tratamento de dados pessoais. Procede-se, de seguida, à análise de alguns pontos do regime jurídico da lei 5/2008, de 12 de Fevereiro, que aprova a criação de uma base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal, apenas e na justa medida em que pensamos revestirem interesse para a matéria em discussão.
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Cfr., Diário da República, Iª Série – nº 30 de 12 de Fevereiro de 2008: 962. Cfr., http://app.parlamento.pt/DARPages/DAR, acedido em 24 de Abril de 2009.
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4.1. A Lei de criação da base de dados de perfis de ADN para efeitos de identificação criminal 4.1.1. Objectivos e princípios reguladores A Lei nº 5/2008, de 12 Fevereiro define os termos e condições para a criação, manutenção e operacionalidade da base de dados de perfis de ADN, em quarenta e um artigos concentrados em oito capítulos. Os objectivos - de investigação criminal da base de dados de perfis de ADN -encontram-se expressos no nº 2 do artigo 1º, onde se consagra o princípio da legalidade relativamente às finalidades de inserção de perfis de ADN numa base de dados. No que tange à justiça penal, as finalidades investigatórias são prosseguidas mediante o método comparativo, isto é, através da comparação de perfis de ADN, relativos a amostras de material biológico colhidas em locais de crimes com os das pessoas que, directa ou indirectamente, a eles possam estar associadas, com vista à identificação dos seus agentes, e com os perfis existentes na base de dados de perfis de ADN. Proíbe-se, assim, expressamente no artigo 4º, a utilização, análise e tratamento de qualquer tipo de informação obtida a partir da análise das amostras para finalidades diferentes das previstas, situação que encontra paralelo na alínea b) do nº 1 do artigo 5º da Lei de Protecção de Dados Pessoais.48 Benjamim Silva Rodrigues, refere-se aos “princípios gerais da legalidade, da autenticidade, veracidade, univocidade e segurança dos elementos identificativos”, para enfatizar os casos em que, nos termos legais se torna “possível a criação de base de dados de perfis de ADN, devendo tomar-se as necessárias precauções com vista à manutenção da autenticidade, veracidade, univocidade e segurança dos elementos identificativos, no sentido de se evitarem erróneas limitações ou restrições aos direitos fundamentais das pessoas envolvidas.”49 Apesar da importância dada pelo Legislador ao factor da vinculação ás finalidades de identificação civil e investigação criminal da criação de uma base de dados, concordamos com a posição expressa no Parecer nº 18/2007, da CNPD50, sobre a redundância do nº 3 daquele artigo 1º, bem como do nº 3 do artigo 5º da CNPD, uma vez que as finalidades da colheita, tratamento e armazenamento das informações genética, encontram-se expressamente referidas nos nºs 1 e 2 do artigo 1º, bem como no nº 1 do artigo 4º, devendo-se, quanto a nós, a “repetição” de tal proibição ás preocupações sentidas pelo Legislador quanto ao eventual uso (72) Artigo 5º, 1 – Os dados pessoais devem ser: (…) b)Recolhidos para finalidades determinadas, explícitas e legítimas, não podendo ser posteriormente tratados de forma incompatível com essas finalidades; 49 Silva Rodrigues, “Da Prova Penal – A Prova Científica: exames, análises ou perícias de ADN? Controlo de velocidade, Álcool e substâncias Psicotrópicas,”Tomo I, Coimbra 2008:337. 50 Cfr., Parecer nº 18/2007 da CNPD, Relator Eduardo Campos p.19. 48
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indevido das informações genéticas. Da leitura dos primeiros artigos da Lei sob análise, apercebemo-nos que a mesma, no que se refere à criação do ficheiro de perfis de ADN para fins de identificação criminal caracteriza-se pelo “minimalismo genómico”, segundo a tipologia de Robin Williams e Paul Johnson.51 Sob esta perspectiva é enfatizado o carácter inócuo da análise do ADN não codificante, que, de acordo com os conhecimentos actuais resultantes da descodificação do Genoma Humano, apenas permite a identificação dos indivíduos. A ideia de “minimalismo genómico” aparece desde logo na letra do artigo 12º da Lei n.º 5/2008 de 12 de Fevereiro, que aprovou a criação de uma base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal, a qual designaremos, doravante, como lei de criação de bases de dados de perfis de ADN. Assim, reza aquele artigo no nº 1, do seu artigo 12º, que “A análise da amostra restringe-se apenas àqueles marcadores de ADN que sejam absolutamente necessários à identificação do seu titular para os fins da presente lei. Obviamente que o disposto no artigo 12º, nº 1, apenas ficará completa se atendermos que, no artigo 2º, sob a epígrafe “Definições”, na alínea e), o conceito de marcador de ADN é referenciado como “ (…) a região específica do genoma que tipicamente contém informações diferentes em indivíduos diferentes, que segundo os conhecimentos científicos existentes não permite a obtenção de informação de saúde ou de características hereditárias específicas, abreviadamente ADN não codificante.” A este propósito, aquando da discussão da Proposta de Lei, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, (CNECV), defendeu uma visão de “excepcionalismo genético”,52 não acolhida pela lei 5/2008, de 12 de Fevereiro, com base no carácter excepcional da informação genética fundado entre nos avanços científicos na área das análises de ADN. Torna-se compreensível este entendimento do CNECV, considerando que é ainda demasiado prematuro chamar ao ADN não codificante “ADN inútil”53, uma vez que os estudos sobre a decifração do genoma continuam, podendo aquelas regiões, que demonstraram grande repetitividade, vir a revelar, afinal, relevante informação genética. A lei em análise não contemplou qualquer solução, para o caso de, em função dos desenvolvimentos científicos no domínio da biologia molecular, determinadas zonas do ADN não codificante virem, afinal, a revelar informação do foro mais íntimos do individuo, cujo perfil foi inserido na base de dados. Contudo, não vemos que o tivesse de dizer expressamente, uma vez que no Ponto II.2. da Resolução do Conselho da União Europeia, de 25 de Junho de 2001, relativa 51
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Cfr. Robin Williams e Paul Johnson, “Wonderment and dread: representations of DNA in ethical disputes about forensic DNA databases”, in New Genetics and Society 23 (2 2004: 205-223. Cfr. Robin Williams e Paul Johnson, op. cit. Na denominação anglo-saxónica “Junk-DNA”. No mesmo sentido, Sónia Fidalgo, refere “ (…) não se pode excluir com toda a certeza que, no futuro, venha a descobrir-se que este ADN afinal não é completamente “cego” quanto às características fenotípicas do indivíduo”. Cfr., Sónia Fidalgo,”Determinação do Perfil Genético como meio de prova em processo penal”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, nº 1, Janeiro-Março 2006:119.
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ao intercâmbio de resultados de análises de ADN, resulta claramente que, se no futuro, se descobrir que um determinado marcador genético permite obter informação para além da simples identificação do indivíduo, o mesmo será imediatamente excluído das bases de dados, deixando de ser utilizado. Entre nós, a Portaria nº 270/2009, de 17 de Março, veio definir os marcadores genéticos, cuja noção encontra-se expressa na alínea e) do artigo 2º da lei 5/2008, a serem integrados nos seis ficheiros de perfis que serão criados (perfis de condenados, dos voluntários, das amostras-referência e amostras-problema para identificação civil e das amostras-problema para investigação criminal). A escolha dos sete marcadores de DNA de inserção obrigatória corresponde ao conjunto já definido como o “European Standard Set”, considerados pela comunidade científica como os mais importantes na identificação genética e, advém ainda da necessidade de compatibilizar a base de dados portuguesa com as europeias já existentes.54Pensamos que, os marcadores a serem utilizados deverão ser objecto não só de complementarização, como admite o artigo12º, nº 4, mas também de revisão, à luz dos avanços técnicos científicos que forem ocorrendo no panorama internacional, sob pena de se frustrar a garantia constitucional de protecção da reserva da intimidade da vida privada individual ao legitimar o armazenamento de informação genética fenotípica do individuo em questão. 4.1.2. Critérios de colheita de amostras para efeitos de investigação criminal: o artigo 8º da Lei 5/2008, de 12 de Fevereiro Debruçar-nos-emos, de seguida, sobre a recolha e inserção de perfis para efeitos de criação do ficheiro com finalidades de investigação criminal, e somente quando tal recolha não tenha sido efectuado em regime de voluntariado do arguido, como permite o artigo 6º, nº 3 da Lei 5/2008, por referência ao nº 1 do artigo 3º da mesma Lei. O regime jurídico constante do nº 2 do artigo 8º, da Lei 5/2008, de 12 de Fevereiro, prevê que os registos genéticos sejam constituídos a partir das células humanas recolhidas em todos os condenados, por crime doloso com pena de prisão igual ou superior a três anos.55A colheita far-se-á através de um método não invasivo, nomeadamente pela colheita de células da mucosa bucal ou equivalente, em obediência o principio da proporcionalidade e respeito pela dignidade e integridade física e moral do indivíduo, conforme o artigo 25°, n.º 1da CRP. Relativamente à recolha de amostras nos termos do nº 1 do artigo 8º, isto é no âmbito da fase de Inquérito, não é estabelecida qualquer baliza relativamente à moldura penal abstracta do crime ou crimes em investigação. A este ó 54
55
De referir que, em Março de 2009, uma equipa de peritos do FBI esteve em Coimbra, a fim de instalar seu programa informático, CODIS, um dos mais avançados do mundo e que irá ser utilizado na gestão da informação genética. Artigo 8°, nº º 1 e 2 (Recolha de amostras com finalidades de investigação criminal).
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propósito, Silva Rodrigues lança sobre o nº 1 do artigo 8º da supra referida Lei “uma dúvida de admissibilidade do seu uso ao nível da pequena criminalidade (ou ate média criminalidade!), dado o princípio da proporcionalidade (artigo 18°, n.º 2 CRP) que deve reger toda a investigação probatória.” Quanto a esta última norma podemos compreender a dúvida suscitada, podendo violar o referido princípio constitucional, uma vez que legitima a recolha de material biológico ao arguido, em situações em que o mesmo se encontra indiciado por crimes com uma moldura penal abstracta relativamente baixa. De facto poder-se-á até detectar alguma incongruência por parte do legislador, nesta matéria. Por um lado cominou determinados ilícitos penais com uma pena pouco expressiva precisamente por considerar que representavam uma censurabilidade diminuída, permitindo, por outro que, através da recolha de amostras biológicas para fixação de perfil genético, se violem direitos fundamentais do arguido em situações em que, eventualmente a pena para o ilícito criminal é inferior a três anos. Assim, entendemos que, também aqui, o legislador deveria ter adoptado um critério, no mínimo, idêntico ao estabelecido no nº 2 do artigo 8º da Lei 5/2008.56 Consagra-se, assim, nesta do referido diploma que, não se tendo procedido à recolha da amostra em momento anterior, na fase de Inquérito ou da Instrução, a pedido do arguido ou ordenada oficiosamente por despacho do juiz, a partir da constituição de arguido, ao abrigo do artigo 172° do Código de Processo Penal, “ (…) é ordenada, mediante despacho do juiz de julgamento, e após trânsito em julgado, a recolha de amostras em condenado por crime doloso com pena concreta de prisão igual ou superior a 3 anos, ainda que esta tenha sido substituída.”57A respeito deste ficheiro, e antes da entrada em vigor da Lei 5/2008, referiu o Ministro da justiça Alberto Costa que “ (…) a inclusão de um perfil de ADN na base de dados foi alvo de estudo e ponderação. Foram observadas as realidades noutros países, as boas experiências e práticas que aí são seguidas, analisadas as taxas de sucesso… Nunca se perdendo de vista o ponto de referência fundamental: a realidade penal portuguesa.”58 Não obstante a recolha apenas poder ser realizada a pedido do próprio arguido, numa estratégia de defesa ou pelo juiz, para o esclarecimento da verdade dos factos, nos termos do nº 1 do artigo 8º, da Lei 5/2008 é, contudo, obrigatória em indivíduos que tenham sido condenados, por crime doloso, em pena igual ou superior a três anos de prisão, e deve ser autorizada por despacho prévio do juiz de julgamento. Na sua globalidade, o artigo 8º, nº 1 da supra referida Lei é um bom exemplo de politica criminal, na medida em que não estabeleceu qualquer catálogo de 56 57
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Cfr., Op. cit, p.395. A CNPD, nas conclusões do Parecer nº 18/2007, considerou que “o elemento temporal que dita a inserção do perfil de ADN na base de dados para investigação criminal, constituído pela pena concreta decretada de 3 anos de prisão efectiva, parece excessivo, devendo ser substituído pela pena concreta de 10 ou, no mais que se admite, de 5 anos de prisão efectiva.” Discurso proferido na Delegação de Lisboa do INM L, IP, em 1 de Junho de 2007.
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delitos cujo o seu cometimento e condenação implicaria tout court a inserção do perfil de ADN do condenado, ás vezes sem qualquer utilidade, restringindose direitos individuais de forma quase gratuita. Em vez disso estabeleceu uma moldura de condenação efectiva que abrange um alargado catálogo de ilícitos criminais, incluindo, naturalmente, os crimes sexuais, aqueles mais susceptíveis de deixar vestígios biológicos. Igualmente o critério da reincidência, só por si, seria insuficiente, embora, indirectamente acabe por ser contemplado no nº 2 do artigo 8º da Lei 5/2008, já que é também ponderada na aplicação da medida concreta da pena para além das circunstâncias referidas no artigo 71º do Código Penal, o seu registo criminal, nomeadamente e no que à prevenção geral e especial respeita, o cometimento de ilícitos da mesma natureza. Como critica à disposição normativa do artigo 8º, nº 2, que disciplina a recolha de amostra biológica ao condenado, alguns referem a total omissão quanto à fundamentação do despacho judicial que procede a tal ordem, contrariamente à sugestão de alteração da Proposta de Lei n.º 144/X do Partido Comunista Português. Entendemos, porém, que o referido artigo não tinha que impor qualquer dever de fundamentação do despacho ordenador da recolha de material, uma vez que tal exigência resulta já do artigo 97º, nº 5 do Código de Processo Penal, segundo o qual “Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.”, na sequência do texto do art. 205º n.º l da CRP- “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. A única questão que, neste domínio pode ser levantada e que nos parece puramente académica, é a de saber, perante a compressão do direito à intimidade genética do arguido condenado, qual o grau de fundamentação da despacho judicial. Quanto a nós, e em resposta à referida questão, o despacho referido no artigo 8º nº 2 da Lei 5/2008, de 12 de Fevereiro, deverá ser minimamente justificado, em termos de necessidade, adequação e proporcionalidade da colheita do vestígio biológico e a sua inserção no banco de dados genéticos com a finalidade de auxiliar à investigação criminal, em conformidade com o artigo 97, nº 5º do Código de Processo Penal. Porém, não se exige uma fundamentação exaustiva dos pressupostos, uma vez que, e atento os critérios do artigo 8º, nº 2, alguns dos fundamentos resultarão já da sentença condenatória, nomeadamente da fundamentação encontrada para a medida concreta da pena aplicada ao arguido, nos termos dos artigo 70º e 71º do Código Penal e 374º, do Código de processo Penal. Assim, e em resumo, a fundamentação do despacho que ordene a recolha de amostras biológicas ao arguido condenado, por crime doloso, em pena de prisão igual ou superior a 3 anos, deverá sê-lo em termos concisos, suficientes e na exacta medida em que se tornem compreensíveis as razões de pertinência, adequação, relevância, necessidade e proporcionalidade da obrigatoriedade do arguido de se submeter a exames de recolha de amostra para extrair o perfil de ADN para registo no ficheiro da base de dados dedicado à investigação 272
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criminal. Alias, só assim, se poderá imputar ao arguido a prática de um crime de desobediência, em caso de recusa na recolha, nos e para os efeitos do disposto no artigo 348º, alínea b) do Código Penal. A recusa de submissão à colheita, não estando definida na lei em análise, deverá ser punida por crime de desobediência nos termos do disposto no artigo 348º, nº 1, alínea b), do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro com as alterações introduzidas pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.59 Questiona-se, até que ponto a norma em referência tornará o arguido já condenado, por decisão transitada em julgado, vulnerável um tratamento discriminatório, com violação do seu direito à presunção de inocência, ao permitir a recolha de amostras desde logo ao arguido condenado em mais de três anos de prisão efectiva, não exigindo quaisquer outros requisitos ou pressupostos respeitantes ao tipo de crime cometido, (contra as pessoas ou contra o património), ou à pertinência da inclusão do perfil de ADN na base de dados, para efeitos de prevenção geral e/ou especial de cometimento de tipo de crime, da mesma natureza. A CNPD, vê nesta faculdade concedida ao juiz de julgamento, a expressão de um “automatismo “cego” no que toca ao principio da proporcionalidade”, e que “parte de um perfil criminógeno da personalidade do arguido.”60Ora, discordamos desta posição, a qual nos parece até contraditória perante as mesmas exigências, aplaudidas pela a referida Comissão, de fundamentação do despacho que ordene a recolha da amostra biológica ao arguido para efeitos de isolamento do perfil de ADN. Assim, se o despacho judicial contém ou deverá conter, nos termos que deixámos explanados anteriormente, a exposição, ainda que sumária, das razões de facto e de direito que fundamentam a recolha do material biológico, não vislumbramos qualquer automatismo na decisão e, muito menos qualquer consideração cega e abstracta à personalidade delinquente do arguido, o qual, aliás já se encontra condenado em pena de prisão por sentença ou acórdão transitado em julgado, nos quais, e por imposição legal foi tida consideração a sua personalidade, condições sócioeconómicas, bem como o seu registo criminal. Da base de dados constarão os perfis de ADN resultantes da análise das amostras colhidas e os correspondentes dados pessoais, os quais serão introduzidos e conservados em ficheiros separados e manipulados por utilizadores distintos. O artigo 16° centraliza numa entidade, o Instituto Nacional de Medicina Legal, a responsabilidade pelo tratamento de dados pessoais, atenta a “confidencialidade da informação, as possibilidades de desvirtuamentos da 59 Artigo 348. ° 1. Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se: (…) ou b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação. 60 Cfr., Parecer nº 18/2007, da CNPD, p.23. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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sua utilização e desvios de finalidade, potenciados com o aumento de entidades que participam no tratamento.” 61 A base de dados de informação genética ficará instalada na Faculdade de Medicina de Coimbra, “em instalações protegidas por um nível de alta segurança. O Instituto Nacional de Medicina Legal, cuja sede é também naquela cidade, será a entidade responsável pela Base e por todas as operações nela efectuadas.”62 O cruzamento das duas informações será controlado pelo Conselho Nacional de Fiscalização da Base de Dados de Perfis de ADN, uma entidade administrativa independente, composta por três cidadãos de reconhecida idoneidade e no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos.63Os dados pessoais e os perfis de ADN só podem ser comunicados, para efeitos de investigação criminal ou de identificação civil, aos magistrados do processo, aos órgãos de polícia criminal e ao Instituto de Medicina Legal, mediante autorização daquele Conselho. Naturalmente que a entidade responsável deve certificar-se que as entidades destinatárias dessas comunicações respeitam os prazos de conservação e o dever de eliminação dos dados pessoais, bem como as finalidades para as quais foram criadas tais informações genéticas. Já quanto à interconexão de dados no âmbito da cooperação internacional em matéria penal devem ser respeitados os compromissos assumidos pelo Estado Português, sobretudo os decorrentes da Convenção da Europol e da adesão ao Tratado de Prüm. A comunicação de dados referentes a perfis de ADN, sendo uma operação que implica o tratamento de dados pessoais, deverá ser feita no integral cumprimento do disposto nos artigos 35°, nº 3 da CRP e artigo 7°, nº 2 e 8° nº 1 da LPD, sendo precedida de ordem do Juiz Instrução, enquanto “juiz das liberdades e de garantias”.64 4.2. A base de dados genéticos e os pressupostos de garantia do direito à reserva da intimidade da vida privada: 4.2.1. O princípio da proporcionalidade na restrição de direitos fundamentais. A aplicação da genética na investigação criminal, como técnica de identificação individual suscita diversas questões. A possibilidade de obter 61 62 63
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Cfr. Parecer nº 18/2007, da CNPD. Cfr. “Diário de Noticias”, de 18 de Março de 2009. Fazem parte das competências do Conselho de Fiscalização, emitir parecer sobre o regulamento de funcionamento da base de dados; obter informações, por parte do INML, sempre que necessário ao exercício dos poderes de fiscalização; efectuar visitas de inspecção; elaborar relatórios a apresentar à AR, pelo menos uma vez por ano, sobre o funcionamento da base de perfis de ADN; emitir instruções sobre questões específicas analisadas oficiosamente ou que lhe sejam colocadas e apresentar sugestões de iniciativas legislativas sobre matéria relativa às bases de perfis de ADN. Actualmente o Conselho de Fiscalização é presidido por um magistrado de carreira, o Juiz Conselheiro Simas Santos. Cfr. alínea d) do artigo 269° do C. P. P.
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informação essencial de um indivíduo mediante a análise do seu ADN, levou alguns autores a referirem-se à criação de um “cidadão transparente ou de cristal”, considerando que a intimidade genética, decorrência do direito à intimidade, em conjunto com a intimidade informática constitui a última projecção do direito à intimidade numa sociedade que dispõe de meios técnicos suficientemente desenvolvidos para conhecer o âmbito mais reservado das pessoas.65 Ora, a mera recolha de vestígios biológicos abandonados no local da prática do crime, sem que previamente tenha havido autorização judicial, contrariamente à recolha de amostras através de intervenção no corpo de qualquer suspeito, não afecta nenhum direito fundamental, já que se entende que tais amostras tornaram-se “res nullius” e, por isso, acessíveis aos investigadores criminais. Já a análise do perfil de ADN das amostras, determinando-se o perfil genético do seu portador e a sua posterior introdução em bases de dados para assegurar uma maior eficácia no esclarecimento de futuros delitos criminais implica uma ingerência no direito fundamental à auto-determinação informacional, cujo âmbito, mais do que a protecção da vida pessoal e familiar perante as intromissões de terceiros é o de garantir ao indivíduo o poder de controlo sobre os seus dados pessoais, como essência da realização da sua individualidade, impedindo o tráfico ilícito desses dados. Porém, nada obsta a que o legislador estabeleça limites àqueles direitos fundamentais com o objectivo de assegurar a execução e cumprimento da justiça penal, assegurando uma justa exigência da ordem pública e do bemestar geral, desde que, obviamente, os limites ou restrições não destruam ou afectem o conteúdo essencial daqueles direitos. Tal significa que, a limitação ou restrição de um direito fundamental somente pode ter lugar à luz dos critérios rigorosos do artigo 18°, nº 2 da CRP, normativo que consagra um principio de proporcionalidade, a que está vinculado todo o operador jurídico na limitação do bem jurídico em questão. Apenas será ilegítima a restrição dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados em caso de conflito com direitos ou valores da mesma matriz, quando a restrição atente contra as exigências (mínimas) de valor que, por serem a projecção da ideia de dignidade humana, constituem o fundamento de cada preceito constitucional nesta matéria, sendo certo que, mesmo no caso de falta de preceito constitucional que autorize a restrição pela lei pode tal falta ser colmatada pelo recurso à Declaração Universal dos Direito do Homem, nos termos ao nº 2 do artigo 16º da Constituição da República.Com efeito, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu art.29° permite que o legislador estabeleça limites aos direitos fundamentais para assegurar o reconhecimento ou o respeito de «direitos e liberdades de outrem», «justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar geral numa sociedade 65
Etxeberria Gurid, José Francisco, “Reserva Judicial e outras questões relacionadas com o uso do ADN na investigação penal em Espanha”, em Revista Derecho y Genoma, nº 27 /2007, p. 39 a p.53 e nº 28/2008, p. 105 a p.140.
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democrática». Também a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nos artigos 5°, nº1 e 8°, nº 2, admite a restrição do direito à intimidade, desde que tal esteja previsto numa lei e que a restrição se cinja ao essencial à salvaguardar do núcleo de outros direitos fundamentais envolvidos em tal limitação ou restrição. Igualmente no artigo 5º, alínea d) da LPDP, na falta de consentimento do titular dos dados pessoais, o seu tratamento só será admissível se for necessário “prossecução de interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou de terceiro a quem os dados sejam comunicados, desde que não devam prevalecer os interesses ou os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados.” Mais adiante, a mesma lei, no artigo 8º, nº 3 declara que, “o tratamento de dados pessoais para fins de investigação policial deve limitar-se ao necessário para a prevenção de um perigo concreto ou repressão de uma infracção determinada, para o exercício de competências previstas no respectivo estatuto orgânico ou noutra disposição legal e ainda nos termos de acordo ou convenção internacional de que Portugal seja parte.” Ora, como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros, “ (…) estando em causa um interesse público relevante, que reflexamente pode acabar por ser o próprio interesse do cidadão atingido pela revelação dos seus dados pessoais pode-se justificar a restrição ou limitação do direito, ponto é que, essa exigência resulte claramente da lei, e se assegure ou se garanta a não discriminação com base nesses dados.”66Assim, as necessidades de perseguição penal, de que depende a administração da justiça penal, essencial ao desenvolvimento tanto quanto possível harmónico da sociedade politicamente organizada, e, neste sentido, também fundamental à realização da autonomia, liberdade e dignidade da pessoa humana justificam a compressão do direito à intimidade da vida privada. Aqui chegados, e tendo por certo que devem ser restringidas “ (…) ao excepcional, as circunstâncias de acordo com as quais é permitido o tratamento daqueles dados reforçando-se as condições e as restrições de tratamento e acesso aos mesmos,”67,68podemos passar à questão de saber como são resolvidas as situações de conflito entre o interesse público do Estado na boa administração da justiça penal, através do recurso as bases de dados de perfis genéticos, com finalidades de investigação criminal e o direito à reserva da intimidade privada daqueles cuja informação genética fará parte da base de dados de ADN.
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Cfr, Jorge Miranda e Rui Medeiros – Constituição da República Portuguesa Anotada – Tomo I, Coimbra Editora, 2005:386. Fernanda Henriques e Jorge Sequeiros. Relatório - Regime Jurídico da Base de Dados de Perfis de ADN - Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, p. 17, disponível em http://www.cnecv. gov.pt/cnecv/pt/Pareceres. Acedido em 17 de Abril de 2009. Cfr, artigos 7º e 8º da Lei nº 67/98 de 26 de Outubro.
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4.2.2. A previsão e reserva legal da lei de restrição de direitos liberdades e garantias de acordo com os artigos 18°, nº 2, e 165º, nº 1, alínea b) da Constituição da República portuguesa. Os direitos fundamentais como direitos subjectivos que são beneficiam das características expressas no artigo 18º da CRP, de aplicabilidade imediata e vinculação geral, apenas podendo ser restringidos na medida em que tal se torne indispensável à defesa de outros direitos liberdades e garantias. Este núcleo de direitos apenas pode ser restringido nas situações expressamente admitidas pela Constituição, desde que se vise salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, a restrição seja apta para o efeito e se limite à medida necessária para alcançar esse objectivo e, finalmente que não seja aniquilado o direito em causa atingindo o conteúdo essencial do respectivo preceito. O nº 2, 1ª parte do artigo 18º da CRP, sob a epígrafe (Força jurídica) dispõe que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição (…)”. O sentido da imposição constitucional da aplicabilidade directa das normas constitucionais consagradoras de direitos, liberdades e garantias é o de que elas não estão dependentes de nenhuma lei concretizadora, o que significa que são de aplicabilidade directa. Esta “aplicabilidade directa transporta, em regra, direitos subjectivos, o que permite (…) invocar as normas consagradoras de direitos, liberdades e garantias na ausência de lei”, bem como a “invalidade dos actos normativos que, de forma directa, ou mediante interpretação infrinjam os preceitos consagradores de direitos, liberdades e garantias, impondo-se, assim, na solução dos casos concretos, contra a lei e em vez da lei, ou contra determinada interpretação da lei.”69 Reconhecendo-se que a utilização de perfis de ADN na investigação criminal é um método mais seguro e fiel sendo, por isso, as bases de dados genéticos instrumentos imprescindíveis à investigação da criminalidade que hoje assume características transfronteiriças, é a própria Constituição que, nesta matéria, no artigo 35º, nº 2 estabelece limites, não especificados, ao âmbito potencial do direito fundamental à intimidade da reserva da vida privada. Considerando que a lei de criação de bases de perfis de ADN, para fins de investigação criminal visa salvaguardar interesses constitucionalmente protegidos, designadamente, a administração da justiça e a segurança colectiva, o seu carácter geral e abstracto, não retroactivo, bem como o facto de não atingir o núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias conferem-lhe adequação ás exigências constitucionais. Neste sentido, não obstante alguma compressão do direito à intimidade da vida privada e familiar, o qual não perde o seu sentido útil, o referido regime jurídico, apresenta-se como um meio exigível e adequado ao objectivo proposto, 69
Gomes Canotilho e Vital Moreira – Constituição da República Portuguesa Anotada – Volume I, 4ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007:283.
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o da boa administração da justiça e segurança pública, sendo a restrição ao direito à reserva da intimidade da vida privada perfeitamente proporcional às vantagens que tal contracção acarreta para o bem público. Por outro lado, as restrições aos direitos, liberdades e garantias encontramse sujeitas a um regime especial, prescrevendo-se uma regime de reserva de lei formal e material a qual garante a habilitação suficiente da lei restritiva de direitos liberdades e garantias, através da atribuição de reserva de competência à Assembleia da Republica ou, nos termos do art. 165° do CRP, por Decreto-Lei governamental devidamente autorizado, nos termos dos artigos 167° e 168°, n.º 1, alínea b) da CRP. O grau de densidade suficiente do seu conteúdo, em termos de determinação e fundamentação, isso garante a sua legitimação perante os cidadãos. Ora, torna-se claro que a Lei 5/2008, de 12 de Fevereiro, fornece um quadro normativo específico dotado de densidade normativa suficiente, sem que tenhamos necessidade de recorrer a quaisquer outros preceitos, apresentandose como uma legislação específica regulamentada, logo protectora dos direitos fundamentais das pessoas. Bastará, para tanto que atentemos ao disposto no artigo 1º, onde se explicita o objecto da lei “A presente lei estabelece os princípios de criação e manutenção de uma base de dados de perfis de ADN, para fins de identificação, e regula a recolha, tratamento e conservação de amostras de células humanas, a respectiva análise e obtenção de perfis de ADN, a metodologia de comparação de perfis de ADN, extraídos das amostras, bem como o tratamento e conservação da respectiva informação em ficheiro informático.” No nº 2 ainda se acrescenta que “A base de dados de perfis de ADN serve ainda finalidades de investigação criminal.” No artigo 3º, concretizamse os princípios que deverão orientar tratamento da informação genética, “sendo que tal tratamento dos perfis de ADN e dos dados pessoais deve processar-se de harmonia com os princípios consagrados nos termos da legislação que regula a protecção de dados pessoais, nomeadamente, de forma transparente e no estrito respeito pela reserva da vida privada e autodeterminação informativa, bem como pelos demais direitos, liberdades e garantias fundamentais.” Por outro lado, a potencialidade lesiva do direito à intimidade da reserva da vida privada encontra-se diminuída pela qualidade da informação constante dos perfis a serem inseridos na base de dados, os quais apenas contêm marcadores de ADN não codificante e que, segundo o nº 1 do artigo 12º, são “absolutamente necessários à identificação do seu titular”, não permitindo, segundo os conhecimentos científicos existentes, a obtenção de informação sobre a saúde ou características hereditárias específicas do indivíduo.
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4.2.3. A valoração concreta dos interesses constitucionalmente protegidos, nos termos e para os efeitos do artigo 18°, nº 2, 2ª parte da Constituição da República portuguesa. A doutrina consagrada no artigo 18º, nº 2 da CRP impõe ao legislador, na criação ou aplicação de normas que permitam a restrição dos direitos fundamentais, o respeito pelo princípio da proporcionalidade, realizando uma ponderação concreta dos valores em colisão no sentido de ser conseguido um justo equilíbrio entre os vários direitos ou interesses legalmente protegidos perante situações conflituantes. Nessa medida, apenas é restringido um direito fundamental se tal restrição surgir como equilibrada, no sentido de que gerará mais benefícios ou vantagens para o interesse comunitário do que os sacrifícios que são impostos ao direito do lesado. Da referida norma constitucional deriva a ideia de que todo o direito fundamental que se pretende restringir tem de ser apropriado, adequado para atingir o fim que se pretende obter mediante tal limitação, utilizando-se medidas que sejam indispensáveis e insubstituíveis por outros, no sentido de que envolvem um menor sacrifício para o direito fundamental conflituante. Neste sentido a ingerência na vida privada do indivíduo sob investigação ou já condenado em pena de prisão efectiva, superior a 3 anos e, através da inserção do seu perfil genético na base de dados, nos termos do disposto no artigo 8º, nº 2, da Lei nº 5/2008, só acontecerá por ser uma medida idónea para futuras investigações criminais e como medida de prevenção e de combate à criminalidade. Além do mais, à vista da eficácia deste instrumento de politica criminal, de grande utilidade para o exercício do “ius punendi” Estatal, a invasão na esfera privada da vida do arguido ou condenado apresenta-se limitada, se atendermos, como já atrás deixamos expendido, que, nos termos do disposto no artigo 12º, nº1 da Lei n.º 5/2008 “ a análise da amostra restringe-se apenas àqueles marcadores de ADN que sejam absolutamente necessários à identificação do seu titular”. Ou seja, apenas será tido em consideração para isolamento de perfis de ADN, o não codificante, o qual tem valor identificativo sim, mas pouco lesivo da intimidade da vida privada e do direito à autodeterminação informacional. Este será eliminado nos termos do artigo 26º, nº 1 alínea d) no termo do processo crime ou no fim do prazo máximo de prescrição do procedimento criminal, previsto no Código Penal, ou quando se proceda ao cancelamento definitivo das respectivas decisões no registo criminal do arguido condenado em pena igual ou superior a 3 anos de prisão, conforme o artigo 26, nº 1 alínea f) da referida lei. Ilustrativo, igualmente, do rigoroso respeito por parte da Lei 5/2008 de 12 de Fevereiro deste subprincipio da necessidade e, por isso, do principio mais lato que é o da proporcionalidade é a norma do artigo 8º, nº 6 da mencionada lei, onde se consagra que tratando-se de arguido em vários processos, simultâneos ou sucessivos, deverá ser dispensada a recolha da amostra, mediante despacho judicial, sempre que não tenham decorridos cinco anos desde a primeira recolha Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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e, em qualquer caso, quando a recolha se mostre desnecessária ou inviável. 4.2.4. O princípio da reserva judicial Um dos objectivos propostos pela Lei 5/2008, de 12 de Fevereiro, quanto à matéria que interessa a este trabalho encontra-se, desde logo no artigo 1º, nº 2, o qual refere que “A base de dados de perfis de ADN serve (…) finalidades de investigação criminal.” Para tanto, conforme dispõe o artigo 14º “os perfis de ADN resultantes da análise das amostras, bem como os correspondentes dados pessoais, são introduzidos e conservados em ficheiros de dados de perfis de ADN e ficheiros de dados pessoais (…)”, e, quando recolhidos ao abrigo do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 8°, bem como os correspondentes dados pessoais, “são introduzidos na base de dados de perfis de ADN, mediante despacho do juiz de julgamento.” (Cfr., artigo 18º, nº 3). Considerando que a colheita, inserção e armazenamento de perfis de ADN numa base de dados com o objectivo de auxiliar a investigação criminal contendem com o direito à privacidade individual e familiar, o direito à integridade física e o direito à autodeterminação informativa do titular, atendendo à sensibilidade da informação genética que tais perfis contêm, existem motivos de peso para submeter a realização das análises de ADN, quer as encontradas no local do crime, quer aquelas obtidas através de intervenções corporais, à autorização judicia, havendo, nesta matéria a consagração de um principio de reserva judicial absoluta. Quando as amostras devam ser colhidas ao abrigo do nº 1 do artigo 8 º, o supra referido princípio mantém-se, competindo ao Juiz de Instrução ordenar a recolha, custódia e exame dos vestígios ou provas materiais do delito, no caso de ausência de consentimento por escrito do visado, em condições de garantir a sua autenticidade. A validade como prova de tais elementos depende da actuação policial em conformidade com o respeito pelo princípio da reserva judicial. Porém, a reserva judicial absoluta não se impõe relativamente à recolha de amostras genéticas de pessoas desconhecidas, a realização da análise genética à amostra desconhecida, bem com a sua inserção na base de dados. Aqui, a intervenção judicial prévia constitui um formalismo inútil, devendo ser dispensada, uma vez que a essência da reserva judicial assenta na existência de uma ingerência nos direitos tutelados de uma pessoa concreta, o que claramente não acontece nestes casos. Quanto a arguido condenado por sentença ou acórdão transitado em julgado a reserva judicial é, igualmente absoluta, devendo ser extraídas células corporais, por ordem judicial, quando o Tribunal conclua e fundamente por escrito, nos termos que deixamos explanados supra com base na modalidade do facto, ou da sua execução ou ainda pela personalidade do suspeito e segundo um juízo de prognose judicial de perigosidade, que poderá vir no futuro a ter processo da mesma natureza a correr contra ele.
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5. A Jurisprudência do Tribunal Constitucional Português e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Vale a pena uma breve referência a duas decisões, entre muitas outras, que evidenciam, a propósito de tratamento de dados pessoais, o argumento da proporcionalidade entre as restrições aos direitos liberdades e garantias dos cidadãos. Assim, muito recentemente o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se, através do Acórdão nº 213/2008, proferido no Processo nº 671/0770, sobre a temática das proibições de prova em processo penal por violação do direito à autodeterminação informacional e da reserva da intimidade da vida privada. Em causa estava a questão da admissibilidade da valoração como meio de prova de documentos – lista de passagens Via Verde disponibilizados pela empresa Via verde a pedido do Ministério Público – relativos a dados pessoais de um arguido e respeitantes à sua vida privada, retirados de uma base informatizada sem o respectivo consentimento, por violação do disposto nos artigos 17°, 18°, nº1 a 3, 32°, nº 8, e 35°, nº 4, da Constituição da República Portuguesa. Quer o Tribunal de 1ª Instância quer o Tribunal da Relação de Coimbra, para onde o arguido recorreu da primeira decisão consideraram provados os factos imputados a este e que conduziram à sua condenação como autor de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário e de um crime de injúrias, com base no conteúdo de um documento correspondente à listagem de passagens do veículo conduzido pelo arguido nas portagens da auto-estrada e que foram oportunamente registadas pelo identificador “Via Verde” instalado no veículo e que foram ulteriormente objecto de tratamento informático pela referida empresa. Ambas as instâncias entenderam que o Ministério Público detinha legitimidade para ordenar a junção daqueles meios de prova aos autos, a fim de serem valorados, sem que tal junção constituísse devassa da vida privada do arguido. O Tribunal Constitucional foi de opinião de que a listagem de passagens de um veículo automóvel nas portagens da auto-estrada, por se reportar também ao seu utilizador integra o conceito de “ dados pessoais” nos termos do artigo 3°, alínea a), da Lei de Protecção de Dados Pessoais, sujeitos às regras estabelecidas no artigo 35° da CRP. Neste último artigo, lê-se no referido Acórdão, “protegese o chamado direito à autodeterminação informacional, o qual tem um círculo de aplicação apenas parcialmente coincidente com o círculo de aplicação do direito à reserva da intimidade da vida privada e que funciona como direito de garantia deste”. No entanto, “ (…) a proibição contida no artigo 35°, nº 4, da CRP, como o próprio preceito indica, não é absoluta, admitindo excepções que poderão ser definidas pelo legislador ordinário. Estas excepções constituem 70
Cfr. Diário da República nº 86, 2ª Série, de 5 de Maio de 2008, pp. 1992 a 1996.
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restrições ao direito de controlo do registo informático, devendo ser-lhes aplicada o regime das restrições aos direitos, liberdades e garantias dos nº3 e 2 do artigo 18°da CRP”. Uma das excepções refere-se, precisamente, ao interesse público constitucionalmente protegido da descoberta da verdade material, essencial à administração da justiça penal como pilar de um Estado de direito”, podendo “ justificar a quebra da confidencialidade dos dados pessoais, desde que dela não resulte uma restrição intolerável dos direitos fundamentais do cidadão.” Acrescentou aquele Tribunal que, “situando-se o tipo de intromissão sub iudicio numa zona já afastada do núcleo mais íntimo da vida privada, justifica-se plenamente que prevaleça o interesse superior da obtenção da verdade material na realização da justiça penal, o qual legitima o conhecimento e a valoração probatória judicial das mencionadas listagens, não se mostrando violados os direitos constitucionais consagrados nos artigos 35°, nº 4, numa e 32°, nº 8, da CRP”. Decidindo pela improcedência do recurso interposto pelo arguido, o Tribunal Constitucional concluiu que “a intromissão na vida privada do condutor do veículo automóvel a que respeitam as listagens requisitadas pelo Ministério Público, situa-se numa zona muito distante do núcleo sensível da intimidade pessoal, pelo que não é constitucionalmente exigível que o respectivo acto seja ordenado ou validado por um juiz, encontrando-se o direito restringido suficientemente garantido com a intervenção de um Magistrado do Ministério Publico, cuja acção e norteada por deveres de isenção, objectividade e legalidade”. Sobre a questão da proporcionalidade na restrição de direitos liberdades e garantias, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem pronunciou-se, em Dezembro de 2008, no âmbito de um processo cujo objecto central dizia respeito à retenção, pelas autoridades policiais britânicas, de impressões digitais, amostras celulares e perfis de ADN de dois arguidos, após a sua absolvição. Da factualidade constava a seguinte matéria: - Os arguidos, identificados como S. e Michael Raymond Marper, nasceram, respectivamente em 1989 e 1963, são ambos de nacionalidade britânica e vivem em Sheffield, Reino Unido. A 19 de Janeiro de 2001,” S” à data com apenas 11 anos, foi detido e acusado de roubo tentado tendo sido colhidas as suas impressões digitais e amostras de ADN. A 14 de Junho de 2001, veio a ser absolvido. Marper foi detido a 13 de Março de 2001, sob a acusação de assédio do seu sócio. Igualmente, foi sujeito à recolha de impressões digitais e amostras de ADN. A 14 de Junho de 2001, o processo foi arquivado pelo “Crown Prosecution Service” por desistência de queixa por parte do ofendido, o qual reconciliara-se com Marper. Uma vez que os casos estavam arquivados, os arguidos tentaram, sem qualquer sucesso, a destruição das suas impressões digitais e das amostras de ADN colhidas, as quais estavam já armazenadas na National DNA Database, por tempo indefinido. A 18 de Julho de 2001, o Principal Fingerprint Officer da Polícia 282
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de South Yorkshire Police, respondeu negativamente aos pedidos de “S” e Marper, informando-os que “ (…) the South Yorkshire Police will retain fingerprints and samples that were previously required to be destroyed under section 64 of the Police and Criminal Evidence Act 1984. The Criminal Justice and Police Act 2001 now gives the police the right to retain fingerprints and samples to aid crime and investigation and is retrospective. All fingerprints and samples that were due for destruction will be retained” No recurso para o Divisional Court, o tribunal decidiu que a retenção das impressões digitais e amostras de DNA dos indivíduos não condenados por qualquer delito não violava o direito individual à privacidade, nos termos do artigo 8 º ou o seu direito à não discriminação nos termos do artigo 14º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), não sendo uma medida desproporcional em relação ao objectivo de prevenção criminal. O Divisional Court, após ter procedido a uma breve explicação da autorização legal da retenção das impressões digitais e amostras, ao abrigo da secção 64 do PACE, indeferiu o pedido de recurso dos arguidos, concluindo que “(…) the connection between the retention of the fingerprints and bodily samples of people who have been accused of crime but discharged and the legitimate purpose of combating crime is a rational one; that the relatively modest invasion it involves of their right to respect for their private life is proportionate; and that in so far as the selection of such people from the unconvicted population at large discriminates against them, it is objectively justified.” 71 No entanto, os arguidos recorreram para o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. A sua argumentação tinha como fundamento, o facto de a inserção e manutenção do seu perfil genético na base de dados nacional de ADN, após o arquivamento do processo-crime, violar o seu direito à privacidade, tal como consagrado no artigo 8º, nº1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, para além de ser humilhante e estigmatizante. A questão a ser considerada pelo Tribunal, neste caso, era a saber se a retenção dos dados de ADN e impressões digitais dos recorrentes, como arguidos cujos processos haviam sido arquivados, era legítima. O Tribunal admitiu que a retenção das impressões digitais, amostras biológicas e perfis de ADN, dos arguidos tinha uma base clara no direito interno. Assim, de acordo com a secção 64 da Lei de 1984, as impressões digitais ou amostras colhidas no âmbito de uma investigação criminal podem ser mantidas depois de terem cumprido os objectivos para os quais foram colhidas.72 Por isso, aceitava que a retenção da informação constante das impressões digitais e ADN prosseguiam uma finalidade legítima, ou seja, a detecção, e, portanto, a prevenção criminal. 71
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Case No: C/2002/0880/QBACF; C/2002/0881/QBACF, perante o Royal Court of Justice, decidido em 12 de Setembro de 2002.Consultado em Wikipédia (2009): http://en.wikipedia.org/wiki/UK National DNA Database acedido a 28 de Junho de 2009. O Tribunal entendeu que, tendo não ser necessário decidir se a redacção do ponto 64 reunia ou não a “qualidade de lei”, na acepção do artigo 8 º, § 2 da Convenção.
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Por outro lado, apesar da natureza de “dados pessoais” das impressões digitais, perfis de ADN e amostras celulares segundo a acepção da Convenção do Conselho da Europa de 1981, relativa à protecção das pessoas e ao tratamento automatizado de dados pessoais, o interesse pessoal dos cidadãos envolvidos e da comunidade como um todo, em termos de protecção de dados pessoais, incluindo as impressões digitais e ADN de informação, poderiam ser compensados pelo legítimo interesse na prevenção da criminalidade, interesse referido no artigo 9 º da Convenção de Protecção de Dados. O risco de estigmatização, decorrente do facto dos arguidos não terem beneficiando do princípio da presunção de inocência, uma vez que estavam ser tratadas da mesma forma que indivíduos condenados era agravada agora pelo circunstância dos seus dados serem conservados indefinidamente da mesma forma que os dados das pessoas condenadas. Os perigos da retenção de informações numa base de dados poderiam ser especialmente elevados no caso de menores, como o primeiro recorrente, dada a sua situação especial, bem como a importância do seu desenvolvimento e integração na sociedade. Após ter sublinhado que, atenta a natureza sensível e a quantidade de informação pessoal e familiar sobre o indivíduo, a sua saúde, o seu código genético, e as suas origens étnicas constante das amostras celulares, a retenção de “per se” de amostra de tecido celular, tem de ser encarada como violadora do direito à reserva da intimidade da vida privada dos indivíduos. Em relação às impressões digitais o Tribunal considerou que, atenta ao carácter singular da informação nelas contida sobre o indivíduo, a sua retenção constitui, igualmente, uma interferência ilegítima na vida privada deste último. A 4 de Dezembro de 2008, 17 juízes do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem deliberaram por unanimidade que a manutenção nas bases de dados das amostras de ADN de pessoas inocentes era ilegal, pois tal apresentavase como manifestamente desnecessário e desproporcional numa sociedade democrática. Nas suas conclusões o Tribunal referiu que “(…) the blanket and indiscriminate nature of the powers of retention of the fingerprints, cellular samples and DNA profiles of persons suspected but not convicted of offences, as applied in the case of the present applicants, failed to strike a fair balance between the competing public and private interests, and that the respondent State had overstepped any acceptable margin of appreciation in this regard”. Neste aspecto foi violado o disposto no artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem,73 atendendo a que “(…) the 73
A Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais foi adoptada pela República Portuguesa através da Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro. O seu artigo 8º dispõe que 1- “- Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2- Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.” Cfr., Manuel Curado - Direito Biomédico, Colectânea de Legislação e outros Textos, Quid Juris, 2008:25.
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retention in question constituted a disproportionate interference with the applicants’ right to respect for private life and could not be regarded as necessary in a democratic society”. Sendo o Reino Unido um dos poucos países europeus que permite a recolha de amostras de ADN a qualquer suspeito, a sua inclusão na base de dados genéticos e a sua permanência por tempo indefinido a decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem foi um duro golpe para política criminal do Partido Trabalhista inglês direccionada para o alargamento da National DNA Database. Como consequência, milhares de amostras de ADN do Reino Unido poderão ter que ser destruídas deitando por terra a ambição deste país de criar uma base de dados universal que inclua toda a população. 6. Conclusões: o direito à autodeterminação informativa perante o direito à segurança. A utilização das técnicas de tipagem do ADN como técnica de identificação é encarada como uma ameaça aos direitos fundamentais dos indivíduos envolvidos, precisamente pelo potencial de erosão do seu direito à intimidade da vida privada. Por isso, a admissibilidade jurídica da inserção dos perfis genéticos em bases de dados com finalidades de investigação criminal, não está isenta de controvérsia em nenhum ordenamento jurídico. Até que ponto a ideia e o paradigma do Homem que sempre tivemos foi ultrapassado com o conhecimento do genoma humano, e substituído por uma construção antropológica de base exclusivamente biológica? O investimento quase paranóico dos Estados em sistemas cada vez mais sofisticados de identificação e recolha de informação sobre os cidadãos, sobretudo após os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001, tornam compreensíveis que a recolha e armazenamento para comparação de perfis de ADN, ainda que com o objectivo de combate à criminalidade violenta, seja entendida como mais uma forma de controlo politico, uma verdadeira “biovigilância”, na expressão elucidativa de Helena Machado e Susana Silva.74 Ainda assim, o argumento contrário à criação da base de dados genéticos, apoiado na violação do direito à reserva da intimidade da vida privada, é destituído de fundamento científico. Na realidade, Os perfis de ADN constantes das bases de dados europeias contêm 13 “loci”, os quais não têm qualquer outra informação genética, atendendo aos conhecimentos que hoje temos do Genoma Humano. Quando analisados para fins de identificação forense, os marcadores de ADN não codificante visualizados não permitem identificar qualquer traço fenotípico, contrariamente à metodologia utilizada em testes dirigidos 74
Cfr. Helena Machado e Susana Silva, “Confiança, voluntariedade e supressão dos riscos: expectativas, incertezas e governação das aplicações forenses de informação genética”. Consultado em www.google.pt, em 26 de Abril de 2009.
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especificamente para a detecção de um determinado gene ou de deformações genéticas. Em termos puramente conceptuais, os perfis de ADN não serão diferentes das impressões digitais as quais constituem traços poligénicos provocados pela interacção de um número indeterminado de genes, sendo, por isso, improvável que o perfil obtido para fins de investigação criminal possa conduzir à identificação de uma característica fenotípica que tenha interesse médico, social ou até psiquiátrico. Diferentemente e com alguma pertinência poder-se-á levantar a questão do uso indevido da informação armazenada. Obviando a qualquer risco de utilização abusiva dos dados que vierem a ser recolhidos, sempre latente quando se usa qualquer procedimento de armazenamento de informação com algum grau de sensibilidade, a nossa lei (Lei 5/2008, de 12 de Fevereiro), muito mais cautelosa do que as suas congéneres, nomeadamente a inglesa e a norte-americana75, estabeleceu regras rigorosas de acesso e de utilização. Assim, na investigação criminal é sempre necessária a autorização judicial, quer para a inclusão dos perfis genéticos na base, quer para o cruzamento posterior desses perfis garantindo-se, desta forma, a independência, protecção e confidencialidade dos dados constantes da base, no estrito respeito pela intimidade da vida privada.76Aliás, pela leitura do artigo 17º da Lei 5/2008 se pode verificar que, como também refere Silva Rodrigues, “ o INML é o guarda da privacidade genética daqueles cujas amostras biológicas foram colhidas numa das situações referidas nos artigos 6.º a 8 ° da Lei nº 5/2008.”77Se o INML é o guardião da privacidade genética, o controlo da base de dados de perfis de ADN é feito, nos termos do artigo 29º da Lei nº 5/2008 pelo Conselho de Fiscalização, entidade administrativa independente designada pela Assembleia da República, com poderes de autoridade e competência definidas na lei e que apenas responde perante este órgão de soberania. Quanto à ocorrência de erros laboratoriais, a Lei em referência pretendeu acautelar os eventuais erros laboratoriais por contaminação ao contemplar no artº15°, nº 1, alínea f), a inserção na base de dados de ADN de informação relativa 75
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Cfr, ainda David Lazer, obra citada, p. 176. O autor apresenta exemplos de estados norte-americanos onde inexiste legislação sobre o acesso por parte de terceiros aos elementos da base de dados, bem como o tempo limite da manutenção em arquivo de tais dados, o que, levanta questões de natureza constitucional. A título de exemplo, as legislações dos Estados de Massachusetts, Louisiana e Carolina do Norte possuem cláusulas abertas que permitem o acesso, por parte de terceiros, dos dados armazenados desde que seja alegado “other humanitarian purpose”. Cfr., “ (…) a Proposta de Lei (…) assenta no respeito pelo princípio da dignidade da pessoa humana, pelos direitos fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa e pelos princípios do processo penal português e da protecção de dados pessoais.” Discurso do Ministro da Justiça, proferido a 1 de Junho de 2007, na Delegação de Lisboa do INML. Silva Rodrigues, “Da Prova Penal – A Prova Científica: exames, análises ou perícias de ADN? Controlo de velocidade, Álcool e substâncias Psicotrópicas”, Tomo I, Coimbra 2008:348.
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a amostras dos profissionais que procedem à recolha e análise das amostras, sendo o prévio consentimento para integrar a base de dados condição para o exercício de funções. A possibilidade inculcada no nº 2 do artigo 8° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem,78 de terceiros poderem aceder a dados, confidenciais aponta para a natureza não absoluta do direito à reserva da vida privada, o que aliás decorre da leitura do artigo 26° da Constituição da República Portuguesa. Dentro das linha de pensamento, a inserção na base de dados dos elementos não codificantes do ADN, na medida em que contende com a esfera privada, desde que realizada à luz do princípio da proporcionalidade, este meio delimitador da intervenção do Estado, torna-se possível sem beliscar o direito à reserva da intimidade privada ou pôr em risco qualidade da democracia. Contrariamente, as informações do ADN codificante que, desde o primeiro momento, permitem o isolamento de informações relativas ao património genético, porque reveladores da esfera íntima, não admitem tal ponderação perante a nossa Constituição.79 Não se pretende fornecer uma visão fantástica, infalível e inquestionável do valor probatório dos perfis de ADN na investigação criminal. Igualmente não se ignora que a prova pericial resultante da recolha e exame dos perfis de ADN, apenas será considerado um meio de prova para além de toda a dúvida, quando articulada com outros elementos de prova que, fatalmente terão de ser carreados para os autos em investigação. Porém, o impacto destas questões, nos domínios ético, jurídico e social, exige um processo de reflexão sério e profundo, no âmbito do qual se reconheça que as balizas que se impõem à Ciência terão sempre de ser decorrências do princípio da dignidade e autonomia humana e que a regulamentação jurídica deverá realizar uma concordância prática entre as funcionalidades e aplicações trazidas pela ciência e a defesa da dignidade e reserva da intimidade da vida privada dos cidadãos, na aplicação daquelas valências científicas. Cremos ter cabimento, aqui, a referência feita por Stela Barbas quanto ao compromisso que deverá existir entre a Ciência e os direitos fundamentais. Na opinião da autora, “é imperioso diluir tensões existentes entre os avanços da Ciência e os inalienáveis direitos fundamentais do ser humano. Tem de se 78
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A Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais foi adoptada pela República Portuguesa através da Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro. O seu artigo 8º dispõe que 1- “- Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência. 2- Não pode haver ingerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros.” Cfr., Manuel Curado - Direito Biomédico, Colectânea de Legislação e outros Textos, Quid Juris, 2008:25. Cfr., Benjamim Silva Rodrigues, “Da Prova Penal – A Prova Científica: exames, análises ou perícias de ADN? Controlo de velocidade, Álcool e substâncias Psicotrópicas“, Tomo I, Coimbra 2008:484.
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reconhecer que o legítimo direito de fazer progredir a Ciência não pode, todavia, ultrapassar determinados limites que ponham em causa princípios e valores tão dificilmente conquistados pelo homem e para o homem ao longo da sua história.”80
Lisboa, em 28 de Julho de 2010
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Cfr., Stela Barbas, “Direito do Genoma Humano”, Almedina, 2007:71.
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Garantia das Obrigações
Garantia das Obrigações Relatório
do concurso para Professor Associado nos termos do artigo 44º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 448/79, de 18 de Novembro José Alberto Rodríguez Lorenzo González1
Sumário 1. Introdução. 2. Programa . 3. Conteúdo programático. 4. Métodos de ensino. 5. Calendarização das matérias
1. Introdução I) Nas Faculdades de Direito portuguesas a unidade curricular intitulada “Garantia 2 das Obrigações” é praticamente desconhecida no nível da licenciatura. Professor da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada. A própria utilização do plural ou do singular é discutível. Como a função dos diversos modelos disponíveis para assegurar o cumprimento de obrigações é sempre a mesma opta-se pelo singular. Sendo certo, no entanto, que no tocante às garantias reais que ao mesmo tempo sejam direitos reais de garantia, a sua subordinação a uma taxatividade de modelos legais (artigo 1306º, n.º 1, Código
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Ela tem sido quase sempre objecto de consideração integrada na unidade curricular do “Direito das Obrigações”, salvo raríssimas tentativas de autonomização (de que a nossa Faculdade constitui talvez o mais recente exemplo). A emancipação, porém, faz sentido. É que, primeiro e mais importante, grande parte deste tema pode também ser reivindicado pela unidade curricular dos “Direitos Reais” 3, uma vez que quase todas as garantias reais são simultaneamente direitos reais de garantia. Esta duplicação acarreta, ao menos, dois problemas: – uma indubitável parcial, ainda que potencial, sobreposição de matérias entre o “Direito das Obrigações” e os “Direitos Reais”; – ou, ao invés, que a matéria das garantias pessoais não seja ministrada, se na primeira daquelas unidades curriculares se abdicar da “Garantia das Obrigações” (por falta de tempo ou por qualquer outra razão) a favor da segunda. Por outro lado, e em segundo lugar, porque a extraordinária amplitude que a unidade curricular do “Direito das Obrigações” acabou por assumir na nossa tradição jurídico-cultural, fez com que às garantias das obrigações se não dê, a maior parte das vezes, extensão ou profundidade suficiente. II) Por estas razões se afigura preferível desintegrar as garantias das obrigações tanto do âmbito do “Direito das Obrigações” como do campo dos “Direitos Reais”. Nada impede que a unidade curricular “Garantia das Obrigações” seja incluída logo no 1º ciclo, isto é, na licenciatura. Mas tendo em conta que esta tem agora uma duração de quatro anos (o que representa uma redução temporal deste nível de estudos perante a extensão da antiga licenciatura, factor que culturalmente não pode ser esquecido nem negligenciado), a inserção de unidades curriculares menos tradicionais afigura-se particularmente dificultosa. Por estas razões (não só, mas também pelas que em seguida se apresentam) afigura-se preferível introduzir a “Garantia das Obrigações” no 2º ciclo de estudos, isto é, no denominado mestrado, através, no caso da nossa Faculdade, da unidade curricular de “Direito Civil (avançado)”. III) De todo o modo, a verdade é que a manutenção da “Garantia das Obrigações” no “Direito das Obrigações” ou a sua transferência para o âmbito dos “Direitos Reais” revela-se agora uma impossibilidade prática. A obediência aos princípios contidos na Declaração de Bolonha foi culturalmente entendida no sentido da necessidade de proceder à semestralização de todas as unidades curriculares 4. Ora, esta semestralização manteve os “Direitos Reais” como unidade curricular semestral nas Faculdades onde já o era e reduziu-a a tal naquelas Civil) poderia permitir sustentar a existência de uma pluralidade (de “garantias”) e não de uma unidade uma vez que não há um arquétipo único mas sim um conjunto heterogéneo. 3 Na doutrina estrangeira é de facto extraordinariamente comum que a matéria dos direitos reais de garantia apareça integrada nos manuais ou tratados de Direitos Reais. 4 Aliás, a própria designação unidade curricular usada em vez de disciplina ou ainda em vez da mais tradicional e característica “cadeira” é uma consequência da bolonhização.
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outras onde era unidade curricular anual (ainda que, porventura, sem grandes alterações de conteúdo). Relativamente à unidade curricular de “Direito das Obrigações”, aquele fenómeno implicou não só, em alguns casos, que a sua designação fosse alterada (por exemplo, para “Teoria Geral das Obrigações” no nosso caso), como ainda que o seu conteúdo fosse necessariamente modificado ou, mais propriamente, reduzido (através da extracção da matéria da responsabilidade civil, objecto também de unidade curricular autónoma), ou justamente mediante a separação do tema da garantia das obrigações. O que reforça a opção pela integração da matéria da “Garantia das Obrigações” no 2º ciclo. Ou, na pior das hipóteses, a ser no 1º ciclo, em unidade curricular autónoma. IV) O tema da “Garantia das Obrigações” tem um conteúdo que lhe é dado pela lei (designadamente, no essencial, pelo Código Civil) mas, acima de tudo, pela História do Direito (como de resto sucede, pelo menos, com a generalidade das mais clássicas “cadeiras” da formatura em Direito). Razão pela qual, no mínimo, os paradigmas de garantias das obrigações a estudar estão fundamentalmente prédados. No nosso caso, tais modelos são basicamente os contidos entre os artigos 627º e 761º do Código Civil. Todavia, o referido estudo deve produzir-se tanto (ainda) sobre as “velhas” como (também) sobre as “novas” garantias das obrigações. Além daquelas que correspondem aos arquétipos regulados nas citadas disposições do Código Civil, as “velhas” garantias das obrigações são as que, não obstante não terem muitas vezes expressa previsão legislativa 5 ou mesmo tendo-a, não serem hoje visualizadas como modalidades de garantias das obrigações, estiveram na base das garantias hodiernamente previstas e mais utilizadas no tráfico jurídico (pese embora possa não existir correspondência exacta, mesmo nos seus traços gerais, entre aquelas e estas – é o caso v.g. do vif-gage, do mort-gage, do negócio fiduciário cum creditore ou do pactum reservatio domini). As “novas” garantias das obrigações são aquelas que adoptando velhos modelos receberam nova fisionomia, designadamente por modificação das regras que definiam ou definem o travejamento básico dos mesmos (v.g. o penhor financeiro ou a alienação fiduciária em garantia). As “novas” garantias das obrigações são, na verdade, modalidades clássicas com roupagem moderna para atender a novas ou a renovadas necessidades. V) A matéria da garantia das obrigações está entre aquelas em que a interpenetração entre o Direito e o fenómeno económico se acentua mais extraordinariamente. A resposta que aquele deve dar às vertiginosas mudanças determinadas pela actividade económica faz com que a resposta jurídica não possa ser 5
O que tratando-se de garantias reais que sejam também direitos reais de garanta tem a sua relevância atento o disposto no artigo 1306º, n.º 1, do Código Civil.
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imediatamente obtida por via legal. Deve por isso ter-se em conta a muito forte probabilidade de surgimento de novos protótipos de garantias ou, pelo menos, de às garantias com contornos já largamente estabelecidos e reconhecidos se introduzirem modificações capazes de alterar a sua função típica. Levando isto em conta, o programa a cuja apresentação se procede mais adiante não pode ser entendido como um plano definitivamente estabelecido, mas apenas e precisamente como um roteiro razoavelmente firme e sólido. VI) O referido programa, sublinha-se, serve indistintamente para uma unidade curricular de “Garantia das Obrigações” introduzida no 1º ou no 2º ciclo da formatura em Direito. Não obstante, isso não pode impedir, obviamente, o reconhecimento de que a diferente inserção curricular se projecta certamente sobre o método pedagógico a observar, quanto mais não seja em virtude de a carga horária e de a natureza dos tempos lectivos não ser idêntica. 2. Programa I) Uma unidade curricular sobre “Garantia das Obrigações” integrada no plano de estudos do 1º ou do 2º ciclo há-de incluir basicamente o estudo das respectivas modalidades e regime. Pressupõe-se, muito simplesmente, que tal matéria ainda não foi objecto de um estudo anterior. Esse estudo deverá assentar, como se disse já, tanto no exame dos modelos clássicos de garantias como na análise das novas modalidades. Mas deve incluir ainda a exegese relativa aos meios de conservação da garantia patrimonial uma vez que há uma ligação intrínseca entre as duas matérias. As garantias das obrigações reforçam a segurança do credor comum na obtenção da prestação a que tem direito, é verdade. Mas antes de mais é indispensável assegurar a manutenção do património do devedor como garantia geral de cumprimento para os credores. II) Pelo que o programa da unidade curricular de “Garantia das Obrigações” deverá ser o seguinte, como em seguida se expõe esquematicamente: 1. Garantia das obrigações – noção 1.1. Princípio geral 1.2. Objecto da garantia geral 1.3. Garantia geral e garantias especiais 2. Meios de conservação da garantia patrimonial 2.1. Declaração de nulidade 2.2. Sub-rogação do credor ao devedor 2.2.1. Requisitos da sub-rogação 2.2.2. Credores a prazo e credores condicionais 2.2.3. Efeitos da sub-rogação 3. Impugnação pauliana 294
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3.1. Requisitos 3.1.1. Acto lesivo da garantia patrimonial 3.1.2. Anterioridade do crédito 3.1.3. Má fé 3.2. Efeitos 3.2.1. Em relação ao credor 3.2.2. Em relação ao devedor 4. Arresto 4.1. Noção e requisitos 4.2. Efeitos A. Garantias pessoais 5. Fiança 5.1. Noção 5.2. Acessoriedade 5.3. Benefício da excussão 5.4. Sub-rogação do fiador nos direitos do credor 6. Garantia autónoma B. Garantias reais 7. Regime geral das garantias reais 7.1. Acessoriedade 7.2. Transmissibilidade 7.3. Pacto comissório 7.3. Extinção 7.4. Natureza jurídica 8. Consignação de rendimentos 8.1. Noção 8.2. Modalidades 8.3. Regime 9. Penhor 9.1. Constituição do penhor 9.2. Direitos do credor pignoratício 9.3. Execução do penhor 9.4. Penhor financeiro 9.4.1. Objecto 9.4.2. Especialidades de regime 10. Hipoteca 10.1. Noção 10.2. Objecto 10.3. Espécies de hipotecas: legais, judiciais e voluntárias 10.4. Redução e expurgação da hipoteca 11. Privilégios creditórios 11.1. Noção 11.2. Classes de privilégios Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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11.3. Concorrência de privilégios 12. Direito de retenção 12.1. Noção 12.2. Campo genérico de aplicação 12.3. Casos especiais 13. Arresto e penhora 13.1. Noção. 13.2. Efeitos imediatos 13.3. Efeitos ulteriores – hierarquia das garantias reais 14. Reserva de propriedade 14.1. Âmbito 14.2. Natureza jurídica 14.3. Efeitos 15. Venda fiduciária 15.1. Natureza jurídica 15.2. Efeitos 15.3. A alienação fiduciária em garantia como modalidade especial III) A ordenação é fundamentalmente, como se vê, a do próprio Código Civil. Não se vislumbra razão para proceder de distinto modo, dado que, pelo menos, a sequência expositiva entre garantias pessoais e garantias reais é mais ou menos arbitrária. Como em muitos outros aspectos, de que provavelmente a matéria relativa ao acto jurídico (artigos 217º a 295º, Código Civil) é exemplo acabado, o Código Civil assume aqui uma forma manualística, que sendo criticável sob múltiplos prismas, não o é decerto sob o ponto de vista narrativo (o que não significa que outros estilos descritivos não possam, porventura, revelarse mais eficazes ou, ao menos, mais atractivos). A distinção entre garantias pessoais e garantias reais é, no entanto, radical, e não há como dela escapar. A tradição jurídica romana conduz à sua utilização na medida em que por ser intermédio se prolongam até aos nossos dias, de um lado, figuras como a sponsio, a fidepromissio e a fideiussio 6, e, do outro, o pignus ou a hypotheca 7. IV) A colocação do estudo relativo aos instrumentos destinados à preservação da garantia geral dos credores é prévia precisamente por estes estarem ao serviço de qualquer deles, privilegiado ou comum, e independerem, os fundamentos e Dando continuidade a regras como “omni obligationi fideiussor accedere potest” (Dig. 46.1.1, Ulpianus 39 ad sab.) ou “et post litem contestatam fideiussor accipi potest, quia et civilis et naturalis subest obligatio: et hoc et iulianus admittit eoque iure utimur. an ergo condemnato reo exceptione uti possit, quaeritur: nam ipso iure non liberatur. et si quidem iudicati actionis acceptus non est, sed tantum litis exercitationis, rectissime dicetur uti eum exceptione posse: si vero acceptus fuerit etiam totius causae, cessabit exceptio” (Dig. 46.1.8.3, Ulpianus 47 ad sab.). 7 Ainda que “sponsoris vero et fidepromissoris similis condicio est, fideiussoris valde dissimilis” (Gaio, Inst. III, 118). 6
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das garantias 8 de que cada qual disponha 9. A sua sequência de estudo é igualmente a do Código Civil, mas dando especial ênfase à sub-rogação e à impugnação pauliana, na medida em que o pedido de declaração de nulidade apresentado pelo credor relativamente a actos do devedor que dela padeçam nada de especial tem a assinalar por comparação com o respectivo regime geral (artigos 286º a 294º do Código Civil). As normas contidas no artigo 605º são, de facto, da carácter exclusivamente interpretativo. 3. Conteúdo programático I) Seja numa unidade curricular situada na composição do 2º ciclo (isto é, num nível de estudos correspondente ao actual mestrado), seja numa unidade curricular integrada no 1º ciclo, não se pode recorrer apenas ao método expositivo correntemente conhecido como aula magistral. Hoje em dia é ponto assente, muito particularmente no período pós-Bolonha em que já nos encontramos, que o docente é, acima de tudo, um orientador, um tutor, mais do que “reprodutor” de conhecimentos. Por isso, é ao aluno que fundamentalmente cabe a tarefa de investigar para procurar conhecer. Tarefa cuja importância se acentua de modo particular quando esteja em causa o 2º ciclo. De facto, por definição, os mestrandos já são licenciados e, portanto, pressupõese terem a preparação indispensável para a frequência de um nível de estudos superior. II) Mas, por outro lado, também não se pode esquecer que a licenciatura se obtém agora ao fim de quatro anos10. A maturidade cultural e o grau de preparação científica dos mestrandos tornaram-se, pois, mais baixos, ainda que em grau não quantificável. Acresce que o número de candidatos matriculados no 2º ciclo aumentou exponencialmente. Este deixou de ser visto como um nível de estudos particularmente vocacionado para dar início a uma carreira de investigação Pode suceder que, para protecção do interesse do credor privilegiado, a garantia real, designadamente, subsista inclusive quando a coisa sobre a qual se constituiu lhe passe a pertencer em propriedade (cf., por exemplo, o caso decidido pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/01/2003, Proc. n.º 02B4471: 1 - Mantém o direito de retenção o promitente-comprador que mais tarde adquire o prédio objecto do contrato a quem o adquirira em execução, se assim for do seu interesse. 2 - Não se verifica confusão, uma vez que há hipotecas, podendo a titular do direito de retenção ser prejudicada caso se entendesse que o seu direito se extinguira). Em tal caso, como é evidente, (já) não se poderá recorrer aos meios de conservação da garantia patrimonial, pelo menos sobre esse bem. 9 Cf., por exemplo, o caso julgado pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/06/1995, Proc. n.º 85.618: Tem legitimidade para propor acção pauliana o credor que pretende impugnar doação de prédio, ainda que disponha de garantia de hipoteca a incidir sobre prédio diverso do que é objecto de tal acção (Col. de Jur., 1995, 2, 127). 10 E tão-pouco se pode olvidar que, por razões não perfeitamente claras mas com manifestações patentes, a própria maturidade intelectual dos licenciados vai decrescendo de forma gradual. 8
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científica e passou a ser encarado como uma continuação natural da licenciatura (aliás, a própria designação – 2º ciclo – o inculca). O que contribuiu também para que o nível médio de preparação dos mestrandos tenha baixado (consideravelmente). III) Para tentar conciliar as exigências e a dignidade próprias de um curso de mestrado com a aludida insuficiente preparação média dos mestrandos, crêse que a melhor solução deve assentar no recurso a um método pedagógico que proceda a uma conjugação entre, por um lado, uma exposição sistemática (obedecendo aproximadamente às regras tradicionais) mas menos “pesada” (ou seja, menos pormenorizada), com, por outro lado, a criação de incentivos ao livre desenvolvimento da investigação a cargo dos mestrandos. Os temas que se propõe são-no, bem entendido, a título meramente exemplificativo, nada obstando a que o aluno tome a iniciativa de optar por outros. Por igualdade de razão, dever-se-á proceder do mesmo modo quando a unidade curricular de “Garantia das Obrigações” esteja incluída no nível de estudos do 1º ciclo. IV) Assim, o método que se propõe configura-se genericamente da seguinte maneira: conforme se procede à explanação, em traves gerais, do conteúdo programático, chama-se a atenção dos licenciandos ou dos mestrandos, exemplificativamente, para certos pontos susceptíveis de uma investigação mais produtiva, interessante, profunda ou eficaz. A exposição serve, portanto, para dar formação (uma vez que se pressupõe a inexistência de estudos anteriores sobre a matéria), mas serve predominantemente para tentar proporcionar ou sugerir ideias sobre temas e/ ou linhas de investigação. Especialmente por esta última razão, a apresentação deve igualmente ir sempre acompanhada da indicação (abundante, ainda que exemplificativa) da pertinente jurisprudência, de modo a alertar os discentes para o facto de a investigação jurídica não dever dirigir-se apenas para os “livros”, ou seja, para a doutrina. Trata-se de um ponto relativamente ao qual se formou já, crê-se, um consenso significativo. Assim, o conteúdo programático que se sugere em seguida formará o roteiro básico que na unidade curricular de “Garantia das Obrigações” se deverá percorrer, por docente e por discentes. Não se trata de um projecto acabado para um manual, nem sequer de um plano completo de leccionação para o número total de horas de que se dispõe (seja no 1º ciclo, seja no 2º ciclo). Está apenas em causa a definição do tema de cada aula ou conjunto de aulas (dado que, naturalmente, há matérias mais importantes ou merecedoras de maiores atenções) e a sugestão de sub-temas ou de linhas de investigação que cada um daqueles é susceptível de proporcionar. Não se intenta, pois, deixar a aula “acontecer” na medida em que cada uma obedece a uma directriz (como, mais abaixo, quando se apresentar o Syllabus, se poderá comprovar). Mas também não se pretende aprisionar o desenvolvimento da exposição dentro dos rígidos quadros da típica (e ultrapassada no tempo) aula magistral. 298
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É nesta conformidade que se deve entender o que subsequentemente se desenvolve. 3.1. Meios de conservação da garantia patrimonial I) O conhecido princípio par condicio creditorum subentende-se à regra enunciada no artigo 601º do Código Civil: “pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora”. Qualquer credor pode, pois, fazer-se pagar através de quaisquer bens do devedor, sujeitando-se contudo, como é evidente, à concorrência dos demais credores. O procedimento a que para o efeito se recorre é o executivo. Dentro deste (artigos 817º a 823º, Código Civil), a penhora prefigura-se como uma fase nele integrada que tem em vista a posterior alienação judicial (artigo 824º, Código Civil) dos bens do devedor ou, excepcionalmente, de terceiro. Em si, apenas representa, pois, uma etapa do percurso do referido procedimento cuja finalidade prática somente se cumpre com a realização da venda executiva (ou acto de natureza equivalente). A penhora e, em geral, o processo executivo, constituem assim as formas através das quais se efectiva a garantia comum dos credores. II) Porém, para que o credor possa recorrer à acção executiva, torna-se necessário, evidentemente, que esteja em condições para tal. O que dependerá (no mínimo dos mínimos e já sem considerar outras hipóteses menos centrais) de o devedor entrar em mora no cumprimento da obrigação a que se encontra adstrito. Tendo em conta, todavia, que o devedor pode colocar em perigo a garantia geral dos credores (ou seja, o seu património) independentemente de mora, praticando ou deixando de praticar actos susceptíveis de a afectar (diminuindo-a, designadamente), concede-se a qualquer credor instrumentos destinados à sua manutenção (“pelo sim, pelo não”, dir-se-á). A estes instrumentos se dá consabidamente a designação de meios de “conservação da garantia patrimonial” (artigos 605º a 622º, Código Civil). São meios que autorizam a priori, ou seja, antes de o credor estar em condições de executar o património do devedor, o recurso a algum instrumento de actuação contra condutas deste último susceptíveis de diminuir, nem que seja potencialmente, a referida garantia. Como se diz no Acórdão da Relação de Coimbra de 17/01/2006 (Proc. n.º 2969/05) “I – A sub-rogação do credor ao devedor de direitos de conteúdo patrimonial contra terceiros (artº 606º C.Civ.), designada por “sub-rogação indirecta”, faz parte de um conjunto de instrumentos, entre os quais a acção pauliana, a legitimidade do credor para invocar a nulidade dos actos praticados pelo devedor e o arresto, que a ordem jurídica coloca à disposição do credor para defesa e conservação da garantia do seu direito, que é o património, susceptível de penhora, do devedor – artº 601º C. Civ.”.
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3.1.1. Declaração de nulidade A: Considerações I) Por força do disposto no artigo 605º do Código Civil, “os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos actos praticados pelo devedor”. Desde que, bem entendido, sejam nulos por alguma razão (a potencial afectação da garantia do credor não é por si, como é evidente, causa de nulidade para este efeito). Como bastas vezes tem sido assinalado, contudo, não está em causa mais do que uma (mera) aplicação do que se estabelece no artigo 286º do mesmo diploma. II) Ainda assim tem utilidade. Permite salientar, antes de mais, que um credor, pelo simples facto de o ser, não tem automaticamente legitimidade para pretender a declaração de nulidade dos actos praticados pelo devedor e feridos por tal espécie de invalidade. É preciso que nisso tenha “interesse”. O que não seria uma conclusão evidente por via da aplicação directa do mencionado artigo 286º. À parte este aspecto, o resto é doutrina já firmada: o referido “interesse” tanto pode ser directo como indirecto, pesem embora as evidentes dificuldades na destrinça e na aplicação de um critério deste género. III) Uma vez que o credor apenas se limita a pedir a constatação de uma situação jurídica – a nulidade de um acto – que por definição não produziu efeitos jurídicos, tem legitimidade para o correspondente efeito “quer estes sejam anteriores, quer posteriores à constituição do crédito”. De facto, ao contrário do que sucede com a impugnação pauliana [artigo 610º, alínea a), Código Civil], poder-se-ia levantar a dúvida relativamente aos actos anteriores dado que estes se poderiam considerar não abrangidos pelas expectativas do credor (por estarem “fora das suas contas”). Pesou mais, porém, o argumento de pura lógica jurídica: o originariamente ineficaz tanto o é para quem disso estava ciente como para quem o não estava. Não se pode esquecer, de qualquer maneira, o que deve ser particularmente sublinhado para os actos nulos do devedor anteriores à constituição do crédito: que o credor só pode pedir a correspondente declaração se nisso tiver “interesse”. IV) Para que o credor disponha de legitimidade para invocar a nulidade em causa não é “necessário que o acto produza ou agrave a insolvência do devedor”. É mais um corolário do que antecede. Se o acto nulo não produz, por definição, os efeitos jurídicos pretendidos pelos intervenientes, então é também indiferente, por definição, aquilo que a correspectiva declaração acarreta. Pode pois tratar-se de um acto cuja declaração de nulidade seja puramente indiferente para a situação patrimonial do devedor (embora não possa ser indiferente, reitera-se, para o “interesse” do credor). V) Por último, e uma vez mais por uma razão de simples lógica jurídica, “a nulidade aproveita não só ao credor que a tenha invocado, como a todos os demais” (artigo 605º, n.º 2, Código Civil). O acto nulo, ao não ter os efeitos jurídicos pretendidos, não os tem para ninguém, evidentemente. Pelo que, na 300
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verdade e em rigor, a declaração de nulidade aproveita a todos os “interessados” (nos termos do artigo 286º do Código Civil) e não somente aos demais credores. VI) Acresce ainda que a nulidade, de acordo com a terminologia que se julga preferível, pode ser típica ou atípica; isto é, pode estar subordinada ao regime geral para ela estabelecido pelos artigos 286º a 294º ou, ao invés, pode estar sujeita a algum regime especial (como sucede, por exemplo, com as hipóteses contempladas pelos artigos 243º, 410º, n.º 3 ou 1416º, n.º 2, Código Civil). Diz-se então também, neste último caso, que a nulidade é mista ou relativa (dado conter caracteres que a aproximam da anulabilidade típica – artigo 287º, Código Civil). Ora, afigura-se particularmente evidente que, quando a nulidade tenha natureza atípica por razões relativas à legitimidade para a respectiva arguição, os credores somente a poderão invocar se, precisamente, couberem no âmbito daquelas pessoas que forem consideradas partes legítimas para o efeito 11. B: Temas propostos - A obtenção pelo credor da declaração de nulidades com regimes especiais - A obtenção pelo credor da declaração de nulidade e o abuso de direito - A definição de interessado para efeitos da obtenção da declaração de nulidade - Legitimidade dos credores para obter a declaração de nulidade na simulação relativa e na reserva mental relativa - Legitimidade dos credores para pedir a conversão ou a redução 3.1.2. Sub-rogação do credor ao devedor A: Considerações I) No modo usual de proceder à distinção, enquanto a sub-rogação se destina a reagir contra omissões do devedor susceptíveis de ameaçar a respectiva garantia patrimonial do/s credor/es, a impugnação pauliana serve para o credor atacar actuações (tipicamente negociais) do devedor capazes de produzir ameaça similar. 11
Veja-se o exemplo que resulta do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/12/1993, Proc. n. º 084364: I – Assinado um contrato-promessa de compra e venda de uma fracção autónoma por alguém, em nome do Autor, sem poderes de representação, tal contrato-promessa torna-se eficaz em relação ao Autor por ratificação a partir do momento em que este outorgou procuração concedendo àquele poderes, entre outros, para comprar a referida fracção autónoma. II – A falta das formalidades exigidas pelo n.º 3 do artigo 410 do Código do Processo Civil, na redacção do Decreto-Lei n.º 236/80, constitui nulidade relativa e não nulidade absoluta do contrato-promessa. III – Tal nulidade relativa foi estabelecida no interesse do promitente comprador, não sendo invocável por terceiros nem do conhecimento oficioso do tribunal. IV – O disposto no artigo 605 n.º 1 do Código Civil, que estabelece a legitimidade dos credores para invocar a nulidade dos actos praticados pelo devedor, não é aplicável ao contrato-promessa que não esteja ferido de nulidade absoluta. Ou também o caso apreciado pelo Acórdão do do Tribunal Tributário de 2ª Instância de 06/12/1994, R. 62.392: I – A legitimidade para pedir a anulação da venda de bens penhorados em processo executivo fiscal encontra-se nas disposições dos artigos 908º e 909º do Código de Processo Civil [por força do artigo 2º, alínea f), do Código de Processo Tributário]. II – Aquela primeira disposição refere-se unicamente ao comprador, pelo que o credor pignoratício não tem legitimidade para pedir tal anulação (Bol. do Min. da Just., 442, 284).
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A hipótese, na sua base, descreve-se facilmente. O devedor, titular de direitos de natureza patrimonial (reais, de crédito, potestativos, de autor, de propriedade industrial, etc.) que os não exerça, estando eles em condições de serem objecto de desempenho, pode ser substituído pelo respectivo credor em tal actuação (artigo 606º, n.º 1, Código Civil). Naturalmente a titularidade dos direitos em causa não é afectada – apenas o seu exercício. Neste, o devedor titular de tais direitos é substituído (subrogado), de modo a que os efeitos jurídicos correspondentes à sua realização se obtenham. E, também naturalmente, esses efeitos produzem-se, apenas e de imediato, na esfera jurídica do devedor. Mas com isso o credor consegue manter (provavelmente até, aumentar) a sua garantia patrimonial. Na sub-rogação o credor funciona, assim, como uma espécie de representante 12 forçoso do devedor e este subordina-se a tal como representado também forçoso 13. Entre a representação legal dos pais relativamente à pessoa e ao património dos filhos menores, por exemplo, e a representação do credor relativa a direitos patrimoniais do seu devedor a grande diferença situa-se nos respectivos fundamentos: os pais devem actuar no interesse alheio (dos filhos) ao passo que o credor que se sub-roga actua (querendo, obviamente) para tutela dos seus interesses 14. II) Sendo este o modelo de funcionamento da sub-rogação, compreende-se a razão pela qual “a sub-rogação exercida por um dos credores aproveita a todos os demais” (artigo 609º, Código Civil). Tal como na declaração de nulidade, os efeitos decorrentes do exercício da sub-rogação produzem-se no património do devedor (aumentando o activo ou, ao menos, evitando a diminuição do passivo). Pelo que o benefício se dá necessariamente em proveito de todos os credores uma vez que o património do devedor é a garantia geral destes (ou seja, é a garantia mínima de que todos dispõem). III) A sub-rogação implica evidentemente uma violentação da vontade do devedor – é representação forçosa de uma pessoa cujo “querer” é, ao invés do que sucede v.g. com os menores ou os interditos, juridicamente atendível. Como 12
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Daí que “destinando-se a sub-rogação propriamente dita a permitir a substituição pelo credor ao devedor que não age, com vista à salvaguarda da garantia patrimonial do crédito, e agindo o credor na qualidade de representante ou substituto legal do devedor, tudo se passando como se os actos fossem praticados por este, deve entender-se que o credor tem legitimidade para os embargos de terceiro” (Acórdão da Relação do Porto de 22/06/2006, Proc. n.º 0633118). Neste sentido ver, por exemplo, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pág. 852. Representar, porém, é substituir vontades – a do representado pela do representante. Não se crê, por isso, que os distintos fundamentos de que a representação pode ser provida permitam afirmar que onde os interesses tutelados não sejam os do representado não há verdadeira representação. A constatação de que os fundamentos não são sempre os mesmos apenas permite conduzir à conclusão de que existirão diversas espécies de representação. Isto para dizer que não há-de ser pela razão que antecede (não obstante ser recorrente) que o insolvente não pode ser havido como um incapaz de exercício na medida em que a declaração de insolvência o iniba para a realização de certas actuações.
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antes se disse, o devedor sujeita-se aos efeitos do exercício por terceiro (o credor) de direitos que lhe pertencem. Ora, pode suceder que o não exercício pelo devedor dos direitos em causa não decorra de mera falta de diligência ou desinteresse. Ao invés, pode o devedor ter sérias razões (quanto mais não seja de natureza moral ou ética) para a omissão que justifica a sub-rogação de credor. Por isso, somente se admite, antes de mais, a sub-rogação relativamente a “direitos de conteúdo patrimonial” 15 16. O que, outra vez em termos de pura lógica jurídica, é auto-evidente. Estando em causa a manutenção do património do devedor outra solução careceria de sentido. IV) Mesmo tratando-se de “direitos de conteúdo patrimonial”, a subrogação não é admitida quando a isso se opuser “a própria natureza do direito” ou “disposição da lei” (artigo 606º, n.º 1, Código Civil). Em qualquer caso, supõese que o direito em causa tenha carácter patrimonial, pois caso contrário estas restrições seriam redundantes. A primeira hipótese abrangerá casos em que o direito, sendo patrimonial, envolva, no seu exercício, ponderações de natureza moral (o exemplo usual da revogação de uma doação por ingratidão do donatário – artigos 970º e segs. do Código Civil). A segunda hipótese, analogamente, atingirá aquelas situações em que tendo o direito, outra vez, natureza patrimonial, a lei tenha reservado o respectivo exercício exclusivamente para o seu titular (o exemplo também frequente, do direito de revogação reconhecido ao promissário no âmbito do contrato a favor de terceiro – artigo 448º, n.º 2, Código Civil). V) Ao invés agora da declaração de nulidade, “a sub-rogação … só é permitida quando seja essencial à satisfação ou garantia do direito do credor” (artigo 606º, n.º 2, Código Civil). O que atrás se disse sobre o carácter forçoso da sub-rogação explica facilmente este regime. Uma vez que esta envolve a imposição ao devedor de uma forte restrição à autonomia da sua vontade, só na medida do necessário se justifica autorizá-la 17. Trata-se de uma aplicação do princípio da proporcionalidade. Assim, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/09/1995, Proc. n.º 87.459, Col. de Jur., 1995, 3, 21: I – Os credores dos repudiantes podem fazer valer contra este, por meio de acção sub-rogatória em que se faz a aceitação da herança repudiada e cuja decisão se destina a servir de título executivo contra a mesma herança, os direitos de conteúdo patrimonial, salvo se, por sua natureza ou por disposição legal, só puderem ser exercidos pelo próprio titular. II – A petição será, porém, inepta, se o credor pedir a declaração de ineficácia do repúdio ou não pedir simultaneamente a condenação do réu no pagamento da dívida, já que sem o repúdio a sub-rogação não tem justificação legal e sem condenação do devedor a sentença não pode servir de titulo executivo contra a herança. 16 Exigência do mesmo género se faz a propósito da impugnação pauliana (artigo 610º, Código Civil), o que reforça a conclusão. 17 Acórdão da Relação de Lisboa de 16/12/2003, Proc. n.º 9602/2003-7: I. Em regra, os direitos do subempreiteiro decorrentes da execução de contrato de subempreitada apenas podem ser exercidos contra o empreiteiro e não contra o dono da obra. II. O recurso à acção sub-rogatória, nos termos do art. 606º do CC, 15
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VI) Assim, em resumo, “II – No essencial são três os requisitos necessários para uma acção sub-rogatória: – uma obrigação efectivamente existente; – a inércia do devedor; – e a essencialidade da sub-rogação” (Acórdão da Relação de Coimbra de 17/01/2006, Proc. n.º 2969/05). Acresce, como quarto requisito, que “I – É condição inafastável do exercício da acção sub-rogativa por parte do credor (artigo 606º do Código Civil) a circunstância do direito, ou direitos, existirem, na época do exercício daquela, na titularidade do devedor. II – Se um credor, por via sub-rogatória, pretender exercer direitos com conteúdo patrimonial, de que resultam ou um aumento do activo ou uma diminuição do passivo do devedor, tem de alegar e demonstrar pertencerem tais direitos incontroversamente ao referido devedor” (Ac. da Rel. de Lisboa de 24/051990, R. 1475 – Col. de Jur., 1990, 3, 127).
B: Temas propostos - A sub-rogação e a representação - Âmbito objectivo da sub-rogação - Efeitos da sub-rogação - Sub-rogação de 2º grau - Requisitos da sub-rogação - A sub-rogação e o direito de regresso - A sub-rogação do credor ao devedor como espécie do fenómeno sub-rogatório - Fundamento da sub-rogação
3.1.3. Impugnação pauliana A: Considerações I) A acção pauliana
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tem em vista permitir ao credor impugnante uma
não se basta com a prova da existência de um direito de crédito do devedor sobre terceiro, supondo ainda uma situação de inércia por parte do devedor e da essencialidade da intervenção do sub-rogante para garantia do direito de crédito. 18 Segundo a opinião corrente, a actio Pauliana deriva da fusão, através das compilações justinianeias, de dois remédios classicamente reconhecidos aos credores para sua tutela: o in integrum restitutio ob fraudem e o interdictum fraudatorium (Antoni Vaquer, From revocation to non opposabiliity: modern developments of the Paulian action, Regional Private Laws & Codification in Europe, Hector Macqueen/Antoni Vaquer/Santiago Espiau, Cambridge University Press, 2003, pág. 199). O interdictum fraudatorium aparece previsto do Digesto (42.8.1pr., Ulpianus 66 ad ed.) nos seguintes termos: Ait praetor: “quae fraudationis causa gesta erunt cum eo, qui fraudem non ignoraverit, de his curatori bonorum vel ei, cui de ea re actionem dare oportebit, intra annum, quo experiundi potestas fuerit, actionem dabo. idque etiam adversus ipsum, qui fraudem fecit, servabo”. Todavia, tendo em conta que tratando-se de interdito, o Pretor pronunciava Restituas, Exhibeas ou Vim fieri veto, ou seja, emitia, uma ordem e, ao invés, na actio, o Pretor não decretava nada, apenas pronunciava Judicium dabo (“darei acção”) para que, posteriormente, o Judex proferisse sentença, é
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reacção contra actividades (normalmente negociais) do seu devedor capazes de colocar em perigo a respectiva garantia patrimonial. Nisto se cifra, como já se acentuou, a diferença fundamental para a sub-rogação. Através da actio Pauliana 19, verificados os requisitos de que depende, qualquer actuação do devedor que envolva “diminuição da garantia patrimonial do crédito” (artigo 610º/proémio, Código Civil), pode, em princípio, ser impugnada 20: alienação ou oneração de bens, cumprimento de dívidas (artigo 615º, n.º 2, 2ª parte, Código Civil), abdicação de direitos, etc. II) Distingue-se a impugnação individual da impugnação colectiva, consoante a procedência da mesma beneficie apenas o credor impugnante ou todos os credores (participantes no processo de execução, pelo menos). A impugnação prevista no Código Civil, que é aquela que aqui fundamentalmente se considerará, é individual (artigo 616º, n.º 4). III) Até certo ponto, os requisitos de procedência da impugnação assemelhamse aos da sub-rogação e, portanto, não carecem de explicação suplementar. De facto, antes de mais, o acto do devedor que se pretende impugnar deve traduzir-se numa “diminuição da garantia patrimonial do crédito” e não deve ter “natureza pessoal” (artigo 610º/proémio). Exige-se também, analogamente à sub-rogação [artigo 610º, alínea b), Código Civil], que do acto praticado pelo devedor resulte a “impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade”. IV) Em acréscimo, para poder impugnar, o credor deve-o ser antes de ter sido praticado o acto do devedor que está em causa. É que, caso contrário, não duvidoso que de verdadeiro interdito se tratasse. A impugnação pauliana consubstancia-se evidentemente num procedimento judicial, embora tanto possa surgir por via de acção propriamente dita como por via de excepção ou de reconvenção. Veja-se, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/02/2000, Proc. n.º 99A1026: I. Em embargos de terceiro, se o embargado alega factos que, juridicamente, envolvem uma impugnação pauliana e uma invocação de nulidade decorrente de simulação defende-se por excepção. II. Se houver lugar a réplica, o embargante deve tomar posição definida perante os factos articulados, sob pena de se considerarem admitidos por acordo. III. Confissão e admissão por acordo são, no direito processual civil, institutos diferentes. IV. À validade e eficácia da confissão não obsta a circunstância de o facto não ser pessoal do confitente, apenas se pretende que lhe seja desfavorável. V. O depoimento de parte é uma das maneiras de obter uma confissão judicial provocada pelo que nada obsta a que uma confissão espontânea tenha como objecto outros factos além daqueles que podem ser objecto daquela. VI. A lei não prescreve qualquer reacção para a inobservância da exigência (ditada por razões de clareza, em concretização do princípio da boa fé processual) de o réu especificar separadamente as excepções que deduza - eventualmente e se verificados os respectivos pressupostos, a litigância de má fé. VII. O juiz ao proferir a sentença deve considerar todos os factos que considere provados, ainda que não tenham sido dado como assentes na fase da condensação nem apurados em julgamento, e a Relação pode fazer idêntico aditamento ainda que disso as partes não falem nem oportunamente tenham reclamado. 20 O Código Civil Espanhol considera muito simplesmente “rescindibles los contratos celebrados en fraude de acreedores” (artigo 1291/3º), e o Código Civil Italiano atribui aos credores o recurso à azione revocatoria sobre “gli atti di disposizione del patrimonio con i quali il debitore rechi pregiudizio alle sue ragioni” (artigo 2901/1). 19
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haveria diminuição da garantia patrimonial pois, evidentemente, a expectativa do credor só pode abranger o património do seu devedor tal como este é no momento da constituição do crédito. Compreende-se, por isso, a excepção a esta regra: o credor pode impugnar algum acto do devedor anterior à constituição do crédito se este tiver sido “realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor” [artigo 610º, alínea a), Código Civil]. V) Acresce, eventualmente, um último requisito: sendo o acto a impugnar de carácter oneroso, torna-se necessário demonstrar que tanto o devedor como o terceiro agiram de má fé (artigo 612º, n.º 1, Código Civil), entendendo-se “por má fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor” (artigo 612º, n.º 2, Código Civil). No entendimento jurisprudencial mais tradicional 21, a referida “consciência do prejuízo” deve ser tida como sinónimo de dolo directo. VI) No Código Civil, os efeitos da procedência da impugnação pauliana estão essencialmente definidos pelo seu artigo 616º. Diz-se aí que ”julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição” (n.º 1) 22. Como em muitas outras matérias, parece ter-se adoptado uma perspectiva intermédia 23 situada algures entre as versões extremistas concebíveis. Ultimamente, no entanto, tem-se verificado um certo influxo no que toca à determinação desta “consciência”. Veja-se neste sentido, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/10/2007, Proc. n.º 07A3327: I – A má fé, enquanto requisito subjectivo da impugnação pauliana, significa a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor, e não já a intenção de prejudicar este último o Acórdão do mesmo Tribunal de 29/09/2009, Proc. n.º 105-I/2001.C1.S1: I. A má fé, para efeitos do art. 612.º-2 do CC, enquanto consciência do prejuízo, pode revelar-se sob a forma dolosa em qualquer das suas formas (directa, indirecta/necessária ou eventual), ou sob a forma de culpa consciente. Do conceito deve no entanto excluir-se a “culpa inconsciente”. 22 Se houver solidariedade passiva, a acção de impugnação corre naturalmente apenas contra o devedor que tenha sido autor do acto que afecta a garantia patrimonial do credor impugnante. Cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/01/2004, Proc. n.º 03B3854: I. A anterioridade do crédito para efeitos da alínea a) do artigo 610º do Código Civil afere-se pela data da sua constituição e não pela data do seu vencimento. II. Existindo uma pluralidade de devedores solidários, a garantia patrimonial não é constituída pela mera soma dos respectivos patrimónios, mas sim pela cumulação dos mesmos patrimónios, responsáveis, cada um de per si, pela totalidade do crédito. III. Quando um destes patrimónios deixa de poder responder pela totalidade do crédito, o sistema de garantia patrimonial fica afectado, independentemente dos restantes patrimónios poderem ser suficientes para o cumprimento da obrigação. IV. Desta forma, a impugnação pauliana tem como objecto unicamente o património do autor do acto impugnado, porque, mesmo estando em causa apenas a solvabilidade de um só devedor, está diminuída a garantia geral do crédito. 23 Há uma versão da mesma relativamente divulgada na jurisprudência (cfr., por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/03/1997, Proc. n.º 96B700: I. Julgada procedente a impugnação pauliana, o credor tem direito a uma restituição de bens, que se traduz no poder de executá-los no património do obrigado à restituição, e não à restituição de bens ao património do seu devedor por força de declaração de uma nulidade com consequente cancelamento do registo porventura efectuado após a transmissão impugnada. II. Tendo o credor, autor de acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade do negócio impugnado e o cancelamento do registo de transmissão, não pode o tribunal julgar improcedentes esses pedidos e conceder outra coisa, nomeadamente o especificado no artigo 616 n. 1 do CCIV66, pois há em tal caso violação do artigo 668 n. 1 alínea e) do CPC67), segundo a qual a “restituição dos bens” 21
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De facto, se o credor tem direito “à restituição dos bens” (ainda que apenas na medida do seu interesse e embora, naturalmente, essa restituição se faça para o património do devedor), isso significa que o acto impugnado perde, nem que seja parcialmente, os seus efeitos. De outro modo, como explicar e justificar que os referidos bens abandonem o património do terceiro adquirente e retornem ao património do devedor? Mas, por outro lado, se o credor preferir, pode deixar tais bens no património do terceiro adquirente e aí arrestá-los 24 (artigo 619º, n.º 2, Código Civil) ou
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consequente à impugnação procedente tem carácter meramente figurativo, consubstanciando-se sempre a mesma, verdadeiramente, na sujeição do património do terceiro adquirente à execução. Julga-se que esta versão, descrevendo com certeza a situação mais corrente, não retrata inteiramente a realidade pois, por qualquer razão, pode a execução não ser imediatamente praticável ou pode não ser do interesse do credor, justificando-se então uma efectiva “restituição dos bens”. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/01/2001, Proc. n.º 00A3813: Para poder ser decretado o arresto de bens adquiridos por terceiro ao devedor é indispensável que o requerente, ao instaurar o respectivo procedimento cautelar, demonstre já ter sido judicialmente impugnada essa aquisição ou, se ainda o não tiver feito, que alegue e prove os factos que tornam provável a procedência da impugnação. Igualmente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/02/2001, Proc. n.º 00A3812: I. Ao cônjuge do credor, casado no regime de separação de bens, não se comunica o direito de crédito que sobre o devedor aquele tenha derivado de responsabilidade pré-contratual. II. A norma que manda aplicar ao arresto as disposições relativas à penhora não implica que todas as regras relativas à execução sejam aplicáveis, designadamente as sobre a legitimidade processual. III. A legitimidade passiva no aresto não coincide com a posição de devedor num título executivo nem com a titularidade de bens onerados com garantia real que beneficie uma dívida de outrem. IV. O arresto pode ser requerido contra o adquirente de bens do devedor, se a respectiva transmissão tiver sido judicialmente impugnada, seja quando essa transmissão for objecto de impugnação pauliana seja quando for arguida de nulidade ao abrigo do artigo 605 CCIV. V. A impugnação pauliana pode ser estendida a transmissões posteriores e à constituição de direitos a favor de terceiro e que tenham como objecto o bem transmitido. VI. Quando o arresto visar acautelar efeitos da impugnação, designadamente a pauliana, a legitimidade passiva para o respectivo processo terá que coincidir com a legitimidade passiva para a acção de impugnação. VII. Sendo o arresto requerido quando ainda não tiver sido impugnada a aquisição, o requerente deve alegar os factos que tornem provável a procedência da acção. VIII. Mas, se já tiver sido intentada a acção, fica dispensado de alegar e provar os factos reveladores da sua viabilidade e não tem que provar a impossibilidade de satisfação do seu direito de crédito por parte do devedor nem de provar o risco de que o adquirente do bem transmitido o faça sair do seu património - o risco de perda de garantia patrimonial é de aferir face ao património do devedor transmitente e não face ao do adquirente. IX. Um dos campos de aplicação da responsabilidade pré-contratual é o da ruptura de negociações entabuladas sem que se conclua o contrato tido em vista.
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penhorá-los 25 26 (artigo 818º, Código Civil). O que significa que, tomando esta opção, o acto impugnado deve ser considerado eficaz mesmo perante o credor impugnante – absolutamente eficaz, portanto. VII) Crê-se (o que até do ponto de vista literal se justifica) que a exigência de “restituição dos bens na medida do seu interesse” não é uma consequência necessária da procedência da impugnação, mas tão-somente uma opção para o credor que impugnou 27. Com efeito, o credor impugnante pode escolher entre aproveitar os efeitos da actio Pauliana para obter a “restituição dos bens” ao património do devedor ou para agredir directamente, pela via executiva, o património do terceiro adquirente. Em qualquer caso, sem dever suportar a concorrência dos demais credores, do devedor 28 ou do terceiro adquirente (artigo 616º, n.º 4, Código Civil). De um modo geral, não há utilidade prática na obtenção da restituição dos bens ao património do devedor, dado que quase sempre à impugnação sucede o arresto ou a penhora. A referida “restituição dos bens”, nestas circunstâncias, constituirá um modo inábil de actuação, sendo por isso preferível “executá-los no património do obrigado à restituição” (artigo 616º, n.º 1, Código Civil). Se, todavia, o concurso dos credores deste último constituir obstáculo, pelo menos previsível, à execução promovida pelo impugnante ou se, excepcionalmente, o credor impugnante não pretender ou não puder arrestar ou penhorar de imediato, já a “restituição” efectiva se justificará. VIII) A “restituição” em consideração, como já se enunciou, é apenas Sendo certo que, de acordo com a orientação até agora dominante na jurisprudência, o arresto ou a penhora, ainda que registados, de nada valem contra transmissão ou oneração anteriormente efectuada pelo “obrigado à restituição”, ainda que alguma destas não tenha chegado a registo. Cfr., por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/12/2003, Proc. n.º 03B2518: I. O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário: não tem natureza constitutiva, sendo o seu efeito simplesmente declarativo, não conferindo, a não ser excepcionalmente, quaisquer direitos. II. A noção de terceiros, para efeitos de registo, agora constante do n.º 4 do artigo 5º do Cód. Reg. Pred., é tributária de uma das posições doutrinais – a do Prof. Manuel de Andrade – que, acerca do conceito, se vinham digladiando desde há muito. III. O aludido preceito tem, pois, a natureza de norma interpretativa. IV. Dele decorre que o titular de um direito real de garantia registado, sobre imóvel anteriormente vendido, mas sem o subsequente registo a favor do comprador, não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que o seu direito e o do adquirente do imóvel não provêm de um autor comum. V. Ocorrendo conflito entre uma aquisição por compra e venda anterior não levada ao registo e um arresto posterior registado, aquela obsta à eficácia deste último, prevalecendo sobre ele. VI. A compra e venda é, como decorre da própria definição legal do artigo 874º do CC, um contrato oneroso. 26 Penhora esta que resulta da conversão do arresto se este tiver sido previamente promovido [artigo 846º do Código do Processo Civil e artigo 101º, n.º 2, alínea b), do Código do Registo Predial]. 27 Que até pode não se colocar sempre que o acto impugnado não implique qualquer entrega de bens (como sucederá se estiver em causa a constituição de uma hipoteca ou a renúncia a um direito). 28 A procedência da impugnação apenas deve beneficiar o credor impugnante precisamente porque pode suceder que o acto impugnado apenas diminua a garantia patrimonial para certo credor – justamente para aquele que impugna. Cfr. o Acórdão da Relação do Porto de 03/05/1990, Proc. n.º 8951091: II - Os efeitos da procedência da impugnação pauliana são de ineficácia do acto em relação ao credor impugnante. 25
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um efeito possível da procedência da impugnação. Esse efeito carece de uma fundamentação. Uma coisa é certa: se se procede a uma restituição propriamente dita a favor do autor do acto impugnado é porque este mesmo acto deixa de produzir efeitos. E não apenas perante certa pessoa, mas necessariamente erga omnes – de outra maneira chegar-se-ia ao resultado de a restituição ter sido efectuada para ou perante certas pessoas mas não para ou perante outras! Sendo a “restituição dos bens” um fenómeno de natureza primariamente factual, uma construção como a que se critica carece de sentido. IX) Ainda que assim não fosse, sempre haveria que defrontar, pelo menos, a situação “do obrigado à restituição” no plano da titularidade de direitos sobre os bens objecto do acto impugnado 29. Ou por outra: procedendo-se à restituição, aqueles bens pertencem ou estão na titularidade de quem? Para fundar a aludida “restituição” é necessário considerar que o acto impugnado ou é inválido ou é absolutamente ineficaz. De todo o modo, insusceptível de manter os seus efeitos. Existe suficiente consenso no sentido de que a primeira hipótese deve ser liminarmente afastada. Na verdade, “tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (nº1 do artigo 616º do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo artigo 664º do Código de Processo Civil” (Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º3/2001 de 09/02/2001) 30. Resta, pois, a outra hipótese 31. A “restituição” será uma consequência da declaração de ineficácia absoluta do acto impugnado decorrente da procedência da actio Pauliana. A efectivação da “restituição” funcionará, por conseguinte, como condição resolutiva (legal) do acto impugnado. Mas, a ser assim, porém, como compatibilizar esta ineficácia com o regime segundo o qual “os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido” (artigo 616º, n.º 4, Código Civil)? A explicação literalmente contida no artigo 2901/1 do Código Civil Italiano parece prima facie a preferível 32. X) O devedor, só por o ser, não fica e não deve ficar privado dos seus bens, bem como não fica e não deve ficar com o respectivo poder de disposição excluído ou sequer restringido. Solução contrária infringiria a garantia de propriedade privada Note-se que não é nesse plano que se insere a disposição contida no artigo 617º do Código Civil. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/09/1997, Proc. n.º 97A496: III. O negócio jurídico objecto de impugnação pauliana mantém a sua plena pujança jurídica em tudo quanto exceda a medida do interesse do credor. 31 Até porque a invalidade é necessariamente ineficácia originária (ab initio nullum semper nullum) – pelo que, por conseguinte, quod nullum est rescindi non potest. 32 “Il creditore (...) può demandare che siano dichiarati inefficaci nei suoi confronti gli atti di disposizione del patrimonio con i quali il debitore rechi pregiudizio alle sue ragioni”. 29 30
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canonizada pelo disposto no artigo 62º da Constituição da República. Daí que o poder de agressão sobre o património do devedor concedido ao credor deva ter natureza excepcional. E daí que deva igualmente ter o mínimo de implicações sobre a validade e a eficácia dos actos patrimoniais, maxime sobre actos dispositivos, em homenagem tanto ao princípio do favor negotii como ao princípio da livre disponibilidade dos direitos patrimoniais. Como se disse, no simples plano da titularidade de direitos, não se descortina proficuidade na “restituição dos bens” ao património do devedor, uma vez que este e só por causa da impugnação (tal qual como se os bens permanecessem no património do terceiro adquirente) não fica inibido de deles dispor. Pelo que se após a referida impugnação o credor não proceder de imediato ao arresto ou penhora dos bens objecto do acto impugnado, o perigo de os mesmos serem (de novo) dissipados mantém-se, independentemente de quem seja o respectivo titular. Aliás, atendendo à prática, até será mais arriscado (se de imediato não se proceder ao arresto ou à penhora) para o credor impugnante trazer os ditos bens de volta ao património do devedor porque este, em regra, reincide. XI) Parece não restar remédio a não ser considerar que os efeitos da procedência da impugnação pauliana, no que à titularidade de direitos respeita, diferem consoante se faça ou não se faça a “restituição dos bens”. Efectuando-se a referida restituição, o acto impugnado perde automaticamente todos ou parte dos seus efeitos, conforme tal restituição seja total ou parcial. Embora a restituição seja necessariamente total se o bem em causa tiver natureza indivisível. O que significa, ao menos nesta hipótese, que o direito objecto do acto impugnado se considera readquirido pelo devedor. Conduz isto à conclusão de que o acto impugnado cessa os seus efeitos ex nunc 33. E cessa tais efeitos tanto perante o credor impugnante como perante qualquer outra pessoa. Acontece é que o credor impugnante pode penhorar os bens objecto do acto impugnado com primazia sobre qualquer outro credor que não esteja munido de garantia real prioritária. É o que resulta do disposto no nº4 do artigo 616º do Código Civil. Embora se, porventura, o valor desses bens ultrapassar o valor do crédito titulado pelo credor impugnante, os restantes credores possam naturalmente concorrer em via executiva, sobre esses bens, pelo excesso. XII) Não se efectuando a restituição, os bens mantêm-se na titularidade do terceiro adquirente. O acto impugnado conserva integralmente os seus efeitos. É o que se deve concluir de, tendo o credor “procedentemente impugnado”, “o direito de execução (…) incidir sobre bens de terceiro” (artigo 818º, Código Civil) e não apenas sobre “bens do executado (…) que” circunstancialmente, “por qualquer título, se encontrem em poder de terceiro” (artigo 831º do Código do Processo Civil). Por isso, no primeiro tatbestand, a execução é movida (também)
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Não há razão para que seja ex tunc. A protecção do credor impugnante não demanda tal solução.
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contra o terceiro 34 35 (artigo 821º, n.º 2, do Código do Processo Civil), ao passo que, no segundo, a execução corre somente contra o devedor inadimplente. E, se o credor impugnante executar os referidos bens no património do terceiro adquirente, é de justiça que não deva suportar a concorrência dos respectivos credores. Disporá, pois, de preferência ou privilégio sobre estes últimos. Embora, tal como na hipótese anterior, os credores do terceiro adquirente possam concorrer na execução pelo eventual excesso. Independentemente disso, porém, é inquestionável que o direito à “realização coactiva da prestação” acompanha os bens objecto do acto impugnado na justa medida em que se pode exercer contra quem não é, nem foi, devedor (artigo 818º, Código Civil) 36. Nesta hipótese não se produz, portanto, qualquer caso de ineficácia do acto impugnado porque, justamente, para se poder promover a execução sobre o património de terceiro é necessário que neste estejam contidos os bens objecto da mesma 37. A explicação da solução consagrada pelo artigo 818º através da caracterização do caso como uma hipótese de ineficácia relativa (perante o credor impugnante), chegando ao mesmo resultado prático, implica, contudo, que para o impugnante tudo se deva passar como se o acto de disposição realizado pelo devedor não tivesse ocorrido. Razão pela qual a execução nunca incidirá assim, afinal, sobre bens de terceiro mas sempre, de um qualquer modo, sobre bens do devedor executado! XIII) Quando o credor impugnante proceda à execução “no património do obrigado à restituição” (artigos 616º, n.º 1, e 818º, Código Civil), não é inteiramente O qual é, portanto, terceiro perante a relação jurídica creditícia que fundamenta a execução, mas é parte do ponto de vista da relação jurídica processual-executiva. Cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/01/2000, Proc. n.º 99B933: Na acção executiva só podem ser penhorados bens do executado. Pelo cumprimento da obrigação podem, em certos casos, responder bens de quem seja terceiro na relação jurídica substantiva. É o caso de procedência de impugnação pauliana que autorize o credor a executar os bens do património do obrigado à restituição (artigo 616, n. 1 do CCIV). Porém, o credor que deseje pagar-se pela força dos bens de quem seja terceiro na relação jurídica obrigacional, terá que dirigir a execução contra (ou também contra) esse terceiro. No caso de procedência da impugnação pauliana, o credor terá que dirigir a execução contra o obrigado à restituição. Se, em acção executiva, o credor dirigiu a acção apenas contra o devedor, não pode aí fazer penhorar o bem de terceiro que, por via da impugnação pauliana, responde pelo cumprimento da obrigação. Se tal acontecer (a penhora no descrito caso) pode o proprietário do bem embargar, com êxito, a penhora, pois não sendo ele o executado não podem os seus bens ser penhorados. 35 I. Não obsta à impugnação pauliana de doação de bem comum dos doadores a circunstância de a dívida ser da responsabilidade de um deles apenas. II. A lei permite ao credor forçar a partilha de bens comuns (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/01/2003, Proc. n.º 02B3424). 36 Em sentido semelhante ver Oliveira Ascensão, Teoria Geral do Direito Civil, vol. III, Lisboa, 1992, págs. 492/493. 37 I. A acção de impugnação pauliana, que não tem natureza anulatória, visa conservar a garantia patrimonial do crédito, conferindo, nomeadamente, ao credor o direito de executar o respectivo bem no património do terceiro adquirente, o que representa um dos casos excepcionais em que é consentida a execução de bens de terceiro, isto é, não pertencentes ao devedor. III. Na execução em que se queira penhorar o bem objecto da acção de impugnação pauliana procedente deve ser demandado o terceiro proprietário do mesmo contra o qual a sentença faça caso julgado (Acórdão da Relação de Évora de 02/10/2003). 34
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líquido, porém, que os credores (comuns) deste não possam concorrer, no processo executivo, com o credor impugnante. É que se é verdade que de outro modo pode para nada servir a vantagem prática que assim se pretendeu atribuir ao credor impugnante 38, também é verdade, por outro lado, que os credores do terceiro adquirente podem ter contado com os bens objecto do acto impugnado (tal como o credor impugnante contou) para garantia de efectivação dos respectivos créditos. Isto é, os bens objecto do acto impugnado constituem garantia patrimonial tanto para o credor impugnante como para os credores do “obrigado à restituição”. Ponderadas as coisas nestes termos, haverá perfeita igualdade de razões para justificar a aplicação da regra par condicio creditorum 39. Crê-se que a única maneira de ultrapassar esta colisão de direitos, criando uma desigualdade capaz de conferir superioridade ao direito do credor impugnante, como parece justo, consiste precisamente em admitir a registo predial a decisão judicial que dê provimento à impugnação como forma de dar conhecimento a terceiros e, designadamente, aos credores do terceiro adquirente, acerca da possibilidade de o credor impugnante promover a execução sobre bens integrados no património do respectivo devedor. XIV) Para superar eventuais dificuldades probatórias e, acima de tudo, para evitar que o credor impugnante seja surpreendido pela demonstração da invalidade do acto que pretende impugnar, forçando-o a “voltar atrás” para intentar acção de declaração de nulidade (artigos 605º e 286º, Código Civil) ou deixando-o à mercê do beneficiário da anulabilidade, se o acto impugnado for anulável, estabelece o nº1 do artigo 615º que “não obsta à impugnação a nulidade do acto realizado pelo devedor” 40. Por maioria de razão, tão-pouco é obstáculo à impugnação a anulabilidade do acto, até porque, não tendo ainda sido promovida a competente anulação, tal acto mantém eficácia plena. É verdade que, de um ponto de vista de pura lógica formal, carece de sentido impugnar um acto nulo. Não há efeitos a destruir ou a manter. Caso contrário, de facto, impondo-se ao credor impugnante o ónus de obter a “restituição dos bens” ao património do devedor antes de contra este promover a competente acção executiva, podem estar a causar-se delongas susceptíveis de inviabilizar o respectivo direito e a anular-se o benefício atribuído pelo disposto no artigo 818º do Código Civil. 39 Que, de resto, decorre do princípio geral contido no nº1 do artigo 335º do Código Civil. 40 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/04/2000, Proc. n.º 00A160: I. A impugnação pauliana é um meio facultado ao credor para atacar actos – válidos ou nulos – celebrados pelo seu devedor com a finalidade de o prejudicar. II. Esses actos – onerosos ou gratuitos –, nos termos do artigo 610 do CCIV não devem ser de natureza pessoal, embora possam ter reflexos no património do devedor, como o casamento ou o divórcio, mas têm de envolver diminuição da garantia patrimonial do crédito, quer se traduzam num aumento do passivo quer na redução do activo do património do devedor. III. No acto celebrado a título oneroso, quer o alienante quer o terceiro, mas ambos em conjunto, devem ter agido com consciência do prejuízo que o acto causa ao credor, não se exigindo que o acto tenha por finalidade directa prejudicar o credor. IV. Ao credor incumbe o ónus da prova do montante das dívidas, ou seja, de todo o passivo do devedor e não só do seu crédito e ao devedor ou ao terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor, isto é, que à data do acto era possível a satisfação integral do crédito do autor. 38
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A protecção do credor impugnante exige, no entanto, uma solução deste género 41 42. Deve concluir-se que o fenómeno se explica como um caso de inoponibilidade. Perante o credor impugnante não se pode produzir a demonstração de que o acto impugnado é inválido. Para ele tudo se deve passar como se o acto impugnado válido fosse. Visto assim, o fenómeno em causa não demanda, hoje em dia, nenhuma particularidade construtiva extraordinária. Trata-se de um caso de inoponibilidade essencialmente análogo a outros igualmente previstos como, por exemplo, os contidos nos artigos 179º, 243º, 410º, nº3, etc., do Código Civil. XV) Se a eficácia perante terceiros de um determinado facto pressupõe que o mesmo seja susceptível de conhecimento por esses terceiros, sempre que um determinado facto seja dotado de tal eficácia a rectidão impõe que, sendo ele relativo a imóvel, deva ser publicitado ou, quando for o caso, seja registável. É claro que nada impede o credor impugnante de, vencido na acção de impugnação, partir para a acção de declaração de nulidade (artigos 605º e 286º, Código Civil) desde que evidentemente nisso tenha interesse. Cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/10/1991, Proc. n.º 079541: I. Os credores têm legitimidade para invocar a nulidade dos actos praticados pelo devedor quer estes sejam anteriores ou posteriores a constituição do crédito, desde que tenham interesse na declaração da nulidade. II. O terceiro interessado ao arguir a nulidade do contrato-promessa de compra e venda do imóvel, por inexistência do respectivo de forma exigida pelo n. 3 do artigo 410 do Código Civil (redacção dada pelo Decreto-Lei 236/80, de 18 de Julho) só pode fazê-lo nas mesmas condições em que tal e permitida ao promitente-vendedor. 42 E se o acto impugnado for nulo por causa da invalidade de um acto anterior no qual aquele se funda? Embora a solução não seja líquida, o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 02/03/2004, Proc. n.º 03A3913, considerou que o disposto no artigo 615º, nº1, não seria aplicável em tal circunstancialismo: I. A impugnação pauliana é um meio que a lei faculta ao credor para atacar judicialmente actos, válidos ou nulos, onerosos ou gratuitos, que não sejam de natureza pessoal, celebrados pelo seu devedor com a finalidade de o prejudicar (artigoºs 610 e 615, do CC). II. Esses actos, quer se traduzam num aumento do passivo, quer na redução do activo do devedor, têm de implicar em concreto, não em abstracto, uma diminuição da garantia patrimonial do crédito. III. Na impugnação pauliana, o credor faz valer um direito (de crédito) à restituição, na exacta medida do seu interesse. Por isso é que, impugnado triunfantemente o acto do devedor em causa, os bens não têm que sair do património do obrigado à restituição; ficam lá não obstante o obrigado ser um terceiro a quem o devedor os transmitiu, e é aí – nesse património – que o credor os executa, praticando os actos que a lei autoriza (artigoº 616, do CC). IV. Como resulta do artigoº 240, do CC, são requisitos da simulação a divergência entre a vontade real e a vontade declarada, o acordo simulatório e o intuito de enganar terceiros, identificando-se este último com o objectivo de criar uma aparência. V. Provando-se que os outorgantes numa escritura pública declararam vender ao outro outorgante, que declarou comprar, determinada fracção autónoma pelo preço de 3.500.000$00, que nunca foi pago, pois nem aqueles quiseram vender nem este quis comprar, está-se perante uma simulação negocial. VI. Não obstante tenha sido efectuado o registo da aquisição com base nessa escritura pública, o designado comprador não chegou a ser titular do domínio sobre a fracção, face à nulidade do negócio em causa. VII. Assim, a ulterior alienação da fracção por aquele não pode ser atacada em acção de impugnação pauliana contra ele movida por instituição bancária sua credora, pese embora o facto de este, quando contraiu empréstimos junto da mesma, ter declarado que era dono daquela fracção. VIII. Na verdade, essa ulterior alienação não se repercutiu negativamente no património do devedor, não envolveu uma efectiva diminuição da garantia patrimonial do crédito da instituição bancária Autora, faltando assim o requisito de procedência da impugnação pauliana referido no ponto II. 41
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Caso contrário, das duas, uma: ou, apesar da clandestinidade, ainda assim se admite a eficácia perante terceiros de um facto cuja existência não podia ser objecto de conhecimento, em virtude de a respectiva publicitação, por não estar prevista, não ter sido efectuada 43. Ou, a dita clandestinidade determina a impossibilidade de invocação do referido facto perante quem dele não teve conhecimento, novamente em virtude de a referida publicitação não estar prevista 44. Na primeira hipótese, o Direito é frustrado em virtude da insegurança que assim se institui e reconhece. Na segunda hipótese, impede-se o recurso, àquele que pretende beneficiar da oponibilidade do facto, aos meios apropriados para dar conhecimento público acerca da verificação de certo facto. Ficará, portanto, dependente da muitíssimo difícil e falível prova da má fé do terceiro em relação ao qual se pretende invocar a eficácia do facto cujo acesso à publicidade não foi autorizado (por o mesmo não fazer parte da enumeração legal dos factos publicitáveis). Quer isto dizer que, em qualquer caso, a solução admitida ou imposta não é a solução razoável. Tome-se precisamente o exemplo da impugnação pauliana. Nos termos do nº1 do artigo 616º, “julgada procedente a impugnação, o credor” pode executar os bens objecto da mesma “no património do obrigado à restituição” 45. Certamente, seja qual for a opção tomada pelo credor impugnante, o “obrigado à restituição”, como é parte processual, não pode ser tido como terceiro perante aquele. Mas se o “obrigado à restituição”, por sua vez, alienar a outrem ou se um credor do mesmo executar o bem objecto da impugnação, das duas, uma: ou o credor impugnante não pode invocar a decisão judicial obtida contra aqueles que adquiriram direitos a partir do beneficiário do acto impugnado, porque, ao não estar registada, não tinham, nem podiam ter, conhecimento da mesma; ou, ao contrário, o credor impugnante pode invocar a referida decisão judicial contra os adquirentes a partir do beneficiário do acto impugnado, apesar “A lei pode (…) para satisfazer determinados interesses relevantes, impor ou permitir a oponibilidade a terceiros de relações que são, na sua estrutura, de carácter obrigacional, por assentarem fundamentalmente num dever de prestar e no correlativo direito à prestação” (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, pág. 179). Ora, se a inscrição predial dos respectivos factos constitutivos não for admitida, corre-se o sério risco de clandestinidade com a consequente insegurança no tráfico. Veja-se o caso típico do contrato de arrendamento (entendendo-se que o direito de gozo dele resultante tem natureza pessoal) que só é registável se celebrado por prazo (inicial) superior a seis anos (artigo 2º, n.º 1, alínea m), Código do Registo Predial). Há, por isso, quem defenda (Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, Coimbra, 1990, pág. 140, nota19), que, para a generalidade dos contratos de arrendamento, o funcionamento do disposto no artigo 1057º (do qual resulta a oponibilidade a terceiro do contrato de arrendamento) supõe que o local arrendado esteja (já) sob o domínio de facto do arrendatário. Assim se assegura um mínimo de publicitação (espontânea). 44 Que é o que se sustenta através do brocardo mobilia non habent sequelam naqueles ordenamentos que adoptaram a regra possession vaut titre. 45 Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Lisboa, 1979, pág. 431. 43
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de a existência da mesma não lhes ser cognoscível, por não estar registada. XVI) Qualquer solução é insatisfatória. Por isso, felizmente, o Código do Registo Predial, na sua última versão, já admite a sujeição a registo da acção de impugnação pauliana [artigo 3º, n.º 1, alínea a)] 46, ainda que não se trate de um caso de registo obrigatório [artigo 8º-A, n.º 1, alínea b)] 47. O que significa que feito o registo da acção de impugnação, a respectiva decisão final é eficaz perante terceiros: designadamente perante aqueles que na sua pendência (artigo 271º, n.º 3, Código de Processo Civil) adquirirem direitos incompatíveis com o do credor impugnante ou perante aqueles que, no pressuposto de procedência da impugnação, obtenham direitos de tal natureza após a conversão [artigo 101º, n.º 2, alínea c), Código do Registo Predial] da inscrição provisória de acção em definitiva (artigo 5º, n.º 1, Código do Registo Predial). B: Temas propostos - Requisitos de procedência da impugnação pauliana - Efeitos da impugnação pauliana - A não obrigatoriedade do registo da impugnação pauliana - Impugnação pauliana e declaração de nulidade - O requisito da boa fé na impugnação pauliana - Impugnação pauliana e segunda transmissão dos bens objecto daquela - Impugnação pauliana e simulação 3.2. Garantias pessoais e garantias reais reais.
I) É elementar a separação entre garantias pessoais das obrigações e garantias
De comum entre si e de característico, têm as garantias pessoais o facto de afectarem um outro património (para além do património do devedor) à garantia de cumprimento estabelecida em benefício do credor. Só assim não se passa necessariamente com o mandato de crédito no caso de o mandante o denunciar (artigo 629º, n.º 2, Código Civil). As garantias reais demarcam-se por subordinarem um determinado bem, pertencente ao devedor ou a terceiro, ao cumprimento da obrigação. Significa isto que, sobre o bem em causa, o credor que dessa garantia beneficia deixa de estar sujeito à regra par condicio creditorum e passa a prevalecer, portanto, sobre os 46
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Infirmando a doutrina contida no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2004 — Processo n.º 1174/2002: O plenário das Secções Cíveis reunidas decide, para fixação de jurisprudência, que a acção pauliana individual não está sujeita a registo predial. Verdadeiramente o registo só é obrigatório na hipótese da alínea f), do n.º 1, do artigo 8º-B, do Código do Registo Predial. Nos demais casos, o registo é mais exactamente oficioso, na medida em que não é o sujeito activo do facto registável que deve proceder à sua apresentação a registo.
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demais credores (os quais, por comparação, são comuns). O conteúdo positivo das garantias reais é, assim, essencialmente formado por um poder de natureza potestativa: o de proceder à alienação (forçada) da coisa dada em garantia do crédito. Poder potestativo de exercício, em regra, necessariamente judicial (salvaguardadas as hipóteses, referentes ao penhor, constantes dos artigos 674º e 675º do Código Civil). Somente assim não sucede forçosamente, com a consignação de rendimentos (artigos 656º e segs., Código Civil) e com o penhor anticrético (artigo 672º, n.º 1, Código Civil). Excepciona-se igualmente o caso do disposto no n.º 1 do artigo 9º do DecretoLei nº 105/2004, de 08/05: “o contrato de penhor financeiro pode conferir ao beneficiário da garantia o direito de disposição sobre o objecto desta”. Acessoriamente, a garantia real pode atribuir ainda outros poderes – de natureza creditícia (por exemplo, artigo 701º, n.º 1, 1ª parte, Código Civil), potestativa (por exemplo, artigo 702º, n.º 1, Código Civil) ou de uso [por exemplo, artigos 671º, alínea b), 758º ou 759º, n.º 3, Código Civil] – bem como faculdades (por exemplo, artigos 727º ou 729º, Código Civil). II) Na exposição da matéria relativa às garantias especiais não se considerará autonomamente a prestação de caução na medida em que esta, se não “se designar a espécie que ela deve revestir”, pode ser efectuada “por meio de depósito de dinheiro, títulos de crédito, pedras ou metais preciosos, ou por penhor, hipoteca ou fiança bancária” (artigo 623º, n.º 1, Código Civil) 48. E, além disso, “se alguém for obrigado ou autorizado por negócio jurídico a prestar caução, ou esta for imposta pelo tribunal, é permitido prestá-la por meio de qualquer garantia, real ou pessoal” (artigo 624º, n.º 1, do mesmo diploma). O que significa que a prestação de caução acaba, pelo menos nas hipóteses típicas, por não ter autonomia perante as demais garantias, reais ou pessoais 49. Não obstante, há pelo menos uma questão singular de estabelecimento de fronteiras que se pode colocar entre a prestação de caução prevista entre É necessário ter presente, no entanto, que não é qualquer depósito de valores que constitui caução. Por exemplo “II - O depósito prévio do “preço devido”, imposto no n. 1 do artigo 1410 do c.c., ao titular do direito de preferência legal do arrendatário comercial, conferido pelo art. 47, do RAU, não é uma caução, sem designação de espécie, que permita ao preferente o direito de optar entre as referidas modalidades de depósito em dinheiro, ou, a fiança bancária. III - Não tendo ocorrido o depósito desse “preço devido”, no prazo legal, caducou o referido direito de preferência como arrendatário comercial na venda, uma vez que o citado n. 1, do artigo 1410, impõe aquele depósito, e não a prestação de caução, sem designação de espécie do focado artigo 623, n. 1” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/06/1999, Proc. n.º 99B393). Por isso mesmo, “II - A prestação de caução e a consignação em depósito são realidades completamente diferentes aquela é uma garantia especial de cumprimento das obrigações, a consignação em depósito é uma forma de extinção da obrigação. IV - Não é possível substituir a consignação em depósito por caução” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/06/1998, Proc. n.º 98B544). 49 Sirva por exemplo, o caso decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/11/1998, Proc. n.º 98B883: I – A caução tipo “imediato pagamento” ou “garantia bancária incondicional” a que se referem os DL n. 235/86, de 18/8, e n. 405/93, de 10/12 – empreitadas de obras públicas – são garantias “on first demand”. 48
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os artigos 623º a 626º do Código Civil e o incidente processual de prestação de caução regulado no artigo 818º, n.º 1, do Código do Processo Civil 50. III) A generalidade das garantias reais é, simultaneamente, direito real de garantia. Mas traduzem substâncias distintas 51. Contudo, numa unidade curricular destinada à “Garantia das Obrigações” afigura-se desajustado regressar à problemática subjacente a esta qualificação, a qual é própria de “Direitos Reais” (em virtude até de o essencial da discussão em causa dizer respeito à caracterização como “real” e não à função “garantia”). A ela far-se-á apenas, por isso, uma breve alusão. IV) Obedecendo à divisão basilar entre garantias pessoais e reais, a apresentação subsequente ordenar-se-á genericamente de harmonia com o seguinte
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I – A finalidade da prestação de caução – garantia especial das obrigações regulada no art.623º segs. C. Civ. – é a de facultar ao credor um meio através do qual se poderá fazer pagar. II – A particular função da caução prevista no nº1º do art.818º CPC é a de garantir o cumprimento da obrigação exequenda, acautelando ou prevenindo os riscos eventualmente resultantes da suspensão do processo (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/03/2004, Proc. n.º 04B211). Cfr., por exemplo, Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13/04/2005, R. 442/2004, Acs. Dout. do STA, 527, 1768: Nos termos do artigo 240º, nº 1, do C.P.P.T, podem ser reclamados créditos com privilégio creditório pois que este preceito legal «deve ser interpretado amplamente, de modo a teremse por abrangidos na sua estatuição, não apenas os credores que gozam de garantia real, stricto sensu, mas também aqueles a quem a lei substantiva atribui causas legítimas de preferência, designadamente, privilégios creditórios».
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Ao esquema referido ainda deveria acrescentar-se o aval. Mas como este mantém tão grande parecença geral com a fiança, entende-se preferível proceder ao seu estudo dentro do capítulo dedicado a esta, como sua modalidade especial. Sem deixar de se reconhecer, não obstante, duas marcas características próprias do aval: a) I – O aval é um negócio cambiário unilateral concebido como promessa de pagar o título e garantindo o pagamento do devedor por quem é dado. II – O sistema legal é no sentido de que uma pessoa que assina no rosto da livrança sem indicação da qualidade em que o faz (aval incompleto ou em branco), e se não for o sacador, é considerado avalista do subscritor. Trata-se de uma presunção legal (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/10/1993, Proc. n.º 83.759, Bol. do Min. da Just., 430, 462); b) I – Garantias pessoais um e outra, não pode, no entanto, confundir-se o aval com a fiança, uma vez que, como dos artigos 32, II e III, e 47, I e II, Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças se vê, a responsabilidade do avalista é materialmente autónoma em relação à do avalizado, sendo-lhe inaplicável o benefício da excussão prévia de que goza o fiador, nos termos dos artigos 638 e 639 do Código Civil” (Acórdão da Relação do Porto de 05/05/1992, Proc. n.º 9150735). O que, por seu turno, suscita forte similitude entre o aval e a garantia autónoma, pois, “dada a natureza autónoma e de garantia pessoal da obrigação do avalista, ela mantém-se mesmo que seja nula, por qualquer razão a obrigação do respectivo avalizado, a menos que a nulidade decorra de vício de forma, não podendo defender-se com as excepções do avalizado, salvo as que importem a liberação ou a extinção dessa obrigação (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/02/2008, Proc. n.º 08A054). Afigura-se, no entanto, que a obrigação assumida pelo avalista pode ter carácter ainda mais intenso do que aquela que o garante autónomo contrai uma vez que “I – não sendo sujeito da relação contratual subjacente, não pode o mero avalista do subscritor da livrança em branco, invocar a excepção do preenchimento abusivo, por carecer de legitimidade para tal” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/03/2007, Proc. n.º 07A205). Atentas as semelhanças e as dissemelhanças, poder-se-á sustentar assim que “II – O aval configurase como uma garantia híbrida que participa, a um tempo, das características da subjectividade que é própria da fiança e da objectividade que envolve as garantias autónomas” (Acórdão da Relação de Lisboa de 28/10/1999, R. 6253/99, Bol. do Min. da Just., 490, 312). De todo o modo, culturalmente, o estudo da matéria relativa ao aval tem sido enquadrado no campo do “Direito Comercial”, o que, no que toca à “Garantia das Obrigações”, permitirá aligeirar, quiçá excluir, a sua exposição. 53 Não obstante merecerem referência, mas ao invés do aval, as chamadas “cartas de patrocínio” não se incluem decerto na lista das suretyships muito simplesmente por, na verdade, não constituírem, por si, qualquer espécie de garantia de cumprimento de uma obrigação. Elas surgem a propósito da negociação de um crédito a sociedades em grupo, sempre que a sociedade matriz emita uma “carta” em favor do futuro concedente do crédito contendo declarações destinadas a “tranquilizá-lo”. Podem ser declarações fortes quando se caracterizem por deslocar em maior ou menor medida sobre a emitente o risco de incumprimento da filial afiançada ou declarações fracas quando não passem de gentlemens agreements [Carrasco Perera – Cordero Lobato – Marín López, Tratado de los Derechos de Garantía, Aranzadi, Cizur Menor (Navarra), 2002, págs. 307 e 310]. 52
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Garantias especiais das obrigações Pessoais
Fiança Garantia autónoma
Aval
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Anticrese
Penhor
Hipoteca
Privilégios creditórios
Penhora
Retenção
Alienação fiduciária
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3.2.1. Garantias pessoais 3.2.1.1. Fiança A: Considerações I) Salvo casos muito particulares em que pode surgir ex lege, por decisão judicial 54 ou por negócio unilateral 55, a constituição da relação fidejussória dáse regularmente por contrato. Quer dizer de imediato que a fonte da obrigação do fiador é distinta daquela em que se baseia a do devedor afiançado, pelo que, por isso, a vinculação daquele tem carácter autónomo (como, de resto, é doutrina comum afirmar-se). O fundamento para a assunção da obrigação fidejussória está, habitualmente, na gestão de negócios ou num contrato de mandato (oneroso ou gratuito). II) A fiança caracteriza-se, antes de mais, pela pessoalidade (artigo 627º, n.º 1, Código Civil). Significa isto que o fiador fica obrigado tal qual fosse o devedor principal 56. Pelo que, e é este o mais importante corolário, todo o património do fiador responde integralmente pela totalidade da dívida como se esta a si o vinculasse. Embora seja uma garantia, a constituição da fiança funciona praticamente quase como uma assunção cumulativa de dívida (artigo 595º, n.º 2, in fine, Código Civil), em particular quando o fiador não goze do benefício da excussão prévia [artigos 638º e 640º, alínea a), Código Civil]. Todavia, “III – Na fiança – obrigação acessória e subsidiária – pretende-se tão só prestar ajuda ao devedor; – Na assunção de dívida – obrigação principal ou solidária – há, para além dessa ajuda, um interesse real no cumprimento da obrigação” (Acórdão da Relação de Lisboa de 09/05/1996, R. 948/96, Col. de Jur., 1996, 3, 189). Por isso, o entendimento dominante consiste em considerar que, renunciando o fiador a este último benefício, ficam ele e o devedor constituídos numa situação de solidariedade. Todavia, “a solidariedade entre fiador e arrendatário” integrarse-á “no regime da solidariedade imperfeita, sendo aplicáveis por analogia somente as Carrasco Perera – Cordero Lobato – Marín López, Tratado de los Derechos de Garantía, Aranzadi, Cizur Menor (Navarra), 2002, págs. 97/98. 55 Acórdão da Relação de Guimarães de 11/05/2005, P. 828/2005, Col. de Jur., 2005, III, 277: I – A fiança pode ser constituída por negócio jurídico unilateral mesmo sem aquiescência do devedor e até contra a sua vontade, não tendo, por isso, que configurar a forma de um contrato. II – A vontade do credor pode ser manifestada por qualquer modo legalmente permitido, exigindo-se só que tal desígnio se configure como um meio válido e eficaz de expor a sua vontade contratual e vinculativa para o declarante. Este modo de constituição ergue, no entanto, um óbvio problema de compatibilização com o disposto no artigo 457º do Código Civil (princípio da taxatividade ou do numerus clausus dos negócios unilaterais obrigacionais), ainda que de natureza acentuadamente formal. 56 Daí que “II – Integra os requisitos da impugnação pauliana a doação de imóveis que os fiadores de dívidas constituídas e futuras tenham feito posteriormente à assunção da fiança, desde que o seu património não seja suficiente para pagamento das dívidas afiançadas” (Acórdão da Relação do Porto de 08/02/1990, R. 653, Col. de Jur., 1990, 1, 241). 54
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normas das obrigações solidárias cuja «ratio» seja extensível às específicas exigências desta espécie particular de solidariedade. Renunciando o fiador ao beneficio de execução e assumindo a obrigação de principal pagador, é inquestionável que uma das estatuições aplicáveis por analogia é a contida no segmento do nº 1 do artigo 519º do Código Civil, onde se preceitua que «o credor tem o direito de exigir de qualquer dos devedores toda a prestação». Consequentemente, arrendatário e fiador respondem solidariamente perante o autor pela prestação inicial (rendas e eventualmente despesas de condomínio em dívida), bem como pelas «consequências legais e contratuais do não cumprimento, incluindo a mora» do devedor (artigo 634º do Código Civil)” (Acórdão da Relação de Lisboa de 21/05/1998, R. 2065/98, Bol. do Min. da Just., 477, 549). III) A obrigação do fiador tem também natureza acessória (artigo 627º, n.º 2, Código Civil). Como a regra é de que acessorium sequitur principale, daí decorre, por exemplo, que: – “a fiança não pode exceder a dívida principal nem ser contraída em condições mais onerosas” (artigo 631º, Código Civil); – “a fiança não é válida se o não for a obrigação principal” (artigo 632º, n.º 1, Código Civil) – ou, talvez mais rigorosamente, se o acto de constituição da obrigação afiançada for inválido, o acto de constituição da fiança será absolutamente ineficaz 57 58; – “a vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal” (artigo 628º, n.º 1, Código Civil) 59; – “a fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor” (artigo 634º, Código Civil); – “I – O proponente deve comunicar à contraparte, na íntegra, as cláusulas contratuais de que se sirva, devendo essa comunicação ser realizada de modo a tornar possível o conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência. II – Tal dever, assim como o de informação, é extensível ao fiador” (Acórdão da Relação de Lisboa de 10/04/2003, R. 10366/02, Col. de Jur., 2003, II, 120); – “a extinção da obrigação principal determina a extinção da fiança” (artigo 651º, Código Civil). IV) A fiança caracteriza-se ainda, embora supletivamente, por ser subsidiária. De facto, salvaguardadas as hipóteses instituídas pelo artigo 640º do Código Civil, “ao fiador é lícito recusar o cumprimento enquanto o credor não tiver excutido todos os bens do devedor sem obter a satisfação do seu crédito” (artigo Acórdão da Relação de Évora de 01/06/1999, R. 7/99, Col. de Jur., 1999, 3, 270: A fiança prestada a um acto ineficaz não responsabiliza o fiador pelas consequências desse acto. 58 Se a obrigação afiançada tiver sido constituída por contrato e o mesmo se passar com o acto de constituição da fiança haverá uma união interna unilateral de contratos, sendo aquele o principal e este o secundário. Ver Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Almedina, Coimbra, 1995, págs. 215 a 222. 59 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/11/1993, Proc. n.º 83.623: II – A exigência de declaração de vontade expressa e sujeita à forma exigida para a obrigação principal respeita apenas ao fiador e não também à declaração do outro contraente. 57
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639º, n.º 1, Código Civil) 60. E, no mesmo sentido, “se houver garantia real constituída por terceiro, contemporânea da fiança ou anterior a ela, tem o fiador o direito de exigir a execução prévia das coisas sobre que recai a garantia real” (artigo 639º, n.º 1, Código Civil). V) Quando se diz que a fiança abrange tanto a obrigação como os respectivos acessórios (artigo 634º, Código Civil), a afirmação sugere de imediato uma questão: compreendem-se também os danos extracontratuais? É verdade que na disposição legal em causa se estabelece que a fiança cobre as consequências legais da mora ou culpa do devedor. Mas no pressuposto óbvio de que tais consequências derivam da violação da obrigação objecto da relação jurídica principal, pois o que aqui está em causa é a mora ou a culpa do devedor enquanto tal. Por outro lado, a própria questão da extensão da obrigação do fiador à responsabilidade extracontratual supõe resolvida uma outra: a da responsabilidade de terceiro por violação de direito de crédito alheio. Ora, aparentemente, só a própria enunciação do problema já o resolveria por natureza: o devedor, para incorrer em responsabilidade extracontratual, não pode ser devedor mas terceiro em relação ao direito de crédito cuja violação origina tal responsabilidade 61; e o fiador não pode responder por quaisquer obrigações a que o seu devedor esteja vinculado mas só (evidentemente) por aquelas que integram a relação jurídica obrigacional afiançada (ou seja, só por aquelas para as quais o devedor afiançado não é terceiro). O problema não pode ser solucionado de modo tão formal, todavia. Se, por exemplo, o locatário restitui o locado com deteriorações que excedem as “inerentes a uma prudente utilização” ou se a restituição não for efectuada, “por qualquer causa, logo que finde o contrato” (artigos 1043º a 1045º, Código Civil), o locatário ainda se considera devedor ou já é terceiro (no que toca à relação jurídica locativa, entenda-se)? Parece óbvio que, tendo cessado a locação, o locatário já não o é. Mas continua a ser devedor, embora ex lege. O exemplo conduz, pois, à formulação desta outra seguinte questão: as expectativas de risco assumidas pelo fiador devem abarcar também obrigações que já estão fora do estrito âmbito da relação obrigacional afiançada? Ainda que o critério contenha alguma indefinição, crê-se que a linha de demarcação há-de passar pelo estabelecimento da filiação ou proveniência da obrigação acessória: se for sucedânea da obrigação afiançada, o fiador mantém a sua responsabilidade; caso contrário, o fiador não responde. Assim, mantendo O benefício da excussão prévia é obviamente renunciável. Dai decorre, em consequência, por exemplo, que “4. O artigo 652º do Código Civil é inaplicável ao contrato de fiança em que o fiador renunciou ao benefício de excussão prévia” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31/03/2009, Proc. n.º 82/03.3TBMTR-A.S1). 61 Santos Júnior, Da responsabilidade civil de terceiro por violação de direito de crédito, Almedina, Coimbra, 2003, págs. 447 a 458. 60
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o exemplo, o fiador será responsável para efeitos do disposto no artigo 1044º mas não no campo de acção do artigo 1045º, ambos do Código Civil. Esta última obrigação do locatário não se filia no uso da coisa. No que concerne a danos pessoais (designadamente, danos decorrentes da violação de direitos de personalidade) sobrevindos por causa da infracção de relações jurídicas obrigacionais, é certo que estes devem estar submetidos, neste contexto, ao regime da responsabilidade contratual (artigos 798º e segs., Código Civil). Apesar de a lei não resolver expressamente o problema e também apesar de tanto a doutrina como a jurisprudência 62 (ainda) não registarem unanimidade, não se vê razão para que ao abrigo da responsabilidade contratual se não indemnizem igualmente danos de natureza pessoal 63. Sendo indesmentível que esta espécie de responsabilidade deriva do não cumprimento de uma obrigação previamente constituída, também é verdade que esse referido não cumprimento tanto pode causar danos pessoais como patrimoniais e não se vislumbra razão que justifique uma restrição da obrigação de indemnizar aos segundos 64. Cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/02/2002, Proc. n.º 02B182: I – Na definição de «factos notórios» como aqueles que são do conhecimento geral, elegeu o legislador o conhecimento (e não os interesses) como critério de notoriedade, fazendo apelo a uma ideia de publicidade, que implica a extensão e difusão do conhecimento à grande maioria dos cidadãos. II – Não são conhecidos da maioria dos cidadãos o tipo de pessoas que podem aceder à profissão de examinador, nem as condições de acesso ao exame que como tal os qualifique, ainda que os requisitos de admissão a esse exame estejam normativamente fixados pelo DL 175/91, de 11/5, posteriormente alterado pelo DL 21/99, de 21/4. III – O dever de informação, imposto pela boa fé contratual, significa que as pessoas devem ter um certo comportamento honesto, correcto e leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa do outro contraente - artigo 227º, nº 1, do C. Civil. IV – Esse preceito recebeu a fórmula “in contrahendo” na sua aplicação mais lata, nela abrangendo os deveres de protecção, os dos deveres de informação e a dos deveres de lealdade. V – Tal dever de informação encontra-se também presente no nosso sistema jurídico, de modo autónomo e desinserido de qualquer iter negocial, como fundamento de responsabilidade civil extracontratual, quando o seu agente tenha o dever jurídico de informar e a tenha agido com negligência, causando danos a outrem. VI – A possibilidade de graduação equitativa da indemnização, quando haja mera culpa do lesante, está apenas consagrada na lei para a responsabilidade extracontratual (artigo 494º do C. Civil), mesmo que fundada no risco (artigo 499º), não devendo considerar-se extensiva à responsabilidade contratual, por desarmónica com as legítimas expectativas do contraente lesado. VII – Não há que atender, na fixação da indemnização adveniente de responsabilidade contratual, a qualquer das circunstâncias do artigo 494º do C. Civil, devendo o montante atribuído corresponder ao valor dos danos efectivamente sofridos pelo lesado. VIII – A indemnização por danos não patrimoniais deve ter-se por extensiva à responsabilidade contratual/ obrigacional. Ou cfr. igualmente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/04/2002, Proc. n.º 02B644: A responsabilidade por danos não patrimoniais também ocorre no âmbito do ilícito contratual. 63 O actual § 253/2 do Código Civil Alemão (também já) reconhece o direito à indemnização pela lesão corporal, pela lesão da saúde, da liberdade ou da auto-determinação sexual, independentemente da espécie de responsabilidade (contratual ou extracontratual, objectiva ou subjectiva). Ainda que se tenha perpetuado a regra segundo a qual a violação de direitos subjectivos somente origina responsabilidade civil nos casos previstos na lei. O que se verifica igualmente no Código Civil Italiano (artigo 2059). 64 É evidente que se porventura do próprio negócio resultarem deveres de natureza pessoal cujo não cumprimento ocasiona danos pessoais, a consequente responsabilidade contratual é inquestionável. Não é isso, por conseguinte, que está em causa quando se pergunta pela susceptibilidade de obter 62
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Mas, para o fiador, o problema deve colocar-se de modo semelhante ao da anterior hipótese: ou seja, ele só é responsável na medida em que a obrigação de indemnização do devedor afiançado se filie na obrigação afiançada. Contudo, a este propósito, não se pode olvidar a necessária concatenação com a doutrina fixada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2001 do Supremo Tribunal de Justiça segundo a qual “é nula, por indeterminabilidade do seu objecto, a fiança de obrigações futuras, quando o fiador se constitua garante de todas as responsabilidades provenientes de qualquer operação em direito consentida, sem menção expressa da sua origem ou natureza e independentemente da qualidade em que o afiançado intervenha” (Diário da República n.º 57, I-A, págs. 1252 a 1262). VI) A fiança pode ter por objecto qualquer obrigação (de dar, de fazer, de não fazer ou de tolerar). Num pressuposto, todavia: desde que se trate de prestação convertível em dinheiro. É que o fiador é pessoalmente responsável mas, como atrás se disse, com ou através do seu património. Não está ele próprio (pessoalmente) obrigado à realização da prestação na justa medida em que não é devedor mas apenas garante. Pode, é certo, realizar a prestação a que o devedor está obrigado (sendo esta fungível, naturalmente), mas tal qual como qualquer terceiro o pode fazer (artigo 767º, Código Civil). VII) Se o fiador cumprir a obrigação afiançada “fica sub-rogado nos direitos do credor” nos termos do n.º 1 do artigo 592º do Código Civil. É mais uma consequência da acessoriedade que caracteriza a sua situação jurídica 65. Pelo que, na medida da satisfação dada ao direito do credor, o fiador sub-rogado adquire os poderes que àquele competiam (artigo 593º, n.º 1, Código Civil). Porém, “o fiador fica desonerado se o credor demora a accionar o devedor principal e este é declarado falido, sem que o credor tenha reclamado o seu crédito no processo de falência, uma vez que a conduta omissiva do credor impede a sub-rogação do fiador na sua posição” (Acórdão da Relação de Lisboa de 01/02/2007, R. 10 593/2006, Col. de Jur., 2007, 1 , 100). VIII) “I – O fiador tem de ser interpelado para o pagamento das dívidas afiançadas, e sem essa interpelação não pode ser havido em situação de incumprimento” (Acórdão da Relação de Lisboa de 03/11/2005, R. 8969/2005, Col. de Jur., 2005, V, 79). B: Temas propostos - Modos de constituição da fiança - Fiança e assunção cumulativa de dívida - Significado da acessoriedade - Fiança e benefício da excussão prévia - Fiança e danos extracontratuais 65
indemnização por danos pessoais ao abrigo desta espécie de responsabilidade. De facto, ainda que “I – O fiador” assuma ”a obrigação de principal pagador apenas renuncia ao benefício da excussão prévia. II – A sua obrigação não deixa, por isso, de ser acessória em relação à do afiançado. III – Se pagar a dívida, fica sub-rogado nos direitos do credor, transferindo-se para ele o crédito respectivo com as suas garantias e acessórios” (Acórdão da Relação de Lisboa de 10/11/1992, R. 6039, Col. de Jur., 1992, 5, 119).
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- Fiança e danos pessoais causados pelo devedor - Fiança e sub-fiança - Pluralidade de fiadores - Fiança e aval - Fiança de obrigações futuras - Constituição unilateral da fiança 3.2.1.2. Garantia autónoma A: Considerações I) A garantia autónoma é, em remota síntese, uma fiança sem a característica e, portanto, sem os corolários, da acessoriedade 66. Efectivamente, “I – A característica essencial do contrato de garantia e que o individualiza em relação à fiança não é a automaticidade mas sim a autonomia, ou seja, todas as denominadas garantias bancárias são autónomas mas apenas aquelas que incluem a cláusula de «pagamento de primeira solicitação» são automáticas” 67. Por outro lado, embora nada obrigue a que assim seja, o mais frequente é que, dado o risco extraordinário que o garante assim corre, esta garantia pessoal seja prestada por uma entidade bancária. Só aí haverá um património suficientemente merecedor de confiança pelo credor que justifique a sua prestação. Por isso ela é habitualmente conhecida como garantia bancária autónoma. II) É nas chamadas operações bancárias activas 68 que se inserem as de Acórdão da Relação do Porto de 21/03/2006, Proc. 0620873: “I – Não existe possibilidade de aplicação analógica do disposto no art. 653.º do CC (desoneração do fiador por impossibilidade se sub rogação do seu direito por facto do credor) às garantias bancárias. II – A diferença entre garantia bancária e fiança reside no facto de a garantia, diferentemente da fiança, não ter natureza acessória em relação à obrigação garantida”. 67 Acórdão da Relação do Porto de 02/11/2000, R. 1148/2000, Col. de Jur., 2000, 5, 177. 68 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/11/2002, Proc. n.º 3453/02, Col. de Jur., 2002, 3, 148: I – A garantia bancária, que é uma operação activa dos bancos destinada a assegurar o cumprimento das obrigações contraídas pelo cliente perante terceiro, pode assumir diversas modalidades, tais como a de fiança, mandato de crédito, aval, aceite bancário – quando a este se não siga o desconto ao balcão do próprio banco – e, também, a de garantia autónoma. II – No processo genético de emissão de uma garantia bancária autónoma existe, em primeiro lugar, um contrato-base entre o mandante da garantia e o beneficiário, a que se segue um contrato, qualificável como de mandato, mediante o qual o mandante incumbe o banco de prestar garantia ao beneficiário e, por último, o contrato de garantia, celebrado entre o banco e o beneficiário, em que o banco se obriga a pagar a soma convencionada logo que o beneficiário o informe de que a obrigação garantida se venceu e não foi paga e solicite o pagamento, sem possibilidade de invocar a prévia excussão dos bens do beneficiário ou a invalidade ou impossibilidade da obrigação por este contraída. III – A garantia autónoma tem como característica principal, que a distingue da fiança ou do mandato de crédito, a independência (autonomia) relativamente ao contrato-base. IV – A garantia autónoma é, normalmente, apetrechada com uma cláusula on first dernand, que representa, para o beneficiário, um acréscimo de garantia, pois o banco fica constituído na obrigação de pagar imediatamente, a simples pedido do beneficiário, sem poder discutir os fundamentos e pressupostos que legitimam o pedido de pagamento, designadamente sem poder discutir o incumprimento do devedor. V – Os termos da carta de garantia de onde consta que o banco que a presta se responsabiliza, dentro da importância nela referida, «por fazer a entrega de quaisquer quantias que se tornem necessárias se a (...) firma faltar ao cumprimento das suas obrigações, objecto desta garantia, ou com elas não entrarem devido tempo», apontam para a ideia de uma garantia autónoma, mas não à primeira solicitação. VI – De acordo com 66
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intermediação negocial por via das quais a intervenção dos bancos confere uma confiança acrescida aos negócios celebrados entre particulares. Destaca-se aqui, justamente, a função de prestação de garantias a favor de terceiros a qual pode assumir três formas básicas: penhor bancário; garantia bancária; garantia financeira 69. III) A garantia autónoma caracteriza-se, antes de mais, por resultar de um contrato – tipicamente de mandato 70 – entre o garante e o devedor garantido 71. O que já constitui uma assinalável diferença para a fiança, dado que esta, quando se constitua pela via contratual, é estabelecida justamente (diz a doutrina mais comum) por contrato entre o fiador (garante) e o credor 72. O beneficiário da garantia (o credor) não tem relação com o garante. Tem apenas o direito de lhe exigir o montante objecto da garantia 73. Ainda que, como é normal, uma vez realizado o cumprimento a favor do credor, o garante fique, o princípio da boa fé, a satisfação da garantia não teria de ser imediata, pois sempre caberia ao banco o direito de se informar junto do garantido sobre o montante em débito e sobre a existência, ou não, de incumprimento ou mora. VII – Mas incorre em mora o banco que deixa passar em claro três interpelações do beneficiário, só cerca de dezasseis meses depois respondendo à primeira, solicitando documentação que lhe foi prontamente fornecida, e que só depois de decorrido mais um ano se dispôs finalmente a pagar. 69 A. Pedro Ferreira, Direito Bancário, Quid Juris, Lisboa, 2005, págs. 662 a 681. 70 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/09/2000, Proc. n.º 2037/2000, Bol. do Min. da Just., 499, 343: I – O contrato de garantia bancária é um negócio inominado – admitido no nosso sistema jurídico ao abrigo do princípio da liberdade contratual (artigo 405º do Código Civil) -, mediante o qual o garante, normalmente um banco, no cumprimento de um contrato de mandato sem representação em que é mandante o devedor de um «contrato-base» (dador da ordem), se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, por via de regra em caso de incumprimento desse contrato por parte do aludido devedor, sem poder invocar em seu benefício qualquer meio de defesa relacionado especialmente com o mesmo contrato-base. 71 É todavia discutível esta afirmação uma vez que a perspectiva mais frequente talvez seja aquela que considera existirem duas relações contratuais distintas por causa da constituição da garantia autónoma: a relação devedor principal/garante (habitualmente configurada como um contrato de mandato); e a relação credor/garante (que seria, esta sim, resultante do contrato de constituição da garantia autónoma) (Jorge Pinheiro, Garantia Bancária Autónoma, Revista da Ordem dos Advogados, ano 52, págs. 417 a 466). 72 II – O contrato de fiança ocorre entre o fiador e o credor e não entre o fiador e o afiançado (Acórdão da Relação de Coimbra de 28/0271989, R. 288/88, Col. de Jur., 1989, 1, 69). Ao admitir-se, no entanto, a possibilidade de estabelecimento da fiança por outras vias que não a contratual, não se vislumbra obstáculo à sua constituição através de contrato celebrado entre o fiador e o devedor afiançado. Em tal caso estar-se-á então perante um contrato a favor de terceiro (o credor). 73 Por isso se pode discutir se o caso não será de contrato a favor de terceiro (a grande dificuldade na atribuição desta caracterização estará na harmonização entre o regime socialmente típico das garantias autónomas com o disposto no artigo 449º do Código Civil). Certamente, porém, num ponto inexiste igualdade entre fiança e garantia autónoma: a fiança pode ser prestada sem conhecimento ou mesmo contra a vontade do devedor afiançado (artigo 628º, n.º 2, Código Civil), o que significa que o contrato de constituição se celebra sempre entre o fiador e o credor; ao invés, a garantia autónoma deve ser contratada entre o devedor e o garante. Neste último caso, pois, a vontade do credor só releva na medida em que ao aceitar celebrar o negócio (com o devedor) para o qual a garantia foi solicitada se pronuncia implicitamente sobre a suficiência da garantia.
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tal como o fiador, sub-rogado nos direitos do credor contra o devedor (artigo 592º, Código Civil). IV) O que fundamentalmente distingue a fiança da garantia autónoma é a natureza da obrigação do garante. De facto, este último, como o fiador, está vinculado a realizar a sua prestação (necessariamente pecuniária) quando o devedor não cumpra, temporária ou definitivamente, ou cumpra defeituosamente. Mas, em geral, não importa se há razões legítimas para o incumprimento ou sequer se o mesmo é ou não imputável ao devedor. Quer dizer, por outras palavras, que o garante não “tem o direito de opor ao credor aqueles” meios de defesa “que competem ao devedor” (artigo 637º, n.º 1, Código Civil) 74. O garante não tem, pois, a possibilidade de recorrer à fonte da obrigação base ou principal para (eventualmente) recusar prestar 75. Por outras palavras: “I – O fiador é um verdadeiro devedor do credor, mas a obrigação acessória que assume é a obrigação do devedor e não uma obrigação própria, autónoma deste. II – Pela garantia bancária autónoma, simples ou automática o banco garante perante o credor uma obrigação própria, autónoma de obrigação do devedor e não acessória deste. III – A autonomia consiste em o banco garante não poder opor ao beneficiário os meios de defesa próprios do devedor garantido, tanto relativos ao contrato base, como ao contrato de mandato, mas apenas os respeitantes ao contrato de garantia” 76. V) A garantia autónoma, especialmente quando conferida por entidade bancária, pode ser à primeira solicitação (on first demand) ou não 77. Na primeira Ao invés, o fiador tem legitimidade “para discutir o cumprimento ou incumprimento do contrato pelo afiançado” mas “só na estrita medida em que isso se reflecte na relação de fiança” (Acórdão da Relação de Lisboa de 20/09/1996, R. 153, Col. de Jur., 1996, 4, 98). 75 I – O contrato de garantia bancária é um negócio inominado – admitido no nosso sistema jurídico ao abrigo do princípio da liberdade contratual (artigo 405º do Código Civil) -, mediante o qual o garante, normalmente um banco, no cumprimento de um contrato de mandato sem representação em que é mandante o devedor de um «contrato-base» (dador da ordem), se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, por via de regra em caso de incumprimento desse contrato por parte do aludido devedor, sem poder invocar em seu benefício qualquer meio de defesa relacionado especialmente com o mesmo contrato-base. II – O garante assegura, pois, ao beneficiário determinado resultado, assumindo o risco da sua não produção, qualquer que seja, em princípio, a causa, tornando-se a garantia exequível mercê de simples comunicação do beneficiário, imotivada e potestativa, do incumprimento da obrigação do mandante. III – Característica essencial do contrato de garantia bancária é, por conseguinte, a sua autonomia, posto que o garante se vincula a uma obrigação própria e independente de qualquer outra, máxime da obrigação garantida – «uma certa autonomia em relação a esta obrigação (abstracção «hoc sensu») constitui seu traço específico» -, sem poder opor ao beneficiário as excepções emergentes quer do contrato-base, quer do contrato de mandato. IV – A nota da autonomia da garantia bancária, implicando ausência da acessoriedade em face da obrigação garantida que é da natureza da fiança, permite, aliás, distinguir as duas espécies de garantias, dependendo a qualificação em concreto da interpretação do negócio jurídico respectivo (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/09/2000, Proc. n.º 2037/2000, Bol. do Min. da Just., 499, 343). 76 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/06/2000, Proc. n.º 316/2000, Col. de Jur., 2000, 2, 85. 77 Não falta jurisprudência, contudo, a considerar que “I – Não se comprometendo o banco garante a pagar à primeira interpelação, não estamos perante uma garantia autónoma (“on first demand”), mas sim perante uma fiança” (Acórdão da Relação de Lisboa de 27/04/1999, R. 1345, Col. de Jur., 1999, 2, 125). 74
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hipótese, aquela em que o credor obtém um incremento de segurança, este pode exigir a prestação da garantia não só independentemente da razão de ser do incumprimento, como mesmo independentemente da própria existência de incumprimento 78 (com a ressalva de situações reveladoras de exercício abusivo ou fraudulento 79). Deste modo, “I – A garantia bancária autónoma à primeira solicitação é automática, exequível mediante simples, imotivada ou potestativa comunicação do beneficiário do incumprimento da obrigação principal do mandante” 80. VI) Exceptuando o caso em que exista cláusula on first demand, a garantia autónoma não é acessória, mas é certamente instrumental – isto é, o garante só deve realizar a prestação dela resultante em caso de incumprimento ou cumprimento defeituoso por parte do devedor assegurado. Isto sugere de imediato o problema da natureza causal ou abstracta do contrato de constituição da garantia autónoma. Segundo uma definição mais ou menos usual, “o negócio é causal quando a sua fonte tenha de ser explicitada para que a sua eficácia se manifeste e subsista. O negócio é abstracto quando essa eficácia se produza e conserve independentemente da concreta configuração que o haja originado” 81 82. Ora, uma vez que a regra, indisputada entre nós (apesar de inexistir expressa menção legal), é a da causalidade dos negócios, haverá um primeiro indício de que tal será também a natureza do acto constitutivo da garantia autónoma. Por outro lado, e mais decisivamente, se o garante pode recusar a sua prestação quando, pelo menos, o credor esteja a actuar abusivamente, de má Todavia, I – A garantia bancária autónoma simples garante perante o credor beneficiário a prestação por terceiro, mas sem eliminar o risco de ser exigida ao redor a prova da ocorrência dos pressupostos que condicionam o seu direito. II – A garantia bancária autónoma à primeira solicitação, e salva a verificação de fraude manifesta, elimina esse risco, operando imediatamente logo que o seu pagamento seja solicitado pelo beneficiário. III – Não é de presumir a existência de uma garantia bancária autónoma à primeira solicitação, havendo que proceder à sua qualificação após a interpretação da vontade das partes, atentas as circunstâncias da situação concreta e os usos comerciais, se os houver (Acórdão da Relação de Lisboa de 15/12/2005, R. 4830/2005, Col. de Jur., 2005, V, 121). 79 I – A garantia bancária – carta de crédito irrevogável – é autónoma e automática mas tal princípio comporta excepções. II – Entre as partes do negócio base, pode impedir-se que o Banco pague ao vendedor da mercadoria o preço, consubstanciado na quantia objecto da carta de crédito, mediante providência cautelar dirigida contra o vendedor, demonstrando-se que este praticou abuso evidente, como a venda de mercadoria defeituosa (Acórdão da Relação do Porto de 01/06/2000, R. 290/2000, Col. de Jur., 2000, 3, 201). 80 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/10/2004, Proc. n.º 2883/2004, Col. de Jur., 2004, III, 55. 81 Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, tomo I, Almedina, Coimbra, 1999, pág. 262. Como refere o autor, esta classificação reporta-se às obrigações (que, portanto, serão causais ou abstractas). Só por extensão pode atingir também os negócios dos quais resultam (pág. 264). 82 A expressão “causa do negócio” está longe de ser unívoca. Na verdade, por negócio abstracto tanto pode entender-se o negócio que tem causas variáveis (insusceptível, por isso, de ser limitado a uma causa eficiente), como por negócio abstracto se pode querer dizer o negócio que se separa quanto à sua existência, validade e eficácia do negócio que lhe está subjacente. Habitualmente a expressão usase nesta segunda acepção. 78
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fé ou em fraude 83, isso já significa que o acto constitutivo da garantia mantém relação (embora não tão intensa como o acto constitutivo da fiança) com a relação jurídica principal que causa a instituição da garantia. O que é incompatível com a atribuição de natureza abstracta a tal acto, mesmo quando contenha a cláusula on first demand. B: Temas propostos - Natureza jurídica da garantia autónoma - Natureza jurídica do acto constitutivo da garantia autónoma - Meios de defesa oponíveis pelo garante ao credor - A garantia autónoma e a cláusula “on first demand” - Natureza causal ou abstracta do acto constitutivo da garantia autónoma - Efeitos do cumprimento e do não cumprimento da prestação a cargo do garante - Garantia bancária, fiança e aval 3.3. Garantias reais I) Como acima se disse, as garantias reais podem ser, concomitantemente, direitos reais de garantia. Aliás, essa é a regra. Somente assim não sucede com aquelas garantias que incidam sobre bens indeterminados, justamente por a existência de qualquer direito real pressupor que o respectivo objecto seja certo e esteja especificado 84. Assim, não são direitos reais de garantia os privilégios mobiliários ou imobiliários gerais 85. Pelo que, portanto, só podem ter o valor de penhora, de arresto ou de acto equivalente pois somente com a prática de algum destes actos fica determinado o respectivo objecto (artigo 749º, Código Civil). II) Como o fenómeno da sobreposição de direitos sobre a mesma coisa 86 Almeida Costa – Pinto Monteiro, Garantias Bancárias – O contrato de garantia à primeira solicitação, Colectânea de Jurisprudência, ano XI, tomo 5, 1986, pág. 20. 84 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/03/2009, Proc. n.º 08B2642: 2. Os privilégios creditórios imobiliários gerais não se consubstanciam em garantia real de cumprimento de obrigações, por não incidirem sobre imóveis certos e determinados, funcionando como meras causas de preferência legal de pagamento. 4. O conflito em relação aos mesmos bens imóveis entre a garantia especial de cumprimento obrigacional decorrente de privilégio imobiliário geral e de hipoteca resolve-se por via da aplicação, por analogia, do disposto no nº 1 do artigo 749º do Código Civil. 85 Os privilégios creditórios imobiliários gerais não se consubstanciam em garantias reais de cumprimento de obrigações por não incidirem sobre imóveis certos e determinados, só funcionando como causa de preferência legal de pagamento (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/05/2007, Proc. n.º 07B1309). No mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/06/2005, Proc. n.º 1774/2005: I – A regulamentação do Código Civil relativamente ao privilégio imobiliário (artigo 751º) pressupõe a característica de ser especial. II – Tal regulamentação não é aplicável ao privilégio creditório com incidência sobre todos os imóveis do devedor. III – Um privilégio imobiliário geral não é um direito real de garantia, sendo-lhe aplicável o regime do artigo 749º do CC. IV – Concorrendo um crédito hipotecário com créditos laborais que gozem de privilégio imobiliário geral, aquele é graduado antes destes. 86 Os chamados conflitos de sobreposição (Oliveira Ascensão, Relações jurídicas reais, Lisboa, Morais 83
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pode também dizer respeito às garantias reais, quando, em processo executivo, os credores delas titulares as pretendam fazer valer, dever-se-á observar uma certa hierarquia na obtenção do pagamento. De facto, tal como nas garantias pessoais, as garantias reais podem assegurar qualquer modalidade de obrigação mas no pressuposto de que esta seja susceptível de conversão em dinheiro, pois o direito do credor privilegiado com a garantia real projecta-se essencialmente sobre o produto da venda em execução (artigo 824º, Código Civil). Assim, tratando-se de coisas imóveis ou de bens equiparados, tal hierarquia é, de um modo geral, a seguinte: - primeiro, os privilégios creditórios, se forem especiais (artigo 751º, Código Civil) 87, os quais, se concorrerem entre si, valem de acordo com os critérios constantes dos artigos 746º e 748º do Código Civil; - depois, o direito de retenção (artigo 759º, n.º 2, Código Civil) 88; - e, por fim, os demais direitos de garantia, valendo a antiguidade como critério de precedência entre eles (sendo certo que, no caso da penhora, a anterioridade pode reportar-se à data do arresto, o qual, como procedimento cautelar, antecipa os efeitos daquela – artigo 622º, Código Civil). Tratando-se de coisas móveis não registáveis, a referida ordem estabelecese (só) em função do critério (geral) da antiguidade (artigo 750º, Código Civil). 3.3.1. Anticrese A: Considerações I) A consignação de rendimentos ou anticrese (à letra: uso recíproco) é marcada, em primeiro lugar, pela seguinte especialidade: o poder fundamentalmente concedido ao seu titular (ou seja, do credor) é, acima de tudo, o de receber os frutos (naturais ou civis) que a coisa efectivamente proporcione. O valor dos mesmos irá sendo sucessivamente abatido ao montante do crédito garantido, de modo a que se alcance, eventualmente, um saldo igual a zero, com a correspondente extinção (por cumprimento: artigo 659º, n.º 1, in fine, Código Civil) da obrigação
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Editora, 1962, págs. 222 e segs.), que constituem uma espécie particular de colisão de direitos, podem ser solucionados (basicamente nos termos gerais do artigo 335º), de forma hierárquica, preferente ou paralela (autor e ob.cit., págs. 223 e segs.). “O privilégio imobiliário concedido pelo art. 11º do DL nº. 103/80, de 9 de Maio, sendo geral, não confere direito de sequela, razão por que não é oponível a terceiro garantido com hipoteca registada sobre determinado bem”(Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/02/2002, Proc. n.º 01A3613). Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 356/2004, de 19/05/2004, Proc. n.º 606/2003 (Diário da República n.º 150, II, págs. 9641 a 9643): Decide não julgar inconstitucional a norma do artigo 755º, nº 1, alínea f), do Código Civil (necessariamente articulada com o disposto no artigo 759º, nº 2, do mesmo diploma), segundo a qual o direito de retenção do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa prevalece sobre a garantia hipotecária registada em data anterior à referida tradição.
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garantida. O direito do credor anticrético é, pois, antes do mais, o direito sobre ou aos frutos 89. No que toca aos frutos naturais, adquire a respectiva propriedade pela sua separação. No que respeita aos frutos civis, adquire, com a constituição da anticrese, as pretensões existentes a esse tempo e que se vencerem enquanto ela durar; embora possa também obter frutos civis dando a coisa em arrendamento ou acto similar 90. II) De acordo com o artigo 661º, n.º 1 do Código Civil, a coisa onerada com este direito real de garantia, tanto pode: - ser entregue ao credor; - como ser entregue a terceiro; - como ficar em poder do respectivo autor (devedor ou terceiro). No primeiro caso, o credor anticrético é equiparado ao locatário [artigo 661º, n.º 1, b), Código Civil], o que implica que se lhe reconheça, ao lado do poder de fruição, o poder de uso da coisa (artigo 663º, n.º 1, Código Civil). Nesta modalidade, a anticrese é funcionalmente um direito de garantia, embora seja, em termos estruturais, um direito de gozo. Ao invés, se, originariamente, a coisa onerada com a consignação de rendimentos ficar em poder de terceiro ou do respectivo autor [artigo 661º, n.º 1, alíneas a) e c), Código Civil], o credor tem o direito de exigir de um deles (consoante os casos) a entrega do valor desses frutos [artigos 661º, n.º 1, alínea c), in fine e 662º, n.º 1, Código Civil] – trata-se, portanto, de um poder de natureza creditícia. III) Ora, encarando a consignação pelo lado passivo – o que, naturalmente, só faz sentido nas referidas modalidades das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 661º do Código Civil, pois apenas aí se estabelece uma relação jurídica intersubjectiva dirigida à obtenção dos frutos da coisa – ela representa um ónus real. Porque: - o devedor é determinado propter rem; - está obrigado a uma prestação de dare; - o (valor da) coisa onerada garante o cumprimento dessa obrigação. IV) No Código Civil Italiano, o único modo de constituição previsto para a anticrese é o contrato (artigo 1960). No nosso Código, diversamente, prevêse uma outra modalidade de constituição: a decisão judicial (artigo 658º). Esta, no entanto, só pode ser proferida desde que o credor exequente requeira que os rendimentos dos bens penhorados lhe sejam consignados e desde que o executado nisso consinta (artigo 879º, n.º 1, Código de Processo Civil), expressa ou tacitamente (artigo 879º, n.º 2, do mesmo diploma). Pelo que, no fundo, a “Si antixrysis facta sit et in fundum aut in aedes aliquis inducatur, eo usque retinet possessionem pignoris loco, donec illi pecunia solvatur, cum in usuras fructus percipiat aut locando aut ipse percipiendo habitandoque: itaque si amiserit possessionem, solet in factum actione uti” (Dig. 20.1.11.1, Marcianus l.S. ad form. hypoth.). 90 “Si pecuniam debitor solverit, potest pigneraticia actione uti ad reciperandam antixrysin: nam cum pignus sit hoc verbo poterit uti” (Dig. 13.7.33, Marcianus l.S. ad form. hypoth.). 89
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decisão judicial apenas formaliza; tal qual como quando a anticrese se constitui extrajudicialmente, a escritura pública ou o documento autenticado somente dá forma ao convénio o entre credor e autor da consignação. O modo de constituição acaba por ser sempre, portanto, o acordo; o procedimento de formalização é que pode variar (tal como de igual modo sucederá quando a constituição extrajudicial puder ser feita perante Conservador do Registo Predial e não exclusivamente perante Notário). A consignação de rendimentos constituída por via judicial apresenta, ainda assim, uma particularidade 91: é que, evidentemente, apenas se pode constituir sobre bens de terceiro nos casos em que a própria penhora possa incidir sobre tais bens (artigo 818º, Código Civil). V) O credor anticrético fica, pois, com o direito de receber os frutos produzidos pela coisa onerada para assim obter “o cumprimento da obrigação e o pagamento dos juros, ou apenas o cumprimento da obrigação ou só o pagamento dos juros” (artigo 656º, n.º 2, Código Civil). “Os frutos da coisa são imputados primeiro nos juros, e só depois no capital, se a consignação garantir tanto o capital como os juros” (artigo 661º, n.º 2 do mesmo diploma). Mas os frutos consignados são sempre objecto da dita imputação (tanto na anticrese propriamente dita, como no penhor com pacto anticrético – artigo 672º). O que significa que a anticrese é sempre um vif-gage e não um mort-gage (caso em que, na sua pureza, “os frutos são adquiridos pelo credor … para quem constituem uma espécie de juro do crédito”) 92. VI) Atenta a finalidade da anticrese, “I – Após a declaração de falência, a garantia conferida pela consignação de rendimentos – rendas de um imóvel arrendado – transfere-se para o produto da venda do imóvel consignado. II – O rendimento proveniente das rendas vencidas do bem consignado, após a data da declaração da falência, reverte para a massa falida, não gozando o consignatário de qualquer preferência sobre estas no pagamento do seu crédito relativamente aos demais credores” (Acórdão da Relação do Porto de 22/01/2007, Proc. n.º 0656688). B: Temas propostos - Natureza jurídica da anticrese - Anticrese e penhor - Anticrese e ónus real O prazo máximo de duração a que se sujeita aplica-se indistintamente à consignação judicial ou voluntária, desde que verse sobre coisa imóvel. De facto, “I – A vantagem da consignação de rendimentos, em processo executivo, reside no facto de operar sem necessidade de se proceder à venda judicial do bem, mas ela tem um limite legal imperativo de duração que é de 15 anos, nos termos do artº 659º, nº 2 do Código Civil, quando se tratar de rendimentos de imóveis, pelo que se houver sido celebrado um arrendamento por convenção das partes ou por arrematação judicial, exactamente para que se opere a consignação dos rendimentos emergentes da posição de locatário (rendas), não faz sentido que tal arrendamento ocorra para além do limite máximo de duração da própria consignação, pressuposto e fundamento daquele arrendamento” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/04/2009, Proc. n.º 6281/03.0TBSXL.S1). 92 John Gilissen, Introdução Histórica ao Direito, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2001, pág. 757.
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- Constituição judicial da anticrese - Vif-gage e mort-gage - Penhor e anticrese 3.3.2. Hipoteca A: Considerações I) A hipoteca é o direito de garantia que onera direito sobre coisa imóvel ou coisa equiparada (artigo 686º, n.º 1, Código Civil). Os direitos susceptíveis de oneração por hipoteca são todos aqueles que passam ser alienados (artigo 715º do mesmo diploma) 93. Para o efeito, os artigos 688º e 689º do Código Civil enumeram uma série de direitos susceptíveis de oneração através de hipoteca. Como o momento decisivo para o nascimento da hipoteca é, porém, o do registo do respectivo acto constitutivo (artigo 687º, Código Civil 94) nada impede que outros direitos ali não discriminados possam ser igualmente onerados com hipoteca 95. Decisivo é que se trate de direitos cujos factos constitutivos sejam susceptíveis de inscrição registal. II) Nos termos do artigo 691º do Código Civil (artigo 2811 do Código Civil italiano), a hipoteca abrange, para além do bem sobre o qual directamente incide, as respectivas: - partes integrantes e componentes; - acessões naturais; Logo, “A outorga em contrato de hipoteca, na posição de garante, de pessoa que não tenha legitimidade substantiva para alienar os bens dados em garantia é ineficaz em relação à pessoa efectivamente detentora dessa legitimidade” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/05/2008, Proc. n.º 08A1056). Ou, “I – Não podem ser hipotecados bens insusceptíveis de ser alienados, como ocorre com os prédios onde estejam implantados casinos concessionados pelo Estado e que para este revertam findo o contrato de concessão” (Acórdão da Relação de Évora de 06/12/2001, R. 598/01, Col. de Jur., 2001, 5, 258). 94 Acórdão da Relação do Porto de 10/07/1999, R. 1003/99: I – A hipoteca carece de ser registada, sem o que não produz efeitos. II – Os credores que beneficiam de hipoteca registada sobre o imóvel penhorado em acção executiva, gozam do benefício da prioridade do registo, nos termos do artigo 686º do Código Civil. III – O registo definitivo da hipoteca conserva a prioridade que tinha como provisório – artigo 6º, nº 3 do Código do Registo Predial. IV – O primeiro enunciado no número anterior não é afastado mesmo que, devido a atraso imputável aos serviços do Registo Predial, o registo definitivo só é feito decorridos mais de seis meses após requerido o registo provisório (período de normal vigência deste registo), não ocorrendo, assim, a caducidade de tal registo provisório – artigo 6º, 70º e 71º do Código do Registo Predial (Col. de Jur., 1999, 4, 198). 95 A menos que a lei obste a tal, como sucede com os direitos de propriedade industrial, os quais, apesar de estarem sujeitos ao registo correspondente, são susceptíveis de penhor e não de hipoteca (artigo 6º, Código da Propriedade Industrial). O mesmo se passa com os direitos de autor (artigo 46º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos). Em ambos os casos, o que se dá em garantia é, evidentemente, o respectivo “conteúdo patrimonial” (artigo 46º, n.º 1, Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos). A vertente pessoal destes direitos – ou seja, a relativa à sua paternidade (artigo 9º, Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos) – é inalienável e, portanto, insusceptível de oneração. 93
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- benfeitorias. Assim sendo, é evidente que se coloca de imediato a questão subsequente 96: a hipoteca estender-se-á também às acessões industriais 97 98? Ou por outra, como se resolve a situação do beneficiário da acessão perante o credor hipotecário, quando entre o objecto da hipoteca e aquilo que lhe acedeu exista uma união indissociável, que constitui precisamente o pressuposto da acessão 99? Também pode surgir a circunstância inversa. Então, “o desmoronamento de um edifício, sobre cujas fracções autónomas haviam sido constituídas hipotecas não equivale nem significa o perecimento da coisa, já que se mantém um dos elementos – o solo – que integravam a coisa e que continuará a responder pelas responsabilidades garantidas pela hipoteca, não extinta” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/11/1994, Proc. n.º 85.516, Col. de Jur., 1994, 3, 134). 97 Tendo em conta que se encontra muito divulgado na jurisprudência um critério de distinção entre benfeitoria e acessão industrial que aplica o regime da primeira sempre que exista uma situação jurídica sobre a coisa ao abrigo da qual o incorporador procedeu à junção de coisas (ver, neste sentido, v.g. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/10/2004, Proc. n.º 2526/2004: I – As obras feitas num imóvel só podem considerar-se benfeitorias se, quem as realizou, estiver ligado ao prédio, por um nexo jurídico (vínculo ou relação). II – Será o caso de um promitente-comprador de um imóvel, que lhe foi entregue e nele fez melhoramentos com o ânimo de possuidor e não de mero detentor ou possuidor precário (Col. de Jur., 2004, III, 50), saber se as acessões industriais são abrangidas pela hipoteca pode não qualquer relevância, dado que, pelo recurso ao referido critério, qualquer incorporação devida à intervenção humana é praticamente sempre benfeitoria. Cfr., por exemplo, o Acórdão da Relação de Coimbra de 11/07/2000, R. 1486/2000: A hipoteca de um prédio rústico, posteriormente transformado em urbano, abrange este último, já que ela contemplará sempre quaisquer benfeitorias que venham a ser introduzidas no prédio sobre que recai, ainda que tal consista na alteração da sua estrutura ou no aumento da sua área (Bol. do Min. da Just., 499, 392). Já constitui explicação mais convincente considerar que a extensão da hipoteca àquilo que aceder ao objecto original se dá por força do princípio da indivisibilidade (artigo 696º, Código Civil), independentemente de estar em causa uma benfeitoria ou uma acessão industrial. Cfr., por exemplo, a hipótese decidida pelo Acórdão da Relação de Évora de 15/04/1999, R. 1080/98: I – Atento o princípio da indivisibilidade, resultante do disposto no artigo 696º do Código Civil, a hipoteca que incide sobre um terreno estende-se aos edifícios nele posteriormente implantados e às fracções autónomas que se venham a constituir por sujeição ao regime da propriedade horizontal. II – Havendo expurgação relativamente a algumas fracções, a hipoteca mantém-se por inteiro em relação às restantes (Col. de Jur., 1999, 2, 269). 98 Problema similar se coloca quando ocorra uma modificação objectiva do prédio objecto da hipoteca, designadamente por construção de um edifício em terreno antes inedificado. Cfr. a espécie contida no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/02/2004, Proc. n.º 2831/2003 (Col. de Jur., 2004, I, 67): I – Se há, para garantia de uma determinada dívida, uma hipoteca incidindo sobre um terreno para construção e se, sobre esse terreno, é construído um prédio em propriedade horizontal, há uma nova realidade predial que surge. II – Em tal caso, a hipoteca transfere-se para a nova realidade predial, e transfere-se por forma em que cada uma das fracções garante a totalidade do crédito. III – Naturalmente, do crédito em dívida – aquela parte do crédito que já está satisfeita é uma parte que já não existe, extinguiu-se pelo pagamento. IV – O artigo 696º do Cód. Civil, que estabelece a regra da indivisibilidade da hipoteca, começa exactamente pela expressão “salvo convenção em contrário” – é essa “convenção” que se verifica quando o credor aceita o distrate da hipoteca sobre uma determinada fracção, normalmente contra o pagamento da parte proporcional do crédito (ainda) em dívida. V – Essa parte proporcional é estabelecida, na transição daquilo que era o terreno para construção para o prédio em propriedade horizontal, através da fixação das permilagens do novo prédio. 99 Parece que, nas mesmas circunstâncias, o problema já não se coloca a propósito do direito de retenção. Cfr o Acórdão da Relação de Évora de 17/01/1991, R. 218, Col. de Jur., 1991, 1, 286: A 96
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A explicação que se pode considerar tradicional atribui ao beneficiário da acessão o direito de retirar do produto da alienação judicial a quantia equivalente ao valor proporcional da parte acedida em relação ao valor total da coisa. O beneficiário da acessão ficaria pois em situação equivalente à dos titulares a que o n.º 3 do artigo 824º se reporta. Este entendimento tem, no entanto, evidentes desvantagens práticas. De facto, constata-se trivialmente que, na venda executiva, o bem objecto da mesma raramente atinge o (seu) normal valor de mercado. Pelo que o referido entendimento pode acarretar prejuízos de monta para o beneficiário da acessão. Para obviar a este inconveniente, parece concebível solucionar a questão de outro modo. Na verdade, afigura-se razoável a seguinte construção: a venda executiva ou, em geral, a alienação judicial, apenas poderá ter por objecto aquela (parte da) coisa que originalmente foi hipotecada 100 e não aquilo que posteriormente lhe acedeu. A menos que o credor hipotecário prove que isso diminui consideravelmente o valor da (parte da) coisa dada em garantia ou excepto se não houver meio de juridicamente assegurar a manutenção em titularidades separadas (da parte) da coisa originalmente objecto da hipoteca e (da parte) da coisa que àquela acedeu. III) O titular do direito onerado pela hipoteca mantém todos os poderes que originalmente obteve sobre a coisa – designadamente, pode continuar a utilizála e a fruí-la. Pode também o titular do direito onerado pela hipoteca onerá-lo novamente ou aliená-lo. Para o credor hipotecário todas estas actuações são, em princípio, irrelevantes na medida em que o seu direito não é afectado por elas. Por isso, é nula qualquer cláusula de inalienabilidade eventualmente estabelecida entre credor hipotecário e autor da hipoteca (artigo 695º, Código Civil). Por outro lado, é igualmente nulo o pacto comissório (artigo 694º, Código Civil) 101 . Deste modo, “I – A outorga de uma procuração irrevogável, «com plenos poderes para vender ou prometer vender a quem entender, incluindo à própria mandatária, pelo preço e demais condições que entender» os identificados prédios, sobre os quais foi constituída uma hipoteca pelo mandante a favor dessa mesma mandatária, consubstancia a camuflagem, em fraude à lei, de um verdadeiro pacto comissório” (Acórdão da Relação do Porto de 07/06/2004, P. 277/2004, Col. de Jur., 2004, III, 186). No mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/12/2005, Proc. n.º 04B4479: “I. A proibição absoluta do pacto comissório consignada no art. 694º do CC, pelo seu espírito, abrange, outrossim, o pacto pelo o qual se convencione o direito de venda particular. II. A “ratio” da tradição de um lote de terreno, em consequência da celebração de contrato promessa, apenas confere um direito do retenção sobre esse lote e não sobre construção que, após a tradição, o promitente-comprador edificou. 100 Se, por exemplo, o proprietário do terreno hipotecado beneficiou posteriormente da acessão de uma construção que nele foi incorporada por terceiro de boa fé (artigo 1340º, Código Civil), a venda executiva apenas poderá abranger a propriedade do terreno. 101 Ainda que a cláusula commissoria tenha sido originalmente concebida, no Direito Romano, para servir como defesa do comprador perante o vendedor quando este lhe não pagasse o preço dentro do tempo combinado: “Si fundus commissoria lege venierit, magis est, ut sub condicione resolvi emptio quam sub condicione contrahi videatur” (Dig. 18.3.1, Ulpianus 28 ad sab.). Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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proibição do predito pacto é plúrima, complexa, relevando, concomitantemente, o propósito de proteger o devedor da possível extorsão do credor e a necessidade, correspondente a um interesse geral do tráfego, de não serem iludidas as “regras do jogo” através da atribuição injustificada de privilégios a alguns credores, fora das vias objectivas em que repousa a bondade das excepções ao princípio das excepções ao princípio “par conditio creditorum”. III. A procuração irrevogável é um acto unilateral, sempre ligada a um contrato que constitui a “relação subjacente”, não raro traduzindo acto de execução ou cumprimento de tal relação podendo ser consubstanciada por pacto comissório”. IV) Por seu turno, o credor hipotecário pode transmitir o seu direito autonomamente (artigos 727º e 728º, Código Civil) ou em conjunto com o crédito cedido (artigos 577º a 588º, Código Civil). Pode igualmente, e é isto que caracteristicamente marca a hipoteca neste capítulo, proceder à cessão do respectivo grau hipotecário (artigo 729º, Código Civil) ou sub-hipotecar. A primeira é configurável como um contrato de troca de hipotecas (troca entre a hipoteca do credor que avança e a hipoteca do credor que recua), sujeito às regras da cessão de créditos mas com os efeitos definidos pelo artigo 728º do Código Civil para a transmissão autónoma da hipoteca. É a protecção dos demais (eventuais) credores hipotecários que demanda esta solução. A segunda consiste na oneração da hipoteca com outra hipoteca. Se a hipótese é em si concebível, falham as explicações no que toca, designadamente, à determinação dos poderes que se devem reconhecer ao credor sub-hipotecário. Apesar das dificuldades construtivas, parece mais adequado entender que tal credor pode, vencido o seu crédito, exercer o crédito hipotecário (portanto, o crédito daquele que tem a sua hipoteca onerada) com as correspondentes consequências. V) Distinguem-se as hipotecas em legais, judiciais e voluntárias (artigo 703º, Código Civil). As duas primeiras resultam do exercício de um direito potestativo constitutivo atribuído por lei (artigo 704º, Código Civil) ou fundado numa decisão judicial que tenha condenado “o devedor à realização de uma prestação em dinheiro ou outra coisa fungível” (artigo 710º, Código Civil). As terceiras constituem-se por contrato entre credor e autor da hipoteca ou por negócio unilateral celebrado por este último (desde que, depois, o credor aceite os respectivos efeitos 102). A distinção tem (ainda) implicações em matéria de eventual redução judicial da hipoteca (artigo 720º, Código Civil), dado que “I – A redução, em princípio, só pode ter lugar nas hipotecas legais e judiciais, dado que só nestas se verifica a indeterminação dos bens sobre que incidem. II – Nas hipotecas voluntárias não se admite, em regra, a sua redução judicial; esta só excepcionalmente é admitida nos precisos termos do n. 2 do artigo 720 do Código Civil” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/04/1994, Proc. n.º 084397). 102
Não há razão, efectivamente, para excepcionar a regra invito beneficium non datur.
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VI) Ao contrário das demais garantias reais, a hipoteca é a única que jamais implica a atribuição da posse relativa à coisa sobre que versa ao credor hipotecário. Razão pela qual é concebível e praticável que em relação à mesma coisa (co)existam duas ou mais hipotecas. Ora, quando uma das hipotecas co-incidentes se extingue, são teoricamente admissíveis duas soluções: ou o lugar do respectivo titular fica vago, ou todas as hipotecas posteriores avançam um grau 103. Por força do disposto no artigo 713º, no Código Civil perfilhou-se de modo razoavelmente límpido a segunda solução. Mas, a disposição em causa pode ser interpretada restritivamente. Torna-se de facto injustificável beneficiar os credores posteriores, quando a extinção da hipoteca anterior se deva à ocorrência de um facto inexpectável (por exemplo, a renúncia do credor hipotecário anterior). Por isso, nessas situações (mas só nessas), deve considerarse o grau do credor precedente como um “lugar vago”. Quando o “lugar fica vago” em consequência da extinção da hipoteca anterior, poderá constituir-se nova hipoteca que ocupe esse “lugar”, com o exacto conteúdo 104 daquela que se extinguiu, se algum credor nisso tiver interesse. O que quer dizer que, se tal não acontecer, os credores hipotecários posteriores avançarão, realmente, um grau. Este “avanço” nunca se verificará, contudo, quando o crédito garantido, ou apenas a hipoteca (nos termos do artigo 727º do Código Civil), tenha sido adquirido/a pelo autor da hipoteca 105. Aqui, na realidade, se a extinção da hipoteca se verificasse, o autor da hipoteca ficaria injustificadamente prejudicado perante os credores hipotecários posteriores. Assim, neste caso, a hipoteca mantém-se, apesar de ela entrar na titularidade daquele que já é titular do direito por ela onerado 106. VII) A hipoteca não implica a atribuição da posse da coisa ao credor hipotecário precisamente por, qualquer que seja o título constitutivo da hipoteca, esta somente se considerar existente a partir do instante em que a competente inscrição registal se encontrar definitivamente realizada (artigos 687º e 4º, n.º 2 do Código do Registo Predial). Todavia, admite-se a realização do chamado registo provisório de constituição de hipoteca (artigos 47º e 92º, n.º 1, alínea g), Código do Registo Predial). Este, não dando ainda origem à hipoteca, como é evidente, dá ao (futuro) credor hipotecário a prioridade decorrente da conversão em definitiva da inscrição registal que tenha ficado provisória, neste caso por natureza (artigo 6º, n.º 3, Código do Registo Predial). Mais detalhadamente, Wolff – Raiser, Sachenrecht (trad. esp.), vol.II, Bosch, Barcelona, 1971, págs. 297 e segs.. 104 Portanto, para garantir o crédito nos limites da anterior garantia. 105 É claro que se o devedor for o autor da hipoteca somente a primeira hipótese é verificável (artigo 727º, Código Civil). 106 Sobre a hipoteca de proprietário, cfr. Wolff – Raiser, Sachenrecht, vol.II, págs. 307 e segs.. 103
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VIII) Se a natureza do registo de instituição de hipoteca não é disputada, já a relação deste com o respectivo facto constitutivo não é tão consensual. Pode entender-se, na verdade, que (por analogia com o acto de constituição do penhor) a completude do referido facto supõe, pelo menos, a concorrência sucessiva de dois elementos parcelares: - nas hipotecas legais, aquele ao qual a lei atribuir tal virtualidade; nas hipotecas judiciais, a decisão judicial condenatória nos termos do artigo 710º do Código Civil; nas hipotecas voluntárias, o contrato ou o negócio unilateral; - mais o acto de inscrição definitiva de um dos referidos factos. Sucede que, ao contrário do processo de constituição do penhor em que ambos os actos – contrato e entrega da coisa – são imputáveis à vontade dos contraentes, o acto de registo é um acto independente do facto registável 107 e, ainda para mais, um acto de autoridade. Pelo que o mais acertado será considerar que o facto constitutivo da hipoteca está completo independentemente da realização do respectivo registo e este (somente) serve como um complemento que auxilia a desencadear certos efeitos (designadamente, os chamados efeitos reais) associados àquele 108. B: Temas propostos: - Acessão industrial e hipoteca - Hipoteca judicial e registo provisório - Alienabilidade do bem hipotecado - Pacto comissório e hipoteca - Cessão da hipoteca - Cessão do grau hipotecário - Sub-hipoteca - Hipoteca de proprietário - Co-incidência de hipotecas - Registo provisório de hipoteca - Relação entre o registo e o facto constitutivo da hipoteca - Hipoteca de coisas móveis registáveis 3.3.3. Penhor A: Considerações I) O penhor é o direito real de garantia que incide sobre coisas insusceptíveis de hipoteca (artigo 666º, n.º 1, Código Civil) e os direitos susceptíveis de oneração através do penhor são todos aqueles que passam ser alienados (artigos 667º e 680º, Código Civil). Assim, “proprie pignus dicimus, quod ad creditorem transit, hypothecam, cum non transit nec possessio ad creditorem” (Dig. 13.7.9.2, Ulpianus 28 107 108
José González, A realidade registal predial para terceiros, Quid Juris, Lisboa, 2006, págs. 144/145. Werner Flume, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, Das Rechtsgeschäft, trad. esp. (El Negócio Jurídico), Fundación Cultural del Notariado, Madrid, 1998, págs. 52/53.
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ad ed.). II) A lei distingue entre penhor de coisas e penhor de direitos. A terminologia, consagrada a este como a outros propósitos, já se sabe ser inadequada. O penhor, como os demais ius in re aliena, onera outro direito (maxime a propriedade), na medida em que a sua constituição determina o surgimento de um fenómeno de sobreposição de direitos sobre a mesma coisa. Pelo que (tal como já resulta, aliás, das disposições legais citadas por último) o penhor é sempre de direitos. Conhece-se, porém, o significado da expressão penhor de coisa (ou v.g. usufruto de coisa ou hipoteca de coisa). Por osmose, coisa e direito de propriedade (especialmente tratando-se de imóveis) são expressões sinónimas. Logo, toda a oneração que não incida sobre o direito de propriedade é oneração de direitos. Pelo que, na terminologia legal, só a oneração deste último é oneração de coisa. De todo o modo, no que toca pelo menos ao penhor, a distinção entre penhor de coisas e penhor de direitos tem implicações sempre que este último incida sobre direitos de crédito (artigos 681º, n.º 2, 684º e 685º, Código Civil) dada a própria especificidade da situação. III) O penhor constitui-se por contrato entre credor e autor do penhor (devedor ou terceiro) 109. Incidindo sobre coisas não passíveis de hipoteca e, portanto, em princípio insusceptíveis de registo, a publicidade que à sua constituição é capaz de ser dada só pode ter carácter espontâneo. É por isso determinante que ao autor do penhor seja retirada a disponibilidade material sobre a coisa empenhada 110 (artigo 699º, n.º 2, Código Civil). Daí a conclusão habitual: o contrato de constituição do penhor é real quanto à constituição. Ainda que em rigor a lei não exija a entrega da coisa ao credor para a perfeição de tal contrato mas tão-somente que o autor do penhor seja desapossado 111. No Direito Romano o pignus podia constituir-se por vontade do respectivo autor – pignus conventionale ou pignus testamentarium – ou por via judicial – pignus judiciale ou pignus praetorium (Rudolph Sohm, The Institutes of Roman Law, Gorgias Press, New Jersey, 2002, pág. 275). 110 Daí que “I – Para haver a garantia de penhor de aplicação financeira sobre um depósito bancário, constituída pelo depositante a favor de uma sociedade comercial, de que é sócio, necessário se torna que a disponibilidade de tal depósito pertença em exclusivo ao Banco. II – Tal não se verifica no escrito, em que aparece designado como penhor, se o depositante apenas se obriga a não movimentar ou mobilizar por qualquer modo o depósito, em garantia de cumprimento da obrigação de pagamento ao Banco, por parte de tal sociedade, por débitos desta em conta dela própria. III – Resultando de tal escrito que a função da garantia prestada é assegurar o cumprimento da obrigação principal da sociedade, está-se, antes, perante a garantia da fiança. IV – Donde se segue que o depositante não pode, só porque o Banco se pagou de débitos dessa sociedade por depósitos de juros, em outra conta daquele, pedir a restituição da totalidade do valor do depósito” (Acórdão da Relação do Porto de 03/10/1996, R. 1254/95, Col. de Jur., 1996, 4, 213). 111 Assim, “I – O penhor, como direito real de garantia, tem como objecto coisa móvel e coisa certa, não sendo admissível penhor sobre coisa não certa ou indeterminada. II – Não é por isso legal o penhor constituído sobre 70 vacas charolesas, 46 novilhos charoleses e 2 novilhos limousine, em que os animais não foram concreta e singularmente identificados, constituindo apenas um conjunto indeterminado semelhante a uma universalidade, em que não houve entrega dos animais empenhados ao credor pignoratício” (Acórdão da 109
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IV) Contudo, como por regra a coisa objecto do penhor é entregue ao credor pignoratício este pode recorrer, para defesa do seu direito, tanto às acções possessórias [artigo 670º, alínea a), Código Civil] 112 como às acções petitórias (1315º, Código Civil). Tendo em atenção, porém, a razão de ser do desapossamento inerente à constituição do penhor (publicidade), pelo menos a acção de reivindicação não pode ter um alcance superior ao da acção de restituição (artigo 1281º, n.º 2, Código Civil). Ou seja, a protecção da boa fé de terceiro possuidor impedirá a procedência da acção de reivindicação (tal qual como impede se a acção for a de restituição) na medida em que, não tendo o credor a posse da coisa, o referido terceiro não tem maneira de conhecer a existência do penhor. A ocultação é incompatível com a oponibilidade erga omnes. V) Atendendo a que a disponibilidade material sobre a coisa empenhada passa, em princípio, para o credor pignoratício, este adquire poderes para a utilizar [artigo 671º, alínea b), Código Civil] e, normalmente, para a fruir (artigo 672º, Código Civil) 113. Pode ele ainda proceder à disposição da respectiva propriedade procedendo à chamada venda antecipada (portanto, venda não judicial ainda que dependente de autorização do tribunal – artigo 1013º, Código do Processo Civil) na hipótese do artigo 674º do Código Civil. No penhor financeiro, o credor pode ter também o poder de disposição (de exercício não judicial – artigo 9º, n.º 1, Decreto-Lei n.º 105/2004 de 08/05) e pode, inclusivamente, apropriar-se 114 do bem (pacto comissório – artigo 11º, n.º 1, do mesmo diploma 115). Relação de Évora de 10/04/1997, R. 67/94, Bol. do Min. da Just., 466, 607). Excluindo, em princípio, no caso das acções possessórias, o embargo de terceiro dado que o direito de que o credor pignoratício dispõe se destina justamente a ser exercido dentro do processo executivo, mesmo quando este tenha sido desencadeado por outrem. Ver, por exemplo, o Acórdão da Relação do Porto de 26/09/1996, R. 278/96, Col. de Jur., 1996, 4, 199: I – O direito que o penhor confere ao credor que dele beneficia é apenas o de ser pago com a dele resultante preferência legal, nada impedindo que a coisa empenhada seja penhorada e vendida em execução movida por terceiro. II – tal hipótese, a admissão de dedução de embargos de terceiro por parte do credor pignoratício equivaleria, para todos os efeitos, a verdadeira impenhorabilidade que a lei não consente, dos bens empenhados. 113 Esta afirmação supõe, obviamente, que o penhor incide sobre coisa infungível (artigo 207º, Código Civil). Caso contrário (isto é, se o penhor for irregular), o credor pignoratício, tal como o mutuário (artigo 1144º, Código Civil), adquire a propriedade sobre a coisa objecto do mesmo devendo, se a obrigação assegurada for cumprida, restituir outro tanto do mesmo valor. 114 Assim, o credor pignoratício pode executar “a garantia por apropriação do objecto desta, ficando obrigado a restituir o montante correspondente à diferença entre o valor do objecto da garantia e o montante da dívida” (preâmbulo do Decreto-Lei n.º 105/2004 de 08/05). 115 O que tem carácter manifestamente excepcional dado que a proibição de pacto comissório se estende ao penhor (artigos 678º e 694º, Código Civil). Cfr., contudo, para demarcar fronteiras, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07/05/2009, Proc. n.º 3116/06TVLSB.S1: II – A especialidade da figura do penhor de aplicações financeiras está no empenhamento de um direito de crédito sobre um quantitativo monetário que se encontra depositado e em poder do credor pignoratício, depósito esse que vai ser, posteriormente, transformado num determinado produto bancário, nos termos do acordo estabelecido entre o depositante e o depositário. III – Acontecendo o não cumprimento da obrigação pelo 112
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Tenha ou não o poder de utilização, o credor pignoratício deve guardar e administrar a coisa dada em penhor como um proprietário diligente [671º, alínea a), Código Civil]. Estes deveres são legais pelo que, por conseguinte, a respectiva violação origina responsabilidade extracontratual. VI) Há, contudo, casos (muito excepcionais) de penhor em que a sua constituição não depende de desapossamento do respectivo autor 116. É o que se passa, por exemplo, com o penhor bancário (Decreto-Lei n.º 29.833, de 17 de Agosto de 1939; Decreto-Lei n.º 32.032, de 22 de Maio de 1942). Nessas hipóteses, o próprio autor do penhor permanece como detentor da coisa empenhada a título de depositário. O que quer dizer que o credor pignoratício adquire a posse por constituto possessório (artigo 1264º, n.º 1, Código Civil). B: Temas propostos - Penhor de direitos e penhor de coisas - Natureza do acto constitutivo do penhor - Penhor financeiro e pacto comissório - Efeitos do desapossamento involuntário do credor pignoratício - Penhor sem entrega da coisa - Penhor irregular - Penhor de participações sociais - Penhor de direitos intelectuais 3.3.4. Privilégios creditórios A: Considerações I) O privilégio creditório em muito se assemelha à hipoteca legal: em ambos os casos, a garantia real resulta de um facto que, segundo a lei, tem semelhante virtualidade. No entanto, enquanto a hipoteca legal somente com a correspondente inscrição registal se constitui 117 118, o privilégio creditório devedor, o credor pode fazer seu o depósito bancário empenhado, no sentido de se cobrar pelo valor deste, não com base na existência de um pacto comissório, atendendo à sua manifesta nulidade, mas antes pela via da compensação. 116 Prenda sin desplazamiento (psd), na terminologia castelhana. 117 Em obediência ao princípio da especialização, somente com essa inscrição se produz a determinação da coisa sobre a qual a hipoteca incidirá (artigo 50º, Código do Registo Predial). 118 Casos indiscutíveis de registo constitutivo serão apenas os da hipoteca legal e judicial (artigos 704º e segs. e 710º, respectivamente, do Código Civil), pois nestas situações o registo é o único acto jurídico primacialmente dirigido à sua constituição. Ao invés, no caso da hipoteca voluntária (artigos 712º e segs., Código Civil), existe, antes do registo, um negócio jurídico – contrato ou negócio unilateral – que representa o principal elemento constitutivo da referida garantia real, pelo que o registo condicionará apenas a eficácia absoluta desse negócio. Todavia, como não se descortinam grandes diferenças entre o puro registo constitutivo e o chamado registo condicionante de eficácia absoluta, torna-se preferível englobar ambos no registo constitutivo. Na verdade, o registo que condiciona a eficácia do facto registável mesmo Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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estabelece-se com a simples verificação do facto que, segundo a lei, o determina. De acordo com o subsequente quadro, os privilégios creditórios podem ser das seguintes espécies:
II) Apesar de o privilégio creditório ter a publicidade inerente à publicidade de que a própria lei é revestida e, por isso, existir “independentemente de registo” (artigo 733º, Código Civil), a verdade é que a lei apenas enuncia a possibilidade de o privilégio se constituir e não propriamente o facto constitutivo e o momento da sua constituição. Como a regra (característica de todas as garantias) é a da acessoriedade, daí resulta que apenas quando a obrigação assegurada se constituir se constituirá igualmente a garantia real, ou seja, neste caso, o privilégio creditório. Por conseguinte, em rigor, a lei não constitui o privilégio; antes prevê o facto que o origina caso surja o crédito a privilegiar. III) A principal questão que a lei considerou a propósito dos privilégios creditórios foi a da sua graduação: entre si (artigos 745º a 748º, Código Civil) e perante as demais garantias reais (artigos 746º e 749º a 751º, Código Civil). Os privilégios prevalecem em princípio sobre as demais garantias reais se
entre as próprias partes do mesmo (artigo 4º, n.º 2 do Código do Registo Predial), também impede totalmente a eficácia desse facto, ou seja, impede a produção dos efeitos tipicamente associados à sua verificação.
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forem especiais 119 e se incidirem sobre imóveis (artigo 751º, Código Civil) 120. Os privilégios mobiliários ficam submetidos à regra prior tempore se forem especiais (artigo 752º, Código Civil). E, por fim, os privilégios mobiliários gerais só valem, no máximo, contra qualquer direito de outrem ineficaz perante o credor exequente (artigo 749º, Código Civil) ou perante o credor arrestante (artigo 622º, Código Civil) 121. IV) Atendendo ao modo como se constitui, a existência do privilégio pode ser justificadamente desconhecida por terceiro. É verdade que sempre se pode ripostar com o (usual) argumento segundo o qual “a ignorância da lei não aproveita a ninguém”. Porém, a lei aqui não publicita, como se disse, a existência do próprio privilégio, mas apenas a possibilidade dele se constituir. Assim, por exemplo, se um potencial credor hipotecário pretender saber se o prédio sobre o qual está interessado em obter a constituição de uma hipoteca sofre oneração (efectiva e não meramente virtual) com o privilégio enunciado no artigo 743º do Código Civil deve dirigir-se onde? E, mais sério, uma eventual informação que lhe seja dada poderá alguma vez ter carácter fidedigno dado que não é concedida por entidade dotada de fé pública 122? Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/10/2005 (Proc. n.º 2606/2005): “I – O artigo 751º do Código Civil contém um princípio geral insusceptível de aplicação ao privilégio imobiliário geral, por este não incidir sobre bens determinados, pelo que não está envolvido de sequela. II – Assim, os direitos de crédito garantidos por tais privilégios cedem perante direitos de crédito garantidos por hipoteca”. Pelo que: “I – Os créditos relativos a imposto sobre o rendimento das pessoas singulares gozam de privilégios mobiliário e imobiliário gerais. II – Estes créditos, quando em concorrência com créditos garantidos por hipoteca incidente sobre o imóvel penhorado, devem ser graduados a seguir aos créditos hipotecários. III – A alteração introduzida pelo Decreto-Lei nº 38/2003 de 8 de Março, no artigo 751º do Código Civil tem natureza interpretativa” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/03/2007, Proc. n.º 580/2007). 120 O Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 284/2007, de 08/05/2007 (Proc. n.º 891/04) decidiu “não julgar inconstitucional a norma do artigo 751º do Código Civil na interpretação segundo a qual esta norma não abrange o privilégio imobiliário geral concedido aos créditos laborais pelo artigo 12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho”. 121 Os privilégios imobiliários gerais não têm regras gerais de prioridade definidas – estas são estabelecidas caso a caso pela própria lei. O Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 193/2003, de 02/07/2003, Proc. n.º 527/2002) já entendeu, pelo menos, não ser inconstitucional “a norma constante do artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 8 de Maio, interpretada em termos de o privilégio imobiliário geral nela conferido às instituições de segurança social preferir à garantia emergente do registo da penhora sobre determinado imóvel”. Mas “os créditos dos trabalhadores, aos quais é atribuído o privilégio imobiliário geral, não podem ser graduados à frente do crédito garantido por hipoteca, sendo-lhes aplicável o regime do art. 749º do C.Civil. Assim, o crédito garantido por hipoteca tem prioridade no pagamento em relação aos créditos dos trabalhadores, garantidos por privilégio imobiliário geral” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/04/2008, Proc. n.º 08A329). 122 Por isso, o Tribunal Constitucional já decidiu declarar “a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do artigo 2º da Constituição da República, da norma constante, na versão primitiva, do artigo 104º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro, e, hoje, na numeração resultante do Decreto-Lei nº 198/2001, de 2 de Julho, do seu artigo 111º, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à Fazenda Pública prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil” 119
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Aliás, em alguns casos, ao público nem sequer é “acessível o conhecimento da existência do crédito, em virtude de estar protegido pelo segredo fiscal, e do correspondente ónus, devido à inexistência de registo” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 284/2007, Processo n.º 891/04). Por estas razões, o credor comum quantas vezes é surpreendido por privilégios cuja existência não só não conhecia, como nem sequer poderia conhecer a não ser através de indagações mais ou menos vultosas. Razão pela qual seria de ponderar a susceptibilidade de proceder à transformação da generalidade dos privilégios creditórios em hipotecas legais. E não se crê ser admissível, para este efeito, proceder a uma demarcação dentro dos privilégios gerais, entre imobiliários e mobiliários, para afirmar maior legitimidade na concessão de prevalência destes últimos sobre garantia anterior, designadamente sobre penhor, fundada na inexistência de um registo público para as coisas dele susceptíveis. O registo com efeito constitutivo da hipoteca é substituído no penhor, como instrumento publicitário, pela atribuição da disponibilidade exclusiva sobre a coisa dada em garantia ao credor ou a terceiro. Por isso, nesta perspectiva, a esperança de conhecimento que credor hipotecário e credor pignoratício têm é, mutatis mutandis, similar. Em qualquer caso, o privilégio creditório não está sujeito a registo. Ora, quando este deva prevalecer, segundo a lei, sobre hipoteca ou sobre penhor anteriormente constituído há uma semelhante frustração de expectativas do credor hipotecário e pignoratício, respectivamente 123. É que, perante um privilégio creditório, ambas assentam na regra do prior tempore. Quer dizer, por outras palavras, que a principal ofensa ao princípio da segurança jurídica que está em causa quando a lei concede prevalência a um privilégio sobre qualquer garantia real anteriormente constituída é a que deriva: 1º) da sua falta de publicidade 2º) em violação da regra do prior tempore.
(Acórdão n.º 362/2002, de 16/10/2002, Proc. n.º 362/02, Diário da República n.º 239, I-A, págs. 6774 a 6777); e decidiu igualmente declarar “a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República, das normas constantes do artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, e do artigo 2º do Decreto-Lei nº 512/76, de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à segurança social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil” (Acórdão n.º 363/2002, de 16/10/2002, Diário da República n.º 239, I-A, págs. 6777 a 6780). 123 O facto de, por exemplo, existir a possibilidade de obter listas de contribuintes cuja situação tributária não se encontre regularizada (artigo 64º, n.ºs 5 e 6 da Lei Geral Tributária), além de se consubstanciar num instrumento que não está dotado de fé pública, não faz sentido que forme um ónus para quem já tinha o penhor ou a hipoteca previamente constituído. Aliás, justamente, deve presumir-se que o respectivo titular só aceitou tal penhor ou hipoteca por saber inexistir crédito de terceiro com garantia graduada antes da sua.
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B: Temas propostos - Privilégios gerais e direitos reais - Privilégios imobiliários e hipotecas legais - Publicidade e privilégios creditórios - Privilégio creditório e penhora - Privilégios creditórios e princípio da confiança - Garantias reais e privilégios creditórios gerais 3.3.5. Retenção A: Considerações I) O direito de retenção é o direito de certo credor suster a entrega de certa coisa, ou seja, não a restituir licitamente 124, a quem teria o direito de exigir a respectiva restituição ou cedência: - devido a “despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados” (artigo 754º, Código Civil) - ou por o crédito garantido estar relacionado com a coisa retida (artigo 755º, Código Civil). O direito de não restituir inexiste “a favor dos que tenham obtido por meios ilícitos a coisa que devem entregar” ou “a favor dos que tenham realizado de má fé as despesas de que proveio o seu crédito” [artigo 756º, alíneas a) e b), Código Civil]. Assim, I – São 3 os requisitos do direito de retenção: a) detenção ou posse material da coisa e a legitimidade de detenção; b) ser o detentor da coisa credor da pessoa a quem a coisa deve ser restituída; c) existência de uma relação de conexão entre o crédito do detentor e a coisa (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/11/2008, Proc. n.º 2608/2008, Col. de Jur., 2008, III, 150). II) O direito de retenção apenas admite um modo de constituição: a tomada de posse pelo credor (o qual, até exercer o direito de não restituir, é simplesmente um detentor da coisa que depois fica retida). No fundo, o direito de retenção é um penhor que em vez de nascer por via contratual (como tipicamente sucede com este último), se constitui por acto unilateral do credor que esteja em condições de suster a restituição. Do ponto de vista possessório, trata-se de inversão do título da posse por oposição [artigos 1263º, alínea d) e 1265º, Código Civil], ainda que numa modalidade especial ou, mais propriamente, com uma causa particular 125. Nesta medida o direito de retenção funciona como uma causa de exclusão da ilicitude na responsabilidade contratual. 125 Naturalmente este entendimento co-envolve a questão da extensão objectiva do instituto possessório. É indiscutível que, historicamente, a posse foi pensada para a propriedade e, no máximo, para os direitos reais menores de gozo (através da chamada quase-posse, na linguagem de Savigny ou de Jhering – ver, por exemplo, deste último, Sobre o fundamento da protecção possessória, trad. port., Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2007, págs. 130/131 e 142). Não se 124
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III) Tal como os privilégios creditórios, a constituição do direito de retenção não depende de registo 126. Todavia, ao contrário daqueles, a sua constituição beneficia ao menos da publicidade espontânea associada à posse 127 da coisa retida. O que, para terceiros, e tal como no penhor, poderá constituir um indício suficiente da sua existência. Já causa alguma estranheza, porém, que só fundada nessa posse e, portanto, no carácter incerto da publicidade daí derivada, a retenção prevaleça sobre direitos inscritos em registo público como a hipoteca (artigo 759º, n.º 2, Código Civil) 128. IV) Os efeitos de constituição do direito de retenção variam em função do carácter móvel ou imóvel da coisa retida. Assim: - tratando-se de coisas móveis, tais efeitos são mutatis mutandis os mesmos do encontra, porém, qualquer inconveniente no alargamento da “quase-posse” às garantias reais que impliquem a atribuição de um poder de facto sobre a coisa objecto das mesmas, desde que se tenha presente que uma coisa é reconhecer posse e outra é dar-lhe todos ou alguns dos respectivos efeitos. Por exemplo, não obstante atribuírem posse quando seja caso disso [fundamentalmente por permitirem o acesso às acções possessórias – artigos 670º, alínea a), 661º, alínea b) e 1037º, n.º 2, 758º e 759º, n.º 3, Código Civil], as garantias reais não podem ser adquiridas por usucapião na medida em que, pelo disposto no artigo 1287º do Código Civil, esta somente é causa de constituição de direitos reais de gozo. Crê-se que, para este efeito, se deve ter presente, assim, uma distinção do género daquela que se faz entre posse civil e posse interdictal (ver, por exemplo, Menezes Cordeiro, A posse – perspectivas dogmáticas actuais, Almedina, Coimbra, 1997, pág. 86). 126 Acórdão da Relação de Évora de 05/03/1998, R. 1601/97, Bol. do Min. da Just., 475, 796: I – O direito de retenção resulta directamente da lei e não de um negócio jurídico ou de outro acto de conteúdo singular, pelo que não se encontra sujeito a registo, produzindo efeitos em relação às partes e a terceiros independentemente dele. A publicidade encontra-se assegurada pelo próprio texto legal que o admite e pelas situações materiais a que se aplica, pelo que, estando aquela garantida e visando o registo precisamente a publicidade da situação jurídica, não se torna o mesmo necessário, decorrendo, aliás, a sua não inclusão no grupo dos direitos sujeitos a registo. II – Ora, não estando o direito sujeito a registo, não o está também a acção destinada a reconhecê-lo, conforme resulta dos artigos 2º e 3º do Código do Registo Predial. 127 Por isso, o direito de retenção, como poder de facto de recusar abrir mão da coisa enquanto o crédito não for satisfeito, não é incompatível com a penhora que, nessas circunstâncias, não poderá envolver a entrega efectiva a terceiro, nem com a venda judicial (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/01/2003, Proc. n.º 02B4386). 128 Cfr., no entanto, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 594/2003, de 03/12/2003 (Proc. n.º 745/2000 (DR n.º 29, II, de 10/02/2005) que decidiu “a) Não julgar inconstitucional, organicamente, o Decreto-Lei nº 236/80, de 18 de Julho e o Decreto-Lei nº 379/86, de 11 de Novembro, que procederam à alteração do regime do contrato-promessa, da execução específica e do direito de retenção, uma vez que não violam a reserva legislativa da Assembleia da República. b) Não julgar inconstitucional o nº 3 do artigo 410º do Código Civil, interpretado no sentido de não reconhecer legitimidade ao titular de uma hipoteca, com registo anterior à celebração de um contrato-promessa, para invocar a invalidade deste com fundamento na omissão de requisitos formais, na medida em que não viola o princípio constitucional do acesso ao direito e aos tribunais. c) Não julgar inconstitucionais os artigos 442º, nº 2 e 755º, nº 1, al. f), ambos do Código Civil, por não existir qualquer violação quer do princípio da proporcionalidade, explicitado no artigo 18º, nº 2, da Constituição, quer do princípio da confiança e segurança jurídica, decorrente do princípio do Estado de direito democrático consagrado no artigo 2º da Constituição, uma vez que a norma que define em abstracto um novo caso de direito de retenção não pode ser vista, em si mesma, como ofensiva dos direitos de outros credores do devedor”.
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penhor (758º, Código Civil); - tratando-se de coisas imóveis: i) equipara-se o direito de retenção à hipoteca no que toca ao poder de execução (759º, n.º 1, Código Civil); ii) equipara-se o direito de retenção ao penhor no que respeita aos direitos e deveres do credor relativos à coisa retida (759º, n.º 3, Código Civil), dado que ao credor cabe o poder de facto sobre a coisa objecto da garantia [pelo que, por exemplo, o retentor deve, tal como o credor pignoratício, actuar em relação à coisa como um proprietário diligente – artigo 671º, alínea a), Código Civil]. V) Os casos especiais de retenção (artigo 755º, Código Civil), nada tendo a ver com a definição geral constante do artigo anterior, apresentam ao menos um ponto em comum entre si e com aquele: em qualquer caso se concede ao credor um instrumento para forçar, para coagir (licitamente) o devedor ao cumprimento, como é função própria de todas as garantias reais mas que se acentua particularmente no que toca ao direito de retenção 129. Esta razão justifica que se reconheça a possibilidade de constituição do direito de retenção até em casos relativamente aos quais a coerência jurídica a isso se oporia. É o que sucede, por exemplo, quando “tendo havido tradição de fracção de prédio urbano, o promitente-comprador goza do direito da sua retenção, mesmo que o edifício ainda não esteja submetido ao regime de propriedade horizontal” (Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 12/03/1996, Proc. n.º 84.119, DR n.º 133, II, de 08/06/1996). De facto, em rigor, numa hipótese destas, o direito de retenção deveria ter-se por inadmissível em virtude de o seu objecto ser legalmente impossível (artigo 280º, Código Civil). Mas a função de garantia sobrepõe-se, como é natural, à pura lógica formal. B: Temas propostos - Retenção e contrato sinalagmático - Retenção e hipoteca - Retenção e contrato-promessa - Retenção, posse e detenção - Constituição do direito de retenção - O direito de retenção como causa de exclusão da ilicitude na responsabilidade contratual - Retenção e penhor 129
Pelo que “I – O direito de retenção configurado na al. f) do nº 1 do art. 755º do CC pressupõe a existência de um contrato-promessa válido, mas incumprido. Nunca de um contrato nulo. II – Consequentemente, a invocação e subsequente verificação da nulidade de um contrato-promessa por falta de forma afasta a possibilidade de convocação do direito de retenção a favor dos promitentes-compradores” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/05/2007, Proc. n.º 07A1464). No caso particular decidido por este aresto sempre se deve aditar, todavia, o seguinte: tal conclusão é certa, mas no pressuposto de estar em causa nulidade que possa ser invocada por qualquer interessado (dado que, por exemplo, na hipótese-regra antecipada pelo artigo 410º, n.º 3, do Código Civil, o contrato-promessa, sendo nulo, equivale a válido).
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3.3.6. Penhora e arresto A: Considerações I) Em ambos os casos se produz uma apreensão judicial de bens no interesse do/s credor/es. Na penhora, a favor do credor que intentou acção executiva; no arresto, a favor do credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial. No essencial, a distinção faz-se pelo facto de a penhora surgir já dentro da acção executiva, constituindo uma fase desta, ao passo que o arresto consubstancia uma providência cautelar que, como tal, tanto pode surgir antes 130 como durante certa acção 131. De toda a maneira “tendo os bens do executado sido previamente arrestados, a anterioridade da penhora reporta-se à data do arresto” (artigo 822º, n.º 2, Código Civil). Razão pela qual “I – Se o arresto for convertido em penhora, o executado deixa de ter a posse jurídica dos bens desde a data do arresto. II – Interrompida, assim, na data do arresto, a posse do proprietário (executado), não pode o promitente-comprador, que tenha iniciado em data posterior ao arresto actos de posse material, pretender somar à sua a posse do promitente-vendedor (executado), para efeito de deduzir embargos de terceiro à penhora, por as duas posses não serem consecutivas nem homogéneas” (Acórdão da Relação do Porto de 09/6/1997, R. 1335/96). Por isto se pode asseverar que o arresto representa, tipicamente, uma penhora avançada ou antecipada 132. II) A penhora ou o arresto produzem comummente os seguintes efeitos: 1 – em geral, extracção dos poderes de gozo ao executado e transferência de alguns deles para o tribunal (através de depositário judicial 133); Daí que “I – O facto de a dívida estar garantida por fiança não obsta a que seja decretado arresto sobre os bens do devedor directo e imediato (afiançado) uma vez demonstrada a impossibilidade de o credor obter pagamento através do património deste, não relevando, para o efeito, a garantia patrimonial oferecida pelo autor. II – O arresto preventivo pode ser decretado, verificados que estejam os demais condicionalismos legalmente exigíveis, mesmo antes do vencimento da dívida” (Acórdão da Relação de Évora de 12/03/1992, R. 773, Col. de Jur., 1992, 2, 279). 131 Pelo que, enquanto não caducar, não se pode dizer, ao contrário do que resulta do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/06/2006 (R. 1532/2006), que “o arresto não convertido em penhora não confere garantia real ao credor que dele beneficia”. Ao invés, enquanto estiver em vigor, é oponível a terceiros; por isso é que a lei faculta a possibilidade de se proceder ao registo predial dos procedimentos que tenham por fim o seu decretamento [artigo 3º, n.º 1, alínea d), Código do Registo Predial]. Agora, certo é que: “I – As disposições relativas à penhora, quanto à venda de bens, antecipada ou não antecipadamente, não integram o acervo das disposições invocáveis no procedimento cautelar de arresto. II – Não é lícito, pois, neste procedimento – e enquanto o arresto não estiver convertido em penhora – proceder à venda antecipada dos bens arrestados” (Acórdão da Relação de Lisboa de 20/04/1983, R. 21.153). 132 Acórdão da Relação do Porto de 28/10/2008, Proc. n.º 0825080: “sendo o arresto uma penhora antecipada, por força do disposto nos artºs 622º, nº2, do C.C. (ao arresto são extensíveis, na parte aplicável, os demais efeitos da penhora) e 842º, n2 1, do C.P.C., ele abrange não só os prédios como todas as suas partes integrantes e os seus frutos, naturais ou civis, desde que não sejam expressamente excluídos e nenhum privilégio exista sobre eles”. 133 Artigo 840º, n.º 1, Código do Processo Civil: “sem prejuízo do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo anterior, 130
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2 – inoponibilidade ao credor (exequente ou arrestante) de actos de disposição ou oneração eventualmente praticados pelo executado após a constituição da penhora ou arresto – o que significa que com a referida constituição se produz a oneração do direito penhorado ou arrestado 134; 3 – consequente estabelecimento de uma prevalência a favor do exequente ou do arrestante perante credor que não disponha de direito anteriormente constituído. III) A penhora pode ter ainda os seguintes efeitos ulteriores (os quais, não sendo directamente imputáveis à penhora mas antes à venda executiva, pressupõem-na): 1º – a transferência dos direitos do executado para o adquirente na venda executiva (mas, evidententemente, obedecendo à regra nemo plus juris, uma vez que a intervenção do tribunal em substituição do executado não sana eventuais vícios do seu direito 135); 2º – a “transferência” dos direitos de garantia anteriores ou posteriores à penhora para o produto daquela venda 136; o depositário deve tomar posse efectiva do imóvel”. Acórdão da Relação de Coimbra de 24/05/1994, P. 160/90, Bol. do Min. da Just., 437, 600: A penhora gera a indisponibilidade dos bens penhorados relativamente ao processo executivo – e, assim, os actos praticados pelo executado são válidos em relação a terceiros mas ineficazes em relação ao exequente e demais credores intervenientes na execução. 135 Assim, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/02/1996, Proc. n.º 86.942, Col. de Jur., 1996, 1, 88: I – A aquisição por arrematação em hasta pública de imóvel penhorado na execução correspondente não prevalece sobre aquisição por escritura pública anterior à penhora referida ainda que registada após o registo desta mesma penhora. 136 O fenómeno constitui, verdadeiramente, um caso de sub-rogação real, tal como, em hipótese análoga, se descreve no Acórdão da Relação do Porto de 25/01/1999, R. 9851263, Bol. do Min. da Just., 483, 275: I – No caso de perecimento total da coisa hipotecada, o credor hipotecário mantém uma preferência em relação ao crédito à indemnização devida pelo terceiro responsável pela perda da coisa, equivalendo essa transferência da garantia a uma sub-rogação real. II – Se o perecimento da coisa não resultar de facto ilícito de terceiro, mas de causa fortuita, e houver seguro, o objecto da hipoteca considerase substituído pela indemnização devida pela segurada, tendo o credor hipotecário direito não só à quantia mutuada como aos juros contratuais em dívida. A sub-rogação real supõe, antes de mais, que a coisa sobre a qual o direito real originalmente incidia tenha desaparecido ou tenha deixado de ser o que era. Facto que, só por si, pela regra, deveria determinar a extinção desse direito, ou, às vezes, a sua modificação. Poderão existir, no entanto, razões que justifiquem razoavelmente a respectiva “manutenção”, sempre que, bem entendido, surja um objecto que se possa considerar substituto daquele que se perdeu ou deixou de ser o que era e para o qual, pelo menos figurativamente, seja concebível afirmar que tal direito se “transfere”. A finalidade da sub-rogação real reside na manutenção, na conservação, da integridade económica de uma situação jurídica de natureza patrimonial. Uma vez que ela só pode verificar-se estando antecipadamente prevista a possibilidade da sua ocorrência, poderia daí retirar-se que se trataria de um fenómeno arbitrariamente determinado pelo acto normativo que a prevê. Todavia, ao menos para os casos de sub-rogação legal, a análise das suas diversas hipóteses permite visualizar uma certa linha de orientação: a ideia, justamente, é a de que o bem substituto surja como um “produto” da coisa original, ou, talvez um pouco mais precisamente, como proveniente desta última (José González, Direitos Reais e Direito Registal 134
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3º – a “transferência” dos direitos de qualquer outra natureza posteriores à penhora para o produto da mesma venda. IV) A penhora e o arresto foram em tempos actos de natureza estritamente judicial pois o Tribunal controlava exaustivamente a realização dos mesmos. Hoje, com o aparecimento da figura do agente de execução, grande parte do procedimento fica a cargo de uma entidade que não é órgão de soberania. Por analogia, torna-se legítimo, por isso, levantar a questão de saber se também e até que ponto a execução de decisões de tribunais arbitrais pode ser empreendida por eles próprios, nisso compreendendo a consequente penhora, quando tal seja o caso. B: Temas propostos - Significado da prevalência do exequente ou arrestante - Significado da transferência dos direitos do exequente ou de terceiro para o produto da venda executiva - Poderes do depositário judicial - Penhora ou arresto e arbitragem institucionalizada - Natureza jurídica da penhora e do arresto - A transcendência da intervenção do agente de execução na realização da penhora ou do arresto 3.3.7. Reserva de propriedade A: Considerações I) Nos termos do artigo 409º, n.º 1 do Código Civil, a reserva de propriedade é a cláusula contratual mediante a qual se obtém a garantia de cumprimento de uma obrigação (maxime a de pagamento do preço numa compra e venda, o que constitui o âmbito paradigmático de aplicação da figura) “reservando-se” a titularidade de certo direito (tipicamente, o de propriedade) até que aquela seja cumprida. II) As objecções que historicamente 137 se levantaram à admissibilidade do pactum reservati dominii ligavam-se, grosso modo, à dificuldade em conceber um elemento essencial da compra e venda – o preço – como sendo, simultaneamente, um elemento acidental seu 138. A sua expressa consagração legal afastou, porém, Imobiliário, Quid Juris, Lisboa, 2009, págs. 450 a 479). Ainda que, no essencial, a figura tenha sido desenhada pelos juristas romanos. Cum venderem fundum, convenit, ut, donec pecunia omnis persolveretur, certa mercede emptor fundum conductum haberet: an soluta pecunia merces accepta fieri debeat? respondit: bona fides exigit, ut quod convenit fiat: sed non amplius praestat is venditori, quam pro portione eius temporis, quo pecunia numerata non esset (Dig. 19.2.21, Iavolenus 11 epist.). 138 Ver Galvão Telles, Contratos Civis (projecto completo de um título do futuro código civil português e respectiva exposição de motivos), Boletim do Ministério da Justiça n.º 83, pág. 138. Pires de Lima – Antunes Varela no Código Civil Anotado (vol. II, Coimbra, 1986, pág. 52), ainda consideravam que os 137
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tais objecções. III) Apesar de, na sua formulação, a hipótese se caracterizar muito linearmente, a construção subjacente não é fácil. De facto, podem identificar-se, pelo menos, as seguintes concepções acerca da natureza e, portanto, do modo de funcionamento 139 do pactum reservati dominii 140: 1. como um termo ou condição suspensiva, ainda que com algumas especialidades; 2. como uma garantia real autónoma; 3. como uma de espécie condição resolutiva (para o adquirente); 4. como um caso de propriedade dividida; 5. como uma hipótese de alienação fiduciária. IV) A primeira explicação é a dominante na doutrina e na jurisprudência141 portuguesa. Chegando mesmo esta última a recusar explicitamente a concepção da reserva de propriedade como um direito real de garantia 142. “contratos de alienação com cláusula de reserva de domínio ... não podem ser considerados como realizados sob condição suspensiva visto o evento condicionante da sua plena eficácia recair sobre um elemento essencial do contrato (pagamento do preço)”. 139 Daqui em diante considera-se apenas a hipótese típica, isto é, aquela em que o reservatário/ alienante é, simultaneamente, credor. Nada impede, porém, que o credor seja um terceiro. Ver, por exemplo, o Acórdão da Relação de Lisboa de 11/03/2003, R. 1118/03, Col. de Jur., 2003, II, 74: I – Não é necessário que se encontrem reunidos na mesma esfera jurídica o direito de crédito e a reserva de propriedade. II – A reserva de propriedade pode legalmente ser constituída para garantir um crédito de terceiro. III – É pois aceitável que num contrato de crédito ao consumo na modalidade mútuo, para financiamento da compra dum veículo, se estabeleça uma cláusula de reserva de propriedade desse veículo a favor do seu vendedor e proprietário ainda que este não intervenha nesse contrato. 140 Carrasco Perera – Cordero Lobato – Marín López, Tratado de los Derechos de Garantía, págs. 971 a 973. 141 Ver, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/02/1995, Proc. n.º 86.350: I – Nos termos do disposto no artigo 274º, nº 1, do Código Civil, na pendência da venda com reserva de propriedade o vendedor pode dispor do direito de propriedade da coisa vendida (nomeadamente dando-a em hipoteca), mas a eficácia desses actos de disposição fica dependente, condicionada à ineficácia do primeiro contrato, o de compra e venda (à sua resolução). II – Desta sorte, o evento futuro que integra a cláusula de reserva de propriedade funciona, a um tempo, como condição suspensiva da transmissão do direito de propriedade (condição suspensiva parcial dos efeitos da compra e venda) e como condição resolutiva do acto de disposição ou oneração feito pelo vendedor «medio tempore». III – Ocorrido esse evento futuro, opera-se a transmissão da propriedade da coisa do vendedor para o comprador como efeito do contrato, sem necessidade de outra conduta das partes [artigos 879º, alínea a), e 408º, nº 1, do Código Civil], a qual, por outro lado, retroage a data da conclusão do contrato de compra e venda (artigo 276º do Código Civil). IV – Em relação a terceiros (v. g. credor hipotecário) os efeitos da compra e venda só se produzem depois da data do respectivo registo, sendo que o registo convertido em definitivo conserva a prioridade que tinha como provisório, conforme o disposto nos artigos 2º, nº 1, alínea a), 5º, nº 1, e 6º, nº 3, do Código do Registo Predial. V – Daí que, adquirida a prioridade do registo da compra e venda com reserva de propriedade, do mesmo passo que a ocorrência do referido evento futuro (que condicionara parcialmente a compra e venda) opera a ineficácia dos actos de disposição ou oneração da coisa objecto do contrato, praticados pelo vendedor «medio tempore», também determina a caducidade da respectiva inscrição no registo, nos termos do primeiro segmento do artigo 11º, nº 1, do Código do Registo Predial. 142 Ver, por exemplo, o Acórdão da Relação de Lisboa de 23/09/2004, R. 1828/2004: I – A penhora de veículo automóvel objecto do contrato de compra e venda a prestações com reserva de propriedade, uma Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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Estabelecida a reserva de propriedade num contrato de compra e venda, por exemplo para garantia de pagamento do preço, a titularidade do direito de propriedade manter-se-á, diz-se, no alienante (vendedor) até que o adquirente (comprador) cumpra a obrigação a que está adstrito. O pagamento do preço, no exemplo, funciona assim como facto futuro de verificação incerta. E a conclusão vai pois neste sentido: até que tal facto ocorra, o efeito translativo da compra e venda [artigo 879º, alínea a), Código Civil] não sucede. O mesmo se diga, mutatis mutandis e ao menos, para os demais actos translativos ou constitutivos de direitos sobre coisas corpóreas. O direito objecto de um acto desta natureza mantém-se, por conseguinte 143, na titularidade do alienante até que o evento condicionante se produza 144. V) Resta saber se existe ou não, de imediato (salvo cláusula em sentido contrário), a obrigação de proceder à entrega da coisa [no caso da compra e venda, nos termos do artigo 879º, alínea b), do Código Civil]. Por uma razão de lógica puramente formal dir-se-ia que sim, uma vez que somente se “reservou” a propriedade, ou seja, a respectiva titularidade. A realização da entrega da coisa surge já na vertente relativa à cedência da posse e não no aspecto atinente à titularidade de direitos. Mas, particularmente no que toca às coisas móveis, se a entrega for realizada imediatamente após a celebração do contrato pode levantar-se um problema de efectividade, de consistência, na satisfação do seu crédito para o credor-alienante: na verdade, a garantia de cumprimento que obtém pela inserção da cláusula de reserva de propriedade pode esfumar-se facilmente 145. Por isso, embora o credor-alienante tenha, a maior parte das vezes, interesse prático em proceder à entrega imediata, julga-se que a tal não deve estar juridicamente obrigado, a menos que o contrário tenha sido convencionado. Fora desta última hipótese, a entrega só poderia constituir num acto de mera vez que o adquirente é ainda titular do direito de propriedade mas tão só duma expectativa de aquisição, não é juridicamente admissível. II – Penhorável será, apenas, a dita expectativa de aquisição. III – A não ser que o titular do direito de propriedade (o vendedor) prescinda da reserva de propriedade e proceda, por sua iniciativa, ao cancelamento do registo respectivo. IV – É que a reserva de propriedade não configura um direito real de garantia, antes, quando concomitante com a venda da coisa consubstancia uma alienação sob condição suspensiva, por dependente de um evento futuro, o cumprimento total das obrigações por parte do comprador. 143 Pelo que, também por consequência, “a cláusula de reserva de propriedade convencionada em contrato de fornecimento e instalação de elevadores em prédios urbanos torna-se ineficaz logo que se concretiza a respectiva instalação” (Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 31/01/1996, Proc. n.º 87.495, DR n.º 132, II, de 07/06/1996). 144 O que faz com que não cometa “o crime de furto aquele que, em virtude de o comprador ter deixado de pagar parte do preço, se apodera do veículo automóvel que lhe vendera com reserva de propriedade” (Acórdão da Relação do Porto de 22/11/2000, R. 934/2000)! 145 Aliás, veja-se que mesmo no caso da hipoteca (em que a coisa objecto da garantia, como já se disse, fica em poder do respectivo autor e, em geral, não é deslocável) é possível convencionar que a obrigação se vença caso o bem hipotecado seja alienado ou onerado (artigo 695º, in fine, Código Civil).
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tolerância [artigo 1253º, alínea b), Código Civil]146. VI) No Código Civil nada se diz, mas ao menos uma coisa parece certa: se a coisa tiver sido efectivamente entregue ao comprador, a sua restituição somente se pode obter nos termos do artigo 934º – ou seja, mediante a resolução do contrato de compra e venda verificados os pressupostos ali enunciados. O que já significa, de todo o modo, que a sua entrega não pode ser perspectivada como um acto de pura e “mera tolerância”. Por comparação, na Ley 483 da Compilação Foral de Navarra estabelece-se que “mientras tanto” (isto é, enquanto se está à espera da verificação do evento condicionante) “corresponde al comprador la posesión y el disfrute de la cosa vendida … asi como estarán a su cargo el riesgo y todos los gastos inherentes a àquella”. Esta não constitui, no entanto, a forma clássica de construção da reserva de propriedade. Aliás, foi justamente para permitir ao comprador sob reserva de propriedade o acesso imediato ao poder de facto sobre a coisa que se “inventou” o mecanismo jurídico da locação-venda (artigo 936º, n.º 2, Código Civil) 147. Quer dizer que a menos que o vendedor se tenha obrigado a realizar a entrega antes da verificação do evento suspensivo, o comprador não tem direito ao domínio de facto sobre a coisa até tal momento. VII) Esta concepção sobre a reserva de propriedade apresenta alguns pontos criticáveis. Por um lado e antes de mais, o facto de não levar em consideração o essencial: a função que a reserva de propriedade desempenha. Esta serve para garantir o cumprimento de certas obrigações a cargo do reservatário/adquirente. Pelo que a manutenção da titularidade do direito reservado no reservatário/alienante tem carácter marcadamente formal. Materialmente, o titular de tal direito (maxime o de propriedade) convinha que fosse desde logo o reservatário/adquirente: - por ser ele quem, antes de mais, tem interesse na utilização da coisa; - por, para o reservatário/alienante, o destino da coisa e a preservação do seu valor apenas terem significado para protecção da integridade da sua garantia; - e por, acima de tudo, o amparo dos interesses deste último não demandar uma tutela tão débil para aquele. Além de que a solução que aqui se critica produz o resultado, quase absurdo, que se descreve, por exemplo, no Acórdão da Relação de Lisboa de 02/06/1999 Cfr. o Acórdão da Relação de Évora de 23/04/1992, R. 45, Col. de Jur., 1992, 2, 291: No contrato de compra e venda com reserva de propriedade o pagamento do preço é devido independentemente da entrega da coisa, objecto do contrato. 147 E isto porque (dizia Galvão Telles, Arrendamento, Lisboa, 1945/46, págs. 45 e seguintes) a protecção de que gozava o locatário/comprador seria mais forte do que aquela que era conferida ao reservatário/comprador. Justamente por este último não ter qualquer direito ao uso da coisa, e, portanto, por, se esta lhe fosse entregue, o ser a título de mera tolerância do vendedor [actualmente, artigo 1253º, alínea b), do Código Civil]. A sua situação jurídica consubstanciaria, assim, uma mera expectativa jurídica real. Diversamente, já o mesmo não sucederia na locação/venda, pois o locatário/comprador adquiriria desde logo o direito ao uso da coisa por força da componente locativa do contrato. 146
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(R. 3295/99) e que sucede recorrentemente: “I – Os direitos reais que caducam com a venda em execução, nos termos do artigo 824º do Código Civil, são apenas os direitos reais de garantia e, ainda, os demais direitos reais que não tenham registo anterior ao da penhora, arresto ou garantia. II – Estando registada a reserva de propriedade de veículo penhorado, reserva essa a favor da exequente, não pode prosseguir a execução para venda, sem que o exequente cancele a reserva e comprove o mesmo cancelamento”. Corolário que, contudo, foi já explicitamente admitido e consagrado pelo Supremo Tribunal de Justiça através do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2008 (DR n.º 222, I, de 14/10/2008) segundo o qual “a acção executiva na qual se penhorou um veículo automóvel, sobre o qual incide registo de reserva de propriedade a favor do exequente, não pode prosseguir para as fases de concurso de credores e da venda, sem que este promova e comprove a inscrição, no registo automóvel, da extinção da referida reserva”. VIII) A segunda concepção possível – recorde-se, a atribuição ao reservatário/alienante de uma garantia real autónoma fruto da estipulação de reserva de propriedade – implica a concessão imediata ao reservatário/ adquirente da propriedade da coisa logo após a celebração do contrato em cujo conteúdo aquela se integra. É praticamente o inverso da concepção anterior. E trata-se, no fundo, daquilo que ficou conhecido na História do Direito como o pactum reservatæ hypothecæ 148. A admitir-se esta concepção daí decorre que o reservatário/alienante fica numa situação jurídica fortemente análoga à do credor hipotecário: não tem a posse da coisa 149 mas sujeita o reservatário/adquirente ao seu ius distrahendi para o caso deste incumprir a obrigação assegurada pelo estabelecimento da reserva de propriedade. Justamente daqui procedem as duas principais dificuldades que esta construção apresenta (embora, saliente-se, ambas sejam de direito positivo e não de concepção): – inexistência de um regime jurídico próprio, pois é necessário ir buscar talvez a analogia com a hipoteca (ao invés do que sucede na construção anterior, uma vez que aí se aplica directamente o regime do negócio condicional – artigos 270º e seguintes do Código Civil); – inexistência do ónus intensificado de inscrever no registo predial o estabelecimento da reserva de propriedade uma vez que, ao contrário do que sucede com a hipoteca, o efeito do registo é aqui o efeito-regra, ou seja o Está em causa, mais genericamente, a chamada constituição do direito real menor per deductionem (hipótese que ainda hoje se encontra prevista no Código Civil a propósito do usufruto – artigo 1469º). 149 É claro que não é impossível sustentar o contrário, isto é, que o reservatário/alienante fica com a posse da coisa a menos que consinta na sua cedência ao reservatário/adquirente. Nesta hipótese ficaria então equiparado ao credor pignoratício. Mas aí, a vantagem prática desta construção perder-se-ia, pois o que se pretende é compatibilizar a atribuição do gozo imediato da coisa ao segundo com o estabelecimento de uma garantia de cumprimento a favor do primeiro. 148
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consolidativo (e não o constitutivo, como se verifica em relação àquela outra – artigo 687º, Código Civil). IX) A perspectivação da reserva de propriedade como uma cláusula resolutiva 150 liga-se intimamente, no fundo, à construção anterior: se o reservatário/ adquirente se torna titular da propriedade e se a favor do reservatário/alienante se constitui uma garantia real, deve afirmar-se necessariamente, todavia, que a titularidade do primeiro não pode ter carácter peremptório. Ao invés, é titular precário até que a obrigação garantida se cumpra, caso em que se torna titular consolidado, ou até que o não cumprimento definitivo desta dê origem (eventualmente) à resolução do facto que é fonte da mesma (artigo 801º, n.º 2, Código Civil). Nesta última hipótese, o direito de propriedade há-de regressar à titularidade do reservatário/alienante e, em princípio, com força retroactiva (artigo 276º, Código Civil). Considerada isoladamente, esta construção apenas autoriza o reconhecimento ao reservatário/alienante de uma expectativa jurídica de (re)aquisição que é aquilo de que precisamente é titular qualquer alienante sob condição resolutiva. Assim esfuma-se, no entanto, a garantia que através da estipulação da reserva de propriedade se pretende instituir a favor do reservatário/alienante. E acresce, no fim de contas, que para os negócios de alienação sujeitos a condição tudo não passa, em geral, de uma questão de perspectiva: a condição que seja suspensiva para o adquirente actua resolutivamente para o alienante; a condição que seja resolutiva para o adquirente funciona suspensivamente para o alienante. O que significa uma coisa, aplicando o que fica dito ao caso concreto: a construção da reserva de propriedade como condição resolutiva ou como condição suspensiva não implica a afirmação de perspectivas contraditórias mas antes complementares. X) A concepção da reserva de propriedade como uma hipótese de propriedade dividida implica o seguinte: que entre reservatário/alienante e reservatário/adquirente o direito de propriedade se fraccione de tal modo que nenhum se possa considerar proprietário pleno, mas que também nenhum possa ser tido como titular de um direito real menor perante o outro 151. É assim legítimo dizer-se, acomodando ao caso, que o reservatário/alienante mantém a propriedade para efeitos de garantia de cumprimento da obrigação assegurada Nesta versão construtiva integra-se decerto a venda a retro (artigos 927º e segs., Código Civil), quando esta desempenhe uma função de garantia (o que não é uma necessidade, embora seja seguramente a hipótese característica). Esta modalidade de venda tem como cunho distintivo o facto de a condição resolutiva a que fica sujeita ter carácter potestativo e arbitrário – a pura vontade do vendedor em resolver – e de esta dever ser manifestada dentro de certo prazo (artigo 929º, Código Civil) sob pena de a cláusula condicional se tornar ineficaz. 151 Na fórmula de Wolff – Raiser, Sachenrecht, tomo III, vol. I, pág. 613, que é aquela que se adopta no texto, há propriedade dividida quando, “entre dois sujeitos”, os poderes contidos no direito de propriedade se desagregam “de modo a que cada um deles tenha uma parte das faculdades e pretensões contidas na propriedade, sem que por isso um deles apareça como «proprietário» e o outro como «titular de um direito limitado sobre coisa alheia»”. 150
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pela reservatio e o reservatário/adquirente obtém a propriedade para todos os demais efeitos (ou seja, grosso modo, para os efeitos descritos no disposto no artigo 1305º do Código Civil). Acontece que asseverar a existência de uma propriedade dividida entre reservatário/alienante e reservatário/adquirente não é suficiente para explicar a situação de ambos. Não pode deixar de se acrescentar que a situação deste último é precária por estar sujeita a resolução caso a obrigação assegurada pela reservatio seja incumprida. O que apela, de novo, para a perspectivação da reserva de propriedade como uma condição suspensiva. Além disso, e mais importante, a propriedade dividida é um conceito que apenas quadra verdadeiramente ao direito de propriedade enquanto direito de gozo: ou seja, quando o que está em causa é a divisão do ius utendi fruendi et abutendi entre diversos titulares (os quais, por isso, se tornam todos proprietários). O ius distrahendi, ao invés, é um extra que obviamente não faz parte do gozo e que concorre com o poder de disposição concedido a cada proprietário. Ora, a verdade é que enquanto a livre disponibilidade dos direitos patrimoniais (artigo 62º, ConstituiçãoR.P) constitui uma característica natural mas não necessária da propriedade, o ius distrahendi compõe a própria essência da garantia real. Razão pela qual se afigura impossível fundar este último naquele direito. XI) Uma outra hipótese utilizável para enquadrar e construir a reserva de propriedade consiste em configurá-la como uma espécie de fidúcia em garantia (fiducia cum creditore). Isso já conduz, contudo, à próxima modalidade de garantia real a considerar, a qual será, por isso, objecto de tratamento autónomo. B: Temas propostos - Funções da reserva de propriedade - Reserva de propriedade e hipoteca - Reserva de propriedade e registo predial - Reserva de propriedade e garantia fiduciária - Reserva de propriedade e penhora - Reserva de propriedade e posse - Reserva de propriedade e locação-venda - Reserva de propriedade e leasing - Reserva de propriedade e venda a retro - O pactum reservatæ hypothecæ 3.3.8. Alienação fiduciária em garantia A: Considerações: I) Sem que se trate de institutos semelhantes, pode igualmente através da inserção de cláusulas de certo tipo em contratos estruturalmente translativos obter-se um efeito que funcionalmente se assemelha ao do pactum reservati dominii: garantir 356
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o cumprimento de uma obrigação. É o que se passa designadamente com a chamada alienação fiduciária em garantia. “Por la fiducia de garantía se transmite al acreedor la propiedad de una cosa o la titularidad de un derecho mediante una forma eficaz frente a terceros. Cumplida la obligación garantizada, el transmitente podrá exigir del fiduciario la retransmisión de la propiedad o del derecho cedido; el fiduciario, en su caso, deberá restituir y responder com arreglo a lo establecido para el acreedor pignoratício (…). No obstante, si así se hubiere pactado, podrá el acreedor, en caso de mora del deudor, adquirir irrevocablemente la propiedad de la cosa o la titularidad del derecho, y quedará extinguida la obligación garantizada” (Ley 466 da Compilação Foral de Navarra). III) No dizer do Código Civil Francês, “la fiducie est l’opération par laquelle un ou plusieurs constituants transfèrent des biens, des droits ou des sûretés, ou un ensemble de biens, de droits ou de sûretés, présents ou futurs, à un ou plusieurs fiduciaires qui, les tenant séparés de leur patrimoine propre, agissent dans un but déterminé au profit d’un ou plusieurs bénéficiaires” (artigo 2011). O que significa que, no quadro desta operação, os elementos do activo e do passivo transferidos formam um património de afectação, um património autónomo. A especial destinação a que os bens ficam então submetidos determina que não é a qualquer pessoa que pode ser atribuída a categoria de fiduciante nem de fiduciário (artigos 2014 e 2015) 152. No que toca à relação entre o fiduciário e terceiros estabelece-se (artigo 2023) que: “dans ses rapports avec les tiers, le fiduciaire est réputé disposer des pouvoirs les plus étendus sur le patrimoine fiduciaire, à moins qu’il ne soit démontré que les tiers avaient connaissance de la limitation de ses pouvoirs”. O contrato de constituição “prend fin de plein droit si le contrat le prévoit ou, à défaut, par une décision de justice, si, en l’absence de stipulations prévoyant les conditions dans lesquelles le contrat se poursuit, la totalité des bénéficiaires renonce à la fiducie” (artigo 2029) e “lorsque le contrat de fiducie prend fin en l’absence de bénéficiaire, les droits, biens ou sûretés présents dans le patrimoine fiduciaire font de plein droit retour au constituant” (artigo 2030). Da descrição deste regime pode concluir-se que está aqui em causa não exactamente a fidúcia tal qual ela é concebida na tradição do Direito Romano, mas antes uma figura próxima (ou recortada dentro) do trust de raiz anglo-saxónica. “In common law legal systems, a trust is an arrangement whereby property (including real, tangible and intangible) is managed by one person (or persons, or organizations) for the benefit of another. A trust is created by a settlor, who entrusts Artigo 2014: “Seules peuvent être constituants les personnes morales soumises de plein droit ou sur option à l’impôt sur les sociétés. Les droits du constituant au titre de la fiducie ne sont ni transmissibles à titre gratuit, ni cessibles à titre onéreux à des personnes autres que des personnes morales soumises à l’impôt sur les sociétés”. Artigo 2015: “Seuls peuvent avoir la qualité de fiduciaires les établissements de crédit mentionnés à l’article L. 511-1 du code monétaire et financier, les institutions et services énumérés à l’article L. 518-1 du même code, les entreprises d’investissement mentionnées à l’article L. 531-4 du même code ainsi que les entreprises d’assurance régies par l’article L. 310-1 du code des assurances”. 152
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some or all of his or her property to people of his choice (the trustees). The trustees hold legal title to the trust property (or trust corpus), but they are obliged to hold the property for the benefit of one or more individuals or organizations (the beneficiary, a.k.a. cestui que use or cestui que trust), usually specified by the settlor, who hold equitable title. The trustees owe a fiduciary duty to the beneficiaries, who are the “beneficial” owners of the trust property” 153. De todo o modo, para o que agora importa, a figura do trust afigura-se inutilizável para enquadrar a alienação fiduciária em garantia, não só por razões construtivas, como também, sobretudo, por considerações de ordem funcional. Em primeiro lugar, por, em termos de titularidade formal, a constituição do trust não configurar uma alienação. Apesar de nos Direitos da Common Law estes problemas não se colocarem de forma tão marcada como nos Direitos da Civil Law, ao que parece o trust não envolve, de facto, transmissão de direitos sobre o seu corpus (os quais permanecerão, por isso, na titularidade do settlor). Em segundo lugar, em virtude de muito simplesmente a sua finalidade não consistir na concessão de uma garantia de cumprimento a um credor 154. IV) Mesmo sem considerar a (incerta) similitude com o trust, a construção da figura levanta grandes embaraços não tanto em virtude da sua admissibilidade, pois esta funda-se sem dificuldade no princípio da autonomia da vontade, mas antes por causa da situação em que ficam quer o fiduciante quer terceiros, na eventualidade de o fiduciário ser infiel 155. O caso típico de alienação fiduciária em garantia (ou seja, de fiducia cum creditore) é representado pela venda em garantia: o devedor vende um bem seu ao credor mas este não paga efectivamente porque o preço convencionado corresponde ao montante do seu crédito 156. III) Para fundamentar e explicar o fenómeno várias concepções têm sido avançadas 157: a) teoria do efeito duplo (pela qual se consideram celebrados dois negócios: primeiro, o de transmissão da propriedade eficaz erga omnes; segundo, o obrigacional inter partes); 153
Roy Goode, Commercial Law, 2ª edição, Penguin Books.
Aliás, atendendo à função, o trust tão-pouco mantém semelhança com o outro caso típico de negócio fiduciário reconhecido já desde o Direito romano: a fiducia cum amico. 155 Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, págs. 285 a 291. 156 É indispensável, todavia, que do acto translativo empregado fiduciariamente conste o pacto fiduciário, sob pena de aquele produzir os seus efeitos típicos normais: “3. O negócio fiduciário, atípico, é aquele pelo qual as partes, mediante a inserção de uma cláusula obrigacional - pactum fiduciae adequam o conteúdo de um negócio típico à consecução de uma finalidade diversa, por exemplo a de garantia. 4. Não constando da escritura do contrato de compra e venda do prédio alguma declaração fiduciária, não pode o referido contrato ser considerado como negócio fiduciário de garantia, nem releva a prova testemunhal produzida sobre o pactum fiducia.” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/05/2006, Proc. n.º 06B1501). 157 Carrasco Perera – Cordero Lobato – Marín López, Tratado de los Derechos de Garantía, págs. 1059 a 1061. 154
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b) teoria da propriedade formal, na titularidade do fiduciário, e propriedade material, na titularidade do fiduciante (justificando-se aquela, essencialmente, para protecção de terceiros de boa fé); c) teoria da titularidade fiduciária (ou, talvez melhor, da titularidade aparente) do credor (pelo que há um negócio simulado – o de compra e venda – e um dissimulado – o de constituição da garantia) 158; d) teoria do negócio atípico (a venda fiduciária tem função atípica e está sujeita à condição resolutiva da extinção do crédito); e) teoria do negócio indirecto 159 (que muito se aproxima da anterior, pela qual se sustenta que o negócio fiduciário decorre da inserção de cláusulas num negócio legalmente típico as quais modificam a função característica). IV) O Decreto-Lei n.º 105/2004 de 08/05 procedeu à consagração legal entre nós, juntamente com uma nova modalidade de penhor já atrás referenciada – o penhor financeiro – da alienação fiduciária em garantia, embora para um destino específico: o dos contratos de garantia financeira. Assim, de acordo com o seu artigo 2º, n.º 2, “são modalidades de contratos de garantia financeira, designadamente, a alienação fiduciária em garantia e o penhor financeiro, que se distinguem consoante tenham, ou não, por efeito a transmissão da propriedade com função de garantia” 160. Assim, “a possibilidade de as partes convencionarem a transmissão da propriedade a título de garantia resulta de expressa imposição da directiva agora transposta e constitui um dos aspectos mais inovadores do regime aprovado. Com a consagração de uma nova forma de transmissão de propriedade, ainda que a título de garantia, é alargado o numerus clausus pressuposto pelo artigo 1306º do Código Civil, o que permitirá o reconhecimento da validade das alienações fiduciárias em garantia e o fim da insegurança jurídica que resultava da necessária requalificação desses acordos como meros contratos de penhor” (preâmbulo do Decreto-lei n.º 105/2004 de 08/05). O referido diploma legal deu execução à Directiva nº 2002/47/CE (do No entanto: “I – Configura negócio fiduciário, com escopo de mandato, a doação de bens pelo devedor a outrem para que este, vendendo-os, pague responsabilidades assumidas por aquele. II – Tal negócio é nulo por simulação relativa, já que não corresponde à real vontade das partes a doação ostensiva. III – Essa simulação não pode ser oposta pelos simuladores ao credor do doador” (Acórdão da Relação de Coimbra de 04/06/1991, R. 43 990). 159 “I – O contrato fiduciário é um negócio atípico, pelo qual as partes adequam, mediante uma cláusula obrigacional – pactum fiduciae –, o conteúdo de um negócio atípico a uma finalidade diferente da correspondente à causa – função do negócio instrumental por eles seleccionado. II – Trata-se, assim, de um contrato indirecto, que pode assumir configurações diversas consoante o fim tido em vista pelos contraentes” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/03/2006, R. 4191/2005). 160 “O presente diploma é aplicável às garantias financeiras que tenham por objecto: a) «Numerário», entendido como o saldo disponível de uma conta bancária, denominada em qualquer moeda, ou créditos similares que confiram direito à restituição de dinheiro, tais como depósitos no mercado monetário; b) «Instrumentos financeiros», entendidos como valores mobiliários, instrumentos do mercado monetário e créditos ou direitos relativos a quaisquer dos instrumentos financeiros referidos” (artigo 5º, Decreto-Lei n.º 105/2004). E somente podem ser sujeitos das relações jurídicas subjacentes a estas garantias as pessoas identificadas no artigo 3º do mesmo diploma. 158
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Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia). Segundo esta deve entender-se por «acordo de garantia financeira com transferência de titularidade», aquele “acordo, incluindo os acordos de recompra, ao abrigo do qual o prestador da garantia transfere a propriedade da garantia financeira para o beneficiário da garantia a fim de assegurar a execução das obrigações financeiras cobertas ou de as cobrir de outra forma”. B: Temas propostos - Admissibilidade do negócio fiduciário - Prova e registabilidade do pacto fiduciário - Natureza da alienação fiduciária em garantia - Alienação fiduciária em garantia e terceiros - Aquisição definitiva da titularidade do direito pelo fiduciário - Relação entre fiduciário e fiduciante em caso de não cumprimento - Alienação fiduciária em garantia e trust - Negócio fiduciário e simulação - Negócio fiduciário e negócio indirecto 4. Métodos de ensino I) A carga horária lectiva semanal no 1º ciclo é habitualmente composta por duas horas teóricas, uma prática e, por fim, uma tutória. No 2º ciclo, não existe aula prática, e a teórica tem somente uma hora de duração. Assim sendo, a extensão da exposição sobre a matéria a cargo do docente a que se pode proceder naquele primeiro é obviamente superior àquela de que este último é susceptível. O que não invalida, não obstante, a afirmação segundo a qual, no pósBolonha, o método expositivo magistral esteja banido na pureza dos seus contornos. II) Na verdade, o ensino universitário (particularmente o jurídico) tem tido, por tradição 161, carácter magistral 162. Razão pela qual (somente) tem sido exigido Esta tradição constitui o traço mais marcante da “Escola Antiga, que se caracteriza: pelo teocentrismo radical do professor reprodutor; pelo facto de a teologia ser o fundamento da antropologia; por se ensinar o imobilismo; por o professor dar a conhecer o Deus que tem dentro de si; e por ser a memória que, acima de tudo, o distingue” (José González – Maria do Carmo González, Guia de Estudo de Direito, Quid Juris, Lisboa, pág. 15). 162 “A exposição formal da informação permanece o modelo de ensino mais popular e a quantidade de tempo a ela dedicada tem-se mantido relativamente estável através dos tempos” [Richard Arends, Aprender a ensinar (trad.port.), McGraw-Hill, Lisboa e etc., 1995, pág. 269]. “Una lección magistral consiste en la presentación verbal de una información, (…) con el fin de transmitir unos conocimientos y ofrecer un enfoque crítico de la disciplina que lleve el alumnado a reflexionar y descubrir relaciones entre los diversos conceptos, a fin de formar una mentalidad crítica para el afrontamiento de problemas. 161
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ao aluno que assimile 163. Todavia, esta visão deve considerar-se ultrapassada, quanto mais não seja por vontade política. Efectivamente, a aplicação dos princípios contidos na Declaração de Bolonha e nos seus actos concretizadores subsequentes, determina maior atenção aos aspectos relacionados com a investigação logo a partir dos níveis introdutórios do ensino superior e não apenas, como tem sido regra entre nós, a partir dos níveis especialmente direccionados para a carreira académica. III) Assim o que se propõe, no que tange às aulas teóricas, seja no nível do 1º ciclo, seja no nível do 2º ciclo, é que a exposição oral se construa tendo como base as traves-mestras que estruturam a matéria da “Garantia das Obrigações”. Jamais tal explanação deve constituir uma lição magistral no sentido acima referido. À referida exposição cabe, portanto, prever e conter os tempos necessários para o diálogo com os alunos, os quais devem ser promovidos pelo docente não só como meio para suscitar o interesse dos discentes, como também para lhes permitir abrir vias de raciocínio e de investigação. Trata-se pois de implementar a chamada “Escola Pós-Moderna, simbolizada por Narciso. Identifica-se pelo cepticismo relativamente às grandes construções; pela assunção de que tudo é forma; pela negação da esquerda e da direita e do laico e do religioso, isto é, pela elevação do nada como centro (como neutralidade); em suma, pela descrença na educação (uma vez que não há saberes definitivos)” 164. IV) Dada a disponibilidade e a facilidade de acesso aos meios tecnológicos actualmente ao serviço do ensino, deve ser sistemático o recurso, para todas as aulas teóricas, ao apoio prestado pela projecção de slides em modelo Powerpoint ou análogo. Desde que cada slide sirva para permitir a visualização de conceitos, definições, esquemas, ideias-chave ou resumos de informação, a respectiva apreensão torna-se sempre mais fácil na medida em que, pelo menos, é mais apelativa. De facto, “os desenhos são mais bem memorizados porque são simultaneamente codificados num módulo de imagem, mas também porque as palavras são codificadas verbalmente” 165. (…) Una presentación de carácter expositivo a un gran grupo es una tarea laboriosa y de costumbre inveterada que ha de desarrollar el profesorado universitario. La presentación expositiva es un modelo de desarrollo de la docencia donde el enseñante tiene el mayor peso del discurso, y la información y la organización de las ideas, contenidos, etcétera, descansan fundamentalmente, aunque no exclusivamente, en la exposición verbal del profesor” (Olga de la Rosa – Luis Angulo, Recupere las exposiciones magistrales a grandes grupos, Programa para la mejora de docencia universitaria, Programa para la mejora de la docencia universitaria, Pearson Prentice Hall, Madrid e etc., 2004, págs. 415/416). 163 “A metodologia da «aula magistral» segundo a qual reina, acima de tudo, a autoridade do professor [magister], enquanto dispensador de conhecimentos, tornou-se modelo de instrução predominante desde a Idade Média. A leitura em voz alta constituía a «lectio» ou lição da aula que o aluno tinha depois de recordar e defender” (Pedagogia Inaciana – Uma abordagem prática, pág. 21, nota5). 164 José González – Maria do Carmo González, Guia de Estudo de Direito, págs. 15/16. 165 Alain Lieury, Memória e sucesso escolar, Editorial Presença, Lisboa, 1997, pág. 49. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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V.I) No que toca às aulas práticas (na suposição de que a “Garantia das Obrigações” se integre no plano de estudos do 1º ciclo), estas servem quase exclusivamente para um efeito: a resolução de hipóteses relativas à matéria objecto da unidade curricular. Na tradição universitária portuguesa 166, a instrução/avaliação curricular, nas licenciaturas em Direito, é fundamentalmente realizada com base na aptidão que cada discente (deve) revelar para resolver os chamados casos práticos ou hipóteses integrados em procedimentos de formação/examinação por escrito 167. o chamado e muito conhecido case method 168 169 o qual, de resto, dá execução às exigências da Declaração de Bolonha na perfeição. Os casos práticos ou hipóteses consistem numa descrição factual de determinadas situações que demandam a intervenção do Direito (ou seja, que são juridicamente relevantes). São casos como aqueles que, na respectiva vida profissional, surgirão ao juiz, ao advogado, ao notário, ao conservador, etc. Exige-se, obviamente, que o indivíduo alvo da avaliação seja capaz de dar às referidas situações a solução que juridicamente julgue mais acertada, em função dos conhecimentos obtidos pela frequência da disciplina ou conjunto de disciplinas cujos conteúdos são objecto de apreciação. A razão de ser deste procedimento justifica-se muito facilmente. A intervenção do jurista (advogado, juiz, notário, consultor, conservador) destinase a contribuir, na parte e na medida em que a respectiva intervenção seja solicitada, para a resolução jurídica (ou seja, para a resolução mais recta possível) de determinado caso da vida. É pois a própria forma de actuação do jurista na vida social que determina o correspondente procedimento de avaliação como parte componente da respectiva educação. V.II) O caso prático ou hipótese pode ou não corresponder a uma situação da vida real. Quando corresponda, pode basear-se na experiência prática do próprio docente ou alheia, em decisões jurisprudenciais recolhidas nos locais habituais (revistas de jurisprudência, sítios da Internet, compilações electrónicas, etc.), em pareceres motivados por determinada consulta, etc. A partir deste ponto segue-se de muito perto o que se disse em José González – Maria do Carmo González, Guia de Estudo de Direito, págs. 65 a 67. 167 “En un intento de medir lo más objetivamente posible todos” os “aspectos difícilmente mensurables, se creó la técnica de los tests, que utiliza unos instrumentos (pruebas y protocolos) para acceder a esas dimensiones abstractas, y sólo objetivables al cuantificar sus manifestaciones” (Santiago Arredondo – Jesús Diago, Evaluación educativa y promoción escolar, pág. 219). 168 C. Ferreira de Almeida, Direito comparado – ensino e método, Edições Cosmos, Lisboa, 2000, pág. 161. 169 “A case is a narrative of an actual, or realistic, problem that typically (but not always) portrays actors – sometimes historical or living, other times “fictional” or composites of actual people – confronted with the need to make a decision. Cases for teaching present information, but not analysis; the goal of group discussion is to supply the latter, as well as to advocate solutions or courses of action. Case discussion is also seen as an exercise in building analytic bridges between theory and data” (John Foran, www.soc.ucsb.edu/ projects/casemethod/guidelines, Introduction – Student Guidelines for Case Discussion). 166
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Sendo o caso prático “inventado” convém que seja realista, dado que, na educação do jurista, há uma componente de formação profissional que não deve ser descurada 170. Embora não se tenha dirigido uma investigação específica neste sentido, é altamente provável aliás que a designação hipótese tenha surgido justamente em virtude de a situação factual nela descrita constituir uma pura “invenção” 171. V.III) Em relação aos dados factuais constantes do caso prático ou hipótese, há dois métodos clássicos de perguntar pela correspondente resolução jurídica: colocando questões que conduzam, mais ou menos directamente, para a referida resolução; ou, diversamente, colocando uma questão genérica, do tipo quid juris. Ambas as versões são igualmente admissíveis, mas a segunda oferece o perigo de proporcionar o caminho para uma digressão puramente teóricodescritiva, à laia de comentário à hipótese, que demonstrará uma excelente capacidade de memória (mecânica), mas que certamente não revela o essencial: a aptidão do indivíduo alvo da avaliação para solucionar juridicamente (portanto, rectamente), o caso que lhe foi colocado 172. VI) Por fim, no que respeita às aulas tutórias (o que se adequa indiferentemente ao 1º e ao 2º ciclo), têm estas por finalidade própria orientar o discente na realização de trabalhos de investigação, seja de que espécie forem: doutrinários, jurisprudenciais, estatísticos, etc. No 1º ciclo, aliás, embora dependendo da viabilidade prática autorizada pelo número de alunos que componham cada aula tutória, devem realizar-se igualmente simulações de julgamentos (moot courts) ou, no mínimo, simulações de fases processuais correspondentes a certos procedimentos judiciais (v.g. a fase dos articulados no processo civil). Isso constitui, por um lado, um factor de motivação para os discentes que se assim se apercebem do alcance da expressão law in action. E permite, por outro lado, que se ponham em prática competências adquiridas através dos conhecimentos incorporados pelo estudo (law in books). De facto, estudar também é memorizar. Mas memorizar não é decorar. Ao invés, memorizar é interiorizar – é know by heart. A memorização implica e acarreta reflexão; e a capacidade para reflectir é uma competência básica que o jurista deve adquirir 173. “Cases are stories with a message. They are not simply narratives for entertainment. They are stories to educate” (Clyde Freeman Herreid, http://ublib.buffalo.edu/libraries/projects/cases, What is a case). 171 A hipótese “inventada” apresenta com frequência um outro inconveniente: habitualmente é elaborada de harmonia com as concepções/convicções pessoais do respectivo autor. Por isso, para quem não partilhe dessas mesmas concepções ou convicções, pode, com facilidade, tornar-se irresolúvel ou, ao invés, pode nem sequer ter natureza problemática. 172 Daí que, quando assim se entenda formular a questão, deva existir o cuidado de direccionar suficientemente o correspondente objectivo na enunciação dos dados da hipótese. 173 “Com o termo reflexão queremos significar a reconsideração séria e ponderada de algum assunto, experiência, ideia, intenção ou reacção espontânea, em ordem a apreender o seu significado mais a fundo” (Pedagogia Inaciana – Uma abordagem prática, pág. 30). 170
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5. Calendarização das matérias Syllabus de Garantia das Obrigações (1º ou 2º ciclo)
Semana
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Aulas Teóricas
01
1. Garantia das obrigações – noção 1.1. Princípio geral 1.2. Objecto da garantia geral 1.3. Limitação da garantia – cláusulas de irresponsabilização 1.4. Garantia geral e garantias especiais
02
2. Meios de conservação da garantia patrimonial 2.1. Declaração de nulidade 2.2. Sub-rogação do credor ao devedor 2.2.1. Requisitos da subrogação 2.2.2. Credores a prazo e credores condicionais 2.2.3. Efeitos da sub-rogação
03
3. Impugnação pauliana 3.1. Requisitos 3.1.1. Acto lesivo da garantia patrimonial 3.1.2. Anterioridade do crédito 3.1.3. Má fé 3.2. Efeitos 3.2.1. Em relação ao credor 3.2.2. Em relação ao devedor 4. Arresto 4.1. Noção e requisitos 4.2. Efeitos
Aulas Práticas
Aulas de Orientação Tutorial
Resolução de casos práticos
Investigação, análise e apresentação de resumos sobre jurisprudência pertinente
Resolução de casos práticos
Investigação, análise e apresentação de resumos sobre jurisprudência pertinente
Resolução de casos práticos
Investigação, análise e apresentação de resumos sobre jurisprudência pertinente
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Garantia das Obrigações
04
5. Fiança 5.1. Noção 5.2. Acessoriedade 5.3. Benefício da excussão 5.4. Sub-rogação do fiador nos direitos do credor
Resolução de casos práticos
Apresentação de trabalhos
05
6.5. Cartas de patrocínio
Resolução de casos práticos
Apresentação de trabalhos
06
6.6. Garantias autónomas
Resolução de casos práticos
Apresentação de trabalhos
07
6. Regime geral das garantias reais 6.1. Acessoriedade 6.2. Transmissibilidade 6.3. Extinção 6.4. Natureza jurídica
Resolução de casos práticos
Apresentação de trabalhos
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7. Consignação de rendimentos 7.1. Noção 7.2. Modalidades 7.3. Regime
Resolução de casos práticos
Apresentação de trabalhos
09
8. Penhor 8.1. Constituição do penhor 8.2. Direitos do credor pignoratício 8.3. Execução do penhor
Resolução de casos práticos
Apresentação de trabalhos
10
9. Hipoteca 9.1. Noção 9.2. Objecto 9.3. Espécies de hipotecas: legais, judiciais e voluntárias 9.4. Redução e expurgação da hipoteca
Resolução de casos práticos
Apresentação de trabalhos
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10. Privilégios creditórios 10.1. Noção 10.2. Classes de privilégios 10.3. Concorrência de privilégios
Resolução de casos práticos
Apresentação de trabalhos
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11. Direito de retenção 11.1. Noção 11.2. Campo genérico de aplicação 11.3. Casos especiais
Resolução de casos práticos
Apresentação de trabalhos
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12. Alienação fiduciária em garantia
Resolução de casos práticos
Apresentação de trabalhos
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13. Reserva de propriedade
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14. Penhora. Venda executiva.
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Garantia das Obrigações
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Direito das Pessoas e Situações Jurídicas
DIREITO DAS PESSOAS E DAS SITUAÇÕES JURÍDICAS Relatório
do concurso para Professor Associado nos termos do artigo 44º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 448/79, de 18 de Novembro Pedo Cordeiro1
ADVERTÊNCIA As indicações bibliográficas completas de todas as obras referidas no texto estão no Índice Bibliográfico final. Nas citações apenas se identificam sumariamente o autor e a obra em causa. PLANO I – Introdução – Enquadramento legal e finalidades do presente Relatório. II – Modelo de concurso – Inconvenientes e vantagens. III – Justificação da escolha do tema e do modelo adoptado. IV – A disciplina de Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas e a sua inserção no plano de estudos. V – Plano de desenvolvimento do Relatório. VI – O Homem como fundamento e finalidade de todo o Direito. VII – Conteúdos da disciplina e justificação do programa: A.1. – A base jusnaturalista. A.2. – Inserção da disciplina de Direito das Pessoas e 1
Professor da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada.
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Pedro Cordeiro
das Situações Jurídicas na Enciclopédia Jurídica – delimitação positiva e carácter ancilar. A.3. – O Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas como Direito Privado Comum. A.4. – Princípios fundamentais e ordenadores. B. – As Pessoas. B.1. – As Pessoas Singulares. B.2. – As Pessoas Colectivas. C. – Os Bens. D. – As Situações Jurídicas e o Exercício Jurídico. VIII – Programa da disciplina de Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas. IX – Método de Ensino. – A. Enquadramento Geral. B – Aulas Teóricas. C – Aulas Práticas. D. – Aulas Tutórias. X – Métodos de Avaliação. XI – Elementos de Estudo. XII – Notas finais.
I INTRODUÇÃO – ENQUADRAMENTO LEGAL E FINALIDADES DO PRESENTE RELATÓRIO 1. O concurso para Professor Associado pressupõe, nos termos do artigo 44º - nº 2 do Decreto-Lei nº 448/79, de 13 de Novembro (Estatuto da Carreira Docente Universitária), a elaboração e apresentação “de um Relatório que inclua o programa, os conteúdos e os métodos de ensino teórico e prático das matérias da disciplina, ou de uma das disciplinas, do grupo a que respeita o concurso”. No âmbito do designado Processo de Bolonha, foram acrescentadas às actividades curriculares as aulas tutórias pelo que se afigura indispensável fazer interpretação extensiva daquele preceito, de modo a que também elas sejam objecto de tratamento específico. É, pois, em cumprimento da injunção legal descrita que se apresenta o presente Relatório que versará a disciplina de Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas. 2. O concurso para Professor Associado não tem por finalidade a apreciação das qualidades científicas do candidato. Essas já foram devidamente aferidas e valoradas nas provas de doutoramento. Passados mais de vinte e sete anos sobre o início das funções de docente (e de mais de quatro como doutor) – o que permite uma perspectiva sólida da actividade exercida – importa apreciar a sua prestação como Professor, o desempenho e o modo como, alcançada a maturidade, o candidato se propõe prosseguir no seu ensino, os conteúdos programáticos e o modo de executar o seu projecto pedagógico. Esta prova académica tem, por isso, como objectivo dar a conhecer à Escola o que pensa sobre a disciplina escolhida e que pretende reger nas suas diversas vertentes – programa, conteúdos, métodos de ensino – de modo a formar adequadamente os alunos e a cumprir uma das missões fundamentais da Universidade – formar um juízo independente do mérito – e habilitar o júri a tomar uma decisão depois de analisado o Relatório e o Curriculum Vitae do candidato. 374
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Cumpre, por conseguinte, fornecer os elementos necessários à apreciação do candidato e da sua idoneidade docente, por um lado, e do modelo e método de ensino que visa prosseguir, por outro. II MODELO DE CONCURSO – INCONVENIENTES E VANTAGENS 1. Tem sido extensa e generalizada a crítica ao modelo de concurso em presença. É longo o debate (e nem sempre coincidente) sobre os méritos e desvantagens desta prova. Argumenta-se, desde logo, com a discrepância existente entre os pressupostos de que parte o Estatuto da Carreira Docente Universitária e o modo como efectivamente tem funcionado a docência nas Faculdades de Direito com limitações, quer a nível logístico, quer a nível de recursos humanos2. Sublinha-se, também, que a regência de cadeiras é tradicionalmente atribuída na sequência das provas de doutoramento e mesmo, em virtude da escassez de doutores, a mestres de competência comprovada, o que tornaria anacrónico e meramente burocrático o concurso para Professor Associado. Acrescenta-se, ainda, que, mesmo que assim não seja, então estas provas significarão uma duplicação desnecessária face à agregação. Mas aquela que consideramos a crítica fundamental que se costuma aduzir no que respeita ao valor e dignidade académica deste concurso diz respeito à inexistência do princípio do contraditório. Na verdade, como tem sido recorrentemente assinalado pelos candidatos3, dificilmente se compreende que numa prova deste teor, não haja lugar à discussão pública do trabalho apresentado. Isso foi traduzido de forma exemplar mesmo por quem tem o encargo de avaliar estes Relatórios. De facto, OLIVEIRA ASCENSÃO, procurando minimizar o reprovável carácter secreto das provas que fundamentam a decisão, fez publicar a sua apreciação a diversos Relatórios, onde manifestou o sentido ingrato do trabalho que lhe incumbia precisamente por o seu parecer não permitir o contraditório Por todos, vide, PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, “Teoria Geral do Direito Civil, Relatório”, pág. 7. 3 Sem pretensões exaustivas e, propositadamente, referindo Professores de diferentes Grupos, vide, MENEZES CORDEIRO, “Teoria Geral do Direito Civil, Relatório”, pág. 204; EDUARDO PAZ FERREIRA, “Direito Comunitário II (União Económica e Monetária), Relatório”, págs. 7 e 8; LUIS DE LIMA PINHEIRO, “Um Direito Internacional Privado para o Século XXI, Relatório”, pág. 7; e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Aspectos Metodológicos e Didácticos do Direito Processual Civil, Relatório”, pág. 339. 2
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o que, segundo o autor, retira utilidade e dignidade universitária ao concurso, rebaixando-lhe o nível académico ao basear a selecção dos professores em aspectos essencialmente didácticos4. 2. Mau grado aderirmos sem rebuço às críticas apresentadas, pensamos que este trabalho terá de se centrar nos aspectos positivos que dele devem resultar e que, diga-se também, já foram abundantemente realçados por muitos dos que nos antecederam nesta tarefa. Desde logo, e tendo consolidado um percurso docente com total autonomia, este é o momento adequado para uma pausa auto-reflexiva sobre os caminhos trilhados e a prosseguir. Importa, ainda, dar a conhecer à Escola e à generalidade da comunidade científica os conteúdos e métodos adoptados e a sua justificação, proporcionando uma justa avaliação dos mesmos. Simultaneamente faculta-se aos alunos um elemento importante que os ajudará a um estudo compreensivo das matérias abrangidas pelo programa. Permite-se, concomitantemente, discorrer sobre os pressupostos juscientíficos em que assentam os conteúdos da disciplina e a caracterização dos métodos adoptados para o seu ensino tendo em atenção a inserção da disciplina no programa do curso e a delimitação temporal que a semestralização do Processo de Bolonha impõe. Permite-se, por outro lado, aferir da compatibilidade do modelo proposto com as finalidades pedagógicas da própria Universidade, já que as diferentes cadeiras não podem nem devem ser vistas como compartimentos estanques do ensino do Direito, mas antes como partes integrantes de um todo consonante, dando uma perspectiva holística à Ciência Jurídica. O relator tem, pois, a liberdade criativa que lhe permite dar a conhecer à Escola os seus conhecimentos sobre aspectos medulares do conteúdo da disciplina, a possibilidade de justificar argumentativamente as suas opções, a viabilidade da metodologia que propõe e a sua funcionalidade didáctica e pedagógica. A elaboração do Relatório em apreço contribui, ainda, com um elemento curricular importante para a evolução da carreira docente do candidato e de enriquecimento do estudo juscientífico. Ao propor à Escola o modelo que entende ser o correcto para o ensino da disciplina escolhida e o modo como pretende implementá-lo, o candidato permite, por conseguinte, a aferição não só dos conteúdos programáticos que sugere mas, sobretudo, das suas posições juscientifícas e da sua adequação à orientação pedagógica da Universidade. As razões expostas (entre outras que se poderiam aduzir) são, pois, fundamento bastante para justificar o sentido e o interesse desta prova. 4
OLIVEIRA ASCENSÃO, “Parecer sobre “Aspectos Metodológicos e Didácticos do Direito Processual Civil”, pág. 439 e segs. e “Parecer sobre “O Ensino do Direito Comparado” do Doutor Carlos Ferreira de Almeida”, pág. 573 e segs. .
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III JUSTIFICAÇÃO DA ESCOLHA DO TEMA E DO MODELO ADOPTADO 1. O presente Relatório incide, como se disse, sobre a disciplina de Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas. Ainda que a lei não o imponha parece-nos importante apresentar, sumariamente, as razões que presidiram à nossa escolha. Elas são de duas ordens: subjectivas e objectivas. Subjectivas no que tange à particular ligação que há longos anos mantemos com a disciplina – que continuamos a reger – e pelo superior interesse que mantemos pelas diversas matérias estudadas no seu âmbito. A contínua necessidade de aprofundar temas nucleares para nós ou para qualquer jurista, tarefa sempre inacabada e na qual nos incumbe particular responsabilidade, seria, só por si, razão bastante para a opção que efectuámos. Mas com estas se prendem, também, razões objectivas que têm a ver, precisamente, com o carácter central que a cadeira tem na formação dos juristas do futuro, permitindo, simultaneamente, abrir caminhos para estudos a efectuar posteriormente e a uma visão global do Direito, sem interstícios que redundam, inevitavelmente, numa compreensão parcial e, por isso, distorcida do Sistema Jurídico. Acresce que, sendo a disciplina escolhida uma decorrência do desdobramento da Teoria Geral do Direito Civil, nos pareceu essencial perspectivar como o mesmo deve ser realizado de modo a permitir um entendimento harmonioso de matérias que só por abstracção podem ser dissociadas. 2. O modelo do Relatório será consonante com o exposto no ponto anterior. De facto, este trabalho versará uma nova-velha disciplina com as consequências daí decorrentes. Permitirá, por um lado, inovar, visto não ter havido até hoje nenhuma apresentação que tenha por objecto apenas o Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas, mas não poderá desprezar os valiosos contributos que outros, antes de nós, deram para o estudo da Teoria Geral do Direito Civil da qual a presente cadeira é parte. Procuraremos, assim, apresentar o esboço de um arquétipo da cadeira que sem se deter em extensos e despiciendos elementos históricos – que mais não seriam do que uma repetição do já dito – tentará dar conta do modo como a docência da disciplina vem sendo exercida e formulando pistas prospectivas do seu ensino. Partindo, pois, da experiência acumulada reflectiremos, fundamentalmente, sobre os modelos de desenvolvimento e aprofundamento das matérias constitutivas desta “nova” cadeira. Se quisermos sintetizar numa frase, necessariamente imprecisa e incompleta, Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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dir-se-á que daremos prevalência aos elementos criativos em detrimento dos meramente narrativos ou, dito de outro modo, sublinharemos a substância em prejuízo da forma. V A DISCIPLINA DE DIREITO DAS PESSOAS E DAS SITUAÇÕES JURÍDICAS E A SUA INSERÇÃO NO PLANO DE ESTUDOS 1. A disciplina de Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas é uma unidade curricular do segundo semestre do primeiro ano e resultou do desdobramento da antiga Teoria Geral do Direito Civil que terá, por conseguinte, de ser complementada e articulada com a subsequente Teoria Geral do Negócio Jurídico, a leccionar no primeiro semestre do segundo ano5. A sua criação é, pois, uma consequência da adopção do Processo de Bolonha feita pela legislação portuguesa através do Decreto-Lei nº 74/2006, de 24 de Março. Torna-se, por isso, despiciendo encarecer o significado e o carácter angular da cadeira. Tudo o que sempre foi aduzido quanto à posição central da Teoria Geral do Direito Civil aplica-se, mutatis mutandis, à disciplina objecto do presente Relatório. 2. O Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas é uma disciplina autónoma, obrigatória e semestral. Depois da cadeira de Introdução ao Estudo do Direito em que são abordados, numa perspectiva global e necessariamente sumária, as mais importantes noções básicas e que ocupa parte relevante do primeiro semestre do primeiro ano da licenciatura, os alunos são convidados a aprofundar de forma decisiva os seus conhecimentos sobre o Direito em geral e sobre o Direito Privado em particular. Trata-se, por conseguinte, de uma cadeira semestral como as restantes, em virtude da injunção decorrente do designado Processo de Bolonha, mas nem por tal facto vê a sua importância diminuída. O já citado desdobramento da Teoria Geral do Direito Civil, bem como a referida semestralização obrigam, contudo, a cuidados redobrados. A Teoria Geral do Direito Civil deve ser entendida como um todo sob pena de perder o carácter fundamental que sempre lhe foi reconhecido. O desmembramento que lhe foi imposto afigura-se-nos, por isso, artificial e não merece o nosso acolhimento. 5
Vide, Despacho nº 17878/2006, Diário da República, 2ª série – nº 170, de 4 de Setembro de 2006, relativo à Adequação do curso de licenciatura em Direito ministrado pela Universidade Lusíada de Lisboa ao 1º ciclo de estudos conducente ao grau de licenciado em Direito – Decreto-Lei nº 74/2006, de 24 de Março.
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Mas ainda que se aceite, sem conceder, que seja seccionada em partes que lhe retiram a sua harmonia dogmática, tão pouco, nos parece adequado o modo como a separação foi efectuada. De facto, como teremos ocasião de explicitar com maior detalhe, as situações jurídicas estão num plano lógico que justificaria que o seu estudo só se realizasse em momento posterior ao dos dados pré-jurídicos – pessoas, bens e factos jurídicos – pois o seu entendimento cabal só se torna possível após o conhecimento de tais elementos que se impõem ao Direito e que o antecedem. É evidente que por abstracção e com adequadas cautelas, a interligação entre o Direito das Pessoas e as Situações Jurídicas é possível e terá de ser esse, obviamente, o nosso objectivo. Não se deixa, no entanto, de alertar para a necessidade do enquadramento global das matérias. O Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas tem, naturalmente, uma vertente informativa, fornecendo aos alunos ferramentas indispensáveis a toda a sua vida jurídica, mas tem primordialmente uma função formativa. Daí que o seu ensino não possa deixar de ter como pilares essenciais princípios ético-jurídicos e uma nova hermenêutica – que faça uma verificação a final dos resultados obtidos, já que estes não se podem cingir a uma mera aplicação mecânica de normas avessas a um sentido de Justiça Substancial e concreta. O curso de Direito não visa apenas formar juristas. Visa também formar pessoas. Por isso, a nossa disciplina será desenhada a partir de princípios básicos que terão influência determinante sobre a configuração e apresentação dos conteúdos programáticos. 3. O Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas como parte integrante da Teoria Geral do Direito Civil é o tronco comum de todo o Direito Privado e mesmo de todo o Direito em geral. Sem uma base sólida torna-se difícil e mesmo lacunar o estudo posterior do Direito das Obrigações ou dos Direitos Reais, do Direito da Família ou do Direito das Sucessões, do Direito de Autor ou do Direito Industrial, dos Direitos Fundamentais ou até mesmo do Direito Administrativo6, e os exemplos poderse-iam multiplicar. A disciplina sobre que nos debruçamos deverá, assim, servir de alicerce à compreensão adequada dos diversos institutos jurídicos e dos mais variados ramos de direito. Torna-se, por isso, necessário que o seu ensino proporcione e promova incursões noutras áreas da Ciência Jurídica e prepare os alunos para essas matérias e para novos desenvolvimentos que a própria evolução das coisas e, consequentemente, da legislação os obrigará a enfrentar. 6
A aplicação da teoria do acto jurídico ao acto administrativo e a sua compaginação é hoje um dado adquirido pela melhor doutrina.
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4. Em síntese, dir-se-á que o Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas, pelos conteúdos que lhe concernem, pela sua integração sistemática no plano de curso – no primeiro ano da licenciatura – e pelo carácter formativo e prospectivo que encerra é uma das principais disciplinas que podem e devem permitir a formação de verdadeiros Juristas em detrimento de meros tecnocratas do Direito. São estes os seus objectivos fundamentais e como tal devem ser prosseguidos. V PLANO DE DESENVOLVIMENTO DO RELATÓRIO 1. Como já anteriormente se disse, o artigo 44º - nº 2 do Estatuto da Carreira Docente Universitária impõe ao candidato a apresentação de um Relatório que inclua o programa, conteúdos e métodos de ensino teórico e prático das matérias de uma disciplina. Também já referimos que a norma em apreço é passível de interpretação extensiva, permitindo que as aulas tutórias sejam abrangidas no âmbito do Relatório. Importa contudo, delimitar, positiva e negativamente, os objectivos desta obra e o modo como os pretendemos desenvolver. 2. A expressão “que inclua” constante do supracitado artigo 44º - nº 2 do Estatuto da Carreira Docente Universitária dá-nos conta daquilo que, injuntivamente, constitui o objecto central e necessário do Relatório – programa, conteúdo e métodos de ensino. Fica, assim, demarcado o conteúdo essencial deste trabalho. Tudo o mais que nele se inclua terá, por conseguinte, carácter instrumental tendente à realização daquele desiderato. Não se pense, porém, que o que fica dito pressuponha que o legislador pretendeu coarctar a liberdade criativa dos candidatos. Esta, obviamente, mantém-se aqui como em qualquer obra intelectual. Faremos dela uso nas nossas propostas quanto ao programa, conteúdos e métodos de ensino da disciplina, procurando demarcar o seu objecto, justificando a sua importância sistemático-científica e prática e delimitando o seu âmbito com o pragmatismo que uma divisão equilibrada das matérias legitima7. As propostas que apresentamos nas partes subsequentes do Relatório desenvolver-se-ão, por conseguinte, em torno dos pressupostos juscientíficos, dos objectivos e inserção no plano de licenciatura da disciplina. Isto nos obrigará à demarcação, relativamente aprofundada e tão diversificada quanto possível, das várias matérias que iremos analisar, da sua 7
Assim, e exemplificando, ainda que a sede temática dos Bens e da Representação Voluntária pudesse ser outra, julgamos que a sua inclusão no Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas se justifica quer por razões dogmáticas, quer por razões equitativas de desenvolvimento dos programas, como adiante teremos ocasião de demonstrar.
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interligação endógena e do seu relacionamento com outras disciplinas. 3. Dois últimos aspectos importa ainda salientar. Em primeiro lugar, o presente Relatório, prescindirá da tradicional parte histórica que normalmente se encontra neste tipo de trabalho. Por um lado, porque a cadeira de Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas é, em si, inovadora e, consequentemente, o seu ensino confunde-se com o nosso ou com o de outros colegas que a leccionam nestes poucos anos de existência na nossa Universidade. Por outro lado, porque se pudéssemos alargar o campo de análise histórica à Teoria Geral do Direito Civil em globo a tarefa revelar-se-ia fastidiosa e de reduzido mérito, já que se traduziria numa repetição do já dito, dado que tal empresa já foi levada a cabo – e com elevado sucesso – por outros8. Tratar-se-ia, pois, de um extenso repositório do que já antes foi elaborado de parco alcance científico. Para os autores que nos antecederam, naturalmente, se remete. Em segundo lugar, deve-se alertar o leitor para um elemento que se nos afigura essencial neste Relatório, sobretudo por dele parecer resultar uma contradição com a lógica legislativa. Estamos a referir-nos ao facto de a injunção legal apontar, sequencialmente, como objecto do Relatório, o programa, os conteúdos e o método de ensino. Julgamos que a ordem dos dois primeiros termos deve ser alterada. De facto, os conteúdos precedem logicamente o programa. Só depois de apresentados e justificados os conteúdos estaremos habilitados a enunciar o programa. Só após fundamentarmos e demarcarmos os seus diversos elementos constitutivos e demonstrarmos o método operativo a implementar estaremos legitimados a formular o programa a adoptar que, desse modo, se tornará compreensivo, quer para os Professores que terão o encargo de o apreciar, quer para os alunos, com os indesmentíveis benefícios didácticos e pedagógicos daí decorrentes. Entendemos, pois, que, mau grado a descrição legal, que parece apontar para uma sequência distinta, a ordem correcta para o desenvolvimento subsequente deste Relatório passa pela exposição e demarcação dos conteúdos, só depois seguida da apresentação do programa a adoptar – cuja formulação se encontrará já então devidamente esclarecida – e dos métodos de ensino. Será esse, por conseguinte, o caminho que iremos trilhar.
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Os relatórios de MENEZES CORDEIRO e PEDRO PAIS DE VASCONCELOS sobre Teoria Geral do Direito Civil são disso prova cabal.
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VI O HOMEM COMO FUNDAMENTO E FINALIDADE DE TODO O DIREITO 1. A disciplina de que nos ocupamos designa-se Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas. São, portanto, as pessoas o seu ponto de partida. E faz sentido que assim seja. Na verdade, o Homem é o centro nevrálgico de todo o Direito. É do Homem e para o Homem que, em primeira linha, o Ordenamento Jurídico se tem de ocupar. Quando se multiplicam visões reducionistas, de que o biologismo9 é apenas a imagem mais exuberante, que adensam as nuvens de negativismo sobre a própria natureza humana – desresponsabilizando o indivíduo pelos seus actos, vistos como meros efeitos de causas cientificamente demonstráveis através de ligações orgânicas naturais, resultantes da sua herança genética – é tempo de o elevar à sua verdadeira dimensão e dignidade. O dualismo corpo-alma ou matéria-espírito tem de ser ultrapassado de modo a compreender o ser humano como um todo indivisível. O materialismo mecanicista não traduz, obviamente, a verdadeira natureza humana e deve ser repudiado. O Homem é, seguramente, um ser biológico, mas é também um ser espiritual e cultural. Por muito que estudemos os milhões de neurónios que existem no cérebro e as inumeráveis sinapses que se podem estabelecer, isso não nos levará ao entendimento da verdadeira essência humana. O Homem é o resultado da sua herança genética e da sua construção cultural. Chega ao mundo por fazer, sendo os seus valores éticos alicerçados na sua história e na sua cultura profunda. Se assim não se entender estar-se-á a reduzir a antropologia a um mero capítulo da zoologia e a ética a uma “anatomia moral”. Não é seguramente esse o caminho a trilhar. Há que revelar a dignidade única e imutável do Homem, enquanto pessoa única e irrepetível, enquanto ser infungível. Há que hipostasiar o ser humano e, partindo dessa substância, responder juridicamente aos seus anseios, às suas finalidades e à sua realização individual e social. Aquilo que poderia parecer um truísmo afigura-se, pois, como uma constatação fundamental: o Homem não existe para servir o Direito, mas sim o Direito para servir o Homem na sua dignidade imanente. 2. Tudo se centra e se dirige para o ser humano. 9
Doutrina segundo a qual o Homem não é mais do que um ser material que tem apenas propriedades físicas, tendo, por consequência, toda a conduta humana uma explicação mecânica.
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À luz deste princípio serão, por conseguinte, abordadas as diversas matérias. O Homem como único ser finalista, único ente capaz de antecipar os seus fins e de agir em função deles impõe-se ao próprio Direito e é a sua finalidade. É por isso, também, o fundamento da personalidade jurídica mesmo da que é atribuída às pessoas colectivas – cuja dignidade não é comparável à do ser humano, mas que ganham significado enquanto instrumento privilegiado para a prossecução de objectivos que as pessoas singulares não podem ou não conseguem prosseguir cabalmente, por falta de meios pessoais ou patrimoniais sendo, também, nesse sentido, uma decorrência de Direito Natural. O Homem é, ainda, sujeito de situações jurídicas e nestas, maxime nos direitos subjectivos, os bens, enquanto seu objecto primordial, desempenham papel crucial na satisfação dos seus interesses. Em suma: é em função desta opção base, do Homem como elemento central de todo o Direito, que apresentaremos e justificaremos os conteúdos que determinarão o modelo de programa a implementar. VII CONTEÚDOS DA DISCIPLINA E JUSTIFICAÇÃO DO PROGRAMA A – INTRODUÇÃO – TÓPICOS FUNDAMENTAIS A.1 – A Base Jusnaturalista A disciplina que ora abordamos tem como conteúdo fundamental o Direito Civil ou, para sermos mais exactos, uma parte dele. O Direito Civil é como se sabe o tronco comum de todo o Direito Privado. Mas antes de aprofundarmos o seu estudo não nos podemos eximir a uma valoração ético-material do Direito Civil em geral e do Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas em particular. Torna-se, por isso, essencial demarcar o sentido de Lei Divina, Lei Eterna, Lei Natural e Lei Positiva10. Esta demarcação introdutória tem objectivos claros. Desde logo, afirmar, sem ambiguidade, a nossa posição no espectro da doutrina jurídica enquanto defensores do Direito Natural como fundamento primigeno de todo o Direito. Este Direito Natural, que tem quanto a nós como fonte o próprio Deus, é constituído por um conjunto de princípios eternos e universalmente válidos, concretizadores da justiça, passíveis, portanto, de aplicação concreta e que se encontra a nível hierarquicamente superior ao direito positivo, que, em caso de 10
Na esteira de OLIVEIRA ASCENSÃO e PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, nas suas lições de “Direito Civil – Teoria Geral”, Volume I, e “Teoria Geral do Direito Civil”, respectivamente. Deste último autor, quanto a este aspecto, importará ainda referir a sua obra fundamental sobre “A Natureza das Coisas”.
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conflito de normas, se lhe deve submeter. Permite-nos ainda afastar uma serôdia visão positivista da Ciência Jurídica, muito criticada mas que mantém sequelas perniciosas muitas vezes camufladamente defendidas (ainda que, em certos casos, inconscientemente) na nossa doutrina11. Acresce que esta primeira temática, de indesmentível carácter formativo, constituirá base sólida para a compreensão dos posteriores desenvolvimentos das diferentes matérias a tratar. Conhecido o ponto de partida torna-se mais fácil de entender e balizar o caminho que se vai trilhar. A.2 – INSERÇÃO DA DISCIPLINA DE DIREITO DAS PESSOAS E DAS SITUAÇÕES JURÍDICAS NA ENCICLOPÉDIA JURÍDICA – DELIMITAÇÃO POSITIVA E CARÁCTER ANCILAR 1. Como já foi várias vezes sublinhado, a disciplina de Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas constitui uma parcela da Teoria Geral do Direito Civil. Também já tivemos ocasião de enfatizar o seu carácter introdutório a todo o Direito em geral e especialmente ao Direito Civil, entendido em sentido amplo. Ela antecede, por conseguinte, a Teoria Geral do Negócio Jurídico (a leccionar no segundo ano), o Direito das Obrigações, os Direitos Reais, o Direito da Família e o Direito das Sucessões. Poderia, por isso, pensar-se que o seu conteúdo seria delimitado negativamente pelas citadas disciplinas e se cingiria a alguns dos aspectos da Parte Geral do Código Civil. Mas não é assim. O Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas não se delimita residualmente. É, pelo contrário, o ancoradouro seguro onde todo o edifício jurídico começa a ser estruturado e onde se constroem as fundações compreensivas dos restantes ramos de direito. 2. Trata, pois, de matérias que, por errónea tradição jurídica ou inserção sistemática da lei, são abordadas noutras disciplinas12. Deve, ainda, manifestar um carácter transversal, isto é, debruçar-se sobre elementos fundamentais para o entendimento e o conhecimento preliminar de outras cadeiras, abrindo vias e favorecendo estudos interdisciplinares Inserimo-nos, assim, na designada Escola de Lisboa na qual, com as variantes naturais, que decorrem da subjectividade de cada um dos autores, podemos incluir, como expoentes marcantes, GOMES DA SILVA, INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, OLIVEIRA ASCENSÃO, MENEZES CORDEIRO e PEDRO PAIS DE VASCONCELOS. 12 As figuras da ilicitude e da responsabilidade civil são disso exemplos paradigmáticos. Não se pretende, obviamente, esgotar o tratamento de matérias como as acima referidas, mas visase demonstrar o carácter geral da problemática que encerram e lançar pistas para aprofundamentos futuros. 11
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indispensáveis à formação dos alunos. O Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas tem, assim, um conteúdo positivo próprio e abrangente e situa-se na génese da formação de qualquer jurista proporcionando-lhe conhecimentos que se transformarão em ferramentas de uso permanente na sua actividade e auxiliares preciosos de investigações subsequentes. A.3 – O DIREITO DAS PESSOAS E DAS SITUAÇÕES JURÍDICAS COMO DIREITO PRIVADO COMUM 1. É pacificamente aceite que o Direito Civil é Direito Privado Comum. Respaldados na vasta doutrina que demonstra a razão de ser desta qualificação, abster-nos-emos de longas e repetitivas especulações sobre esta temática. Limitar-nos-emos a enunciar os principais critérios distintivos – fundamentalmente os que se baseiam na natureza dos sujeitos ou do interesse – e a formular as críticas que lhes são apontadas. Defenderemos uma tese mitigada da posição relativa dos sujeitos. Quer dizer, uma teoria segundo a qual são de Direito Privado as acções praticadas entre privados ou entre estes e entes públicos desprovidos do seu jus imperii, sendo de Direito Público aquelas em que haja manifestações de tal poder soberano. Dissemos mitigada porque a teoria propugnada terá de ser entendida com um valor meramente tendencial, já que a distinção entre Direito Público e Direito Privado não é passível de uma fronteira rígida que determine uma separação absolutamente segura. Pelo contrário, a distinção só pode ser compreendida à luz de uma visão polar e, por conseguinte, variável, sendo os actos jurídicos de natureza mais ou menos pública ou privada pelo que deverá ser a sua vertente dominante (ainda que não exclusiva) a determinar-lhes a qualificação e respectivo regime13. 2. Referir-se-á, no entanto, que a distinção, mau grado tenha perdido o ênfase que durante longos anos lhe foi atribuída, fruto de uma longa tradição jurídica, continua a ser útil e operativa desde que entendida com o sentido gradual que sublinhámos. Diga-se que uma das suas aplicações mais importantes se refere, desde logo, à determinação do maior ou menor grau de autonomia que, em concreto, subjaz a cada acção. De facto, se em primeira linha estiverem em causa interesses gerais e comunitários em que as componentes da colectividade, estatais e de ordem 13
A abordagem dos Direitos de Personalidade, por exemplo, só faz sentido se for realizada em globo – conjugando o Direito Constitucional e o Direito das Pessoas – o que gera uma profícua análise das bases constitucionais do Direito Civil, naquilo que já foi designado por “Direito Civil Constitucional”.
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pública sejam prevalentes estaremos no domínio da ordem heterónoma, de influência vertical, a que subjaz uma ideia de bem comum, ou seja no domínio do Direito Público. Se, pelo contrário, o âmago das situações jurídicas se reconduzir às pessoas enquanto indivíduos, à sua liberdade, aos seus direitos particulares, à sua atribuição e defesa, ao seu mundo privado e às relações jurídicas que estabelecem paritariamente, quer dizer, numa intersubjectividade tendencialmente horizontal, então estaremos no âmbito do Direito Privado. Sempre acentuando que a distinção não assenta em pressupostos de exclusividade, mas sim num critério de prevalência de uma faceta em relação à outra e a necessidade de permanente compatibilização entre Ordem Heterónoma e Autonomia Privada – já que só ela conduz ao estudo compreensivo da Ordem Jurídica Global – demonstrar-se-á que o Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas deve ser entendido como ramo do Direito Privado e mesmo como uma das suas pedras angulares, com a relevância daí decorrente em sede de interpretação e aplicação das normas. 3. É, além disso, direito comum, já que tendo como conteúdo fundamental dados pré-jurídicos e extra-jurídicos que antecedem ontologicamente a própria realidade normativa, constitui o tronco central aplicável à generalidade dos casos e subsidiária de outros ramos de direito que se apresentam e, muitas vezes, se justificam como suas variantes. O Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas inclui, pois, no seu âmbito as pessoas, os bens e as situações jurídicas (particularmente as acções), ponto de partida e antecedentes do todo o Direito compaginando-as com institutos jurídicos, figuras e processos de exercício que são comuns aos ramos especiais que dele derivam e nele encontram a sua fonte primigena. Demonstrar-se-á, assim, que o Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas, enquanto parcela da Teoria Geral do Direito Civil, é subdivisão essencial do Direito Privado Comum14 e, como tal, matriz de toda a cultura jurídica. A.4 – PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS E ORDENADORES 1. Apesar da insuficiente estruturação científica da categoria sistemática Direito Civil15 existe hoje aquilo que podemos considerar uma consonância substancial sobre os Princípios Gerais ou Fundamentais e Ordenadores deste Para maiores desenvolvimentos sobre a qualificação do Direito Civil como Direito Privado Comum – o que pressupõe, naturalmente, uma leitura com as restrições resultantes do âmbito da nossa cadeira – vide, por todos, OLIVEIRA ASCENSÃO, “Direito Civil – Teoria Geral”, Volume I, cit., págs. 9 e 10, PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, “Teoria Geral do Direito Civil”, cit., págs. 5 a 11 e CASTRO MENDES, “Direito Civil – Teoria Geral”, Volume I, págs. 13 a 39. 15 Apontada, por exemplo, por OLIVEIRA ASCENSÃO, “Direito Civil – Teoria Geral”, Volume I, cit., pág. 11. 14
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ramo de direito e, consequentemente, da nossa disciplina. PEDRO PAIS DE VASCONCELOS16, no que se afigura como um desenvolvimento sistematizado e aprofundado das ideias de OLIVEIRA ASCENSÃO17, enuncia-os distinguindo: 1º O Personalismo Ético; 2º O princípio da autonomia; 3º O princípio da responsabilidade; 4º O princípio da confiança e da aparência; 5º O princípio da boa fé; 6º O princípio da paridade jurídica; 7º O princípio da equivalência; 8º O reconhecimento da propriedade e a sua função; 9º O respeito pela família e pela sucessão por morte. Elegendo como princípios fundadores do seu pensamento jurídico o Humanismo Personalista e a Natureza das Coisas – de que as realidades físicas (entia physica) e as realidades morais (entia moralia) são elementos constitutivos – demonstrando o seu carácter extra-jurídico e pré-jurídico à qual o legislador tem de se submeter e que terá, necessariamente, de influenciar as suas opções, funcionando como “janelas do sistema”, o autor torna claro os alicerces que permitem a sua construção dogmática. 2. Aderimos sem reserva a esta formulação, cujos pressupostos jusfilosóficos partilhamos. Remeteremos, por isso, para a exposição e fundamentação do autor evitando uma duplicação inócua e desnecessária. Acrescentaremos apenas duas notas que nos parecem importantes. Em primeiro lugar, procuraremos demonstrar que os oito últimos princípios enunciados por PEDRO PAIS DE VASCONCELOS mais do que princípios autónomos são uma decorrência do primeiro. De facto, entendemos que é o Personalismo Ético ou, se quisermos, o Humanismo Personalista que justifica que as pessoas sejam livres e que esse âmbito de liberdade seja a mola impulsionadora de toda a vida social e jurídica, e que, por via disso, respondam pelos actos que em consciência pratiquem. É também ele que impõe um comportamento honesto, honrado, decente, próprio de pessoas de bem que gere a confiança essencial ao são relacionamento. É ainda ele que pressupõe a tendencial igualdade jurídica e equilíbrio de tratamento que devem presidir à sua actividade enquanto sujeitos de direito e à perequação desejável de justiça. É finalmente dele que decorrem a necessidade de reconhecimento da propriedade privada, sem prejuízo da sua função social, 16 17
“Teoria Geral do Direito Civil”, cit., págs. 11 a 30. “Direito Civil – Teoria Geral”, Volume I, cit., pág. 10 e seguintes. Mau grado a crítica que o autor formula a MOTA PINTO e, por remissão, a CARVALHO FERNANDES, entendemos que as posições destes autores se aproximam, através de via distinta, das dos dois autores supracitados.
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e da família – núcleo primeiro e mais importante de uma sociedade que parta de valores sólidos e perenes e recuse um hedonismo que a corroa – e da sucessão por morte, vista não apenas como instituto meramente patrimonial, mas também como uma manifestação do respeito pela memória, pela obra e pelos ideais daqueles que nos antecederam, como formas de realização do ser humano e da sua personalidade. Os princípios da autonomia, da responsabilidade, da confiança e da aparência, da boa fé, da paridade, da equivalência, o reconhecimento da propriedade e a sua função e o respeito pela família e pela sucessão por morte são, assim, espécies do género Personalismo Ético, através dos quais o desfibramos e concretizamos. O segundo aspecto que iremos realçar tem precisamente a ver com este último ponto. Os princípios gerais e fundamentais são também ordenadores e concretizadores. Quer dizer, eles terão de ser levados em linha de conta pelo jurista nos diversos momentos da sua actividade, com as consequências inerentes, quer em termos de valoração interpretativa – da lei e do negócio jurídico – quer no que tange à própria aplicatio. Ficarão, deste modo, reflectidos os princípios delimitadores e orientadores do quadro geral da disciplina. B – AS PESSOAS B.1 – AS PESSOAS SINGULARES 1. Em consonância com o que anteriormente expusemos a pessoa, o ser humano, terá o papel central em toda a nossa abordagem. O Homem é a razão de ser e o fim de todo o Direito. É o seu alfa e o seu ómega. Naturalmente dele partiremos porque a ele pretendemos chegar. Ultrapassada a visão redutora da pandetística oitocentista18, que o reduzia a mero sujeito de relações jurídicas, o Homem retoma a sua dignidade imanente no âmago do sistema jurídico. O Homem – fundamento ontológico de todo o Direito – é, pois, o primeiro 18
O abandono da estrutura da relação jurídica está hoje completado. Com génese nas investigações de GOMES DA SILVA e de OLIVEIRA ASCENSÃO – que já na sua tese de doutoramento dava contributos decisivos sobre o tema – este abandono está hoje solidificado, ao menos nos autores com que mais nos identificamos, como são os casos do próprio OLIVEIRA ASCENSÃO e PEDRO PAIS DE VASCONCELOS. Vide, OLIVEIRA ASCENSÃO, “Direito Civil – Teoria Geral”, Volume I, cit., págs. 29 e 30 e passim e PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, “Teoria Geral do Direito Civil”, cit., págs. 30 a 34 e passim. Os dados extra-jurídicos invocados pelo primeiro e as janelas do sistema constitutivos da Natureza das Coisas apontados pelo segundo são apenas duas perspectivas de encarar a mesma realidade.
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e mais importante dado pré-jurídico e extra-jurídico19 que se impõe ao jurista e que importa analisar. As Pessoas antecedem o Direito e sendo-lhe prévias têm de ser entendidas na sua individualidade e no âmbito da sua inserção no tecido social em que, obrigatoriamente, vivem e se relacionam. É, por conseguinte, o legislador que tem que se submeter a esta como às outras realidades pré-jurídicas, criando estruturas normativas que as enquadrem de um ponto de vista substancial e não meramente formal e, desse modo, proporcionando uma vivência pessoal e social tão harmoniosa quanto possível. Isto não significa que o Direito não tenha de intervir na modelação destas realidades que lhe são prévias. O Direito tem, necessariamente, de demarcar fronteiras e regras que ordenem e dêem contornos seguros às diversas figuras, permitindo a segurança jurídica e a operabilidade do sistema. 2. Partindo do que fica dito começaremos o estudo das pessoas singulares pela personalidade jurídica que é, precisamente, a qualidade de ser pessoa. É uma realidade qualitativa fundamental mas que não basta para o desenvolvimento subsequente da matéria. Há que fornecer, desde logo, uma série de conceitos básicos que são essenciais para o estudo posterior e transversais, relativamente não só a esta cadeira mas também a muitas (atrevemo-nos a dizer todas) as que se seguirão no plano de curso. Assim, a problemática do início e termo da personalidade, a capacidade de gozo e de exercício20, a legitimidade, os estados, a esfera jurídica, o património, o domicílio serão sequencialmente abordados mostrando a relevância teórica mas sobretudo prática dos conceitos. A demarcação inicial permitir-nos –á, ainda, dar um sentido substancial ao conceito de personalidade jurídica. Desse modo, verificaremos quão incorrecta é a assimilação que alguns autores fazem entre a personalidade das pessoas singulares e a das pessoas colectivas tornando o conceito de personalidade em algo inócuo e desvirtuando o sentido de ambas. A personalidade das pessoas singulares inerente à grandeza e dignidade humana não pode ser colocada, ontologicamente, no mesmo plano da personalidade das pessoas colectivas e funda-se em princípios de Direito Natural cuja concretização se sobrepõe a eventuais normas de Direito Positivo que os contradigam. Como retomaremos quando destas tratarmos, isto não significa qualquer Preferimos a expressão pré-jurídico a pré-legal já que esta última poderá ser entendida no sentido de que a lei é a fonte de toda a juridicidade, ideia que não corroboramos. 20 O mero enunciado dos conceitos a abordar e a sua autonomização afasta-nos, neste ponto, de autores como ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO e MANUEL DE ANDRADE, que tendem a unificar personalidade jurídica e capacidade de gozo, posição que, como se disse, não subscrevemos. 19
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menosprezo por estes outros actores da vida social e jurídica, mas cujo verdadeiro significado só pode ser entendido em função dos seres humanos e da prossecução dos fins destes. Intimamente ligada com esta matéria estão os designados direitos de personalidade. A terminologia está consagrada e não merecerá o nosso repúdio, ainda que não mereça a nossa concordância. De facto, de Direito de Personalidade se deveria falar21. Os ditos “direitos de personalidade” são faculdades daquele grande direito. São diferentes facetas de uma mesma realidade: a Personalidade Humana. Por tradição e por economia de tempo – que não nos permite elaborar detalhadamente sobre o tema – continuaremos a falar de direitos de personalidade, não sem antes alertar para a opção que entendemos como preferível. Os Direitos de Personalidade deveriam ser, só por si, objecto de uma disciplina autónoma que nos permitimos sugerir. Na sua falta teremos de tratá-los no âmbito da nossa cadeira e concederlhes-emos espaço privilegiado. Partindo do seu carácter ontológico, traçaremos o seu quadro natural e legal – este através dos preceitos constitucionais e do Código Civil. Demonstraremos a existência de dois níveis de direitos de personalidade. O primeiro inerente ao ser pessoa e dele indissociável – de que o direito à vida e liberdade são exemplos, entre muitos outros – é constituído por um núcleo de situações jurídicas indeléveis, que não carecem de positivação e que, se for caso disso, se sobrepõem a qualquer norma jurídica que os ponha em causa. O segundo, se bem que resulte ainda de uma ligação íntima à pessoa, já não se funda em valores fundamentais, pelo que fica aberto a uma modelação do legislador. O direito à imagem é disto exemplo paradigmático. 3. Superada a indagação essencial referida no ponto anterior dedicaremos de seguida a nossa atenção a uma série de institutos que importa dilucidar e distinguir. Não traremos novidade ao tratar das incapacidades, sendo apenas de salientar que, além da menoridade, da interdição e da inabilitação, dos seus meios e formas de suprimento e restante regime, incluiremos como sua modalidade a incapacidade acidental. Mau grado a inserção sistemática da norma onde tem o seu assento legal – artigo 257º do Código Civil – e esclarecendo a razão de ser de tal aparente discrepância, demonstraremos que os pressupostos que geram a consagração legal das restantes incapacidades também aqui se encontram e que os objectivos 21
Como PEDRO PAIS DE VASCONCELOS demonstrou, “Teoria Geral do Direito Civil”, cit., pág. 38 e segs. e, especialmente, na sua obra fundamental dedicada ao tema, “Direito de Personalidade”, na esteira de OLIVEIRA ASCENSÃO, “Direito Civil – Teoria Geral”, Volume I, cit., pág. 63 e seguintes.
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da figura são, por isso, paralelos22. Tão pouco desvirtuaremos o sentido geral da exposição em sede de ausência – aludindo aos seus fundamentos, aspecto essencialmente patrimonial, vertente pessoal e objectivos relativamente à salvaguarda do próprio ausente e dos seus sucessores. O regime da curadoria provisória, da curadoria definitiva e da morte presumida, bem como o relativo aos bens que sobrevierem ao ausente encerrará, assim, o nosso capítulo relativo às pessoas singulares. B.2 – AS PESSOAS COLECTIVAS 1. Como já se afirmou e nunca é demais realçar as pessoas colectivas não se encontram no mesmo plano ético e ontológico do das pessoas singulares. Só por analogia poderão ser assimiladas com estas, sem que isso signifique a construção de um conceito de personalidade jurídica unívoco que seria forçosamente vazio de conteúdo e de interesse diminuto. À natureza da personalidade colectiva dedicaremos a primeira parte do seu estudo. Depois de sumariarmos as várias teorias que procuram explicar esta nova realidade apresentaremos a solução que se nos afigura adequada. As teorias do património – fim, do património colectivo, as teorias orgânicas23, as teorias negativistas, as teorias normativistas e, especialmente, os ficcionismos personalistas e patrimonialistas serão sequencialmente apresentados. Tudo isto nos servirá para formularmos a solução que entendemos como preferível: uma teoria da realidade jurídica analógica. Propugnaremos o abandono de todas as teses ficcionistas – o Direito não se baseia em ficções, mas sim na realidade tal como ela se configura. A analogia com as pessoas singulares impõe a distrinça do que a própria natureza dos dois tipos de pessoas impõe e uma equiparação nos estritos limites em que as semelhanças se verifiquem. A teoria da realidade jurídica que defendemos não significa qualquer adesão às teses daqueles que entendem que a personalidade colectiva resulta de uma realidade social que se impõe ao legislador e que este, forçosamente, se limita a reconhecer. Pelo contrário, a realidade jurídica que consideramos como decisiva aferese em função dos fins a prosseguir e é nesse sentido que estas entidades ganham uma dimensão socialmente relevante. Tal como as restantes incapacidades, também a incapacidade acidental se funda numa diminuição das faculdades das pessoas, natural ou transitória, e o seu regime visa proteger a pessoa do incapaz. 23 Assinalaremos a espantosa produção jurídica relativa a algumas destas teses. Largas páginas foram dedicadas – algumas elaboradas por autores insignes – à demonstração do que eram o cérebro, o coração, outros órgãos e até os membros da pessoa colectiva. Aquilo que hoje nos parece ridículo foi fruto de uma época e de uma visão do Direito que importa explicar. 22
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É a realidade desses fins sociais a prosseguir, que pode ser ou não antecedida por uma existência social, que justifica a personificação24. As pessoas colectivas são uma exigência da vida hodierna. Mas são-no, precisamente, porque através delas se podem prosseguir finalidades que não poderiam (ou só com mais dificuldade poderiam) ser atingidas através de acções individuais. É nesse sentido, enquanto entes essenciais para a obtenção dos fins das pessoas singulares e meios privilegiados para a realização destas, que as pessoas colectivas são também uma exigência de Direito Natural. Isto não significa que o legislador não tenha uma ampla margem de manobra na demarcação das figuras o que, diga-se, não se confunde com arbitrariedade. À ordem heterónoma impõe-se uma avaliação programática e valorativa que justifique as suas opções e os diversos modelos que permite. O que fica dito tem óbvias consequências quer a nível dos tipos permitidos, quer a nível dos traços distintivos das diferentes pessoas colectivas. Muitas vezes só uma gradualidade nos permite o cabal entendimento dos conceitos jurídicos e dos próprios entes colectivos. A autonomia patrimonial e a sua variação consoante o tipo de pessoa colectiva envolvido é disso exemplo flagrante. 2. Depois deste aspecto introdutório basilar sobre a natureza da personalidade colectiva e o seu significado entraremos com maior detalhe no regime das principais pessoas colectivas. Fazendo a transição com o que foi anteriormente explicitado, daremos particular realce aos princípios da tipicidade e da especialidade, realçando, no que toca a este, que não se refere a limites decorrentes da capacidade da pessoa colectiva mas sim relativos à sua finalidade. Seguidamente enunciaremos as principais classificações das pessoas colectivas, para, depois de esclarecermos que o âmbito do nosso estudo tem como objecto primordial as de direito privado e partindo da dicotomia pessoas colectivas de tipo corporativo – pessoas colectivas de tipo fundacional, tratar da suas três principais modalidades: associações, fundações e sociedades25. Analisá-las-emos detalhadamente, aproveitando, nomeadamente, para esclarecer o sentido e o significado da chamada representação orgânica e procurando obstar a confusões que o emprego da palavra representação em diversos sentidos pode originar. 24
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A personificação sem realidade social pré-existente é facilmente demonstrável – veja-se a constituição de empresas públicas ou associações de fins filantrópicos nascidas da necessidade de socorrer vítimas de cataclismos naturais – mas a situação inversa também ocorre e o próprio legislador disso se faz eco ao regular (artigos 195º a 201º-A do Código Civil) as associações sem personalidade jurídica e as comissões especiais, figuras que também merecerão a nossa atenção. Teremos ocasião de distinguir as sociedades civis das sociedades comerciais, fundamentalmente em função do objecto, e procuraremos demonstrar que essa separação, de que durante décadas resultou o não reconhecimento da personalidade colectiva das primeiras, que alguns continuam a sustentar, só pode ser consequência de uma anacrónica tradição jurídica que urge ultrapassar.
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Aproveitaremos para, dando continuidade à dimensão prospectiva da disciplina, fazer uma breve incursão no Direito Comercial, procedendo à distinção dos vários tipos de sociedades comerciais – matéria tanto mais relevante quanto é certo que as sociedades civis se podem constituir segundo um destes tipos. Finalizaremos o estudo das pessoas colectivas tratando do problema da desconsideração da sua personalidade. Fá-lo-emos não só por o tema nos ser particularmente caro26, mas também por se tratar de uma matéria de enorme actualidade e demonstrativa das vicissitudes que as pessoas colectivas e a vida em geral enfrentam. Sendo tema praticamente desconhecido e só embrionariamente tratado no momento em que publicámos a nossa obra, pode-se afirmar que a desconsideração é actualmente um tema central – e mesmo da moda27 - ocupando lugar de destaque na doutrina e na jurisprudência28. Será, obviamente, a nossa monografia o elemento de estudo fundamental sobre a matéria e para ele, naturalmente, remeteremos. Duas notas apenas para referirmos que na nossa exposição se imporá uma explicação da razão de ser do nosso trabalho ser dedicado à desconsideração nas sociedades comerciais de responsabilidade limitada – o que se tornará compreensivo quando demonstramos que só relativamente a estas faz sentido a consagração de uma cláusula geral de desconsideração – e para salientarmos que daremos particular ênfase ao abuso de instituto objectivo que se verifica nesta figura, como manifestação duma problemática mais geral. Isto nos permitirá aprofundar um pouco mais a problemática da responsabilidade limitada e das sociedades comerciais – continuando a abrir novos horizontes jurídicos – e aflorarmos um ponto que teremos ocasião de desenvolver quando tratarmos das situações jurídicas contrapondo o abuso de direito ao abuso de instituto e apresentando os direitos subjectivos e os institutos jurídicos como pilares fundamentais, mas diferenciados, do Direito. A desconsideração será, por conseguinte, o tema ideal, a título conclusivo Foi nossa a primeira monografia em Portugal que a abordou – vide, “A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais”. 27 O que também não é positivo, já que tende a ser utilizada sem critério e para questões onde não se justifica a sua aplicação, desvirtuando o verdadeiro sentido e significado da figura. 28 Sem pretensões de exaustividade, e cingindo-nos apenas a decisões dos tribunais superiores, vejam-se, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20/02/2001 (Relator: PINTO MONTEIRO); 27/06/2002 (Relator: OLIVEIRA BARROS); 01/10/2002 (Relator: PINTO MONTEIRO); 11/02/2003 (Relator: PINTO MONTEIRO); 13/03/2003 (Relator: OLIVEIRA BARROS); 18/03/2003 (Relator: PINTO MONTEIRO); 16/11/2004 (Relator: PINTO MONTEIRO); 09/12/2004 (Relator: PINTO MONTEIRO); 31/05/2005 (Relator: FERNANDES MAGALHÃES); 10/01/2007 (Relator: PINTO HESPANHOL) e 26/06/2007 (Relator: AFONSO CORREIA). Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 03/05/2001; 22/01/2004; 05/02/2004; 03/03/2005; 27/06/2006 e 24/01/2007. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25/10/2005. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08/03/2006. Estes e outros arestos podem ser facilmente encontrados através de busca na Internet. 26
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e prospectivo, para encerrar o círculo atinente às pessoas colectivas, dando-lhe a globalidade adequada. C – OS BENS 1. No âmbito desta disciplina, e não obstante a sua referência não constar da designação da cadeira, impõe-se o estudo dos bens. Os bens, tal como as pessoas, são dados pré-jurídicos e delas indissociáveis. A indispensabilidade de tratamento dos bens no âmbito da disciplina releva a dois níveis: - O primeiro de ordem programática, já que permite quebrar o hiato sistemático que resulta do já assinalado desdobramento artificial da Teoria Geral do Direito Civil, permitindo, em paralelo, analisarmos a sua substancialidade, enquanto realidade pré-jurídica, e a sua funcionalidade como objecto de situações jurídicas, estabelecendo, deste modo, uma ponte que permitirá uma abordagem sem interstícios que dificultariam um entendimento harmonioso dos vários conteúdos da cadeira; - O segundo de ordem pragmática, já que a sua inclusão no âmbito do Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas desvia-os da já de si densa matéria da Teoria Geral do Negócio Jurídico o que permitirá que nesta última disciplina sejam tratadas e aprofundadas todas as restantes matérias que cabem no seu escopo e que, por razões meramente temporais, são insuficientemente desenvolvidas. Por razões dogmáticas e de articulação interdisciplinar os bens têm aqui o seu assento correcto. Entrando na parte expositiva diga-se, desde logo, que nos afastaremos da sinonímia que muitas vezes se estabelece entre bens e coisas. Estas são, seguramente, espécie daqueles mas não esgotam o género. Nos bens cabem ainda os designados bens de personalidade, e num sentido amplo – que não acompanhamos – as prestações e os próprios direitos29. Partindo da impostação de GOMES DA SILVA30 que entende os bens como os meios extra-jurídicos, físicos ou intelectuais, que permitem realizar objectivos humanos31, deslocar-nos-emos para a noção de coisa. Depois da análise crítica da noção legal constante no artigo 202º do Código Civil, que peca pela excessiva amplitude e pela inutilidade prática, delimitaremos adequadamente o conceito, que será instrumental para o estudo subsequente. Ao incluir estas realidades no conceito de bem está-se por via ínvia a retomar a ideia de bem como objecto de relações jurídicas e, consequentemente, a recentrar nestas a demarcação de todo o Direito Civil e a desvalorizar, concomitantemente, todos os benefícios que resultam da consideração dos dados pré e extra-jurídicos. 30 Que OLIVEIRA ASCENSÃO e PEDRO PAIS DE VASCONCELOS seguem, com pequenas cambiantes. 31 Vide, GOMES DA SILVA, “O Dever de Prestar e o Dever de Indemnizar”, pág. 49. 29
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Entendida coisa, em sentido jurídico, como tudo o que não sendo pessoa tenha utilidade, individualidade e susceptibilidade de apropriação e esclarecido o sentido das três características apontadas, salientaremos o carácter dinâmico como os bens em geral e as coisas em particular devem ser analisados e compreendidos32. As coisas não são realidades estáticas, são sim funcionais. Quer dizer, só em face das diversas utilizações que, finalisticamente, as pessoas delas façam ganham a sua verdadeira dimensão. A mesma coisa pode, consoante o uso que dela se fizer, ser suporte material de uma obra artística, objecto de ornamentação, instrumento utilitário ou arma de um crime. Só nesta perspectiva finalista, vistas como principais instrumentos da realização humana, de satisfação dos seus interesses, as coisas ganham o seu verdadeiro significado. As coisas, apesar de exteriores e distintas do Homem, só se apreendem em todas as suas virtualidades como meio de realização do ser humano e o seu regime é estipulado e varia na razão directa das afectações que delas se façam. 2. Traçadas as linhas directoras sobre as coisas e tendo já abordado criticamente a noção inane que resulta do artigo 202º do Código Civil, procederse-á à enumeração e explicação das suas principais classificações. Como se sabe, o número de classificações de coisas é incontável e varia de autor para autor, dependendo muitas vezes de questões filológicas. Em face da referida multiplicidade, e de modo a tornar mais acessível o estudo da matéria, partiremos das sete classificações enunciadas no próprio Código Civil (artigo 203º). Ver-se-ão, pois, as distinções entre coisas móveis e imóveis (artigo 204º e 205º); coisas simples e coisas compostas (artigo 206º)33; coisas fungíveis e não fungíveis (artigo 207º); consumíveis e não consumíveis (artigo 208º); divisíveis e indivisíveis (artigo 209º); principais e acessórias (artigo 210º)34; presentes e futuras (artigo 211º). Depois de salientar que esta última não respeita propriamente a uma classificação de coisas mas sim a uma valoração jurídica da situação em que a coisa se encontra relativamente a sujeitos determinados, falaremos ainda dos frutos (artigos 212º a 215º) e das benfeitorias (artigo 216º) – que, não sendo coisas, são tradicionalmente tratadas aquando do estudo destas. As diversas classificações serão encimadas por outra que não constando Afastamo-nos, portanto, de uma concepção ampla ou maximalista de coisa, como a que parece decorrer do artigo 202º do Código Civil, que englobaria prestações, direitos e até pessoas. As coisas corpóreas e incorpóreas que adiante referiremos esgotam a categoria. 33 Sobre esta classificação anotaremos a assimilação incorrecta que o legislador faz entre coisa composta e universalidade de facto. Estas últimas, como se sabe, são coisas colectivas e não compostas pelo que aproveitaremos a oportunidade para estabelecer a distinção. 34 Distinguir-se-á, obviamente, aquando do estudo desta classificação, coisas acessórias de partes integrantes, matéria que geralmente gera grande confusão, mormente na aplicação prática. 32
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do elenco legal tem importância primordial; a que se estabelece entre coisas corpóreas e incorpóreas. Isto nos permitirá abordar o tema dos bens intelectuais e, com isso, apresentar os prolegómenos do Direito de Autor e do Direito Industrial – matérias que à falta de disciplinas específicas no plano do curso geral, merecerão tratamento subsequente quando referirmos as situações jurídicas. As classificações só fazem sentido numa dupla vertente: enquanto factor de aprendizagem, facilitando a compreensão das matérias e enquanto instrumento relevante de interpretação e aplicação de normas, com influência directa nos diferentes regimes jurídicos. Daremos, por isso, particular enfoque àquelas que acarretam discrepâncias de regimes e que, concomitantemente, estabelecem pontes com outros ramos de direito – cumprindo, assim, o objectivo prospectivo a que nos propusemos. Só para dar dois exemplos a distinção entre coisas móveis e imóveis que terá reflexos inequívocos no estudo dos Direitos Reais ou a já citada classificação de coisas corpóreas e incorpóreas indispensável para os Direitos Intelectuais, merecerão, necessariamente, desenvolvimento aprofundado. Tentar-se-á, no entanto, ao longo de toda a exposição não perder de vista dois aspectos fundamentais: - A visão funcional e operativa do conceito de bem. - O entendimento social de bem decisivo para a sua classificação e qualificação35. D – AS SITUAÇÕES JURÍIDICAS E O EXERCÍCIO JURÍDICO 1. Depois de referirmos, sumariamente, o terceiro pilar pré-jurídico que completa a tríade em que assenta toda a estrutura do Direito Civil – os factos jurídicos, os actos jurídicos e as acções36 - o que nos permitirá evitar a perda de coerência sistemática que resulta do salto lógico imposto pelo já assinalado desmembramento da Teoria Geral em duas disciplinas, dedicaremos a parte final do nosso estudo às situações jurídicas37. Como costumamos ensinar – retomando a distinção entre coisas compostas e colectivas – não se diz que: vão ali quatro rodas, cinco portas, três limpa vidros, dois pára-choques, etc… Diz-se: vai ali um carro, que normalmente até designamos pela marca. 36 Não se infira do que fica enunciado que as acções não mereçam uma atenção especial, que decorre do seu papel fundamental enquanto actos finalisticamente dirigidos do ser humano. São elas, sem dúvida, o mais importante facto jurídico (em sentido amplo). Acontece, porém, que a relevância que lhes é, normalmente, outorgada faz, muitas vezes, subvalorizar excessivamente os factos jurídicos (em sentido estrito) e os actos jurídicos o que nos parece manifestamente incorrecto. 37 Sem prejuízo de alertarmos os alunos que um estudo aprofundado destas matérias ficará reservado para a disciplina de Teoria Geral do Negócio Jurídico, o que nos permitirá, simultaneamente, estabelecer o indispensável traço de união entre as duas cadeiras. 35
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2. Retiraremos então vantagem dos pressupostos onde baseámos a nossa análise, não forçando, artificialmente, a entrada das situações jurídicas no âmbito dos dados pré e extra-jurídicos que delineámos. As situações jurídicas encontram-se já num plano lógico diferenciado. Não têm uma substância própria, não se encontram já no âmago ontológico – axiológico que constitui o eixo central do Direito. São, pelo contrário, operadores do sistema jurídico moldados pela necessidade de as pessoas viverem e agirem no seio de uma comunidade numa tensão permanente com os outros membros do tecido social38. Após esta demarcação prévia encetaremos a análise detalhada das situações jurídicas partindo da figura de relação jurídica. A escolha deste ponto iniciático tem, a nosso ver, evidente eficácia pedagógica. De facto, só por abstracção e por motivos didácticos é possível individualizar as situações jurídicas. Na realidade elas encontram-se no agir humano, no quotidiano de todos nós, no seio da sociedade, no exercício jurídico39. Há, pois, que partir da relação social para através de correcta valoração atingirmos a relação jurídica e, desfibrando esta, as categorias mais genéricas, mais abrangentes, que constituem as situações jurídicas e as posições jurídicas. Chegados aqui poderemos delimitar de forma precisa o sentido dos três conceitos. Relações jurídicas, situações jurídicas e posições jurídicas – termo reservado às situações jurídicas unilaterais – serão então separadamente dissecadas tentando evitar um entendimento amalgamado das três realidades e um sincretismo pernicioso à sua posterior utilização enquanto instrumentos jurídicos operativos. O estudo destas figuras básicas supõe uma permanente atenção à sua inserção no exercício jurídico; queremos com isto dizer que não as analisaremos numa perspectiva estática em que só podem ser apreendidas através de um esforço de abstracção. Pelo contrário, há que encará-las sob o prisma duplo do ser e do dever
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A referência que lhes faremos terá, pois, um carácter meramente introdutório, sem que isso signifique uma intrusão na cadeira a leccionar no segundo ano, mas fomentando uma interligação que reequilibre a harmonia perdida com a divisão inusitada que temos vindo a salientar. Não podemos, pois, acompanhar OLIVEIRA ASCENSÃO quando considera as relações jurídicas como um quarto dado pré-legal. Parece-nos mesmo, com o devido respeito, que existe uma certa contradição com a afirmação do autor quando, em ponto ulterior da sua obra, e depois de se socorrer da noção mais genérica de situação jurídica de modo a abranger as situações valoradas pelo Direito que não são redutíveis à categoria intersubjectiva de relação, considera que as situações jurídicas não são já os elementos prévios e pré-legais pressupostos da disciplina normativa, mas sim o resultado dessa mesma disciplina. A ressalva que faz quanto ao carácter prévio da própria relação e para a qual remete, não merece o nosso acolhimento, sob pena de considerarmos a relação como algo externo às situações jurídicas e não como um modo diverso de abordagem da mesmo realidade, como é nosso entendimento. Neste sentido, sintomaticamente, PEDRO PAIS DE VASCONCELOS encima o estudo desta temática, no Título IV da sua já citada “Teoria Geral do Direito Civil” como “O Exercício Jurídico”.
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ser, numa sistemática integrada e interactiva que conjuga, incessantemente, a normalidade jurídica e a vida social verificando a validade dos conceitos – apresentados como modelos funcionais – em face da aplicação que, em concreto, deles se pode fazer. É da vida jurídica que se trata e essa não pode nem deve ser entendida desligada da sociedade a que diz respeito. Isto nos permitirá uma permanente aferição do sistema jurídico e o seu constante aperfeiçoamento. É, por conseguinte, do relacionamento social que teremos de partir para, não esquecendo as situações que derivam do simples facto de o Homem ser, como absoluto imanente e inamovível, capaz de criação espiritual e tendo, necessariamente, por imperativos éticos, de aceder aos meios hábeis para a realização da sua personalidade, entender o quadro jurídico em que estas realidades se inserem. Em suma: as situações jurídicas só podem ser adequadamente compreendidas enquanto modelos operativos inseparáveis do seu exercício concreto e da vida em sociedade. Não estamos, pois, no domínio do geral e abstracto mas sim no mundo jurídico concreto em que o ser humano se move. 3. No desenvolvimento do programa proposto e num plano mais específico, importa ainda salientar as linhas mestras que seguiremos. Assim, começaremos por enumerar e explicar sumariamente as principais situações jurídicas, activas e passivas. É um aspecto que nos parece de extrema importância, já que, muitas vezes a excessiva preocupação em dissecar direitos subjectivos e obrigações40 faz obnubilar a atenção que deve ser dada a uma série de outras situações jurídicas de inegável importância. Deste modo, faculdades ou poderes elementares, poderes genéricos, poderes funcionais, interesses juridicamente protegidos e interesses difusos, além dos direitos subjectivos – com especial referência aos direitos de personalidade e aos direitos potestativos, como suas modalidades – merecerão referência do lado activo, enquanto as vinculações ou abstracções simples, as obrigações ou deveres creditícios, os deveres genéricos, os deveres funcionais e as sujeições, representarão o contraponto do lado passivo. Os ónus, figura híbrida, com uma vertente activa e outra passiva, merecerão tratamento autónomo. Do que fica dito não se pode inferir, obviamente, que o direito subjectivo não ocupe um papel central no nosso programa. A ele dedicaremos parte substancial da nossa exposição por motivos que se torna desnecessário esclarecer. Seguindo as impostações de GOMES DA SILVA, OLIVEIRA ASCENSÃO e 40
A própria consideração da personalidade jurídica como susceptibilidade de ser titular de direitos e obrigações, tantas vezes repetida, é disso prova cabal.
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PEDRO PAIS DE VASCONCELOS e, noutra variante, de MENEZES CORDEIRO, manifestaremos, também aqui, que é o Homem e a sua liberdade que continuam a ser o valor primeiro a tomar em linha de conta. A posição pessoal de vantagem resultante da afectação de meios jurídicos aos fins das pessoas que apresentaremos a final como noção a adoptar será sustentada por uma prévia análise histórico-jurídica que dê notícia dos mais importantes e variados contributos sobre este tema fundamental. Seria estultícia da nossa parte pretender esgotar uma problemática desta envergadura e densidade. No entanto, apesar das limitações temporais, dedicar-lhe-emos parte substancial do nosso curso, até pelas repercussões que envolve para toda a formação jurídica de qualquer aluno de Direito41. Acrescente-se, ainda, que não deixaremos de assinalar a inexistência de direitos plenos, no que isso significa de direitos como conjunto de posições jurídicas activas sem qualquer tipo de limitação. Tal visão serôdia do direito subjectivo, fruto de uma concepção própria do cidadão comum, não pode ser acompanhada pelo jurista, que tem de compreender desde o início da sua formação que o direito subjectivo, e bem assim as restantes situações jurídicas activas, são uma realidade complexa na qual se incluem posições activas e passivas, sendo que estas não constituem limites extrínsecos, mas, outrossim, elementos do seu conteúdo. A qualificação de uma situação jurídica como activa ou passiva tem, assim, a ver com a vertente predominante desse conteúdo e não pode ser entendida num sentido de exclusividade. Intimamente ligada com esta está outra matéria fundamental que merece ser salientada. Referimo-nos ao abuso de direito. Pareceria escusado sublinhar esta importância mas fazemo-lo, não só para encarecer o seu significado, mas também para referir que o seu estudo será feito em paralelismo com outro tema que se afigura da maior relevância e que já foi referido a propósito da desconsideração da personalidade jurídica das pessoas colectivas – o abuso de instituto. Os institutos jurídicos – pilar essencial do sistema normativo – e a sua desfuncionalização são um tema cuja actualidade e relevância são evidentes. Lado a lado com o abuso de direito há, pois, que estudá-lo, completando o que já anteriormente tinha sido delineado. O estudo dos direitos subjectivos não será completado sem que façamos uma breve abordagem de algumas das suas principais manifestações. Daremos particular ênfase àqueles que permitem um relacionamento com outros ramos de direito, mais uma vez em coerência com o plano que começámos 41
Naturalmente as principais classificações e modalidades de direitos subjectivos serão detalhadamente inseridos no plano de análise.
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por demarcar. Assim, falaremos do direito de propriedade, apontado como paradigma dos direitos absolutos e com isso abriremos horizontes para os Direitos Reais e partindo dele e da inadequada assimilação que se estabelece com a dita “Propriedade Intelectual”, daremos algumas noções básicas sobre Direito de Autor e Direito Industrial, criticando aquela qualificação e preenchendo, ainda que rudimentarmente, uma lacuna que se nos afigura grave, dado não existir no plano de curso qualquer disciplina que verse aquelas matérias da maior actualidade e interesse. Tentaremos, pois, através desta nova incursão promover a heurística dos alunos, incentivando o seu sentido de investigação. Finamente, reconduzidas ao seu verdadeiro significado, não como tronco central de todo o Direito Civil que o delimita e engloba, as relações jurídicas serão retomadas na sua essência – como dínamo e operador fundamental do agir jurídico – abrindo espaço e caminho ao estudo vindouro do negócio jurídico, condensando os conhecimentos adquiridos e encerrando o círculo lógico que iniciáramos. 4. Na demarcação dos conteúdos que justificam o programa a apresentar dois últimos aspectos devem ser realçados. O primeiro prende-se com o facto de abarcarmos a representação voluntária no âmbito desta disciplina. De facto, tendo a representação voluntária na sua génese a procuração – negócio jurídico unilateral por excelência – poderia parecer que o lugar natural desta matéria seria a Teoria Geral do Negócio Jurídico. Sem prejuízo de retomarmos o tema (ao menos por remissão) na citada disciplina, entendemos, contudo, que é no Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas que deverá ter assento. Inserimo-la aqui por três ordens de razões. Uma de natureza jus-científica. Sendo a representação um instituto jurídico que se traduz no agir jurídico em nome de outrem com imputação na esfera jurídica da pessoa em cujo nome se actua42, afigura-se-nos como metodologia correcta tratar do fenómeno em conjugação com os outros tipos de representação – legal e orgânica – de molde a permitir uma visão global do instituto, assinalando os traços comuns e verificando o que, mau grado a expressão similar, são aspectos distintivos e aproveitando para proceder à análise de figuras afins43. Outra de índole pedagógico-funcional ou, se quisermos de eficácia pedagógica. Na verdade, a opção que tomámos permite uma distribuição equitativa das matérias não sobrecarregando a Teoria Geral do Negócio Jurídico, disciplina cuja densidade excessiva já se assinalou e que impede ou, pelo menos, Havendo, por isso, quem encontre a sua fonte originária na injunção bíblica de que “Aquilo que mudares na Terra será mudado no Céu”. 43 V.g., distinguindo representante de núncio. 42
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prejudica gravemente o tratamento de temas essenciais44. Finalmente o tratamento da representação voluntária na cadeira de Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas possibilita, além de um desenvolvimento mais aprofundado da matéria, a interligação com os conteúdos constitutivos da Teoria Geral do Negócio Jurídico, estabelecendo mais uma ponte que fomente e promova a compreensão holística do Direito Civil, que apontámos, desde a primeira hora como um dos objectivos centrais do nosso ensino45. Um segundo aspecto que importa sublinhar refere-se ao último capítulo do programa, relativo ao tempo e à estabilização das situações jurídicas. Trata-se de uma problemática transversal que poderia ser tratada sem dificuldade e sem óbices relevantes na disciplina subsequente. Entendemos, contudo, que só uma visão abrangente desta temática proporcionará a compreensão da sua devida dimensão46 evitando-se, deste modo, uma percepção redutora que poderia acarretar um incorrecto conhecimento dos fenómenos em análise e do seu âmbito de aplicação47. Sem prejuízo de uma abordagem mais elaborada, sobretudo no que toca à alteração de circunstâncias, com a consequente remissão para momento posterior, a prescrição, a caducidade e o não uso merecerão, desde já, a nossa atenção. VIII PROGRAMA DA DISCIPLINA DE DIREITO DAS PESSOAS E DAS SITUAÇÕES JURÍDICAS 1. Tendo sustentado, em grande traços, os conteúdos essenciais da disciplina de Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas estamos agora habilitados a apresentar o programa a desenvolver. 2. Não o faremos, contudo, sem antes enunciar os principais objectivos – gerais e específicos – que se visam atingir, de acordo, aliás, com uma prática institucionalizada na nossa Universidade e que se afigura como extremamente A nossa própria experiência no ensino das duas disciplinas motivou esta inflexão, já que no primeiro ano em que nos confrontámos com a divisão da Teoria Geral do Direito Civil nestas duas cadeiras semestrais inserimos a representação negocial na Teoria Geral do Negócio Jurídico e tivemos oportunidade de verificar os inconvenientes assinalados. 45 A opção tomada não significa que devamos transcurar o tratamento da representação voluntária e da procuração em sede de negócio jurídico, que serão retomadas e merecerão a atenção devida nesse âmbito e cujo enquadramento só beneficiará com a antecipação que propugnamos. 46 A caducidade dos direitos intelectuais, espécies de direitos absolutos é prova insofismável do que fica dito. 47 Acompanhamos, assim, PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, quando na 4ª edição da sua já citada “Teoria Geral do Direito Civil” – págs. 357 a 379 – e num primeiro esboço de redistribuição das matérias em razão da sua novel divisão e semestralização inclui este capítulo de acordo com a sistematização defendida. 44
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útil para os alunos como carta de intenções indiciadora das tarefas a prosseguir. 3. Impõe-se ainda realçar que o ambicioso programa que se apresenta não significa um desenvolvimento uniforme das matérias dele constantes. É, naturalmente, necessária uma temporização dos conteúdos a leccionar, escrutinando os temas essenciais a aprofundar e sindicando, simultaneamente, a apreensão efectiva que ocorra face à diferente complexidade dos mesmos. Tudo isto sem prejuízo de uma abordagem tópica de todas as matérias inseridas no programa, de que os estudantes têm conhecimento prévio, procurando o seu escrupuloso cumprimento. OBJECTIVOS DA DISCIPLINA DE DIREITO DAS PESSOAS E DAS SITUAÇÕES JURÍDICAS Objectivos Gerais - Desenvolver o espírito crítico e a reflexão. - Adaptar às permanentes mudanças legislativas. - Perspectivar a importância jurídica da pessoa como suporte da situação jurídica. - Interiorizar a importância dos conceitos de pessoa, de bem e de situação jurídica. - Fomentar a aquisição e a aplicação de um saber assente no estudo, na reflexão crítica e na capacidade de valoração. Capacidades/Aptidões - Investigar e recolher informação. - Realizar trabalho de projecto. - Desenvolver capacidades de avaliação e de decisão. - Utilizar adequadamente a linguagem jurídica. - Adquirir formação prática alicerçada no enquadramento teórico correlativo. - Escolher, de forma esclarecida, a inserção profissional na área jurídica mais adequada. Conhecimentos - Conhecer/compreender o conceito de pessoa jurídica. - Conhecer/compreender o conceito de bem. - Conhecer/compreender o conceito de situação jurídica. - Compreender a importância e a necessidade do Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas. - Compreender a conexão entre pessoa jurídica e situação jurídica. Objectivos específicos - Compreender /reconhecer os conceitos de personalidade jurídica, 402
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capacidade de gozo, capacidade de exercício, capacidade natural, titularidade, legitimidade, património, estados e domicílio. - Compreender/reconhecer os conceitos de pessoa singular e de pessoa colectiva. - Conhecer os diferentes fundamentos da pessoa singular e da pessoa colectiva. - Conhecer o regime jurídico básico a que se submete a pessoa singular e a pessoa colectiva. - Conhecer os principais direitos de personalidade e a sua conexão com os direitos, liberdades e garantias. - Incorporar a transcendência do ser humano para o Direito. - Compreender/reconhecer o conceito de bem. - Compreender/reconhecer o conceito de situação jurídica e as suas diversas classes. - Conhecer as diversas modalidades de aquisição de direitos. - Compreender a necessidade da imposição de limites ao exercício dos direitos subjectivos e, designadamente, do abuso de direito. - Compreender a necessidade de impedir o abuso de instituto. Competências - Saber reconhecer o papel do Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas na formação humanista do jurista. - Saber investigar e recolher informação. - Saber realizar trabalho de projecto. - Saber consultar, interpretar e utilizar diplomas legais. - Saber proceder à aplicação dos conhecimentos adquiridos a situações novas. Metodologia de ensino - Recurso a exemplos da vida quotidiana. - Resolução de casos concretos (case method). - Análise de legislação e de jurisprudência. - Participação em colóquios e debates. - Simulação de situações concretas da vida corrente. - Recurso à Internet. - Visionamento de filmes e documentários. - Visitas de estudo (em função da disponibilidade e da adequação temporal aos conteúdos programáticos). - Elaboração de trabalhos de investigação.
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PROGRAMA DA DISCIPLINA DE DIREITO DAS PESSOAS E DAS SITUAÇÕES JURÍDICAS Título I – Introdução 1. O Direito Civil como Direito Privado Comum. 2. Princípios Fundamentais e Ordenadores a. O personalismo ético. b. O principio da autonomia. c. O principio da responsabilidade. d. O principio da confiança e da aparência. e. O principio da boa fé. f. O principio da paridade. g. O principio da equivalência. h. O reconhecimento da propriedade e da sua função i. O respeito pela família e pela sucessão por morte. 3. Os dados extrajurídicos e as janelas do sistema: as pessoas, os bens e os factos jurídicos - as acções. Título II – As Pessoas Capítulo I – As Pessoas Singulares 4. A personalidade jurídica Direitos de personalidade Tutela jurídica da personalidade Direito geral de personalidade Direitos especiais de personalidade mais relevantes a Direito à vida b. Direito à integridade física e psíquica c. Direito à inviolabilidade moral d. Direito à honra e. Direito à privacidade As normas constitucionais e as regras especiais da Parte Geral do Código Civil sobre os direitos de personalidade Restrições ao exercício dos direitos de personalidade Extensão dos direitos de personalidade às pessoas colectivas 5. Início e termo da personalidade jurídica 6. A capacidade jurídica a. Capacidade de gozo b. Capacidade de exercício 7. A legitimidade 8. O estado civil 9. A esfera jurídica 10. O património 11. Domicílio e residência habitual 404
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12. Estatuto jurídico da ausência a. Curadoria provisória b. Curadoria definitiva c. Morte presumida 13. Incapacidades a. Incapacidade dos menores b. Incapacidade dos interditos e dos inabilitados c. Incapacidade acidental. Capítulo II – As Pessoas Colectivas 14. O exercício jurídico colectivo e a institucionalização de fins: a comunhão, a contratualidade, a organização e a personalização 15. Natureza da personalidade colectiva 16. O substrato e o reconhecimento das pessoas colectivas 17. A tipicidade das pessoas colectivas 18. Classificação das pessoas colectivas 19. O fim e o objecto social – O principio da especialidade e o princípio da tipicidade 20. A organização e a organicidade 21. A vinculação das pessoas colectivas 22. A responsabilidade das pessoas colectivas 23. As associações 24. As fundações 25. As sociedades civis simples, as sociedades civis sob forma comercial e as sociedades comerciais. 26. As associações sem personalidade e as comissões especiais 27. A desconsideração da personalidade colectiva. Título III – Os Bens 28. Bens jurídicos e coisas jurídicas 29. Noção e características das coisas 30. Classificação das coisas a. Coisas corpóreas e incorpóreas b. Coisas no comércio e fora do comércio c. Coisas móveis e imóveis d. Coisas simples e complexas; compostas e colectivas e. Coisas fungíveis e infungíveis f. Coisas consumíveis e não consumíveis g. Coisas divisíveis e indivisíveis h. Coisas presentes e futuras i. Coisas principais, acessórias e partes integrantes j. Coisas frutíferas e infrutíferas: os frutos k. As benfeitorias. Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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Título IV – O Exercício Jurídico Capítulo I – As Situações Jurídicas, Relações Jurídicas e Direitos Subjectivos 31. Situações, relações e posições jurídicas a. Situações da vida e situações jurídicas b. Relações da vida e relações jurídicas c. A “relação absoluta” d. O absurdo linguístico e prático e. Conceito de relação f. A determinação dos sujeitos g. Tentativas de delimitação dos sujeitos h. A base teórica da concepção criticada i. Poder, dever e relação jurídica j. A posição da doutrina k. Relação jurídica e relação social l. A intersubjectividade. As relações jurídicas com coisas m. Relação jurídica entre poderes e deveres n. A relação jurídica não é necessariamente complexa o. A relação jurídica não é necessariamente simples p. Não é necessária a contraposição de uma posição activa a uma posição passiva q. Relação, poder e dever r. Conclusão sobre a relação jurídica – reconstituição do conceito s. Situações e relações socialmente típicas t. Posições jurídicas activas e posições jurídicas passivas 32. Bem, interesse e poder a. Noção jurídica de bem - remissão b. Noção jurídica de interesse c. Noção jurídica de poder 33. Poderes de gozo, poderes creditícios e poderes potestativos a. Poderes de gozo ou faculdades b. Poderes creditícios ou pretensões c. Poderes potestativos 34. O direito em sentido objectivo e em sentido subjectivo a. Direito objectivo e direito subjectivo b. As raízes do direito subjectivo c. A vontade e o interesse no direito subjectivo 35. O direito subjectivo como estrutura 36. O direito subjectivo como substância 37. Limites do direito subjectivo I. O abuso do direito e o abuso de instituto a. Contrariedade à boa fé b. Contrariedade aos bons costumes 406
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c. Desvio em relação ao fim social ou económico d. Tipos de abuso do direito e. Consequências jurídicas do abuso do direito II. Colisão de direitos 38. Conceito de direito subjectivo 39. Vicissitudes das situações jurídicas e dos direitos subjectivos a. Constituição b. Modificação c. Disposição e extinção. 40. Alguns direitos subjectivos em especial – Direitos de Personalidade (remissão), Direito de Propriedade (Direitos Reais), Direitos de Crédito e Direitos Intelectuais (Direito de Autor e Direito Industrial) 41. Interesses juridicamente protegidos e interesses diversos 42. Recolocação da problemática da relação jurídica face ao quadro lógico delineado. Capítulo II – A Representação 43. O fenómeno representativo a. Representação e substituição b. Representação e legitimação c. Representação e interposição 44. Actuação em nome de outrem (contemplatio domini) e actuação por conta de outrem 45. O interesse no agir representativo 46. A relação subjacente ou fundamental 47. O relacionamento interno e externo na representação 48. Representação legal, orgânica e voluntária a. Representação legal b. Representação orgânica c. Representação voluntária 49. Capacidade para o exercício representativo 50. Faltas, vícios da vontade e outros estados subjectivos relevantes 51. Justificação dos poderes do representante 52. Negócio consigo mesmo 53. Representação sem poderes e abuso da representação 54. A procuração 55. Outorga da procuração a. Procuração expressa b. Procuração tácita 56. Vicissitudes da procuração a. Instruções b. Modificações c. Revogação Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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d. Extinção 57. O subestabelecimento 58. A forma da procuração Capítulo III – O Tempo e a Estabilização das Situações Jurídicas 59. A evolução no tempo de situações jurídicas duradouras: a alteração de circunstâncias - remissão 60. A necessidade de estabilidade da vida jurídica e os processos de estabilização: prescrição, caducidade e não uso 61. A prescrição a. Prescrição comum e presuntiva b. Invocação da prescrição c. Início do prazo da prescrição d. Suspensão da prescrição e. Interrupção da prescrição 62. Caducidade a. Caducidade e autonomia privada b. Oficiosidade do conhecimento da caducidade c. Início e curso do prazo de caducidade 63. O não uso IX MÉTODOS DE ENSINO A – ENQUADRAMENTO GERAL 1. Impõe o já citado artigo 44º, nº 2 do Estatuto da Carreira Docente Universitária que o Relatório a apresentar pelos candidatos se debruce, igualmente, sobre os métodos de ensino teórico e prático da disciplina que versa. Já tivemos ocasião de anotar que uma interpretação actualista da norma obriga, por extensão, a que também o ensino tutorial deva ser tratado. Poderia, no entanto, parecer que, face às injunções legais e à existência de um amplo e minucioso regulamento de avaliação de conhecimentos da Universidade48, o cumprimento de tal dever legal estaria satisfeito por simples remissão. De facto, quer a lei quer o regulamento não podem deixar de balizar e condicionar os métodos de ensino a adoptar. A estes elementos deveremos ainda acrescentar as circunstâncias concretas de ensino – v.g., número de alunos, salas disponíveis, meios tecnológicos – como factores limitativos dos métodos de ensino propostos. 48
O Regulamento Geral da Avaliação de Conhecimentos da Universidade Lusíada, foi aliás complementado por uma série de outros instrumentos que adaptando e esclarecendo as disposições legais atinentes ao designado Processo de Bolonha proporcionaram a sua adequação a este.
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Muitos aspectos encontram-se, de facto, já determinados pelas injunções e realidades que acabámos de mencionar mas tal não obsta a que a apresentação de uma metodologia de ensino, actualizada em face das novas realidades, não mereça um lugar de destaque neste Relatório. 2. Dada a novidade que o Processo de Bolonha acarreta e face ao desdobramento, já assinalado, da anterior Teoria Geral do Direito Civil nas duas disciplinas que lhe correspondem – Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas e Teoria Geral do Negócio Jurídico – com a sua consequente semestralização e inserção em dois anos lectivos distintos, ainda que em semestres consecutivos, a problemática dos métodos de ensino ganhou nova acuidade. Permite-nos, ainda, uma margem suficientemente ampla de criatividade já que ao enfrentarmos um novo paradigma pedagógico poderemos reflectir sobre os modelos até agora utilizados49 e procurar alternativas inovadoras que melhor se adeqúem à nova realidade e permitam ultrapassar o corte sistemático gerado pelo desmembramento referido. 3. Os métodos de ensino terão, forçosamente, por função a realização daqueles que são comummente aceites como os objectivos gerais do ensino universitário: ensinar o saber; ensinar o saber fazer; contribuir e apoiar o desenvolvimento da personalidade dos estudantes e promover a sua inserção social. A consecução de tais objectivos passa pela identificação dos problemas que decorrem da realidade social que subjaz ao quadro normativo vigente, pela apresentação e formulação de teorias que os enquadrem, com a devida análise crítica, e a busca de soluções para as situações detectadas – demonstrando que a aplicação é o momento culminante de todo o Direito. Como se intui do que fica dito há um princípio inamovível que deverá enquadrar todo o ensino da ciência jurídica: o de que o estudo do Direito é, permanentemente, crítico. Quer dizer, os discentes devem ser estimulados a discorrer pela sua própria cabeça, não aceitando, servilmente, um magister dixit retrógrado, que levaria a uma apreensão de conhecimento por mero mimetismo e que seria substancialmente inane. Cumprir-se-ão, assim, os deveres atinentes ao pessoal docente constantes do artigo 63º do Estatuto da Carreira Docente Universitária, mormente o estabelecido na sua alínea b): “Contribuir para o desenvolvimento do espírito crítico, inventivo e criador dos estudantes, apoiando-os na sua formação cultural, científica, profissional e humana e estimulando-os no interesses pela cultura e pela ciência”. Dar-se-á, por conseguinte, corpo ao ensinamento secular de S. Tomás de Aquino quando, referindo-se ao estudo, afirmava que o mesmo supunha informação rigorosa e “veemente aplicação da inteligência”. 49
Que se encontravam (e de algum modo ainda se encontram) cristalizados nas diversas Faculdades de Direito nacionais.
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Os alunos têm, pois, que ser incentivados e colocados em posição de enfrentar e, munidos das necessárias ferramentas jurídicas, resolver os problemas que a vida hodierna lhes apresenta e, partindo dessa reflexão, descobrir novas questões e novas soluções, num incessante ciclo metodológico paralelo às permanentes, intermináveis e inelutáveis evoluções sociais. Não é um proselitismo que se persegue, é antes uma liberdade de raciocínio consequente que se propõe. 4. O que fica dito nos dois pontos anteriores tem reflexos inequívocos noutros aspectos que neste esquisso importa salientar. De facto, ao apresentarmos os métodos de ensino poderíamos, em absoluto, escolher uma de duas opções: ou formular um modelo ideal de ensino buscando um perfeccionismo asséptico que seria um contributo para a Escola ideal, ou basearmo-nos nas circunstâncias concretas – temporais, logísticas ou outras – procurando um modo exequível de pedagogia tão eficaz quanto realizável. A primeira hipótese tem méritos indiscutíveis e poderá ser de grande utilidade no repensar do ensino jurídico e numa actualização reformista em que toda a Universidade deve estar permanentemente empenhada; entendemos, contudo, que num trabalho deste tipo importa dar nota do modo concreto como, de forma eficaz, se promoverá e desenvolverá o ensino da disciplina, sem o que não poderão ser aferidos os objectivos e, ulteriormente, os resultados que se visam atingir. Será, pois, este o modelo adoptado e será em função dele que deverá ser escrutinada a metodologia proposta. 5. Neste enquadramento geral sobre os métodos de ensino e antes de nos debruçarmos sobre os diversos tipos de aulas, que compõem o estudo da disciplina deve-se ainda sublinhar que ao tratarmos separadamente das aulas teóricas, das aulas práticas e das aulas tutórias estaremos apenas a fazer-nos eco do próprio modelo legal que pressupõe – e bem – objectivos distintos para cada uma delas. Isso não significa, obviamente, que não tenha que existir a necessária articulação entre elas. Diríamos mesmo que essa articulação é indispensável. Compete, por isso, ao Professor, enquanto regente da disciplina, realizar reuniões periódicas com os assistentes promovendo o acompanhamento das matérias de forma homogénea e definindo, de modo similar, as temáticas a desenvolver e os pontos essenciais para a avaliação. 6. Acrescente-se, por fim, que com o que seguidamente se dirá não se pretende – nem seria possível – infirmar as exigências resultantes do já citado Decreto-Lei nº 74/2006, de 24 de Março. Este diploma não pode deixar de fornecer o quadro geral orientador da actividade docente que, em conformidade com as orientações dele decorrentes, supõe que as unidades curriculares sejam organizadas de modo a facultar aos licenciados (neste caso de Direito) de qualquer instituição os meios idóneos para adquirir, desenvolver e aprofundar os conhecimentos necessários ao grau de 410
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licenciado que pretendem obter, promovendo a sua capacidade de encontrar e recolher informação jurídica apropriada, a sua compreensão dos elementos recolhidos – interpretando-os e interligando-os e, sobretudo, aplicando-os, as suas faculdades de raciocínio escorreito, relacionando os conhecimentos obtidos e, reflectindo sobre eles, detectar, identificar, equacionar e resolver as questões que se suscitem, desenvolver o seu nível argumentativo e expositivo de modo a comunicar, não só a especialistas, mas também a não especialistas e aprender com autonomia e utilização de todos os meios ao seu dispor – usando, nomeadamente, as novas tecnologias de informação – numa perspectiva dinâmica, quer dizer, tendo em atenção que a aprendizagem realizada pressupõe a abertura de novas vias do conhecimento, tarefa infindável que terão de levar a cabo ao longo da sua vida. A autonomia e investigação científicas, a compreensão adequada e o desenvolvimento do espírito crítico e a criatividade na elaboração e comunicação de conteúdos jurídicos são, pois, as traves mestras de qualquer licenciatura, cumprindo, assim, os objectivos genericamente traçados no artigo 5º do DecretoLei nº 74/2006, de 24 de Março, já referido. Seria, porém, espúrio considerar que o quadro legal vigente não deixa margem de manobra suficientemente ampla para a escolha dos meios conducentes à realização das finalidades que impõe. B – AULAS TEÓRICAS 1. O ensino teórico é feito em aulas magistrais, com a duração de cinquenta minutos e a periodicidade de duas por semana, o que, tendo em conta que ao semestre correspondem quinze semanas lectivas, equivale a trinta horas de aulas deste tipo. Salta à vista a escassez de tempo para a exposição de um programa tão ambicioso como aquele que apresentamos. Impõe-se, por isso e desde logo, uma rígida calendarização, e um cotejar rigoroso dos temas a desenvolver com maior dose de pormenor sob pena de incumprimento dos objectivos previstos. 2. As aulas teóricas, para permitirem um estudo proficiente, não podem significar uma repetição dos elementos bibliográficos fornecidos aos alunos. Uma tal repetição transformaria as aulas teóricas num espaço inane num duplo sentido – seria vazio no que toca ao avanço científico e sê-lo-ia quanto à presença dos alunos, ao fomentar o famigerado princípio de que “não preciso de ir às aulas porque está tudo no livro”. Entendemos, por conseguinte, que as aulas teóricas, promovendo uma necessária articulação com os elementos de estudo escritos devem desenvolver – se a partir deles mas para além deles. Vamos mesmo mais longe, as aulas magistrais devem incidir sobre os tópicos nucleares da matéria, hierarquizados em função da sua importância Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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dogmática dificuldade de apreensão e actualidade50, mas sem qualquer colagem servil à bibliografia básica. A demarcação segundo os diversos graus de importância da matéria leccionada é, desde logo, indiciadora para os alunos da investigação a desenvolver e deverá ser conjugada pela permanente interligação das diversas temáticas que nunca podem ser afirmadas como compartimentos estanques, mas sim como partes de uma teia indissociável que é o Direito como um todo. As aulas teóricas devem, pois, funcionar como o grande farol orientador de todo o ensino da disciplina, condensando os grandes princípios, os grandes conceitos, as grandes orientações fundamentais e abrindo pistas para o ulterior desenvolvimento e aplicação a realizar nas restantes unidades de ensino. 3. A importância das aulas teóricas deve ser acentuada e a sua frequência estimulada. Elas são, na verdade, insubstituíveis. Os inegáveis méritos da avaliação contínua tiveram como contraponto uma desvalorização das aulas teóricas. Infelizmente, o que motiva os alunos é a obtenção da nota final. O saber enquanto tal passa para segundo plano. É uma visão distorcida que terá repercussões ao longo da sua vida. Compete à Universidade – como elemento essencial da formação dos discentes não apenas como técnicos mas como pessoas – contribuir para uma reorientação valorativa em que o interesse pelo conhecimento ganhe papel de destaque. Não pensamos que a consecução de tal objectivo padeça de uma ingenuidade quixotesca e a nossa próprio experiência tem cimentado esta convicção. Os alunos – pelo menos os de maior qualidade – desde que devidamente estimulados descobrem as virtualidades do estudo e do saber como fonte, passe o excesso, de uma verdadeira ataraxia. A obrigatoriedade da presença nas aulas teóricas, com a correspondente anotação das presenças e dos contributos participativos, só faz sentido se elas tiverem um papel decisivo na formação dos alunos e repercussão imediata nas restantes unidades curriculares, onde os estudantes poderão verificar, na prática e na concretização, a relevância do ensino teórico ministrado. A enunciação dos tópicos fundamentais e a hierarquização temática já referida, compaginados com uma permanente interligação das matérias que vão sendo leccionadas e uma visão prospectiva de aplicação dos conhecimentos adquiridos no âmbito de outros ramos de direito permitirá a obtenção de um sólido e inalienável património jurídico que conjugado com modelos de raciocínio e argumentação adequados, permitirão lançar os alicerces de construção de juristas dedicados a um pensamento jurídico dinâmico, sensível à necessidade de permanente actualização e virado para a comunidade em que todos estão inseridos. 50 A actualidade das matérias fomentará a curiosidade e o interesse pelo aprofundamento dos temas, com as inegáveis vantagens que daí derivam, e demonstrará, concomitantemente, a aplicabilidade concreta do estudo realizado, afastando a ideia nefasta de que as aulas magistrais mais não são do que uma teorização oca e esotérica só acessível a alguns iluminados.
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As aulas teóricas são também essenciais para aprendizagem dos próprios Professores, permitindo-lhes, também a eles, uma permanente actualização e adequação do seu ensino aos interesses, ao grau de apreensão e às questões dos seus alunos51. Deve, por conseguinte, existir a maleabilidade necessária para através de pequenas inflexões – que não signifiquem cedências quanto aos conteúdos programáticos essenciais da disciplina – abordar temáticas que contribuam para captar e incentivar o interesse dos alunos, provocando-lhes o entusiasmo da descoberta científica. 4. Do que fica exposto facilmente se retira a nossa adesão à concepção da aula teórica como aula magistral e não como aula teórico-prática. Isto não significa que desprezemos a utilização de exemplos práticos que suscitem o debate e a melhor compreensão dos conteúdos por parte dos alunos. Essa ligação ao concreto é não só desejável como indispensável. As aulas teóricas não podem limitar-se a um discurso abstracto; devem reificar as matérias estudadas52. A aula teórica deve ser o fundamento primeiro de todo o ensino a ministrar, fornecendo os tópicos nucleares da disciplina e orientando o estudo dos elementos bibliográficos da cadeira. Partindo de uma cuidada ordenação sistemática e temporal do programa devem-se privilegiar a clareza de exposição e o espírito sintético – indispensável face à vastidão das matérias e à escassez de tempo – mas sem prejuízo do seu aprofundamento. Uma mera apresentação prosaica dos elementos de estudo teria efeitos meramente informativos e não formativos. Deve-se, pelo contrário, hipostasiar os conteúdos essenciais demonstrando a razão de ser dos variados institutos jurídicos e a sua convergência científica. O método de ensino a implementar impõe, ainda, uma dinâmica na própria aula que sem pôr em causa a necessária disciplina e fluência expositiva, abra espaço ao diálogo e reserve um período ao esclarecimento de dúvidas53. Com isto se evitará que o Professor apareça aos alunos como uma entidade distante e inacessível, fomentando a interactividade que deve existir entre eles e todo o corpo docente começando pelo regente. Adequando o registo das aulas à capacidade de apreensão revelada pelos alunos, introduzindo notas de actualização do programa previamente estabelecido, que se revelem prementes face à evolução das coisas, estimulando Sempre recordámos como ensinamento a reter o que ADELINO DA PALMA CARLOS afirmou em homenagem a CASTRO MENDES, que tinha sido seu aluno, aquando da sua morte: “Sempre aprendi muito com todos os meus alunos. O João foi daqueles com quem aprendi mais.” 52 O que não significa, obviamente, transformar as aulas teóricas numa duplicação das aulas práticas – o que retiraria todo o sentido a estas. 53 É nossa prática reservar, sempre, um período final da aula – entre cinco a dez minutos – para a apresentação e esclarecimento de dúvidas. 51
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o interesse e o empenho dos alunos por uma visão heurística do Direito, as aulas teóricas devem tornar-se um espaço aberto à criatividade dos estudantes, que após escutarem as posições do Professor e dos outros autores relevantes, que as contradigam ou sustentem, estão habilitados a, sem mimetismos, formular as suas próprias posições. Finalmente, e nunca é demais salientar, as aulas teóricas devem ser instrumento dinamizador das aulas práticas e tutórias, através de uma concertação indispensável aos objectivos da disciplina que o Professor tem o dever de promover através de reuniões periódicas e mesmo informais com os assistentes. C – AULAS PRÁTICAS 1. As aulas práticas, também com a duração de cinquenta minutos, têm lugar, apenas, uma vez por semana. Isto significa que os alunos têm acesso a quinze horas de aulas práticas por semestre – o que, diga-se desde já, é manifestamente pouco. 2. As aulas práticas correspondem às comummente designadas aulas de subturma. A assimilação não é, contudo, perfeita. Sobretudo, deve-se ter a noção de que a aula prática não é ou, se se preferir, deixou de ser, a sede única da avaliação contínua. É certo que continuam a desempenhar um papel determinante neste modelo de avaliação, mas não deixa de ser verdade que a avaliação contínua se espraia hoje por todos os tipos de aulas, tendo também lugar nas aulas teóricas e nas aulas tutórias – o que confirma uma alteração que consideramos extremamente positiva, evitando uma hipervalorização das aulas teóricas em detrimento das restantes. 3. Como dissemos anteriormente, o número de aulas práticas afigura-senos como manifestamente insuficiente. De facto, estas aulas têm de ser complementares das aulas teóricas. Há que impedir a estanquicidade entre o ensino teórico e prático sem que isso signifique uma tautologia que retiraria interesse ao segundo. O estudo do Direito tem que ser realizado num permanente diálogo entre ambos, que, deste modo, se legitimam mutuamente. Ora, não é possível a obtenção de tal desiderato com uma discrepância de dois para um – duas aulas teóricas para uma prática. Acresce que o número de alunos destas aulas oscila entre quarenta e cinco e cinquenta, o que só por si revela a impossibilidade de realização dos objectivos que devem presidir à vertente prática do ensino. Compreendendo as limitações logísticas da nossa Universidade – no que é, aliás, acompanhada pela esmagadora maioria dos restantes estabelecimentos 414
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de ensino superior portugueses – não poderemos deixar de alertar para a necessidade de proceder ao aumento do número de horas semanais destinado às aulas práticas e a apelar à criação de novas unidades deste teor, que permita que o número de alunos nelas inscritos não exceda os vinte e cinco. 4. A complementaridade assinalada entre as aulas teóricas e práticas que deverá ser estendida às aulas tutórias pressupõe a elaboração de um detalhado plano de actividades a realizar nas aulas práticas em que estejam calendarizadas e hierarquizadas as matérias a abordar e o grau de desenvolvimento requerido. Esta programação, feita sob a égide do Professor - regente deverá prever que o projecto estabelecido seja passível de modificações e adaptações pontuais que sem vulnerarem os conteúdos programáticos essenciais permitam, sem tergiversar inutilmente, adequar o ensino a ministrar às realidades concretas e a eventuais vicissitudes inesperadas que se venham a verificar. 5. A metodologia a adoptar e os objectivos a atingir nas aulas práticas não se esgotam, naturalmente, na sua função de sucedâneo das aulas teóricas. É lugar comum afirmar que as aulas práticas existem para resolver casos práticos (hipóteses, na terminologia mais frequente). Aulas práticas e resolução de casos práticos são muitas vezes apresentados como sinónimos. É uma antonomásia que não podemos acompanhar. Não pretendemos com isto significar qualquer menosprezo pela apresentação e solução de casos práticos que assumem uma importância fundamental nas aulas deste tipo e que fornecem o traço de união indispensável à concretização e aplicação do Direito, que constituem o seu momento mais solene. Os casos práticos podem ser hipotéticos ou versar exemplos verídicos, jurisprudenciais ou não, que permitam compreender a complexidade dos problemas, própria da vida em sociedade e, com isso, promover o aprofundamento dos conhecimentos sobre as matérias nucleares e o esmiuçar de questões de superior dificuldade de análise. 6. Mas o objectivo fundamental das aulas práticas é, seguramente, o estímulo à criatividade dos alunos, promovendo a sua capacidade de assimilação e interligação dos problemas numa perspectiva de estudo dinâmico e crítico do Direito. Passa, necessariamente, pela resolução de casos práticos, mas passa também pelo debate sobre temas atinentes à disciplina, o que permite um ensino dialogante e fomentador da oralidade – elemento essencial da formação de qualquer jurista. As intervenções orais devem, pois, ser promovidas e estimuladas, constituindo factor relevante no processo de crescimento intelectual dos alunos e, simultaneamente, facultando aos docentes meios de valoração importantes para a avaliação final, que deverá ser tão fundamentada e baseada em elementos diversificados e complementares quanto possível. A forma de promover as intervenções orais deve, também ela, corresponder a uma estrutura variável – debates sobre aspectos pontuais dos casos práticos, apresentação de temas por um ou vários alunos, seguidos de colocação de dúvidas Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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ou de intervenções que visem o preenchimento de lacunas ou de temáticas insuficientemente desenvolvidas no decurso da exposição e a constituição de tribunais virtuais onde a argumentação e contra-argumentação ocupem lugar de destaque e conduzam, a final, a tomadas de posição fundamentadas, são exemplos elucidativos do modo como se pode funcionalizar as aulas práticas. 7. Finalmente – passe a ambição, face às limitações temporais existentes – a elaboração de trabalhos de investigação individuais ou de grupo, desde que as matérias permitam uma demarcação da intervenção de cada aluno, são ainda um dos aspectos a considerar no âmbito das aulas práticas, constituindo, também eles, elementos de formação e de avaliação não despiciendos. De todo o modo, tendo em atenção a tripartição de aulas hoje existente, pensamos que a realização deste tipo de estudos terá inserção mais assertiva nas aulas tutórias. Para o que sobre elas se disser, subsequentemente, se remete. O papel primordial e indispensável das aulas práticas – quer em termos formativos, quer como factor de avaliação (especialmente a contínua)54 – fica, pois, claramente enunciado e demonstrado, e deve ser entendido sem esquecer as limitações temporais e logísticas apontadas. D – AULAS TUTÓRIAS 1. O terceiro pilar em que assenta o ensino, seguindo o modelo de Bolonha, são as aulas tutórias ou tutoriais55. Tal como as aulas práticas têm duração de cinquenta minutos e a periodicidade de uma por semana. Trata-se da grande inovação que decorre do novo paradigma pedagógico e sobre elas impõe-se cuidada reflexão. 2. As aulas tutórias são, manifestamente, uma importação do sistema anglo-saxónico e como todas as importações acarreta dificuldades e ponderação acrescida, inerentes à novidade que decorre da implementação de um tipo de aulas sem tradição na Universidade Portuguesa. O pioneirismo é um desafio, mas é também um risco. Temos, por isso, de entender esta aventura, esta primeira abordagem, como uma realidade iniciática sujeita a ulteriores aperfeiçoamentos. Quando falamos de novidade fazemo-lo num duplo sentido: quanto aos docentes e quanto aos alunos. 54
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Mesmo fora do contexto da avaliação contínua, o conhecimento que o corpo docente adquire pelo contacto com os alunos, apreciando o seu interesse, participação e apreensão dos conteúdos disciplinares são elementos que não podem nem devem ser desprezados se o aluno se apresentar a exame final. Utilizaremos as duas expressões em sinonímia. Apesar de a palavra tutória nos parecer mais correcta, a lei utiliza-as indistintamente. Também nós o faremos sem que daí se possa retirar qualquer distinção substancial.
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Estes são envolvidos num novo modelo de estudo, próprio de uma nova lógica de aprendizagem, em que abandonam uma atitude eminentemente passiva, de meros destinatários do ensino, e se integram como dínamos centrais da actividade pedagógica, ganhando uma iniciativa a que não estão habituados e, há que assumi-lo, para a qual não estão preparados. Simultaneamente, desenvolvem competências essenciais para a sua construção como juristas – investigando com autonomia e apelando à sua criatividade na busca de alvos e de meios para os atingir. Os docentes, por sua vez, perdem o seu ancestral protagonismo. O seu papel passa a ser dominantemente orientador e impulsionador do estudo a efectuar – dirigindo e ajudando no levantamento, demarcação e solução dos problemas suscitados – transformando os estudantes em estudiosos. Como se intui do que fica dito, se isto impõe uma exigência acrescida aos estudantes, impõe, também, uma não menos difícil adaptação por parte do corpo docente, já que Professor e assistentes não só têm de estimular os discentes a abandonar a imobilidade em que estão, há longos anos, enquistados – provocando-lhes o anelo da descoberta, do saber e do saber-fazer – como se vêem obrigados a moldar-se à nova estratégia de ensino que contraria os modelos que desde sempre constituíram os métodos tradicionais em que eles próprios foram ensinados e ensinaram. É um trabalho hercúleo mas, ao mesmo tempo, aliciante. 3. Começámos, no ponto 1 supra, por assinalar a duração e periodicidade das aulas tutoriais e referir o seu paralelismo com as aulas práticas. Poderá estranhar-se o facto de não se ter referido que, contrariamente a estas, às aulas tutórias são atribuídas vinte horas semestrais e não apenas quinze. A omissão não foi inocente. Reconhece-se a discrepância de tratamento e o sentido positivo da opção, já que poderia parecer que a ela corresponderiam mais e melhores oportunidades de aprofundamento de conhecimentos por parte dos alunos; foi essa, seguramente, a razão que presidiu à diferenciação, o que se saúda. Mas a prática, como se sabe, distorce muitas vezes a intenção do legislador. Acontece que as últimas cinco aulas tutórias ocorrem em período que antecede imediatamente a época de exames e mesmo no início do decurso desta. Isso implica ou o absentismo massivo por parte dos alunos ou a sua transformação em “aulas de dúvidas para o exame”. Fica, assim, irremediavelmente prejudicado o benefício que poderia advir destas cinco horas “a mais”. O alerta que deixámos a propósito da manifesta insuficiência do número de aulas práticas deve, por conseguinte, ser transposto, sem limitações, para as aulas tutórias. É tema que, seguramente, virá a ser ponderado em anos vindouros. Ainda assim, o número de alunos nas aulas tutoriais é inferior ao das aulas práticas. Enquanto nestas, como se disse, as inscrições variam entre quarenta e cinco Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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e cinquenta, naquelas esse número ronda os trinta, em razão de corresponderem a uma maior divisão dos discentes. Mau grado o empenho da Universidade e dos seus serviços na optimização das condições de ensino a dispersão conseguida com a inclusão adicional de mais aulas tutórias, relativamente às aulas práticas é, mais uma vez, claramente insuficiente56. Na verdade, se é certo que, como constatámos, às aulas tutoriais cabem, de facto, quinze horas por semestre, à razão de trinta alunos por unidade curricular, isso significa que o docente dispõe, em traços gerais, de meia hora para a orientação de cada um, o que está longe de preencher os mínimos exigíveis para a relevante actividade a que se propõe. Compreende-se, pois, que, também neste caso, lancemos o apelo para que, na medida do possível, se proceda ao aumento do número de aulas deste tipo, com a consequente diminuição do número de educandos por unidade curricular, sem o que a qualidade pedagógica pretendida ficará, necessariamente, prejudicada. 4. O que fica dito entronca directamente com a lógica funcional subjacente ao arquétipo de aula tutória. Como se frisou a tutoria tem como fonte o modelo anglo-saxónico e neste constitui um elemento privilegiado de ensino e encontra o seu verdadeiro sentido. Consubstancia-se num acompanhamento personalizado do aluno, muitas vezes (ainda que não necessariamente) em regime de internato, orientando a sua aprendizagem e contribuindo para a sua formação, não só do ponto de vista técnico, mas também como pessoa. Cada pedagogo tem a seu cargo dois ou três discípulos e os benefícios daí decorrentes são inequívocos: permite uma demarcação dos ritmos de ensino de acordo com as características, a capacidade de apreensão das matérias, maior ou menor interesse pelas mesmas e até características de personalidade e vicissitudes da vida – a que ninguém é imune – que maximaliza a optimização do método tutorial. Acontece que uma transposição mecânica, por referência meramente formal, perverte o sistema e leva, em última análise, à sua degenerescência. No sistema continental este ensino ordenado e orientado segundo as idiossincrasias de cada um é materialmente impossível e acaba por conduzir, inexoravelmente, à sua transformação em aulas ou teóricas ou práticas de segundo grau, promovendo a sua vacuidade face aos objectivos que lhes dão corpo e que as justificam. 5. Há, pois, que retirar sentido útil da opção de integração no Processo de Bolonha com a consequente criação destas aulas ditas tutórias ou tutoriais. Em vez da resignação melancólica perante a impossibilidade de criar um modelo que respeite, na pureza dos princípios, a tutoria tal como ela foi concebida 56
Neste momento existem, na disciplina de Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas, seis turmas de aulas tutórias para quatro de aulas práticas.
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e consagrada com êxito indesmentível, há que – face à sua consagração legal – procurar as virtualidades que se podem retirar das aulas tutórias que existem no nosso Direito, enquanto unidades curriculares a implementar no nosso ensino universitário e tendo em conta as condições e condicionantes concretas da realidade existente e não da desejável. O que a seguir se dirá parte, por conseguinte, de uma perspectiva positiva, pondo em realce as virtudes e virtualidades que o sistema comporta em detrimento das críticas que, eventualmente, se podem formular, mas que o realismo a que estamos obrigados nos deve fazer subalternizar. 6. Rejeitado o perfeccionismo utópico que nos levaria a discorrer sobre um modelo ideal e irrealizável de aulas tutórias, concentremo-nos então nas vantagens e aproveitamentos que das mesmas podem resultar, tendo sempre em atenção a necessária articulação que tem de ser realizada entre estas unidades curriculares e as aulas teóricas e práticas. Note-se, mais uma vez, que esta conjugação e consequente harmonização dos três tipos de aulas tem de ser efectuada sem prejuízo da sua autonomia própria, sob pena de duplicações desnecessárias e, por isso, inócuas, que acarretariam o estiolamento de alguma ou algumas delas. Deixámos dito que o pioneirismo é um desafio e um risco e temos que entender esta aventura que se inicia como uma viagem de longo curso, num processo sujeito a ulteriores aperfeiçoamentos e mudanças de rota rumo ao porto seguro da completa eficácia pedagógica. Gozando, pois, da liberdade criativa que o carácter ainda embrionário das aulas tutoriais nos permite procuraremos demarcar os traços essenciais que devem balizar as diferentes actividades no seu seio. 7. Atentando nos princípios basilares diremos que as aulas tutórias são aulas de orientação do jurista perspectivando a sua integração na sociedade. É uma aula de orientação em duplo sentido: por um lado, promovendo e sistematizando o estudo aprofundado das várias matérias, através de um escrupuloso acompanhamento da investigação a desenvolver, abrindo pistas para novos conhecimentos tendo em atenção a interdisciplinaridade e a realidade concreta em que o Ordenamento Jurídico se desenvolve e se insere; por outro lado, a aprendizagem a realizar deve ter em conta as diversas saídas profissionais que o estudante de Direito pode escolher, finda a sua licenciatura. Mas este escancarar das janelas do futuro não ficará completo sem uma outra vertente tão importante como a primeira – a da formação humana. É função do pedagogo ajudar a criar valores sólidos que sem deixar de formar o técnico, não deixem de formar o Homem, ou, dito de outro modo, formar o técnico enquanto Homem. Como se tem deixado transparecer, ao longo desta exposição, a aula tutória não é mais uma aula de docência magistral, de ensino teórico, é sim uma aula de aprofundamento interactivo de conhecimentos, de formação técnica e humanista do jurista e, por isso mesmo e desde logo, de testemunho de uma vivência do Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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tutor, de modo a preparar o aluno para a sua futura inserção no tecido social. 8. A consecução destes objectivos passa, desde logo, por uma muito maior proximidade entre o Professor e o aluno. As relações não só de índole intelectual, mas mesmo pessoais, docentediscente ganham no ensino tutorial um relevo adicional já que é factor de incentivo de irrecusável importância. Verifica-se – e a nossa própria experiência é disso comprovativo – que o interesse revelado pelo Professor pelos trabalhos realizados e a realizar pelos alunos é um factor de estímulo que os encoraja a novos cometimentos. Com o mesmo objectivo deve o docente, quando for caso disso, enaltecer os méritos da actividade realizada, nomeadamente dando-a como exemplo a seguir. Promove-se, assim, nos estudantes a espontaneidade e o gosto pelo saber que deverão ser desenvolvidos através de um estudo permanentemente crítico e criativo, de molde a promover a motivação e, com o adensar de conhecimentos, a autoconfiança que os prepare para a vida profissional competitiva que os aguarda. A competitividade é, aliás, algo de inerente, desde logo, ao próprio ambiente universitário e só por estultícia a poderíamos desprezar. Ela deve, contudo, ser dirigida visando o seu exercício salutar e complementada com mecanismos de colaboração solidária entre colegas do mesmo ofício. Investimento pessoal, devidamente apoiado e acompanhado pelo Professor, aos mais diversos níveis, sentido crítico e auto-crítico, solidariedade entre colegas e disponibilidade de tempo e de espírito para a investigação extra-curricular são, pois, os instrumentos necessários para o sucesso dos estudantes e para a eficácia pedagógica das aulas tutórias. 9. Este tipo de unidades curriculares permite, como se verifica, um estudo diversificado das várias temáticas. Ao pedagogo pede-se que vá à raiz dos problemas levando a um aprofundamento conceptual, mas sempre virado para a aplicação concreta e conciliando esse objectivo com a interdisciplinaridade própria do estudo consequente e profícuo do Direito. Isto supõe um método analítico simultaneamente indutivo-dedutivo e dedutivo-indutivo sem prevalência de um aspecto sobre o outro. Concretizando: não se deverá partir de premissas apodícticas mas sim, baseando-nos nos factos concretos e nos princípios ético-jurídicos fundamentais, trabalhar os problemas verificando as conclusões pelo resultado, procurando argumentos demonstrativos da bondade das soluções encontradas e hipostasiando o seu conteúdo. Se a realidade confirmar os conceitos e estes se vêem verificados na realidade então poder-se-á, com segurança, afirmar que dilucidámos a matéria em apreço57. 57
Afasta-se, deste modo, a tentação de um método subsuntivo-formalista próprio de um certo positivismo anacrónico que, mesmo hoje, tende a manifestar-se, ainda que disfarçado com novas roupagens.
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10. Como ficou dito anteriormente, o estudo tutorial pressupõe o aprofundamento de temas que, naturalmente, não podem ser realizados nas aulas teóricas e práticas e o desbravar de caminhos interdisciplinares, demonstrativos do sentido global do Direito – único que torna a ciência jurídica cabalmente compreensível – e preparatórios dos estudos a desenvolver subsequentemente rumo à licenciatura. Estes alicerces sólidos do edifício jurídico que cada estudante tem de construir são os objectivos centrais da disciplina de Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas e como tal devem ser inexoravelmente prosseguidos. As aulas tutoriais facultam-nos alguns dos meios necessários para a sua obtenção. Dadas as limitações temporais, já várias vezes assinaladas, inerentes à semestralização da disciplina, os dois podem e devem ser atingidos e, sempre que possível, em conjunto. 11. Alguns exemplos são amplamente demonstrativos das virtudes de uma tal compaginação. Assim, e sempre partindo de problemas incrustados no tecido social, há a tendência para analisar o aparecimento da criação da personalidade jurídica em intima ligação com a temática da interrupção voluntária da gravidez ou do aborto, seguindo a linguagem prosaica e comum. É, sem sombra de dúvida, uma problemática relevante e não devemos escamoteá-la. Mas só poderá ser devidamente discutida e entendida se a transportarmos para o debate ético-jurídico, sem uma visão redutora própria de uma mera aproximação sensacionalista em que é pródiga uma certa comunicação social mas que não pode fazer parte dos atributos de juristas que se prezem e respeitem a sua profissão. Tem de se ir muito mais fundo e, partindo das concepções fundamentais, tratar da interrupção voluntária da gravidez, mas também e entre outros, dos danos pré-natais ou das novas questões colocadas pela bio-ética, que estão na primeira linha das preocupações do Direito actual. Só depois de uma averiguação consequente dos diversos regimes e da sua ratio e da apresentação das várias concepções que enquadram o problema da criação do Homem e consequentemente da sua personalidade se poderá tomar posição sustentada não só sobre a interrupção voluntária da gravidez mas também sobre todos os restantes problemas. O Professor não se deve eximir de expor os seus próprios pontos de vista como contributo não vinculativo para a discussão. No exemplo que ora figuramos apresentaremos, por isso, a nossa perspectiva jusnaturalista do Direito que se baseia num Direito Natural fundado no próprio Deus entendido num plano hierarquicamente superior ao direito positivo, que a ele se deve conformar e submeter, e como tal concretizador da própria Ordem Jurídica e não como mero modelo orientador mas afastado da aplicação normativa. Dito de modo sintético e, por isso, necessariamente impreciso, o Direito Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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Natural é a fonte primígena de todo o Direito e as suas normas prevalecem sobre os preceitos de direito positivo que, eventualmente, as contradigam ou limitem, sendo de aplicação directa aos casos concretos. Não deixaremos, portanto, de defender que a personalidade jurídica se adquire no momento da concepção e retirando daí consequências inerentes e recolocando os casos, excepcionais, de interrupção voluntária da gravidez legítimos no plano onde devem merecer tratamento – no da colisão de direitos58. O que fica dito não pode nem deve significar que o docente imponha a sua orientação. Pelo contrário o Professor deve facultar uma panóplia tão vasta quanto possível de obras e autores que corroborem a sua posição e que a antagonizem, mas sempre com o objectivo de incentivar e permitir ao aluno excogitar frutiferamente no duplo sentido que esta expressão comporta – reflectindo, por uma lado, e investigando e descobrindo, por outro – de molde a formar e fundamentar a sua própria posição. 12. Passando a outro tema central da nossa disciplina – o direito subjectivo – há que reconhecer que a sua indesmentível importância e a necessidade, inultrapassável, do seu exaustivo tratamento, enquanto pilar fundamental de todo o sistema jurídico, leva a uma antonomásia que deve ser corrigida. Como já se assinalou, o centralismo que se outorga ao direito subjectivo revela-se extremamente redutor relativamente a toda uma série de outras situações jurídicas deixando por explorar um enorme filão onde se inserem uma multiplicidade de outras realidades, o que acarreta, concomitantemente, uma perspectiva parcelar e, por isso, incorrecta do Direito e da sua adequação à vida59. As aulas tutoriais podem, assim, apresentar-se como o local apropriado para o desfibrar de uma série de outras relevantes situações jurídicas activas e passivas que, como decorre da exposição que antecede, já terão sido topicamente indicadas no decurso das aulas teóricas. Poderes elementares ou faculdades, poderes genéricos, poderes funcionais, interesses juridicamente protegidos e interesses difusos, de um lado, vinculações ou adstrições simples, deveres genéricos, obrigações, sujeições, deveres funcionais, por outro, a que se deverá adicionar figura híbrida dos ónus, deverão, mais uma vez, ser sucessivamente tratados, mas agora de modo mais concreto e elaborado. O mesmo se diga quanto ao próprio direito subjectivo que deverá merecer maior detalhe através do estudo das suas diversas classificações e do significado Em nossa opinião, basta existir um direito que seja, ainda que condicionado ao nascimento futuro, para que haja personalidade jurídica. Se assim não se entender situações tão graves como os já referidos danos pré-natais ficarão sem tratamento ou, pelos menos, sem tratamento adequado. A posição exposta afasta-nos, por conseguinte, daqueles que mesmo propugnando soluções equivalentes à nossa, quanto às conclusões e aos efeitos daí decorrentes, trazem o debate para o puro plano do direito positivo onde vêem as suas teses infirmadas e enfrentam dificuldades por vezes inultrapassáveis. 59 É significativo o facto de muitos autores se referirem na noção de personalidade jurídica, a esta, como sendo “a susceptibilidade de ser titular de direitos e obrigações” e não de situações jurídicas. É uma sinédoque que não pode deixar de se assinalar e que comprova o que vimos dizendo. 58
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substancial que às mesmas corresponde – v.g., direitos absolutos, direitos relativos, direitos potestativos – e de algumas das suas principais modalidades – v.g., direitos de personalidade, direitos reais, direitos intelectuais, direitos de crédito – o que permitirá, simultaneamente, a consecução de dois objectivos: colmatar lacunas existentes no plano de licenciatura, permitindo, pelo menos, um contacto necessariamente rudimentar mas que se pode revelar apelativo para a curiosidade jurídica dos alunos e promover a interdisciplinaridade que, como tem sido abundantemente referido, constitui função essencial desta disciplina. O Direito de Personalidade (em toda a sua dimensão), os Direitos Reais, o Direito de Autor e o Direito Industrial são, pois, alguns dos ramos de direito em que nos deteremos e daremos especial ênfase, abordando as suas grandes linhas, o seu regime básico e a sua natureza jurídica60. 13. Ainda no âmbito desta interdisciplinaridade a responsabilidade civil afigura-se como outro exemplo elucidativo do modo como entendemos as aulas tutórias e o modo como delas retirar a melhor e mais profícua eficácia pedagógica. Tradicional e erroneamente estudada na disciplina de Direito das Obrigações, a responsabilidade civil é uma problemática geral cuja sede disciplinar deveria ser o Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas. A responsabilidade civil é um tema geral e como tal deve ser apresentada e desenvolvida, ainda que em esquisso, abrindo caminho ao Direito das Obrigações. 14. O memo se dirá em relação ao estudo das Pessoas Colectivas e do Direito das Sociedades. Como se sabe as sociedades comerciais são o principal tipo (ou pelo menos, seguramente, um dos principais tipos) de pessoas colectivas. Afigura-se, pois, proficiente que o estudo destas envolva aquelas, preparando o ensino futuro do Direito Comercial em geral e do Direito das Sociedades em particular. Permite, ao mesmo tempo, o retomar da problemática dos institutos jurídicos, enquanto segundo pilar decisivo na edificação do Direito Civil, e do seu abuso, já aflorada na nossa desconsideração da personalidade jurídica das pessoas colectivas em geral e das sociedades comerciais em particular, mas que tem aplicação noutras vertentes jurídicas e cuja actualidade não é demais encarecer. 15. Os exemplos dados são suficientemente elucidativos do trabalho a desenvolver nas aulas tutórias e deve ser complementado por modelos de efectivação variados e que encorajem pela diversidade e pela adaptabilidade às características de cada um, permitindo ao máximo de alunos possível aprofundar e expressar os seus conhecimentos. Tribunais virtuais, apresentação oral e escrita de trabalhos de investigação, 60
A não existência de disciplinas de Direito de Autor e de Direito Industrial no plano de licenciatura parece-nos uma lacuna que urge corrigir, dada, até, a crescente importância e actualidade dos dois ramos de direito.
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debate sobre temas previamente determinados e que permitam extrapolar os temas básicos abrindo os educandos a novas problemáticas, apresentação de minutas concretas demonstrativas do saber-fazer – v.g., de um contrato de sociedade ou do acto gerador de uma fundação – acompanhadas de breve memorando que torne compreensivo o processo constitutivo das diferentes pessoas colectivas, tudo são elementos que devem ser considerados como válidos como conducentes à melhoria qualitativa dos educandos e, consequentemente, à sua adequada preparação enquanto profissionais do futuro. Esta variedade de abordagens retira a monotonia e apela à diversidade, permitindo adaptar a concretização do sistema às especificidades dos alunos, fomentando a sua interacção com o Professor e os colegas e retirando de cada um deles o que de melhor têm. 16. Para conseguir harmonizar todas estas componentes o Professor deve ainda incentivar os alunos ao uso de todas as estruturas materiais à sua disposição, procurando desfocá-los da exclusividade de um meio de investigação que, como se sabe, tende a ser a Internet. O uso da biblioteca continua a ser um factor que pode maximizar a apresentação dos conteúdos disciplinares e é função do pedagogo – docente chamar a atenção para tal realidade61. 17. As aulas tutórias, tal como as entendemos, são o palco ideal para os estudantes exprimirem toda a sua criatividade – promovendo a criação pura, mas também desenvolvendo a sua capacidade de resolver os mesmos problemas de formas diferentes, desde que igualmente adequadas – em suma, promovendo a sua necessária informação e a sua indispensável formação, partindo de um estudo minucioso dos temas em análise. A criação do que poderíamos chamar de um modelo continental das aulas tutoriais, entendidas no sentido assertivo em que o apresentámos, poderá ser um instrumento pedagógico do maior relevo permitindo, sem descurar as críticas que a este tipo de unidades curriculares são formuladas e ciente da necessidade de ulteriores aperfeiçoamentos que ocorrerão naturalmente, fruto da experiência adquirida, contribuir decisivamente para um ensino mais consequente e eficaz. 18. Um outro aspecto deve ser realçado: a ambição que projectámos nos pontos anteriores tem de ser temperada pelas condições concretas, temporais e estruturais, em que as aulas tutórias se têm de desenrolar. Na verdade, a inexorável lei do tempo não se compadece com boas intenções e só por estultícia poderíamos pretender haurir um leque tão vasto de temas em vinte horas que, como salientámos, acabam por ser quinze. Há, portanto, que fazer escolhas criteriosas dos temas a tratar e dos meios idóneos para obter os resultados pretendidos, procurando motivar para as actividades extra-curriculares e, sublinhe-se mais uma vez, promovendo a indelével articulação com as aulas teóricas e práticas, expraindo as temáticas a 61
Com o que fica dito não se pretende, obviamente, menosprezar a importância da Internet em projectos de investigação.
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tratar e evitando duplicações tautológicas e vazias de conteúdo. 19. Por fim, diga-se que as aulas tutórias devem ser também a sede natural para educar e melhorar dois elementos essenciais na formação e actividade de qualquer jurista – a retórica e a terminologia. Não necessita de demonstração que a capacidade argumentativa é decisiva na vida de todos os juristas. A terminologia é o que permite distingui-lo. É algo a que damos enorme importância e que, muitas vezes, se tende a relegar para segundo plano. O jurista não se pode permitir, enquanto tal, à linguagem comum; é a sua terminologia que o classifica e qualifica e, bastas vezes, permite traçar a fronteira entre os bem e os mal preparados62. A ambas daremos atenção prevalente, em consonância com o princípio inamovível que sempre defendemos de que a filologia é uma das actividades mais nobres em que o jurista se encontra investido no seu permanente processo de formação e actualização. X MÉTODOS DE AVALIAÇÃO 1. É património adquirido e de inestimável valor da Universidade a sua metodologia de avaliação que consta, aliás, de um detalhado Regulamento de Avaliação que tem sido objecto de um cuidadoso aperfeiçoamento em virtude das transformações geradas pelo Processo de Bolonha. É, portanto, um regulamento perfeitamente actualizado e para ele se remete para questões de minúcia. Limitar-nos-emos, por isso, a algumas breves notas que permitam aferir do nosso entendimento da forma como a avaliação se deve processar, não deixando de salientar a influência recíproca que métodos de avaliação e métodos de ensino exercem entre si. 2. Como se sabe, existem dois métodos de avaliação estabelecidos, em perfeito paralelismo como que acontece nas restantes Universidades e Faculdades de Direito do nosso país: a contínua e a final. Na disciplina de Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas, como acontece, aliás, nos dois primeiros anos do curso, a ambas correspondem provas escritas, mas a prova oral só terá lugar na avaliação final em certos casos – se o aluno tiver oito ou nove valores no teste escrito ou se pretender realizar melhoria 62
Estamos, por isso, plenamente de acordo com o Regulamento da Avaliação de Conhecimentos quando na alínea f), do seu artigo 7º, estabelece como um dos indicadores a ser tido em conta na apreciação das provas prestadas, “o nível de expressão literária, incluindo o aspecto formal da exposição oral ou da redacção, a pontuação e ortografia”.
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de nota. 3. A avaliação contínua não dispensa a avaliação final escrita e ambas são ponderadas, na proporção de sessenta por cento para a primeira e quarenta por cento para a segunda, tendo em vista a obtenção da classificação final. Sem questionar os inegáveis méritos e vantagens deste método de avaliação encontramos, contudo, aqui alguns motivos de reflexão. De facto, pode verificar-se – e na prática verifica-se frequentemente – que, por força de uma nota de avaliação contínua positiva, o aluno venha a ser aprovado com dispensa de prova oral apesar de nota negativa que, eventualmente, venha a obter no teste final. É uma solução que não podemos acompanhar sem reservas. A prova final é a única onde se versam todas as partes da matéria e não obstante o aluno demonstrar, eventualmente, o seu insuficiente conhecimento da mesma pode, ainda assim, vir a obter nota final positiva. Dir-se-á que, no decurso do semestre lectivo, o estudante já teve oportunidade de demonstrar os seus conhecimentos sem o que não teria tido avaliação contínua positiva, pelo que a crítica formulada não tem sentido. Tal argumento é, no entanto, falacioso. Dado até o número de alunos inscritos neste tipo de avaliação só por sofisma se pode pretender que o corpo docente terá noção cabal dos conhecimentos de cada estudante sobre a globalidade da matéria. Vamos até um pouco mais longe: entendemos mesmo que todos os alunos se deveriam sujeitar à prova oral, especialmente nos dois primeiros anos do curso, preparando-os para uma vertente da sua actividade futura que, inexoravelmente, terão de enfrentar. Permitimo-nos, pois, sugerir a extensão da obrigatoriedade de provas orais existentes nos últimos anos da licenciatura aos dois primeiros anos da mesma, onde se justificam por maioria de razão63. Face ao quadro existente resta ao regente incutir no espírito dos assistentes e dos alunos a necessidade de colocar acento tónico na avaliação oral de molde a, tendo em atenção as provas escritas e os restante elementos que devem ser ponderados, se conseguir o conúbio que permita uma correcta classificação final. 4. A crítica formulada no ponto anterior aplica-se, mutatis mutandis, à avaliação final, na qual a nota de dez valores no teste escrito implica a dispensa de prova oral. Não há necessidade de retomar o que já ficou exposto, pelo que nos limitamos a apelar de novo a que o problema seja repensado, atribuindo-se à oralidade o papel central que deve ocupar em qualquer licenciatura em Direito64. 5. Quanto às provas escritas e orais a prestar entendemos que as mesmas É na génese da sua formação jurídica que os educandos devem preparar-se com as ferramentas indispensáveis à vida profissional vindoura. 64 Do exposto não se retire que damos qualquer tipo de prevalência aos elementos orais relativamente aos escritos, mas sim o entendimento que os dois devem ser tratados em plano de igualdade. 63
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devem versar, prevalentemente, casos práticos e, se possível, verídicos. De há alguns anos a esta parte que abandonámos a tradicional configuração dos testes – caso(s) prático(s)/pergunta de desenvolvimento ou perguntas de resposta rápida – e pensamos ter trilhado o bom caminho. Os alunos devem ser confrontados com situações concretas da vida quotidiana que sejam, concomitantemente, demonstrativos da multiplicidade caleidoscópica dos nossos dias. Devem compreender a aplicabilidade dos conhecimentos adquiridos e não ver as situações que lhes são colocadas como “hipóteses académicas” – como as costumam definir, pressupondo o seu academismo no pior (e falso) sentido – desprendidas da realidade, promovendo-se, simultaneamente, o interrelacionamento das matérias65. O mesmo se diga das avaliações orais – que no modelo actual para além do exame final se podem estender aos três tipos de unidades curriculares – ainda que estas, pela sua própria natureza, permitam formas mais diversificadas de aferição de conhecimentos, ajustadas em função do perfil de cada aluno e tendo em conta o momento e avaliação concreta que se realiza66. 6. Um último aspecto deve ainda ser salientado no que concerne aos métodos de avaliação e esse é o da uniformização de critérios, que sendo responsabilidade de todo o corpo docente é-o, em primeira linha e fundamentalmente, do Professorregente. Para esse efeito deverá promover reuniões regulares com todos os assistentes dando corpo a uma unidade essencial para um ensino consequente e transmitindo aos educandos um sinal, inequívoco, de equidade que não pode deixar de os tranquilizar. Além disso, o Professor deverá, sempre que possível, comparecer nas aulas práticas e nas aulas tutoriais que não sejam da sua responsabilidade, verificando in locco a uniformidade de critérios referida e corrigindo, quando for caso disso, as discrepâncias existentes. 7. Só a conjugação de todos estes factores permitirá potenciar os métodos de avaliação existentes, partindo do estudo, tão minucioso quanto possível, das matérias, depois de as cotejar e hierarquizar, promovendo a capacidade de concretização dos conhecimentos adquiridos, agilizando o raciocínio jurídico através de um interrelacionamento das diferentes temáticas e de uma consequente retórica argumentativa com a correspondente e correcta terminologia e retirando de cada um o que de melhor tem para dar, fomentando, desse modo, a ética do mérito. 65
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O teste final deve ser consonante com os testes escritos a realizar em sede de avaliação contínua, evitando-se uma estanquicidade que, além de pedagogicamente incorrecta, acarretaria as sempre inconvenientes dispersão e confusão dos alunos. É evidente que a prova oral no exame final é diferente da resolução de uma hipótese numa aula prática e esta, por sua vez, é diversa de uma exposição ou debate numa aula tutória.
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XI ELEMENTOS DE ESTUDO 1. A vasta bibliografia da disciplina que adiante se apresenta deve ser entendida à luz dos objectivos traçados e, sobretudo, tendo em atenção os seus diversos graus de utilização. Podemos distinguir três níveis de incidência que podemos designar como bibliografia básica, bibliografia de consulta essencial e bibliografia complementar. 2. A bibliografia básica – que não se deve confundir com a anacrónica designação de “livro(s) adoptado(s)” - será constituída pelas obras de Teoria Geral do Direito Civil de PEDRO PAIS DE VASCONCELOS e de JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO. Compreende-se que assim seja. OLIVEIRA ASCENSÃO deve ser considerado o caput schole da moderna escola de Teoria Geral do Direito Civil em que nos inserimos67, sendo que dele fomos e sempre seremos discípulos. A sua obra inovadora, à época, é, por isso, incontornável. PEDRO PAIS DE VASCONCELOS é o seu mais ilustre continuador e a sua obra e actividade pedagógica – inclusive na Universidade Lusíada – dispensam encómios que pecariam por redundantes. Além disso, a 4ª edição da sua “Teoria Geral do Direito Civil”, datada de 2007 constitui a primeira aproximação coerente ao novo modelo de ensino, de que resultou, como já se anotou, por imposição do Processo de Bolonha, o desdobramento da antiga cadeira anual nas duas disciplinas semestrais dela derivadas. O seu livro é, pois, uma obra insubstituível, até pelo que permite de ordenação de conteúdos e de consequente raciocínio jurídico escorreito ao leitor. Acresce que sucedemos a PEDRO PAIS DE VASCONCELOS na regência de Teoria Geral do Direito Civil, numa primeira fase e de Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas e Teoria Geral do Negócio Jurídico, num segundo momento, pelo que a adopção da “Teoria Geral do Direito Civil”, deste autor, além de permitir o mais linear, moderno e actualizado estudo das matérias, contribui decisivamente para uma continuidade e uniformidade de ensino – um fazer Escola na melhor acepção – essencial para a coerência universitária, para a formação dos alunos e para o prestígio da Instituição. Será, pois, a obra de PEDRO PAIS DE VASCONCELOS a mais importante obra de estudo obrigatório para os alunos. Ainda no que às obras básicas diz respeito e relativamente às problemáticas do abuso de instituto e da desconsideração da personalidade colectiva, será, naturalmente, indicada a nossa “Desconsideração da Personalidade Jurídica das 67
Seguramente que na esteira de MANUEL GOMES DA SILVA.
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Sociedades Comerciais”. 3. No que toca à bibliografia de consulta essencial dela constarão as obras atinentes à Teoria Geral do Direito Civil que permitam um estudo panorâmico da matéria relativa à nossa disciplina, consoante as diferentes perspectivas de que os autores partem e desenvolvem as suas apresentações científicas. Neste grupo incluiremos os diversos volumes do “Tratado de Direito Civil Português”, de MENEZES CORDEIRO, as Teorias Gerais do Direito Civil, de CASTRO MENDES e CARVALHO FERNANDES e a “Teoria Geral da Relação Jurídica” e a “Teoria Geral do Direito Civil”, respectivamente, de MANUEL DE ANDRADE e de MOTA PINTO68. A simples enumeração das obras e dos autores dispensa justificações adicionais, já que o seu indiscutível mérito é universalmente reconhecido. A conjugação destas obras com as identificadas na bibliografia básica dará, indubitavelmente, suporte sólido à formação jurídica dos estudantes. 4. As restantes obras indicadas constituirão a bibliografia complementar. Dela constam obras gerais ou monográficas que pela sua importância e actualidade mereçam a atenção dos alunos, quer para o aprofundamento das matérias topicamente enunciadas, quer para um estudo de maior minúcia tendente à preparação de trabalhos escritos ou orais e deverão ser pontualmente indicados pelos docentes tendo sempre em atenção uma orientação assertiva dos estudantes, evitando dispersões corrosivas das suas tarefas. 5. Finalmente, sempre que o seu conteúdo se afigure relevante, devem ser aconselhadas e mesmo adoptadas colectâneas de jurisprudência e de casos práticos. Tais compilações podem revelar-se instrumentos de trabalho extremamente importantes. XII NOTAS FINAIS 1. Pensamos ter atingido os objectivos deste Relatório no decurso da nossa exposição. Não queremos, contudo, terminar sem algumas notas finais. A primeira é de que todo o estudo da disciplina de Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas deve ter como fonte primária o Humanismo Personalista. Será essa a marca de água do nosso ensino e revelar-se-á, na busca incessante do aprofundamento das questões, procurando o seu âmago em detrimento de visões superficiais e espúrias da matéria, na procura das situações da vida 68
A associação de CASTRO MENDES e CARVALHO FERNANDES, por um lado, e de MANUEL DE ANDRADE e MOTA PINTO, por outro, não é, obviamente, casual já que os segundos são, como se sabe, insignes seguidores dos primeiros.
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concreta no sentido da sua solução através de uma valoração ético-jurídica coerente, investindo no património criativo dos formandos, respeitando as suas idiossincrasias e sentir próprios e não os transformando em meras caixas de ressonância de ideias injuntivamente impostas, fomentando a heurística e a interdisciplinaridade, sindicado os resultados obtidos e as soluções apresentadas, abrindo-lhes, enfim, as portas da sua futura vida académica e profissional69. É à luz dessa base genética que este Relatório deve ser analisado e o seu valor aferido. 2. A segunda configura um truísmo, mas a importância da referência justifica-o. Trata-se do já inicialmente assinalado e repetidamente sublinhado desdobramento acrítico da Teoria Geral do Direito Civil de que a disciplina sobre que nos debruçamos resultou. Longe de nos querermos constituir como insurgentes contra o Processo de Bolonha entendemos que o seu aperfeiçoamento é não só útil como mesmo indispensável – é a defesa do próprio modelo inovador que o impõe. A experiência entretanto acumulada ao longo dos anos em que o ensino se pautou pelo novo paradigma não pode deixar de dar frutos e com eles a melhoria do sistema. Mau grado as dificuldades que reconhecemos existirem para a reformulação do plano de licenciatura, não podemos deixar de alertar para as nocivas consequências que neste caso concreto resultam da divisão que anotámos70. Fazendo, no entanto, fé na impostação aristotélica de que “a esperança é o sonho de um homem acordado”, aguardamos que a situação detectada venha a ser corrigida. 3. Pensando ter dado notícia à Escola do programa, conteúdos e métodos de ensino da disciplina de Direito das Pessoas e das Situações Jurídicas, submetemos o presente Relatório à devida apreciação. Bibliografia ABREU, Jorge Coutinho de - Do Abuso do Direito, Almedina, Coimbra, 1983 - Curso de Direito Comercial, II, Das Sociedades, Almedina, Coimbra, 2002. ALBUQUERQUE, Martim de - História do Direito Português, I, 10ª ed., Lisboa, 1999, com Ruy de Albuquerque ALBUQUERQUE, Pedro de 69 A criatividade não pode nem deve ser garroteada mas sim estimulada, mesmo que à custa de alguns erros, que o anelo do saber pode provocar, que serão prontamente assinalados e corrigidos pelos docentes. 70 Pensamos mesmo que as objecções ora formuladas são extensivas – talvez até por maioria de razão – a outras disciplinas e a lacunas detectáveis no plano de licenciatura.
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Direito das Pessoas e Situações Jurídicas
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II VIDA DA FACULDADE
Doutoramentos e mestrados
-A§ 1.Doutoramentos (20 de Dezembro de 2007) 1 Maria do Céu Rueff de Saro Negrão: O segredo médico como garantia de não discriminação. Estudo de Caso: HIV/SIDA Júri: Prof. Doutor Diamantino de Freitas Gomes Durão (Presidente); Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles; Profª Doutora Teresa Pizarro Beleza; Prof. Doutor Germano Marques da Silva; Profª Doutora Helena Pereira de Melo; Prof. Doutor Guilherme de Oliveira; Prof. Doutor Pedro Pais de Vascobcelos; Prof. Doutor Afonso de Oliveira Martins; Prof. Doutor Augusto da Silva Dias. (18 de Novembro de 2008) Nelson Nery Costa: A banca e o juro no direito brasileiro. Júri: Prof. Doutor Diamantino de Freitas Gomes Durão (Presidente); Prof. Doutor Afonso de Oliveira Martins; Prof. Doutor Augusto de Athayde; Prof. Doutor Jorge Pinto Furtado; Prof. Doutor Francisco António Paes Landim Filho; Prof. Doutor João Calvão da Silva; Prof. Doutor Joaquim Rocha; Prof. Doutor Manuel Pires. § 2. Mestrados (12 de Janeiro de 2009) Maria Cristina Garcez Santos Quintas: O princípio do tratamento mais favorável como princípio estruturante do Direito do Trabalho: a crise do princípio no âmbito da relação entre a lei e a convenção colectiva. Júri: Prof. Doutor Diamantino de Freitas Gomes Durão (Presidente); Prof. Doutor Manuel Pires; Prof. Doutor João Carlos Leal Amado; Prof. Doutor António José Moreira.
1
Por lapso, a menção a este doutoramento não foi feita no número anterior da Revista.
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Doutoramentos e mestrados
(30 de Junho de 2009) Júlio Manuel de Seixas Pereira Camelo: O trespasse no regime do arrendamento urbano. Júri: Prof. Doutor Diamantino de Freitas Gomes Durão (Presidente); Prof. Doutor Manuel Pires; Prof. Doutor Jorge Pinto Furtado; Prof. Doutor Eduardo dos Santos Júnior. (16 de Julho de 2009) Paula Cristina Viveiros Piedade Nunes da Cruz: Acidentes de trabalho: causas de exclusão e de redução da responsabilidade do empregador. Júri: Prof. Doutor Diamantino de Freitas Gomes Durão (Presidente); Prof. Doutor Manuel Pires; Prof. Doutor António José Moreira; Prof. Doutor António Garcia Pereira. (15 de Setembro de 2009) Patrícia Alexandra Ribeiro da Fonseca: Os danos não patrimoniais e a união de facto. Júri: Prof. Doutor Diamantino de Freitas Gomes Durão (Presidente); Prof. Doutor José Lorenzo Gonzalez; Prof. Doutor Jorge Duarte Pinheiro. (30 de Outubro de 2009) José Carlos Garcia dos Santos: Da convenção de arbitragem à intervenção judicial na constituição arbitral em arbitragem voluntária ad hoc. Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor José Lorenzo Gonzalez; Profª. Doutora Mariana França Gouveia. (9 de Março de 2010) Sara Elisabete Ferraz Neves: O Banco de Portugal e o poder de supervisão. Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Augusto de Athayde; Doutor Luis Bigotte Chorão; Profª Doutora Rita Sofia Calçada Pires. (23 de Março de 2010) Dina Maria Cabrita Santos Cochicho Cília: O enquadramento legal do contrato de trabalho plurilocalizado. Análise de uma situação juslaboral plurilocalizada: o trabalho a bordo de plataformas petrolíferas. Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Pedro Ortins de Bettencourt; Prof. Doutor António José Moreira; Profª Doutora Margarida Salema de Oliveira Martins. (3 de Maio de 2010) Filipa Vieira de Freitas Simões: Da harmonização fiscal do imposto sobre as sociedades no âmbito da União Europeia: iniciativas e o Tribunal de Justiça Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor José Lorenzo Gonzalez; Prof. Doutor Joaquim Manuel Freitas da Rocha; Profª Doutora 448
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Doutoramentos e mestrados
Margarida Salema de Oliveira Martins. (20 de Maio de 2010) Dafne Aguiar Bensimon: Da garantia bancária autónoma. Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Jorge Henrique Pinto Furtado; Prof. Doutor Jorge Alberto Caras Altas Duarte Pinheiro; Prof. Doutor Pedro João Fialho da Costa Cordeiro. (31 de Maio de 2010) António Tomás Graça Martins de Madureira: Os direitos fundamentais e a União Europeia Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Joaquim Marques Ascensão; Profª. Doutora Maria Margarida do Rego da Costa Salema de Oliveira Martins; Prof. Doutor José Alberto Rodrigues Lorenzo Gonzalez. (2 de Junho de 2010) Anabela Fonseca da Costa Fialho Baixas Figueiredo: Formação profissional e contrato de trabalho, ou o mito de Sísifo? Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor António José Moreira; Profª. Doutora Maria do Rosário Ramalho; Prof. Doutor Pedro Ortins de Bettencourt. (9 de Junho de 2010) Catarina Serrado Abreu Brazão de Gouveia: Da problemática dos preços de transferência. Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Manuel Pires; Prof. Doutor Joaquim Rocha; Prof. Doutor Augusto Athayde Soares de Albergaria. (15 de Junho de 2010) Florentina Maria de Freitas: Implicações ético-constitucionais da criação de uma base de dados genéticos para fins de investigação criminal. Segurança vs. Privacidade. Júri: Prof. Doutor Diamantino Freitas Gomes Durão (Presidente); Prof. Doutor José Artur Anes Duarte Nogueira; Prof. Doutor Paulo Manuel Mello Sousa Martins; Profª. Doutora Maria do Céu Rueff de Saro Negrão; Profª. Doutora Teresa Pizarro Beleza. (15 de Junho de 2010) Tânia de Herédia: Ética e responsabilidade civil por factos ilícitos. Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Cassiano Reimão; Prof. Doutor José Gonçalves de Proença; Prof. Doutor André Filipe dos Santos de Campos; Prof. Doutor José Alberto Gonzalez.
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Doutoramentos e mestrados
(18 de Junho de 2010) Ricardo Luís de Olim Marote Montez: Buscas domiciliárias (inviolabilidade do domicílio e criminalidade transnacional). Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Augusto Manuel Gomes da Silva Dias; Prof. Doutor Paulo Pinto de Albuquerque; Profª. Doutora Sílvia Anjos Alves.
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Conferências e Colóquios
-B– CONFERÊNCIAS E COLÓQUIOS I Direito de Autor e Sociedade da Informação. Perspectivas no Início do Século XXI (6 de Novembro de 2009) Conferencistas: Prof. Doutor Pedro Cordeiro (Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa); Mestre Carlos de Almeida Sampaio (Advogado – Cuatrecasas, Gonçalves Pereira, RL); Dr.ª Margarida Leitão Nogueira (Advogada – ABBC, Sociedade de Advogados RL); Dr. César Bessa Monteiro (Advogado - ABBC, Sociedade de Advogados RL); Prof. Doutor José de Oliveira Ascensão (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa); Dr. António Paulo Santos (Advogado); Drª Sónia Vaz (Advogada – Cuatrecasas, Gonçalves Pereira, RL); Dr. José Cintra Matias (Procurador da Republica Substituto; Prof. Doutor Dário Moura Vicente (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa); Mestre Miguel Pupo Correia (Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa). Organização: Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa. II A Ética na Arbitragem Desportiva (9 de Dezembro de 2009) Conferencista: Dr. Vítor Melo Pereira (Presidente da Comissão de Arbitragem da Liga Portuguesa de Futebol) Organização: Prof. Doutor Cassiano Maria Reimão (Universidade Lusíada de Lisboa). III 61 Anos Decorridos sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos (9 de Dezembro de 2009)
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Conferencistas: Prof. Doutor Adriano Moreira; Dr. Victor Nogueira. Organização: Centro de Estudos Jurídicos, Económicos e Ambientais da Universidade Lusíada de Lisboa; Mestre Teresa Coelho (Universidade Lusíada de Lisboa). IV II Semana do Brasil - VI Jornadas Luso-Brasileiras de Direito do Ambiente A Reparação do Dano Ambiental na Sociedade de Risco (14 de Dezembro de 2009) Conferencistas: Prof. Doutor Paulo Roney Fagundez (em rep. do Prof. Doutor José Rubens Morato Leite, Universidade Federal de Santa Catarina); Dr. Celso Marcos Vieira de Sousa (Embaixador do Brasil); António Herman Benjamin (Superior Tribunal de Justiça); Profª. Doutora Patrícia Iglecias; Mestre Tiago Antunes; Prof.ª Doutora Branca Martins da Cruz; Prof. Doutor Patryck Ayala; Mestre Vanesca Prestes; Prof. Doutor Paulo Roney; Mestre Cristina Aragão Seia; Prof. Doutor Fernando Torrão; Mestre Ana Raquel Conceição; Prof.ª Doutora Carla Amado Gomes; Desembargador Eládio Lacey; Dr. António Sequeira Ribeiro (Inspector Geral do Ambiente - Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa); Prof.ª Doutora Lígia Abreu; Prof.ª Doutora Elizabete Accioly (Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa); Desembargador Gilberto Pinheiro. Organização: Instituto Lusíada para o Direito do Ambiente - Prof.ª Doutora Branca Martins da Cruz (Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa). V O Conflito no Afeganistão. A Intervenção Internacional (18 de Dezembro de 2009) Conferencista: Major-General Carlos Manuel Martins Branco (Comando da Força Internacional no Afeganistão). Organização: Centro de Estudos Jurídicos, Económicos e Ambientais da Universidade Lusíada de Lisboa - Mestre Teresa Coelho (Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa) VI Ainda Darwin. Evolução, Ética e Direitos Humanos (5 de Março de 2010) Conferencistas: Prof. Doutor Michel Renaud (Universidade Nova de Lisboa); Prof. Doutor Alfredo de Oliveira Dinis (Faculdade de Filosofia de 452
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Braga da Universidade Católica Portuguesa): Prof. Doutor Joaquim Carreira das Neves (Universidade Católica Portuguesa); Prof. Cassiano Reimão (Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa); Dr. Artur Morão; Mestre Miguel Pupo Correia (Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa); Mestre Teresa Leal Coelho (Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa); Prof. Doutor Eduardo Vera Cruz Pinto (Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa; Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa). Organização: Prof. Doutor Cassiano Maria Reimão (Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa). VII Ainda Darwin. Contradições de uma Ética Evolucionista (17 de Março de 2010) Conferencista: Prof. Doutor Alfredo de Oliveira Dinis (Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica Portuguesa) Organização: Prof. Doutor Cassiano Maria Reimão (Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa). VIII XIV Jornadas Fiscais - I Conferência A ética: perspectiva de uma crise económica global (4 de Maio de 2010) Conferencistas: Prof. Doutor José António de Azevedo Pereira (DirectorGeral dos Impostos de Portugal); Dr. Miguel Cruz Amorós (Ex-Director-Geral dos Impostos de Espanha); Prof. Doutor Giovanni Puoti (Univesidade La Sapienza, Roma); Prof.ª Doutora Rita Pires (Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa); Prof. Doutor Dirk de Groot (Universidade de Bruxelas HUB); Dr. Joaquim Goes (Administração do BES); Prof. Doutor Carlos Palao (Universidad Autónoma de Madrid); Prof. Doutor Yoseph Edrey (Universidade de Haifa); Dr. Rogério Ferreira (Ex-Secretário do Estado dos Assuntos Fiscais); Drª Isabel Marques da Silva (Juiza-Conselheira do STA); Prof. Doutor Daniel Deak (Universidade de Budapeste); Prof. Doutor Pietro Selicato (Universidade La Sapienza, Roma); Prof. Doutor Cassiano Reimão (Universidade Lusíada de Lisboa); Prof. Doutor Manuel Pires (Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa). Organização: Prof. Doutor Manuel Pires (Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa).
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IX Congresso do Mar (19 a 22 de Maio de 2009) Conferencistas: Eduardo Vera-Cruz Pinto (Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa e Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa); Vice-Almirante Torres Sobral (Director-Geral da Autoridade Nacional de Segurança; Comandante José Baganha Fernandes (Direcção Geral de Autoridade Marítima); Nilufer Oral (Co-Chair CEL- Oceans, Coasts and Coral Reefs Specialist Group); Carla Amado Gomes (Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa); Isabelle Larmuseau (Chairman of the Flemish Environmental Law Association); Hendrik Schoukens (Flemish Environmental Law Association); Fausto Ferreira (Universidade Lusíada do Porto); Miguel Sequeira (Estrutura de Missão para os Assuntos do Mar); Délton Winter de Carvalho (Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil ); Deirdre Exell Pirro (ICEF - International Court of the Environment Foundation); Amadeo Postiglione (ICEF - International Court of the Environment Foundation); Gilles Martin (Université de Nice Sophia- Antipolis; EELA- European Environmental Law Association); Ney Bello Filho (Universidade Federal do Maranhão); Arlindo Daibert Neto (Procurador do Município do Rio de Janeiro); Ann Powers (Center for Environmental Legal Studies, New York, USA); Andrew Waite (Lincoln College, Universidade de Oxford); Profª Doutora Branca Martins da Cruz (Universidade Lusíada). Organização: Instituto Lusíada para o Direito do Ambiente - Profª Doutora Branca Martins da Cruz (Universidade Lusíada). X A actual aplicação do Código Civil Português de 1867 em Goa (24 de Maio de 2010) Conferencista: Prof. Doutor Elgar Noronha (V.M. Salgaocar College of Law, Goa – Índia) Organização: Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa [Com o apoio do Instituto de Cooperação da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa] XI União Europeia de Roma a Lisboa (26 de Maio de 2010) Organização: NEDULL - Núcleo de Estudantes de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa
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XII III Jornadas Pedagógicas (28 de Maio de 2010) Conferencistas: Prof. Doutor Cassiano Maria Reimão (Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa); Prof. Doutor José Gonçalves de Proença (Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa); Mestre Ricardo Leite Pinto (Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa). Organização: Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa. XIII Associativismo e sindicalismo judiciários ( Lançamento do livro) (29 de Junho de 2010) Conferencistas: Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade (Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Prof. Doutor André Freire (IUL- ISCTE) Organização: Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa Sindicato dos Magistrados do Ministério Público.
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Licenciados em Direito
-C§ 1 Licenciados em Direito (até 30 de Outubro de 2010)
AALTJE KOTOUN VAN DER VEEN ADELAIDE MADALENA CORREIA PEREIRA MATEUS ALEXANDRE MIGUEL CERQUEIRA MIRA ANA CATARINA DA SILVA SIMÕES URMAL ANA CRISTINA DE OLIVEIRA LUCAS ANA ISABEL QUEIROZ DO VALE ANA PATRÍCIA SALGADO DE LIMA ANA SOFIA GOUVEIA COIMBRA DOS SANTOS ANTÓNIO MANUEL LOURO PRATA ARNALDO MANUEL INFANTE MANSOS BENILDE CONCEIÇÃO DE SOUSA PEREIRA BRUNO FILIPE ALVES CARDOSO CATARINA AURORA TAVARES BRAS CATARINA SOFIA FRANCO DE SOUSA CHANG CHI HOU CHI PENG CHAO CLÁUDIA MARIA DOS SANTOS CALADO DA FONSECA CORINNE DO NASCIMENTO DANIEL DA CONCEIÇÃO TELES CARVALHO DOMINGOS ARMANDO FERNANDES EMMANUEL OSVALDO FRANCISCO DA SILVA EURIDICE JANAINA SOARES ALEXANDRE GONÇALO PEREIRA FORJAZ DE GOUVEIA DA COSTA HENRIQUE MANUEL BARATA MARQUES HUGO GONÇALVES OLIVENÇA IGOR VIEIRA RAPOSO JOANA MARGARIDA RODRIGUES DA COSTA JOANA MORAIS FERREIRA JOÃO CARLOS NEVES BARRETO JOSÉ Lusíada. Direito. Lisboa, n.º 7 (2010)
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Licenciados em Direito
JOÃO GABRIEL DA MATA GOMES JOÃO GONÇALO DE OLIVEIRA ESTRELA JOÃO MARIA CARDOSO PINTO DE MORAES VAZ JOÃO MIGUEL SOARES OLIVEIRA JOAQUIM MANUEL CROCA CAEIRO JOSÉ ANTÓNIO ARAÚJO VENTURA JOSÉ AUGUSTO RODRIGUES GOMES JOSÉ MANUEL RIBEIRO PASSAREIRA KATHY DOS SANTOS FRIANDE LEONG KUOK PAN LINA MARGARIDA VIOLANTE CONSTANTINO VICENTE LUÍSA MARIA CEZÍLIO SILVÉRIO MARIA FILOMENA ALMEIDA GROU MAURÍCIO MARIA HELENA MARTINS MOUTA DA FONTE PÓVOA MARIA ISABEL MODESTO DE MAGALHÃES BARROS SILVA MARISA SOFIA MARTINS ESTEVES MIGUEL DE SOUSA SARAIVA E CASTRO VALENTE NATACHA ALVES BATISTA PATRÍCIA MARGARIDA MENDES ANDRADE NUNES PATRÍCIA ISABEL DOMINGOS NOGUEIRA PAULO FILIPE HORTA PERES PEDRO RAFAEL SILVA OLIVEIRA PEDRO TIAGO GUIOMAR CORREIA RAQUEL BRITO FERNANDES RICARDO LEANDRO VASCONCELOS MONIZ BERENGUER RODRIGO MALATO MOURA GUEDES MACHADO ROSA MARIA DE JESUS TABORDA FÉLIX DE BARROS RUI JORGE MESQUITA DOS REIS RUI MIGUEL MILHEIRO NUNES MARTINS SANDRA FILIPA CORREIA TELES CARVALHO SARA DANIELA TAVEIRA FIGUEIREDO CAÇADOR SÍLVIA SOFIA SOARES BRANCO DO ROSÁRIO SILVA GONÇALVES SOFIA ALMEIDA FONTINHA SUSANA PATRÍCIA HENRIQUES LOPES TIAGO MIGUEL DE ALBUQUERQUE NUNES TEIXEIRA VANESSA ARAÚJO CÂMARA VANESSA DE JESUS TEIXEIRA MARTINS VÂNIA ISABEL CARMONA PIRES WONG IN LENG WONG SUT IENG XAVIER GUERRERO GUERRA
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Licenciados em Solicitadoria
§ 2 Licenciados em SOLICITADORIA (até 30 de Outubro de 2010)
ANA ISABEL LOPES DE AZEVEDO RUA CARLA SÓNIA DA SILVA PINTO LUÍSA LAURA DIAS GONÇALVES LUDOVICO MÁRIO JORGE VIEIRA CARDOSO SARA ALEXANDRA CORTINHAS PINTO TÂNIA MARGARIDA ANDRÉ JACINTO
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