Lusíada Direito - 10

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Série II, n . o 10 (2012) 1. o e 2. o Semestre

Direito Universidade Lusíada

Universidade Lusíada Editora Lisboa • 2012

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Lisboa


Mediateca da Universidade Lusíada - Catalogação na Publicação LUSÍADA. Direito. Lisboa, 2003 Lusíada. Direito I propr. Fundação Minerva - Cultura - Ensino e Investigação Científica ; dir. José Duarte Nogueira. - S. 2, n. 1 (2003)- . - Lisboa : Universidade Lusíada, 2003- . - 24 cm. - Anual Continuação de: Lusíada: revista de ciência e cultura. Série de direito ISSN 2182-4118 1. Direito - Periódicos CBC CDU ECLAS

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Lusíada. Direito

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2182-4118

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N. 0 10 (1. 0 e 2. 0 Semestre)

José Artur Anes Duarte Nogueira

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Série 11

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a Ciência e a Tecnologia E ENSIKO SUPLRlOR

Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projecto PEst-OE/CJP/UI4053/2011

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Sumário

SUMÁRIO I

DOUTRINA §1 ARTIGOS Para uma memória municipal. A portaria de 8 de Novembro de 1847 e os seus anais do município. António Manuel Amaro Rosa ..................................................................................................... 11 Alienação fiduciária em garantia e negócios afins: delimitação de fronteiras. José Alberto Gonzalez ................................................................................................................. 51 O preço da responsabilidade pela rutura contratual de um contrato de trabalho desportivo. Lúcio Miguel Correia ................................................................................................................. 139 Do programa do Governo. Luís Barbosa Rodrigues ............................................................................................................ 167 Andrea Amatucci - Homenagem. Manuel Pires ............................................................................................................................... 209 O segredo bancário e a fiscalidade na Ordem Jurídica Portuguesa. Maria Eduarda Azevedo ........................................................................................................... 213 A maternidade de substituição à luz dos Direitos Fundamentais de personalidade. Marta Costa e Catarina Saraiva Lima ..................................................................................... 237

§2

TRABALHOS ACADÉMICOS O confisco ampliado no Direito Penal Português. Paulo Silva Marques .................................................................................................................. 293

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Sumário ---··-------~---·------··

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II

VIDA DA FACULDADE -A-

§1 MESTRADOS Alunos com Mestrado (Novembro- 2010 I Abril- 2012) .................................... 321 -B-

§1 LICENCIADOS EM DIREITO Alunos Licenciados (Novembro de 2010 I Outubro de 2012) ............................ 327 §2 LICENCIADOS EM SOLICITADORIA

Alunos Licenciados (Novembro de 2010 I Outubro de 2012) ................................ 329

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I

DOUTRINA



ยง1 ARTIGOS



PARA UMA" MEMÓRIA MUNICIPAL " A PORTARIA DE 8 DE NOVEMBRO DE 1847 E OS SEUS ANAIS DO MUNICÍPI01

António Amaro Rosa 2 Resumo: A 8 de Novembro de 1847 o legislador português fez publicar uma Portaria Circular nos termos da qual as câmaras municipais ficq.ram incumbidas de criar os seus Anais do Município, onde «annualmente se consignem os acontecimentos e os factos mais importantes que occorrerem, e cuja memoria seja digna de conservar-se». O texto legal em causa era revelador das correntes intelectuais do seu tempo, mas desfasado da realidade das vereações municipais, pelo que terá sido reduzido o número de municípios que lhe deu efectivo cumprimento, apesar do universo de 351 concelhos existentes à época. Não obstante, a sua semântica sobreviveu ao longo de todo o século XX, sendo defensável não só a sua vigência no ordenamento jurídico, como até o contributo actual que ainda pode prestar no âmbito da memória e da identidade locais. Palavras-chave: Anais do Município; Portaria de 8 de Novembro de 1847. Sumário: Introdução. I - Génese. II -- Execução. III - Anais, memórias e identidades locais. Conclusão. Notas. Bibliografia. Agradecimentos. Apêndice ao Cap. II. Apêndice de imagens.

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O presente artigo tem na base a investigação feita em Mestrado de Estudos do Património realizado em 2011, com as alterações consideradas convenientes. 2 Jurista.

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António Manuel Amaro Rosa

INTRODUÇÃO

As palavras iniciais são geralmente utilizadas para justificar a escolha do tema. No presente trabalho tal não será excepção. Em primeiro lugar, provindo o discente do mundo jurídico a escolha de um diploma legal com uma valência histórica assumiu uma escolha natural. Por outro lado, sendo a História Local uma das suas grandes áreas de interesse pessoal e a leitura de monografias locais um hábito, o presente trabalho representa, então, a união perfeita entre dois mundos: a ligação do Direito à História. O trabalho a desenvolver tem por objecto a Portaria Circular de 8 de Novembro de 1847, nos termos da qual as câmaras municipais ficaram incumbidas de criar os seus Anais do Município, onde «annualmente se consignem os acontecimentos e os factos mais importantes que occorrerem, e cuja memoria seja digna de conservar-se». Em que contexto surgiu em 1847 a obrigação da criação destes Anais e quais os seus fins? Até que ponto esta obrigação de "memória municipal" foi efectivamente cumprida e quais os factores que influíram na sua (in)execução? Qual a importância deste tipo de medidas no âmbito da Memória e da Identidade? Serão essencialmente as questões que este breve trabalho tentará responder. Expostas sucintamente as razões para a escolha do tema e o objecto de estudo, passa-se a dar uma breve panorâmica dos próximos capítulos: assim, começar-se-á por explicar o contexto em que esta obrigação legal surgiu e os seus protagonistas; de seguida analisar-se-á a sua execução, os constrangimentos a ela associados e, mais importante, far-se-á uma contabilidade provisória dos "Anais" existentes; posteriormente, estudar-se-á a influência/ sobrevivência deste; diploma oitocentista até aos nossos dias; e, por fim, discorrer-se-á sobre a importância dos estudos locais no âmbito da Memória e da Identidade. Quanto à metodologia utilizada, dado que se trata de uma análise essencialmente histórica, a abordagem será maioritariamente hermenêutica, ou seja, este trabalho basear-se-á exclusivamente em fontes escritas e na bibliografia disponível (com especial atenção para as publicações locais), com o objectivo de reflectir e posteriormente retirar conclusões válidas.

I GÉNESE

A 11 de Novembro de 1847, o "Diário do Governo" n. 0 267 publicava nas suas páginas o seguinte diploma: 3 3

Collecção Official de Legislação Portuguesa redigida pelo Desembargador Antonio Delgado da Silva, Anno de 1846, Lisboa, Imprensa Nacionat 1847, pág. 498. Disponível na Internet em <URL: http://net.fd.ul.ptllegis/1847.htm>. Última consulta a 2011-06-02.

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Para uma "Memória Municipal". A portaria de 8 de Novenbro de 1847 e os seus anais .... , pág. 11-50

«Sua Magestade a RAINHA ha por bem Ordenar, que em cada uma das Camaras Municipaes dos Concelhos do Reino, e Ilhas Adjacentes, haja um livro especial com a denominação de =Anais do Município = no qual annualmente se consignem os acontecimentos e os factos mais importantes que occorrerem, e cuja memoria seja digna de conservar-se; e bem assim: as descobertas de riquezas, substancias e combustíveis mineraes; -o augmento ou diminuição da producção agrícola, e suas causas;- a longevidade das pessoas de que houver noticia, com a declaração do modo de vida que tiveram, e do seu alimento habitual; - as acções generosas; e os nomes dos seus auctores, que mereçam ser transmitidos ás gerações futuras;- e finalmente, tudo quanto possa interessar as tradições locaes. Para este fim Quer Sua Magestade que os Presidentes das Municipalidades nomêem uma Commissão, composta de alguns Vereadores, ou Vogaes do Conselho Municipal, que fôrem julgados mais aptos, a qual em todos os annos, no principio do mez de Março, e depois das reuniões necessarias, redigirá uma memoria que contenha as noticias e esclarecimentos acima indicados, e que sendo lançada em letra bem legível no referido livro, que se guardará cuidadosamente no archivo da Camara, será assignada por todos os Vogaes da Commissão. O que a Mesma Augusta Senhora Manda, pela Secretaria d'Estado dos Negocias do Reino, participax ao Governo Civil de Vianna, para seu conhecimento, e para que, expedindo nesta conformidade as convenientes ordens ás Camaras Municipaes do Districto a seu cargo, fiscalize a execução dellas, por intervenção dos Administradores respectivos. Palacio das Necessidades, em 8 de Novembro de 1847. = Antonio de Azevedo Mello e Carvalho.» 4 Apesar de se referir unicamente ao Governo Civil de Viana do Castelo, certo é que no mesmo dia 8 de Novembro a portaria circular em causa foi remetida aos restantes governadores civis do continente e ilhas adjacentes 5 • O intuito do legislador6 de 1847 não era propriamente original e semelhante medida nem sequer foi a última. De facto, logo após a criação da Academia Real de História, em 1720, António Caetano de Sousa propõe a realização de um inquérito destinado a diversas entidades civis e religiosas, com o fim de se elaborar uma 4

Todas as transcrições efectuadas ao longo deste trabalho respeitam a grafia original. Ob. cit. 6 António de Azevedo Melo e Carvalho (Penafiel, 1795- Lisboa, 1862) era originário da Casa de Azevedo, uma das mais antigas famílias portuguesas. Casou-se com Alexandra Adelaide Pereira Monteiro de Baeça Veloso de Barbosa, de quem teve um filho, António de Azevedo Coutinho Melo e Carvalho. Bacharel em Direito pela Universidade de Coimbra em 1817, teve uma longa carreira na magistratura judicial, tendo chegado a juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça. Teve igualmente uma intensa vida política: senador de 1838 a 1842, deputado de 1842 a 1845 e de 1851 a 1858, par do reino em 1861 e ministro dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça entre Fevereiro e Setembro de 1842. À data da Portaria de 8 de Novembro de 1847 António Melo e Carvalho detinha a pasta do Reino (MÓNICA, 2004: 606).

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história eclesiástica (COELHO, 1926: 291), sendo que semelhante metodologia ocorre anos mais tarde, com as conhecidas "Memórias Paroquiais de 1758", embora com fins teleológicos diferentes 7 • Já de época posterior ao objecto do presente estudo são de referir a Portaria do Ministério dos Negócios Eclesiásticos e de Justiça/ de 20 Abril de 1858/ pela qual «se manda que os prélados concorram para o registo geral de noticias históricas», 8 e o Decreto de 17 de Junho de 1909, nos termos do qual se instituiu um concurso anual de monografias rurais9 • Contudo, a criação da Portaria Circular de 8 de Novembro de 1847 surgiu num contexto distinto do das medidas antecedentes. São essencialmente três as razões que, consciente e inconscientemente, presidiram à emissão daquele diploma legal: o ideário municipalista (como reacção ao excessivo centralismo), o aparecimento de uma "nova história" e a grande influência de Alexandre Herculano. De acordo com Armando Malheiro da Silva, «a impossibilidade prática de fazer História sem documentos começou por ser reconhecida pela historiografia romântica e acabou por se tornar um princípio apodítico da historiografia de inspiração positivista, que se expandiu, aquém e além Atlântico, desde meados do séc. XIX» (SILVA, 1999: 187). Com o Romantismo, a memória escrita constitui, portanto, um pilar essencial na forma como se constrói o edifício da história. Acresce que «esta descida romântica às raízes foi uma opção global: o passado e os vestígios da cultura popular foram elevados a fontes inspiradoras de um movimento que, como em outros países (Alemanha, França, Espanha), visava, em última analise, nacionalizar as consciências. ( ... ) Se a aquisição de outros conhecimentos Qurídicos, científicos, técnicos, agrícolas, geográficos) era crucial par a modernização do país, os seus efeitos seriam civicamente nulos se não fossem sobredeterminados por uma nova consciência histórica capaz de alimentar o patriotismo, de fomentar o consenso e de conferir, a partir do passado, um sentido para o presente e para o futuro» (TORGAL et alli, 1998: 48). Porventura mais importante é a influência de Alexandre Herculano. Para além de defensor do importante papel dos municípios, o historiador destacou-se igualmente pelo seu labor de recolha de importantes fontes documentais de que são exemplo seminal os "Portugaliae Monumenta Historica" (1856) 10 . <<Quem 7

Disponíveis na Internet em <URL: http:l/digitarq.dgarq.gov.ptldetails?id-4238720>. Última consulta a 2011-06-17. 8 Collecção Official da Legislação Portuguesa redigida por José Máximo de Castro Neto Leite e Vasconcellos, do Conselho de Sua Magestade e Juiz da Relação de Lisboa, Anno de 1858, Lisboa, Imprensa Nacional, 1859, pág. 109. Disponível na Internet em <URL: http: I lnet.fd.ul.pt !legis I 1858.htm>. Última consulta a 2011-06-02. 9 Collecção Official da Legislação Portuguesa, Anno de 1909, Lisboa, Imprensa Nacional, 1910, pág. 483. Disponível na Internet em <URL: http://net.fd .ul.pt!legisl1909.htm>. Última consulta a 2011-03-24. 10 Disponível na Internet em <URL: http://www.univ-ab.ptlbadi20ificha biblio.html>. Última consulta a 2011-06-16.

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se occupar da historia portuguesa, ha-de sepultar-se nos archivos públicos e descubrir entre milhares de pergaminhos, frequentemente difficeis de decifrar, aquelle que faz ao seu intento: há-de indagar nos monumentos estrangeiros onde é que se encontram passagens que illustrem a historia do seu paiz, hade avivar as inscripcoes, conhecer os cartórios particulares das cathedraes, dos municipios, e dos mosteiros», lamentava-se Alexandre Herculano nas primeiras páginas da sua "História de Portugal" (1847), acrescentando em seguida que «é na verdade vergonhoso, que Portugal se não tenha associado ainda ao grande impulso historico dado na Allemanha, por esse foco do saber grave e profundo, a toda a Europa; mas a culpa não é dos nossos homens de letras, e sobre tudo da juventude, entre a qual não falta engenho nem boa vontade. A culpa é de quem pretende, que o architecto dê a traça do edificio, e carreie para elle a pedra e o cimento» (HERCULANO: 23). Os alertas e o exemplo prático levados a cabo por Herculano terão, assim, servido de fonte inspiradora à Portaria de 8 de Novembro de 1847. «A recolha das fontes- e é conhecido o papel de Herculano na colheita de milhares de documentos dispersos por igrejas e conventos do país e em risco do desaparecimento devido às vicissitudes políticas e sociais da época - era, por isso, esseljcial para a nova história, como o seria a correlata aplicação dos métodos de crítica documental, lição que terá aprendido ainda jovem nas aulas de Diplomática e nos melhores historiadores europeus do período ( ... )» (TORGA L et alli, 1998: 69). Paralelamente, este diploma veio reconhecer o importante contributo da história local na compreensão da própria história nacional (COELHO, 1926: 293). Não obstante estas três grandes ordens de razão, importa salientar que o aparecimento do diploma oitocentista também se insere no «movimento tendente à catalogação de conhecimentos, através de obras de levantamentos de dados ( .. .) ou então de catalogação enciclopédica» que naquela época se verificava «como sucede com o 'Dicionário popular, histórico, geográfico, mitológico, biográfico, artístico, bibliográfico e literário', de Manuel Pinheiro Chagas, publicado de 1841 a 1886, ou a catalogação de elementos de variado tipo referentes à vida das localidades portuguesas, como acontece com 'Portugal Antigo e Moderno' (18731890) de Pinho Leal» (TORGAL e VARGUES, 1993: 690). APartaria Circular de 8 de Novembro de 1847 foi simultaneamente recebida com louvor e cepticismo. Louvor, de facto, por parte dos extractos da população dotados de um maior grau de erudição. Importa frisar que o diploma surge na época da já citada "descida romântica às raízes", logo, numa conjuntura muito favorável a este tipo de iniciativas: «a collecção d' estes annaes conscienciosamente redigidos deve prestar valiosos subsídios para a historia, geographia, archeologia e estadística do paiz» (NOGUEIRA, 1856: 160). Para Gama Lobo11 , significava «( ... ) a abertura de um caminho de gloria e de prosperidade para os vindoiros. É a 11

Apesar das pesquisas efectuadas, não foi possível reunir informação biográfica sobre este articulista.

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base de uma Encyclopedia Nacional, cujas doutrinas deverão ser tão importantes, quanto é visível e experimental o principio d' onde partem. É a primeira pedra, em summa, da estatística do paiz» 12 . Contudo, desde muito cedo ficou expresso o cepticismo em torno da exequibilidade da medida legal em causa. «Este pensamento é digno de louvor, ha razoes porém para duvidar da sua prática», referia-se-lhe assim a "Revista Universal Lisbonense" dias após a sua publicação no jornal oficial. E havia, de facto, fortes razões para isso. Tais razões encontram-se, aliás, bem escalpelizadas num interessante artigo assinado por Gama Lobo precisamente nas páginas da edição n. 0 43 daquele mesmo periódico, a 30 de Agosto de 1849: «Apesar do brado forte, que essa luminosa determinação acaba de alevantar em nosso abono; apesar d'esse protesto solemne, que o presente acaba de exarar, em caracteres officiaes, contra o passado, perguntaremos ainda- qual é o fructo, que, ha dois annos, se tem derivado de uma providencia tão salutar e de tamanha sympathia? Quantas commissões estão já eleitas por esses municípios? Que é dos seus trabalhos, que é das suas memorias, que é dos seus apontamentos ao menos? De alguns sabemos nós - e de primeira ordem! - que nem um só passo teem dado a tal respeito; e quiçá, não levantaremos uma calumnia, se affirmarmos que, a muitos d' elles, ainda é inteiramente desconhecida a existência de uma determinação tal!! Estamos, porém, que não é de todo- e ainda bem- a sua culpa. Se nós vivessemos em um tempo, em que, para levar a effeito providencias d'esta natureza, fosse bastante um simples decreto, a sua absoluta enunciação, póde ser que então não carecêssemos d'ellas: mas essa epocha ainda está distante, e as rixas politicas, em que infelizmente 'labutamos' -com as suas odiosas excepções -mais longe ainda d'ella nos colloca. Era, portanto, mister que a lei fosse mais terminante, e que, além da sua publicação, se providenciasse cuidadosamente sobre os meios de sua execução, e modo de lhe aproveitar os fructos.» Com efeito, ao rigor da lei no tocante à fixação do conteúdo dos anais contrapunha-se a falta de clareza quanto aos meios para a sua execução, embora tal opacidade possa ser entendida como uma opção deliberada do legislador em atribuir uma maior margem de discricionariedade aos destinatários. Porém, mais grave era o facto de a portaria não prever qualquer sanção para a sua inobservância. Daqui advém outra crítica do articulista de 1849: «incumbir d' esta empreza uma commissão, e circumscrever esta commissão aos Corpos Municipaes, sem mais nexo, sem mais zelo, que a solta fiscalisação de um Governador civil por dia dos 'Administradores respectivos', é quasi o mesmo que deixa-loirá revelia; e a causa não é de certo de tão pouca monta». Também quanto a este ponto assistia alguma razão a Gama Lobo. Um bom retrato da importância que os governadores civis (não) atribuíam à obrigação plasmada na Portaria Circular de 1847 é susceptível de ser encontrada na "Collecção dos relatórios das visitas feitas aos districtos pelos respectivos 12

Revista Universal Lisbonense, n. 0 46, de 1847.

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governadores civis" (1868), uma obra, aliás, extremamente interessante à luz dos nossos dias pela quantidade e qualidade de informação do quotidiano dos concelhos portugueses de então. Da consulta a este conjunto de relatórios13 conclui-se que apenas os governadores civis de Aveiro, Leiria e Portalegre incluíram a Portaria Circular de 1847 no rol de pontos a auditar no âmbito das suas visitas às câmaras municipais. Por outro lado, apenas o relatório referente ao distrito de Leiria é verdadeiramente exemplar, já que aquele magistrado administrativo, contrariamente aos demais, se refere expressamente à existência ou não dos "Anais do Município" em cada uma das câmaras visitadas 14 . Para além da exemplar atenção do Governador Civil de Leiria em 1868, também outro magistrado administrativo já se havia destacado pelo seu empenho na efectiva execução dos Anais do Município no seu distrito, poucos meses depois da publicação de portaria em causa. Com efeito, a 3 de Janeiro de 1848, José Silvestre Ribeiro 15, ao tempo governador civil do Funchal, «convencido da grande utilidade de uma tal providencia, que eu me dou por obrigado a recommendá-la», remete a todas as câmaras municipais da sua circunscrição administrativa a Circular n .0 180, relembrando-lhes a «( ... ) providencia foi tomada ultimamente (em 8 de Novembro do anno findo) pelo Governo de Sua Magestade, que deve ser acolhida com o mais vivo interesse, como encerrando os mais fecundos elementos para traçar a historia do nosso paiz>> (RIBEIRO, 1854: 245). Contudo, nem a força da lei, nem a bem-intencionada circular terão surtido o efeito desejado junto dos municípios situados nas ilhas da Madeira e de Porto Santo, apesar da disponibilidade manifestada pelo governador civil funchalense em «( .. .) prestar-lhes todo o genero de coadjuvação, incluindo a concessão de quaesquer esclarecimentos officiaes da Secretaria deste Governo Civil>> (idem, 247). Esse resultado aquém do esperado encontra-se plasmado logo num dos primeiros parágrafos da nova circular de José Silvestre Ribeiro, datada de 22 de Janeiro de 1850: «( ... )bem poucos dos Srs. Administradores de Concelho, e das Camaras deste Districto têem dado a devida attenção,- os primeiros, á exigência que lhes fiz de uma "Descripção Economica, Topographica e Politica" dos seus Concelhos- e as segundas, á recomendação que, segundo as ordens do Governo, lhes enderecei na minha Circular n. 0 180 de 3 de Janeiro de 1848, ácerca dos "Annaes do Município" (idem, 248). Dois anos depois da sua circular inicial, José Silvestre Ribeiro estava agora ciente da real dificuldade dos municípios em dar cumprimento à Portaria 13

No entanto os governadores civis de Coimbra e de Lisboa não apresentaram os relatórios que lhes competiam. 14 Toda a extensa informação referente aos Anais do Município que consta da "Collecção dos relatórios ... " encontra-se plasmada em apêndice a este trabalho. 15 Para além da sua carreira política, José Silvestre Ribeiro notabilizou-se igualmente pela sua produção historiográfica, na qual se destaca a "História dos estabelecimentos científicos, literários e artísticos de Portugal nos sucessivos reinados da monarquia".

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Circular. De facto, seria extremamente difícil constituir a comissão referida no diploma legal, não só porque obrigações mais prementes e mundanas solicitavam a atenção dos vereadores, mas também pelo facto de os vereadores, só por si, não constituírem garantia de "habilitação técnica" para a execução dos Anais do Município. Como tal, o governador civil funchalense, recorrendo ao que hoje se apelida de "boas práticas administrativas", sugere como possível exemplo a seguir a forma de cumprimento da lei demonstrada pelo município da Calheta: «Neste sentido me occorre fazer constar ás Camaras deste Districto o expediente a que uma dellas, a da Calheta, recorreu; qual foi o de commetter a escriptura dos Annaes do Municipio a um Cidadão, que reputou habil para este mister, arbitrando-lhe uma gratificação annual pelo serviço da redacção da Memoria ( ... ). O Conselho de Districto approvou já esta despeza, e approvará de bom grado semelhante verba quanto ás outras Camaras. ( ... )A escolha da Camara deve recahir em pessoa que seja de todo ponto capaz de desempenhar um tal serviço, e se sujeite a uma gratificação modesta, por maneira que não se onerem demasiadamente os rendimentos municipaes» (idem, 249). Refira-se, porém, que esta mesma possibilidade já havia sido sugerida pelo citado articulista Gama Lobo nas páginas da "Revista Universal Lisbonense", de 1849, alertando para o facto de existirem «( ... ) curiosos, que teem já sobre esta materia importantes trabalhos, e que a ella são affeiçoados por índole ou por patriotismo; fôra portanto conveniente que os Municípios os soubessem aproveitar, e que elles se prestassem de bom grado ás suas exigencias. N'isto fariam um grande serviço á nação, maior ainda á terra que os viu nascer, a si proprios, e a sua memoria seria bem recebida pela posteridade». De todo o modo, o próprio legislador não se alheou completamente da ques1ão da execução da Portaria Circular de 1847. A 15 de Abril de 1854 emite uma circular através do Ministério dos Negócios do Reino, nos termos da qual «manda Sua Magestade EL-REI, Regente em Nome do REI ( ... )que o Governador Civil do Districto de Lisboa, declare, quanto antes, qual o cumprimento que no mesmo Distrcto se ha dado á dita Portaria-Circular; na intelligencia de que se, porventura, n'isso tiver havido algum descuido, deve, sem demora, dar as ordens necessarias para a sua inteira execução». Apesar desta circular apenas se referir ao governador civil de Lisboa, a mesma foi remetida na mesma data aos restantes magistrados administrativos do reino e ilhas adjacentes 16 • Maugrado a reduzida realização de Anais do Município, nem por isso o legislador deixou de ver na Portaria Circular de 1847 uma medida dotada de alguma utilidade, não só relativamente ao território do reino e ilhas adjacentes, mas também no tocante aos territórios ultramarinos portugueses. Assim, a 8 de 16

Collecção Official da Legislação Portuguesa redigida por José Máximo de Castro Neto Leite e Vasconcellos, do Conselho de Sua Magestade e Juiz da Relação de Lisboa, Anno de 1854, Lisboa, Imprensa Nacional, 1855, pág. 91. Disponível na Internet em <URL: http: I /net.fd.ul.pt /legis/1854.htm> . Última consulta a 2011-03-29.

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Janeiro de 1856, a Repartição do Ultramar do Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar mandou«( ... ) que em todas as Camaras Municipaes das Provindas do Ultramar se ponha em execução o disposto na sobredita Portaria do Ministerio do Reino, e que no livro = Annaes do Municipio =por ella mandado crear, se mencione (nas capitães das Provindas) alem dos acontecimentos e factos que ella indica, a posse dos respectivos Governadores, e o tempo que governaram; devendo por todas as ditas Camaras ser todos os annos remettida ao Conselho Ultramarino uma copia das notas que, relativamente ao anno anterior, houverem sido lançadas nos respectivos livros, e uma outra copia ao Governador Geral da Província, para a fazer publicar no Boletim do Governo» 17 • Na opinião de Casimiro Rodrigues, esta medida era mais uma tentativa para conseguir o controlo mínimo e uma certa regularidade na vida das localidades, a par da recolha de alguma informação sistematizada (RODRIGUES, 2007: 219). Volvidos dois anos e constatando-se que a extensão do diploma legal ao território do ultramar tinha começado a produzir alguns bons frutos, uma vez que Moçâmedes (1856 e 1857)18 e Damão (1857) 19 remeteram os seus Anais do Município, o Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar, encorajado por aqueles dois exemplos, fez sair nova portaria circular a 23 de Dezembro de 1858, através da qual recomenda às câmaras municipais das províncias do ultramar «( ... ) a devida execução do disposto na Portaria circular de 8 de Janeiro de 1856, fazendo-lhes ver a muita honra que ás mesmas Camaras ha de resultar da publicação dos seus actos>> 20 • Contudo, porque entretanto se constatou que os "Annaes de Mossamedes" de 1857 faziam referência a« ( ... ) desintelligencias ou questões que mais conviria ficarem esquecidas>>, o ministro da marinha e do ultramar Adriano Maurício Guilherme Ferreri, numa solução de compromisso entre a censura total e a publicação integral, determinou, por via de circular publicada a 22 de Novembro de 1859, que os anais só deviam conter «( ... ) noticias de verdadeiro interesse publico e que mereçam ser conservadas, e por sorte nenhuma a memoria de desintelligencias ou questões que melhor seria não terem existido>>. Para tanto, estabeleceu que, a partir daí, os Anais do Município «( ... ) sejam pelas 17

Collecção Official da Legislação Portuguesa redigida por José Máximo de Castro Neto Leite e Vasconcellos, do Conselho de Sua Magestade e Juiz da Relação de Lisboa, Anno de 1856, Lisboa, Imprensa Nacional, 1857, pág. 5 do suplemento. Disponível na Internet em <URL: http://net.fd.ul.ptllegisl1856.htm>. Última consulta a 2011-03-29. 18 Annaes do Mtmicípio de Mossamedes I ed. lit. Pe. António da Silva Rego. Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1974. 19 Disponível na Internet em URL: http: I lbooks.google.ptlbooks?id=XFYMAQAAMAAJ &printsec=frontcover#v=onepage&q&f=false>. Última consulta a 2011-06-14 2 °Collecção Official da Legislação Portuguesa redigida por José Máximo de Castro Neto Leite e Vasconcellos, do Conselho de Sua Magestade e Juiz da Relação de Lisboa, Anno de 1858, Lisboa, Imprensa Nacional, 1859, pág. 109 do suplemento. Disponível na Internet em <URL: http: I lnet.fd. ul.pt llegis l1858.htm>. Última consulta a 2011-03-29.

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Camaras Municipaes remettidos a elle Governador Geral, o qual os transmitirá a esta Secretaria d'Estado acompanhados de quaesquer informações que julgar convenientes; mas sem que possa mandar riscar qualquer parte d' elles, ficando ao juizo do Governo decidir se os Annaes se deverão publicar na sua integra, ou somente em parte» 21 •

II EXECUÇÃO

Em 1847 a realidade administrativa portuguesa era ainda diferente da actual, na medida em que o número total de concelhos ascenderia a 351 (OLIVEIRA, 2011: 5), ou seja, um considerável conjunto de realidades locais que contrasta com os actuais 308 municípios, alguns dos quais surgidos no período pós-Monarquia Constitucional, como foram os casos de Castanheira de Pera, São Brás de Alportel, Amadora, Trofa e Odivelas, apenas para citar alguns exemplos. Este universo de municípios aliado à circunstância de nem todos os arquivos municipais se encontrarem organizados têm obstado, entre outras razões, ao conhecimento do número exacto de Anais do Município que foram criados na sequência da Portaria Circular de 1847. Certo é que existe a convicção generalizada de que «( ... ) a portaria do século passado não teve grande cumprimento, apenas os municípios de Lisboa, Porto, Coimbra e Guimarães aderiram à ideia, o centralismo do poder régio também não era favorável e D. Pedro V tinha mesmo a opinião de que era prejudicial e comentava-se: já viram o que seria o país inteiro encher-se de mufucipalistazinhos?» (NUNES, 1996: 77). Mas João Gomes de Oliveira Guimarães, também conhecido por Abade de Tagilde, procurou, ele próprio, ir mais além do que a mera "convicção geral" sobre o (in)cumprimento do diploma de 1847, tendo para o efeito encetado contactos com os municípios portugueses nos derradeiros anos do século XIX. Refere o compilador dos anais vimaranenses que «consegui averiguar que em 120 municípios não teve começo d' execução a referida portaria; em 11 alguns trabalhos se fizeram ( ...);em 7 apenas se adquiriu o livro e nomearam as commissões e nada mais se fez. Dos restantes 156 municipios do continente e ilhas adjacentes nada pude averiguar não obstante as informações que officialmente solicitei, sendo por isso de conjecturar que para estas camaras foi, com raríssimas excepções, lettra morta a portaria de 8 de novembro de 1847>> (SARMENTO, 1931: VIII). Útil seria que o Abade de Tagilde tivesse elencado os nomes de todos os municípios,

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Collecção Official da Legislação Portuguesa redigida por José Máximo de Castro Neto Leite e Vasconcellos, do Conselho de Sua Magestade e Juiz da Relação de Lisboa, Armo de 1859, Lisboa, Imprensa Nacional, 1860, pág. 88 do suplemento. Disponível na Internet em <URL: http://net.fd.ul.pt/legis/1859.htm>. Última consulta a 2011-03-29.

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pois dessa forma hoje teríamos uma melhor percepção do grau de cumprimento. Obviamente que os estritos limites temporais e espaciais do presente trabalho não permitiram a elaboração de uma "contabilidade definitiva", mas apenas a recolha das notícias que elencamos em Apêndice. Apesar da reconhecida utilidade da Portaria Circular de 1847, certo é que o seu cumprimento ficou muito aquém das potencialidades que encerrava e foi sendo paulatinamente olvidada pelas sucessivas edilidades, de tal forma que só a 24 de Março de 1936 ressurge o interesse do legislador pelo diploma. De facto, «convencido da necessidade e da vantagem da organização dos arquivos históricos dos municípios portugueses» (LANDEIRO, 1995: XVI), o então Ministro de Interior Mário Pais de Sousa22 relembrou as câmaras municipais para a doutrina plasmada no diploma oitocentista, servindo-se para tanto de um despacho, transmitido a 25 daquele mês e ano aos governadores civis, através da Direcção Geral de Administração Política e CiviP. O renovado interesse pelo diploma legal de 1847 não se ficou, no entanto, pela citada circular do Ministério do Interior. Certamente até como forma de enfatizar a observância do dever ali prescrito, a Procuradoria Geral dos Municípios chegou mesmo a criar um modelo de livro oficial dos Anais do Município ("Modelo 114-R") cuja folha de rosto incluía um extracto da Portaria-Circular, confofme exemplar referente ao Município de Vila do Bispo, que reproduzimos em anexo ao presente trabalho (vide ilustrações 2 e 3) 24 • Seja como for, a circular de 1936logrou produzir alguns efeitos, na medida em que vários Anais do Município foram criados ora sob a forma de monografias locais, ora sob a forma de publicações periódicas. Contudo, e pelas mesmas razões já elencadas, os estritos limites deste trabalho não permitirem conhecer "o deve e o haver" resultante da circular em causa, mas tão-só a recolha da informação que se elenca em Apêndice e para onde se remete. A circular de Mário Pais de Sousa constituiu um mero acto administrativo destinado a relembrar um diploma legal com 89 anos de idade e nascido nas primeiras décadas do Liberalismo. Assim, era necessário ao legislador criar um maior grau de convicção quanto ao cumprimento das obrigações ali ínsitas, designadamente sob a forma de uma verdadeira lei. Tal oportunidade surgiu e 22

Collecção Official da Legislação Portuguesa redigida por José Máximo de Castro Neto Leite e Vasconcellos, do Conselho de Sua Magestade e Juiz da Relação de Lisboa, Anno de 1859, Lisboa, Imprensa Nacional, 1860, pág. 88 do suplemento. Disponível na Internet em <URL: http://net.fd.ul.pt/legis/1859.htm>. Última consulta a 2011-03-29. 23 Apesar das nossas tentativas, designadamente junto da Divisão de Documentação e Arquivo do Ministério da Administração Interna, não foi possível localizar a Circular de 25 de Março de 1936. Ao técnico superior da referida divisão, Luís Almeida, expressamos o nosso agradecimento pela atenção que dedicou a este assunto. 24 Ao Arquivo Municipal de Vila do Bispo e ao seu técnico superior Nuno Marques expressamos o nosso agradecimento pela cedência da digitalização da folha de rosto em causa, nos termos do seu regulamento

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foi aproveitada com o Código Administrativo de 193625 • Essa mesma conclusão se retira da leitura do n. 0 5 do artigo 48. 0 , no qual se prescrevia que <<no uso das atribuições de cultura e assistência, pertence às câmaras deliberar ( ... ) sobre a publicação de documentos inéditos que interessem à história do município, e de anais ou boletins destinados à divulgação, entre os munícipes, dos factos notáveis da vida passada e presente do concelho». Porém, esta obrigação era meramente facultativa (vide artigos 59. 0 , 60. 0 e 63. 0 a 65. 0 , a contrario sensu daquele corpo legal) . Ou seja, uma vez mais da falta de criação dos Anais do Município não advinha nenhuma consequência de maior para as edilidades ... Com o 25 de Abril de 1974 assiste-se a um reforço do Poder Local através da alteração do seu quadro legal. Progressivamente, a regulamentação das autarquias locais deixa de constar do Código Administrativo para passar a constar de legislação extravagante. Tal é o caso da definição das atribuições e competências das autarquias locais e dos seus órgãos. Assim, a 29 de Março de 1984 é publicado o Decreto-Lei n. 0 100/8426 , nos termos do qual se procede à revisão da Lei n. 0 79/77, de 25 de Outubro, que por sua vez definia as atribuições das autarquias locais e competências dos respectivos órgãos. Ora, uma das alterações deu-se precisamente no artigo 51. 0 , o qual passou a dispor no seu n. 0 4 que «compete ainda à câmara municipal ( ... ) promover a publicação de documentos, anais ou boletins que interessem à história do município>>. Posteriormente, a 18 de Setembro de 1999, a Assembleia da República estabelece o quadro de competências actualmente vigente, assim como o regime jurídico de funcionamento dos órgãos dos municípios e das freguesias, por via da Lei n. 0 169/9927, vulgarmente designada por "Lei das Autarquias Locais". Assim, por força do estatuído no artigo 64.0 , n. 0 1, alínea t) daquele diploma, presentemente «co~pete à câmara municipal no âmbito da organização e funcionamento dos seus serviços e no da gestão corrente( .. .) promover a publicação de documentos, anais ou boletins que interessem à história do município». Conclui-se, desta forma, que a Portaria Circular de 1847 não foi expressamente revogada pelos legisladores, tendo atravessado a l.a República, o Estado Novo e a 3.a República e inclusivamente influenciado os diplomas administrativos referentes às competências das autarquias locais, demonstrando, assim, uma invulgar capacidade de "sobrevivência legal". Porém, apesar de ser defensável o entendimento de que o diploma oitocentista ainda se encontra em vigor, será que o conteúdo nele prescrito mantém actualidade? Na opinião de José Amado Mendes, a Portaria Circular de 1847 não constituía um modelo de virtudes, na medida em que era «( ... ) 25

Disponível na Internet em <URL: http: //www.fd.unl.pt/ default.asp#>. Última consulta a 2011-06-16. 26 Disponível na Internet em <URL: http:l/dre.pt/pdflsdip/1984/03/07500/10421059. !2df>. Última consulta a 2011-06-16 27 Disponível na Internet em URL: h ttp://dre.pt/pdflsdip/1999/09/219A00/64366457. !2df>. Última consulta a 2011-06-16

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um "questionário" incompleto - por exemplo, não contemplava a produção industrial nem o sector da distribuição e dos serviços», acrescentado, no entanto, o mesmo autor que «se tivesse sido aplicado, em todos os municípios, teríamos hoje uma fonte histórica da maior relevância para o seu estudo" (MENDES, 2000: 355). Considerando que «o investigador local, hoje em dia, deve efectuar com o devido cuidado uma abordagem transdisciplinar nos estudos que faz, baseandose em disciplinas como: geografia regional, história rural, arqueologia rural, arqueologia industrial, património local, história da tradição oral, toponímia local, história do municipalismo, entre outras coisas» (NUNES, 1996: 79), necessariamente terá de se concluir que as autarquias locais, caso pretendam dar cumprimento (ou continuidade, em certos casos) à Portaria Circular de 1847 deverão obviamente procurar realizar uma abordagem com um nível técnicocientífico bastante superior ao que está subjacente na doutrina daquele diploma oitocentista.

III ANAIS, MEMÓRIAS E IDENTIDADES LOCAIS Registar anualmente «( ... ) os acontecimentos e os factos mais importantes que occorrerem, e cuja memoria seja digna de conservar-se ( ... )» era o fito do legislador português de 1847. Por via dos Anais do Município pretendia-se, no fundo, criar uma "memória oficial" de cada município português com vista a um melhor conhecimento da história e do próprio território nacionais. Porém, apesar do universo concelhio de 1847, do revivalismo de 1936 e da semântica das sucessivas leis das autarquias locais, poucas foram as memórias registadas nesses repositórios de história local que os Anais pretendiam ser. Por outro lado, o mundo assistiu a mudanças vertiginosas, entre as quais a globalização que tem vindo a produzir um efeito uniformizador nos hábitos e na cultura das sociedades ligadas em rede. Como bem refere Avelino Meneses, «de facto, o nosso tempo evidencia uma profunda contradição entre o progresso irreversível da globalização, que menospreza as identidades e as culturas, e a irrupção súbita dos localismos, que gera a contestação e a violência, fruto da indiferença da massificação» (MENESES, 2001: 711). Não obstante, a história local pode desempenhar um papel essencial na salvaguarda quer das memórias, quer das identidades locais, pois que «( ... ) o acréscimo do conhecimento histórico do país, das regiões e das localidades constitui uma das principais vias de avigoramento da nossa cultura, precisamente quando a construção da consciência europeia constitui uma avaliação das identidades nacionais» (idem, 719). A tomada de consciência deste importante papel, aliada a um rigoroso conhecimento da lei administrativa, impõe, quanto a nós, que as autarquias

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encarem a elaboração de Anais do Município e/ ou de obras análogas não apenas como uma mera faculdade, mas antes como uma obrigação premente nos termos de incerteza e de constante evolução que hoje se atravessa, já que«( ... ) a história local (ou, talvez melhor, a nova história local), tenderá, no futuro, a ocupar um lugar cada vez mais significativo, não só "alimentando" a histórias geral e ajudando a conhecer as realidades locais - como já se frisou, anteriormente -, mas também estudando o diversificado e vastíssimo património existente nas localidades, susceptível de ser preservado 'in situ' ou musealizado» (MENDES, 2000: 367). Em suma, a Portaria Circular de 1847 foi, quanto a nós, uma lei avançada para a realidade municipal a que se destinava, o que se traduziu na sua diminuta observância. Porém, ontem como hoje, permanece a curiosidade do Homem pelo seu passado em face da incerteza do seu futuro. «Ü amor à terra pode constituir uma boa razão para a História Local, porque o amor é mais perfeito e mais forte quando se apoia no conhecimento. Quem conhece a História da sua terra pode amá-la com mais consistência» (SILVA, 1999: 395). Nessa medida, e porque os estudos locais podem e devem ajudar a reforçar a identidade local, designadamente por via da criação de "repositórios de lembranças" como são exemplo os Anais do Município, a portaria oitocentista possui uma apreciável actualidade.

CONCLUSÃO A Portaria de 1847 foi um texto legal revelador das correntes intelectuais do tempo, mas desfasado da realidade das vereações municipais. À compreensível preocupação das edilidades em prover as necessidades mais prementes nas suas circunscrições concelhias aliava-se a falta de uma "massa crítica" capaz de levar por diante a elaboração dos Anais do Município. É indiscutível que o cumprimento da portaria em causa ficou bastante aquém do universo de municípios em face das duas apontadas razões (que naturalmente não serão as únicas), mas cremos existir uma visão redutora em torno da sua "contabilidade". Efectivamente, alguns municípios deram integral cumprimento ao diploma e outros diligenciaram, sem sucesso, para que os Anais fossem uma realidade, mas importa reconhecer que a Portaria de 1847 teve um papel inspirador num considerável conjunto de monografias locais. O "deve e o haver" deste texto legal está ainda bastante longe ser conhecido, o que constitui um interessantíssimo campo de trabalho ao qual, pessoalmente, gostaríamos de voltar em ocasião futura e fora das limitações deste trabalho. A Portaria de 1847 conheceu um revivalismo por via de mero acto administrativo em 1936 e desde essa data, até aos dias de hoje, continuou a influenciar a semântica das leis administrativas, afigurando-se-nos defensável a tese de que o diploma oitocentista ainda se encontra em vigor e que assume uma

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natureza regulamentar face à actual Lei das Autarquias Locais. Volvidos 164 anos sobre o surgimento do texto legal, a história municipal continua a suscitar interesse e desempenha um papel importante no âmbito da memória e da identidade locais, designadamente num mundo que caminha cada vez mais em direcção da adopção de um estilo de vida californiano ... Por todo o exposto, a sociedade portuguesa é devedora de um reconhecimento à Portaria de 1847 e, naturalmente, a Alexandre Herculano e a António de Azevedo Melo e Carvalho. Cremos que a melhor forma de prestar esse reconhecimento será cumprindo a dita portaria, porquanto a sua utilidade permanece(rá) válida.

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AGRADECIMENTOS

A recolha da informação e imagens referentes aos Anais do Município vertidos nos apêndices deste trabalho não poderia ter sido tão bem sucedida sem a prestimosa colaboração das seguintes entidades a quem, novamente, expressamos o nosso profundo agradecimento: Arquivo Histórico Municipal de Leiria (Miguel Narciso);Arquivo Municipal de Vila do Bispo (Nuno Marques); Biblioteca Municipal de Coimbra (Maria José Miranda); Biblioteca Municipal de Mafra (Maria Amélia Caetano); Biblioteca Municipal de Pampilhosa da Serra (Anabela); Biblioteca Municipal de Tomar (Maria José Pereira); Biblioteca Pública e Arquivo Regional da Horta (Luís São Bento), Câmara Municipal de Almada (Paulo Reis); Câmara Municipal de Barcelos (Victor Pinho), Câmara Municipal de Coimbra (Paula França); Câmara Municipal de Faro (Homero Flor); Câmara Municipal de Moura (Maria Celeste Barata); Câmara Municipal de Oliveira de Azeméis (Marta Mota); Câmara Municipal de P~mpilhosa da Serra (Cristina Ventura); Câmara Municipal de Santiago do Cacém (Sandra Feliciano); Câmara Municipal de Torres Novas (Margarida Freire Moleiro); Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão (António Joaquim Pinto da Silva e Hilário Pereira); Carlos Gomes; Divisão de Documentação e Arquivo do Ministério da Administração Interna (Luís Almeida); Museu Municipal de Alcochete (Miguel Correia), Roberto Caneira

APÊNDICE ao Cap. II

Colecção de notícias sobre os Anais do Município por localidades portuguesas I-Abrantes A 22 de Março de 1848 a câmara de Abrantes dirigiu convites a diversas personalidades com vista à criação da comissão a que se refere a Portaria Circular de 1847, tendo inclusivamente adquirido o livro para a redacção dos Anais do Município. Porém, a dita comissão não desenvolveu qualquer trabalho. Em

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1860 e na sequência de prévio convite para o efeito, Manuel António Morato, «um capitão apaixonado pelas antiguidades das localidades a que os deveres de ofício o conduziam» (CAMPOS, 2002: XXI) entretanto estabelecido em Abrantes, apresenta uns Anais por si elaborados à edilidade, os quais se encontram publicados sob o título "Memória histórica da notável Vila de Abrantes para servir de começo aos anais do município". Bibliografia: CAMPOS, Eduardo - «Introdução»/ Memória histórica da notável Vila de Abrantes para servir de começo aos anais do município (coord. Manuel António Morato), 3.a edição, Câmara Municipal de Abrantes, 2002. 2 -Alcobaça Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Leiria em 1866, embora tenha sido nomeada uma comissão na sequência da deslocação do referido magistrado administrativo. Bibliografia: AAVV- Collecção dosrelatorios das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. 3 -Alcochete Encontra-se publicada uma obra denominada /Anais de Alcochete: dados históricos desde o século XIIr (José Estevão, Lisboa, Couto Martins, 1956). Contudo, da leitura do seu prefácio não resulta qualquer menção à Portaria Circular de 1847 ou à Circular de 1936 enquanto factor de motivação. Bibliografia: Ob. cit. 4 -Alenquer Encontra-se publicada uma obra denominada "Alemquer e seu concelho" (HENRIQUES, Guilherme João Carlos [Da Carnota], Lisboa, Typ. Universal, 1873), em cuja introdução o seu autor refere: «Algumas terras apoiaram as suas idéas [de José silvestre Ribeiro] e começaram a publicação dos seus annaes; mas foram poucas ; a unica d' essas historias que me tem chegado ás mãos é Os annaes do município de S. lago de Cacem. Foi a leitura·d'essa obra que me inspirou a idéa de ajuntar os apontamentos que apresento» (HENRIQUES, 1873: 5). Bibliografia: Ob. cit. 5-Almada Existe uma publicação periódica denominada "Anais de Almada: revista culturar (Câmara Municipal de Almada, Biblioteca Municipal e Arquivo Histórico), fundada em 1998 «para assinalar a passagem das bodas de prata, ou

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seja, dos vinte e cinco anos da elevação de Almada a cidade, neste primeiro "Ano do Forum", a Câmara Municipal orgulha-se de apresentar o primeiro número dos: "Anais de Almada", revista cultural que fazia falta ao concelho. "Anais de Almada": revista cultural, publicação com periodicidade anual, surge no âmbito de acção da nova Biblioteca Central - Forum Municipal Romeu Correia, por várias razões» (SOUSA, 1998: 9). Bibliografia: SOUSA, Maria Emília Neto de- «Apresentação Editorial», Anais de Almada, n. 0 1,1998, pp. 9-10. 6 -Alter do Chão Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Portalegre em 1866. Bibliografia: AAVV- Collecção dos rela torios das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. 7 - Alvaiázere Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Leiria em 1866, embora tenha sido nomeada uma comissão na sequência da deslocação do referido magistrado administrativo. Bibliografia: AAVV- Collecção dos relatorios das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. 8 -Angra do Heroísmo Encontra-se publicada uma obra denominada //Anais da Ilha Terceira// (Francisco Ferreira Drummond. Angra do Heroísmo, Impr. do Governo, 1850) que não foi possível consultar fisicamente. Fazendo fé na Wikisource, é aqui referido que «os Anais da Ilha Terceira são uma obra escrita segundo o critério cronológico típico dos Anais, cobrindo o período desde a descoberta e povoamento da ilha até 1832. Foi oferecida pelo seu autor, o historiador e político Francisco Ferreira Drumond, à Câmara Municipal de Angra do Heroísmo, que a editou em 4 volumes, contendo 1420 páginas de texto e 510 páginas de documentos. O volume I foi publicado em 1850; o vol. II em 1856; o III em 1859; e o IV, póstumo, em 1864. A obra foi reeditada, em fac-símile da edição original, pela Secretaria Regional da Educação e Cultura do Governo dos Açores em 1981». Bibliografia: WIKISOURCE- «Anais da Ilha Terceira», disponível na Internet em <URL: http://pt.wikisource.org/wiki!Anais da Ilha Terceira>. Última consulta a 2011-06-18.

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9 -Ansião Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Leiria em 1866, embora tenha sido nomeada uma comissão na sequência da deslocação do referido magistrado administrativo. Bibliografia: AAVV- Collecção dos rela torios das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868.

10 -Arronches Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Portalegre em 1866. Bibliografia: AAVV- Collecção dos rela torios das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. 11-Aviz Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Portalegre em 1866. Bibliografia: AAVV- Collecção dosrelatorios das visitas aos disiTictos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. 12 - Barcelos Encontra-se publicada uma obra denominada //Ensaio para os Anais do Município de Barcelos// (Bento Antas da Cruz. Barcelos, Companhia Editora do Minho, 1932), em cujo prólogo o autor refere que o livro reúne«( ... ) em volume, vários artigos sôbre esta ridentíssina povoação de Barcelos, por nós publicados nos jornais desta localidade» ("Sinfonia do Prólogo")». Bibliografia: Ob. cit. 13- Batalha Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Leiria em 1866, embora tenha sido nomeada uma comissão na sequência da deslocação do referido magistrado administrativo. Bibliografia: AAVV- Collecção dosrelatorios das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868.

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14- Bouças (actual Matosinhos) João Gomes de Oliveira Guimarães refere que este Bouças era «( ... ) das camaras mais assiduas em consignar no livro de Annaes os factos mais importantes ( ... )»,acrescentando que«( ... ) ainda, em 1900, fez o último registo ( ... )»(GUIMARÃES, 1931: VIII). Bibliografia: GUIMARÃES, João Gomes de Oliveira- Vimaranis Monumenta Historica: a sEEculo nono post Christum usque ad vicesimu, Sociedade Martins Sarmento (coord.), Vimarane, Vimaranensis Senatus, 1931. 15 - Caldas da Rainha Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Leiria em 1866, embora tenha sido nomeada uma comissão na sequência da deslocação do referido magistrado administrativo. Bibliografia: AAVV- Collecção dosrelatorios das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. 16- Calheta De acordo com uma circular emitida pelo então governador civil funchalense José Silvestre Ribeiro, é referido que a edilidade da Calheta encarregou«( .. .) de commetter a escriptura dos Annaes do Municipio a um Cidadão, que reputou habil para este mister, arbitrando-lhe uma gratificação annual pelo serviço da red1cção da Memoria ( ... ). O Conselho de Districto approvou já esta despeza, e approvará de bom grado semelhante verba quanto ás outras Camaras» (RIBEIRO, 1854: 249). Contudo, não conseguimos apurar se os Anais da Calheta foram efectivamente publicados, já que tal designação não resulta da PORBASE embora, de facto, existam várias referências a monografias concelhias cuja consulta física não foi possível efectuar. Bibliografia: RIBEIRO, José Silvestre -Resoluções do Conselho de Estado na Secção do Contencioso Administrativo, Lisboa, Imprensa Nacional, 1854. 17- Campo Maior Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Portalegre em 1866. Bibliografia: AAVV- Collecçãodosrelatoriosdas visitasaosdistrictospelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868.

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18 -Castelo de Vide Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Portalegre em 1866. Bibliografia: AAVV- Collecção dos relatarias das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. 19- Castelo de Paiva Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Aveiro em 1866. Bibliografia: AAVV- Collecção dos relatarias das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. 20- Coimbra Existe uma publicação denominada "Anais do Município de Coimbra", fundada em 1937 e editada pela Câmara Municipal de Coimbra. Na "Introdução" constante do volume referente a 1960-1969, a autora Paula Cristina Viana França faz uma boa resenha sobre a questão do cumprimento da Portaria Circular de 1847: «em 1937, saiu o primeiro volume desta série intitulado Anais do Município de Coimbra, 1870/89. Era da autoria do Dr. José Pinto Loureiro, na época Director da Biblioteca Municipal. Esta análise histórico-económica da vida coimbrã surgiu para ir ao encontro de uma recomendação de 1936, do Ministro do Interior, Dr. Mário Pais de Sousa( ... ). É esta a base legal que explica, e justifica, a elaboração dos Anais, referida pelo Dr. Pinto Loureiro no preâmbulo da primeira edição. O texto oitocentista prescrevia aos Presidentes de Câmaras "a nomeação de uma Comissão composta dos Vereadores, ou vogais do Conselho Municipal, que fossem considerados mais aptos, a qual reuniria todos os anos no princípio de Março, e depois das reuniões necessárias, redigiria uma memória, contendo as notícias e esclarecimentos indicados, a lançar, em letra legível, no referido livro e assinada pelos vogais da Comissão". Todavia, na Câmara de Coimbra esta determinação ficou por cumprir, existindo ainda hoje, no AHMC [Arquivo Histórico Municipal de Coimbra] o livro, com uma interessante portada desenhada ao gosto da época, mas com as suas páginas interiores em branco. Passados noventa anos, o Município de Coimbra cumpria a recomendação ministerial e a determinação do século XIX nomeando o Dr. Pinto Loureiro. Posteriormente, também, esta incumbência de elaboração dos Anais do Município, será atribuída ao Sr. Carneiro da Silva, por deliberação da Câmara Municipal de Coimbra, de 24/07/1974, editando-se, em 1981, o volume para o período de 1940/59» (AAVV, 2008: 19) Bibliografia: AAVV -Anais do Município de Coimbra (1960-1969), Mário Nunes (coord.),

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Câmara Municipal de Coimbra, 2008. COIMBRA, Arquivo Histórico Municipal de- Catálogo do arquivo histórico municipal de Coimbra", 2010. 21- Crato Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Portalegre em 1866. Bibliografia: AAVV- Collecção dosrelatoriosdas visitasaosdistrictospelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. 22 - Ericeira Encontra-se publicada uma obra denominada "Anais da vila da Ericeira: registo cronológico de acontecimentos referentes à mesma vila, desde 1229 até 1932" (J. d'Oliveira Lobo e Silva. Coimbra, Imp. Universidade, 1933). Da leitura da "explicação prévia" constante da 2.a edição (1985) não resulta qualquer menção quanto à Portaria Circular de 1847 enquanto factor de motivação. Bibliografia: SILVA, J. d'Oliveira Lobo e- Anais da vila da Ericeira: registo cronológico de acontecimentos referentes à mesma vila, desde 1229 até 1943, 2.a edição, Câmara Municipal de Mafra, 1985. 23- Espinho De acordo com a PORBASE encontra-se publicada uma obra denominada "Arfais da história de Espinho (Francisco Azevedo Brandão, s.n., 199-, Porto, Gráfica Firmeza; 1. 0 vol.: 895-1926. - imp. 1991.-2. 0 vol.: 1926-1960.- imp. 1992), mas cuja consulta física não foi possível efectuar. 24- Elvas De acordo com o seu relatório, o governador civil de Portalegre em visita realizada a todos os municípios do seu distrito em 1866 constatou que «( ... ) que as camaras têem todas o livro do tombo e os padrões dos novos pesos e medidas, mas quanto ao livros dos annaes do municipio, só a do concelho de Elvas começou a escrever n'elle, não o seguindo desde 1855». Por seu turno, no seu blogue "Histórias de Elvas", Jacinto César esclarece que «durante alguns anos e por dever do ofício passei dias a fio enclausurado na antiga Biblioteca Municipal de Elvas a pesquisar documentos antigos que nos revelassem alguns pormenores da nossa história. Entre manuscritos, livros e jornais compilei muita informação que fui guardando e ordenando ao longo de muito tempo. ( ... ) Reflecti muito no assunto sobre o critério a aplicar para a publicação dos textos, mas dos muitos que compilei, resolvi começar este novo Blog com uma obra que considero de excepcional interesse: Os Annaes de Elvas do Dr. José Avelino da Silva e Matta».

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Na segunda entrada do seu blogue (de 2008-02-24), o bloguer inseriu o prólogo desses "Annaes de Elvas", datado de 1858, ou seja, posterior aos Anais referidos no relatório do governador civil de 1866. Seja como for, os Anais de José Avelino da Silva e Matta, aparentemente inéditos, encontraram na Portaria Circular de 1847 a sua motivação, referindo o seu autor que«( ... ) se mandaram criar em todos os concelhos comissões de ANNAES. Varias têm aqui sido nomeadas, e pouco se tem escrito no livro dos ANNAES, que na câmara municipal existe. Não é cousa tão fácil, como parece; e ainda não estão estas comissões de acordo do ponto de partida - se os ANNAES devem começar do principio de seus respectivos municípios, ou da data da portaria da sua criação: e muito Maior dificuldade tem esta empresa que tomamos para mostrar junto o que está tão espalhado por autores, tanto nacionais, como estrangeiros, e em manuscritos, copiados alguns sem o menor exame.» Bibliografia: AAVV- Collecção dos rela torios das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. CÉSAR, Jacinto- Histórias de Elvas, disponível na Internet em <URL:http: I I historias-de-elvas.blogs.sapo.ptl20081021>. Última consulta a 2011-06-18. I 25 -Faro Existe uma publicação periódica denominada "Anais do mun1c1p10 de Faro" (Câmara Municipal de Faro), fundada em 1969. De acordo com a leitura da «Abertura" constante do número inicial, a publicação destes Anais representa a concretização de «( ... ) uma aspiração municipal de cerca de 30 anos, pois a Câmara Municipal da presidência do Sr. Capitão Matias de Freitas já os tentara publicar.( ... ) Porque se pretende que os Anais publiquem e ventilem problemas municipais da actualidade: habitação, urbanismo, saneamento, ajardinamentos, arborização, trânsito, estacionamentos, etc., etc., gostosamente convido todos os munícipes a neles colaborarem com estudos sobre as várias matérias que se pretende não fiquem circunscritas apenas a arqueologia e história» (FARO, 1969: 5). Por seu turno, no sítio oficial da autarquia farense lê-se que «a publicação dos Anais do Município de Faro iniciou-se em 1969, sob a direcção do insigne académico farense, Professor José António Pinheiro e Rosa, na altura Director da Biblioteca e dos Museus Municipais. Ao longo de quarenta anos, a autarquia tem prosseguido a sua missão de fomentar o estudo da história da cidade e do seu concelho e de preservar a sua memória escrita, daí o empenho na continuidade desta publicação que prestigia, preserva e divulga o património cultural do concelho de Faro.>> O mais recente número terá sido lançado no ano de 2010. Bibliografia: FARO, Câmara Municipal - Anais do município de Faro: boletim cultural, 1969. FARO, Câmara Municipal de - Câmara de Faro apresenta nova edição dos

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"Anais do Município de Faro, disponível Ra' Internet em <URL:http: //www. cm-faro.pt /portal autarquico /faro /v pt-PT/pagina inicial/noticias /nova edicao Anais Município Faro.htm>. Última consulta a 2011-06-18. 26 - Figueiró dos Vinhos Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Leiria em 1866, embora tenha sido nomeada uma comissão na sequência da deslocação do referido magistrado administrativo. Bibliografia: AAVV- Collecção dos rela torios das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. 27 - Fronteira Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Portalegre em 1866. Bibliografia: AAVV- Collecçãodosrelatorios das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. 28 -Gavião Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Portalegre em 1866. ; Bibliografia: AAVV- Collecçãodosrelatoriosdas visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. 29 - Guimarães Na "Revista de Guimarães", de 1947, encontra-se um pormenorizado resumo histórico sobre os Anais do Município vimaranense: «A Portaria de 8 de Novembro de 1847 impôs às Câmaras Municipais o encargo de se registar em livro especial os factos históricos mais importantes do respectivo Município. Tal portaria foi letra morta para a grande maioria das Câmaras do país. A Câmara Municipal de Guimarães resolveu, porém, em sessão de 6 de Abril de 1898 (50 anos após a publicação da portaria!) iniciar esses 'Anais do Município', e que a sua compilação se entregasse à Sociedade Martins Sarmento, a única Instituição que, nessa época, poderia tomar sobre si tal encargo.( ... ) A Direcção da Sociedade delegou porém a missão num dos sócios da Colectividade, o Abade de Tagilde, homem de especial competência para isso. Do 1. 0 Tomo, começado a coligir pelo Abade de Tagilde nesse ano de 1898, só 10 anos mais tarde era publicada a 1.• parte (pág. 1-17) e só 31 anos depois, em 1929, foi publicada a 2." parte (pág. 77-530). Em 1931 foi ainda feita

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uma 2.a edição da l.a parte, revista e aumentada com novos documentos pelo Sr. Dr. Alfredo Pimenta. Em 1912 morreu o Abade de Tagilde e, desde então, não mais se coligiram quaisquer documentos (... ) - considerando que a Sociedade Martins Sarmento está hoje absorvida por um desenvolvimento de trabalhos e uma acção muito mais intensa do que há 50 anos, quando tomou conta do encargo de coligir os "Vimaranis Monumenta Historica";- considerando que desde o falecimento do Abade de Tagilde nunca mais esta Colectividade dispôs de um sócio que dignamente o pudesse substituir nesta ordem de trabalhos especializados, proponho que: .reconhecendo, aliás, o mérito desta Sociedade em ter iniciado e tentado continuar .a publicação dos "Vimaranis Monumenta Historica", se decline presentemente o honroso encargo, por falta de elementos para o levar a bom termos, e se entregue à Ex.ma. Câmara as cópias dos documentos que possuímos, destinado ao 2." tomo, quer as deixadas pelo Abade de Tagilde, quer as que conseguimos obter em 1936, a fim de que o Município encarregue destes trabalhos, como é devido, o seu Arquivo Municipal, e não seja esta Sociedade obstáculo a que se publiquem tão úteis como importantes documentos da nossa história local» (SARMENTO, 1947: 103) Bibliografia: SARMENTO, Sociedade Martins - «Extractos de Resumos das Actas das Sessões», Revista de Guimarães, n. 0 57 (n."s 1-2), Janeiro-Junho de 1947, p. 82-106. 30 -Horta Houve várias tentativas para levar a bom termo os Anais da Horta, tendo para o efeito sido nomeadas comissões em 1848, 1854 e 1885. No entanto, João Gomes de Oliveira Guimarães refere em 1898 que a Horta «( ... ) tem na imprensa para publicar os seus Annaes» (GUIMARÃES, 1931: VIII). A27 de Abril de 1936 a municipalidade aprova uma verba para a edição dos factos da ilha do Faial que, entretanto, António Ferreira de Serpa se ofereceu para escrever gratuitamente. Por doença deste último, Marcelino Lima assume a empreitada que é aceite por deliberação da edilidade em Agosto de 1939. Atendendo à data, a circular de 1936 terá sido o facto motivador dos" Anais do Município da Horta", embora o autor refira que«( ... ) o Código Administrativo, pela letra do seu art. 48.", n." 5, corrobora o elevado pensamento da Câmara Municipal da Horta» (LIMA, 1940). Bibliografia: GUIMARÃES, João Gomes de Oliveira- Vimaranis Monumenta Historica: a s<Eculo nono post Christum usque ad vicesimu, Sociedade Martins Sarmento (coord.), Vimarane, Vimaranensis Senatus, 1931. LIMA, Marcelino -Anais do Município da Horta: história da ilha do Faial, s.l., 1940. 31- Lajes das Flores De acordo com a PORBASE encontra-se publicada uma obra denominada "Anais do Município das Lajes das Flores" (Câmara Municipal de Lajes das Flores, 1970), mas cuja consulta física não foi possível efectuar.

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32- Leiria Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Leiria em 1866, embora tenha sido nomeada uma comissão na sequência da deslocação do referido magistrado administrativo. No entanto, em 1975 foi publicada uma obra denominada "Anais do Município de Leiria". Da leitura da "Justificação" escrita pelo autor, apesar do seu título a obra configura uma monografia, embora respeitando a «( ... ) a ordem cronológica dos sucessos» (CABRAL, 1975: 10). Bibliografia: AAW -CollecçãodosrelatoriosdasvisitasaosdistrictospelosGovernadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. CABRAL, João- Anais do Município de Leiria, s.l., 1975. 33- Lisboa Em 1856 a Câmara Municipal de Lisboa iniciou a publicação dos "Annaes do municipio de Lisboa", destinados a substituir as "Synopses dos Actos Administrativos da Câmara". Contudo, os Anais terminaram em 1859, tendo sido substituídos por uma outra publicação denominada "Archivo Municipal de Lisboa". Posteriormente, e depois de algumas outras publicações periódicas de permeio, em 1938 ressurgem uns novos" Anais da Câmara Municipal de Lisboa". Tratava-se, no entanto, de uma mera mudança do título do "Anuário da Câmara Municipal de Lisboa". Em 1939 ocorre nova alteração, surgindo os "Anais do Município de Lisboa", cujo último número que conhecemos saiu em 1954. Bibliografia: 1 LISBOA, Câmara Municipal de - Anais do Município de Lisboa, Ano de 1938, Lisboa, 1939. LISBOA, Câmara Municipal de -Anuário da Câmara Municipal de Lisboa, Ano I (1935), vol. I, S. Industriais da Câmara Municipal de Lisboa, 1936. RIBEIRO, José Silvestre - Historia dos estabelecimentos scientificos, litterarios e artisticos de Portugal nos successivos reinados da monarchia, Tomo X, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1882. SILVA, Innocencio Francisco da - Diccionario Bibliographico Portuguez, Tomo I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1858. 34- Macieira de Cambra (actual Vale de Cambra) Na sequência da visita feita em 1866, o governador civil de Aveiro utiliza no seu relatório a expressão «Anais interrompidos>>. Bibliografia: AAVV- Collecção dos rela torios das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868.

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35-Marvão Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Portalegre em 1866. Bibliografia: AAVV- Collecção dosrelatorios das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. 36 - Monforte Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Portalegre em 1866. Bibliografia: AAVV- Collecção dosrelatorios das visitas aos distli.ctos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. 37- Montemor-o-Novo Da leitura das "Advertencias" constantes da obra "Estudos históricos, jurídicos e económicos sobre o município de Montemor-o-Novo" (1873), o seu autor refere-se expressamente à Portaria Circular de 1847, criticando o esquecimento a que foi votada pelos municípios. Deduzimos pelo mesmo texto que se tratam de uns Anais realizados por iniciativa própria de um particular. Bibliografia: CORREIA, José Hilário de Brito- Estudos históricos, jurídicos e económicos sobre o município de Montemor-o-Novo, Coimbra, Imp. Literária, 1873. 38-Moura Segundo a a "Nota Preliminar" constante da edição de 1980 dos" Anais de Moura", estes «( ... ) foram escritos pelo Dr. José Avelino da Silva e Matta e até esta data, tem continuado esquecidos da quasi totalidade dos habitantes do nosso concelho» (MATA, 1980). De acordo com a PORBASE encontra-se publicada uma obra denominada "Anais de Moura" (Câmara Municipal/Biblioteca de Moura, 1991), mas cuja consulta física não foi possível efectuar. Bibliografia: MATTA, José Avelino da Silva e- Anais de Moura, Biblioteca Municipal de Moura, 1980. 39 -Nisa O governador civil de Portalegre refere no seu relatório que não existiam Anais do Município aquando da sua visita em 1866. De facto, em 1852 a câmara municipal de Nisa encarregou José Diniz da Graça Motta e Moura «( ... ) de escrever a primeira Memoria, que havia de ser lançada nos Annaes do Município ( ... )» (MOURA, 1877: 1) e cuja redacção concluiu corria o ano de 1855, porém

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apenas em 1877 (e já depois da morte do autor) os Anais foram publicados, sob o título de "Memoria historica da notavel villa de Niza". Bibliografia: AAVV- Collecção dos rela torios das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868.

MOURA, José Diniz da Graça Motta e- Memoria historica da notavel villa de Niza : anno de 1855, Lisboa, Typ. Universal de Thomaz Quintino Antunes, 1877. 40 -Óbidos Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Leiria em 1866, embora tenha sido nomeada uma comissão na sequência da deslocação do referido magistrado administrativo. Bibliografia: AAVV- Collecção dos rela torios das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaJia de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. 41 - Oliveira de Azeméis

Segundo o prefácio dos "Annaes do Município de Oliveira de Azemeis", na sequência da portaria de 1848 foi criada uma comissão para redigir os Anais em Março de 1855. O vogal da referida comissão, Visconde de Santa Maria da Arrifana, organizou e redigiu tais Anais, sendo que os mesmos vieram a ser publicados pelo autor no "Jornal do Povo" existente naquela localidade. «D'esse trabalho colheu agor numerosos e valiosos elementos o grupo de oliveirenses, que, movidos tão sómente por grande e sincero amor pela sua terra, se abalançaram a mais larga empreza, valendo-se de novas fontes de informação e sobretudo do concurso valioso de pessoas eruditas» (AAVV, 1909: VII). Bibliografia: AAVV- Annaes do Município de Oliveira de Azemeis, coord. por um grupo de Oliveirenses. Porto: Lello & Irmão, 1909. 42 - Oliveira do Bairro No relatório de 1866 elaborado pelo governador civil de Aveiro, no ponto

referente ao arquivo das câmaras municipais, o magistrado administrativo referese-lhe nos seguintes termos: «sem ordem; legislação incompleta, mostrando pelo seu estado, quando não culpabilidade, desleixo e incapacidade dos annaes que tem tido». Bibliografia: AAVV- Collecção dosrelatorios das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868.

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43 - Pampilhosa da Serra De acordo com a acta referente à sessão ordinária de 2 de Abril de 1936, a câmara pampilhosense «tomou conhecimento da circular n. 27 do Governo Civil deste distrito, da qual consta o despacho de S. Ex.• O Ministro do Interior a 24 de Março último, que recomenda se cumpra a Portaria de 8 de Novembro de 1847, que manda que em cada Câmara Municipal haja um livro especial com a denominação de- Anais do Município-( ... )», pelo que«( ... ) considerando que há todo o interesse e necessidade na organização de tal arquivo histórico da vida deste município, deliberou adquirir o livro -Anais do Município - no qual se começará pelos factos mais notáveis conhecidos e anualmente se transcreverão os mesmos factos dignos de registo, conforme a Portaria indica». Na sessão de 17 de Junho, a câmara procede à nomeação do responsável pela redacção dos Anais: «Considerando que é de grande importância a organização das "Memórias do Município" porque fornece valiosos subsídios para os estudos históricos, particularmente para o conhecimento da histórica local; - Considerando que as "Memórias do Município" contribuem poderosamente para radicar nas nossas almas um amor mais profundo e carinhoso e um mais enternecido afecto pelo torrão querido que nos serviu de berço; - Considerando que a sua organização não oferece dificuldades de maior, porquanto dos livros das actas se podem compilar muitos elementos que interessam ao fim em vista; - Considerando que é da máxima oportunidade trabalhar já neste sentido porque, presentemente, está sendo organizada a biblioteca municipal da qual as "Memórias" virão a fazer parte; Proponho: 1.0 Que seja incumbido de organizar as "Memórias do Município" um dos vogais desta Comissão Administrativa; 2. Que se dê início desde já aos trabalhos de execução. Pampilhosa da Serra, 17 de Junho de 1936. O vogal secretário, Alberto Carlos Neves de Oliveira. -A Comissão deliberou que o vogal do pelouro da instrução se encarregue de organizar as "Memórias do Município». Contudo, não foram publicados quaisquer anais, sendo que da consulta do inventário do arquivo municipal pampilhosense ressalta a inexistência do livro Anais do Município segundo o modelo oficial da Procuradoria Geral dos Municípios ou de qualquer outro. Em Abril de 2007 município editou a obra "Subsídios para uma cronologia do concelho de Pampilhosa da Serra", a qual, segundo referem os seus autores na contracapa, pretende dar cumprimento parcial à portaria de 1847: «Hoje [2007], volvidos 160 anos, o Município de Pampilhosa da Serra junta-se finalmente ao pequeno rol de concelho que deu efectivo cumprimento àquela real determinação ( ... ). O verdadeiro título desta obra deveria ser, pois," Anais do Município de Pampilhosa da Serra". No entanto, o curto espaço de tempo disponível, aliado a outras circunstâncias, impôs-nos algumas limitações. Daí serem uns meros "subsídios".» Bibliografia: BRANCO, Ana Paula Loureiro, e ROSA, António Amaro - Subsídios para uma cronologia do concelho de Pampilhosa da Serra, Loures, Município de Pampilhosa da Serra, 2007. 0

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PAMPILHOSA DA SERRA, Câmara Municipal de - Livro de actas n. 0 12 (1933-1936), fls. 168. PAMPILHOSA DA SERRA, Câmara Municipal de- Livro de actas n. 0 13 (vários anos), fls. 8. 44 - Pedrógão Grande Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Leiria em 1866, embora tenha sido nomeada uma comissão na sequência da deslocação do referido magistrado administrativo. Bibliografia: AAVV- Collecção dos rela torios das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. 45 - Penamacor Ao prefaciar a monografia de Penamacor, Jaime Lopes Dias refere que o autor «José Manuel Landeiro realizou, sem prémios, sem benesses, sem quaisquer estímulos materiais o que a portaria de 8 de Novembro de 1847, e o decreto de 7 de Julho de 1909 não lograram conseguir» (LANDEIRO, 1995: XV). Deduz-se por esta passagem que o município penamacorense não deu cumprimento à Portaria de 1847 nem à Circular de 1936. Bibliografia: LANDEIRO, José Manuel - O concelho de Penamacor na história, na tradição e na lenda, 4." edição, Câmara Municipal de Penamacor, 1995.

1 46 - Peniche ' Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Leiria em 1866, embora tenha sido nomeada uma comissão na sequência da deslocação do referido magistrado administrativo. Bibliografia: AAVV-CollecçãodosrelatoriosdasvisitasaosdistrictospelosGovernadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. 47- Pombal Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Leiria em 1866, embora tenha sido nomeada uma comissão na sequência da deslocação do referido magistrado administrativo. Bibliografia: AAVV- Collecção dos rela torios das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868.

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48 -Ponte de Lima De acordo com a PORBASE, encontra-se publicada uma obra denominada "Estudo para os Anais Municipais de Ponte de Lima" (Miguel Roque dos Reis Lemos, Ponte de Lima, Câmara Municipal de Ponte de Lima, 1938), cuja consulta física não foi possível realizar. No entanto, o blogue "Da minha sebenta", contém um artigo sobre a questão a questão dos anais limianos, da retiramos este trecho: «Conhecendo a Câmara de Ponte de Lima esta decisão, através da circular de 30 de Novembro de 1847 do Governo Civil de Viana do Castelo, em 6 de Julho de 1848 nomeou Gaspar Pereira Peixoto Ferraz Sarmento, António Roberto de Araújo Queiroz e António José Vieira da Rocha como membros da referida comissão. Ao que consta esta e outras comissões posteriores não efectuaram qualquer trabalho até que em 1873 a Câmara Municipal decide encarregar Miguel Roque dos Reys Lemos dessa e outras tarefas. Terminada a obra 14 anos depois, em 1887, foram necessários mais 13 anos para que o município encetasse uma primeira tentativa de publicação. ( ... )Queda da l.a República, ascensão do Estado Novo e, em 1936, o Governador Civil de Viana do Castelo, Tomaz Augusto Salgueiro Fragoso, obedecendo a despacho do Ministro do Interior, Mário Pais de Sousa, faz distribuir a circular n. 0 162, de 30 de Março, em que relembra a necessidade de dar cumprimento à decisão da portaria de 8 de Novembro de 1847. Reage rapidamente a edilidade ponte-limense. O presidente, Capitão Alberto Machado, apresenta proposta para "mandar publicar o Estudo para os Anais do Município de Ponte de Lima", em sessão camarária de 2 de Julho de 1936, e com o qual concordam António de Abreu Castelo Branco, João Maria de Sousa Lobato, Francisco Leitão Quintela e Rodrigo Inácio Peixoto Lopes Barreto. Encarregue Júlio de Lemos de coordenar a edição, e em dia das Feiras Novas, volvidos mais de dois anos sobre a decisão camarária, a 17 de Setembro de 1938, ela aí está, cheirando a novo, pronta a circular.» Bibliografia: VIEIRA, José Sousa- «Anais atribulados», Da minha sebenta, 2006-12-16. Disponível na Internet em <URL: h.ttp.;l.Llimianismo.blogspot.com/2006/12L anais-_Çttri.blJlad_ns.htrnl>. Última consulta a 2011-06-19. 49 -Ponte de Sor Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Portalegre em 1866. Bibliografia: AAVV- Collecção dos rela torios das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. 50- Portalegre Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Portalegre em 1866.

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Bibliografia: AAVV- Collecção dos rela torios das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. 51 -Porto de Mós Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Leiria em 1866, embora tenha sido nomeada uma comissão na sequência da deslocação do referido magistrado administrativo. Bibliografia: AAVV- Collecção dos rela torios das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacional, 1868. 52 - Porto Santo De acordo com a PORBASE encontra-se publicada uma obra denominada "Anais do município do Porto Santo" (introd. e notas Alberto Vieira e João Adriano Ribeiro, Câmara Municipal de Porto Santo, 1989), mas cuja consulta física não foi possível efectuar. 53- Salvaterra de Magos Encontra-se publicada uma obra denominada "Anais de Salvaterra de Magos: dados históricos desde o século XIV" (José Estevam. Lisboa, Couto Martins, 1959), contudo o autor não justifica ao longo do seu prefácio se a mesma foi publicada em cumprimento da Portaria de 1847 ou da Circular de 1936. ' Bibliografia: Ob. cit. 54 - Santiago do Cacém Encontra-se publicada uma obra denominada "Annaes do municipio de Sanct-Yago de Cassem desde remotas eras até ao anno de 1853" (Antonio de Macedo e Silva. Beja, Typ. Sousa Porto e Vaz, 1866), mas cuja consulta física não foi possível efectuar. No entanto, tivemos acesso parcial a uma edição de 1868(?), sendo que da leitura das suas primeiras páginas se deduz que se tratam de uns Anais realizados por iniciativa própria de um particular. Bibliografia: SILVA, António de Macedo e - Annaes do municipio de Sanct-Yago de Cassem desde remotas eras até ao anno de 1853, 1868 (?). 55- Sines No estudo introdutório realizado por João Madeira na reedição de 1985 da "Breve notícia de Sines, pátria de Vasco da Gama" é referido que «muitos municípios não corresponderam ao que a Portaria Régia [de 1847] determinava,

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no entanto houve alguns, corno o de Sines, que o fizeram, mas aí não por obra de "urna cornrnissao composta de alguns vereadores, ou vogaes do Conselho Municipat que forem julgados mais aptos", corno a legislação preceituava, mas sim por Francisco Luís Lopes, cirurgião chegado a Sines com o fim da guerra civil que envolveu o país em 1846-47» (LOPES, 1850: 2). Bibliografia: LOPES, Francisco Luiz Lopes - Breve notícia de Sines, pátria de Vasco da Gama, Lisboa, Typographia do Panorama, 1850. 56- Sousel Não existiam Anais do Município aquando da visita do governador civil de Portalegre em 1866. Bibliografia: AAVV- Collecção dosrelatorios das visitas aos districtos pelos Governadores Civis em virtude da portaria de 1 de Agosto de 1866, Lisboa, Imprensa Nacionat 1868. 57- Tornar Existe urna publicação periódica denominada "Anais do Municípfo de Tornar : crónica dos acontecimentos ... : extractos das actas, correspondências, contractos e outros documentos existentes nos arquivos camarários" (Alberto de Sousa Amorim Rosa [cornpil.L Câmara Municipal de Tornar), fundada em 1940, mas cujo número inicial não foi possível consultar fisicamente. Da consulta ao 2. 0 volume, a que tivemos acesso, é explicado no prefácio que estes Anais surgiram no seguimento do artigo 48. 0 /5 do Código Administrativo, na sequência de urna sugestão apresentada em Fevereiro de 1940 do então vereador-presidente da Comissão Municipal de Arte e Arqueologia Alberto de Sousa Amorim Rosa. Bibliografia: TOMAK Câmara Municipal de - Anais do Município de Tornar, 2. 0 vol. (1801-1839), 1966. 58 -Torres Novas Encontra-se publicada urna obra denominada "Anais torrejanos" (Artur Gonçalves, Torres Novas, 1939), em cuja "Razão da Obra" o autor faz urna resenha sobre a questão da Portaria Circular de 1847. Assim, em Junho de 1878 a Câmara Municipal de Torres Novas nomeou urna comissão para dar cumprimento à portaria, contudo sem resultado. «Anunciada a visita de D. Manuel II a esta vila em 21 de Agôsto de 1909, a Câmara Municipal encarregou o notário Luiz Mendes Franco de escrever o Livro dos Anais dos Município, a fim de nêle se consignar oportunamente a régia visita. Apesar do curto prazo de que dispunha, desempenhou-se êle satisfatoriamente do encargo, apresentando pouco depois o Livro dos Anais do Municipio de Tôrres Novas e Sua Monografia, no quat depois de fazer a sucinta história da vila de Tôrres Novas, desde a sua lendária

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fundação até aos princípios da nossa nacionalidade, lançou resumidamente, por ordem de datas, os factos posteriores que se lhe afiguraram dignos de menção. É evidente que o trabalho está incompleto e se ressente, sobretudo, da pressa com que foi organizado, não obstante, merecedor é de aprêço, pois revela a erudita competência do seu autor, que melhor obra teria produzido, se para tal houvera tempo. Nêle aproveitei bastantes elementos e, como na história de Tôrres Novas há certos factos isolados que não tiveram cabimento em qualquer dos meus livros já publicados, resolvi agora relacioná-los juntamente com o apanhado que fiz dos que se acham dispersos pela minha modesta obra e apresentá-los todos cronologicamente dispostos» (GONÇALVES, 1939: 10). Bibliografia: GONÇALVES, Artur- Anais torrejanos, Torres Novas, 1939. 59 - Vila do Bispo No Arquivo Municipal de Vila do Bispo encontra-se depositado o livro de registo n. 0 17, o qual consiste no modelo oficial dos Anais do Município criado pela Procuradoria Geral dos Municípios, sendo composto por cem folhas e com termo de abertura de 3 de Janeiro de 1938. Apenas a primeira folha tem a seguinte inscrição: «Solene inauguração do novo edifício dos Paços do Concelho no dia 13 de Novembro de 1960», ou seja, foram precisos 22 anos para se dar uso ao livro, sendo que não houve continuação. Bibliografia: VILA DO BISPO, Município - Inventário Arquivo Histórico. Arquivo Municipal de Vila do Bispo, s.l., s.d. ·

; 60 - Vila Franca de Xira A 15 de Fevereiro de 1854 o bacharel vilafranquense João José Miguel Ferreira da Silva Amaral ofereceu à Câmara Municipal de Vila Franca de Xira a primeira de duas "Ofertas históricas relativas à povoação de Vila Franca de Xira para instrução dos vindouros", solicitando aos seus vogais «( ... ) aceitarem o meu Impresso, e ordenarem na Acta da Sessão desse dia que se guarde no Arquivo Municipal; e dele talvez oportunamente se sirva alguma Comissão encarregada de historiar os factos notáveis do Município( ... )» (AMARAL, 1991: 35). Actualmente o município possui em arquivo dois volumes manuscritos com aquele mesmo título provenientes do mesmo autor, os quais foram entretanto publicados sob a forma de livro nos anos de 1991 e 1997. Trata-se, portanto, de mais um caso em que os Anais foram realizados por iniciativa própria de um particular. Bibliografia: AMARAL, João José Miguel Ferreira da Silva- Ofertas históricas relativas à povoação de Vila Franca de Xira para instrução dos vindouros, leitura actualizada, pref. e índices de Maria Cristina Marques, Cal. Património Local, Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 1. 0 vol., 1991.

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61 - Vila Nova de Famalicão De acordo com a PORBASE, existe uma publicação periódica denominada "Anais" publicada pelo Arquivo Municipal de Famalicão (dir. António Joaquim Pinto da Silva, Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, 1989), mas cuja consulta física não foi possível realizar. No entanto, no seguimento dos nossos contactos com a biblioteca municipal de Famalicão, fomos informados por correio-electrónico de 19 de Maio do corrente que «neste município foi cumprida a Portaria de 1847, sendo citados os Anais do Município, num pequeno ponto, numa obra publicada em 1946 sobre o hospital local. No entanto, infelizmente, os Anais desapareceram nos incêndios que destruíram os Paços do Concelho em Abril e Maio de 1952. A obra que refere, publicada em 1989, tratou-se apenas do primeiro e único número de uma revista então publicada pelo Arquivo Municipal».

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APÊNDICE de IMAGENS

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Ilustração 1 - Portada dos Annaes do Município de Coimbra, de 1852, desenhada à pena por Pacheco (Arquivo Municipal de Coimbra)

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Ilustração 2 -Folha de rosto dos Anais do Município de Vila do Bispo de 1938 (Arquivo Municipal de Vila do Bispo)

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Ilustração 3 -Primeira página dos Anais do Município de Vila do Bispo (Arquivo Municipal de Vila do Bispo)

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ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA E NEGÓCIOS AFINS: DELIMITAÇÃO DE FRONTEIRAS 1 José Alberto González 2

Resumo: O presente texto versa sobre o tema do contrato fiduciário cum creditare. Considera-se essencialmente a sua natureza, eficácia e conto . os específicos, bem como o carácter e a espécie dos remédios colocados à disposição do fiduciante para o caso de iniedelidade do fiduciário. A delimitação do instituto envolve o estabelecimento de fronteiras com a reserva de propriedade, a venda a retro, a locação-venda, o trust, o mandato sem representação e a cessão de bens aos credores. Palavras-chave: Contratos; negócio fiduciário; execução específica. Abstract: This lesson deals with the topic of fiduciary contract cum creditare. lt is particulary considered its nature, effects and specific contours, as well as the nature and kinds of remedies available to the settlor in case of truetee infidelity. The delimitation of the institute envolves establishing borders with the reservation of wonership, the retro sale, the hire-purchase, the trust, the mandate without representation and the transfer of assets to creditors. Key-words: Contracts; fiduciary contract; Specific performance.

1

2

Lição para provas de agregação, nos termos do artigo 5. 0 , alínea c), do Decreto-Lei n. 0 239/2007, de 19 de Junho, revista tendo em conta as observações suscitadas quando da respectiva discussão. Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada; Doutor em Direito.

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1. Alienação fiduciária em garantia e negócios afins 1. 1. Alienação fiduciária em garantia: considerações gerais

I) Fiduciário vem do latim fiducia; e esta, por seu turno, vem de !ides. Fidestraduz a fidelidade que uma pessoa observa perante outra; vale, portanto, como sinónimo de manutenção da palavra dada. Fiducia define-se reversamente: denota a confiança que se deposita noutrem3 . Assim, numa breve definição aproximativa, negócio fiduciário será aquele ao qual subjaz a confiança que uma parte depõe na outra: "fiducia is an agreement of trust"4 • II) É evidente, logo à primeira vista, que não é isto que pode estar em causa quando se considera o tema da alienação fiduciária em garantia, na medida em que então, pelo menos, todo o negócio obrigacional seria fiduciário. De facto, sempre que através de acto jurídico voluntário se instituam obrigações, o credor confia que aquele sobre quem elas recaem esteja na disposição de lhes dar efectivo cumprimento. Por outro lado, o termo "confiança", bem como a expressão "tutela ou protecção da confiança" vulgarizou-se e generalizou-se de tal modo hoje em dia, que certamente também não é ao sentido que lhes está inerente que se associa o negócio fiduciário. III) Como sempre sucede em Direito Civil, o conteúdo dos respectivos institutos somente pode ser compreendido a partir da sua apreensão histórica. No Direito Romano, berço conhecido da figura, a fiducia consistia num "agreement (pactum fiduciae) in addition to a transfer of property through m~cipatio (ar in iure cessia) by which the transferee assumes certain duties as to the property transferred or the later retransfer thereof to the transfer. (.. .) The transferer had an action (actio fiduciae) against the trustee if ... the later refused to retransfer the property"5 . Distinguiam-se fundamentalmente duas espécies de negócios fiduciários: a fiducia cum amica e a fiducia cum creditare. Fiducia cantralutur aut cum creditare pignaris iure aut cum amica, qua tutius nastre res apud eum essent si quidem cum amica cantracta sit fiducia (Gaio, Inst. 2.60)6 • 3

H. H . Arnold, Doderlein's Hand-Book of Latin Synonymes, London, Printed for J.G.F. & J. Rivington, 1841, pág. 81. 4 Continua o texto: "whereby the transferee in a mancipatio undertakes to divest himself of the ownership which has been conveyed to him, and more especially ... to remancipate the thing he has received" (Rudolph Sohm, The Institutes of Roman Law, trad. ing. de James Ledlie, Gorgias Press, New Jersey, 2002, pág. 34). 5 Adolf Berger, Encyclopedic Dictionary of Roman Law, The Lawbook Exchange, Ltd., New Jersey, seventh printing, 2008, pág. 471. 6 Sublinha-se, contudo, que ao pactum fiduciae podia dar-se uso para múltiplos fins. Por exemplo, através da fiducia remancipationis causa, o pater famílias vendia o filho a outro pater, assumindo este a obrigação de o libertar em seguida, conseguindo-se assim

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Alienação fiduciária em garantia e negócios afins: delimitação de fronteiras, pág. 51-138

A primeira acontecia quando através de "agreement concluded with a friend on the occasion of transfer of ownership under specific circunstances for the purpose «that the thing be safer with him». Such a transaction could serve for a deposit or a gratuitous loan of a thing (commodaturn), the fiduciary assuming the duty to retransfer it to the depositar or commodator"7 • A segunda, diversamente, sucedia sempre que o "debtor transferred the ownership of a thing given as a real security through mancipatio or in iure cessio. The later assumed the obligation to retransfer the thing to the debtor after the debt waspaid" 8 • III) O contractus fiduciae cum creditore9 existia, assim, quando um bem fosse transmitido por mancipatio ou cessio in jure, mas com a condição de que sendo certa quantia em dinheiro paga até certo dia aquele bem deveria ser retransmitido (fiducia est cum res aliqua sumendae mutuae pecuniae gratia vel mancipatur vel in jure ceditur). "The creditor held the legal ownership subject to a trust ( ... ). But as soon as the debtor discharged the debt, the fiducia or trust-clause gave him a right to claim the thing back again" 10 • Colocava-se de imediato, obviamente, o problema da eventual infidelidade do 1 credor I fiduciário. Ou seja, por outras palavras: e se, uma vez efectuado o pagamento da quantia em dívida, este último não procedesse à retransmissão tal qual se tinha comprometido? Gaio dizia que então o ex-devedor/fiduciante poderia recorrer à designada actio fiduciae, parte integrante dos chamados iudicia bonae lidei (Inst. 4.62)11 : sunt obter a respectiva emancipação (Elza Canuto, Alienação fiduciária de bem imóvel, Del Rey Editora, Belo Horizonte, 2003, pág. 86). 7 Adolf Berger, Encyclopedic Dictionary of Roman Law, pág. 472. 8 Adolf Berger, Encyclopeclic Dictionary of Roman Law, pág. 472. 9 Na sistematização de Gaio, a fiducia não se enquadrava dentro das espécies contratuais. Pelo que, portanto, as obrigações dela emergentes não assentavam nem no contrato, nem (muito menos) no delito. Nunc transeamus ad obligationes, quarum summa divisio in duas species diducitur: omnis enim obligatio uel ex contractu nascitur uel ex delicto (Gaio, Inst. 3.88). Et prius uideamus de his, quae ex contractu nascuntur. harum autem quator genera sunt: aut enim re contrahitur obligatio aut uerbis aut litteris aut consensu (Gaio, Inst. 3.89). Seria, por isso, um negócio com causa específica (causa fiduciae) a qual se incluiria numa mancipatio fiduciae causa (cum creditare ou cum amico) (Pablo Fuenteseca, Líneas generales de la <<fiducia cum creditare>>, in Derecho Romano de Obligaciones de Parício Serrano - Arnaldo Biscardi, Editorial Centro de Estúdios Ramón Areces, Madrid, 1994, pág. 388, nota2). 10 Rudolph Sohm, The Institutes of Roman Law, trad. ing., pág. 34. 11 Nestes, "the praetor assumed that in certain legal relations such as emptio venditio (sale), locatio conductio (hire), societas (partnership) and mandatum (mandate), the obligation was not created by the use of ritual words or by the performance of prescribed acts but by fides, namely by the duty of people to keep their word" (Olga Tellegen-Couperus, A short history of Roman Law, Routledge, London, 1993, pág. 156). Há, de resto, quem entenda que a actio fidudae

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autem bonae lidei iudicía haec: ex empto uenditof locato conductof negotíorum gestorumf mandatíf depositíf fiducíaef pro sócio/ tutelaef rei uxoriae.

IV) O negócio fiduciário cum creditare encontra as suas raízes no Direito Romano. Não tendo sido, porém, objecto de compilação através do Corpus Iuris Civilis12, também, fundamentalmente por esta razão, não foi acolhido nas Ordenações Afonsinas, Manuelinas ou Filipinas13 (Liv. rv, Tit. 3). Nem, primeiro, pelo Código Napoleónico, nem, segundo, pelos demais Códigos Civis europeus do século XIX. A consagração de figuras como a hypotheca ou o pignus quase fez esquecer a alienação fiduciária em garantia, tanto na prática contratual, como na doutrina e na jurisprudência. É figura que, assim, de um modo geral, apenas pode fundar a sua existência, extensão e admissibilidade no princípio da liberdade contratual14 (artigo é precisamente uma precursora dos iudida bonae lidei Gosef Schermaier, Bona Fides in Roman Contract law, in Good Faith in European Contract law, publicado por Reinhard Zimmermman -Simon Whittaker, Cambridge Studies in Intemational and Comparative law, 2000, pág. 82). 12 "This kind of pledge" (a fiducia cum creditare) "did no longer exist in Justinian's law. The term was cancelled by the compilers of the Digest everywhere in classical texts and substituted by another term, primarily by pignus" (Adolf Berger, Encyclopedic Dictionary of Roman Law, pág. 472). 13 O que se diz no Livro N, título III, destas últimas ["se o devedm~ que obrigou alguma sua cousa ao seu credor, a vender a outrem, ou a alhear per qualquer outra maneira, e a passar a seu poder, passará a cousa com seu encargo da obrigação, e poderá o credor demandar o possuidor della, que ou lhe pague a divida, por que lhe foi obrigada, ou lhe dê e entregue a dita cousa, para haver per ella pagamento de sua divida; demandando porém o credor primeiro o eu devedm~ e fazendo em seus bens e de seu fiador (se o tiver dado) execução, como se per Direito deve fazer"] representa a consagração de uma figura de garantia real (muito próxima da actual hipoteca) que já nada tem a ver com a clássica construção da alienação fiduciária. 14 Acórdão da Relação do Porto de 10/05/2011, Proc. n. 0 1942/06.5TBMAI.Pl: "I- Como verdadeiro negócio indirecto, não pode afirmar-se, à partida, lícito ou ilícito, o contrato de alienação fiduciária em garantia, ou a sua simples promessa, antes havendo de sujeitar-se ao casuística juízo de mérito que recuse a validade a um acto fiduciário que colida com a Lei, a Moral ou a Natureza (art. 0 280° C.Civ.)- não pode extrair-se de um meio inadequado ao tipo uma ilicitude geral do negócio; é a ilicitude concreta do fim que descaracteriza a licitude do negócio-meio. II - Neste sentido, em termos genéricos, concebe-se a figura da alienação em garantia, com base no princípio da liberdade conh·atual- art. 0 405° C.Civ. -ou com apoio no facto de a lei prever expressamente a hipótese de restrições obrigacionais ao direito de propriedade- art. 0 1306° n. 0 1 C.Civ. III- A dúvida sobre o montante que a fidúcia garante resolve-se favoravelmente ao devedor, podendo paralisar os efeitos da promessa de alienação em garantia, em furlção de determinados pagamentos provados, por parte do devedor, e mais a mais se o montante do pedido relacionado com a devolução do sinal em dobro atinge perto de 100.000, quantia que não se prova que se encontre em dívida, por parte do Réu, ao Autor". A questão da validade do negócio fiduciário é um problema que tem tanto sentido colocado para este como para qualquer outro negócio jurídico (o que até se pode verificar pelos critérios que se invocam para proceder ao juízo acerca da respectiva licitude: os contidos no artigo 280°). Ela explica-se unicamente pelo facto de a doutrina

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V) Na chamada formula baetica sobre a mancipatio16 fiduciária dizia-se17 : Dama L{ucii) Titi ser(vus) fundum Baianum/ qui est in agro qui Veneriensis vocatur; pago Olbensi/ uti optimus maximusq(ue) esset HS (sestertio) n(ummo) I et hominem Midam HS (sestertio) n(ummo) I fidi fiduciae causa mancipio accepit portuguesa mais tradicional, ao definir o negócio fiduciário, ter colocado a tónica no excesso do meio em relação ao fim visado (v.g. Carvalho Fernandes, Estudos sobre a simulação, Lisboa, Quid Juris, 2004, pág. 245): o que sugeria, de imediato, a eventual fraude à lei. 15 Daqui em diante, qualquer remissão para uma disposição legal desacompanhada da indicação do diploma que a contém entende-se dirigida ao Código Civil português, aprovado pelo Decreto-Lei n. 0 47.344 de 25/11/1966. 16 A mancipatio consistia numa transferência de manus: translação, ao menos originalmente, de uma pessoa para outra de todos os elementos que compunham a farnilia - a unidade inseparável de pessoas sobre a terra. Os elementos que formavam a família (abrangendo as pessoas, o solo, as árvores, arbustos e todas as demais coisas essenciais à exploração, da terra) constituíam as chamadas res mancipi. As res nec mancipi eram as coisas não principais (Reynold Noyes, The Institution of Property: A Study of the Development, Substanct}1and Arrangement of the System ofProperty in ModemAnglo-American Law, New York- Toronto, Longmans, Green and Co.; London: Humphrey Milford, 1936, págs. 113/114.). A realização da mandpatio implicava a presença de testemunhas (cinco, pelo menos- Gaio, Inst. 1.119), do Jibripens (aquele que segurava a balança), desta e da quantidade de moeda corr-espondente ao preço (daí a expressão aes et libram) e, obviamente, do alienante e do adquirente. A mandpatio representou assim a forma primitiva da compra e venda. Mas serviu, também, como modelo para outros contratos translativos; incluindo, por exemplo, a doação, através do estabelecimento de um preço fictício (mandpatio nummo uno). Por isso dizia Gaio (Inst. 1.119) que "est autem mandpatio ... imaginaria quaedem uenditid'. Com as compilações de Justiniano desapareceram as referências quer à mandpatio, quer à distinção entre res mancipi e res nec mancipi (Adolf Berger, Encyclopedic Dictionary of Roman Law, pág.574). "There was nothing to prevent the parties from narning in the ceremony of mancipatio, not the real price, but a fictitious one ... The outcome of this device was the so-called <<mancipatio sestertio nummo uno>>. (.. .) So far as mancipatio took the form of a «mancipatio sestertio nummo tmo>>, it had passed from from a genuine to a purely fictitious sale. The result was that mancipatio developed into a general mode of conveying ownership .. . lt could now be employed for a variety of purposes.ltwas, for instance, available for the purpose of making a gift. But there was another and a more important use to which it could be turned: the so-called «mancipatio fiduciae causa>> had now become practicable. The ... «fiducia>>was a qualified mancipatio which imposed a duty on the transferee" (Rudolph Sohm, The Institutes of Roman Law, trad. ing., pág. 34). 17 Textos de Derecho Romano, Rafael Domingo (Coordinador), Aranzadi, Cizur Menor (Navarra), 2002, pág. 280. A referida fórmula recebe esta designação em virtude de o achado arqueológico que a contém (chapa de bronze do século I) ter ocorrido em Sanlúcar de Barrameda, província de Cádiz, comunidade autónoma da Andaluzia, antiga Baetica durante o período de dominação romana.

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ab L(ucio) Baianio, liblipende, antest(ato), adfines fundo dixit L(ucius) Baianius L(ucium) Ti ti um et C(aium) Sei um et populum et si quos dicere oportet. Pactum co[n]ventum facturo est inter Damam L(ucii) Titi ser(vum) et L(ucium) Baianum: Quam pecuniam L(ucio) Baiano dedit dederit credidit crediderit expensumve tulit tulerit sive quid pro eo promisit promiserit spopondit [spoponderit] fideve quid sua esse uissit iusserit, usque eos in fundus eaque mancipia fiducia[e] essent donec ea omnis pecunia [persoluta] fidesve (persoluta} L(ucii) Ti ti soluta libera ta que esset. Si pecunia sua quaque die L(ucio) Ti tio h(eredi) ve eius data soluta non esset tum uti eum fundum eaque mancipia sive quae mancipia ex is vellet L(ucius) Titius h(eres)ve eius vellet, ubi et quo die vellet, pecunia praesenti venderet; mancipio pluris HS (sestertio) n(ummo) I invitus ne daret neve satis secundum mancipium daret neve ut in ea verba quae in verba satis s(ecundum) m(ancipium) dari solet repromitteret neve s(inplam) neve d[uplam ... (Dama, escravo de Lúcio Tício, adquiriu de Lúcio Baiano, numa mancipatio realizada por causa de fiducia, o fundo Baiano livre de servidão, sito num terreno chamado Veneriense, na povoação Olbense, por um sestércio, e, noutra mancipatio, o escravo Midas, por outro sestércio, na presença do portador da balança e de uma testemunha; Lúcio Baiano declarou que a sua terra confrontava com a de Lúcio Tício, a de Caio Seio, com a via pública e com outros que se fosse necessário poderiam declarar-se). (Entre Dama, escravo de Lúcio Tício, e Lúcio Baiano acordou-se que o dinheiro que deu ou tiver dado a Lúcio Baiano, emprestou ou tivesse emprestado, registou ou tivesse registado nos seus livros, ou que prometeu ou tivesse prometido a seu favor, garantiu ou tivesse garantido, fiou ou tivesse fiado, fica fiduciariamente garantido pela terra e pelo escravo até que tenham sido satisfeitos todos os créditos de Lúcio Tício ou liberadas as garantias. Se a quantidade devida não for paga a Lúcio Ticio, ou ao seu herdeiro, no prazo previsto aquele poderá vender a contado a terra e o escravo, ou aqueles objectos do fundo ou do escravo que entender, no lugar e no momento que quiser. E não ficará obrigado a transmitir por mais de um sestércio, nem a dar caução com fiadores para garantir a evicção, nem a fazer repromissio18 com as mesmas palavras da caução dos fiadores, nem a estipular o singelo ou o dobro ... ). VI) Adoptando, diferentemente, uma definição legal (por contraposição, geral e abstracta), "por la fiducia de garantía se transmite al acreedor la propiedad de una cosa o la titularidad de un derecho mediante una forma eficaz frente a terceros. Cumplicia la obligación garantizada, el transmitente podrá exigir del

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Repromissio = contra-promessa, ou seja, para o efeito, caução estipulatória de uma obrigação preexistente. Noutros termos: a repromissio é uma cautio por meio da qual o devedor promete através de stipulatio o cumprimento de uma obrigação já existente judicialmente exigível ou de uma obrigação natural (Adolf Berger, Encyclopedic Dictionary of Roman Law, pág. 676).

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fiduciario la retransmisión de la propiedad o del derecho cedido; el fiduciario, en su caso, deberá restituir y responder com arreglo a lo establecido para el acreedor pignoratício ( ... ). No obstante, si así se hubiere pactado, podrá el acreedor, en caso de mora del deudor, adquirir irrevocablemente la propiedad de la cosa o la titularidad del derecho, y quedará extinguida la obligación garantizada" (Ley 466 da Compilação Foral de Navarra). Devem destacar-se dois pontos a partir desta descrição: - por um lado, o fiduciário equipara-se ao credor pignoratício no que respeita à obrigação de restituição (uma vez cumprida a obrigação assegurada); -por outro lado, se resultar do contrato com o fiduciante, concede-se-lhe o poder de se tornar potestativamente titular consolidado do direito fiduciariamente adquirido (com a consequente extinção da obrigação garantida). VII) O caso típico de alienação fiduciária em garantia (ou seja, de fiducia cum creditare) é representado pela venda em garantia: o devedor vende ao credor um bem que antes lhe pertencia mas este último não paga efectivamente o preço convencionado porque ele corresponde (efectivamente ou por declaração das partes) ao montante do seu crédito19 . Mesmo sem considerar a (incerta) similitude com o trust (que adian e se levará em conta), a edificação da figura levanta grandes embaraços não tanto no que tange à sua admissibilidade, pois esta funda-se sem dificuldade na autonomia da vontade, mas antes no que respeita à situação em que ficam quer o fiduciante quer terceiros na eventualidade de o fiduciário ser infiel (não dando execução à obrigação assumida) 20 • VIII) Na prática bancária e financeira das últimas décadas a alienação fiduciária em garantia recobrou importância. Neste contexto, o Decreto-Lei n. 0 105/2004 de 08 de Maio procedeu à consagração legal entre nós, juntamente com uma nova modalidade de penhor (o financeiro), da alienação fiduciária em garantia, embora para um destino específico: o relacionado com os contratos de garantia financeira. De acordo com o seu artigo 2°, n. 0 2, "são modalidades de contratos de garantia financeira, designadamente, a alienação fiduciária 19

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É indispensável, todavia, que do acto translativo empregado fiduciariamente conste o pactum fiducíae sob pena de aquele produzir os seus efeitos típicos normais: "3. O negócio fiduciário, atípico, é aquele pelo qual as partes, mediante a inserção de uma cláusula obrigacional - pactum fiduciae - adequam o conteúdo de um negócio típico à consecução de uma finalidade diversa, por exemplo a de garantia. 4. Não constando da escritura do contrato de compra e venda do prédio alguma declaração fiduciária, não pode o referido contrato ser considerado como negócio fiduciário de garantia, nem releva a prova testemunhal produzida sobre o pactum fiducía" (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/05/2006, Proc. n. 0 06B1501). Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Almedina, Coimbra, 1995, págs. 285 a 291.

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em garantia e o penhor financeiro/ que se distinguem consoante tenham/ ou não/ por efeito a transmissão da propriedade com função de garantia" (itálico acrescentado )21 . Assim, "a possibilidade de as partes convencionarem a transmissão da propriedade a título de garantia resulta de expressa imposição da directiva agora transposta e constitui um dos aspectos mais inovadores do regime aprovado. Com a consagração de uma nova forma de transmissão de propriedade, ainda que a título de garantia, é alargado o numerus clausus pressuposto pelo artigo 1306° do Código Civil, o que permitirá o reconhecimento da validade das alienações fiduciárias em garantia e o fim da insegurança jurídica que resultava da necessária requalificação desses acordos como meros contratos de penhor" (preâmbulo do Decreto-lei n. 0 105/2004 de 08/05). Deu-se, neste diploma, execução à Directiva n . 2002/47 /CE (do Parlamento Europeu e do Conselho). Segundo esta deve entender-se por <<acordo de garantia financeira com transferência de titularidade», aquele" acordo, incluindo os acordos de recompra, ao abrigo do qual o prestador da garantia transfere a propriedade da garantia financeira para o beneficiário da garantia a fim de assegurar a execução das obrigações financeiras cobertas ou de as cobrir de outra forma"; "numerário" é sinónimo de "dinheiro creditado numa conta, em qualquer moeda, ou créditos similares que confiram o direito à restituição de dinheiro, tais como depósitos no mercado monetário"; e "instrumentos financeiros" são "acções e outros valores mobiliários equivalentes a acções, bem como obrigações e outros instrumentos de dívida, se forem negociáveis no mercado de capitais, e quaisquer outros valores mobiliários habitualmente negociados e que confiram o direito a adquirir tais acções, obrigações ou outros valores mobiliários através de subscrição, compra ou tfoca ou que dêem lugar a uma liquidação em numerário (com a exclusão dos meios de pagamento) incluindo as unidades de participação em organismos de investimento colectivo, os instrumentos do mercado monetário e os créditos ou direitos sobre quaisquer dos instrumentos referidos ou a eles associados" [alíneas c), d) e e), respectivamente, do n .0 1 do artigo 2°] . Num aspecto, contudo, a consagração legal desta figura não trouxe 0

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"O presente diploma é aplicável às garantias financeiras que tenham por objecto: a) «Numerário», entendido como o saldo disponível de uma conta bancária, denominada em qualquer moeda, ou créditos similares que confiram direito à restituição de dinheiro, tais como depósitos no mercado monetário; b) «Instrumentos financeiros», entendidos como valores mobiliários, instrumentos do mercado monetário e créditos ou direitos relativos a quaisquer dos instrumentos financeiros referidos; c) <<Créditos sobre terceiros>>, entendidos como tal os créditos pecuniários decorrentes de um acordo mediante o qual uma instituição de crédito concede um crédito sob a forma de empréstimo" (artigo 5°, Decreto-Lei n .0 105/2004). Somente podem ser sujeitos das relações jurídicas subjacentes a estas garantias as pessoas identificadas no artigo 3° do mesmo diploma. O seu campo de aplicação acaba, assim, por ser bastante restrito.

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inovações: a alienação fiduciária em garantia (tal como o penhor financeiro, conjuntamente regulado) destina-se a assegurar uma obrigação - embora de carácter financeiro (artigo 4°, Decreto-Lei n. 0 105/2004: obrigações financeiras são aquelas "abrangidas por um contrato de garantia financeira cuja prestação consista numa liquidação em numerário ou na entrega de instrumentos financeiros") . Mantém-se presente, assim, a característica da acessoriedade que demarca a generalidade dos direitos de garantia (pessoal ou real). 1. 2. Alienação fiduciária em garantia: construção geral

I) Para fundamentar e explicar o fenómeno, na situação paradigmática da venda em garantia, várias construções têm sido avançadas 22 : a) teoria do efeito duplo; b) teoria da propriedade formal na titularidade do fiduciário; c) teoria da titularidade fiduciária; d) teoria do negócio atípico subordinado a condição; e) teoria do negócio indirecto. II) Pela teoria do efeito duplo consideram-se celebrados dois negooos: primeiro, o de transmissão da propriedade, eficaz erga omnes; segundo, o obrigacional inter partes (que se traduz no pactum fiducia fl-3 ). Corresponde, sem 22

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Cf. Carrasco Perera - Cordero Lobato - Marín López, Tratado de los Derechos de Garantía, Aranzadi, Cízur Menor (Navarra), 2002, págs. 1059 a 1061; Carvalho Fernandes, Estudos sobre a simulação, págs. 245 a 253. O pactwn fidudae pode ser ocultamente celebrado. Isso não significa, porém, que haja necessariamente simulação; uma coisa é (apenas) esconder, outra é encobrir com o intuito de enganar terceiros (artigo 240°, n. 0 1). Por isso, neste contexto, ele não é automaticamente nulo (artigo 240°, n. 0 2). Cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/03/2011, Proc. n .0 279 /2002.El.S1: "1. Não pode configurar-se como venda «a retro» o negócio jurídico de venda de imóvel, celebrado por escritura pública, que omite qualquer cláusula resolutiva, validamente estipulada, reconhecendo ao vendedor o direito potestativo de resolver o contrato, mediante restituição do preço e acessórios- não sendo possível inferi-la do acordo verbal e informal subjacente à escritura, de que resulta tratar-se, afinal, de venda com o fim indirecto de garantia de dívida emergente de mútuo, reconhecendo as partes o carácter meramente temporário da alienação. 2. Na verdade, a razão determinante da forma legal e imperativamente imposta para a celebração de negócios de alienação de imóveis aplicase plenamente à estipulação da dita cláusula resolutiva, que não pode deixar - enquanto produtora de efeitos reais, susceptíveis de afectar a consolidação do efeito aquisitivo do direito de propriedade pelo comprador - de revestir a forma exigida para o negócio pela lei civil. 3. Pode qualificar-se como venda fiduciária em garantia o negócio jurídico de venda de imóvel celebrado com um fim indirecto de garantia de uma relação obrigacional, de que era credor o comprador no confronto do vendedor, emergente de um mútuo entre eles celebrado, consubstanciando-se o carácter «temporário>> da alienação das fracções prediais na estipulação de uma obrigação pessoal de conservar e revender a coisa que lhe

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dúvida, ao entendimento mais enraizado. Quer isto dizer que o negócio basicamente utilizado - normalmente, o contrato de compra e venda - é celebrado para produzir os seus efeitos normais (aqueles que lhe estão tipicamente associados), não só entre as partes mas também em confronto de terceiros. Existe, contudo, uma cláusula entre devedor I alienante e credor I adquirente por via da qual este último assume a obrigação de retransferir, para o primeiro, o direito obtido através daquele negócio assim que ele satisfizer o crédito do segundo. Tendo a referida cláusula valor estritamente obrigacional, se suceder que o credor I adquirente transfira para terceiro o direito que deveria retransmitir para o .devedor I alienante, este não dispõe de instrumentos que contra tal lhe permitam reagir. Uma deficiência se pode de imediato apontar a esta concepção: somente em termos analíticos o pactum fiduciae é separável do negócio translativo ao qual surge associado. Do ponto de vista material, trata-se de um único acto. III) Através da concepção que separa entre propriedade formal, na titularidade do fiduciário, e propriedade material, na titularidade do fiduciante, a atribuição daquela ao primeiro justifica-se, essencialmente, pela necessidade de protecção de terceiros de boa fé. Aparentemente a titularidade do direito cabe ao fiduciário e é nisso que terceiros se podem fiar; daí a razão para que ele se considere proprietário. Por esta perspectiva obtém-se, assim, um resultado similar àquele que se extrai através da concepção anterior. Mas as perplexidades que sugere são de monta. Propriedade formal será equivalente a titularidade do direito mas sem r ossibilidade de proceder ao respectivo exercício? E propriedade material fo,i alienada logo que se mostrasse exaurido o fim de garantia que estava subjacente à venda - e resultando tais obrigações de um pacto fiduciário, informalmente acordado, embora de forma encoberta ou oculta, pelos interessados. 4. A estrutural diversidade jurídica entre as figuras da constituição de direitos reais de garantia (ainda que a oneração do bem seja acompanhada de uma inadmissível estipulação do pacto comissário) e da venda fiduciária em garantia, imediatamente geradora de um efeito transmissivo do direito de propriedade, obsta à directa subsunção desta segunda categoria normativa no âmbito do art. 694° do CC, cujo programa normativo se dirige - e confina - ao plano das garantias reais das obrigações, vedando ao credor a autotutela que resultaria da faculdade de apropriação da «coisa onerada» no caso - e no momento - em que o devedor não cumprir a obrigação garantida. 5. Não é de admitir a «extensão teleológica>> da proibição contida no citado art. 694°, determinante do vício de nulidade, à venda fiduciária em garantia de bens imóveis, por tal envolver restrição desproporcionada do princípio fundamental da segurança e confiança no comércio jurídico, ao facultar aos outorgantes a invocação e a consequente oponibilidade da nulidade a terceiros de boa fé, subadquirentes do imóvel alienado, nos termos do art. 291 o do CC, mesmo nos casos em que o pacto fiduciário estivesse oculto e dissimulado, relativamente às cláusulas contratuais integradoras do negócio formal de alienação e do teor do respectivo registo, de modo a afectar a consistência jurídica dos direitos que aqueles fundadamente supunham ter adquirido".

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corresponderá a posse? Do ponto de vista da construção jurídica, não estando em causa o conceito de propriedade dividida, a separação entre propriedade formal e propriedade material dá origem a conceitos que não têm um conteúdo tecnicamente firmado. Celebrada a alienação fiduciária em garantia, a coisa objecto do negócio poderá continuar na posse do fiduciante, não se efectuando, portanto, a respectiva entrega. Nesta hipótese, cabendo-lhe o uso e a fruição, será admissível dizer-se que o fiduciário, tal qual o reservante/vendedor que tenha efectuado a traditio a favor do reservatário I comprador, é um proprietário aparente; substancialmente, nada tem. Todavia, nada impede que a alienação seja acompanhada da correspondente transferência possessória, caso em que o fiduciário é proprietário tanto em termos formais como em termos materiais (em virtude de a posse também lhe pertencer) 24 . Nestas circunstâncias a diferenciação carece de sentido. IV) Pela teoria da titularidade fiduciária (ou, talvez melhor, da titularidade aparente) instituída pela alienação fiduciária em garantia a favor do credor, entende-se que ela decorre da celebração de um negócio simulado - tipicamente o de compra e venda - e um dissimulado - o de constituição da garantia 25 • Tem subjacente o relativamente comum entendimento segundo o qual, na celebr~ção do negócio fiduciário, este se configura como um instrumento excessivo para o fim tido em vista pelo respectivo utilizador26 • Esta perspectiva acarreta, desde logo, uma óbvia consequência, provandose a simulação: o negócio usado para efectuar a transferência - v.g. a compra e venda - é nulo (artigo 240°, n. 0 2). Subsistirá então, sendo possível, o negócio dissimulado- o que constitui a garantia- por aplicação da regra estatuída no n. 0 24

"La fiducia adunque supponeva innanzi tutto la dazione della cosa; cioe la trasmissione della proprietà nell'accipiente; e il datare stesso doveva per conseguenze esserne proprietario e avere la capacità di alienare. Non era pero essenciale che lo accipiente ne ne avesse anche il possesso e il godimento. Cio non avveniva certamente nella custodia; che se la cosa era data affine di assicurare l'esecuzione di un'obbligazione, l'uno e l'altro erano lasciati ordinariamente al debitare, sia gratuitamente, precario, sia verso un canone che il debitare pagava al creditore. Anzi quand'anche il creditore avesse avuto il possesso e il godimento della cosas, egli non godeva dei frutti, dell' opera dei servi ecc. che a condizione di diminuirei l credito in proporzione del godimento" (Francesco da Chioggia, Corso di Diritto Romano, Il Diritto delle Obbligazioni, Editrice Sacchetto, Padova, 1868, pág. 334). 25 "I - Configura negócio fiduciário, com escopo de mandato, a doação de bens pelo devedor a outrem para que este, vendendo-os, pague responsabilidades assumidas por aquele. II - Tal negócio é nulo por simulação relativa, já que não corresponde à real vontade das partes a doação ostensiva. III - Essa simulação não pode ser oposta pelos simuladores ao credor do doador" (acórdão da Relação de Coimbra de 04/06/1991, R. 43.990). 26 Por exemplo, Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, AAFDL, Lisboa, vol. II, 1979, págs. 164/165.

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1 do artigo 241°. Esta configuração padece, de imediato, de uma dificuldade intuitiva: assim sendo, as partes não gozam de autonomia (artigo 405°) para estabelecer e conformar a garantia tal qual pretendem. Na medida em que apenas esta se entende constituída, não há alienação, como os intervenientes pretendem, mas apenas um acto institutivo de uma garantia real. Acresce que, ao dizer-se que as partes quiseram celebrar ocultamente um negócio constitutivo de uma garantia, esta não fica automaticamente identificada. E aqui, das duas, uma: ou se considera instituída uma garantia real inominada, o que, pelo menos, é uma afirmação contestável atendendo ao disposto no artigo 1306°, n. 0 1; ou se entende estar constituída alguma das garantias reais legalmente típicas, e então fica por determinar qual (hipoteca? - penhor? - privilégio creditório ?) . Por fim, moldar a alienação fiduciária em garantia neste figurino, representa uma violentação da realidade. Impõe-se uma qualificação que não se ajusta àquilo que as partes fizeram. É que, como nada simularam, inexiste acordo simulatório; e, portanto, em rigor, não há simulação27 . V) Conforme a teoria do negócio atípico subordinado a condição, decide-se que a compra e venda fiduciária assume função atípica e está sujeita à condição resolutiva da extinção do crédito. Quanto à primeira parte, a conclusão afigura-se inegável. A compra e venda usada para servir como alienação fiduciária em garantia não cumpre a função que tipicamente lhe está associada- troca de um bem por uma certa quantidade de moeda - antes serve para assegurar o adimplemento de uma obrigação. O que, de imediato, a torna legalmente atípica. Já no que concerne ao segundo aspecto - sujeição da venda fiduciária a condição resolutiva -, isso não consegue descrever28, pelo menos, a sua formatação De acordo com a definição que se extrai do n. 0 1 do artigo 240°, a existência de simulação pressupõe: - um acordo (acordo simulatório) entre declarante e declaratário no sentido de se produzir uma declaração não conforme com a respectiva vontade (por isso se diz que a simulação é um vício da declaração que se caracteriza por ser intencional e bilateral, não obstante se dever sublinhar que: "2. A simulação, como vício da vontade negocial, de acordo com os requisitos estabelecidos no artigo 240° do Código Civil, não corresponde apenas ao somatório das vontades de cada um dos contraentes de não querer o negócio declarado, exigindo ainda o acordo entre eles em fazer divergir a declaração da vontade real bem como o intuito de enganar terceiros" - acórdão da Relação de Coimbra de 12/02/2008, Proc. n. 0 578/04.0TBTNV.C1); -uma declaração efectivamente não correspondente às respectivas vontades (ou seja, encaminhada para um efeito jurídico não ambicionado); -com o objectivo de iludir outrem (quem não for declarante nem declaratário) . 28 Embora tenha ido exactamente neste sentido a opção tomada, por exemplo, pelo recente 27

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clássica tal qual nos é fornecida pelo Direito Romano29 • De facto, o pactum fiduciae funciona como cláusula que obriga o fiduciário à observância de uma certa conduta -a de retransferir para o fiduciante o direito que este anteriormente lhe transmitira -,não produzindo, por isso, de modo automático, o seu regresso à titularidade do autor da alienação. Aliás, se o pactum fiduciae devesse ser concebido como uma cláusula resolutiva, coarctar-se-ia fortemente a liberdade contratual das partes: é que, assim sendo, o negócio só poderia qualificar-se como venda a retro (artigo 927°), subordinando-se ao respectivo regime. VI) Por intermédio da teoria do negócio indirecto, muito similar à antecedente, atribui-se esta classificação à alienação fiduciária em garantia por causa da inserção de certa cláusula - o pactum fiduciae - num negócio

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Código Civil Brasileiro: "Artigo 1.361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor. § 1o Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato, celebrado por instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedm~ ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro. § 2° Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o devedor possuidor direto da coisa. § 3° A propriedade superveniente, adquirida pelo devedm~ torna eficaz, desde o arquivamento, a transferência da propriedade fiduciária. Artigo 1.362. O contrato, que serve de título à propriedade fiduciária, conterá: I- o total da dívida, ou sua estimativa; II- o prazo, ou a época do pagamento; III- a taxa de juros, se houver; IV- a descrição da coisa objeto da transferência, com os elementos indispensáveis à sua identificação. Artigo 1.363. Antes de vencida a dívida, o devedor, a suas expensas e risco, pode usar a coisa segundo sua destinação, sendo obrigado, como depositário: I - a empregar na guarda da coisa a diligência exigida por sua natureza; II- a entregá-la ao credor, se a dívida não for paga no vencimento. Artigo 1.364. Vencida a dívida, e não paga, fica o credor obrigado a vender, judicial ou extrajudicialmente, a coisa a terceiros, a aplicar o preço no pagamento de seu crédito e das despesas de cobrança, e a entregar o saldo, se houver, ao devedor. Artigo 1.365. É nula a cláusula que autoriza o proprietário fiduciário a ficar com a coisa alienada em garantia, se a dívida não for paga no vencimento. Parágrafo único. O devedor pode, com a anuência do credor, dar seu direito eventual à coisa em pagamento da dívida, após o vencimento desta". "La trasmissione della proprietà accadeva nella solita forma della mancipatio e della in jure cessio. ( ... ) Alia trasmissione veniva aggiunta la clausola fiduciaria per la remancipazione o retrocessione della cosa e anche questo era essenziale al concetto" (Francesco da Chioggia, Corso di Diritto Romano, Il Diritto deli e Obbligazioni, pág. 335).

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legalmente típico - a compra e venda - dotada da susceptibilidade de modificar a sua particular função 30 • No negócio indirecto, os seus efeitos são pretendidos; sucede, no entanto, que, tal como ele foi moldado pelos respectivos autores, a respectiva eficácia não corresponde àquela que tipicamente lhe está coligada mas é antes própria de alguma outra espécie negocial, típica ou atípica31 ( v.g. nego ti um mixtum cum donatione) 32 • O que essencialmente demarca a alienação fiduciária em garantia é o facto de os respectivos autores utilizarem um negócio típico - a compra e venda para desempenhar uma missão atípica. Daí não resulta necessariamente que deva prosseguir a função própria de qualquer outro tipo negocial, como sucede, por definição, no negócio indirecto. No negócio fiduciário não há que buscar qualquer similitude de papéis com outros negócios; basta que a função que o individualiza se distinga da típica. Por isso, para o descrever, é suficiente afirmar que se trata de negócio legalmente atípico; a possibilidade de, em simultâneo, ser indirecto é eventual e contingente. Aliás, caso desempenhasse a função de 30

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"I- O contrato fiduciário é um negócio atípico, pelo qual as partes adequam, mediante uma cláusula obrigacional - pactum fiduciae -, o conteúdo de um negócio atípico a uma finalidade diferente da correspondente à causa - função do negócio instrumental por eles seleccionado. II- Trata-se, assim, de um contrato indirecto, que pode assumir configurações diversas consoante o fim tido em vista pelos contraentes" (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/03/2006, R. 4191/2005). "Para que certa formação negocial possa dizer-se emprego indirecto de um negócio ju ·'dico ... importa ... que se analise em dois elementos essenciais: um negócio típico adoptado e um fim indirecto" [Orlando de Carvalho, Negócio Jurídico Indirecto (teoria geral), Boletim da Faculdade d e Direito, suplemento X, 1952, Coimbra, pág. 13]. "I - Para além dos três requisitos cumulativos da simulação absoluta - divergência entre a vontade real e a vontade declarada, intuito de enganar terceiros e acordo simulatório - a simulação relativa exige ainda a verificação de um quarto requisito, também cumulativo: a existência de negócio dissimulado formalmente válido. II- Quer na simulação absoluta quer na relativa, o negócio simulado é nulo. III - A simulação subjectiva pressupõe a interposição fictícia de pessoas, não adquirindo o interposto direitos e obrigações no respectivo contrato. IV- No negócio indirecto, as partes visam com um negócio típico um fim ulterior diverso do que normalmente emerge da causa desse tipo negocial. V- Se a única divergência na declaração constante de uma escritura pública de compra e venda de um imóvel é a de que foram os autores que pagaram o preço e não a ré, sua filha, que aí figura como compradora, com a finalidade de serem eles a paga1~ por espírito de liberalidade, o preço da compra e venda à vendedora, a doação que daí emerge é do dinheiro e não do mencionado imóvel por ser aquele e não este que sai do seu património e enriquece o da ré. VI - Tal factualidade não integra simulação relativa nem negócio indirecto ou doação indirecta, pois, a doação do dinheiro é directa e resulta do acordo entre os autores e a ré que, com a outorga da escritura, aceita a doação" (acórdão da Relação do Porto de 05/06/1997, R. 1083/95, Col. de Jur., 1997, 3, 208).

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outro negócio, perguntar-se-ia de imediato qual seria: o contrato de constituição de hipoteca ou o contrato de constituição de penhor? Mas, a ser assim, retorna-se à questão: para quê celebrar a alienação fiduciária em garantia e não outorgar directamente um daqueles?

2. Distinção de figuras funcionalmente próximas 2.1. Reserva de propriedade I) Nos termos do artigo 409", n." 1, a reserva de propriedade resulta da estipulação de uma cláusula contratual mediante a qual se obtém a garantia de cumprimento de uma obrigação (maxíme a de pagamento do preço numa compra e venda, que constitui o âmbito paradigmático de aplicação da figura) "guardando-se" a titularidade de determinado direito (tipicamente, o de propriedade) até que aquela seja cumprida. II) As objecções que historicamente se ergueram à admissibilidade do pactum reservatí domínííligaram-se, grosso modo, à dificuldade em conceber um elemento essencial da compra e venda- o preço- como sendo, simultaneaméhte, um seu elemento acidentaP3 . A sua expressa consagração legal afastou, porém, tais objecções. III) Apesar de, na sua formulação, a hipótese se caracterizar muito linearmente, a construção subjacente não é fácil. De facto, podem identificar-se, pelo menos, as seguintes concepções acerca da natureza e, portanto, do modo de funcionamento do pactum reservatí domínú34 : 1. como um termo ou condição suspensiva; 2. como uma garantia real autónoma; 3. como uma espécie de condição resolutiva (para o adquirente); 4. como um caso de propriedade dividida; 33

Ver Galvão Telles, Contratos Civis (projecto completo de um título do futuro Código Civil português e respectiva exposição de motivos), Boletim do Ministério da Justiça n." 83, pág. 138. Pires de Lima -· Antunes Varela no Código Civil Anotado, Coimbra Editora, Coimbra, vol. II, 3a edição, 1986, pág. 52, ainda consideravam que os "contratos de alienação com cláusula de reserva de domínio ... não podem ser considerados como realizados sob condição suspensiva visto o evento condicionante da sua plena eficácia recair sobre um elemento essencial do contrato (pagamento do preço)". Na perspectiva mais usual entre nós, as cláusulas acessórias típicas (como o termo, a condição, a cláusula penal ou a modal) fazem parte do chamado conteúdo acidental do negócio jurídico (cf., por exemplo, Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, págs. 215 a 246). 34 Carrasco Perera- Cm·dero Lobato- Marín López, Tratado de los Derechos de Garantía, págs. 971 a 973.

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5. como uma hipótese de alienação fiduciária. IV) A primeira explicação é a dominante na doutrina, portuguesa 35 e estrangeira36, bem assim como na jurisprudência37 • Chegando esta última a recusar explicitamente a concepção da reserva de propriedade como um direito real de garantia38 . Estabelecida a reserva de propriedade num contrato de compra e venda, por exemplo para garantia de pagamento do preço, a titularidade do direito de 35

E funda-se indubitavelmente na tradição proveniente do Direito Romano (neste sentido, Reinhard Zimmermann, Law of Obligations - Roman Foundations of the Civilian Tradition, Oxford University Press, Oxford, 1996, pág. 276). 36 Cf. Werner Flume, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, Das Rechtsgeschaft, trad. esp. (El Negócio Jurídico), Madrid, Fundación Cultural del Notariado, 1998, pág. 857. 37 Ver, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/02/1995, Proc. n.0 86.350: I- Nos termos do disposto no artigo 274°, n. 1, do Cód.Civil, na pendência da venda com reserva de propriedade o vendedor pode dispor do direito de propriedade da coisa vendida (nomeadamente dando-a em hipoteca), mas a eficácia desses actos de disposição fica dependente, condicionada à ineficácia do primeiro contrato, o de compra e venda (à sua resolução). II- Desta sorte, o evento futuro que integra a cláusula de reserva de propriedade funciona, a um tempo, como condição suspensiva da transmissão do direito de propriedade (condição suspensiva parcial dos efeitos da compra e venda) e como condição resolutiva do acto de disposição ou oneração feito pelo vendedor «medio tempore>>. III - Ocorrido esse evento futuro, opera-se a transmissão da propriedade da coisa do vendedor para o comprador como efeito do contrato, sem necessidade de outra conduta das partes [artigos 87<Jf, alínea a), e 408°, n. 0 1, do Cód.Civil], a qual, por outro lado, retroage a data da conclusão do conh·ato de compra e venda (artigo 276° do Cód.Civil). N- Em relação a terceiros (v. g, credor hipotecário) os efeitos da compra e venda só se produzem depois da data do respectivo registo, sendo que o registo convertido em definitivo conserva a prioridade que tinha como provisório, conforme o disposto nos artigos 2°, n° 1, alínea a), 5°, no 1, e 6°, no 3, do Cód.Reg.Predial. V - Daí que, adquirida a prioridade do registo da compra e venda com reserva de propriedade, do mesmo passo que a ocorrência do referido evento futuro (que condicionara parcialmente a compra e venda) opera a ineficácia dos actos de disposição ou oneração da coisa objecto do contrato, praticados pelo vendedor «medio tempore>>, também determina a caducidade da respectiva inscrição no registo, nos termos do primeiro segmento do artigo 11°, no 1, do Cód.Reg.Predial. 38 Ver, por exemplo, o Acórdão da Relação de Lisboa de 23/09/2004. R. 1828/2004: I- A penhora de veículo automóvel objecto do contrato de compra e venda a prestações com reserva de propriedade, uma vez que o adquirente é ainda titular do direito de propriedade mas tão só duma expectativa de aquisição, não é juridicamente admissível. II - Penhorável será, apenas, a dita expectativa de aquisição. III- A não ser que o titular do direito de propriedade (o vendedor) prescinda da reserva de propriedade e proceda, por sua iniciativa, ao cancelamento do registo respectivo. IV - É que a reserva de propriedade não configura um direito real de garantia, antes, quando concomitante com a venda da coisa consubstancia uma alienação sob condição suspensiva, por dependente de um evento futuro, o cumprimento total das obrigações por parte do comprador. 0

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propriedade manter-se-á, diz-se, no alienante (vendedor) até que o adquirente (comprador) cumpra a obrigação a que está adstrito. O pagamento do preço, no exemplo, funciona assim como facto futuro de verificação incerta. E a conclusão vai pois neste sentido: até que tal facto ocorra, o efeito translativo da compra e venda [artigo 879°, alínea a)] não sucede. Mutatis mutandis o mesmo se diga, ao menos, para os demais actos translativos ou constitutivos de direitos (reais ou não) sobre coisas corpóreas. O direito objecto de um acto desta natureza mantém-se, por conseguinte, na titularidade do alienante até que o evento condicionante eventualmente se produza39 • IV.I) Resta saber se existe ou não, de imediato (salvo cláusula em sentido contrário), a obrigação de proceder à entrega da coisa [no caso da compra e venda, nos termos do artigo 879°, alínea b)]. Por uma razão de pura lógica formal dir-se-á que sim, uma vez que somente se "reservou" a propriedade, ou seja, a respectiva titularidade. A realização da entrega da coisa surge já na vertente relativa à cedência da posse e não no aspecto atinente à titularidade de direitos. Mas, particularmente no que toca às coisas móveis, se a entrega for realiz1tda imediatamente após a celebração do contrato pode levantar-se um problema de efectividade, de consistência, na satisfação do seu crédito para o credor I alienante: na verdade, a garantia de cumprimento que obtém pela inserção da cláusula de reserva de propriedade pode esfumar-se facilmente 40 • Por isso, embora o credor/alienante tenha, a maior parte das vezes, interesse prático em proceder à entrega imediata, julga-se que a tal não deve estar juridicamente vinculado, a menos que o contrário tenha sido convencionado41 • Fora desta última hipótese, a entrega só pode constituir um acto de mera tolerância [artigo 1253°, alínea b)]. IV.II) No Código Civil, nada se dizendo, ao menos parece certo que, sendo a coisa entregue ao comprador, a sua restituição somente se pode obter nos termos do artigo 934° - ou seja, mediante a resolução do contrato de compra e venda verificados os pressupostos ali enunciados. O que já significa, de todo o 39

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O que faz com que não cometa "o crime de furto aquele que, em virtude de o comprador ter deixado de pagar parte do preço, se apodera do veículo automóvel que lhe vendera com reserva de propriedade" (acórdão da Relação do Porto de 22/11/2000, R. 934/2000). Aliás, veja-se que mesmo no caso da hipoteca (em que a coisa objecto da garantia fica em poder do respectivo autor e, em geral, não é deslocável) se pode convencionar que a obrigação se vença caso o bem hipotecado seja alienado ou onerado (artigo 695°, ín fine). Acórdão da Relação de Évora de 23/04/1992, R. 45, Col. de Jur., 1992, 2, 291: "No contrato de compra e venda com reserva de propriedade o pagamento do preço é devido independentemente da entrega da coisa, objecto do contrato".

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modo, que a sua entrega não pode ser perspectivada como um acto de "mera tolerância". E, de facto, por comparação, na Ley 483 da Compilação Foral de Navarra estabelece-se que "mientras tanto" (isto é, enquanto se está à espera da verificação do evento condicionante) "corresponde al comprador la posesión y el disfrute de la cosa vendida ... asi como estarán a su cargo el riesgo y todos los gastos inherentes a àquella". Esta não constitui, contudo, a forma clássica de construção da reserva de propriedade. Aliás, foi justamente para permitir ao comprador sob reserva de propriedade o acesso imediato ao poder de facto sobre a coisa que se "inventou" o mecanismo jurídico da locação/venda (artigo 936°, n .0 2) 42 • Quer dizer que, a menos que o vendedor se tenha obrigado a realizar a traditio antes da verificação do evento suspensivo, o comprador não tem direito à obtenção do domínio de facto até tal momento. V) Esta concepção sobre a reserva de propriedade manifesta alguns pontos criticáveis. Por um lado e antes de mais, o facto de não levar em consideração o essencial: a função que a reserva ti dominii desempenha. Esta serve para garantir o cumprimento de certas obrigações a cargo do reservatário/adquirenté3 . Pelo que a manutenção do direito retido da titularidade no reservante/ alienante tem carácter marcadamente formal. Em substância, o titular de tal direito (maxime o de propriedade) convinha que fosse já o reservatário/adquirente: - por ser ele quem, antes de mais, tem interesse na utilização da coisa; - por, para o reservante/ alienante, o destino da coisa e a preservação do seu valor apenas terem significado para protecção da integridade da sua garantia; 1 - e por, sobretudo, o amparo dos interesses deste último não demandar uma tutela tão débil para aquele.

E isto porque (dizia Gal vão Telles, Arrendamento, Lisboa, 1944/45, págs. 45 e seguintes) a protecção de que gozava o locatário/comprador seria mais forte do que aquela que era conferida ao reservatáriojcomprador. Justamente por este último não ter qualquer direito ao uso da coisa, e, portanto, por, se esta lhe fosse entregue, o ser a título de mera tolerância do vendedor [actualmente, artigo 1253°, alínea b)] . A sua situação jurídica consubstanciaria, assim, uma mera expectativa jurídica real. Diversamente, já o mesmo não sucederia na locação/venda, pois o locatário/ comprador adquiriria desde logo o direito ao uso da coisa por força da componente locativa do contrato. 43 A vende a Bum automóvel sob reserva de propriedade e entrega-lho. Este, entretanto, coloca-o na oficina C para reparação, não cumprindo, porém, a obrigação de pagamento das inerentes despesas, o que a leva a exercer direito de retenção (nos termos gerais do artigo 754°). Para efeitos do artigo 759°, n. 0 2, o facto de A permanecer proprietário permite tratamento diferente daquele que lhe seria concedido caso eventualmente fosse titular de uma hipoteca?

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Além de que a solução que aqui se critica produz o resultado, quase despropositado 44 , que se descreve, por exemplo, no acórdão da Relação de Lisboa de 02/06/1999, R. 3295/99) e que sucede recorrentemente: "I- Os direitos reais que caducam com a venda em execução, nos termos do artigo 824° do Cód.Civil, são apenas os direitos reais de garantia e, ainda, os demais direitos reais que não tenham registo anterior ao da penhora, arresto ou garantia. II - Estando registada a reserva de propriedade de veículo penhorado, reserva essa a favor da exequente, não pode prosseguir a execução para venda, sem que o exequente cancele a reserva e comprove o mesmo cancelamento" 45 . Corolário que, contudo, foi explicitamente admitido e sancionado pelo Supremo Tribunal de Justiça através do acórdão de Uniformização de Jurisprudência n. 0 10/2008 (DR n. 0 222, série I, de 14/10/2008) segundo o qual "a acção executiva na qual se penhorou um veículo automóvel, sobre o qual incide registo de reserva de propriedade a favor do exequente, não pode prosseguir para as fases de concurso de credores e da venda, sem que este promova e comprove a inscrição, no registo automóvel, da extinção da referida reserva" 46 • VI) A segunda concepção a que se aludia - recorde-se, a atribuição ao reservante/ alienante de uma garantia real autónoma fruto da estipul~ção de reserva de propriedade - implica a concessão imediata ao reservatário/ 44

Já que, se é verdade que o reservante/vendedor, precisamente quando haja sido estipulada a reserva de propriedade, pode resolver o contrato de compra e venda, nos termos do artigo 886°, quando o comprador falte definitivamente ao cumprimento da obrigação de pagar o preço, o exercício deste poder funciona como "mal menor". A ele interessa-lhe, sobretudo, a obtenção do preço e não a cessação do contrato. 45 Tal cancelamento far-se-á, neste entendimento, com fundamento em renúncia ["tal reserva é passível de renúncia abdicativa (ou renúncia stricto sensu) por parte do respectivo titular, através de um negócio ou acto unilateral que, constituindo ex nunc uma nova situação de direito, tem como efeito real a perda ou extinção do direito renunciado, dele ficando privado o respectivo titular" - acórdão da Relação de Lisboa de 06/02/2007, Proc. n . 10411/2006-7]. Não se alcança, todavia, se está em causa a renúncia ao direito de propriedade reservado ou à própria cláusula de reserva! É que se o caso for o primeiro, o seu efeito deveria consistir, tratando-se imóveis, na atribuição da respectiva propriedade ao Estado (artigo 1345°), ou, tratando-se de móveis, na sua colocação como res nullius. E se o caso for o segundo, não se vislumbra (nesta concepção, sublinha-se) qual o direito objecto da renúncia. 46 As garantias reais desempenham comummente uma dupla função: a) por um lado, forçam (coagem) o devedor ao cumprimento da obrigação assegurada (ao menos sempre que tal garantia tenha sido prestada pelo próprio devedor); b) por outro lado, concedem ao respectivo titular o ius distrahendi para o caso de a referida obrigação não ser cumprida. A admitir-se o acerto da concepção perfilhada pelo acórdão uniformizador em causa, esta segunda função fica excluída (dado que enquanto a reserva ti domínií se mantiver em vigor inexiste o poder de promover a alienação forçada do direito reservado pelo alienante). 0

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adquirente da propriedade da coisa logo após a celebração do contrato em cujo conteúdo aquela se integra. É praticamente o inverso da concepção anterior. A admitir-se esta construção, dela decorre que o reservantel alienante fica numa situação jurídica fortemente análoga à do credor hipotecário: não tem a posse da coisa 47 mas sujeita o reservatário I adquirente ao seu ius distrahendi para o caso de este incumprir a obrigação assegurada pelo estabelecimento da reserva de propriedade. Justamente daqui procedem as duas principais dificuldades que esta configuração apresenta (embora, saliente-se, ambas sejam de direito positivo e não de conceptualização): - inexistência de um regime jurídico próprio, pois é necessário ir buscar (talvez) a analogia com a hipoteca (ao invés do que sucede na construção anterior que arrasta a aplicação do regime típico do negócio condicional - artigos 270° a 277°); - inexistência do ónus intensificado de inscrever no registo predial o estabelecimento da reserva de propriedade uma vez que, ao contrário do que sucede com a hipoteca, o efeito do registo só pode ser aqui o efeito-regra, ou seja, o consolidativo (e não o constitutivo, como se verifica em relação àquela outraartigo 687°). VII.I) A perspectivação da reserva de propriedade como uma cláusula resolutiva 48 liga-se intimamente, no fundo, à construção anterior. Na verdade, se o reservatário I adquirente se torna titular da propriedade e se a favor do reservantel alienante se constitui uma garantia real, deve afirmar-se necessariamente, tod1via, que a titularidade do primeiro não pode ter carácter estável. Ao invés, é tifular precário até que a obrigação garantida se cumpra, caso em que se torna titular consolidado, ou até que o seu não cumprimento definitivo dê origem (eventualmente) à resolução do facto que é fonte da mesma (artigo 801°, n. 0 2). Nesta última hipótese, o direito de propriedade há-de regressar à titularidade do reservantel alienante e, em princípio, com força retroactiva (artigo 276°) .

É claro que não é impossível sustentar o contrário, isto é, que o reservantel alienante fica com a posse da coisa a menos que consinta na sua cedência ao reservatário I adquirente. Nesta hipótese ficaria então equiparado ao credor pignoratício. Mas aí, a vantagem prática desta construção perder-se-ia, pois o que se pretende é compatibilizar a atribuição do gozo imediato da coisa ao segundo com o estabelecimento de uma garantia de cumprimento a favor do primeiro. 48 Nesta versão construtiva integra-se decerto a venda a retro (artigos 927° a 933°), quando ela desempenhe função de garantia (o que não é uma necessidade, embora seja seguramente a hípótese característica). Esta modalidade de venda tem como cunho distintivo o facto de a condição resolutiva a que fica sujeita ter carácter potestativo e arbitrário - a pura vontade do vendedor em resolver - e de esta dever ser manifestada dentro de certo prazo (artigo 929°) sob pena de a condição ficar sem efeito . 47

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Considerada isoladamente, esta construção apenas autoriza o reconhecimento ao reservante/ alienante de uma expectativa jurídica de (re)aquisição que é aquilo de que justamente é titular qualquer alienante sob condição resolutiva. Assim esfuma-se a garantia que através da estipulação da reserva de propriedade se pretende instituir a seu favor. E acresce, no fim de contas, que para os negócios de alienação sujeitos a condição tudo não passa, em gerat de uma questão de perspectiva: a condição que seja suspensiva para o adquirente actua resolutivamente para o alienante; a condição que seja resolutiva para o adquirente funciona suspensivamente para o alienante. O que significa uma coisa, aplicando o que fica dito ao caso concreto: a construção da reserva de propriedade como condição resolutiva ou como condição suspensiva não implica a afirmação de perspectivas contraditórias mas antes complementares. VII.II) A reservati dominii pode implicar a impos1çao de um desvio ao princípio do consentimento sempre que (e é esta a situação típica) aquele que transmite ou constitui o direito real49 , paralise este efeito até à verificação de um qualquer evento que não consista na entrega da coisa (artigo 409°). E tanto ode representar uma condição suspensiva (por exemplo: "até ao pagamento do reço pela contraparte"), como um termo suspensivo (por exemplo: "até certo dia de certo mês"). Mas da estipulação da reserva pode também decorrer o surgimento de uma excepção ao funcionamento do aludido princípio sempre que o acontecimento futuro do qual fica dependente a produção de efeitos consista na própria entrega da coisa50 • Do que antecede resulta, assim, que até a própria atribuição da natureza de cláusula condicional (" incertus an incertus quando") à reserva ti dominii pode não quadrar ao caso concreto, na medida em que nada impede que ela se configure, no outro extremo, como uma estipulação" certus an certus quando" . VIII) A concepção da reserva de propriedade como uma hipótese de propriedade dividida implica o seguinte: que, entre reservante/ alienante e 49

Embora a designação da cláusula em apreço pareça indicar o contrário, nada impede que se reserve a titularidade ou a constituição de qualquer outro direito real até à verificação de certo acontecimento. 5 °Con siderando que o sistema de aquisição de direitos reais rigorosamente antagónico é aquele que exige, para o efeito (e além do título), a traditio, os casos em que o princípio consensualístico é afastado podem agrupar-se sob duas rubricas: excepções e desvios. As excepções são representadas por aquelas hipóteses em que a traditio é condição necessária para a aquisição do direito real. São situações em que, por conseguinte, se adoptou o sistema aquisitivo de direitos reais que historicamente se contrapõe ao sistema aquisitivo assente na suficiência do acordo de vontades. Os desvios ocorrem naqueles casos em que, não se exigindo a traditio, tão-pouco basta o acordo de vontades para que o efeito constitutivo/translativo se produza.

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reservatário I adquirente, o direito de propriedade se fraccione de tal modo que nenhum se possa considerar proprietário pleno mas também nenhum possa ser tido como titular de um direito real menor perante o outro51 . É assim legítimo dizer-se, acomodando ao caso, que o reservantel alienante mantém a propriedade para efeitos de garantia de cumprimento da obrigação assegurada pela reserva ti e o reservatário I adquirente obtém a propriedade para todos os demais efeitos (ou seja, grosso modo, para os efeitos descritos no disposto no artigo 1305°). Acontece que asseverar a existência de uma propriedade dividida entre reservantel alienante e reservatáriol adquirente não é suficiente para explicar a situação de ambos. Não pode deixar de se acrescentar que a situação deste último é precária por estar sujeita a resolução caso a obrigação assegurada pela reserva ti seja incumprida. O que apela, de novo, para a perspectivação da reserva de propriedade como uma modalidade de condição suspensiva. Além disso, e mais importante, a propriedade dividida é um conceito que apenas quadra verdadeiramente ao direito de propriedade enquanto direito de gozo: ou seja, quando o que está em causa é a divisão do ius utendi fruendi et abutendi entre diversos titulares (os quais, por isso, se tornam todos proprietários). O ius distrahendi concedido ao titular de qualquer garantia real, ao invés, é um extra que obviamente não faz parte do gozo e que concorre com o poder de disposição concedido a cada proprietário. De facto, enquanto a livre disponibilidade dos direitos patrimoniais (artigo 62°, Constituição) constitui uma característica natural mas não necessária da propriedade, o ius distrahendi compõe a própria essência da garantia real. Razão pela qual se afigura impossível fundar esta naquela.

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2.2. Venda a retro

I) "Licita cousa he, que o comprador e vendedor ponham na compra e venda, que fizerem, qualquer cautela, pacto e condição, em que ambos acordarem, com tanto que seja honesta, e conforme ao Direito: e por tanto se o comprador e vendedor na compra e venda se acordassem, que tornando o vendedor ao comprador o preço, que houvesse pela cousa vendida, até tempo certo, ou quando quizesse, a venda fosse desfeita, e a cousa vendida tornada ao vendedor, tal avença e condição, assi acordada pelas partes val: e o comprador, havendo a cousa comprada a seu poder, ganhará e fará cumpridamente seus todos os fructos e novos, e rendas, que houver da cousa comprada, até que lhe o dito preço seja restituido" (Ordenações Filipinas, Livro IV, Tít. IV). 51

Na fórmula de Wolff- Raiser, Derecho de Cosas, tomo III, vol. I, trad. esp. de González - Alguer, Barcelona, Bosch, 1971, pág. 613, que é aquela que se adopta no texto, há propriedade dividida quando, <<"entre dois sujeitos", os poderes contidos no direito de propriedade se desagregam "de modo a que cada um deles tenha uma parte das faculdades e pretensões contidas na propriedade, sem que por isso um deles apareça como <<proprietário>> e o outro como <<titular de um direito limitado sobre coisa alheia»».

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Mais simplesmente reza o artigo 927° que se diz "a retro a venda em que se reconhece ao vendedor a faculdade de resolver o contrato". II) Qualquer que seja a formulação, a hipótese é subsumível ao conceito de negócio sujeito a condição resolutiva (artigo 270°: "acontecimento futuro e incerto" ao qual as partes subordinam a "resolução" ou "destruição" dos efeitos do negócio52). E atendendo à sua configuração, conduz isto à conclusão que a mencionada cláusula corporiza uma condição resolutiva de momento incerto53 . Assim, ocorrendo o evento resolutivo, tudo se deve passar, em regra, como se os efeitos produzidos pelo negócio ao qual ele foi aposto como condição nunca tivessem ocorrido54 . É a solução determinada pelo disposto no artigo 276°55 e que se funda no facto de isso corresponder, normalmente, à vontade dos contraentes: estes vinculam-se hipoteticamente; logo, se soubessem, no instante em que contratam, que a hipótese da qual fazem depender a sua vontade era insusceptível de concretização, não teriam acordado no que quer que fosse 56 . A regra constante do artigo 276° sofre duas ordens de excepções. Não haverá retroactividade quando: -a "vontade das partes" tenha estabelecido outra solução qualquer (o que se justifica facilmente uma vez que a referida regra está assente na sua vontade conjectural; por isso, pretendendo elas outro qualquer desfecho são livres para tanto- artigo 405°); -a "natureza do acto" imponha igualmente resultado diverso (que é o que sucede, por exemplo, com os contratos de execução continuada ou periódica 52

A condição é resolutiva "sempre que o negócio deixe de produzir efeitos após a eventual verificação do evento em causa" (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Coimbra, Almedina, vol. I, tomo I, 1999, pág. 443) . 53 O incertus an incertus quando constitui seguramente uma condição. O incertus an certus quando "deve entender-se" como "uma condição, quando se não prove ter sido outra a intenção das partes. E é possível uma tal intenção" (Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Coimbra, Almedina, vol. II, 1987, pág. 387). Para o presente efeito, no entanto, dá no mesmo qualificar o evento em avaliação como condição resolutiva ou como termo resolutivo (é sempre a resolução de efeitos que está em causa e o regime daquela aplica-se a este - artigo 278°). Ainda que pareça mais adequada a primeira qualificação. 54 "Verificada a condição ... considera-se que os efeitos nunca se produziram, se a condição é resolutiva" (Oliveira Ascensão, Teoria Geral do Direito Civil, vol. III, Acções e factos jurídicos, Lisboa, 1992, pág. 400) . 55 Por isso é que no artigo 270° "a lei fala intencionalmente de resolução- e não apenas na cessação - dos efeitos do negócio, visto a verificação da condição, ter, como regra, efeito retroactivo" (Pires de Lima - Antunes Varela, Código Civil Anotado, Coimbra, Coimbra Editora, vol. I, 1982, pág. 250). 56 "Apoiada no negócio jurídico, a condição é a limitação negocial da operatividade do negócio" (Werner Flume, El Negócio fuddico, trad. esp ., Madrid, Fundación Cultural del Notariado, 1998, pág. 804).

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artigo 277°, n. 0 1). III) "A condição opera ipso iure". O que, tratando-se de condição resolutiva, significa que a destruição dos efeitos do negócio se produz automaticamente. Ou seja, esta destruição de efeitos desencadeia-se "imediatamente, sem necessidade de qualquer das partes invocar em juízo ou fora dele a verificação da condição, ou praticar algum outro acto (por ex., uma notificação à contraparte)"57 58 • Por outro lado, em simultâneo, "os efeitos do negócio deixam de existir. .. mesmo em confronto de terceiros. A este efeito retroactivo da condição resolutiva, mesmo em confronto de terceiros, ... dá-se o nome de eficácia real" 59 • IV) O preenchimento da condição resolutiva, particularmente quando tal suceda com efeito regressivo, configura um caso de caducidadé0 . "A caducidade do negócio por decurso do prazo pode decorrer da lei ou de estipulação. ( ... ) A caducidade resulta de estipulação negocial, principalmente nos casos de termo final e de condição resolutiva" 61 • A caducidade opera o efeito extintivo que lhe surge associado de modo automático 62 , sem necessidade de invocação por aquele a quem aproveita 63 : por isso se trata de um caso de ineficácia ipso jure64 . É que ela" é estabelecida com o fim de, dentro de certo prazo, se tornar certa, se consolidar, se esclarecer determinada 57 58

Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, pág. 381 .

Cor o mais adiante se acentuará, nisto se distingue a condição resolutiva do direito (potestativo) à resolução, legal ou convencionalmente concedido a uma das partes (artigo

432°, Código Civil). Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jwidica, pág. 383. Há quem chegue mesmo a configurar o caso como de extinção do negócio jurídico: "só se pode falar de extinção de um negócio jurídico quando este mesmo negócio, como título, é eliminado do mundo do direito . ( . ..) Assim acontece .. . quando sobrevém uma condição resolutiva" (Oliveira Ascensão, Teoria Geral do Direito Civil, vol. III, pág. 501). 61 Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, Coimbra, 5" edição, 2008, pág. 775. 62 "A caducidade ... não consiste num acto jurídico. É um efeito jurídico automático de extinção do negócio jurídico e da sua eficácia em consequência do ocorrer de um facto jurídico" (Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 775). 63 As causas de extinção do negócio jurídico "podem ser objecto de distinção radical em causas de extinção" automáticas e potestativas. "As causas de extinção automática são aquelas que resultam de um mero facto, portanto sem a configuração de um negócio extintivo. As potestativas são todas as restantes". "A causa de extinção automática geral é a caducidade" (Oliveira Ascensão, Teoria Geral do Direito Civil, vol. IV, Relações e Situações Jurídicas, 1993, pág. 312). 64 Dias Marques, Noções Elementares de Di1-eito Civil, Lisboa, Centro de Estudos d e Direito Civil, 1973, pág. 102.

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situação jurídica" 65 • Também por isso "a caducidade é apreciada oficiosamente pelo tribunal e pode ser alegada em qualquer fase do processo" (artigo 333°) 66 , ainda que, dado o seu automatismo, não exija "tipicamente a declaração em juízo para que se produza" 67 . "A caducidade do negócio jurídico consiste ... na cessação da sua eficácia, decorrente da verificação de um facto jurídico stricto sensu, o qual opera umas vezes retroactivamente (caducidade resolutiva) e outras tão só in futurum (caducidade extintiva)" 68 • V.I) Como se disse, a venda a retro envolve a subordinação do contrato a condição resolutiva. Essa condição, por ser dotada de natureza potestativa, tem um carácter muito particular em virtude de a sua verificação ficar dependente de declaração de vontade do vendedor nesse sentido dirigida ao comprador69 70 • Ou seja, por outras palavras, "no caso de venda a retro, ou venda a remir, a resolução depende apenas da vontade do vendedor, sendo confiada apenas ao seu poder discricionário, não tendo ele de invocar os fundamentos da sua decisão de resolver o contrato" (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/07/1994, Proc. n. 0 9340640f1• V.II) Nos termos do artigo 1174 do Código Civil francês 72, a condição puramente potestativa origina a nulidade do respectivo acto constitutivo quando deste resulte uma obrigação que fique (unicamente) dependente daquela.

Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 107°, pág. 24. "Na caducidade ... só o aspecto objectivo da certeza e segurança é tomado em conta. O que explica, p . ex., que a caducidade seja apreciada oficiosamente pelo tribunal - ao contrário da prescrição, que tem de ser invocada-, bem como o facto de influírem sobre o prazo de prescrição, e não sobre o da caducidade, situações e acontecimentos .. . que podem suspender ou interromper a prescrição, mas não a caducidade" (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 376). 67 Oliveira Ascensão, Teoria Geral do Direito Civil, vol. IV, pág. 313. 68 Dias Marques, Noções ElementaTes de Di1-eito Civil, pág. 105. 69 Manuel de Andrade, Temia GeTal da Relação fuddica, págs. 367/368. 70 Por isso, "não se reconhecendo, à parte, uma faculdade na sua inteira disponibilidade de resolver o contrato, e ficando antes, essa resolução dependente do não cumprimento tempestivo da contraprestação acordada, não se configura uma venda <<a retro>>, do artigo 927 do aludido diploma substantivo, mas uma permuta ou troca, sob condição resolutiva" (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/06/1999, Proc. n. 998163). 71 Pelo que, por exemplo, "não constitui venda a retroa venda sob condição suspensiva de falta de cumprimento da obrigação de construir, visto que a falta de cumprimento dessa obrigação é, afinal, o próprio fundamento de resolução" (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/07/1994, Proc. n. 0 9340640). 72 "Toute obligation est nulle lorsqu'elle a été contractée sous une condition potestative de la part de celui qui s' oblige". 65 66

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A condição a que venda a retro se sujeita é certamente potestativa73 . Mas não é puramente potestativa; pelo menos não no sentido decorrente da referida disposição do Code Civil. Talvez a compra e venda à experiência (artigo 924°) seja o único caso legalmente previsto de negócio sujeito a condição puramente potestativa (ainda que, na verdade, a respectiva resolução não seja inteiramente arbitrária na medida em que fica dependente "de a coisa não agradar ao comprador"). De todo o modo, diga-se que a questão da admissibilidade da condição puramente potestativa se tem colocado, acima de tudo, a propósito da condição suspensiva. Em tal caso, o negócio condicionado concederá, no fundo, um direito de opção 74 àquele de cuja vontade depende a correspectiva eficácia. Diversamente, a estipulação de uma condição resolutiva puramente potestativa acaba por redundar num direito de resolução 75 a exercer nos termos gerais dos artigos 432° a 436°. A condição a que se sujeita a venda a retro tem pois (tal como sucede, por exemplo, com a chamada condição resolutiva tácita- artigo 801°, n .0 2) carácter impróprio 76 • VI) Dita "resolução fica ... sem efeito se, dentro do mesmo prazo de quinze dias, o vendedor não fizer ao comprador oferta real das importâncias líquidas que haja de pagar-lhe a título de reembolso do preço e das despesas com o contrato e outras acessórias" (artigo 931 °). Daqui se deduz a finalidade da celebração da compra e venda com cláusula a retro. Ela destina-se a proporcionar uma garantia de cumprimento ao comprador. Ou seja: tipicamente, o comprador mutuou determinada quantia a favor do vendedor77; este, a título de garantia de cumprimento da obrigação de restituição I Acórdão da Relação do Porto de 11/07/1994, Proc. n. 0 9340640: "I- Em princípio os contratos só podem ser resolvidos com fundamento na lei ou em convenção, o que significa que, por via de regra, a resolução assenta num poder vinculado, que pode caber a qualquer das partes, tendo o rescindente de invocar (de alegar e provar) o fundamento de resolução, que terá de ser necessariamente uma disposição da lei ou uma convenção das partes. II- No caso de venda a retro, ou venda a remir, a resolução depende apenas da vontade do vendedor, sendo confiada apenas ao seu poder discricionário, não tendo ele de invocar os fundamentos da sua decisão de resolver o contrato. III - Não constitui venda a retro a venda sob condição suspensiva de falta de cumprimento da obrigação de construir, visto que a falta de cumprimento dessa obrigação é, afinal, o próprio fundamento de resolução". 74 "O pacto de opção é um contrato ... "para cuja conclusão" é s uficiente a manifestação de vontade do beneficiál'io: se este aceita, exercendo o seu direito potestativo, o contrato aperfeiçoa-se, inelutavelmente, sem necessidade de nova declaração da contraparte" (Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, 9a edição, Almedina, Coimbra, 2002, págs. 25/26) . 75 Werner Flume, El Negocio Jurídico, págs. 799 a 803. 76 Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 611. 77 "A venda a retro prevista nos arts. 927° e segs. do Cód. Civil é compatível com a existên73

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(pelo menos) da quantia mutuada, em vez de v.g. constituir a favor daquele uma hipoteca, vendeu-lhe o bem que poderia ter sido hipotecado, mas conservando o direito de o reaver desde que (essencialmente): 1o- resolva a compra e venda; e, 2° - coloque o comprador na situação em que este estaria caso o contrato nunca tivesse sido celebrado (o que, no fundo, resultaria já da aplicação da regra contida no artigo 276°f8 • A posição do mutuante/ comprador toma-se assim mais segura em virtude de: - por um lado, o bem que lhe pertencia a título precário, se tomar irreversivelmente seu, caso a quantia mutuada não lhe seja restituída, na medida em que a impossibilidade de resolver a compra e venda dentro dos prazos legais (artigo 929°) consolida a aquisição; e, - por outro lado, não ficar dependente nem da necessidade de intentar acção executiva (como sucederia se fosse titular de alguma hipoteca ou de qualquer outro direito de garantia), nem da consequente concorrência dos demais credores do mutuário, em caso de não cumprimento da obrigação a seu cargo. VII) Do que antecede resulta com mediana clareza que a compra e vl nda com cláusula a retro (ou a remir) desempenha, geralmente, a função de hipoteca ou penhor (consoante a natureza imobiliária ou mobiliária da coisa dada em garantia) a que se tenha associado um pacto comissário. Ora, tendo a proibição desta convenção (artigo 694°) um sério fundamento (prevenir a hipótese de o credor de certa quantia pecuniária se tomar titular, por causa do incumprimento do respectivo devedor, de um direito sobre uma coisa de valor económico muito superior ao montante daquela), não se pode permitir que, indirectamente, se obtenha resultado similar através do mecanismo da venda a retro. Daí que sejam nulas as seguintes cláusulas (artigo 928°): - "a estipulação de pagamento de dinheiro ao comprador ou de qualquer outra vantagem para este, como contrapartida da resolução"; - a convenção "que declare o vendedor obrigado a restituir, em caso de resolução, preço superior ao fixado para a venda".

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cia de um contrato de mútuo em que o mutuário é ali vendedor e o mutuante é ali comprador, servindo aquela venda de garantia do cumprimento do mútuo, cumprimento este que determinará ou não a resolução daquela venda" (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/09/2006, Proc. n. 0 06A2092). No contrato de compra e venda condicional, se a condição é resolutiva sobrevinda esta, os efeitos do contrato são retroactivamente anulados e o vendedor, voltando outra vez a ser proprietário, é considerado como nunca tendo perdido essa qualidadé' (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/2004, Proc. n. 0 04B2740).

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VIII) Mas, por outro lado, para que a situação do comprador I credor não se mantenha indefinidamente instável, sujeito à declaração de resolução por banda do vendedor I devedor, fixaram-se prazos máximos dentro dos quais ela poderá ser proferida: cinco anos para as coisas imóveis e dois anos para as coisas móveis (artigo 929°). Igualmente para garantia do comprador I credor, o vendedor I devedor deve fazer, dentro do prazo de quinze dias após a notificação (judicial - artigo 930°) da declaração de resolução, a "oferta real das importâncias líquidas que haja de pagar-lhe a título de reembolso do preço e das despesas com o contrato e outras acessórias" (artigo 931 °). IX) A finalidade da venda a retro assemelha-se fortemente à da fiducia cum creditare. A grande marca distintiva reside no mecanismo por força do qual se opera a retransferência para o devedor I alienante: verificação de condição resolutiva no caso da venda a retro; negócio (re)transmissivo no caso da fiducia 79 • Tendo em conta o se disse até agora, a venda a retro, em termos genéricos, não é mais do que um vulgar negócio condicional. Uma das razões que levou o actual Código Civil80 a ordenar o respectivo regime com alguma minúcia liga-se ao entendimento, predominante na época da sua elaboração e entrada em vigor, segundo o qual o negócio fiduciário seria nulo por fraude à lei. Isso tornava necessário proporcionar aos interessados um instrumento alternativo. 2.3. Locação/venda

I) Locação/venda é o acordo pelo qual, de harmonia com a definição dada 1 pelo n. 0 2 do artigo 936°, se procede à locação de uma coisa com a cláusula de que ela "se tornará propriedade do locatário depois de satisfeitas todas as rendas ou alugueres pactuados". Funcionalmente, portanto, a locação/venda assemelha-se à compra e venda a prestações com reserva de propriedade. O que resulta até da sua inserção no articulado relativo a outros contratos com finalidade equivalente (à venda a prestações, entenda-se), da norma que estabelece, para aquele acordo, um regime 79

Embora, na verdade, a venda a retro nem sempre tenha sido concebida como uma venda sujeita a condição resolutiva potestativa. Ao invés, foi durante muito tempo entendida como um fenómeno de retrovenda. Veja-se, por exemplo, Vicente Ferrer, Curso de Direito Natural, 2• edição, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1856, pág. 150: "pertencem ao accidental da compra e venda alguns accessorios ... e taes são os contractos secundarias: 1. 0 o pacto de retrovendendo, no qual se convenciona ou que o comprador será obrigado a vender dentro de certo tempo a cousa comprada ao vendedor ... ; ou a tornar a entregai-a ao vendedor, quando este lhe restituir o preço". 80 Aliás, segundo a tese dominante, "na vigência do Código de 1867 era proibida a venda a retro e nula a venda realizada contra essa proibição" (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/06/1983, Proc. n. 0 070799).

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particular de resolução por não cumprimento (justamente o n. 0 2 do artigo 936°). "O esquema previsto no artigo 936°, n. 0 2 CC. .. procura -através de um arranjo que permite obter resultado prático semelhante - ladear as dificuldades postas em alguns sistemas jurídicos à venda a prestações com a cláusula de reserva de propriedade"81 . É que, de facto, em ambos os casos, a transmissão da propriedadé2 fica dependente da verificação de um evento condicionante de certa eficácia contratual: o pagamento das prestações acordadas. Dizia Galvão Telles83, porém, que o fim prático prosseguido pelos contraentes era essencialmente distinto num e noutro caso84 • E isto porque a protecção de que gozava o locatário/comprador seria mais forte do que aquela que era conferida ao reservatário/comprador. Justamente por este último não ter qualquer direito ao uso da coisa, e, portanto, se esta lhe fosse entregue, sê-lo-ia a título de mera tolerância do vendedor. A sua situação jurídica consubstanciaria, assim, uma mera expectativa jurídica. Diversamente, já o mesmo não sucederia na locação/

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Pereira Coelho, Arrendamento (lições ao curso do 5° ano de ciências jurídicas no ano lectivo de 1986-1987), Coimbra, 1987, pág. 23. 82 Pelo seu carácter acentuadamente típico, considerar-se-á sempre nesta análise, c6mo protótipo, a locação/venda ou o pactum reservati dominii funcionalmente dirigidos à transmissão do direito de propriedade. Nada impede, no entanto, ao abrigo da autonomia da vontade, a sua extensão à oneração da propriedade, bem como à transmissão/ oneração de outros direitos patrimoniais disponíveis (como, por exemplo, o de usufruto ou o de superfície). Note-se até que a própria constituição de um direito real menor per deductio pode funcionar, por vontade da/s parte/s, precisamente com a mesma finalidade. 83 Arrendamento, págs. 45 e segs. 84 Cf., não obstante, o acórdão da Relação de Coimbra de 07/02/2006, Proc. n. 0 4134/05: "1. A catalogação de um contrato como pertencendo a um determinado tipo contratual, é uma operação lógica subsequente à interpretação das declarações de vontade das partes e dela dependente, constituindo matéria de direito sobre a qual o tribunal se pode pronunciar livremente, sem estar vinculado à denominação que os contraentes tenham empregado. 2. Há, pois, que proceder a uma interpretação da actividade negocial das partes, tendo por elementos de trabalho o texto contratual, as negociações que o antecederam e a vivência da relação negocial estabelecida, de modo a verificar a correcção da nomenclatura utilizada pelos outorgantes. 3. Apesar da figura do contrato de locação-venda se encontrar referida no art. 0 936°, n .0 2, do C. Civ., que lhe impõe o regime da compra e venda a prestações, com cláusula de reserva de propriedade, a mesma caiu em desuso, pela perda da sua utilidade, face à admissão deste pacto nos contratos de alienação, expressamente regulada no art. 0 409° do C. Civ.. 4. Tendo-se provado que o que a autora e a ré realmente quiseram com o contrato celebrado foi vender e comprar, respectivamente, reservando a propriedade da coisa a favor da autora até ao pagamento do preço, deve interpretar-se o acordado no sentido da enunciada vontade real das partes, segundo o critério imposto pelo art. 0 236°, n. 0 2, do C. Civ., assim se devendo qualificar juridicamente o contrato celebrado como um contrato de compra e venda, com cláusula de reserva de propriedade sobre o bem vendido ".

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venda, pois o locatário I comprador adquiriria desde logo o direito ao uso da coisa por força da componente locativa do contrato (independentemente da natureza real ou pessoal do direito do locatário). Parece, no entanto, que esta posição tem as suas dificuldades. É que, embora não haja unanimidade, tudo indica que o reservatário I comprador tem algo mais do que urna (simples) expectativa jurídica. Tendo em conta, designadamente, o disposto no artigo 934°, pode retirar-se que, feita a entrega da coisa ao comprador, a sua restituição somente pode ser requerida corno consequência da resolução do contrato (artigos 433° e 289°, n. 0 1), o que já nada tem a ver com a precariedade própria do acto de tolerância. Não quer dize1~ naturalmente, que a locação/venda se não distinga da compra e venda a prestações com reserva de propriedade, corno adiante se irá tentar demonstrar. A locação/venda assemelha-se igualmente à locação financeira ou leasing. Aliás, antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n. 0 171/79 de 6 de Junho, que entre nós deu pela primeira vez regulamentação a este instituto, procurou-se fundamentar a sua admissibilidade justamente na disposição contida no n. 0 2 do artigo 936°. Num ponto essencial se distingue o leasing da locação/venda: no primeiro caso, a celebração da compra e venda do bem anteriormente locado depende de urna manifestação de vontade nesse sentido proferida pelo locatário, ao passo que, no segundo, a "transformação" da locação em venda opera a u torna ticarnen te. II) Nas alienações com preço fraccionado, para obtenção da finalidade prática pretendida pelo adquirente e pelo alienante, podem imaginar-se duas formas de associação da locação com outros contratos: junção entre o contrato de locação e o contrato de compra e venda ou junção entre o contrato de locação e o contrato-promessa de compra e venda. Em qualquer dos casos, o alienante fica obrigado a entregar a coisa ao adquirente a título de locação [artigo 1031°, alínea a)]. Este último obtém assim o direito ao uso e a urna limitada fruição [artigo 1031°, alínea b)] da coisa cuja propriedade futuramente irá adquirir. Também em qualquer dos casos, o alienante obtém o direito de exigir ao adquirente as rendas ou alugueres convencionados [artigo 1038°, alínea a)]. Mas corno a finalidade última das partes é proceder à transmissão ou à constituição de certo direito (real, em princípio), representando a locação apenas urna situação jurídica transitória e instrumental, aquelas rendas ou alugueres serão havidos, se o negócio translativo ou constitutivo entrar em vigor, corno parcelas do preço neste estipulado. A diferença, intuitiva, enh·e ambas as situações reside no facto de, no segundo caso, a transmissão ou a constituição do direito em causa apenas se verificar quando o contrato prometido for celebrado85, ao passo que, no primeiro, satisfeita a última 85

O que acarretará inúmeras dificuldades na definição da situação jurídica caso se verifi-

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prestação, a locação transforma-se automaticamente em venda. Dos termos em que no n. 0 2 do artigo 936° se encontra formulado, decorre, sem dúvida, que, uma vez pagas todas as rendas ou alugueres pactuados, a venda produz automaticamente todos os seus efeitos. Não há pois necessidade de uma nova declaração de vontade: a verificação daquele evento torna-a imediatamente eficaz, o que faz supor que ela já existia enquanto acto (ou seja, já estava celebrada) antes de as rendas ou alugueres pactuados terem sido pagos. Ora, a justificação para a locação passar mecanicamente a venda só pode encontrar-se no facto de a componente venditícia do contrato se encontrar já potencialmente apta a produzir os seus efeitos, funcionando o pagamento das referidas rendas ou alugueres como simples requisito de eficácia. É certo que o artigo 936°, n. 0 2, não nomina o facto que dá origem à transmissão da propriedade a favor do locatário "depois de satisfeitas todas as rendas ou alugueres pactuados". No entanto, se esse facto não fosse a compra e venda mas antes a promessa de compra e venda, o pagamento das "rendas ou alugueres pactuados" não seria suficiente para operar a transmissão da propriedade. Seria ainda necessário que o contrato prometido (a compra e venda) se celebrasse efectivamente. Tal não estaria, porém, minimamente de acordo com a disposição em causa, uma vez que esta faz depender a transmissãd da propriedade, unicamente, do referido pagamento. Sempre se poderia argumentar que as situações jurídicas do comprador e do vendedor contêm as posições jurídicas do promitente-vendedor e do promitentecomprador. E, nessa medida, poder-se-ia sustentar, por exemplo, que o locador/ alienante apenas promete vender até ao pagamento de todas as "rendas ou alugueres pactuados", e só verificado tal condicionalismo se daria a "conversão" automática da locação/promessa de compra e venda em compra e venda (definitiva, se assim se pode dizer). O pagamento da totalidade das prestações funcionaria, portanto, não como requisito de eficácia, mas como pressuposto de celebração (portanto, de existência) da própria compra e venda. Esta tese, porém, para além de muito rebuscada, poderia implicar uma extensão absurda: é que então, por analogia, toda a compra e venda sujeita a condição suspensiva poderia ser concebida como promessa de compra e venda até à sua efectivação funcional. Só pode concluir-se, pois, no sentido de que a situação tipicamente prevista no artigo 936°, n. 0 2, apenas abrange os casos em que a locação surge associada à compra e venda e não à promessa de compra e venda. Este último caso, embora admissível (relembre-se a comparação com o leasing), não se subsume à previsão da citada disposição. III) Esta associação entre locação e compra e venda processa-se, em termos meramente estruturais, da seguinte forma: que mora na celebração do contrato prometido.

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A. Deve considerar-se que a inserção da cláusula de que a coisa "se tornará propriedade do locatário depois de satisfeitas todas as rendas ou alugueres pactuados", traduz-se na celebração de duas convenções: 1a -cedência do gozo através da locação e 2a -transmissão da propriedade através da venda. É que, por um lado, a locação, só por si, não tem eficácia translativa da propriedade; e, por outro, a mencionada "cláusula" implica a realização de uma troca - entre uma coisa e uma quantia monetária - à qual, pelos índices normais 86, corresponderá a qualificação compra e venda. B. O pagamento da última "renda ou aluguer pactuado" funciona "como condição resolutiva da locação e suspensiva da compra e venda" 87 • Por conseguinte, a cessação de efeitos da componente locativa e a produção de efeitos da componente venditícia, são vicissitudes que ocorrem automaticamenté8 após a verificação do facto futuro e objectivamente incerto na dependência do qual as partes colocaram as convenções celebradas. IV) Um dos mais difíceis problemas que a locação/venda levanta é justamente o da sua qualificação jurídica. Consistirá ela, designadamente, numa união de contratos ou, antes pelo contrário, num contrato misto? A dúvida, aparentemente sem fundamento dada a quase unanimidade da doutrina que considerou a questão na defesa da primeira solução89, tem a sua razão de ser. É que o regime de resolução da locação estabelecido pelo artigo 936°, n. 0 2, 2" parte, não corresponde ao modelo típico dos contratos de execução periódica ou continuada (artigo 434°, n. 0 2), caindo antes na regra geral (artigo 434°, n. 0 1). Mas ainda assim com especialidades, dado que, feita a resolução, deve o "locador restituir as importâncias recebidas, sem possibilidade de convenção em contrário". Ao invés, na compra e venda a prestações - que, como se viu, desempenha função análoga à da locação /venda- admite-se a referida convenção em contrário (embora com as limitações estabelecidas pelo artigo 935°)9°. Ora, sucede que, na simples união de contratos, não é habitual, precisamente por os contratos unidos manterem a sua individualidade, que a celebração de um deles interfira com o regime aplicável ao outro.

Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, págs. 140 a 149. Pereira Coelho, Arrendamento, pág. 24. 88 É neste sentido, pois, que se fala de conversão automática da locação em venda, e não no sentido técnico correspondente ao instrumento do favor negotíi que recolhe o artigo 293° do Código Civil. 89 Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, 3a edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1965, pág. 398; Pereira Coelho, Arrendamento, pág. 23. 9 ° Cf., por exemplo, Baptista Lopes, Do contrato de compra e venda (no direito civil, comercial e fiscal), Almedina, Coimbra, 1971, pág. 215(nota1). 86 87

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IV.I) "Os contratos mistos têem carácter unitário, e resultam da fusão de dois ou mais contratos ou, pelo menos, de partes de contratos distintos. ( ... )há uma fusão, e não um simples cúmulo: o contrato misto é um contrato só, não se identifica com a união de contratos ... "91 92 • É a esta categoria contratual que se refere o n. 0 2 do artigo 405093 • Embora a elaboração de verdadeiras classificações acerca dos contratos mistos seja tarefa praticamente impossível, dada a infinitude de variações admissíveis ao abrigo do princípio da autonomia da vontade, a doutrina tem, ainda assim, apresentado alguns géneros típicos. Porventura a mais conhecida e divulgada é a de Enneccerus- Lehrnann, que Vaz Serra se encarregou de divulgar entre nós 94, segundo a qual os contratos mistos se distinguem em95 : - contratos combinados, quando um dos contraentes se obriga a diferentes prestações principais, correspondentes a diversos tipos contratuais ( ... ) e o outro contraente se obriga a uma contraprestação unitária; -contratos de duplo tipo, quando o conteúdo total do contrato se enquadra em dois tipos distintos de contrato, de modo que o contrato se manifesta como contrato tanto de uma espécie como de outra; e, - contratos mistos em sentido estrito, quando o contrato contém um elemento que representa, ao mesmo tempo, um contrato de outro tipl IV.II) Diversamente, "numa perspectiva tipológica, os contratos mistos são contratos atípicos que se situam numa posição intermédia entre tipos. (... ) Os contratos mistos, nesta perspectiva, são contratos que, sem corresponderem francamente a qualquer dos tipos em questão, são formas de transição entre Gaivão Telles, Dos contratos em geral, Coimbra Editora, Coimbra, 1947, págs. 325/326. O contrato misto não é, pois, "un contratto a sé, ma solo ... un modo per considerare la realtà di una varia composizione negoziale" (Alberto Trabucchi, Istituzioni di Diritto Civile, CEDAM, Padova, 1981, pág. 666). 93 "O negócio é típico quando a sua regulação conste da lei; é atípico quando tenha sido engendrada pelas partes. Pode ainda suceder que as partes vertam, num determinado negócio que celebrem, elementos típicos e atípicos - nesse sentido depõe, de modo expresso, o artigo 405° do Código Civil; fala-se, então, em negócio misto" (Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil português, vol. I, tomo I, págs. 264/265). 94 Vaz Serra, União de contratos. Contratos mistos, in Boletim do Ministério da Justiça n. 0 91, págs. 41 a 50. 95 Gaivão Telles, Manual dos Cont1a.tos em Geral, págs. 385 e segs., acrescenta à enumeração que se segue a classe dos contratos complementares, que corresponde, em Enneccerus - Lelunann, aos contratos típicos com prestações subordinadas de outra espéciequando existe um contrato único que, segundo o seu conteúdo principal, só se enquadra dentro de um tipo único . Mas, de todo o modo, obriga também a uma prestação subordinada ao fim principal e que é regulada dentro de outra espécie de contrato. Todavia, como assinala Antunes Varela (Das Obrigações em Geia.], vol. I, Almedina, Coimbra, 1989, pág. 281, nota(4), esta espécie de contratos é aquela "que Enneccerus considera fora daquela categoria geral" (a dos contratos mistos). 91

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esses tipos" 96 . Assim, "numa perspectiva genética, pode distinguir-se dentro dos contratos atípicos mistos aqueles que são construídos a partir de um tipo, que é modificado" (contrato de tipo modificado) "e aqueles que são construídos a partir da conjunção de mais de um tipo contratual" (contrato de tipo múltiplo) 97 • IV.III) Justamente porque os "contratti misti sono classificabili trai contratti innominati"98 , o problema prático consistente na determinação do regime jurídico aplicável a um contrato misto subsiste, seja qual for a classificação ou a tipologia adoptada. "Segundo a teoria da absorção, há que individualizar no contrato misto o elemento predominante. É ele que imprime carácter ao negócio e, portanto, deve aplicar-se ao contrato misto a disciplina do contrato típico em que esse elemento decisivo se integra. Mas pode não existir um elemento predominante. ( ... ) A superação dessas dificuldades é procurada pela teoria da combinação. Sustentam os seus defensores que se aplicam aos vários elementos do contrato misto as normas dos diversos tipos contratuais a que os mesmos se ligam" 99100 • Há ainda quem defenda a analogia com os tipos legais que mantenham alguma relação com o concreto contrato misto, bem como, quando falte um tipo de referência, o recurso "à criação de uma solução concreta, através da interpretação complementadora", "com base nos princípios, cláusulas gerais e «standards», tais como a boa fé, ou a equidade ..." 101 96

Pe ro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, pág. 222. Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, págs. 226 a 230. 98 Adriano de Cupis, Istituzioni di Diritto Priva to, Giuffre, Milano, 1983, pág. 352. Innominati tem aqui o sentido de atípico (ou seja, não previsto na lei, ao menos naquela concreta combinação). Há quem afirme, no entanto, a total coincidência entre contrato típico e contrato nominado [por exemplo, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, 1991, pág. 97(nota1)] . 99 Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10a edição, Almedina, Coimbra, 2006, pág. 376. 100 "Isto equivale a dizer, também, que, em grande número dos casos os contratos atípicos se reduzem - ou melhor, são reduzidos em sede de interpretação e qualificação por parte do juiz - a contratos mistos, nos quais se reconhece a presença de prestações próprias de contratos típicos, e por esta via à disciplina fixada pelo legislador para os tipos legais" (Enzo Roppo, O Contrato, Almedina, Coimbra, 1988, pág. 137). 101 a) Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, pág. 239. Cf., igualmente, Rui Pinto Duarte, Tipicidade e atipicidade dos contratos, Almedina, Coimbra, 2000, págs. 144 e segs .. b) A determinação do regime jurídico aplicável aos contratos mistos levanta "um problema que cabe resolver dentro dos critérios gerais de integração dos negócios jurídicos (Código Civil, a. 239°), que tanto podem conduzir à aplicação dos preceitos do C. típico que constitua o elemento principal ou a disciplina resultante da combinação das normas dos contratos típicos que se reflectem no C. misto, como a soluções diversas das rigo97

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IV.IV) Do contrato misto distingue-se a união de contratos, a qual sucede "quando se celebram dois ou mais negócios diferenciados, mas ligados entre si"Io2.

As respectivas modalidades serão as seguintes 103 : -uniões externas, quando os contratos unidos conservam a sua autonomia, pelo que "cada um deles é regulado pelas suas próprias normas"; -uniões com dependência recíproca ou unilateral, quando" os dois contratos (ou o dependente, se a dependência for unilateral), dependem um do outro, de modo que, se um for nulo, o é também o outro e, se um for revogado, se entende revogado também o outro, salvo se da interpretação da vontade das partes outra coisa se concluir; independentemente disto, cada um dos contratos rege-se, como é natural, pelas suas próprias regras"; -uniões alternativas, quando há dois contratos mas, "consoante se verifique ou não determinada condição, se considera celebrado um desses contratos ou o outro ... ", razão pela qual, "verificada ou não a condição, se tem por concluído apenas um dos contratos" 104 • "A união simplesmente externa é concebível, mas é rara na prática. (... )A união alternativa é outra figura que ... , pouca realidade encontrará na práti a". Portanto, "a união com dependência, também designada união interna, constitui o modo, em princípio, natural de união de contratos" 105 • V) Tradicionalmente, entre nós, a locação/venda tem sido qualificada como uma espécie dentro da união alternativa. Todavia, quem assim pensa trabalha com um conceito de união alternativa que não corresponde inteiramente ao que rasamente postuladas pelas teorias da absorção ou da combinação" (Almeida Costa, Contrato, Enciclopédia Polis, vol. I, colunas 1236/1237). c) "Os usos são apenas chamados, na falta de preceito especial que para eles remeta, como outros possíveis elementos integrantes da boa fé, no quadro em que esta releva para a disciplina dos contratos (Rui Pinto Duarte, Tipicidade e atipicidade dos contratos, pág. 155). 102 a) Castro Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, vol. II, Lisboa, 1979, pág. 206. b) "Figura diversa" (do negócio misto) "é a das uniões ou conexões de negócios, na qual dois ou mais negócios foram colocados, pelas partes, numa situação de interdependência" (Menezes Cordeiro, Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, Lisboa, AAFDL, 1990, pág. 533). c) A união de contratos é categoria não legal dado que "inexistem preceitos legais que se refiram às ligações entre negócios jurídicos" (Rui Pinto Duarte, Tipicidade e atipicidade dos contratos, págs. 50/51). 103 Continua a seguir-se Vaz Serra, União de contratos. Contratos mistos, págs. 29 a 32. 104 " ... e, enquanto a condição estiver pendente, não se sabendo, portanto, qual dos contratos se julga realizado, as medidas cautelares podem fundar-se em que qualquer dos contratos é susceptível de se haver como celebrado". 105 Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, págs. 218/219.

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acima ficou enunciado. De facto, segundo Gaivão Telles 106, podem conceberse duas hipóteses (de urúão alternativa): "ou ambos" (os contratos) "ficam em suspenso, ou um entra logo em vigor, embora a título precário, ficando suspenso o restante". E exemplifica precisamente com a locação/venda107 • Nos termos em que a união alternativa foi concebida por Enneccerus Lehmann, pressupõe-se que, verificada ou não determinada condição, se considera celebrado um contrato ou o outro. Aplicando isto à locação /venda, temos que: verificada a condição do pagamento das rendas ou alugueres pactuados, se considera celebrada a venda; não se verificando tal condição, considera-se celebrada a locação. Isto, porém, não corresponde à mecânica da locação/venda: o não pagamento, além de impedir a eficácia da venda, fundamenta também, nos termos gerais 108, a resolução da locação. Por outro lado, na concepção daqueles autores, a urúão alternativa implica a não produção de efeitos de ambos os contratos urúdos enquanto a condição não se verificar. Ora não é isso, com certeza, que sucede no caso da locação/ venda. Como já se referiu atrás, a condição do pagamento suspende a eficácia da venda, mas não a da locação. Bem pelo contrário: condição de eficácia da venda é a eficácia da própria locação. A não ser assim, como é que se poderia entender, por exemplo, que um contrato ineficaz produzisse o efeito jurídico consistente na obrigação, imposta ao locador/vendedm~ de proporcionar ao locatário/ comprador o gozo da coisa locada? É que, note-se, na concepção em apreço, do preenchimento da condição depende a celebração de um ou de outro contrato. Ao passo que, na locação/ venda, do preenchimento da condição do pagamento das rendas ou alugueres pactuados, depende a resolução do primeiro e a eficácia do segundo. Tratar-se-á de m argumento meramente formal, mas importante, na medida em que se celebração pode até ser sinónimo de eficácia 109, não o é, com certeza, de resolução. VI) Na concepção de união alternativa de Gaivão Telles, procede-se a uma extensão do conceito a casos em que a união já não é propriamente alternativa, mas antes cumulativa. Na verdade, se um contrato entra logo em vigor, ficando suspenso o outro, isto significa que, quando este último gerar efeitos, a sua eficiência ir-se-á cumular com a do primeiro, ainda que estes cessem quando se iniciarem aqueles. A menos que esta liquidação de efeitos opere retroactivamente 110; o que, 106

Manual dos Contratos em Geral, pág. 398. Manual dos Contratos em Geral, pág. 398, nota(2). 108 Isto é, nos termos dos artigos 934°, 808° e 801°, n. 0 2, dado o disposto no artigo 936°, n. 0 1. 109 E crê-se que é precisamente neste sentido que, na classificação de Enneccerus - Lehmann, o termo em causa deve ser entendido. 110 Na concepção de Enneccerus- Lehmann este problema não se coloca dado que "quando se convencionar que se realiza um contrato ou outro, conforme se verificar ou não certa condição, aplica-se, de acordo com as regras dos negócios condicionais, apenas o 107

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de qualquer modo, não pode suceder com a locação/venda. É que das duas, uma: ou a venda, verificada a condição, tem também eficácia retroactiva, o que, para além de constituir uma violentação da vontade das partes 111 , traz graves complicações práticas ao nível dos actos de utilização, fruição, administração e disposição media tempore; ou a venda não tem eficácia retroactiva, e então os efeitos práticos produzidos media tempore perdem suporte jurídico. Por outro lado, a resolução retroactiva da locação traria ainda como consequência, que as rendas ou alugueres pagos tal como acordado deveriam ser restituídos ao locatário/comprador (artigos 433°,434°, n. 0 1, e 289°, n. 0 1). Não se compreenderia, então, como é que simultaneamente se poderia proceder à sua conversão em fracções do preço global. Estas prestações, para tal, teriam que sair e reentrar ao mesmo tempo no património do locador/vendedor112113 . VII) É indiscutível que, na locação/venda, o regime da venda absorve a locação, pelo menos no tocante aos aspectos relacionados com a resolução por falta de pagamento das rendas ou alugueres pactuados (artigo 936°, n . 2, 2• parte). O que evidencia uma interligação entre ambas bastante mais profunda do que aquela que normalmente resultará da simples união de contratos. "Saber onde se encontra a autonomia suficiente para que haja uma Jnião de contratos e não um contrato misto ... , é algo que a doutrina tradicional mal consegue expor e dificilmente consegue pôr em prática" 114 • A" ... transição entre a união de contratos e os contratos mistos é fluida" 115 • No caso concreto da locação/venda parece mais acertado começar por descobrir, ainda que sumariamente, a medida em que esta associação contratual traz desvios ou excepções em relação aos regimes típicos da venda e da locação. O que é sempre um importante indício de qualificação como contrato misto, dado que "se dois contratos, com todos os seus elementos separados, salvo eventualmente o acto de celebração, forem queridos apenas como um todo, dependendo reciprocamente, ou um do outro, mas não este daquele, a nulidade ou a revogabilidade ou rescisão de um dos contratos produz a dos contratos dele 0

regime do contrato que se considera como celebrado, consoante a condição se verificar ou não" (Vaz Serra, União de contratos. Contratos mistos, pág. 133, artigo 2°, n. 0 3). É que, nesta concepção, todos os negócios unidos alternativamente estão sob condição suspensiva. 111 Se as partes diferiram o momento translativo da propriedade para um momento ulterior, constitui violação da autonomia privada antecipar a posteriori esse momento. 112 Era aproximadamente este, aliás, o argumento que o próprio autor em causa apresentava anteriormente contra a admissibilidade da união entre a locação e a promessa de compra e venda ou entre a locação e a compra e venda (Arrendamento, págs. 49/50). 113 A menos que seja concebível traditio brevi manu do preço (!) e o problema se resuma à alteração da qualificação (de renda/aluguer para fracções do preço) . 114 Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, pág. 218. 115 Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, pág. 225.

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dependentes, de harmonia com a intenção das partes, sendo, no resto, aplicáveis, a cada um dos contratos, as disposições, que lhes respeitem" 116 •

a) Forma No que respeita à forma da declaração negocial, a locação/venda deve, obviamente, ser celebrada, em regra, por escritura pública ou documento particular autenticado se tiver por objecto direitos inerentes a coisas imóveis [artigos 204°, n .0 1, alínea d), e 875°] . Embora o contrato de arrendamento, em todos os seus tipos, deva ser celebrado, no máximo, por escrito particular simples ( v.g. artigo 1069°), a verdade é que, estando o arrendamento subordinado à venda, aquele tem de submeterse necessariamente à mesma forma exigida para esta. Aliás, mesmo que assim não fosse, o simples facto de a forma exigida para a venda ser mais solene do que a forma exigida para o arrendamento urbano já levaria à aplicação do artigo 875°. A razão que leva a lei a exigir escritura pública ou documento particular autenticado para a compra e venda de imóveis é claramente extensível à locação/ venda de imóveis. b) Legitimidade do locador/vendedor Por quais disposições se deve aferir a legitimidade do locador/vendedor? Pelas relativas à venda de bens alheios (artigos 892° a 904°) ou pelas relativas à ilegitimidade do locador (artigos 1034° e 1035°)? Sem dúvida, pelas primeiras. Antes de mais, porque, como já se disse atrás, pela locação/venda temse em vista, acima de tudo, operar a transferência da titularidade do direito e não a simples cedência do uso da coisa. Portanto, a (i)legitimidade do locador/ venCI.edor é, principalmente, (i)legitimidade para vender ou, em geral, para transmitir. Por outro lado, porque entre o regime da venda ilegítima e o regime da locação ilegítima existem discrepâncias difíceis de conciliar. Na verdade, enquanto o artigo 1034°, n. 0 1, alínea a), na remissão que faz para o art. 1032°, considera não cumprido o contrato de locação "se o locador não tiver a faculdade de proporcionar a outrem o gozo da coisa locada", com a sua consequente responsabilização nos termos gerais dos artigos 798° a 808°, o artigo 892° considera nula a venda "de coisa alheia como própria" (artigo 904°), sujeitando o vendedor à obrigação (de meios) de a convalidar nos termos do artigo 897°117 • 116 117

n.

Vaz Serra, União de contl'atos. Contl'atos mistos, págs. 132/133, artigo 2°, 0 2. a) "A natureza real da venda, contra o que em regra se supõe, não traz como corolário forçoso a nulidade da venda de objecto não pertencente ao vendedor. A validade desta venda é compatível com a aludida natureza. Pode o legislador decretá-la: o que significa que a legitimidade do vendedor, resultante da condição de proprietário, deixa então de ser requisito de validade do acordo, para se tornar mero requisito de eficácia. A venda é válida; ninguém pode pedir a sua anulação; simplesmente ela não transfere logo a propriedade ... " [Galvão Telles, Contl'atos Civis (pmjecto completo de um título do futum

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c) Resolução É necessário distinguir. Tratando-se de resolução por falta de pagamento das prestações acordadas, há disposição legal expressa sobre a matéria: mais exactamente, a contida no artigo 936°, n. 0 1. Assim, o locador/vendedor só poderá, eventualmente, resolver o contrato por falta de pagamento das "rendas ou alugueres pactuados" se o montante da prestação em mora exceder a oitava parte do preço ou então se estiverem em atraso duas ou mais prestações, independentemente do seu montante (artigo 934°) 118 • Como, em regra, a prestação pecuniária nunca é, em si mesma, definitivamente impossíveP 19, o locador /vendedor somente adquire o direito à Código Civil Português), Boletim do Ministério da Justiça, n. 0 83, págs. 125/126]. b) Em geral, tem-se entendido que a natureza meramente obrigacional de certo contrato acarreta, como consequência lógica, a sua validade mesmo quando incida sobre bens alheios (cf., por exemplo, em relação à compra e venda, Galvão Telles, Contratos Civis, pág. 125). "No caso da locação ..., o contrato gera apenas um efeito obrigacional ou, por outras palavras, uma vinculação pessoal..., nada impedindo que esta vinculação seja assumida em relação a coisa não pertencente ao locador" (Henrique Mesquita, Obfigações Reais e Ónus Reais, Almedina, Coimbra, 1990, pág. 165). No entanto, e apesar de defender a natureza obrigacional do direito do locatário (AJTendamento, págs. 16 a 21), Pereira Coelho sustenta que a locação de bens alheios é nula por aplicação analógica do artigo 892° (Arrendamento, pág. 105). Ora, seguindo esta concepção, o regime aplicável à locação "de coisa alheia como própria" seria precisamente o mesmo que a lei manda aplicar à venda celebrada nas mesmas circunstâncias, inclusive no que respeita às indemnizações devidas. 118 a) Pires de Lima- Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, pág. 233. b) Consequentemente, a resolução opera nos termos gerais dos artigos 432° a 436° e não nos termos dos artigos 1047° e segs .. c) Quer dizer, portanto, que, para excepcionar a regra contida no artigo 886°, a locação/ venda se equipara (novamente) à venda com reserva de propriedade. Acórdão da Relação do Porto de 20/01/2005, Proc. n. 0 0436995: "Na locação-venda art. 936. 0 /2 do CC- as partes declaram estipular uma locação, mas convencionam que a propriedade passará para o locatário automaticamente com o fim do pagamento de todas as rendas ou alugueres convencionados. O que implica que as prestações não correspondam a uma contrapartida do gozo temporário da coisa, mas ao pagamento da transmissão da propriedade sobre ela, apenas com a diferença de que o pagamento ocorre antes da transmissão. O contrato, apesar de qualificado pelas partes como locação, desempenha a mesma função económica da venda a prestações com reserva de propriedade, sendo sujeito pelo legislador ao mesmo regime . Pretende-se impedir que as partes derroguem o regime da venda a prestações, determinando-se que a resolução tem obrigatoriamente efeito retroactivo, afastando-se o regime do art. 434. 0 /2, e impondo-se ao vendedor, em caso de resolução por incumprimento, a devolução das prestações recebidas, apenas podendo exigir uma indemnização nos termos gerais, ou estipular uma cláusula penal nos mesmos termos do art. 935. 0 " . 119 Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, Almedina, Coimbra, 1990, pág. 109:

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resolução verificado algum dos requisitos estabelecidos pelo artigo 808°, n. 0 1, por via dos quais se equipara a mora ao incumprimento definitivo. Resolvido o contrato nestes termos, dá-se a sua destruição retroactiva (artigo 936°, n. 0 2,2a parte). Não há aqui, porém, qualquer excepção à regra contida no n. 0 2 do artigo 434°120, justamente por a locação/venda não se configurar como um contrato de execução continuada ou periódica, no que diz respeito à prestação a que se encontra vinculado o locatário/comprador, mas antes como um contrato de prestação fraccionada. É que, se as "rendas ou alugueres pactuados" irão inteirar o preço, total ou parcialmente, é porque constituem fracções de uma prestação única - a de pagamento desse mesmo preço - e não prestações repetidas ou reiteradas, como seriam se de verdadeiras rendas ou alugueres se tratasse. Na realidade, embora o seu cumprimento se protele no tempo, "o objecto da prestação está previamente fixado, sem dependência da duração da relação contratual" 12\ o que é característico, precisamente, das prestações fraccionadas 122 • Diversamente, estando em causa a resolução com qualquer outro fundamento, é de aplicar o regime geral (artigos 432° a 436°). Não choca, todavia, que, até à verificação da condição do pagamento de todas as "rendas ou alugueres pactuados", se aplique o regime próprio da locação 123 . d) Acções possessórias Na venda com reserva de propriedade, a situação possessória do comprador é, pelo menos, questionável. Embora tudo esteja dependente da opção que se tomar na disputa entre a concepção objectiva e a concepção subjectiva da posse124 • 2 ... há casos em que, como sucede no comum das obrigações pecuniárias, a prestação ml ntém sempre o seu interesse para o credor, mesmo que não seja realizada na data estipulada". 12 °Com opinião diferente, Pereira Coelho, Arrendamento, pág. 24. 121 Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, pág. 95. 122 Só este argumento que se retira do artigo 936°, n .0 2, 2a parte, já é indício mais do que suficiente para demonstrar a óbvia subordinação da locação à venda. 123 Salvaguarda-se, bem entendido, em todos estes casos, o que concerne (pelo menos) à resolução por falta de pagamento da renda ou aluguer, a qual, como se disse, segue o regime estabelecido no artigo 934°. 124 Pela concepção objectiva, quem tiver o poder de facto sobre a coisa tem, em princípio, a sua posse (artigo 1252°, n. 0 2). Pela concepção subjectiva, tem posse quem, para além do referido poder de facto, actue com uma determinada intenção (animus possidend1) . Esta intenção pode ser avaliada em concreto ou em abstracto. No primeiro caso, tudo se decide em função dos actos concretamente praticados (constitui exemplo paradigmático desta orientação o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1996/11/19, Proc. n .0 96A362: "I- Em contrato-promessa de compra e venda de imóvel, a tradição da coisa para o promitente-comprador, acompanhada de factos que traduzam o «animus sibi habendi», transfere a respectiva posse para este, sem necessidade de registo, podendo ele defender a sua posse mediante embargos de terceiro em execução movida contra o promitente-vendedor, ainda que tenha havido penhora registada. II- Efectivamente, a tradição da coisa para o promitente-compradm; após este ter feito o pagamento integral

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Parece que, de qualquer modo, a opinião dominante, relativamente à situação do comprador sob reserva de propriedade, é ainda a de Gaivão Telles125 segundo a qual a entrega da coisa ao comprador se configura como um acto de mera tolerância, do qual apenas pode, por isso, resultar detenção [artigo 1253°, alínea b)]. A defesa possessória fica assim excluída 126 • Inversamente, no caso da locação/venda, a qualificação da situação possessória do locatário é, a este nível, uma questão irrelevante, dado que a própria lei estendeu (explicitamente) os meios de defesa da posse ao locatário [artigo 1037°, n. 0 2]. Razão pela qual, enquanto a componente locativa do contrato estiver em vigor, as acções possessórias podem ser legitimamente intentadas tanto pelo locatário/comprador, como pelo locador/vendedor (já que este apenas perderá a sua posse, por traditio brevi manu, quando aquele efectuar o pagamento da última renda ou aluguer pactuado). e) Registo predial Em geral, o contrato de arrendamento não está sujeito a registo predial. Salvaguarda-se o caso em que o mesmo seja celebrado por um prazo inicial superior a seis anos [artigo 2°, n .0 1, alínea m), Código do Registo Predial]. Ao invés, a venda que tenha por objecto qualquer direito real de gozo autonomamente transmissível é registável [artigo 2°, n. 0 1, alíneas a) e b) do mesmo diploma . A locação I venda que tenha por finalidade operar a transmissão ou a constituição de algum dos direitos a que se referem as alíneas a) e b) do n°1 do artigo 2° do Código do Registo Predial ou o artigo 12°, n. 0 1, do Decreto-Lei n° 275/93 de 5 de Agosto (direito real de habitação periódica) está sujeita a registo, por força justamente das disposições citadas. A respectiva razão de ser é dupla: por um lado, a venda consome a locação, do respectivo preço, recebido as chaves e ocupado o imóvel em que passou a fazer obras de ben eficiação, traduz o <<animus sibi habendi» acompanhado do corpus, ainda que, no título inicial do contrato-pmmessa, se haja estipulado que a posse só seria transmitida após a esaitura definitiva de compra e venda"). No segundo caso, a referida intenção presume-se a partir do acto jurídico que fundamenta a aquisição do poder de facto - assim, haverá animus possidendi sempre que tal acto tenha aptidão potencial para transmitir/ constituir o direito real ao qual a actuação de facto se refira. Cf., por exemplo, Manuel Rodrigues, A Posse, Estudo de Direito Civil Pm"fug uês, Almedina, Coimbra, 1996, págs. 69 a 104; Menezes Cordeiro, A Posse: perspectivas dogmáticas actuais, Almedina, Coimbra, 1997, págs. 51 a 69. Assim, aplicando o que fica exposto ao caso do comprador sob reserva de propriedade, teremos, respectivamente: posse, posse e detenção. 125 Arrendamento, págs. 47/48. 126 Menezes Cordeiro, A Posse: perspectivas dogmáticas actuais, parece entender que a situação do comprador sob reserva de propriedade é parcialmente assimilável à do locatário, o" que justifica as acções possessórias, por via do artigo 1037°/2" (pág. 79). Uma outra via consistirá em estender a defesa possessória a todos os casos em que o poder de facto se baseie num direito pessoal de gozo (Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, pág. 51, nota), o que até adquiriu um renovado fundamento com a extensão conferida pelo Código de Processo Civil aos embargos d e terceiro (artigo 351°, n. 0 1).

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precisamente porque a finalidade última da locação/venda é produzir uma das vicissitudes previstas nas disposições em causa; por outro lado, só assim se garante que o respectivo sucesso seja invocável perante terceiro (artigo 5°, n. 0 1, do Código do Registo Predial) 127 . Para efeitos de oponibilidade, não basta efectuar o registo em causa no momento em que é satisfeita a última renda ou aluguer pactuado, dado que até aí a oponibilidade a terceiro imposta pela lei através do disposto no artigo 1057° do Código Civil apenas garante a eficácia da componente locativa do contrato e só, mesmo assim, perante "o adquirente do direito com base no qual foi celebrado2 (o contrato de locação) 128 • !)Risco Na pendência da condição suspensiva, "o risco de perecimento ... corre por conta do alienante" (artigo 796°, n. 3). Tratando-se de reserva de propriedade donec pretium solvatur, e sendo a coisa entregue ao comprador (a título de mera tolerância ou por este ter direito 0

127

Note-se que a locação/venda desempenha para o locador/vendedor uma função de garantia. Integra-se, portanto, nas s uretés-propriétés. Afirmar, por isso, a sua oponibilidade a terceiros sem publicidade (sureté consensuelle occulte) apresenta "une double insecurité: pour le creancier lui-même, qui risque de voir sa revendication se heurter à la possession dún tiers de bonne foi" (o que, entre nós, não pode suceder dado que a posse não vale título), "et pour les autres créanciers exposés au risque dúne revendication insoupçonnée2 (Jacques Auger, Problemes actueis de suretés réelles, http://www. editionsthemis.com/uploaded/revue/article/rjtvol31num3/auger.pdf, pág. 638). Pal a tentar evitar atribuir oponibilidade a factos potencialmente ocultos, o artigo 1524/1 do Código Civil italiano faz depender a eficácia, perante os credores do comprador, da reserva de propriedade sobre coisas móveis não registáveis da realização de" atto scritto avente data certa anteriore al pignoramento" (cf. o artigo 104°, n . 4, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas). 128 Tratando-se de aluguer/venda, parece que a sua oponibilidade a terceiro independe da boa ou má fé deste (excepto, como é óbvio, se incidir sobre coisa móvel registável). Pelo menos, é o que muitas vezes se sustenta para outras suretés-propriétés como a reserva de propriedade ou a venda a retro [artigos 409°, n. 0 2, a contrario, e 932°, a contrario. Cf., por exemplo, Almeida Costa, Direito das Obrigações, pág. 298]. A opção pela regra posse vale título (artigos 2279, 464 e 1153 dos Códigos Civis francês, espanhol e italiano, respectivamente) seria, sem dúvida, mais ajustada, especialmente para protecção dos credores que "aspirent à une sureté simple et efficace" (Jacques Auger, Problemes actueis de suretés réelles, pág. 632). A lei catalã de garanties possessàries sobre cosa moble (Llei 22/1991 de 29 de Novembro) considera, nesta linha, que 2el posseidor de bona fe de cosa aliena que l'hagi de lliurar a una altra persona pot exercir el dret de retenció en garantia del pagament dels deutes a que fà referencia 1' article 4" (artigo 3). Entre nós, o direito de retenção também se pode constituir num caso semelhante, mas apenas para garantia de pagamento das compensações devidas ao possuidor de boa fé nos termos do artigo 1273° do Código Civil [artigos 754° e 756°, alíneas a) e b)]. 0

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à entrega imediata 129, tanto importa para este efeito), tem-se entendido 130, no entanto, que o risco de perecimento da coisa corre por conta do adquirente 131 • Crê-se que, por força do disposto no artigo 939° e da analogia funcional que existe entre a locação/venda e venda com reserva de propriedade, até ao pagamento do preço, o mesmo regime não pode deixar de ser estendido à primeira. Por conseguinte, o risco de perecimento da coisa correrá por conta do locatário I comprador. VIII) No fundo, o que as partes pretendem ao celebrar o contrato de locação/ venda é comprar e vender, ou seja, transmitir definitivamente a titularidade do direito que constitui objecto da venda mediante um preço correspectivo. , Exactamente por isso a locação surge subordinada à venda como um meio processualmente inserido no iter dirigido à obtenção daquela finalidade principal. A locação desempenha uma função meramente acessória em relação à venda num duplo sentido: garante 132 ao locador/vendedor o pagamento do preço e confere ao locatário/comprador, na pendência da condição, o direito ao uso da coisa. Parece ser este o esquema que melhor quadra à intenção das partes. Ora, como é que tal esquema opera? Até ao pagamento das "rendas ou alugueres pactuados", a compo~ente locativa do contrato obsta à produção dos efeitos essenciais da compra e venda estabelecidos pelo artigo 879°. Mas não de todos. Ficam efectivamente suspensos os efeitos previstos na alínea a) - o direito em causa transmite-se uma vez verificada a condição do pagamento das prestações acordadas - e na alínea b) - a obrigação de entregar a coisa só deve ser cumprida igualmente após o preenchimento da referida condição [embora opere através da traditio brevi manu, dado que a entrega efectiva é anterior por ser um efeito da componente locativa do contrato - artigo 1037°, alínea a)] . O efeito previsto na alínea c) do artigo 879°, no entanto, não fica su spenso. 129

É o que se estabelece, por exemplo, na Ley 483/1 da Compilación del Derecho Civil Foral de Navarra. 130 Somente é aceitável dizer que o risco de perecimento da coisa corre por conta do alienante, (como fazem Pires de Lima - Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, pág. 52), entendendo-se que até à verificação do evento que condiciona a transferência da propriedade, este não está obrigado a entregar a coisa. É que se é certo que existem outras garantias reais cuja constituição não pressupõe o apossamento da coisa a favor do credor privilegiado, maxime a hipoteca, instituíram-se aí, no entanto, meios subsidiários de manutenção do privilégio para o caso de perecimento (desvalorização, inutilização, etc.) da coisa (cf., por exemplo, os artigos 701° ou 702°). 131 Código Civil Italiano, artigo 1523; Compilación del Derecho Civil Foral de Navarra, Ley 483/1. 132 Neste aspecto, a função da locação/venda é absolutamente idêntica à função que a reserva de propriedade desempenha quando é estabelecida até que se verifique o "cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte" (artigo 409°, n .0 1).

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De facto, a obrigação de pagar as "rendas ou alugueres pactuados" não pode ser entendida literalmente já que, se estas todas somadas irão perfazer parte ou a totalidade do preço, é porque são preço e não qualquer outra coisa. Não se pode admitir, como diz Galvão Telles 133, que as prestações pagas debaixo do nome e com a côr de renda ou aluguer se convertam de um momento para o outro" (com o preenchimento da condição do pagamento), "como por encanto, em preço. Assistiríamos ao caso único de o credor se cobrar da dívida - dívida do preço -através de valores do seu próprio activo, os valores que o devedor lhe pagará com fundamento em outro contrato". Ao invés, entendendo-se, como parece mais ajustado, que as "rendas ou alugueres pactuados" são fracções do preço, então a correspondente obrigação de dare só se pode fundamentar no contrato de compra e venda e não no de locação. O que não impede que no montante do preço se leve em conta o uso que o locatário I comprador faz da coisa locada até se tornar titular do direito de propriedade sobre ela. Na verdade, a contraprestação a que este se obriga pode destinar-se, por um lado, a retribuir o uso e, por outro, a pagar o direito vendido. Acontece é que este duplo aspecto da prestação a que se encontra vinculado o locatário I comprador, em regra, não será separável. Assim, pode dizer-se que a locação serve quase exclusivamente para fundamentar o direito de uso do locatário/comprador. O que traz pelo menos uma vantagem, do ponto de vista da segurança jurídica, pois remete para um regime legal muito minucioso como é o do arrendamento. IX) Pergunta Vaz Serra 134 : "quando poderá dizer-se que há um contrato 1 misto, e não uma simples união de contratos, isto é, quando é que haverá a unidade de contrato que caracteriza o contrato misto?" Segundo o que se diz, tal dá-se "quando os diferentes tipos tidos em vista pelas partes são entre si conexos. (...)Afirma-se ... , que decisiva é a circunstância de o contrato ter uma causa única, a causa mista, isto é, uma causa específica do contrato novo, distinto dos contratos que entram na sua formação" 135 136137 • 133 134

Arrendamento, pág. 50. União de contratos. Contratos mistos, págs. 48/49.

135

Dentro dos contratos atípicos "una sottocategoria e costituita dai contratti misti la cui funzione causale, anziché essere originale, unisce in se le cause proprie di diversi contratti nominati..." (Adriano de Cupis, Istituzioni di Diritto Priva to, pág. 352). 136 "A causa do contrato identifica-se ... com a operação jurídico-económica realizada tipicamente por cada contrato, com o conjunto dos resultados e dos efeitos essenciais que, tipicamente, dele derivam, com a sua função económico-social, como frequentemente se diz" (Enzo Roppo, O Contrato, pág. 197). 137 "A única especialidade que aqui" (nos negócios mistos) "se pode assinalar é, no fundo, a de a vontade se referir a fins económicos ou sociais complexos, não recondutíveis à função de um só tipo de negócios" (Carvalho Fernandes, A Conversão dos Negócios

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Parece realmente que esta perspectiva é correcta e fundamental. Como afirma Galvão Telles 138, "a autonomização da causa objectiva, como síntese dos elementos específicos ... , permite pôr em relêvo a unidade de função do negócio ... , e sobretudo se constitui um contrato misto. A unidade de função comunica-se ao negócio jurídico139 . Além disso, "a comparação da função própria de um certo contrato com(o)? a função típica de um ou mais tipos contratuais permite aproximá-lo ou afastá-lo e, acima de tudo, permite estabelecer um processo comparativo que é frutuoso na descoberta da disciplina concreta, designadamente quando se trata da interpretação complementadora" 140 141 • Ora, certo é que a locação I venda desempenha uma função social típica distinta daquela de que caracteriza cada uma das partes que a integram (e, de resto, flagrantemente similar à da compra e venda a prestações com reserva de propriedade). Em que se cifra então essa função? Transmitir definitivamente um direito em relação a uma coisa, possibilitando o pagamento fraccionado do respectivo p reço e atribuindo ao adquirente o direito ao uso da mesma, sem retirar ao disponente a titularidade daquele direito,/ té que se cumpra a obrigação em causa. Como se vê a causa-função da locação/venda não se limita a ser a justaposição da causa-função da compra e venda com a causa-função da locação. É que, aqui, a função da locação não consiste apenas em proporcionar o gozo da coisa mediante retribuição periódica, como é próprio deste contrato; consiste também em garantir o pagamento das "rendas ou alugueres pactuados" (ou seja, do preço). Só que esta segunda função, não sendo característica da locação, apenas surge quando ela é associada à compra e venda nos termos previstos no n. 0 2 do artigo 936°. Esta finalidade desempenhada pela locação integrada no contrato de locação/venda permite ao locatário/vendedor (tal como acontece com o vendedor sob reserva de propriedade) utilizar o direito de propriedade sobre a Jurídicos Civis, Lisboa, QuidJuris, 1993, pág. 83) . Dos Contratos em Geral, pág. 212. 139 "Diz-se que todo o negócio deve ter uma função socialmente relevante. Mas a afirmação pouco adianta em relação aos negócios típicos ... Porém, a importância é grande nos negócios atípicos. Em relação a cada figura, será necessário valorar se é socialmente admissível" (Oliveira Ascensão, Teoria Geral do Direito Civil, vol. III, pág. 340). 140 Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, pág. 125. 141 "Positivamente" (a causa) "contribui para a determinação do negócio jurídico e do seu texto, a partir de relações de implicação e de incompatibilidade extraídas dos respectivos enunciados, e ainda, conjuntamente com outros elementos, para a qualificação, classificação e tipificação dos actos negociais" (Ferreira de Almeida, Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, vol. I, Almedina, Coimbra, 1992, págs. 513/514). 138

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coisa vendida de uma forma tipicamente diversa daquela que aparece prevista pelo artigo 1305°. Isto é, permite-lhe usar o direito de propriedade como garantia reaP42 • X) Pode assim concluir-se que, numa perspectiva tipológica, a locação/ venda está muito mais próxima da compra e venda (como aliás já resultava da brevíssima exposição do seu regime a que se procedeu) do que da locação. Para além disso, parece indesmentível, face ao que antecede, que a locação/ venda deve ser tida como um contrato misto e não como uma união de contratos. Antes do mais, a própria distinção entre contrato misto e união de contratos, não pode, ela própria, deixar de ser gradativa. E, no caso concreto da locação/ venda, esta afigura-se estar mais perto da unidade do que da pluralidade contratual. Efectivamente, em todas as modalidades de união de contratos, supõe-se que os regimes jurídicos especialmente previstos na lei para cada um dos contratos conexionados entram em vigor (cumulativamente, portanto). Ora, julga-se ter demonstrado, embora em termos sumários, que na locação/venda o regime da locação só muito restritamente pode ser aplicado 143 . Por outro lado, afigura-se preferível, dentro das várias tipologias de contratos mistos atrás enunciadas, perfilhar aquela cujo critério pareça mais maleável e, portanto, mais adaptável às circunstâncias. É que, no domínio da autonomia da vontade, todo o quadro que se apresente muito rígido corre o risco de facilmente ficar ultrapassado. Ora, como "a abordagem conceptual e classificatória é mais clara na exposição que na aplicação, ao contrário da tipológica que é mais clara na aplicação do que na exposição" 144, afigura-se mais conveniente adoptar esta última perspectiva. ' Nesta perspectiva tipológica, em matéria de contratos mistos, "não se trata prop riamente da mistura num mesmo contrato de cláusulas ou características próprias de mais do que um tipo contratual, mas sim da intermediação entre esses tipos" 145 • Assim, por esta via, a locação/venda será um contrato de tipo múltiplo146, dado que "não existe um tipo contratual de referência que forneça ao contrato a Na tradição romana, que integrava a fiducia cum creditoreno género das garantias reais (ver, por exemplo, Santos Justo, Direito Privado Romano-III- Direitos Reais, Coimbra, 1997, pág. 213), a Ley 463 da Compilación del Derecho Civil Foral de Navarra considera também, no capítulo das garantias reais, a existência de uma série de surêtés-pmpriétés: "el cumplimiento de una obligación, o los efectos de su incumplimiento, podrán asegurarse con fiducia, arras, prenda, hipoteca, anticresis, derecho de retención, depósito de garantía, pacto de retracto, reserva de dominio, condición resolutória, prohibición de disponer u otras cualesquiera formas de garantía real o personal". 143 Cf. Vaz Serra, União de contratos. Contratos mistos, págs. 132/133, artigo 2°. 144 Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, pág. 218. 145 Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, pág. 222. 146 Embora se reconheça que, no caso concreto, a fronteira perante o contrato de tipo modificado não esteja muito longínqua. 142

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base da sua disciplina, mas uma pluralidade de tipos 147 : no caso concreto, o tipo locação e o tipo compra e venda. O respectivo regime jurídico determinar-se-á por isso, basicamente, através da Kombinationstheorie já que, sendo embora a compra e venda o tipo claramente dominante, a presença do outro (a locação) "obriga à combinação. A combinação é graduada consoante o peso específico da cada tipo de referência no contrato" 148 •

2.4. O trust I) No dizer do Código Civil francês, "la fiducie est l'opération par laquelle un ou plusieurs constituants transferent des biens, des droits ou des suretés, ou un ensemble de biens, de droits ou de suretés, présents ou futurs, à un ou plusieurs fiduciaires qui, les tenant séparés de leur patrimoine propre, agissent dans un but déterminé au profit d'un ou plusieurs bénéficiaires" (artigo 2011). O que significa que, no quadro desta operação, os elementos do activo e do passivo transferidos formam um património de afectação, um património autónomo. A especial destinação a que os bens ficam então submetidos determina que não pode ser atribuída a qualquer pessoa a categoria de fiduciante nem de fiduciário (artigos 2014 e 2015) 149 • I No que toca à relação entre o fiduciário e terceiros estabelece-se (artigo 2023) que: "dans ses rapports avec les tiers, le fiduciaire est réputé disposer des pouvoirs les plus étendus sur le patrimoine fiduciaire, à moins qu'il ne soit démontré que les tiers avaient connaissance de la limitation de ses pouvoirs". O contrato de constituição "prend fin de plein droit si le contraí le prévoit ou, à défaut, par une décision de justice, si, en 1'absence de stipulations prévoyant les conditions dans lesquelles le contraí se poursuit, la totalité des bénéficiaires renonce à la fiducie" (artigo 2029) e "lorsque le contraí de fiducie prend fin en 1'absence de bénéficiaire, les droits, biens ou suretés présents dans le patrimoine fiduciaire font de plein droit retour au constituant" (artigo 2030). 11.1) Da descrição deste regime pode concluir-se que está aqui em causa uma figura próxima (ou recortada dentro) do trust de raiz anglo-saxónica 147

Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, pág. 227. Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, pág. 242. 149 Artigo 2014: "Seules peuvent être constituants les personnes morales soumises de plein droit ou sur option à l'impôt sur les sociétés. Les droits du constituant au titre de la fiducie ne sont ni transmissibles à titre gratuit, ni cessibles à titre onéreux à des personnes autres quedes personnes morales soumises à l'impôt sur les sociétés". Artigo 2015: "Seuls peuvent avoir la qualité de fiduciaires les établissements de crédit mentionnés à 1' article L. 511-1 du code monétaire et financier, les institutions et services énumérés à l'article L. 518-1 du même code, les entreprises d'investissement mentionnées à l'article L. 531-4 du même code ainsi que les entreprises d'assurance régies par l'article L. 310-1 du code des assurances". 148

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(Treuhandvertrag, no Direito alemão150) . "The term «trust» refers to the legal relationships created- inter vivos or on death - by a person, the settlor, when assets have been placed under the control of a trustee for the benefit of a beneficiary or for a specified purpose". "A trust has the following characteristics a) the assets constitute a separate fund and are not a part of the trustee's own estate; b) title to the trust assets stands in the name of the trustee or in the name of another person on behalf of the trustee; c) the trustee has the power and the duty, in respect of which he is accountable, to manage, employ or dispose of the assets in accordance with the terms of the trust and the special duties imposed upon him by law. The reservation by the settlor of certain rights and powers, and the fact that the trustee may himself have rights as a beneficiary, are not necessarily inconsistent with the existence of a trust" 151• II.II) No Uniform Trust Code (drafted by the National Conference of Commissioners on Uniform State Laws, 2005), fixa-se o seguinte em matéria de Definitions (Article 1, Section 103): (3) "Beneficiary" means a person that: (A) has a present or future beneficial interest in a trust, vested or contingent; or (B) in a capacity other than that of trustee, holds a power of appointment over trust property. (15) "Settlor" means a person, including a testator, who creates, or contributes property to, a trust. If more than one person creates or contributes property to a trust, each person is a settlor of the portion of the trust property attributable to that person's contribution except to the extent another person has the power to revoke or withdraw that portion. (20) "Trustee" includes an originat additionat and successor trustee, and a cotrustee. No Article 4, Section 40t enunciam-se os Methods of Creating Trust: 150

Ainda que se devam contrapor duas "formas distintas de conceber el negocio fiduciario: fiducia de tipo romano o latino y fiducia de tipo germánico. Esta se diferencia profundamente de aquélla porque mientras en la fiducia romana el poder de abuso del fiduciario encuentra un correctivo imperfecto en el vínculo obligacional (de ahí la importancia del juego de la lides), en la fiducia germanica dicho poder queda totalmente eliminado ope legis, frente a todos, por via real" (Jordano Barea, Perspectiva histórica de la Fiducia, in "Homenaje al Profesor Alfonso Otero", Universidad de Santiago de Compostela, Santiago de Compostela, 1981, pág. 157). 151 Article 2, CONVENTION OF THE HAGUE ON THE LAW APPLICABLE TO TRUSTS AND ON THEIR RECOGNITION, de 1 de Julho de 1985 ("Thís Convention specifies the law applicable to trusts and governs their recognition" - Article 1).

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A trust may be created by: (1) transfer of property to another person as trustee during the settlor's lifetime or by will or other disposition taking effect upon the settlor's death; (2) declaration by the owner of property that the owner holds identifiable property as trustee; or (3) exercise of a power of appointment in favor of a trustee. No Article 8 descrevem-se os deveres do trustee. Na Section 802, o Duty of Loyalty: (a) A trustee shall administer the trust solely in the interests of the beneficiaries. Na Section 803, a Impartiality: If a trust has two or more beneficiaries, the trustee shall act impartially in investing, managing, and distributing the trust property, giving due regard to the beneficiaries' respective interests. Na Section 809, o Control and Protection of Trust Property: A trustee shall take reasonable steps to take control of and protect the trust property. Por fim, no Article 10, Section 1001, enumeram-se os Remedies for Breach of ~~ I (a) A violation by a trustee of a duty the trustee owes to a beneficiary is a breach of trust. (b) To remedy a breach of trust that has occurred or may occur, the court may: (1) compel the trustee to perform the trustee's duties; (2) enjoin the trustee from committing a breach of trust; (3) compel the trustee to redress a breach of trust by paying money, restoring property, or other means; (4) order a trustee to account; (5) appoint a special fiduciary to take possession of the trust property and administer the trust; (6) suspend the trustee; (7) remove the trustee as provided in Section 706; (8) reduce or deny compensation to the trustee; (9) subject to Section 1012, void an act of the trustee, impose a lien or a constructive trust on trust property, or trace trust property wrongfully disposed of and recover the property or its proceeds; or (10) order any other appropriate relief. Na Section 1012, intitulada Protection of Person Dealing with Trustee, diz-se: (a) A person other than a beneficiary who in good faith assists a trustee, or who in good faith and for value deals with a trustee, without knowledge that the trustee is exceeding or improperly exercising the trustee's powers is protected from liability as if the trustee properly exercised the power. (b) A person other than a beneficiary who in good faith deals with a trustee is not required to inquire into the extent of the trustee' s powers o r the propriety of their exercise.

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III.I) Num aspecto fundamental, o trust diferencia-se profundamente do negócio fiduciário: no que respeita às consequências da violação da obrigação de restituir ao fiduciante os assets objecto do trust. A infracção do pactum fiduciae apenas acarreta, em geral, a obrigação de o indemnizar pelos prejuízos sofridos, não podendo ele, normalmente, recuperar tais bens quando colocado em confronto com terceiro. Ao invés, se o trustee (Treuhander), violando as obrigações emergentes do trust, confundir os assets nele incluídos com o seu património ou se os alienar a terceiro, torna-se possível, pelo menos, ao settlor ( Ti~ugeber) ou ao protector actuar directamente para os recuperar. III.II) Especificamente em relação à alienação fiduciária em garantia, a figura do trust diverge, não só por razões construtivas, como também, sobretudo, por considerações de ordem funcional. Em primeiro lugar, por, em termos de titularidade formal, não ser absolutamente seguro que o trust represente uma alienação stricto sensu. Apesar de nos Direitos da Common Law estes problemas não se colocarem de forma tão marcada como nos Direitos da Civil Law, mesmo que o trust envolva transmissão de direitos sobre o seu corpus, o trustee adquire a respectiva ownership gravada com um fim muito particular152 : gerir os bens que dela sejam objecto em benefício de terceiros. Daí que, por exemplo, se o não cumprir, a sua remoção e substituição possa ser requerida pelos interessados; o que desde logo significa que o trustee, mais do que exercer um direito, cumpre uma funçãol 53 • O que não sucede com o adquirente fiduciário em garantia. Na definição de um autor escocês do século XIX (John McLaren, A treatise on the law of tmsts and trusts settlements, vol. I, T&T Clark, Law-Booksellers, Edinburgh, 1863, pág. 12), o trust "is an interest created by the conveyance of property to a trustee, in arder that he may carry out the truster' s injunctions respecting its management and disposal". Conveyance é o acto através do qual se produz a transferência da propriedade (ownership) sobre um imóvel de uma pessoa para outra. 153 "The most general division of trusts is into Simple and Special. A simple trust has been defined as a conveyance of property to one person upon trust for another; in which case, the nature of the trust, not being qualified by the settlor, is left to the construction of law. ln this case, the trust is held to be executed as soon as the trustee has made up a title to the property; and the beneficiary has then the right to call upon the trustee to denude, either in favour of the beneficiary himself, or of any other person he may appoint. As an example of the simple trust, we may mention, trusts of heritable property for behoof of a partnership or joint stock company. A special trust may be resolved into a simple in consequence of the impossibility of executing the special purpose; as, where trustees are directed to hold land for behoof of A. in liferent, and B. in fee, and A. predeceases the testator. The esta te is then a simple trust for B. and his heirs. A special trust is constituted, where the aid of a trustee is sought for the execution of a specified purpose. It is only in the special trust that the trustee can be said to exercise the functions of a mandatory; and in the execution of such trusts, the duties of the trustee may vary to any extent compatible with the nature of the subject, and the scope of the

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Em segundo lugar, em virtude de, muito simplesmente, a sua finalidade não consistir na concessão de uma garantia de cumprimento de uma obrigação a favor de certo credor154 . IV) De todo o modo, o trust envolve (também) uma ampla dose de fiducia do settlorsobre o trustee. Por isso o negócio que lhe dá origem se apresenta como uma variedade dentro dos negócios fiduciários. O trusteepode ser visto, de facto, como uma figura próxima do depositário 155 na medida em que: - não pode tirar proveitos para si próprio a partir dos bens incluídos no

trusf 56 ; - deve actuar honestamente na administração dos assets. Há um aspecto, contudo, que não permite qualificá-lo como um puro depositário: ele está absolutamente obrigado a cumprir os propósitos e objectivos do trust, tal como foram definidos pelo settlor. Algo que vulgarmente não sucede com o depositário. O trustee tanto pode assumir a obrigação de actuar no interesse de terceiro (beneficiary), como em benefício do próprio settlor (o qual, nessa me ida, assume a veste de beneficiary); pode também, em vez do que antecede, dirigir a sua actuação à prossecução de (outros) certos fins. Em qualquer caso, o respectivo acto constitutivo pode ainda instituir um protector destinado a vigiar o cumprimento das regras para o efeito preestabelecidas pelo settlor para enquadrar a performance do trustee.

truster's intention. Special trusts have been subdivided into ministerial (or administrative) and discretionary. The former, being such as any intelligent and skilful person is presumed to be capable of performing, may be executed by the Court through the instrumentality of a factor. Discretionary trusts are those, the administration of which depends to a certain extent upon the pleasure of the trustee, guided by discretion and his knowledge of the circumstances of the beneficiaries; as in the case of a trust for apportioning a fund amongst children. Such trusts partake of the nature of powers; and are presumed to have been conferred upon the trustee from the exuberant confidence which the testator had in his discretion. They are, therefore, strictly personal rights. And while the exercise of a discretionary trust is imperative on the trustee, if he accepts the trust; yet, if he declines to accept, or dies without executing it, the trust cannot be carried into effect by the Court" Gohn McLaren, A treatise on tl1e Jaw of trusts and tnzst settlements, 1863, págs. 15/16). 154 Assim, atendendo à função, o trust tão-pouco mantém semelhança com o outro caso típico de negócio fiduciário reconhecido desde o Direito Romano clássico: a fiducia cum amico. 155 John McLaren, A treatise on the law of trusts and trust settlements, pág. 7. 156 John McLaren, A treatise on the Jaw of trusts and trust settlements, pág. 13: "It is clear, however, that a trust can only exist for the benefit of some other person than the trustee".

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Nada impede, por outro lado, que, por acto unilateral, o settlor se institua a si próprio como trustee em relação aos assets que pretenda administrar em proveito alheio ou na realização de certos fins. O que configura uma espécie de negócio consigo mesmo, o qual se situa, porém, fora do âmbito dos actos ligados ao exercício de poderes representativos. 2.4.1. Substituição fideicomissária e trust I) Atendendo aos seus propósitos, o trust apresenta semelhanças com a substituição fideicomissária (artigo 2286°): o settlor equipara-se ao testador ou doador; o trustee equivale ao fiduciário; o beneficiary compara-se ao fideicomissário. II) Diferenças significativas separam ambos os institutos no que toca, antes do mais, à questão da titularidade dos bens objecto do trnstou da referida substituição. O fiduciário tem fundamentalmente poderes de gozo (artigo 2290°) sobre os bens atingidos pelo fideicomisso. Mas, excepcionalmente, pode praticar, em relação a eles, actos de disposição (artigo 2291°). Sendo certo, assim, que o fiduciário, para proprietário, tem o poder de disposição extraordinariamente limitado (quando se faça a comparação com o modelo descrito no artigo 1305°), a outra solução concebível é francamente pior. De facto, o fiduciário, para usufrutuário, tem poderes "a mais" (o «usufructo con facultad de enajenación»- artigo 467, in fine, do Código Civil espanhoP 57 - é coisa que, entre nós, não existe com carácter real - cf. artigo 1439°). Além de que, a admitir-se esta construção, deveria entender-se que a propriedade ficaria temporariamente (até à morte do fiduciário) sem sujeito. Afigura-se, nestes termos, que outra solução não resta a não ser aquela que paS$a por reconhecer a qualidade de proprietário àquele que estiver na situação do fiduciário 158, embora com carácter transitóriol59 • O carácter (subjectivamente) 157

Cf. Manuel Albadalejo, Curso de Derecho Civil Espaiíol, vol. III, Derecho de Bienes, Bosch, Barcelona, 1982, págs. 291 a 293. 158 Na vigência do anterior Código Civil, esta conclusão nunca foi unânime. Veja-se, por exemplo, Hintze Ribeiro, Dos Fideicomissos no Direito Civil Moderno, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1872, págs. 160 a 164. O tema afigura-se hoje mais pacificado e resolvido no sentido enunciado no texto (cf. v.g. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/12/ 1985, Proc. n.0 072955: "I- Na substituição fideicornissária, que se caracteriza por uma sucessão na propriedade, o fiduciário encontra-se na situação de proprietário dos bens, com o encargo de os conservar e devolver ao fideicornissário com a abertura da substituição, podendo esta revestir a forma condicional, dado a lei não exigir que seja puro e simples o encargo de transmitir; verificado o evento de que depende a substituição, cessa o direito do fiduciário e começa o direito - também de propriedade- do fideicomissário. II -Na deixa testamentária condicional, a nomeação pelo testador do segundo instituído (ou substituto) é feita sob condição suspensiva e, verificada a condição, que é resolutiva para o primeiro instituído, ela tem eficácia retroactiva, não se verificando, portanto, a ordem sucessiva na propriedade, que caracteriza o fideicornisso"). 159 Acórdão da Relação de Guimarães de 12/01/2010, Proc. n. 0 564/07.8TBVLN.G1: "1. O

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temporário da propriedade fiduciária resulta do facto de o fideicomissário não ser havido como herdeiro, ou seja, como continuador, do fiduciário mas antes como herdeiro do autor da sucessão160 • O que significa que a titularidade do fiduciário não tem continuação- é, neste sentido, interina. III) Por comparação, e pese embora não ser indisputável, a concepção dominante vai no sentido de conceder ao trustee a propriedade dos assets objecto do trust, ainda que com a obrigação de os gerir no interesse de terceiro. E, de todo o modo, formando um património autónomo (mas não personalizado), que não pode ser agredido pelos credores pessoais do trusteé 61 • Todavia, ainda que a característica da autonomia se vinque de forma mais acentuada em relação ao trustee, ela deve ser igualmente afirmada quer para o setttlor, quer para o eventual beneficiary. A propriedade dos bens cabe ao trustee, mas apenas de um ponto de vista formal, pois é o beneficiary que retira os proveitos corr-espondentes ao seu exercício. Parece, à primeira vista, que o caso será de propriedade dividida (tal qual sucedia, embora para distintos fins e com diferente teia de relações jurídicas, com a extinta enfiteuse). I fideicomissário que haja sobrevivido ao fiduciário tem legitimidade para a acção em que peticione que se declare a validade do testamento em que foi instituído o fideicomisso; 2. O fiduciário tem a propriedade temporária (vitalícia) dos bens objecto do fideicomisso, sem possibilidade de dispor deles, revertendo os mesmos para o fideicomissário, imediatamente após a morte daquele, desde que este último lhe sobreviva; 3. Os bens que integrem o fideicomisso não fazem parte da herança do fiduciário; 4. Falecendo o fideicomissário antes do fiduciário, caduca a substituição fideicomissária, devendo considerar-se adquirida pelo fiduciário, desde a morte do testador, a titularidade dos bens que integravam o legado que estava destinado àquele". 160 A ideia é, mutatis mutandis, aplicável aos fideicomissos estabelecidos por contrato de doação (artigo 962°). 161 Article 11, CONVENTION OF THE HAGUE ON THE LA W APPLICABLE TO TRUSTS AND ON THEIR RECOGNITION, de 1 de Julho de 1985: Admitir a figura do trust "shall imply, as a minimum, that the trust property constitutes a separate fund, that the trustee may sue and be sued in his capacity as trustee, and that he may appear or act in this capacity before a notary or any person acting in an official capacity. ln so far as the law applicable to the trust requires or provides, such recognition shall imply, in particular a) that personal creditors of the trustee shall have no recourse against the trust assets; b) that the trust assets shall not forro part of the trustee's estate upon his insolvency or bankruptcy; c) that the trust assets shall not forro part of the matrimonial property of the trustee or his spouse nor part of the trustee's estate upon his death; d) that the trust assets may be recovered when the trustee, in breach of trust, has mingled trust assets with his own property or has alienated trust assets . However, the rights and obligations of any third party holder of the assets shall remain subject to the law determined by the choice of law rules of the forum".

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Na substituição fideicomissária, uma vez que o fiduciário apenas é titular de poderes de disposição dentro do estrito âmbito definido pelo artigo 2291 o ("evidente necessidade ou utilidade para os bens da substituição" ou "evidente necessidade ou utilidade para o fiduciário"), daí resulta, a contrario, que os respectivos credores não podem executar os bens objecto do fideicomisso (o que constitui um exemplo característico de património autónomo a que se alude no artigo 601°, in fine), mas tão-somente os seus eventuais frutos (artigo 2292°). É que o exercício do ius distrahendi pelos credores pressupõe que o titular dos bens a penhorar deles possa dispor (v.g. artigos 657°, 667° ou 715°). Nesta medida se assemelha, de facto, a substituição fideicomissária ao trust. Ainda assim, uma marca acentua a diferença: o fiduciário é proprietário a título provisório (no máximo, até à sua morte); o trustee é proprietário a título definitivo. Ainda que, a este propósito, se torne necessário levar em conta que, de modo subjacente à instituição do trustee, duas hipóteses são concebíveis: - se ele for pessoa singular, o trust há-de cessar com a sua morte, a menos que o settlor haja instituído regras específicas relativas à destinação dos assets em tal eventualidade; -se for pessoa colectiva 162, o trustpode perdurar indefinidamente, excepto se o próprio settlor lhe houver fixado um prazo máximo de duração. De todo o modo, a titularidade temporária do fiduciário não é uma necessidade; ele pode tornar-se proprietário a título definitivo (sem o encargo de conservar os bens para outrem) caso o fideicomissário faleça antes (artigo 2293°, n. 0 2) 163. Algo que no trust apenas pode suceder, em moldes análogos (isto é, cessando o truste atribuindo a propriedade dos assets ao trustee, que, por isso ' deixa de o ser), se o settlor assim o tiver predisposto no respectivo acto de instituição (o que não é configurável como um fenómeno típico). IV) Sempre que o trustee seja pessoa distinta do settlor, a erecção do trust supõe a ocorrência simultânea de dois actos jurídicos: - o negócio institutivo através do qual o settlor dita as regras do trust; - o negócio translativo dos assets para o trustee. 162

O que na substituição fideicomissária é inviável, uma vez que, por definição, o fiduciário é pessoa singular. 163 Acórdão da Relação de Guimarães de 12/01/2010, Proc. n .0 564/07.8TBVLN.G1: "1. O fideicomissário que haja sobrevivido ao fiduciário tem legitimidade para a acção em que peticione que se declare a validade do testamento em que foi instituído o fideicomisso; 2. O fiduciário tem a propriedade temporária (vitalícia) dos bens objecto do fideicomisso, sem possibilidade de dispor deles, revertendo os mesmos para o fideicomissário, imediatamente após a morte daquele, desde que este último lhe sobreviva; 3. Os bens que integrem o fideicomisso não fazem parte da herança do fiduciário; 4. Falecendo o fideicomissário antes do fiduciário, caduca a substituição fideicomissária, devendo considerar-se adquirida pelo fiduciário, desde a morte do testador, a titularidade dos bens que integravam o legado que estava destinado àquele".

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Este último está sujeito a inscrição no registo predial; é o que se extrai a partir do disposto no artigo 12 da Convenção de Haia 164 • Diversamente, a instituição do fiduciário e atribuição dos bens objecto da substituição fideicomissária, quer opere por testamento, quer se funde em contrato de doação, fundam-se exclusivamente num destes actos. Não há uma pluralidade de negócios conexionados mas um único. A razão de ser para esta diferença é simples: o estabelecimento do trustfica inteiramente subordinado ao princípio da autonomia da vontade do settl01~ o qual deve, em conformidade, definir as regras a que o sujeita, intervindo a lei de forma marginal apenas para prescrever limitações à sua actuação; ao invés, o testador ou o doador somente devem declarar que pretendem promover a substituição fideicomissária, ficando sob a direcção da lei, a partir daí, a enunciação do regime a que ela se subordina. V) Acresce a distinção fundamental entre fiduciário e trustee: aquele recebe os bens em propriedade (ainda que temporária) para deles tirar as correspondentes vantagens em seu benefício; este, por definição, deve tirar proveitos em prol do beneficiary, que não pode ser ele próprio. A titularidade do fiduciário, na substituição fideicomissária, proporcionalhe os normais poderes de gozo associados ao direito de propriedade. Retirase-lhe, em geral, o poder de disposição, se bem que os poderes de uso e de fruição devam ser exercidos levando em conta a necessidade de preservar165, no interesse do fideicomissário, os bens objecto do fideicomisso (dado que ele adquire os bens com o "encargo de conservar a herança, para que ela reverta, por sua morte, a favor de outrem"- artigo 2286°166). Article 12, CONVENTION OF THE HAGUE ON THE LAW APPLICABLE TO TRUSTS AND ON THEIR RECOGNITION, de 1 de Julho de 1985: "Where the trustee desires to register assets, movable or immovable, or documents of title to them, he shall be entitled, in so far as this is not prohibited by o r inconsistent with the law of the State where registration is sought, to do so in his capacity as trustee or in such other way that the existence of the trust is disclosed". 165 Embora nem sempre assim suceda: "I- São elementos da substituição fideicomissária a dupla liberalidade, o encargo de conservação e transmissão dos bens e a ordem sucessiva.[. .. ] IV- No fideicomisso de «resíduo», o herdeiro fiduciário não tem o encargo de conservar a herança, gozando da faculdade de aliena1~ por actos inter vivos, os bens que a integram desde que, cumulativamente, se verifique que não tem bens próprios, com exclusão do prédio da sua residência habitual, e que obteve, para esse efeito, autorização do fideicomissário ou o seu suprimento judicial. V- Aqueles requisitos da inexistência de bens próprios, com exclusão do prédio da residência habitual, e da autorização do fideicomissário, ou o seu suprimento judicial são elementos constitutivos do direito de aliena~ cabendo a prova da sua verificação ao fiduciário" (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/10/2003, Proc. n. 0 03B2197). 166 Por isso é que "I- Tendo o testad01~ casado no regime de comunhão geral de bens, consignado no testamento que, falecendo antes da esposa, a institui herdeira de todos os bens e direitos, mas no caso de ela não ter necessidade de os alienai~ que lega, em 164

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A titularidade do trustee é-lhe conferida exclusivamente no interesse de terceiros: os beneficiaries. Por isso, não só não lhe pertence o poder de disposição, como tão-pouco lhe cabe o gozo dos assets, ao menos para deles se aproveitar. VI) Por fim, no trust, os respectivos beneficiaries têm o direito de exigir do trustee as prestações a que haja lugar por força da respectiva instituição 167. Ao invés, na substituição fideicomissária, o fideicomissário, enquanto aguarda a extinção da propriedade do fiduciário nada mais pode ter do que uma simples expectativa de aquisição 168. Esta terá carácter jurídico em virtude de o fiduciário se poder considerar um adquirente sob termo suspensivo, o qual, nesta medida, se sujeitará ao regime próprio do negócio condicional, por remissão do artigo 278° para os artigos 272° e 273°. 2.4.2. Fundação e trust

I) À primeira vista, entre instituição de fundação e constituição de trust não há confusão possível. O trust, não obstante implicar uma separação patrimonial entre os bens próprios do trustee e os bens naquele inseridos, não dá origem a um novo ente jurídico ao invés do que geralmente sucede com o estabelecimento de uma fundação. Esta, porém, tem em vista a satisfação de interesses de terceiros (determinados de uma forma mais ou menos ampla) e não do próprio instituidor ou daqueles que a governam. Os referidos terceiros aproximam-se, assim, do conceito de beneficiary que tipicamente resulta da constituição do trust.

; substituição fideicomissária, determinados bens especificados aos seus sobrinhos, e intervindo a esposa no testamento a autorizar o seu marido à disposição de bens, assim feita, porque existe uma dupla instituição sucessiva, estamos perante um fideicomisso iuegular, de resíduo (art. o22950, no 1, al. b), do C. Civ.), sujeito ao mesmo regime dos regulares, com as especificidades do n° 3 do art. o2295° C. Civ." (acórdão da Relação de Coimbra de 18/05/2010, Proc. n .0 551/03.5TBTND.Cl). 167 "The acquired by the beneficiary is a jus ad rem, which he may enforce by action against the trustee" (John McLaren, A treatise on the law of trusts and trust settlements, pág. 92) . A qualificação exacta do ius ad rem não se tem afigurado historicamente incontestável; todavia, pela própria designação, retira-se estar em causa um "direito à coisa" e não um "direito sobre a coisa" (ius in re). Razão pela qual a sua natureza não pode ser real mas apenas creditícia (ainda que, eventualmente, a pretensão contida no ius ad rem acompanhe, do lado passivo, as sucessivas transmissões do direito por ele onerado). 168 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/11/1996, Proc. n. 0 96B721: "I- O fideicomissário goza de uma mera expectativa aos bens doados com substituição fideicomissária, não sendo, por isso, titular de qualquer direito paralelo ao do autor, em acção por este instaurada para anular a revogação daquela doação. II- É, pois, inadmissível a intervenção principal do fideicomissário na acção proposta pelo fiduciário para anulação, declaração de nulidade ou inexistência, da revogação da doação" .

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II) Numa classificação usual, que a lei adoptou, as pessoas colectivas distinguem-se em corporações e fundações. As primeiras constituem conjuntos organizados de pessoas destinados à prossecução de um determinado fim (de interesse privado- egoísta ou altruísta -ou público): são as universítas personarum. As segundas são conjuntos de bens igualmente afectados à prossecução de determinados fins: são as universitas rerum. As fundações podem distinguir-se em fundações de interesse social e fundações de interesse privado. O Código Civil apenas reconhece personalidade jurídica às primeiras (n. 1 do artigo 188°). Pelo que as segundas apenas poderão existir e funcionar a título de entidade colectiva atípica e, portanto (que é o que importa acentuar), não personificada nem personificável. 0

III) Uma vez que, por definição, o princípio da liberdade de associação (artigo 46°, Constituição) é inextensível à constituição de fundações, a obtenção de personalidade jurídica por estas supõe a organização de um procedimento bastante mais longo e complexo que culminará, eventualmente, com a realização do acto individual e concreto de reconhecimento. O processo constitutivo de uma fundação inicia-se com a celebração do negócio unilateral, inter vivos ou mm·tis causa (n. 0 1 do artigo 185°), de instituição, através do qual o instituidor (ou instituidores, se tal negócio for inter vivos) declara, antes de mais, a intenção de a constituir. Em simultâneo, e no mínimo, deve dotar a eventual futura fundação dos bens que entender atribuir-lhe e indicar o fim de interesse social a que os afecta (n. 1 do artigo 186°). Em seguida, cabe iniciar o processo de reconhecimento (a instância do instituidor, herdeiros ou executores testamentários ou oficiosamente- n. 0 2 do artigo 185°). Só com a respectiva concessão a fundação adquirirá personalidade jurídica. Por esta via se evidencia, desde já, uma similitude com o estabelecimento do trust o fundador deve, através do acto de instituição, identificar o conjunto de bens de que a fundação beneficiará inicialmente, e cabe-lhe, também, munila do conjunto de regras que a hão-de de reger uma vez reconhecida (através da elaboração dos competentes estatutos, ainda que isto não se afigure decisivo para determinar o seu nascimento - artigo 186°, n. 2). O fundadm~ nestas vestes, assemelha-se assim ao settlor. 0

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IV) A condição elementar de que depende a concessão do reconhecimento à fundação reside no interesse social de que o seu fim seja revestido. Não é fácil defini-lo. Mas uma coisa tem sido, no entanto, objecto de consenso: não pode estar em causa exclusivamente o interesse de pessoas determinadas e/ ou individualizáveis à partida. Excluir-se-ão assim, à partida, as chamadas "fundações familiares".

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Mas isto não passa de uma restrição. Não se retira, a contrario, aquilo em que se deve consubstanciar o "interesse social". E dado que as fundações podem ser objecto de declaração de utilidade pública, daí decorre que esta não coincide automaticamente com o "interesse social". Avança-se um pouco mais quando se assevera que o interesse prosseguido pelas associações tanto pode ter natureza altruísta como egoísta, ao passo que as fundações se caracterizam necessariamente pela prossecução de interesses altruístas. Não é possível, contudo, fazer mais do que proceder sucessivamente por exclusão de partes. O que significa que apenas se pode apontar, caso a caso, quando é que inexiste "interesse social". No máximo, poder-se-á dizer, pela positiva, que este pressupõe o prosseguimento do interesse de pessoas indeterminadas. Entretanto, a Lei n. 0 24/2012, de 9 de Julho (Lei-Quadro das Fundações), através do seu artigo 3°, n. 0 2, procedeu a uma (longa) enumeração (ainda assim com carácter meramente exemplificativo) de hipóteses em que a lei presume verificado o interesse social. Assim, "são considerados fins de interesse social aqueles que se traduzem no benefício de uma ou mais categorias de pessoas distintas do fundador, seus parentes e afins, ou de pessoas ou entidades a ele ligadas por relações de amizade ou de negócios, designadamente: a) A assistência a pessoas com deficiência; b) A assistência a refugiados e emigrantes; c) A assistência às vítimas de violência; d) A cooperação para o desenvolvimento; e) A educação e formação profissional dos cidadãos; f) A preservação do património histórico, artístico ou cultural; g) A prevenção e erradicação da pobreza; h) A promoção da cidadania e a proteção dos direitos do homem; i) A promoção da cult ra; j) A promoção da integração social e comunitária; k) A promoção da investigação científica e do desenvolvimento tecnológico; 1) A promoção das artes; m) A promoção de ações de apoio humanitário; n) A promoção do desporto ou do bem-estar físico; o) A promoção do diálogo europeu e internacional; p) A promoção do empreendedorismo, da inovação ou do desenvolvimento económico, social e cultural; q) A promoção do emprego; r) A promoção e proteção da saúde e a prevenção e controlo da doença; s) A proteção do ambiente ou do património natural; t) A proteção dos cidadãos na velhice e invalidez e em todas as situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho; u) A proteção dos consumidores; v) A proteção e apoio à família; w) A proteção e apoio às crianças e jovens; x) A resolução dos problemas habitacionais das populações; y) O combate a qualquer forma de discriminação ilegal". V) Entre fundação e trust, a equiparação, em termos formais, só pode fazer-se entre aquela e o trustee. Este é que consubstancia um ente jurídico autónomo, não o próprio trust. Na constituição de fundação, diversamente, os assets pertencem a ela própria, enquanto pessoa jurídica, e não aos titulares dos respectivos órgãos (ainda que o fundador deles faça parte).

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Esta precisão não impede, todavia, que também por aqui se descortine, de forma até mais vincada, a proximidade entre trust e fundação. Uma vez que ela somente deve ser reconhecida se o seu fim "for considerado de interesse social pela entidade competente" para o reconhecimento (artigo 188°, n. 0 1), isto significa, desde logo, que os titulares dos órgãos da fundação não podem, nessa qualidade, beneficiar da respectiva actividade. A fundação constitui-se para prosseguir fins necessariamente altruístas, e estes não podem coincidir exclusivamente com os interesses dos referidos titulares ou com os interesses do fundador. Tal qual sucede com o trust, nada impede que entre os beneficiaries se encontrem estas pessoas; mas a fundação não se pode estabelecer para atender unicamente às respectivas conveniências. VI) Acresce ainda que "extinta a pessoa colectiva, se existirem bens que lhe tenham sido doados ou deixados com qualquer encargo ou que estejam afectados a um certo fim, o tribunal, a requerimento do Ministério Público, dos liquidatários, de qualquer associado ou interessado, ou ainda de herdeiros do doador ou do autor da deixa testamentária, atribui-los-á, com o mesmo encargo ou afectação, a outra pessoa colectiva" (artigo 166°, n .0 1). O que significa, aplicado às fundações, que uma vez verificada a sua extinção e remanescendo bens, o fim visado pelo fundador deve ser cumprido por outra pessoa colectiva fundac anal de finalidade análoga. Tal qual como sucede no trust quando o trustee tenha falecido, sido extinto ou, de todo o modo, tenha ficado impossibilitado de cumprir as obrigações inerentes ao encargo assumido. Pretende-se, assim, dentro do possível, que se eternize a afectação dos assets ao objectivo prefigurado. VII) Uma diferença básica, contudo, se apresenta de imediato entre beneficiaries do trust e beneficiários da fundação: enquanto os primeiros adquirem, com o seu estabelecimento, pretensões creditícias contra o trustee, e por isso têm, por inerência, o direito de o demandar pelo cumprimento das prestações que lhe correspondam - através da chamada acção de tracing169 - , os segundos não podem exigir, nessa qualidade, qualquer conduta da fundação em seu proveito 170 . 169

Cf. alínea d) do Article 11, CONVENTION OF THE HAGUE ON THE LAW APPLICABLE TO TRUSTS AND ON THEIR RECOGNITION, de 1 de Julho de 1985 170 Podem existir, todavia, regimes especiais. Por exemplo, a criação da Fundação INATEL motivada pela extinção do Instituto Público INATEL, levou a lei a estatuir que "sem prejuízo do disposto nos estatutos e regulamentos da Fundação, os actuais sócios do INATEL - Instituto Nacional para o Aproveitamento dos Tempos Livres dos Trabalhadores, L P., mantêm os direitos e deveres de que sejam titulares à data da entrada em vigor do presente decreto-lei" (artigo 10°, Decreto-Lei n. 0 106/2008, de 25 de Junho). Mesmo em situações deste género, porém, não se pode entender que os ditos beneficiários passem a integrar a fundação: isso seria contrário à sua própria natureza ( universitas rerum). Apenas sucede que passa a existir um vínculo obrigacional entre a fundação e cada qual dos respectivos beneficiários. O qual, aliás, tanto pode emergir (como no exemplo) directamente da lei, como pode resultar de acto jurídico voluntário.

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No máximo, caberá considerá-los como titulares de uma expectativa, mas que dificilmente se pode qualificar como jurídica dado não se vislumbrar os meios que estarão ao seu dispor para lhe conferir tutela enquanto tal. VIII) Por outro lado, o próprio fundador não dispõe de qualquer pretensão dirigida contra a fundação para que esta dê execução aos actos capazes de cumprir o fim que presidiu à sua instituição. Uma vez obtido o reconhecimento, aquele perde a titularidade dos bens com que dotou o património da fundação (artigo 185°, n .0 1), mas não adquire, em contrapartida, o direito de interferir na sua vida interna 171 • Tanto assim que o poder para uma eventual alteração de estatutos (artigo 189°) ou para promover a sua possível transformação (artigo 190°) pertence à entidade competente para o reconhecimento. O fundador perde o controlo sobre os bens e sobre a própria fundação a partir do instante em que se inicia o processo administrativo de reconhecimento (artigo 185°, n. 3). Daí poder sustentar-se um princípio de independência da fundação, tanto perante o instituidor, como perante a autoridade administrativa que lhe conferiu personalidade jurídica. Na verdade, aquele apenas desempenha um papel determinante até ao momento em que se dá início ao processo de reconhecimento. E esta última apenas tem uma função crucial no momento em que o concede ou recusa. 0

IX) Desta forma, caso a fundação não cumpra o fim para o qual foi constituída, não há quem, externamente, disponha dos poderes necessários para a forçar à conduta contrária. Logo, ou ocorre alguma das causas de extinção das enumeradas no artigo 192°- em especial, a falta de coincidência entre o fim expresso no acto institutivo e o fim realmente prosseguido - ou então não há co~ obter a execução dos propósitos do fundador. Trata-se, no fundo, de um corplário do reconhecimento de personalidade jurídica à fundação: sendo ela um ente autónomo, a susceptibilidade de actuar livremente, como a qualquer sujeito de Direito Privado, é-lhe reconhecida por inerência (salvo, como sempre, os limites legais, gerais e especiais), pelo que se torna impossível vinculá-la à observância da vontade de terceiros (incluindo o fundador). Há, é certo, a possibilidade implicitamente aberta pelo disposto no artigo 191. 0 : podem os bens ser deixados à fundação- no todo ou em parte- com algum encargo a ser cumprido por ela. Mas aí, das duas, uma: ou a entidade competente para o reconhecimento considera que o respectivo cumprimento impossibilita ou 171

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por exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/10/1996, Proc. n . 96B214: "I- É nula a cláusula estatutária da fundação que reza assim: <<O fundador reserva para si o direito de dispor, por morte ou por acto entre vivos, dos bens que afectar à Fundação>>. II- É que o fundador não pode ficar com o direito de, sózinho, por vontade e decisão suas e sem intervenção do órgão colegial de administração, dispor de todo o acervo de bens que antes afectara à fundação, o que acarretaria a violação do artigo 162° do Código Civil e, ainda dos artigos 12 n . 1 e 13 n. 1, ambos do DRR 3/84/M de 22 de Março".

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dificulta gravemente o preenchimento do fim institucional, caso em que pode, "sob proposta da administração, suprimir, reduzir ou comutar esses encargos, ouvido o fundador, se for vivo" (n. 0 1); ou pode entender, ao invés, que ele foi o "motivo essencial da instituição", hipótese em que cabe qualificar "o seu cumprimento como fim da fundação" (n. 0 2). O que significa, nesta segunda circunstância, que tudo se passa como se o encargo constituísse o fim originário da fundação (ou seja, aquele que fundamentou o respectivo reconhecimento), inexistindo assim especialidades no que toca ao direito de exigir a prática dos actos que o concretizam: ele é negado ao fundador bem como aos beneficiários da actuação instituciÓnal. Claro que, como em relação a qualquer pessoa jurídica, é possível efectuar liberalidades a favor de certa fundação nelas incluindo cláusulas modais 172 • Em tal caso, o beneficiário do encargo pode demandar o respectivo cumprimento, nos termos gerais dos artigos 963° a 967° (cf., em especial, o artigo 965°) ou 2244° a 2248° (cf., em especial, o artigo 2247°). A doação ou o testamento com cláusula modal não são, todavia, negócios fiduciários, mas sim negócios obrigacionais típicos: o doador, os seus herdeiros ou os do autor da deixa testamentária ou o beneficiário do encargo são titulares de pretensões dirigidas contra o donatário ou contra o sucessor com ele gravado destinadas a obter o adimplementcf das obrigações daí emergentes. 2.5. Mandato sem representação

I) Tal como resulta do artigo 1180°, no contrato de manda to sem representação, o mandatário, uma vez que, por definição, actua em nome próprio, adquire para si os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra, ainda que o mandato seja conhecido dos terceiros que com ele se relacionem. Fica vinculado, porém, a posteriormente transferir para o mandante as posições jurídicas por si adquiridas em execução do mandato (artigo 1181°, n. 0 1)173 • 172

Acórdão da Relação de Lisboa de 07/07/1994, R. 7333, Bol. do Min. da Just., 439, 642: "I - O disposto no artigo 2194° do Código Civil tem natureza excepcional, não sendo por isso susceptível a sua aplicação por analogia. II- Assim, não é nula a doação feita a uma Fundação se esta aceitar o encargo proposto pelo doador de suportar as despesas com o seu internamento em hospital pertencente àquela, e bem assim todas as despesas decorrentes da doença e ainda os gastos com o seu funeral". 173 Acórdão da Relação de Lisboa de 16/04/2009, Proc. n. 0 5642/08-8: "I. No mandato sem representação, o mandatário, apesar de intervir por conta e no interesse do mandante, não aparece revestido da qualidade de seu representante. Pelo conh·ário, age em nome próprio e não em nome do mandante, pelo que é ele, mandatário, que adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra. II. Os elementos essenciais do mandato sem representação são: 1- O interesse de uma pessoa na realização de um negócio, sem intervenção pessoal; 2- A interposição de outra pessoa a intervir no negócio, por incumbência, não aparente, do titular do interesse; 3- A celebração do negócio pela interposta pessoa, sem re-

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À letra, diz-se ter sido adoptada a concepção correspondente à chamada dupla transferência: os efeitos produzem-se primariamente na esfera jurídica do mandatário, tornando-se indispensável um negócio posterior autónomo (e atípico) para os transladar ao mandante174 • Salvo quando, através do mecanismo da sub-rogação, se autorize o mandante a substituir-se ao mandatário no exercício dos direitos por este adquiridos na execução do mandato, no pressuposto de eles terem natureza creditícia (artigo 1181°, n. 0 2). Entre muitos outros fins, o mandato pode destinar-se à vinculação do mandatário: - à aquisição de bens a favor do mandante; - à alienação de bens pertencentes ao mandante; -à sua administração. II) No mandato para alienar, admitem-se duas modalidades: -que os bens permaneçam na titularidade do mandante até que o mandatário os translade para a esfera jurídica de terceiro; - que os bens se transfiram para a titularidade do mandatário para que este, depois, os possa transmitir a favor de terceiro. A primeira hipótese pressupõe que, em simultâneo, o mandatário seja procurador do mandante; só assim fica dotado de legitimidade (indirecta) para actuar em nome deste (artigos 1178°, n .0 2). Nessa justa medida," o negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último" (artigo ferência ao verdadeiro interessado; 4- A transmissão para o mandante dos direitos obtidos pelo mandatário. III. Para a configuração do mandato sem representação, não é necessário que o direito adquirido pelo mandatário se mostre já transferido para o mandante, bastando a perspectiva da transmissão e não que esta esteja efectivamente concretizada". 174 Acórdão da Relação do Porto de 02/10/2008, Proc. n. 0 0832919: "III- Da conjugação do disposto no art. 1180° do CC com o disposto no art. 1181°, n° 1 do mesmo diploma conclui-se que a nossa lei civil, pelo menos em relação ao mandato para adquirir, consagra a teoria da dupla transferência, o que é reforçado pelo disposto no art. 1184° do mesmo Cod., que permite que, em regra, os bens adquiridos pelo mandatário em execução do mandato respondam pelas dívidas deste, o que só é possível porque se entende que os bens pertencem ao mandatário. IV -Do mandato para adquirir resultam efeitos meramente obrigacionais: a obrigatoriedade, para o mandatário, de proceder à aquisição do bem; uma vez adquirido este- rectius, uma vez praticado o acto gestório, identificado como tal, os efeitos reais radicam-se na esfera do mandatário que está ainda adstrito à obrigação de transferência para o principal dos direitos adquiridos em execução do mandato (art. 1181°, n° 1, do CC), não podendo pois, o mandante reivindicar directamente do património do mandatário os bens por este adquiridos na execução do mandato, mas apenas obter judicialmente a condenação do mandatário no cumprimento da obrigação de lhe transmitir os bens - alienação solutionis causa -, defendendo alguns autores que é também possível recorrer à execução específica".

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258°). O caso não pode ser, pois, de mandato sem representação. A segunda hipótese envolve a celebração de uma alienação fiduciária entre mandante e mandatário: este adquire previamente a titularidade do direito em causa a partir daquele mas com a obrigação de a retransmitir a terceiro. O que significa que o negócio translativo celebrado a favor do mandatário tem carácter fiduciário: subentende-se que este último não pode reter o bem para si, não o pode deixar em sucessão aos seus herdeiros ou legatários, nem o pode retransferir a terceiro fora das condições previamente acordadas com o mandante. Trata-se de um caso de interposição real de pessoas: a interposta pessoa - o mandatário - é parte efectiva, pois adquire a posição jurídica emergente do acto em que interveio; todavia, por anteriormente ter assumido essa obrigação, deve transferi-la depois para outra pessoa 175. liLI) Por seu turno, no mandato para administrar, o mandatário obriga-se a gerir em nome próprio, mas por conta do mandante, certo conjunto de bens. O respectivo governo pode dar-se em benefício deste último ou de terceiros. Permanecendo os bens a administrar na titularidade do mandante, o mandatário só poderá aliená-los se dispuser de poderes para tanto (artigo 1159°, n. 0 2). O que supõe que lhe tenha sido concedida procuração para o efeito. Ao invés, se tais bens tiverem sido previamente transferidos para o mandatário surge uma titularidade fiduciária a seu favor (na modalidade de fiducia cum amico). Esta transmissão pode decorrer de um acto translativo contemporâneo ao próprio mandato (e com ele conexionado) ou de um negócio autónomo posterior.

f

111.11) Quando a administração do mandatário deva ser exercida no interesse de terceiros, verifica-se uma forte similitude com a instituição de um trust. Uma diferença, contudo, permanece bem visível: enquanto os beneficiaries têm o 175

Acórdão da Relação de Lisboa de 23/ 03/2000, R. 2173/2000, Col. de Jur., 2000, II, 110: "I - Ocorre a interposição fictícia de pessoas quando o intermediário apenas empresta o seu nome no quadro da contratação, realizando-se de facto o negócio jurídico entre as pessoas que dele se serviram para ocultar as relações jurídicas a estabelecer entre elas, o que implica necessariamente acordo simulatório entre estas e aquele. II - Dá-se interposição real quando o negócio jurídico se realiza indirectamente por m eio do intermediário, que intervém como verdadeiro outorgante e cujo resultado económico é igual ao que se obteria se nele interviessem os reais interessados. III - O mandato sem representação verifica-se quando uma pessoa, em execução de contrato celebrado com outra, assume a obrigação de fazer seu o resultado de determinado negócio jurídico e de lho transmitir, caso em que os seus efeitos se projectam na esfera jurídica da primeira e esta fica obrigada a transferi-los para a segunda. IV- Há mandato sem representação quando uma pessoa outorga numa escritura pública de doação de uma fracção predial na posição de donatário, sob acordo com outra no sentido de, obtido o respectivo divórcio, a primeira lhe transmitir o direito de propriedade em causa".

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direito de exigir ao trustee o cumprimento dos deveres assumidos através da sua investidura, os terceiros em cujo interesse o mandatário esteja obrigado a gerir os bens não são titulares de pretensão análoga, pois este apenas se vincula perante o mandante [artigos 1157° e 1161°, alínea a))1 76 • Pode suceder, porém, que o mandato seja celebrado a favor de terceiro, nos termos gerais dos artigos 443° a 451°. Nesta parte, o contrato não corresponde inteiramente ao tipo previsto no artigo 1157°, na medida em que o mandatário não se vincula apenas perante o mandante. De todo o modo, a delimitação de estremas ante o trust mantém-se clara. A obrigação, em benefício de terceiro, contraída pelo mandatário (a título de promitente) diante do mandante (como promissário) tem carácter pessoal, ou seja, vincula-o exclusivamente. Ao invés, as obrigações em que o trustee é investido sujeitam-no nessa qualidade: de facto, sucedendo que v.g. fique impossibilitado, seja removido ou substituído do exercício da função, aquelas serão continuadas por quem se sub-rogar no seu lugar. IV) É, por fim, no mandato para adquirir que o carácter fiduciário do acto aquisitivo celebrado em sua execução se manifesta mais distintamente. O mandatário obtém o direito em causa tendo em vista a sua ulterior transferência para o mandante, que foi, aliás (se a aquisição sucedeu a título oneroso), quem lhe forneceu "os meios necessários à execução do mandato" [artigo 116~, alínea a)]. A prova de que assim é resulta do disposto no artigo 1184°: "Os bens que o mandatário haja adquirido em execução do mandato e devam ser transferidos para o mandante nos termos do n .0 1 do artigo 1181 o não respondem pelas obrigações daquele, desde que o mandato conste de documento anterior à data da ~enhora desses bens e não tenha sido feito o registo da aquisição, quando esta esteja sujeita a registo". Trata-se de mais uma hipótese de património autónomo a que a parte final do artigo 601 o faz referência.

176

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/12/2003, Proc. n. 0 03B3634: "I- Essencial no contrato a favor de terceiro como figura típica autónoma (artigo 443. 0 do Código Civil) é que os contraentes procedam com a intenção de atribuir, através dele, um direito (de crédito ou real) a terceiro ou que dele resulte, pelo menos, uma atribuição patrimonial imediata para o beneficiário, assim se distinguindo o verdadeiro contrato a favor de terceiro daqueles contratos (obrigacionais) cuja prestação principal se destina a terceiro, mas sem que este adquira previamente, segundo a intenção dos contraentes e o próprio conteúdo do contrato, qualquer direito (de crédito) à prestação; neste caso, atribui-se ao promissário o direito de exigir que se faça a prestação a terceiro, não adquirindo este crédito algum, podendo somente receber a prestação como destinatário dela- trata-se, pois, de um falso contrato a favor de terceiro, contrato a favor de terceiro impróprio ou contrato com prestação a terceiro; no primeiro caso, já o terceiro se torna verdadeiramente titular do crédito - tratando-se agora de contrato a favor de terceiro verdadeiro e próprio".

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V) Literalmente, este preceito apenas se aplica ao mandato para adquirir. Sempre que, no entanto, no mandato para alienar e no mandato para administrar, a titularidade do mandatário tenha carácter fiduciário, há razão para estender a aplicação da mesma exacta regra. Está ainda em causa uma titularidade transitória e instrumental, que tem em vista a satisfação do interesse do mandante (ou do mandante e de terceiro). Assim, na medida em que a titularidade do mandatário seja fiduciária, os bens por ele adquiridos (para transferir para o mandante ou para alienar a terceiro) ou os bens obtidos para ou no exercício da administração, devem ser tidos como um património separado. VI) "O mandatário é obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato" (artigo 1181°, n. 0 1). O mandatário sem poderes de representação torna-se titular dos direitos adquiridos em execução do mandato. Deve, depois, transladá-los para o mandante 177. Assim sendo, não se cumprindo a obrigação correspondente, este pode accionar aquele ou, tratando-se de direitos de crédito, "pode substituir-se ao mandatário no exercício dos respectivos direitos" (artigo 1181°, n. 0 2). A acção tem carácter pessoal178, pelo que, sendo os bens alienados a favor de ou em, o mandatário responde contratualmente pelos prejuízos causados ao mandante (nos termos gerais dos artigos 798° a 808°), permanecendo eficazes os actos celebrados a favor de terceiro. VII) O mandatário-proprietário constituirá uma espécie dentro da figura geral do proprietário-fiduciário? A resposta depende inteiramente do entendimento que se tiver acerca da eficácia do pactum fiduciae. Entendendo-se que ele está dotado de eficácia meramente obrigacional,não se descortina distinção, paraalémdanominal.Aoinvés, considerandose que ele tem carácter real ab origine (servindo o registo público a que estiver sujeito, quando for caso disso, como condição da respectiva permanência), a diferença é de monta: para além da responsabilidade aquiliana a que haja lugar, o fiduciante pode recorrer à acção de execução específica inclusivamente contra terceiro. Acórdão da Relação de Lisboa de 25/05/2010, Proc. n. 0 144/06.5TBVLS.Ll-1: "I- O mandatário sem poderes de representação a quem foi vendido um prédio e assim o adquiriu, tornando-se dono dele, tem subsequentemente e, por seu turno, de o alienar ao mandante através de um novo negócio jurídico. II- Este novo negócio jurídico não é uma venda, mas é, em todo o caso, um acto de alienação- uma modalidade alienatória específica, cuja causa justificativa está no cumprimento de uma obrigação advinda do mandato para o mandatário, nas suas relações internas com o mandante". 178 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09 / 05/2002, Proc. n .0 02B1342: "II- A acção do mandante sobre o mandatário tem no nosso direito carácter pessoal e não real, consagrando a lei uma dupla transferência - do terceiro para o mandatário e deste para o mandante". 177

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VIII) Quando os beneficiários da actuação do trustee não obtenham os benefícios devidos, por este deles se ter apropriado ou por os ter transferido para terceiro, podem reclamá-los, a um ou ao outro, por via da acção de tracing. Ao invés, no silêncio da lei, tratando-se de mandato, ainda que a favor de terceiro, essa possibilidade inexiste. Quer o mandante (artigo 1181°, n. 0 1), quer o terceiro beneficiário (artigo 444°), apenas são titulares do direito à prestação à qual o mandatário se encontra vinculado. Ambos os direitos têm natureza creditícia, pelo que, nesta medida, apenas valem (como é próprio das relações intersubjectivas) entre credor e devedor. 2.6. Cessão de bens aos credores

I) A cessão de bens aos credores é uma figura sui generis, proxrma da representação e da gestão de negócios, que se destina a proporcionar aos credores mais fácil"satisfação dos seus créditos". Ao invés do que tipicamente se passa quando há procuração, os credores cessionários não actuam no interesse do devedor mas unicamente no seu. A verdade, porém, é que a própria lei admite que o representante também esteja a actuar interesses próprios quando exerce os poderes representativos (artigo 265°, n .0 3); e não se vê obstáculo que interdite a concessão de procuração no interesse exclusivo do próprio procurador179 • A ser assim, a cessão de bens aos credores poderia ser entendida como uma espécie dentro deste último género. Sucede, todavia, que esta construção não consegue explicar a razão pela qual o ius distrahendi é inteiramente extraído ao devedor (artigo 834°, n. 0 1); havendo proCfração, mesmo exclusivamente concedida no interesse do procurador, o exercício dos poderes nela contidos cabe ao representante e ao representado, em concurso 180 . Por consequência, não resta outra opção a não ser aquela que passa pela concepção da figura como uma situação em que o devedor translada para o credor o poder de disposição contido no direito cedido, mantendo, quanto ao mais, a titularidade deste; só isso justifica, aliás, que a cessão esteja sujeita a registo nos termos do n. 0 2 do artigo 832°. II) O direito à execução do património do devedor é universalmente reconhecido aos respectivos credores. Por isso, os que não beneficiam da cessão conservam o poder de recorrer ao processo executivo para obter a alienação judicial dos bens compreendidos no património do devedor. Já, ao invés, os 179

180

Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, págs. 303/304. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/03/2004, P. 4441/2003, Col. de Jur., 2004, I, 90: "III - Fora de casos pontuais que passam por factos simulatórios ou fraudulentos, a procuração no interesse exclusivo do procurador não implica transmissão da posição jurídica de representado nem resulta dela, mantendo-se este juridicamente como titular da posição, podendo revogar a procuração com justa causa e agindo o procurador em seu nome" .

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cessionanos, tendo obtido o ius distrahendi por intermédio do devedor e podendo exercê-lo extrajudicialmente, perdem a possibilidade de recurso à via coactiva (artigo 833°). Os bens objecto da cessão permanecem integrados no património do devedor até à sua alienação; daí que sobre eles, enquanto aquela não suceder, possa igualmente recair acção executiva desencadeada por credores não intervenientes na cessão. Como ambas - alienação judicial e não judicial percorrem processos separados mas paralelos, prevalecerá a que tiver prioridade temporal, salvaguardadas as regras próprias de registo. III) Enquanto perdurar a cessão, a administração dos bens cabe aos credores cessionários, assim como, em exclusivo, o ius distrahendi. O que não acarreta necessariamente que a detenção dos referidos bens se deva transferir para estes últimos. Essa será, contudo, a situação típica (artigo 834°). Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/11/1982, Proc. n. 0 070370: "I - Dá-se a cessão de bens aos credores quando estes são encarregados, pelo devedor, de liquidar o seu património, ou parte dele, revertendo o produto para satisfação dos seus créditos, mas não podendo dizer-se que passem a actuar; or forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, antes ficando na posição de simples detentores ou possuidores precários. II- Nem exercem a posse de tais bens em nome próprio, embora lhes pertençam poderes de disposição apenas porque, de outro modo, não poderiam levar a cabo a sua missão. III- Como possuidores em nome alheio, não gozam da protecção possessória que o Código Civil confere aos possuidores em nome próprio".

IV) Se a cessão é feita a favor dos credores para estes repartirem entre si o produto da venda dos bens, é natural que só uma vez atingido este fim, e na medida em que ele se complete, fique o devedor liberado. Entre os credores, a partilha faz-se segundo a regra par condicio creditorum. Existindo garantias reais constituídas sobre os bens cedidos aos credores, estas, ao contrário do que sucede na alienação judicial (artigo 824°, n. 0 3), não se podem considerar transferidas para o produto da venda promovida pelos credores cessionários. Ao invés, como é próprio de qualquer transmissão de bens onerados, a garantia acompanhará o direito com ela gravado, passando a atingir, a partir de então, o adquirente. O que significa que, não obstante os bens objecto da cessão terem sido alheados em proveito dos credores cessionários, não se encontrando entre estes o credor dotado de garantia real, o devedor não fica exonerado perante ele. V) Os bens que integram o património do devedor nele permanecem após a cessão. É isto que, essencialmente, a demarca da alienação fiduciária em garantia. Os credores (todos ou alguns deles), apenas adquirem, a partir do deved01~ o direito de proceder à liquidação do seu património (pelo modo mais conveniente:

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venda, permuta, etc.), repartindo entre si, depois, "o respectivo produto". Os cessionários recebem os bens, não para deles usufruírem, mas para promover a respectiva alienação; o que significa que lhes é atribuído um papel similar ao do tribunal quando este procede à venda executiva (artigo 824°). Quer o tribunal, em sede de processo executivo, quer os credores beneficiários da cessão de bens, exercem o poder de disposição sobre o património do devedor. Sucede, porém, que, no primeiro caso, o procedimento é coactivo, ao passo que, no segundo, o ius distrahendi é conferido pelo próprio devedor. Acresce que este poder, até à venda judicial, pode ser igualmente exercido pelo devedor executado (embora os actos em que ele se consubstancie se tornem, depois, inoponíveis ao exequenteartigo 819°); diversamente, na cessão de bens aos credores, o poder de disposição pertence exclusivamente a estes (artigo 834°, n. 0 1). A cessão de bens aos credores, não acarretando transferência da sua titularidade, contém, todavia, um elemento fiduciário: o devedor cessionário espera que aqueles não exerçam o ius distrahendi a não ser para obter mais fácil "satisfação dos seus créditos". No que toca, porém, à possibilidade de reacção que o devedor fiduciante mantém ante a eventual infidelidade dos credores cessionários, a diferença frente à situação do devedor alienante em garantia é acentuada. A cessão de bens aos credores aos credores está sujeita a registo (artigo 95°, n. 0 1, Código do Registo Predial). Logo, os terceiros que adquirirem bens ao devedor por via do ius distrahendi exercido pelos credores cessionários presume-se (inilidivelrnente) conhecerem a razão que justifica a transmissão. Por consequência, caso os estes se desviem do fim que lhes permitiu obter o poder de disposição sobre os bens do devedor, considerar-se-ão ineficazes os actos de alienação através dos quais ele se manifestou. E o cedente tem legitimidade para pedir a respectiva declaração com os respectivos corolários. Além disso, o devedor pode, até à data em que os bens cedidos forem alienados, pôr termo unilateralmente à cessão, desde que cumpra "as obrigações a que está adstrito para com os cessionários" (artigo 836°). O devedor alienante em garantia não beneficia de poder similar.

3. A infidelidade do fiduciário 3.1. Natureza do pactum fiduciae I) Na alienação fiduciária em garantia, o pactum fiduciae é o acordo celebrado entre alienante e adquirente por via do qual este último se compromete a não exercer todos os poderes que por aquela via lhe são conferidos, vinculandose, em consequência, a retransferir o direito adquirido de volta para o alienante uma vez verificado o cumprimento da obrigação assegurada por dita alienação. Assim, o adquirente fica adstrito a, sucedendo determinado evento futuro (e incerto), proferir a declaração de vontade adequada à transmissão para a esfera jurídica do alienante do direito anteriormente dele adquirido.

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Nestes termos, o pactum fiduciae configura-se, primeiro, como um acordo de natureza obrigacional. E, segundo, como uma convenção que não dá corpo a mais do que uma simples cláusula dentro do negócio que por esta via passa a ter carácter fiduciário: a alienação em garantia. Tipicamente, as partes recorrem ao contrato de compra e venda. Mas o efeito translativo ou constitutivo que por ela normalmente se obtém - alínea a) do artigo 879° - não se pretende, à partida, que seja definitivo. Ao invés, como aquisição a favor do comprador se produz para garantir o cumprimento de alguma obrigação paralelamente assumida pelo vendedor perante ele (emergente v.g. de um contrato de mútuo), este último não paga preço ou paga-o apenas pela diferença entre o montante convencionado e aquele que corresponda à obrigação garantida (tal qual ocorresse um fenómeno de compensação). Daqui resulta que a inserção do pactum fiduciae no contrato legalmente típico (maxime no de compra e venda) torna-o num negócio atípico 181 • De facto, a sua causa-função é significativamente alterada: de contrato de troca passa a contrato para garantia. II) Distingue-se a alienação fiduciária em garantia da venda a retro precisamente por, na segunda, o comprador não assumir qualquer obrigação de declarar a sua vontade no sentido de (re)transmitir o direito antes adquirido ~ara o vendedor. A retransferência dá-se automaticamente no preciso instante em que se verifica a condição resolutiva a que ela se sujeita consistente na declaração de resolução operada pelo devedor/vendedor (como sucede com qualquer acto sujeito a condição ou termo). Trata-se, por isso, de um comum negócio condicional com a única particularidade, do ponto de vista técnico, de a destruição de efeitos assentar numa declaração de vontade nesse sentido veiculada pelo vendedor. 181

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/ 03/2006, R. 4191/2005, Col. de Jur., 2006, I, 153: "I- O contrato fiduciário é um negócio atípico, pelo qual as partes adequam, mediante uma cláusula obrigacional - pactum fiduciae -, o conteúdo de um negócio atípico a uma finalidade diferente da correspondente à causa - função do negócio instrumental por eles seleccionado. II- Trata-se, assim, de um contrato indirecto, que pode assumir configurações diversas consoante o fim tido em vista pelos contraentes. III- Na modalidade <<fiducia cum amico>>, em que o escopo é servir de garantia, <<fiducia cum creditare», são conferidos a outra pessoa (fiduciário), para certo fim específico, poderes que a mesma fica obrigada a usar apenas para o fim tido em vista por quem lhe conferiu esses poderes. IV - Muito embora tal figura contratual não se encontre expressamente prevista no nosso ordenamento jurídico, todavia, é de aceitar a mesma, pelo menos em tese geral, devendo-se, depois, formular um juízo de mérito para aferir da sua validade ou invalidade. V- Integra-se na caracterização de tal figura o contrato através do qual os l 0 s RR declararam vender aos 2°s RR, e estes declararam comprar-lhes, um prédio urbano, destinando-se a transferência dessa propriedade a garantir o pagamento de dívidas de uma sociedade, de que os 1°S eram sócios, para com outra sociedade, de que os 2°S eram também sócios, e no qual ficou ainda acordado que os adquirentes-compradores devolveriam, por escritura pública, o referido imóvel aos transmitentes-vendedores logo que fossem acertadas as contas entre as aludidas sociedades".

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Diversamente, na alienação fiduciária em garantia, a ocorrência do facto futuro e incerto em que se cifra o cumprimento da obrigação por ela assegurada apenas determina a exigibilidade da obrigação de fazer a retransferência: enquanto a declaração de vontade que a provocará não for pronunciada, o fiduciário I adquirente permanecerá titular do direito que antes lhe foi alienado em garantia 182 •

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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16/03/2011, Proc. n .0 279/2002.El.Sl: "1. Não pode configurar-se como venda <<a retro>> o negócio jurídico de venda de imóvel, celebrado por escritura pública, que omite qualquer cláusula resolutiva, validamente estipulada, reconhecendo ao vendedor o direito potestativo de resolver o contrato, mediante restituição do preço e acessórios - não sendo possível inferi-la do acordo verbal e informal subjacente à escritura, de que resulta tratar-se, afinal, de venda com o fim indirecto de garantia de dívida emergente de mútuo, reconhecendo as partes o carácter meramente temporário da alienação. 2. Na verdade, a razão determinante da forma legal e imperativamente imposta para a celebração de negócios de alienação de imóveis aplica-se plenamente à estipulação da dita cláusula resolutiva, que não pode deixar enquanto produtora de efeitos reais, susceptíveis de afectar a consolidação do efeito aquisitivo do direito de propriedade pelo comprador- de revestir a forma exigida para o negócio pela lei civil. 3. Pode qualificar-se como venda fiduciária em garantia o negócio jurídico de venda de imóvel celebrado com um fim indirecto de garantia de uma relação obrigacional, de que era credor o comprador no confronto do vendedor, emergente de um mútuo entre eles celebrado, consubstanciando-se o carácter «temporário» da aliena ão das fracções prediais na estipulação de uma obrigação pessoal de conservar e revender a coisa que lhe foi alienada logo que se mostrasse exaurido o fim de garantia que estava subjacente à venda - e resultando tais obrigações de um pacto fiduciário, informalmente acordado, embora de forma encoberta ou oculta, pelos interessados. 4. A estrutural diversidade jurídica entre as figuras da constituição de direitos reais de garantia (ainda que a oneração do bem seja acompanhada de uma inadmissível estipulação do pacto comissário) e da venda fiduciária em garantia, imediatamente geradora de um efeito transmissivo do direito de propriedade, obsta à directa subsunção desta segunda categoria normativa no âmbito do art. 694° do CC, cujo programa normativo se dirige - e confina - ao plano das garantias reais das obrigações, vedando ao credor a autotutela que resultaria da faculdade de apropriação da «coisa onerada» no caso- e no momento - em que o devedor não cumprir a obrigação garantida. 5. Não é de admitir a «extensão teleológica» da proibição contida no citado art. 694°, determinante do vício de nulidade, à venda fiduciária em garantia de bens imóveis, por tal envolver restrição desproporcionada do princípio fundamental da segurança e confiança no comércio jurídico, ao facultar aos outorgantes a invocação e a consequente oponibilidade da nulidade a terceiros de boa fé, subadquirentes do imóvel alienado, nos termos do art. 291 o do CC, mesmo nos casos em que o pacto fiduciário estivesse oculto e dissimulado, relativamente às cláusulas contratuais integradoras do negócio formal de alienação e do teor do respectivo registo, de modo a afectar a consistência jurídica dos direitos que aqueles fundadamente supunham ter adquirido" .

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III) Cabe distinguir ainda a simulação do negócio fiduciário. Naquela, os intervenientes (simuladores) não pretendem obter os efeitos jurídicos associados ao negócio simulado, o qual, precisamente por isso, é nulo. Neste, a eficácia derivada do negócio celebrado é pretendida, mas, por causa da cláusula fiduciária, pressupõe-se (espera-se) que o fiduciário não exerça, ao menos, uma parcela dos poderes que o fiduciante lhe concedeu através daquele (v.g. /Bducia cum creditare" ou "fiducia cum amico/} 183 • Nisto se consubstancia a fidúcia, a confiança, depositada pelo segundo na fidelidade do primeiro. "II - O contrato fiduciário é constituído por uma atribuição patrimonial real - já que o fiduciário é investido numa situação jurídica, normalmente a propriedade plena- com eficácia «erga omnes>>, limitada por uma convenção de natureza meramente obrigacional entre fiduciante e fiduciário (pacto fiduciário), oponível apenas entre estes, pela qual este se compromete a não exceder, no exercício do direito, o que seja necessário para a prossecução do fim e a restituir a coisa uma vez alcançado o fim" (acórdão da Relação de Évora de 15/12/2009, R. 283/2002, Col. de Jur., 2009, V, 237). IV) A alienação fiduciária em garantia constitui, assim, uma es~ écie contratual próxima do negócio indirecto. Neste, os efeitos do negócio celebrado são inteiramente pretendidos; sucede, no entanto, que, tal como ele foi moldado pelos respectivos autores, tais efeitos não correspondem àqueles que tipicamente lhe estão coligados mas são antes próprios de algum outro negócio, típico ou atípico184. Acórdão da Relação de Évora de 15/12/2009, Proc. n. 0 283/2002.El: "V- Os negócios fiduciários reconduzem-se a uma transmissão de bens ou direitos, realmente querida pelas partes para valer em face de terceiros e até mesmo entre elas, mas obrigando-se o adquirente a só exercitar o seu direito em vista de certa finalidade, que tanto pode ser uma finalidade de administração ou uma finalidade de garantia. VI - O conceito romanístico de fiduciae é constituído por dois elementos: de um lado, a parte real, traduzida na transferência do dominium dares para o fiduciário e, de outro, a parte obrigacional, o acordo mediante o qual o fiduciário assume, perante o beneficiário ou fideicomitente, os deveres de administrar o bem em benefício do último sob determinadas condições e de retransferir a propriedade aquando do cumprimento do objectivo. VII - O contrato fiduciário distingue-se do contrato simulado, porque naquele as partes querem real e seriamente o contrato adoptado enquanto na simulação as partes, na realidade, não querem o contrato aparente, mas um outro (dissimulado) ou mesmo nenhum" . 184 Acórdão da Relação do Porto de 28/06/2001, Proc. n .0 0130851: "I- O negócio indirecto é, por regra, válido e pode ser definido como o negócio típico cujas cláusulas são concretizadas de maneira a fazer desempenhar ao negócio funções diferentes da do seu tipo" . Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/10/2010, Proc. n. 67 /07.0TCGMR. Gl.Sl: "I- O contrato de aluguer de longa duração (ALD) é um contrato atípico, com a natureza de um negócio indirecto, sendo o tipo de referência o aluguer e o fim indirecto a venda a prestações com reserva de propriedade, ao qual se aplicam as regras do DL n . 354/86, de 23-01, que disciplina o aluguer de veículos automóveis sem condutor- rent 183

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O negoc1o indirecto, por seu turno, quando tenha natureza contratual, qualifica-se como um contrato misto na medida em que reúne "no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei" (artigo 406°, n. 0 2): o modelo contratual base e a causa-função correspondente a outro contrato. Ora, isto já não é imprescindível para a caracterização da alienação fiduciária em garantia: aqui usa-se como tipo básico o contrato de compra e venda, o qual, através da estipulação do pactum fiduciae, é modificado no que toca à respectiva função de tal modo que se obtém a constituição de uma garantia real específica (não confundível, portanto, com qualquer outra). A venda em garantia torna-se, assim, um contrato atípico em virtude de a sua causa-função ser igualmente atípica. Esta não tem que corresponder, porém, à causa-função de qualquer outra espécie contratual. V) Se o pactum fiduciae gera, contra o fiduciário/adquirente, a obrigação de promover a retransmissão a favor do fiduciante/ alienante assim que, por seu lado, se encontrar extinta (pelo cumprimento ou por outra causa) a obrigação assegurada, daí resulta que ele tem carácter pessoal: isto é, vincula o primeiro perante o segundo, em virtude de este se tornar credor e aquele devedor. Como é próprio de qualquer relação obrigacional, só ao fiduciário pode o fiduciante exigir o cumprimento da correlativa obrigação; apenas ao último é devida a prestação. As consequências associadas ao não cumprimento da obrigação de accionar a retransferência estão, assim, automaticamente identificadas, no pressuposto de haver culpa do fiduciário (artigo 799°, n. 0 1), o que se presume: - o fiduciário entra em mora no instante em que a obrigação assegurada se extingue, a menos que estipulação diversa fixe momento diverso para dar I - aque , 1a; execuçao ; - a mora pode converter-se em não cumprimento definitivo nos termos do artigo 808°; -num caso ou no outro, é o fiduciário responsável pelos prejuízos que tiver provocado ao fiduciante com o cumprimento retardado ou com o incumprimento. VI) De acordo com as ideias preconcebidas 185 mais divulgadas acerca das consequências ligadas ao não cumprimento da obrigação de retransferir: a car -, bem como as da locação em geral, em tudo o que não contrarie o dito diploma legal, bem como as cláusulas contratuais estipuladas ao abrigo do princípio da liberdade contratual. II- Os negócios indirectos são todos aqueles em que as partes se servem de um tipo legal de negócio (negócio típico), com a finalidade de conseguirem, através dele, um fim que não é o fim próprio desse tipo negocial, mas que, apesar disso, ele permite, de algum modo, alcançar. III- No caso concreto do ALD de automóveis novos o fim indirecto que é tido em vista pelos contratantes é conseguido através da conjugação de estipulações típicas dos contratos de aluguer e da venda a prestações com reserva de propriedade, gerando-se um verdadeiro contrato misto". 185 Cf., por exemplo, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, pág. 176.

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- como a cooperação da vontade do fiduciário é sempre indispensável, o fiduciante não dispõe de instrumentos que dependam unicamente de si para obter a execução daquela; -por maioria de razão, e por força do carácter meramente obrigacional do pactum fiduciae, tendo o fiduciário transmitido ou onerado a favor de terceiro o direito dado em garantia, não tem o fiduciante meios para reagir contra tal e, designadamente, para actuar directamente contra aquele186 • 3.2. Não cumprimento da obrigação de retransmitir

I) A obrigação de promover a retransferência tem por objecto uma prestação de contornos muito especiais. Ela configura-se como uma prestação de facto positivo a cargo do fiduciário mas com a particularidade de consistir na emissão de uma declaração de vontade: é esta a causa da transmissão, para o fiduciante, do direito antes alienado em garantia. Salta de imediato à vista a forte similitude com a obrigação que o promitentealienante assume através da celebração de qualquer contrato-promessa de alienação (mas, em especial, através de contrato-promessa de compra e venda). Em ambos os casos, a prestação devida consiste na manifestação de uma ~erta vontade; e, igualmente em ambos os casos, o seu fundamento reside numa obrigação nesse sentido voluntariamente assumida por intermédio de contrato anterior. Daí que a possibilidade de recurso analógico ao instrumento predisposto pelo artigo 830° para a execução específica do contrato-promessa seja uma ideia que se apresenta intuitivamente187 • 186

O fundamento para este entendimento deve buscar-se, ainda, na natureza de que, no Direito Romano, estava dotada a actio fiduciae. Sendo uma espécie dentro das acções bonae lidei (aquelas que, por contraposição às actio stricti iuris, se fundavam na boa fé e na equidade), tinha carácter pessoal, pelo que, em virtude de a actuação contrária à boa fé somente ser imputável ao fiduciário, não se podia obter a restituição da coisa contra o terceiro mas antes a condenação daquele em infamia (W. W. Buckland, A text-book ofRoman Law, third editon, Cambridge University Press, Cambridge, 1963, págs. 432/433). 187 Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, pág. 286. A afirmação está, contudo, longe da unanimidade. Cf. v.g. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/01/2008, P. 4417/2007, Col. de Jur., 2008, I , 57: "IV - A execução específica, prevista no artigo 830°, n .0 1, do CC, apenas é aplicável à obrigação emergente de contrato-promessa, face à letra do indicado preceito e aos respectivos trabalhos preparatórios. V- Por isso, o instituto da execução específica não tem aplicação à obrigação do mandatário de transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução de mandato sem representação". Em sentido contrário v.g. acórdão da Relação de Lisboa de 02/11/1999, R. 4484/99, Col. de Jur., 1999, 5, 74: "I- O mandatário em nome próprio a quem foi vendido um prédio, tem, subsequentemente, de o alienar ao mandante através de um novo negócio jurídico, que consubstancia uma modalidade

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II) Em rigor, a prestação a que se submetem as partes de um contratopromessa é insusceptível de execução coactiva. Por seu intermédio, os promitentes vinculam-se, tipicamente, à emissão de uma declaração de vontade correspondente ao contrato prometido ( v.g. sendo a promessa de compra e venda, o promitentevendedor obriga-se a declarar vender e o promitente-comprador obriga-se a declarar comprar); esta, enquanto tal, somente pode ser proferida, por natureza, pela pessoa que se comprometeu, o que significa que tem carácter infungível. Para forçar o seu cumprimento, restaria assim a sanção pecuniária compulsória (artigo 829°-A). Por via do que se preceitua no artigo 830° abre-se, porém, uma outra possibilidade: a obtenção de decisão judicial que faça as vezes da declaração negocial daquele que se encontra em falta. Verdadeiramente, a declaração negocial do promitente não faltoso também não é proferida: a sua vontade está, porém, consubstanciada na prática do conjunto de actos que desencadeiam o procedimento. E a decisão judicial que alcança, sendo-lhe favorável, substitui, para todos os efeitos, o documento eventualmente requerido por lei para a válida celebração do contrato prometido188 • São condições da respectiva prolação: 1°: Que inexista convenção em contrário, ou seja, que as partes não tenham, no próprio contrato ou em momento posterior, excluído o direito de recurso à execução específica. A lei tirou, à partida, duas ilações (n. 0 2) através das quais se firma a presunção (ilidível- artigo 350°, n. 0 2) de que os promitentes não pretenderam manter a referida opção: a existência de sinal ou de cláusula penal (moratória ou compensatória). Sendo este o caso, para que a possibilidade de execução específica se mantenha, torna-se indispensável: I declaração dos promitentes nesse sentido; ou, - que esteja em causa algum contrato-promessa daqueles a que se reporta o n. 0 3 do artigo 410°, hipótese em que o seu afastamento nem sequer se admite. 2°: Que o cumprimento ainda seja exequível. Normalmente, isto implica que apenas haja mora debitorís. Ante a falta definitiva de cumprimento, a execução carece de sentido (por ter havido, por exemplo, interpelação admonitória - artigo 808°) ou é irrealizável (por impossibilidade material- 801o- ou perda de interesse do credor- artigo 808°). alienatória específica, cuja causa justificativa está no cumprimento de urna obrigação advinda para o mandatário, nas suas relações internas com o mandante. II- O mandante pode recorrer à execução específica da obrigação de contratar, nos termos do artigo 830° do Código Civil, no caso de o mandatário não cumprir aquela obrigação". 188 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/07/2006, Proc. n .0 06A2243: "1. A sentença que, nos termos do n. 0 1 do artigo 830° do Código de Processo Civil produz os efeitos do contrato prometido substituindo não só a manifestação de vontade do faltoso como a do contraente que sempre a emitiria. 2. A única diferença entre a sentença e a escritura pública de compra e venda é a forma de expressão da vontade dos contraentes aqui afirmada perante notário e ali em decisão judicial substitutiva das declarações negociais dos outorgantes, agora a coincidir com o afirmado no contrato promessa".

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No caso de conversão da mora em falta definitiva de cumprimento mediante interpelação admonitória, contudo, apenas se produz uma equiparação entre a primeira e a segunda; nada impede o credor, por isso, de aceitar a prestação não obstante já a ter emitido e de o prazo cominatório se encontrar decorrido (a menos que outra causa de impossibilidade culposa de adimplemento se tenha, entretanto, verificado). Por isso, quando intenta a acção de execução específica, o credor desenvolve uma conduta da qual se pode deduzir que abdica dos efeitos que aquela interpelação lhe poderia proporcionar; pelo que, portanto, ela ainda é viáveP 89 . O mesmo se diga mutatis mutandis para os casos em que tenha sido instituído um termo essencial para a realização do cumprimento. 3°: Que a natureza da obrigação assumida seja compatível com a sua execução coerciva. O que desde logo significa que obrigações de carácter estritamente pessoal- como as assumidas através de promessa de casamento ou promessa de contrato de trabalho- não admitem a respectiva realização por esta via; por razões distintas, mas com semelhante consequência, a execução específica é igualmente inadmissível estando em causa promessa de contrato real quoad constitutionem. 4°: Que o clausulado contido no contrato-promessa seja suficientemente preciso para permitir ao tribunal dar conteúdo ao acto (contido na respe~tiva decisão) que sub-ingressa no lugar do contrato prometido. A estes requisitos especificamente instituídos para a pronúncia da decisão que supre o contrato prometido, acrescem os que se exigem para a generalidade dos negócios jurídicos ( v.g. capacidade ou legitimidade das partes, idoneidade do objecto), salvaguardados os que se ligam às especialidades próprias a que se sujeita o regime do contrato-promessa. Assim, por exemplo, não é passível de execução específica o contrato-promessa de compra e venda bens alheios em virtude de a regra nem o dat quod non habet não poder deixar de se aplicar, independentemente da natureza, voluntária ou coerciva, do acto translativo (cf. n. 0 1 do artigo 824°). III) Quando o contrato prometido seja de alienação, obtida a decisão judicial que promove a execução do contrato-promessa, esta, fazendo as vezes daquele, é causa da transferência ou constituição do direito em causa a favor do promitenteadquirente. Não se vislumbra obstáculo à extensão analógica da acção de execução específica a favor do fiduciante quando o fiduciário eventualmente recuse efectivar a obrigação de retransferência. O direito fiduciariamente alheado a 189

Acórdão da Relação do Porto de 07/06/2010, Proc. n. 0 2094/09.4TVPRT.Pl: "I- Mesmo na hipótese de incumprimento definitivo de contrato-promessa, pode o promitente não faltoso lançar mão da execução específica, sendo esta ainda possível. II- A tal não obsta ter sido estabelecido prazo limite, absoluto, para a celebração da escritura. III- É que tal não significa que uma vez ultrapassado sem celebração da escritura, o contrato definitivo deixou de ter interesse para o promitente-comprador".

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favor do credor I fiduciário retransmitir-se-á a favor do ex-devedor I fiduciante quando a decisão de execução específica seja proferida. Na óbvia condição de a obrigação assegurada pela aludida alienação se encontrar extinta. Claro que, todavia, se ergue aqui uma questão prática suplementar que a execução de contrato-promessa não suscita: o pactum fiduciae pode ter sido celebrado secreta ou dissimuladamente. Nestas circunstâncias, a dificuldade probatória pode constituir obstáculo intransponível ao cumprimento coercivo. Por outro lado, as condições de prolação da decisão de execução específica supra enumeradas requerem adaptação, mutatis mutandis, quando estendidas à realização coactiva da retransferência devida pelo fiduciário. Designadamente, por exemplo: a convenção em contrário considera-se inadmissível, pois, caso contrário, a alienação deixaria de ser fiduciária; não há maneira de a obrigação a que o fiduciário se encontra adstrito se tomar insusceptível de execução específica; etc. 3.3. Eficácia do pactum fiduciae perante terceiros I) O pactum fiduciae tem, por natureza, carácter obrigacional uma vez que resulta de uma cláusula, colocada no contrato de alienação (tipicamente de compra e venda), nesse sentido estabelecida entre fiduciante e fiduciário. Se a infidelidade do fiduciário resultar exclusivamente de mora no cumprimento da obrigação de retransferência, o fiduciante, além do recurso aos meios que lhe são fornecidos pela responsabilidade contratual (artigos 798° a 808°), pode ainda usar, por aplicação analógica do disposto no artigo 830°, da acção de execução específica. Questão diferente coloca-se, todavia, quando a referida infidelidade 1 proceder de não cumprimento definitivo por, entretanto, o fiduciário ter alienado a favor de terceiro o direito objecto da obrigação de retransferência. Este, tal qual como aquele que adquire a partir do promitente alienante, não se vinculou àquela e, portanto, por ela não pode ser atingido. II) Uma maneira através da qual se poderia supor a extensão a terceiro dos efeitos do pactum fiduciae seria sujeitando-o à inscrição em registo público, existindo ele. O artigo 94° do Código do Registo Predial procede à enumeração de uma série, mais ou menos longa, das vulgarmente designadas cláusulas acessórias de negócios jurídicos que se devem inscrever. Cabe ao Conservador, ao abrigo dos poderes que legalmente lhe são conferidos para qualificar o pedido de registo, extractá-las a partir dos documentos apresentados para o efeito. Não constituindo a lista ali contida uma enumeração taxativa, a chave que essencialmente demarca a respectiva aplicação decorre da fórmula contida na sua alínea b): "[outras] cláusulas suspensivas ou resolutivas que condicionem os efeitos de actos de disposição ou oneração".

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III) Como as restantes cláusulas sujeitas a registo estão individualmente nominadas (reserva de propriedade, venda a retro, substituição fideicomissária, contrato para pessoa a nomear, reserva de dispor de bens doados ou de reversão deles, cláusulas que excluam da responsabilidade por dívidas o beneficiário de bens doados ou deixados, convenção de indivisão da compropriedade), resta concluir que a possibilidade de levar a registo o pactum fiduciae apenas se poderia fundar na locução acima transcrita. A verdade, porém, é que a cláusula fiduciária nem se pode qualificar como uma condição (seja suspensiva, seja resolutiva), nem, de qualquer modo, condiciona os efeitos da alienação fiduciária em garantia. Efectivamente, os seus efeitos, designadamente os reais [artigo 879°, alínea a)], produzem-se definitivamente, não obstante aquela cláusula. Justamente por isso é que se torna necessário estabelecê-la de modo a que o alienante fique com o direito de exigir a retransferência. Se o pactum fiduciae de alguma maneira condicionasse a eficácia da alienação, a imposição de uma obrigação de retransmissão contra o fiduciário careceria de razão: a resolução da alienação fiduciária em garantia produzir-seia, automaticamente, no instante em que a obrigação assegurada se extinguisse (ao menos, por causa do cumprimento) sem necessidade de qualquer outro acto complementar. I IV) Assim a conclusão só pode tirar-se no sentido de o pactum fiduciae ser facto que "não está sujeito a registo" [artigo 69°, n. 0 1, alínea c), in fine, Código do Registo Predial) 190 • Logo, ao invés do contrato-promessa de alienação, que pode ingressar nas tabulas por via da atribuição de eficácia real (artigo 413°) ou através do registo provisório de aquisição (artigo 47°, n. 0 3, Código do Registo Predial), a cláusula fiduciária é insusceptível de inscrição predial. O que, acrescente-se, está inteiramente de harmonia não só com a concepção tradicional que a ela não reconhece outra eficácia a não ser a obrigacional, mas também com o entendimento segundo o qual os factos sujeitos a registo predial estão subordinados a uma enumeração taxativa191 • 190

Em sentido contrário, Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, págs. 275/276. No registo predial, não se inscrevem quaisquer factos. Inscrevem-se apenas aqueles que provoquem uma das vicissitudes enumeradas pela lei, fundamentalmente, nos artigos 2° e 3° do Código do Registo Predial. Significa isto que existe uma taxatividade indirecta de factos registáveis. Taxatividade que se estabelece por referência às vicissitudes que na lei se identificaram e que é indirecta precisamente porque não há uma enumeração explícita de factos registáveis. Poderá entender-se que a referida taxatividade é de vicissitudes - embora não de quaisquer vicissitudes, mas apenas daquelas que se repercutam sobre uma das situações jurídicas identificadas, grosso modo, pelos referidos artigos. Isto acarreta, como corolário, no fim de contas, que a taxatividade acaba por ser relativa às situações jurídicas (em geral, direitos subjectivos) por referência às quais se autoriza a inscrição de determinados factos jurídicos.

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Significa isto, em conclusão, que se o fiduciário transmitir a terceiro o direito que estava obrigado a transferir para o fiduciante, este nada pode fazer, em geral, para actuar contra o adquirente. Resta-lhe o recurso à responsabilidade contratual contra o fiduciário para reparação dos danos sofridos. V) Admitindo, contudo, que o fiduciante tem legitimidade para recorrer à acção de execução específica tendo em vista reagir contra o fiduciário em mora, abre-se pelo menos uma via através da qual ele pode (também) tirar efeitos contra terceiro a partir da respectiva decisão (supondo que lhe é favorável) . De facto, inscrita [provisoriamente por natureza - artigo 92°, n. 0 1, alínea a), Código do Registo Predial)] a propositura daquela acção, todas as aquisições que se produzam posteriormente assentes no direito do fiduciário não podem ser mantidas, em virtude de o seu beneficiário não poder deixar de ter tido conhecimento da respectiva pendência. Ora, nos termos do n. 0 3 do artigo 271 o do Código de Processo Civil, "a sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ainda que este não intervenha no processo, excepto no caso de a acção estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da acção". Justifica-se a (óbvia) solução na fé pública de que a inscrição predial está dotada. Como o registo predial se destina "essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário" (artigo 1° do Código correspondente), presume-se em conformidade que o conteúdo das inscrições prediais é de público conhecimento 192 • Pelo que, Parece razoável afirmar, por isso, que a própria enumeração de vicissitudes é apenas quase ta? tiva, pois o relevante é que~ situação jurídica em relação à qual se admitem inscrições registais conste da lista legal. E possível, assim, que algum facto que produza alguma vicissitude sobre alguma das situações constantes da lista legal seja registável, ainda que a vicissitude em causa não esteja precisamente identificada na lei. É o que se passa, nomeadamente, com o registo da acção de preferência ou com o registo da acção de execução específica do contrato-promessa, as quais, só com um grande esforço interpretativo se pode considerar caberem na previsão da alinea a) do n°1 do artigo 3° do Código do Registo Predial. A primeira, porque tem em vista obter a produção de uma modificação subjectiva numa determinada relação jurídica, pelo que só indirectamente produz a aquisição de um direito. No caso da segunda, porque aquilo que se pretende é a celebração coactiva de um contrato através de um acto sucedâneo, ou seja, através de uma sentença "que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso" (artigo 830°, n. 0 1), pelo que, também aqui, só indirectamente se obtém a aquisição de um direito. 192 Pese embora a letra do artigo 7° do Código do Registo Predial reportar a fé pública exclusivamente ao registo definitivo, não há razão para não a estender igualmente à inscrição provisória por natureza. As justificações para que a inscrição definitiva goze da presunção contida no artigo em causa são plenamente extensíveis àquela outra, ainda que, naturalmente, no âmbito e com a extensão possível, ou seja, para os efeitos que do facto provisoriamente registado por natureza seja possível retirar. Noutros termos: para a generalidade dos casos de inscrição provisória por natureza, a presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito não pode tirar-se no preciso sentido que deriva

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estando em curso um procedimento judicial cuja existência esteja publicamente anunciada pelo meio próprio para o efeito, presume-se (inilidivelmente) que qualquer interessado disso está ciente; e, particularmente, que reconhece o carácter litigioso do direito pretensamente adquirido, sujeitando-se às eventuais consequências prejudiciais provenientes da procedência do pedido formulado pelo exequente. Por consequência, o fiduciante pode, através da acção de execução específica instaurada contra o fiduciário 193, tirar efeitos contra o terceiro adquirente da decisão que lhe seja favorável. Por outras palavras, o acto do qual este beneficia é-lhe inoponível. VI) A questão colocada pela citada disposição do Código de Processo Civil resolve o conflito a favor do autor da acção se a inscrição da respectiva propositura for anterior à data do registo a favor do terceiro adquirente. O que constitui um caso típico de pura aplicação do princípio da prioridade registai tal como ele decorre do n. 0 1 do artigo 6° do Código do Registo Predial. Mas pode dar-se o caso de o registo a favor do referido terceiro ser anterior à data da inscrição da acção de execução específica e, não obstante isso, se conseguir fazer prova de ele ter tido conhecimento prévio do carácter fiduciário da alienação a favor da pessoa de quem adquire e de, por conseguinte, conl}ecer a existência da cláusula fiduciária. Neste sentido, cabe considerá-lo de má fé. Pretendendo-se manter até às últimas consequências a caracterização do pactum fiduciae como cláusula dotada de carácter estritamente obrigacional, a má fé do terceiro será irrelevante. A prioridade do registo a seu favor dá-lhe prevalência sobre o fiduciante e, portanto, a acção de execução por este interposta deverá improceder. Esta consequência, embora se afigure formalmente correcta, produz uma consequência inaceitável. A razão de ser de qualquer registo público está, de facto, na publicitação de certo evento; mas isto no óbvio pressuposto de a pessoa a quem ela se dirige não o conhecer por qualquer outra via. Conhecendo-o, não pode alegar a fé pública registai para se amparar. Para demonstrar este ponto, basta recorrer ao argumento que se retira a partir do disposto no artigo 1920°-C, a contrario: se mesmo em situações em que o registo (civil, no caso) tem efeito do artigo 7° do Código do Registo Predial, mas ainda se pode estabelecer ainda que com alcance diferente ou mais reduzido. Antes de mais, pode certamente presumir-se, no mínimo, que o facto registado existe. Caso contrário, o próprio acto de registo seria impossível. Dependendo do facto em causa, será ainda possível retirar outras ilações. Por exemplo, registando-se provisoriamente a constituição da propriedade horizontal [artigo 92°, n .0 1, alínea b), Código Registo Predial) cabe presumír, pelo menos, que aquele que a constitui tem na sua titularidade o direito sobre o solo (de propriedade ou de superfície) que lhe permite celebrar o referido acto de constituição. 193 A acção não pode, de facto, deixar de ser proposta contra o fiduciário na medida em que apenas ele, e não o terceiro, se comprometeu a retransmitir para o fiduciante.

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probatório 194, constituindo então o único meio de prova admissível dos factos a ele sujeitos (artigo 2°, Código do Registo Civil), a má fé de terceiro permite que, não obstante a falta de inscrição, contra ele sejam invocados, é por maioria de razão que o mesmo há-de suceder quando o registo tenha valor consolidativo (como sucede com a inscrição da instauração de acção judicial- artigo 5°, n. 0 1, Código do Registo Predial). É de concluir, assim, que, nestas circunstâncias, a presteza do terceiro não pode erguer obstáculo à execução específica intentada pelo fiduciante. É evidente, porém, que a realização prioritária da inscrição a favor do terceiro inverte o ónus probatório: caberá então ao fiduciante produzir a demonstração de que aquele está de má fé . Dentro deste contexto, acresce um outro argumento ligado à função que a obrigação de indemnizar é chamada a desempenhar. Em princípio, a restauração natural deve prevalecer sobre a compensação pecuniária 195 . Por isso, onde e quando for possível, deve o lesado "reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação" (artigo 562°). Aplicando ao caso, isto significa que deve prevalecer a susceptibilidade de execução específica sempre que a protecção de interesses de terceiro não a impeçam.

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A publicidade jurídico-privada pode assumir diversos graus, que se distinguem em função das repercussões que ela pode ter sobre a realidade que manifesta. Numa ordem crescente de importância, existe num primeiro túvel, a publicidade correspondente à simples notícia, que se verifica sempre que se dão a conhecer situações que, independentemente da comunicação, já são públicas por si, notórias. É exemplo p ototípico aquele que resulta do disposto nas alíneas a) e b) do n. 0 2 do artigo 5° do Código do Registo Predial. Num segundo nível, há a publicidade que constitui o único meio de prova da situação em causa. É o caso típico, regra geral, do registo civil (artigo 2°, Código do Registo Civil) . Neste caso, a publicidade, ao contrário do que possa parecer, não é constitutiva em virtude de, uma vez efectuado a inscrição, o facto registado passar a produzir efeitos desde a data em que ocorreu e não apenas a partir da data daquela. Mas, enquanto a inscrição não se faz, o facto a ela submetido é juridicamente inatendível. Em terceiro lugar, existe aquilo que se pode designar como publicidade legitimadora em função da qual se faz prevalecer, a favor de certos terceiros, a "realidade aparente" (ou seja, a que resulta da publicidade) sobre a realidade substantiva (ou seja, a não publicitada ou a erradamente publicitada), em caso de discrepância entre ambas. É a regra geral do registo predial (artigo 5°, n. 0 1, do respectivo código). Há, por fim, a publicidade a que se pode chamar constitutiva, quando a eficácia absoluta (típica) de certo facto esteja dependente da sua publicitação. É o exemplo paradigmático do registo de constituição de hipoteca (artigo 4°, n. 0 2, Código do Registo Predial). 195 A restauração natural tem óbvia prioridade (artigo 566°), salvo se: - não for material ou juridicamente realizável; - não tiver aptidão para realizar a total reparação dos danos; -for excessivamente custosa para o devedor.

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VII) Questão distinta, embora partindo do pressuposto antecedente, é a da eventual responsabilização do terceiro de má fé pelos danos causados ao fiduciante. Independentemente da possibilidade de recurso à execução específica (embora o problema se coloque mais acentuadamente na hipótese de tal não ser possível), poderá imputar-se responsabilidade contra aquele desde que se admita a extensão da obrigação de indemnização, com fundamento em responsabilidade aquiliana, sobre quem não seja parte da relação creditícia. O tema - classicamente epigrafado como «eficácia externa da obrigação» não encontra ainda suficiente consenso. Uma coisa afigura-se certa: para o efeito não basta o preenchimento dos pressupostos que se enumeram no artigo 483°. A responsabilidade civil extracontratual está concebida a pensar na violação de direitos absolutos: de personalidade, reais, de propriedade industrial, de autor. Ora, há uma característica que os identifica (ainda que em alguns se demonstre com maior vigor do que em outros) e que os permite tornar equivalentes para este efeito: a passibilidade de conhecimento por terceiros no que toca à sua existência, em virtude de se dar uma medida de publicidade espontânea ( v.g. posse, existência da pessoa, exploração da invenção, utilização da obra) e/ ou provocada ( v.g. registo predial, civil ou de propriedade industrial) de que a totalidade comunga. Daí que a ilicitude e o juízo de censurabilidade pessoéil de que o autor do dano é susceptível sejam mais facilmente alicerçáveis. Ao invés, tratando-se de direitos de crédito emergentes de contratos ou, em geral, de negócios jurídicos, não sujeitos a qualquer espécie de publicitação - ainda que de carácter espontâneo - é reduzida a possibilidade de terceiros saberem da sua existência. Por isso, a imputação de responsabilidade deve, nestes casos, depender, antes do mais, da demonstração de que eles conheciam ou deviam conhecer a existência do crédito 196 • 196

Sucede por vezes, que o devedor é aliciado por terceiro para não cumprir, ou, outras vezes, que o próprio terceiro actua com a finalidade de impedir o cumprimento do devedor, com o intuito de lesar o credor. No entendimento tradicional, somente em casos extremos se admite a responsabilidade de terceiro pela violação de direito de crédito alheio: quando a actuação do terceiro seja de tal modo escandalosa que possa configurar um caso de abuso da liberdade de contratar (nos termos gerais do artigo 334°). Ao invés, para quem considere genericamente admissível a responsabilização civil d e terceiro por lesão de direito de crédito alheio (Santos Júnior, Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito, Almedina, Coimbra, 2003, págs. 485 e segs.), são condições da mesma: r- que esse terceiro conheça a existência do referido crédito; e 2°- a verificação dos requisitos gerais da responsabilidade civil aquiliana (artigo 483°, n. 0 1). Santos Júnior (Da responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito de crédito, pág. 504) entende que "pelo menos, é difícil ou raramente configurável uma situação em que a acção interferente de terceiro, que conheça o crédito, não se assuma como dolosa, configurando-se como meramente negligente". Reconheça-se todavia que, juntando este entendimento com a necessidade de conheci-

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citada ou referida foi obtida no sítio www.dgsi.pt.

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O PREÇO DA RESPONSABILIDADE PELA RUTURA CONTRATUAL DE UM CONTRATO DE TRABALHO DESPORTIVO Lúcio Miguel Correia 1

1. Introdução

Como se sabe, em Portugal o nosso legislador entendeu consagrar um regime especial para o contrato de trabalho do praticante desportivo.2 Não podemos esquecer que só em 1995, é que o legislador criou um regime jurídico específico para os praticantes desportivos - Decreto-Lei n. 0 305/95, de 18 de Novembro-, que viria a ser revogado pelo diploma actualmente em vigor Lei n. 0 28/98, de 26 de Junho (doravante RJCTD). 3 Nos termos da al. a) do art. 0 2° RJCTD, define-se contrato de trabalho do praticante desportivo como aquele em que o praticante desportivo se obriga, mediante retribuição, a prestar actividade desportiva a uma pessoa singular ou colectiva, que promova ou participe em actividades desportivas, sob autoridade

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Mestre em Direito; Docente da Universidade Lusíada de Lisboa; Advogado. Semelhante opção tiveram os Legisladores em Espanha (Real Decreto-1006/85, de 26 de Junho), na Bélgica (Lei de 24 de Fevereiro de 1978), na Itália (Lei n° 91, de 23 de Março de 1981), na Grécia (Lei n° 1958/1991 que foi alterada pela Lei n° 2725/1999) e no Brasil, (Lei 9.615, de 24 de Março de 1998, denominada Lei Pele atualizada pela Lei n. 0 12.395, de 16 de Março de 2011). 3 De referir que antes de 1995, a Liga Portuguesa de Futebol Profissional e o Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol haviam celebrado uma Convenção Colectiva de Trabalho que em muitas matérias (designadamente da cessação injustificada do contrato) afastavam-se das normas do regime laboral comum na altura em vigm~ publicada no BTE, la Série n. 0 5, de 08/02/11991. Sendo certo que, posteriormente, em 1999, as referidas outorgantes procederam a diversas alterações à aludida convenção colectiva, mantendo o afastamento do regime laboral comum, publicado no BTE, 1a Série n. 0 33, de 08/09/1999. 2

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e a direcção desta. 4 Por consequência, desportista profissional de acordo com a al. b) do art. 2° do RJCTD será aquele que, através de contrato de trabalho desportivo e após a necessária formação técnico-profissional, pratica uma modalidade desportiva como profissão exclusiva ou principal, auferindo por via dela uma retribuição. O aludido regime jurídico específico, apresenta inúmeras especificidades, relativamente ao regime geral comum, designadamente, quanto á duração do contrato, formas de cessação e responsabilidade das partes pela cessação contratual, que outrora, e em diversos momentos distintos, já tivemos oportunidade de analisar e questionar das controversas soluções legais constantes deste regime jurídico que subsidiariamente, remete para as regras aplicáveis ao contrato de trabalho conforme dispõe o art. 0 • 3° do RJCTD. 5 0

2. Enquadramento e especificidades do regime Jurídico-Laboral Desportivo face à relação Laboral Comum O modelo laboral comum português, como se sabe, assenta na regra da contratação por tempo indeterminado, conforme dispõe o n. 0 1 do art. 140° do Código do Trabalho6 (doravante CT), que não se coaduna com a realidade da relação laboral desportiva, onde impreterivelmente, devido à natureza da actividade e às exigências físicas a ela associadas, determina o seu carácter 4

Segundo JOSÉ MARTINS CATHARINO, o contrato de trabalho desportivo será "aquele pe~o qual uma (ou mais) pessoa natural se obriga, mediante remuneração, a prestar serviços desportivos a outra (natural ou jurídica) sob direcção desta", in Contrato de emprego desportivo no direito brasileiro, São Paulo, LTr, 1969, p.9. 5 a) Veja-se, por exemplo, LÚCIO MIGUEL CORREIA in Limitações à Liberdade Contratual do Praticante Desportivo, Petrony, Lisboa, 2008, p. 50 e segs. b) Também no Direito Brasileiro, tendo em conta as peculiaridades e especificidades desta relação laboral, aplicam-se subsidiariamente, as normas gerais da legislação trabalhista, e não pode ser "relegada", mesmo por vontade das partes, aplicando-se "ao contrato de trabalho desportivo profissional as normas de protecção aos trabalhadores em geral, tais como as atinentes ao descanso semanal remunerado de 24 horas, e às 11 horas de intervalo entre as jornadas" como observa JAYME EDUARDO MACHADO, in O novo contrato desportivo profissional, Sapucaia do Sul : Notadez, 2000, p. 26. c) Também no Brasil, como escreve ÁLVARO MELO FILHO, in "Lei Pelé" Comentários a Lei n. 9.615/98, Brasília: Brasília Jurídica, 1998, p.99, "o trabalho desportivo sujeita-se a um regime jurídico contratual ou a um estatuto sui generis resultante das especificidades e peculiaridades expressas nesta lei ou em contrato de trabalho, que outorgam natureza e fisionomia próprias ao vínculo laboral-desportivo, recorrendo-se as normas gerais das legislações trabalhista e previdenciária, enquanto regime subsidiário." 6 Aprovado pela Lei n. 0 7/2009, de 12 de Fevereiro, alterado pela Lei n° 53/2011, de 14 de Outubro, Lei n° 23/2012, de 25 de Junho, pela Rectificação no 38/2012, de 23 de Julho e pela Lei no 47/2012, de 29 de Agosto. 0

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obrigatoriamente temporário. 7 Na relação laboral desportiva, o contrato n ão pode ter duração inferior a uma época desportiva nem superior a oito épocas, de acordo com o art. 8° do RJCTD. 8 7

a) Também no ordenamento jurídico Brasileiro se partilha de entendimento semelhante. Com efeito, como refere JOSÉ MARTINS CATHARINO: justamente ao contrário do que ocorre com o contrato de emprego comum, o contrato de emprego desportivo é, na maioria dos casos, celebrado por tempo determinado e a termo resolutivo certo (certus na et certus quando), embora também possa o ser a termo resolutivo incerto (certus na et incertus quando) . Isso quanto aos atletas e aos treinadores (físicos e técnicos de futebol). Quanto a outros auxiliares desportivos (médicos, massagistas, roupeiros, sapateiros, etc), celebram-se contratos por tempo indeterminado. ln Contrato de emprego desportivo no Direito Brasileiro, São Paulo: LT1~ 1969, p. 17. Relativamente a esta questão, durante algum tempo perdurou alguma celeuma quanto á duração do contrato de trabalho desportivo no Brasil, que veio a ser resolvido pelo art. 30° da Lei Pele, recentemente actualizado pela Lei n .0 12.395, de 16 de Março de 2011, que dispõe: "O contrato de trabalho do atleta profissional terá prazo determinado, com vigência nunca inferior a três meses nem superior a cinco anos. Parágrafo ímico. Não se aplica ao contrato especial de trabalho desportivo do atleta profissional o disposto nos arts. 445 e 451 da Consolidação das Leis do Trabalho- CLT, aprovada pelo Decreto-Lei n° 5.452, de 10 de Maio de 1943." b) O Real Decreto 1006/85, de 26 de junho, regula as relações laborais dos desportistas profissionais em Espanha. Um aspecto interessante, neste regime jurídico, é a ausência de estipulação de prazos mínimo e máximo para o contrato de trabalho, embora o art. 6° preveja que o contrato deve necessariamente ser de prazo determinado. 8 a) Porém, de acordo com o n. 0 2 do art. 8° do RJCTD, podem ser celebrados por período inferior a uma época desportiva: a1) Contratos de trabalho celebrados após o início de uma época desportiva para vigorarem até ao fim desta; a2) Contratos de trabalho pelos quais o praticante desportivo seja contratado para participar numa competição ou em determinado número de prestações que con stituam uma unidade identificável no âmbito da respectiva modalidade desportiva. Ainda de acordo com o n. 0 4 da aludida disposição considera-se celebrado por uma época desportiva, ou para a época desportiva no decurso da qual for celebrado, o contrato em que falte a indicação do respectivo termo. Acrescentando ainda o n. 0 5 do referido art. 8° do RJCTD que: "Entende-se por época desportiva o período de tempo, nunca superior a 12 meses, durante o qual decorre a actividade desportiva, a fixar para cada modalidade pela respectiva federação dotada de utilidade pública desportiva." b) A nosso ver, não existem quaisquer excepções ao prazo máximo (8 épocas), de acordo com o art. 0 9° da presente Lei. Com efeito, uma profissão de desgaste rápido, que requer um aperfeiçoamento físico e uma condição atlética apurada, deve ser compatível com a juventude e pouco frequentemente ultrapassará os 30 a 35 anos, devendo por isso o praticante desportivo abandonar a carreira desportiva relativamente jovem, o que

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Estamos portanto, perante um regime de contratação obrigatória a termo, associada à natureza transitória da actividade desportiva, objecto do contrato.9 10 Na sequência da referida conclusão, constata-se sem dúvida que o RJCTD, é omisso quanto a algumas matérias (nomeadamente quanto às consequências da caducidade do contrato de trabalho desportivo), o que aliado ao carácter subsidiário do regime geral do contrato de trabalho consagrado no art.0 3° da referida Lei 28/98, induz inevitavelmente à conclusão inicial que o regime jurídico previsto no CT, relativamente aos contratos de trabalho a termo, aplicarse-ia de igual modo aos contratos de trabalho desportivo. Desta forma, a dúvida instala-se, relativamente a algumas questões essenciais decorrentes do facto do contrato de trabalho desportivo ser obrigatoriamente um contrato de trabalho a termo, como já vimos anteriormente. A primeira questão essencial prende-se com a eventual necessidade de denúncia prévia do contrato pela entidade empregadora desportiva, sob pena de, aparentemente, o contrato com o praticante desportivo se renovar automaticamente por igual período. Como se sabe, no regime laboral comum, o n .0 1 do art. 149° do CT estatui que: «As partes podem acordar que o contrato de trabalho a termo certo não fica sujeito a renovação.» Acrescentando o n. 0 2 do referido artigo que: «Na ausência de estipulação a que se refere o número anterior e de declaração de qualquer das partes que o faça cessar, o contrato renova-se no final do termo, por igual período se outro não for acordado entre as partes.»11 ex lica a inexistência de excepções ao prazo (bastante longo apesar de tudo) máximo de duração do contrato de trabalho desportivo. c) De acordo o art. 30 da Lei 9.615, de 24 de Março de 1998 (alterado quer pela Lei n, 0 9.981, de 2000 e pela Lei n. 0 12.395, de, 16 de Março de 2011), veio esclarecer todas as dúvidas dispondo o seguinte: O contrato de trabalho do atleta profissional terá prazo determinado, com vigência nunca inferior a três meses nem superior a cinco anos. Parágrafo único. Não se aplica ao contrato especial de trabalho desportivo do atleta profissional o disposto nos arts. 445 e 451 da Consolidação das Leis do Trabalho- CLT, aprovada pelo Decreto-Lei n° 5.452, de 10 de Maio de 1943. 9 Em igual sentido defende JOÃO LEAL AMADO, Vinculação versus Liberdade: O Processo de constituição e extinção da relação laboral do praticante desportivo, Coimbra: Coimbra Editora, 2002; pp.218-222 e ANDRÉ DINIS DE CARVALHO, Da Liberdade de Circulação dos Desportistas na União Europeia, Porto: Coimbra Editora, 2004, p. 67. 10 Segundo MAGIER, o contrato a termo representa o melhor meio para as entidades empregadoras desportivas manterem sob controlo os seus jogadores in La Mobilité Professionnelle du Sportif Rémunéré, Bruxelas : Kluwer Éditions Juridiques, 1999, p. 18. 11 Como se sabe, a Lei n° 3/2012, de 10 de Janeiro, consagrou um regime transitório que permite a renovação dos contratos de trabalho a termo certo, afastando as regras gerais que limitam a duração dos contratos a termo. A renovação extraordinária introduzida pela referida Lei é consentida quando os limites

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Por outro lado o n. 0 1 do art. 0 344° do CT estabelece que: «O contrato de trabalho caduca no final do prazo estipulado ou da sua renovação, desde que o empregador ou o trabalhador comunique à outra parte a vontade de o fazer cessar, por escrito, respectivamente, quinze ou oito dias antes de o prazo expirar.» Ora aplicarmos, o aludido regime geral em sede de contrato de trabalho desportivo, não faz qualquer sentido. Desde logo, porque no regime geral de trabalho o legislador indica (ainda que de forma não taxativa) as situações em que é lícito recorrer à contratação a termo (art. 140° do CT), impondo ao empregador, algum formalismo na sua celebração (arts. 141° n. 0 1 e 144° do CT) atendendo à instabilidade do vínculo da relação laboral que se institui, e a evidenciação dos factos que justificam a celebração da contratação a termo, sendo certo que, a precariedade deste vínculo poderá conduzir à sua conversão em contrato de duração indeterminada, se se exceder a duração máxima ou o número limite de renovações legalmente permitidas. (vide arts. 147° n. 0 1 als. a) e b) e n. 0 2 al. b) e 149° do CT), o que jamais poderá suceder, na relação laboral desportiva. Ora estas disposições que também, têm em conta o respeito pelo princípio fundamental da estabilidade no emprego (art. 0 53° da CRP) 12, não se coadunam, nem se conseguem ajustar com o RJCTD, que nem sequer admite a existência de contratos de trabalho desportivo sem termo. Por isso, no meu entendimento, não faz qualquer sentido que a entidade empregadora desportiva tenha de comunicar a denúncia prévia de um contrato de trabalho desportivo a termo, sabendo de antemão, que não se pode converter num contrato de trabalho sem termo. A segunda questão essencial decorrente da referida omissão legislativa, incide sobre os efeitos indemnizatórios que a lei faz derivar da caducidade do contrato de trabalho comum. Como se sabe, o art. 0 344 n .0 2 do atual CT estabelece que: «Em caso d e caducidade de contrato de trabalho a termo certo decorrente de declaração do empregador nos termos do número anterior, o trabalhador tem direito à compensação prevista no artigo 366.0 »13 máximos de duração do contrato a termo sejam atingidos até 30 de Junho de 2013. Por contraposição, ficam fora do âmbito de aplicação do diploma, as situações em que a duração máxima consentida pelo Código do Trabalho é atingida depois de 30 de Junho de 2013, uma vez que esse limite tanto podem respeitar à duração total do contrato como ao número de renovações. 12 Dispõe o art. 53° da CRP que: É garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos. 13 Como se sabe a Lei n° 23/2012, de 25 de Junho remete para o artigo 366° e introduziu diversas modificações no regime da compensação por caducidade do contrato de trabalho em análise com aquilo que dispunha o n°2 do art. 344° do CT de 2009: Em primeiro lugar, eliminou-se a diferenciação em função da duração do contrato, pelo

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Será esta norma aplicável ao RJCTD? A nossa resposta terá de ser mais uma vez negativa, atendendo à natureza especial do vínculo laboral desportivo. Na verdade, a ratioque deste direito indemnizatório consiste em compensar o trabalhador pela situação de precariedade contratual em que se encontrou durante aquele período, e de alguma forma, a desincentivação da contratação a termo. Ora, se a entidade empregadora desportiva não pode contratar de outro modo, senão a termo, não faz sentido que ainda assim, ficasse onerada com uma compensação especial, quando lhe está vedado a contratação com uma duração indeterminada. 14 Trata-se portanto, de um contrato de trabalho com um termo eminentemente estabilizador, apontando para o respeito e cumprimento do contrato, uma vez que, como adiante iremos ver, o praticante não pode romper o contrato ante tempus, excepto se, tiver justa causa para o efeito.

3. Formas de cessação da Relação Laboral Desportiva e da Relação LAboral Comum No RJCTD, o Legislador Português, estabeleceu no seu art. 26° que o contrato de trabalho desportivo pode cessar por: a) Caducidade; b) Revogação, por acordo das partes; ; c) Despedimento com justa causa promovido pela entidade empregadora desportiva; d) Rescisão com justa causa por iniciativa do praticante desportivo; e) Rescisão por qualquer das partes durante o período experimental; f) Despedimento colectivo; g) Abandono do trabalho. 15 que, a compensação por caducidade devida nos contratos até seis meses, passou a ser igual à dos contratos com duração superior; Em segundo lugar, em vez de a compensação ser fixada pior referência a certo número de dias de retribuição por cada mês de contrato, aplica-se a regra geral prevista para o artigo 366°-A, que é de 20 dias de retribuição-base e diuturnidades por cada ano de contrato, o que equivale a 1,66 dias por cada mês; Por fim, a fórmula de cálculo da retribuição diária passou a ser de 1/30 mensal, quando na versão originária do Código de 2009 esse valor era determinado a partir da retribuição horária (o que equivale a 1/22 do valor mensal) . 14 Nesta linha, veja-se as doutas palavras de ALBINO MENDES BAPTISTA in A compensação de antiguidade a que se refere o art. 0 46° n. 0 3 da LCCT, é aplicável ao contrato de trabalho desportivo?, RMP, n. 0 85,2001, pp. 145-6. 15 Segundo o§ 5° do art. 28° da Lei 9.615, de 24 de Março de 1998, denominada Lei Pele,

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Enquanto no regime laboral comum, o contrato de trabalho pode cessar por: a) Caducidade; b) Revogação; c) Despedimento por facto imputável ao trabalhador; d) Despedimento colectivo; e) Despedimento por extinção do posto de trabalho; f) Despedimento por inadaptação; g) Resolução pelo trabalhador; h) Denúncia pelo trabalhador. 16 Na verdade, o elenco descrito no art. 0 26° do RJCTD, corresponde praticamente ao antigo art. 3° da LCCT (Decreto-Lei n. 64-A/89, de 27 de Fevereiro) entretanto revogado, com a entrada em vigor do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto, alterado sucessivamente pela Lei n° 53/2011, de 14 de Outubro e Lei no 23/2012, de 25 de Junho e pela Lei n. 0 47/2012, de 29 de Agosto, pelo que se impõe a sua actualização, face às sucessivas e importantes novidades introduzidas por este novo diploma, não se compreendendo o autismo do legislador laboral desportivo. 0

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4. Da responsabilidade pelas partes pela cessação do contrato de trabalho desportivo

Por força do disposto no art. 389 , n 1, do CT, sendo o despedimento declarado ilícito, o empregador é condenado: a) A indemnizar o trabalhador por todos os danos, patrimoniais e não

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com a redacção dada pela Lei n. 0 12.395, de, 16 de Março de 2011 : "O vínculo desportivo do atleta com a entidade de prática desportiva contratante constitui-se com o registro do contrato especial de trabalho desportivo na entidade de administração do desporto, tendo natureza acessória ao respectivo vínculo empregatício, dissolvendo-se, para todos os efeitos legais: I- com o término da vigência do contrato ou o seu distrato; II - com o pagamento da cláusula indenizatória desportiva ou da cláusula compensatória desportiva; III - com a rescisão decorrente do inadimplemento salarial, de responsabilidade da entidade de prática desportiva empregadora, nos termos desta Lei; IV - com a rescisão indirecta, nas demais hipóteses previstas na legislação trabalhista; e V- com a dispensa imotivada do atleta. " a) As modalidades de cessação do contrato de trabalho encontram-se previstas no art. 340° do Código do Trabalho. b) Sobre o significado, alcance e modalidades do regime da cessação do contrato de trabalho, vide por todos, ANTÓNIO MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, 15a Edição, Lisboa, Almedina, 2010, p. 551 e segs e PEDRO FURTADO MARTINS, in Cessação do Contrato de Trabalho, 3a Edição, Principia, 2012.

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patrimoniais, causados;(negrito e sublinhado nosso) b) Na reintegração do trabalhador no mesmo estabelecimento da empresa, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, salvo nos casos previstos nos artigos 391 o e 392°.17 Sendo certo que, relativamente aos contratos de trabalho a termo, o art. 393° n. 0 2 do CT dispõe que, sendo o despedimento declarado ilícito, o empregador é condenado: a) No pagamento de indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais que não deve ser inferior às retribuições que o trabalhador deixou de auferir desde o despedimento até ao termo certo ou incerto do contrato, ou até ao trânsito em julgado da decisão judicial, se aquele termo ocorrer posteriormente; (negrito e sublinhado nosso) b) Caso termo ocorra depois do trânsito em julgado da decisão judicial, na reintegração do trabalhadm~ sem prejuízo da sua categoria e antiguidade.

Julgamos ser de aplaudir a solução que determina que, em caso de despedimento ilícito, a indemnização se estende a todos os danos causados, 17

Os casos previstos nos artigos 391° e 392° do CT, referem-se à indemnização em substituição de reintegração a pedido do trabalhador ou a pedido do empregador. Assim, de acordo com o art. 391o referindo-se à indemnização em substituição de reintegração a pedido do trabalhador, esta tui-se o seguinte: 1 -Em substituição da reintegração, o trabalhador pode optar por uma indemnização, até ao termo da discussão em audiência final de julgamento, cabendo ao tribunal determinar o seu montante, entre 15 e 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade, atendendo ao valor da retribuição e ao grau de ilicitude decorrente da ordenação estabelecida no artigo 381. 0 • 2- Para efeitos do número anterior, o tribunal deve atender ao tempo decorrido desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão judicial. 3- A indemnização prevista no n .0 1 não pode ser inferior a três meses de retribuição base e diuturnidades. O art. 392° do CT, referindo-se à indemnização em substituição de reintegração a pedido do empregador dispõe que: 1 - Em caso de microempresa ou de trabalhador que ocupe cargo de administração ou de direcção, o empregador pode requerer ao tribunal que exclua a reintegração, com fundamento em factos e circunstâncias que tornem o regresso do trabalhador gravemente prejudicial e perturbador do funcionamento da empresa. 2- O disposto no número anterior não se aplica sempre que a ilicitude do despedimento se fundar em motivo político, ideológico, étnico ou religioso, ainda que com invocação de motivo diverso, ou quando o fundamento da oposição à reintegração for culposamente criado pelo empregador. 3 - Caso o tribunal exclua a reintegração, o trabalhador tem direito a indemnização, determinada pelo tribunal entre 30 e 60 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade, nos termos estabelecidos nos n .0 s 1 e 2 do artigo anterim~ não podendo ser inferior ao valor correspondente a seis meses de retribuição base e diuturnidades.

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abrangendo os danos patrimoniais 18, mas também, os danos não patrimoniais. Também no ordenamento jurídico francês se parte do pressuposto que a indemnização se deve estender a todos os danos causados, inclusive, diria que naturalmente, os não patrimoniais. Ainda que a matéria não esteja regulada no Código do Trabalho," é amplamente aceite pela doutrina e pela jurisprudência francesa a possibilidade de o trabalhador obter uma indemnização especialmente por danos morais quando o despedimento seja considerado vexatório e seja qualificado de abusivo", por aplicação do art. 1382. do CC francês . Nestes termos, no direito francês aponta-se para a indemnização por todos os prejuízos causados, e não apenas para a compensação pela rutura do contrato desligada do apuramento do dano. Nas palavras de HELENA YSAS MOLINERO: "A legislação francesa, diferentemente da espanhola, não estabelece quantias fixas, sendo as quantias estabelecidas na lei mínimos, podendo ser aumentadas em sede judicial. Quer dizer, o juiz valara livremente a quantia da indemnização a receber pelo trabalhador, sem poder outorgar menos do que estabelecido na lei mas sem um limite máximo, com excepção da indemnização por vício de forma no despedimento, para a ual a lei fixa uma quantia máxima." 19 Ao invés, voltando à legislação nacional, quanto ao regime jurídico do contrato de trabalho desportivo, no art. 27° do RJCTD, sob a epígrafe de Responsabilidade das partes pela cessação do contrato", dispõe o seguinte: 1- Nos casos previstos nas alíneas c) e d) do n . 1 do artigo anterior, a parte que der causa à cessação ou que a haja promovido indevidamente incorre em responsabilidade civil pelos danos causados em virtude do incumprimento do contrato, não podendo a indemnização exceder o valor das retribuições que ao praticante seriam devidas se o contrato de trabalho tivesse cessado no seu termo . (negrito e sublinhado nosso) 2 - Quando se trate de extinção promovida pela entidade empregadora, o disposto no número anterior não prejudica o direito do trabalhador à reintegração no clube em caso de despedimento ilícito. 3 - Quando, em caso de despedimento promovido pela entidade empregadora, caiba o direito à indemnização prevista no n. 0 1, do respectivo montante devem ser deduzidas as remunerações que, durante o período 18

De acordo com o art. 564° do Código Civil com a epígrafe de "Cálculo da indemnização" dispõe que: 1. O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão. 2. Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior. 19 HELENA YSAS MOLINERO, "Efectos indemnizatorios del despido sin causa y seria en derecho francos", La Extinción del Contrato de Trabajo, cit., p. 530.

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correspondente à duração fixada para o contrato, o trabalhador venha a receber pela prestação da mesma actividade a outra entidade empregadora desportiva. (negrito e sublinhado nosso) Como já se referiu, a relação laboral desportiva tem uma natureza obrigatoriamente temporária, não podendo o praticante desportivo cessar o vínculo laboral, excepto se tiver justa causa para esse efeito, ao contrário do que sucede na relação laboral comum, conforme prevê o art. 400° do Código do Trabalho.20 Assim, de acordo com o art. 2T n. 0 l do RJCTD, no caso de despedimento sem justa causa por iniciativa do praticante desportivo, ou promovido pela entidade empregadora desportiva, a parte que der causa à cessação ou que a haja promovido indevidamente, incorre em responsabilidade civil pelos danos causados, em virtude do incumprimento do contrato, não podendo a indemnização exceder o valor das retribuições que ao praticante seriam devidas se o contrato tivesse cessado no seu termo. Como se sabe, o Legislador do Código do Trabalho (desde 2003) deixou de estabelecer um limite máximo da indemnização e passou a estabelecer um limite mínimo. E se assim é, então a Lei n. 0 28/98 (RJCTD) está em conflito com o Código do Trabalho desde então. Ou melhor dizendo, a Lei n. 0 28/98 que estaria em harmonia com a LCCT (entretanto revogada) passou a 'colidir' com o Código do Trabalho, em termos do montante da indemnização a atribuir ao trabalhador em caso de rescisão com justa causa do contrato de trabalho a termo. 21 Faz algum 20

jf

De acordo com o art. 400° do Código do Trabalho, com a epígrafe de Denúncia com aviso .prévio: 1 - O trabalhador pode denunciar o contrato independentemente de justa causa, mediante comunicação ao empregador, por escrito, com a antecedência mínima de 30 ou 60 dias, conforme tenha, respectivamente, até dois anos ou mais de dois anos de antiguidade. 2 - O instrumento de regulamentação colectiva de trabalho e o contrato de trabalho podem aumentar o prazo de aviso prévio até seis meses, relativamente a trabalhador que ocupe cargo de administração ou direcção, ou com funções de representação ou de responsabilidade. 3- No caso de contrato de trabalho a termo, a denúncia pode ser feita com a antecedência mínima de 30 ou 15 dias, consoante a duração do contrato seja de pelo menos seis meses ou inferior. 4 - No caso de contrato a termo incerto, para efeito do prazo de aviso prévio a que se refere o número anterior, atende-se à duração do contrato já decorrida. 5- É aplicável à denúncia o disposto no n. 0 4 do artigo 395. 0 • 21 Depois, mesmo na vigência da LCCT, em que a indemnização pela rutura contratual injustificada, não cobria (expressamente) todos os danos, conforme já referimos, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, defendia, face à clara, mas incompreensível, resistência da jurisprudência em aceitar a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais em caso de

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sentido esta dualidade de regimes? Ora, desde há muito que defendemos que, esta disposição corresponde a uma visão ridiculamente conservadora da realidade desportiva e ignora princípios fundamentais e estruturantes da Constituição da República Portuguesa, não fazendo sentido, ainda hoje, mantê-la. Para além, de custar a perceber, como é que esta disposição normativa resiste ainda às normas do Código do Trabalho de 2003, e posteriores e importantes alterações efetuadas no Código do Trabalho de 2009 e 2012. Este art. 27° n. 0 1 do RJCTD é uma autêntica miscelânea, que faz a sobreposição da responsabilidade civil das partes no âmbito da cessação do contrato de trabalho desportivo, e depois, incompreensivelmente, limita-a ao valor das retribuições vincendas. E isto, porque como se sabe, o princípio subjacente à matéria da responsabilidade civil, consagrado no art. 562° do Código Civil22, é o da reparação integral dos danos, sem qualquer limite, e incluindo-se obviamente os danos morais e/ ou não patrimoniais. A norma do artigo 27.0 , n .0 1, do RJCTD tem, do ponto de vista do seu alcance tutelador, uma natureza bifrontal, não podendo ser lida como unidirecionada a f satisfazer os interesses de um dos lados da relação laboral desportiva. Porém, ao contrário dos demais regimes jurídico laborais que protegem de uma forma mais incisiva o trabalhador, neste, incompreensivelmente limita-se inexoravelmente o valor indemnizatório devido, pelo comportamento culposo do empregador. Se a solução do RJCTD, foi definir um tecto máximo indemnizatório em que cada uma das partes ficaria vinculada pela rutura injustificada do contrato, então conclui-se, que a solução adoptada é aberrante, ficando muitas das vezes, quer o praticante desportivo, quer até, a própria entidade empregadora, com diversos danos por ressarcir, nomeadamente, os danos morais, por força da aludida limitação legal. Acresce ainda que, este regime, frequentemente, é muito mais vantajoso para quem lesa do que para o próprio lesado, isto é, não só se premeia a inércia do praticante "obrigando-o" praticamente a não exercer a sua actividade desportiva até ao termo do prazo estipulado no contrato, como ainda verifica que o quantum indemnizatório devido, terá de ser deduzido as retribuições auferidas pela prática da sua actividade profissional ao serviço de outra entidade despedimento ilícito, que o art. 496. , n . 1, do CC era de aplicação geral. Na verdade ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO escreveu-o no seu Manual de Direito do Trabalho em 1991 (que constituiu um "ponto de viragem" nos estudos jus-laborais), ou seja cerca de 7 anos antes da elaboração do actual regime jurídico do contrato de trabalho do praticante desportivo. 22 Segundo o disposto no art. 562° do Código Civil: Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.

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empregadora desportiva. De facto, não se compreende, como é que à custa da celebração de um novo contrato de trabalho desportivo, o clube lesante vem a beneficiar em primeira linha das retribuições pagas ao praticante com o qual já não tem qualquer vínculo, impondo-se assim ao praticante um duplo sacrifício, ou seja, de não receber da sua anterior entidade empregadora durante um certo período de tempo, e ainda verificar que as retribuições que agora aufere pela celebração de um novo contrato, sejam deduzidas a um montante justamente devido que mais não é,ª final, do que uma cifra de carácter indisponívet Traduzindo-se a maior parte das vezes numa indemnização de valor ínfimo, senão igual a zero, bastando para tanto, que o praticante aufira uma retribuição de valor igual ou superior à que auferia no contrato dissolvido, para já não falar do tempo dispendido nos Tribunais, acrescida dos custos inerentes com o mesmo e com os honorários do Advogado. Sendo certo que, num país como o nosso, é de conhecimento público que a retribuição mensal dos desportistas profissionais (não só no futebol) está muito aquém dos montantes praticados por outros Clubes e SADs de outros países, como em Espanha, Inglaterra ou Itália, o que levará, obviamente, perante a cobiça destes clubes nos nossos melhores praticantes que exercem a sua actividade em Portugal, em determinados períodos competitivos, poderem colocar as entidades empregadoras desportivas numa difícil e melindrosa situação. Neste sentido e como muito bem alertava o Prof. ALBINO MENDES BAPTISTA "Pense-se na situação de um clube que disputa o título nacional, ou a presença nas competições europeias, ou mesmo a manutenção na respectiva liga. Faz,sentido que num momento crucial da competição desportiva (por exemplo, a um ou dois meses do fim do campeonato) o atleta abandone o clube, a troco do pagamento das retribuições devidas até ao final da época ou mesmo da seguinte? Obviamente que não." 23 Pense-se por exemplo, num clube que despendeu para garantir os serviços desportivos de um atleta, por exemplo 20 milhões de Euros, e poucos meses depois, o praticante desvincula-se sem justa causa, impulsionado por uma melhor proposta financeira tendo apenas de pagar o montante das retribuições vincendas até ao termo do contrato que constitui um valor muito inferior àquele que foi inicialmente despendido aquando da sua aquisição. Fará sentido que o Clube empregador fique despojado do vultuoso investimento que realizou, sem qualquer possibilidade jurídica de o poder tentar rentabilizar desportivamente e/ ou financeiramente? Julgamos que não. Não serão também, as entidades empregadoras, enquanto sujeitos de um contrato de trabalho do praticante desportivo também merecedoras de proteção jurídica? Julgamos que sim.24 23

ALBINO MENDES BAPTISTA, Direito Laboral Desportivo ... ob.cit.,p. 27. e Breve Apontamento sobre as Cláusulas de Rescisão ... ob.cit, p. 143 24 Para ALBINO MENDES BAPTISTA, no contrato de trabalho desportivo, é possível alu-

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Por outro lado, a saída de um praticante desportivo a troco do pagamento das retribuições vincendas até ao termo final do contrato, será extremamente prejudicial para a competição desportiva, e é capaz de provocar o desequilíbrio financeiro dos clubes, vulnerabilizando os menos dotados financeiramente aos clubes com maior capacidade económica, podendo desta forma, possibilitar a concentração dos melhores atletas em poucas entidades empregadoras, desfazendo toda a lógica competitiva subjacente a uma prova desportiva. 25 Tal veleidade jurídico-formal, viabiliza aos Clubes mais poderosos financeiramente a possibilidade de contratarem os melhores atletas, e os restantes a ficarem cada vez mais empobrecidos, quer a nível desportivo e até financeiro. 26 Aliás, esta solução legislativa constante do n. 0 1 do art. 27° do RJCTD que teima perdurar, no meu entendimento, é manifestamente inconstitucional, por violação dos arts. 13°27 e 59°28 da CRP. dir a um princípio do "favor clubis", in Estudos sobre o Contrato de Trabalho Desportivo ... ob.cit., p. 40. 25 a) Neste sentido ALBINO MENDES BAPTISTA, Estudos sobre o Contrato de Trabalho Desportivo ...ob.cit., p. 30. b) Como refere JOÃO LEAL AMADO, "Uma competição desportiva (por exemplo, uma qorrida de ciclismo ou um torneio de futebol) cujo vencedor fosse conhecido de antemão perderia todo e qualquer poder atractivo - a dúvida quanto ao seu desfecho é vital para o sucesso do espectáculo desportivo e, portanto para o êxito desta indústria." Temas Laborais ...ob.cit., p. 159. 26 a) Como refere CARDENAL CARRO destina-se "basicamente a evitar a concentração de jogadores nas equipas mais ricas e por consequência o desnível desportivo." Deporte y Derecho ... ob.cit, p. 312. b) MARCELLO DI FILIPPO destaca o efeito perverso das indemnizações ao poder constituir um factor que contribui para alargar o fosso entre clubes ricos e pobres ao sublinhar que"( ... ) essendo commisurate al reddito dal calciatore secondo l'ultimo contratto, fanno si che una societá medio-piccola che voglia acquistare un giocatore da un grosso Club (che paga, ovviamente, stipendi consistenti) si trovi spesso nell'impossibilitá di farlo a causa dell'entitá dellíndennitá dovuta. Cio non fa altro che aumentare il divario, giá esistente, tra le societá ricche e le altre"La Libera Circolazione dei Calciatori Professionisti alla luce della Sentenza Bosman, RIDL, II, 1996, p. 247, nota 42. 27 De acordo com o Artigo 13. 0 da CRP que estabelece o Princípio da igualdade: 1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual. 28 De acordo com o disposto no art. 59° da CRP, sob a epígrafe Direitos dos Trabalhadores: 1. Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito: a) À retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observandose o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna; b) A organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a

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Porque será que o trabalhador comum recebe sempre um montante indemnizatório mínimo, e o praticante desportivo, só pode receber esse mesmo montante como limite máximo? Salvo melhor opinião, não encontramos razões objectivas para a diferença de tratamento de situações iguais: a rescisão com justa causa do contrato de trabalho a termo e o direito à correspectiva indemnização. O atendimento das exigências próprias da competição e do espectáculo desportivo repercute-se, nomeadamente, no que agora importa, no regime de duração e de cessação do contrato, e são essas razões que justificam que o contrato seja celebrado necessariamente a termo certo. Sendo igualmente inequívoco que, estamos perante uma contratação obrigatória a termo por, igualmente se entender, que a transitoriedade se encontra associada à actividade e às condições físicas do praticante, necessárias ao bom desempenho das suas funções. 29 E pelas razões acabadas de indicar, temos que concluir que o disposto no artigo 27.0 n. 0 1 do RJCTD é inconstitucional, por violar o princípio da igualdade previsto no artigo 13.0 da Constituição da República Portuguesa, quando interpretado no sentido de que a rescisão do contrato a termo operada pelo facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da actividade profissional com a vida familiar; c) A prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde; d) Ao repouso e aos lazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas; e) ' assistência material, quando involuntariamente se encontrem em situação de desemprego; f) A assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional. 2. Incumbe ao Estado assegurar as condições de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito, nomeadamente: a) O estabelecimento e a actualização do salário mínimo nacional, tendo em conta, entre outros factores, as necessidades dos trabalhadores, o aumento do custo de vida, o nível de desenvolvimento das forças produtivas, as exigências da estabilidade económica e financeira e a acumulação para o desenvolvimento; b) A fixação, a nível nacional, dos limites da duração do trabalho; c) A especial protecção do trabalho das mulheres durante a gravidez e após o parto, bem como do trabalho dos menores, dos diminuídos e dos que desempenhem actividades particularmente violentas ou em condições insalubres, tóxicas ou perigosas; d) O desenvolvimento sistemático de uma rede de centros de repouso e de férias, em cooperação com organizações sociais; e) A protecção das condições de trabalho e a garantia dos benefícios sociais dos trabalhadores emigrantes; f) A protecção das condições de trabalho dos trabalhadores estudantes. 3. Os salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei. 29 PEDRO ROMANO MARTINEZ in Direito do Trabalho, 3.a ed., 2006, Coimbra, p. 698.

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praticante desportivo, com fundamento em justa causa, apenas lhe confere uma indemnização que nunca pode ser superior às prestações a que ele tinha direito se acaso o contrato de trabalho apenas terminasse no seu termo. Acresce que o artigo 27. 0 , n. 0 , 1 do RJCTD, no meu entendimento ofende igualmente o disposto no artigo 59. 0 da Constituição da República Portuguesa. Com efeito, este preceito constitucional determina que o Estado-Legislador estabeleça as 'condições mínimas' de protecção aos trabalhadores. Ora, a norma do artigo 27. 0 , n .0 1, do RJCTD não cumpre tal desiderato ao limitar a indemnização devida ao praticante desportivo, já tendo tido oportunidade de defender no sentido da inconstitucionalidade da referida disposição legal.3° E foi exactamente neste sentido da inconstitucionalidade desta norma, que já se pronunciou o Tribunal Constitucional no Ac. n .0 199/2009, publicado no DR. 2• Série, de 1 de Junho de 2009, no qual se concluiu, e passando a citar: "Em suma, conclui -se que o artigo 27. 0 , n. o 1, da Lei n. 0 28/98, por confronto com o que se estabelece no artigo 443. 0 , n. o 3, do Código do Trabalho - norma, aliás mantida no artigo 396. 0 , n. 0 4, do Código revisto pela Lei n. 0 7/2009, de 12 de Fevereiro - , viola o princípio da igualdade, na medida em que prevê um limite máximo para a indemnização a arbitrar ao praticante desportiv<fque cesse o contrato antes do termo, com justa causa, limite esse que, no regime geral, corresponde ao mínimo indemnizatório a atribuir ao trabalhador do regime comum que cesse o contrato nas mesmas circunstâncias. Atento o fundamento de inconstitucionalidade encontrado, torna - se desnecessário confrontar a norma desaplicada com o artigo 59. 0 da Constituição, invocado no acórdão recorrido." 31 Portanto, para concluir, o preço da rutura injustificada a que alude o regime jurídico do contrato de trabalho desportivo português, e que se cinge ao valor das retribuições vincendas até ao termo do contrato, está longe de ser uma solução adequada à realidade laboral desportiva portuguesa. Para além disso, não nos podemos esquecer que as normas relativas à cessação injustificada da relação laboral contidas no Código do Trabalho de 2003, e atualizadas sucessivamente no Código de Trabalho de 2009 e 2012, alargaram a responsabilidade pela rutura ilícita do vínculo laboral, mandando e muito bem, indemnizar em toda a extensão do dano, conforme prevê o art. 393° n .0 2 do CT, relativamente ao contrato de trabalho a termo, conforme vimos. Mas como sabem, este quadro normativo anteriormente descrito muda substancialmente de figura, se estivermos perante uma relação laboral desportiva entre um futebolista profissional e um Clube ou SAD filiada na Liga Portuguesa de Futebol Profissional e participante nas provas por esta promovidas. 30

LÚCIO MIGUEL CORREIA in Limitações à Liberdade Contratual do Praticante Desportivo, Petrony, 2008, p. 279. 31 Este Acórdão encontra-se disponível na sua íntegra em www.dgsi.pt.

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Nesta relação laboral desportiva, como sabem, aplica-se em primeira linha, as normas do CCT32 celebrado entre a Liga Profissional de Futebol Profissional e o Sindicato dos Jogadores Profissionais de FuteboP3, que aponta para uma solução completamente distinta daquela preconizada para a Lei n .0 28/98, de 26 de Junho. Como se sabe, o limite máximo a que alude o art. 27° n. 0 1 do RJCTD, passa a ser de acordo com o disposto nos arts. 48° e 50° do CCT, o limite mínimo indemnizatório devido. De acordo com o art. 43° do CCT, sob a epígrafe de, Justa causa de rescisão por iniciativa de jogador: 1- Constituem justa causa de rescisão por iniciativa do jogador, com direito a indemnização, entre outros, os seguintes comportamentos imputáveis a entidade patronal: a) Falta culposa do pagamento pontual da retribuição na forma devida ou o seu atraso por mais de 30 dias, quando se verifiquem as condições previstas no n. 0 2 deste artigo; b) Violação das garantias do jogador nos casos e termos previstos no artigo 12.0 ; c) Aplicação de sanções abusivas; d) Ofensa à integridade física, honra ou dignidade do jogador praticada pela entidade patronal ou seus representantes legítimos; e) Conduta intencional da entidade patronal de forma a levar o trabalhador a pôr termo ao contrato. 2 - A falta de pagamento pontual da retribuição que se prolongue por período superior a 30 dias confere ao jogador o direito a rescisão prevista no número anterior, desde que o jogador comunique a sua intenção de rescindir o contrato, por carta registada, com aviso de recepção, e o clube ou sociedade desportiva não proceda, dentro de três dias úteis, ao respectivo pagamento. Contudo, de acordo com o art. 48° do CCT sob a epígrafe, Responsabilidade do clube ou sociedade desportiva em caso de rescisão com justa causa: 1 - A rescisão do contrato com fundamento nos factos previstos no artigo 43. 0 confere ao jogador o direito a uma indemnização correspondente ao valor de retribuições que lhe seriam devidas se o contrato de trabalho tivesse cessado 32

Dispondo o artigo 4° do CCT, sob a epígrafe de Regime jurídico que: "Às relações emergentes de contrato de trabalho desportivo, subscritos pelos futebolistas profissionais e pelos clubes ou sociedades desportivas, serão aplicáveis as normas do Regime Jurídico de Trabalho do Praticante Desportivo e, subsidiariamente, as disposições aplicáveis ao contrato de trabalho, com excepção daquelas que se mostrem incompatíveis com a natureza específica da relação laboral dos futebolistas profissionais, nomeadamente as relativas à duração do trabalho." 33 O CCT celebrado entre a Liga Profissional de Futebol Profissional e o Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol, foi publicado no Boi. Trab. Emp., 1." série, 11.0 33, de

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no seu tempo, deduzidas das que eventualmente venha a auferir pela mesma actividade a partir do início da época imediatamente seguinte àquela em que ocorreu a rescisão e até ao termo previsto para o contrato. 2 - As retribuições vincendas referidas no número anterior abrangem, para além remuneração base, apenas os prémios devidos em função dos resultados obtidos até ao final da época em que foi promovida a rescisão do contrato com justa causa pelo jogador. 3 - Se pela cessação do contrato resultarem para o jogador prejuízos superiores ao montante indemnização fixado no n.0 1, poderá aquele intentar a competente acção de indemnização para ressarcimento desse danos. Por fim, de acordo com o art. 50° do CCT sob a epígrafe, Responsabilidade do jogador em causa de rescisão unilateral sem justa causa: 1 - Quando a justa causa invocada nos termos do artigo 43. 0 venha ser declarada insubsistente por inexistência de fundamento ou inadequação dos factos imputados, o jogador fica constituído na obrigação de indemnizar o clube ou sociedade desportiva em montante não inferior ao valor das retribuições que lhe seriam devidas se o contrato de trabalho tivesse cessado o seu termo. 2 - Se pela cessação do contrato resultarem para a entidade empregadora prejuízos superiores ao montante indemnizatório fixado no número an erior, poderá aquela intentar a competente acção de indemnização para ressarcimento desses danos, sem prejuízo da produção dos efeitos da rescisão. Assim, de acordo com as referidas normas do CCT, o preço da rutura contratual injustificada do contrato de trabalho desportivo, não tem tecto indemnizatório devido, dependendo obviamente, do apuramento do montante devido ao Atleta ou ao Clube, e da prova concreta que se faça da existência daqueles danos que careçam de tutela jurídica. Portanto, a solução preconizada pelo CCT está mais consentânea com os critérios que deverão estar adjacentes ao cálculo do montante indemnizatório devido, decorrente da rutura contratual injustificada de um vínculo laboral desportivo. Mas no entanto, desenganem-se aqueles que pensam que considero totalmente adequada esta solução normativa. No meu entendimento, ainda há muito que fazer nesta matéria, quer na Lei n. 0 28/98, de 26 de Junho, quer no CCT dos Jogadores Profissionais de Futebol, quanto à matéria da cessação contratual e do apuramento do montante devido pela rutura contratual injustificada. Considero em ambos os casos que, as soluções legislativas que estão estabelecidas nos aludidos diplomas nacionais, não estão adequadas às realidades desportivas que visam regular, e não defendem muitas vezes os interesses, quer do praticante, quer das entidades empregadoras desportivas, sobretudo as constantes do n. 0 1 do art. 27 do RJCTD que já tivemos sumariamente, oportunidade de observar.34 34

Veja-se o que anteriormente já referi sobre esta matéria, em Limitações á Liberdade Con-

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Mas o carácter sui generis desta disposição do art. 27° não fica por aqui. É que não podemos esquecer que, o Legislador Português consagrou a possibilidade de reintegração do praticante desportivo ilicitamente despedido, ainda no âmbito do n. 0 2 do art. 0 27° do RJCTD. Obviamente que, só fará sentido falar em direito à reintegração se o trânsito em julgado da sentença que declare a ilicitude do despedimento, for proferida antes do termo previsto para o contrato, não podendo ser admitido este direito se a verificação do trânsito em julgado for posterior ao do termo do contrato. No entanto, em termos práticos este direito pode vir a ter consequências verdadeiramente nefastas para a curta carreira do trabalhador desportivo, não só, em termos de execução do contrato (participação efectiva em competições), mas principalmente, a nível da sua valorização profissional, e até no seio da equipa. Será praticamente incontestável, que obrigar qualquer entidade empregadora desportiva a admitir no seu seio um elemento indesejado, não traz benefícios a nenhuma das partes, sendo quase certo, que esse atleta ficará sempre preterido aquando da disputa de qualquer competição, crispando ainda mais a relação com o seu empregador, produzindo não raramente, e potenciando efeitos perniciosos no balneário dos atletas. Se compararmos as soluções legislativas portuguesas, com as soluções previstas no Ordenamento Jurídico Espanhol, deparamo-nos neste último, no meu entendimento, com soluções legislativas muito mais liberais e adequadas à realidade desportiva e à sua especificidade. Considero também, quer se queira, quer não, que uma das razões pela qual, a realidade desportiva Espanhola nada tem a ver com a Portuguesa, passará também, seguramente, pela destrinça dos regimes legais, e das distintas soluções preconizadas por cada um dos ordenamentos, face a matérias semelhantes. De facto, a originalidade do ordenamento jurídico português, aponta para um caminho completamente distinto, do seu congénere vizinho, onde se constata, a atribuição de uma ampla margem de actuação à autonomia contratual das partes. De acordo com o art. 16° n. 0 1 do Real-Decreto n .0 1006/85, de 26 de Junho 35, que regula a relação laboral dos desportistas profissionais, determina-se que a extinção do contrato, por vontade do praticante, sem causa imputável ao clube, por

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tratual do Praticante Desportivo, Lisboa, Petrony, 2008. p. 71 e segs. Assim, de acordo o art. 16°/1 do RD n .0 1006/1985 <<La extinción del contrato por voluntad del deportista profesional, sin causa imputable al club, dará a éste derecho, en su caso, a una indemnización que en ausencia de pacto al respecto fijará la Jurisdicción Laboral en función de las circunstancias de orden deportivo, perjuicio que se haya causado a la entidad, motivos de rutura y demás elementos que el juzgador considere estimable. En el supuesto de que el deportista, en el plazo de un ano desde la fecha de extinción, contratase sus servidos con otro club o entidad deportiva, éstos serán responsables subsidiarias del pago de las obligaciones pecuniarias seftaladas».

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vontade do praticante, dará a este direito a uma indemnização que, na ausência de acordo, será fixado pela Jurisdição Laboral em função das circunstâncias de ordem desportiva, prejuízo causado, motivos da rutura e demais elementos que o Julgador considere relevante. 36 Por outro lado, e em caso de despedimento improcedente do praticante desportivo, o art. 15° n. 0 1 do referido Real-Decreto n. 0 1006/85, determina que este terá direito a uma indemnização que, na falta de acordo, será fixada judicialmente em pelo menos 2 meses de retribuição, devendo para a sua fixação, ponderar-se as circunstâncias concorrentes, especialmente, a relativa á remuneração que o praticante desportivo deixou de auferir, por causa da cessação antecipada do contrato. Desta forma, conclui-se que o Legislador Espanhol, teve sobretudo em conta, os seguintes critérios: 1o Ampla Liberdade Contratual da vontade das partes, na determinação de um montante indemnizatório; 2° Fixação de um montante indemnizatório mínimo; 37 3° Ponderação de todos os circunstancialismos do caso concreto; 4° Atribuição ao Juiz da fixação do valor indemnizatório justo. Há que mudar urgentemente, as soluções da nossa Lei e do ccf dos Jogadores Profissionais de Futebol, sob pena, de continuarmos alheios à boa realidade legislativa e desportiva internacionaL Por outro lado, se atentarmos, às recentes e inovadoras soluções preconizadas no Ordenamento Jurídico Brasileiro, constatamos com algumas particularidades curiosas no âmbito da lei que regula a relação laboral desportiva, os seja, a Lei 9.615/98, denominada Lei Pele, alterada pela Lei n° 9.981/2000, e agora, ultimamente, pela Lei n. 12.395, de 16 de Março de 2011. Naquele regime jurídico, a actividade do atleta profissional é caracterizada por uma remuneração convencionada entre as partes no contrato de trabalho desportivo, no âmbito do qual, deverá constar obrigatoriamente uma cláusula "indenizatória desportiva" e uma cláusula "compensatória desportiva" (dr. art. 28 da Lei n° 9.615/98 com a redacção dada pela Lei n. 0 12.395, de 16 de Março de 2011). Assim a cláusula "indenizatória desportiva" 38, devida exclusivamente 0

Sobre esta matéria veja-se EMÍLIO GARCIA SILVERO, La Extinción de la Relación Laboral de los Deportistas Profesionales, Navarra, 2008, p. 285. 37 Vide FRANCISCO PÉREZ AMORÓS, La extinción del contrato de trabajo de futbolistas profesionales por sua separación arbitraria de la plantilla, La Extinción del Contrato de Trabajo, cit. pp. 504-505. 38 Note-se que, de acordo com o art. 28° § 1°, esta cláusula será livremente pactuada pelas partes e expressamente quantificado no contrato de trabalho desportivo: I- até o limite máximo de 2.000 (duas mil) vezes o valor médio do salário contratual, para as transferências nacionais; e II- sem qualquer limitação, para as transferências internacionais. 36

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à entidade de prática desportiva à qual está vinculado o atleta, nas seguintes hipóteses: a) transferência do atleta para outra entidade, nacional ou estrangeira, durante a vigência do contrato especial de trabalho desportivo; ou b) por ocasião do retorno do atleta às actividades profissionais em outra entidade de prática desportiva, no prazo de até 30 (trinta) meses; Sendo certo que, de acordo com o § 2° da referida disposição legal: São solidariamente responsáveis pelo pagamento da cláusula indenizatória desportiva "o atleta e a nova entidade de prática desportiva empregadora". Por sua vez, a cláusula "compensatória desportiva", é devida pela entidade de prática desportiva ao atleta, nas seguintes situações: a) Com a rescisão decorrente do inadimplemento salarial, de responsabilidade da entidade de prática desportiva empregadora, nos termos desta Lei; b) Com a rescisão indirecta, nas demais hipóteses previstas na legislação trabalhista; e c) Com a dispensa imotivada do atleta. Acrescentando o § 3° daquela disposição que o valor da cláusula compensatória desportiva "será livremente pactuado entre as partes e formalizado no contrato especial de trabalho desportivo, observando-se, como limite máximo,400 (quatrocentas) vezes o valor do salário mensal no momento da rescisão e, como limite mínimo, o valor total de salários mensais a que teria direito o atleta até o término do referido contrato. (negrito e sublinhado nosso) Ora, perante as inovadoras soluções preconizadas naquele ordenamento jurí 'co, salientamos, o respeito pela autonomia contratual das partes, na determinação do montante indemnizatório devido, pela rutura contratual ante tempus do vínculo laboral desportivo, quer pela entidade empregadora desportiva, quer pelo praticante desportivo. Contudo, confessamos que nos apraz alguma perplexidade, quanto à estipulação de um tecto máximo indemnizatório, tal como consta no § 3° do art. 28°, relativamente, ao funcionamento e execução da cláusula compensatória a favor do praticante desportivo. Com efeito, o limite máximo, 400 (quatrocentas) vezes o valor do salário mensal no momento da rescisão, até poderá constituir, um montante quantitativo inferior aos danos desportivos e/ ou morais que o praticante desportivo sofreu, em virtude da cessação do contrato laboral desportivo. Desta forma, não somos defensores da existência de quaisquer tectos indemnizatórios, atendendo à especificidade do Desporto, e o crescente e incessante aumento de valores que ano após ano, se constatam no seu vasto domínio. Mas, independentemente do sentido crítico aqui vos deixei, quanto às várias soluções apresentadas, relativamente à matéria da cessação contratual injustificada do vínculo laboral desportivo nos diversos ordenamentos jurídicos que muito

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sumariamente abordámos, existem um conjunto de princípios fundamentais e factores essenciais que deverá ter-se em conta na análise desta matéria. Desde logo, e como se sabe, o Prof. ALBINO MENDES BAPTISTA defendeu da existência do princípio da justa indemnização,39 no Direito Português, que assentava no facto da República Portuguesa ser um Estado de Direito Democrático, e basear-se na dignidade da pessoa humana, conforme dispõe os arts. 1o e 2°40 da Constituição da República Portuguesa (CRP). Assim sendo, a reparação integral dos danos sofridos, incluindo os morais, constitui uma imposição do princípio do Estado de Direito Democrático, e que abarcará também, as pessoas colectivas. Quando se efectua a comparação das soluções consagradas no regime laboral comum e as preconizadas para o contrato de trabalho desportivo constata-se uma intolerável incongruência legislativa, que não tem qualquer razão de existir, desde 2003 até aos dias de hoje. Para além disso, com espanto, constatamos que no ordenamento jurídico português, ignoram-se todas as circunstâncias de ordem desportiva, no apuramento do montante indemnizatório devido, quanto alguma das partes contraentes cessa injustificadamente o vínculo laboral.

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5. As cláusulas liberatórias como factor apaziguador na determinação da responsabilidade pelas partes pela cessação de contrato de trabalho desportivo

No meu entendimento, deveria ser legalmente consagrado a possibilidade do Clube e do atleta, pactuarem um determinado montante pecuniário, pela extinção antecipada do contrato, prevendo assim, a possibilidade do praticante desportivo e da entidade empregadora desportiva, melhor salvaguardarem os seus interesses. Nesta medida, as denominadas Cláusulas de Rescisão (no nosso entendimento Liberatórias ou Desvinclulatóriasl poderão exercer uma importante função. Em bom rigor, as aludidas e denominadas Cláusulas de Rescisão, "padecem" de uma nomenclatura equivocada em pressupostos que não coincidem com a realidade. 39

Vide ALBINO MENDES BAPTISTA in Indemnização pela rutura ilícita do contrato de trabalho, artigo 27° da Lei do Contrato de Trabalho Desportivo e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22 de Setembro de 2008, Revista do Ministério Público, Outubro-Dezembro de 2008, n. 116, p. 52. 40 O artigo 2° da CRP dispõe que: A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa. 0

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Com efeito, não há com a denominada Cláusula de Rescisão, um dano real, uma lesão produzida pelo acto rescisório, pois o que sobreleva, é a opção conferida ao praticante desportivo de escolher entre o cumprimento integral do contrato ou a cessação antecipada do mesmo, mediante o pagamento de um preço previamente acordado, que constitui condição de eficácia do acto contratualmente previsto, pelo que, preferimos designar estas cláusulas como Cláusulas Liberatórias ou DesvinculatóriasY A denominação de Cláusulas Liberatórias ou Desvinculatórias/ prendese com o facto da sua verificação, ou seja, com o pagamento do preço previamente convencionado entre o praticante desportivo e a entidade empregadora desportiva implicar para o primeiro a cessação lícita do contrato laboral desportivo e sua subsequente desvinculação, possibilitando-o escolher outra entidade empregadora desportiva para exercer a sua actividade profissional. 42 De um modo geral, pode dizer-se que, a denominada //Cláusula de Rescisão//, procura compor interesses futuros, que são ainda de algum modo incertos no momento em que é acordada, podendo o praticante (cuja obrigação consiste no desenvolvimento da actividade desportiva sob a autoridade e direcção do clube durante o prazo convencionado), ficar desonerado, mediante a realização de uma outra obrigação (pagamento do montante clausulado), sem necessidade da aquiescência posterior da entidade empregadora desportiva. Por isso, no nosso entendimento, estamos perante uma figura jurídica que confere ao praticante desportivo a faculdade de se desvincular ad nutum, mediante o pagamento de um preço previamente convencionado. Este preço, será portanto, o chamado "dinheiro de arrependimento" conferindo ao praticante desportivo a faculdade de desvincular do contrato, sendo evidente que enquanto a "multa" não for paga, pode a entidade empregadora desportiva exigir o cumprimento do contrato de trabalho desportivo. 43 E assim, as Cláusulas Liberatórias, não se confundem com Cláusulas Penais, podendo estas, até co-existir no contrato de trabalho desportivo, pois exercem funções completamente distintas, como acabámos de constatar. Como elucida PINTO MONTEIRO "Não se trata assim de compelir o jogador ao cumprimento de uma obrigação, como sucederia se a "cláusula de rescisão" fosse uma cláusula penal; do que se trata, mais propriamente, é de

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Cfr. GIOVANNI GABRIEL!, Vincolo contrattuale e recesso unilaterale, Milano: Giuffré, 1985, p. 72 e ss. 42 Também alguma doutrina francesa tem adoptado esta denominação, nomeadamente KARAQUILLO, La validité de la clause libératoire insérée dans un contrat de travail à durée déterminé (d'un entraineur de basket-ball.), Paris: Recueil Dalloz Sirey, 1991; e MOULY, Les clauses de dénonciation anticipée des contrats de travail à durée déterminée (dans le sport professionnel), Paris: Recueil Dalloz Sirey, n. 0 20, 1996, p. 280 e ss. 43 Trata-se portanto, de um exemplo claro de uma obrigação com faculdade alternativa "a parte debitoris" .

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uma multa penitencial44 , de um "dinheiro de arrependimento", que permite ao devedor - neste caso ao praticante desportivo - desvincular-se licitamente do contrato celebrado, sem com isso sofrer quaisquer outras consequências, seja de que ordem forem ." 45 Por consequência, julgamos até que esta, constitui uma manifestação da autonomia da vontade das partes e do princípio da livre fixação do conteúdo dos contratos (arts. 405°e 406° n .0 1 do Código Civil) .46 Em virtude da prática desportiva profissional, ter normalmente uma duração muito mais curta, quando comparada com outras actividades profissionais, bem como, o facto do contrato de trabalho do praticante desportivo ser obrigatoriamente um contrato a termo deveria a Lei Portuguesa de forma inequívoca, permitir a estipulação de Cláusulas Liberatórias que prevejam a estipulação de um determinado montante pecuniário a pagar à entidade empregadora desportiva, pela desvinculação/recuperação da liberdade contratual do praticante desportivo. Como constatamos no actual mundo desportivo, estas Cláusulas Liberatórias encontram-se perfunctoriamente ligadas em função de um determinado ciclo contratual47, sendo não poucas vezes, o quantum convencionado, progressivamente amenizado em razão da aproximação do termo do contra o Por outro lado, não poucas vezes, é a própria entidade empregadora desportiva que juntamente com o praticante desportivo, ou o seu representante

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Sobre a distinção entre cláusula penal e multa penitencial pode ver-se PINTO MONTEIRO, Cláusula Penal... ob.,cit, p.185-6; VAZ SERRA, Pena, convencional, separata do BMJ n. 0 67, Junho de 1957, pp. 38 e 62; BAPTISTA MACHADO, Pressupostos da resolução por incumprimento, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor TEIXEIRA RIBEIRO, Vol. II, Coimbra: Coimbra Editora, 1979, pp. 403-405; BRANDÃO PROENÇA, Do incumprimento do contrato-promessa bilateral. A dualidade execução específica-resolução, Separata dos "Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor FERRER CORREIA", Coimbra : Coimbra Editora, 1987, pp. 64 e ss., JOÃO CALV ÃO DA SILVA, Sinal e contrato-promessa, ... ob.cit., p. 38-9. 45 PINTO MONTEIRO, Sobre as "cláusulas de rescisão" dos jogadores de futebol, RLJ, n. 0 3934, ... ob.cit., p . 23. 46 a) De acordo com o art. 405° do Código Civil, sob a epígrafe de Liberdade Contratual: 1. Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as claúsulas que lhes aprouver. 2. As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei. b) Dispõe o n. 0 1 do art. 406° do Código Civil, sob a epígrafe de Eficácia dos Contratos: 1. O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei. 47 Normalmente, coincidente com o fim das épocas desportivas, ou com os períodos limite de inscrição dos praticantes desportivos.

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(empresário desportivo 48 ), negoceiam com outras entidades empregadoras (Clubes) o valor estipulado naquelas cláusulas, funcionando o referido montante como um indicador quantitativo negociável, visando desta forma, que todos os intervenientes neste processo estejam em sintonia na realização da transferência, pelo que, a desvinculação contratual do praticante desportivo, é consentida e muitas vezes incentivada previamente, pela actual entidade empregadora, como uma forma de poder angariar receitas essenciais que possibilitem equilibrar os respectivos orçamentos. Constatamos ainda que, a verificação destas cláusulas pode beneficiar todos os intervenientes na realização da aludida transferência, (na medida em que por um lado, o Clube que adquiriu os serviços laborais do praticante desportivo, ficará mais forte desportivamente e o Clube "vendedor" ficará ressarcido pelo montante que previamente convencionou para libertar o atleta). Sendo certo que, em muitos casos, é usual, instituir-se montantes patrimoniais significativos para o atleta se o valor da Cláusula Liberatória, atingir um valor considerável, pelo que, o praticante desportivo até pode beneficiar significativamente da compressão da sua liberdade de trabalho e da aceitação da estipulação da referida cláusula. Contudo, se as referidas Cláusulas Liberatórias ou Penais (estas apenas para situações de incumprimento contratual), apresentarem-se, com valores exorbitantes49 e sem qualquer arrimo com os prejuízos causados pela cessação antecipada ou injustificada do contrato, o que traduz um ilegítimo exercício do direito à liberdade de estipulação do conteúdo do contrato de trabalho do praticante desportivo e aos limites da boa fé, terão de ser sujeitas ao disposto no art. 812° do Cód. Civil,50 enquanto mecanismo jurídico apto, a combater int~leráveis violações aos princípios fundamentais da liberdade contratual e de 48

De acordo com o art. 22° do RJCTD, sob a epígrafe de Exercício de Actividade de Empresários Desportivos: 1 - Só podem exercer actividade de empresário desportivo as pessoas singulares ou colectivas devidamente autorizadas pelas entidades desportivas, nacionais ou internacionais, competentes. 2 - A pessoa que exerça a actividade de empresário desportivo só pode agir em nome e por conta de uma das partes da relação contratual. 49 Segundo ALBERTO PALOMAR OLMEDA, estes valores inseridos nestas cláusulas liberatórias chegam a ser "intimidatórios e realmente impeditivos da liberdade contratual, perdendo qualquer referência a critérios indemnizatórios para passarem a constituir <<cláusulas esclavagistas» ou <<relações de perpetuidade»", El Regimén Jurídico del Deportista, Barcelona: Editorial Bosch, 2001, p. 59. 50 Dispõe o art. 812° do Código Civil o seguinte: 1 -A cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer estipulação em contrário. 2. É admitida a redução nas mesmas circunstâncias, se a obrigação tiver sido parcialmente cumprida.

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trabalho do praticante desportivo. Na referida redução equitativa, deverá atender-se a vanos factores, nomeadamente a gravidade da infracção, o grau de culpa, o interesse do credor na prestação, a situação económica de ambas as partes, a boa ou má-fé, a índole do contrato, as condições em que foi negociado e, designadamente, eventuais contrapartidas de que haja beneficiado o devedor pela inclusão da cláusula, bem como, o escopo visado pelos contraentes.51 Como conclui PINTO MONTEIRO "o postulado da unidade jurídica justifica o recurso a esta norma em sede de contrato de trabalho do praticante desportivo. E isto sem prejuízo do recurso a outras medidas de alcance geral, se for caso disso, como as que permitem reagir contra um contrato opressivo ou de sujeição (Knebelingsvertrag), na hipótese de a "cláusula de rescisão", seja pelo seu elevado montante, seja por quaisquer outras razões, levar a que o contrato do praticante desportivo se transforme num contrato opressivo." 52 Face ao exposto, e retomando a questão que nos propusemos abordar na realização deste trabalho, concluímos ser essencial, que o Legislador Português (à semelhança do que sucede em Espanha ou no Brasil), proceda a uma abertura da liberdade contratual das partes na estipulação do montante indemnizatório devido, pela cessação antecipada e/ ou injustificada do contrato laboral despo1tivo, e só na falta de acordo relativamente ao valor devido pela rutura contratual do contrato, deverão ser considerados alguns factores genérico-desportivos essenciais, designadamente, os anteriormente enunciados, tendo em atenção, o circunstancialismo do caso concreto, incluindo-se, o apuramento ou não da existência de danos morais e demais elementos que o Julgador considere relevante, para apurar o quantum indemnizatório, mas sem que se imponha a qualquer uma das partes, qualquer limite máximo para o ressarcimento dos danos. Por outro lado, igualmente, deve ser responsabilizado subsidiariamente, pelo pagamento dos montantes devidos ex vi da rescisão sem justa causa, Q clube com quem o praticante desportivo venha a celebrar um novo contrato de trabalho desportivo no ano subsequente (ou na época desportiva subsequente). Daí considerar que, em muitos aspectos, as referidas Cláusulas liberatórias, constituem factor apaziguador e disciplinador na determinação da responsabilidade das partes pela cessação do contrato.

6. Conclusões Face ao exposto, é urgente que o Legislador Português e as partes outorgantes

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Neste sentido veja-se, PINTO MONTEIRO, Sobre as "cláusulas de rescisão" dos jogadores de futebol, RLJ, n. 0 3934, .. .ob.cit, p. 24. 52 PINTO MONTEIRO, Sobre as "cláusulas de rescisão" dos jogadores de futebol, RLJ, n. 3934 ... ob.cit., p. 25. 0

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do CCT dos Jogadores Profissionais de Futebol, tenham em conta, quando se tratar a matéria da cessação injustificada do contrato de trabalho desportivo, um conjunto de factores genéricos, legais e desportivos também. Factores genéricos esses que, no meu entendimento, são essenciais, para que se obtenha uma legislação mais adequada à realidade laboral desportiva, que continua sucessivamente a mudar, perante o autismo da nossa Lei Laboral Desportiva, e que seguramente também, serão essenciais, para o apuramento do montante indemnizatório devido. Assim, enunciam-se os seguintes factores genérico-desportivos essenciais, que humildemente pugnamos, para que o Legislador e/ ou o Julgador, futuramente devam ter em conta, na avaliação do quantum indemnizatório devido: 1o O momento da competição desportiva escolhido para a realização da cessação injustificada do contrato; 2° A quantidade de competições desportivas que a entidade empregadora está envolvida no momento da cessação injustificada; 3° O lugar ocupado pelo praticante desportivo na equipa; 4° As alternativas existentes no próprio grupo de trabalho; 5° As implicações que a referida cessação possa ter no desempenho do colectivo; 6° Os gastos na formação do atleta, caso estes tenham ocorrido; 7° Os custos da própria contratação do atleta; 8° A idade do praticante desportivo; 9° A projecção do futuro do praticante desportivo; 10° A afectação da imagem do Clube ou do praticante desportivo; Í 11 o A cessação ou frustração dos contratos publicitários e de merchandising que são, hoje em dia, essenciais, quer para o Clube quer para o atleta. Porém, no meu entendimento, os referidos factores genérico-desportivos, deveriam ser somente aplicados, subsidiariamente, e na falta de acordo expresso das partes na estipulação do montante indemnizatório devido, pela cessação injustificada do vínculo laboral desportivo. A autonomia das partes tem de funcionar na Lei portuguesa em termos mais amplos, e relevar os interesses atinentes ao equilíbrio das competições desportivas e à subsequente necessidade de assegurar a estabilidade contratual, sem que isso importe reduzir o elevado poder negocial dos praticantes desportivos e a necessidade de protecção dos praticantes desportivos menos mediáticos. Seria importante atribuir às partes, a estipulação (obrigatória) do valor indemnizatório devido, que não deveria estar sujeito, obviamente, a limites máximos, quer seja das retribuições vincendas (cfr. art. 27° n. 0 1 do RJCTD) quer seja, outro montante qualquer, designadamente, o limite máximo, de 400 (quatrocentas) vezes o valor do salário mensal no momento da rescisão constante conforme estabelece o Legislador Brasileiro no§ 3° do art. 28° da Lei n° 9.615/98 com a redacção dada pela Lei n. 0 12.395, de 16 de Março de 2011. Assim, humildemente, de acordo com o meu entendimento, deixo alguns

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critérios que o futuro Legislador Português, deverá atender na quantificação ou apuramento do "preço" decorrente da rutura contratual de um contrato de trabalho desportivo, designadamente: 1o Concessão de uma Ampla Liberdade Contratual das partes, na determinação de um montante indernnizatório, quer para situações de cessação antecipada de contrato (Cláusulas Liberatórias) quer para situações de incumprimento contratual (Cláusulas Penais), sendo certo que, os mesmos podem não ser coincidentes; 2° Na falta de acordo, a ponderação de todos os circunstancialismos (incluindo os de carácter desportivo anteriormente enunciados) do caso concreto; 3° Atribuição ao Juiz da fixação do valor indernnizatório justo, com base nos circunstancialismos e meios de prova carreados para o processo por ambas as partes; 4° Responsabilidade solidária do clube com quem o praticante desportivo venha a celebrar um novo contrato de trabalho desportivo na época desportiva em curso ou subsequente). Para concluir, é impressionante, como é o RJCTD, persiste na nossa ordem jurídica de forma imutável, desde 1999 até aos dias de hoje, assentando em pressupostos legais, em vias de extinção. í É preciso mudar ... Humildemente, aqui deixo o meu singelo contributo nesse sentido.

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DO PROGRAMA DO GOVERNO Luís Barbosa Rodrigues 1

Resumo: O presente estudo assume por objecto o exame do acto jurídico programa do Governo, na Constituição portuguesa e, sumariamente, no Direito Comparado europeu, analisando a respectiva natureza, procedimento de elaboração e conteúdo. Palavras-chave: Programa do Governo; Primeiro-Ministro; acto jurídicopúblico; acto normativo-directivo. Abstract: This study examines the Governrnent Prograrn Act, under the Portuguese Constitution and, briefly, in the European Cornparative Law, analyzing their nature, developrnent process and content. Key-words: Governrnent PrograrnAct; Prirne-Minister; Public Act; Directive

Act.

I - O programa do Governo, na óptica da Constituição portuguesa actualmente vigente (art. 188°), define-se corno acto jurídico-público. Em primeiro lugar, considerada a natureza sernprejurídica2 e necessariamente 1

Professor Auxiliar das Faculdades de Direito das Universidades Lusíada de Lisboa e do Porto; Doutor em Direito. 2 Em sentido oposto, CAETANO, op. cit., ps. 171 e 207, sustentando a existência de funções não jurídicas do Estado, porque "não contêm em si mesma criação nem execução de Direito positivo; "função política do Estado, caracterizada por ser anterior ou superior ao Direito positivo, já que por via dela se definem ou impõem orientações"; "é inegável que no Estado se praticam actos que são anteriores às formas jurídicas ou independentes de-

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pública das funções prosseguidas pelo Estado. Em segundo lugar, atenta a natureza dos próprios actos em que aquelas se traduzem. Em terceiro lugar, observada a expressa caracterização deste acto como vinculativo para todos os membros do Governo (idem, art. 189°). Ou seja, obrigatório para os respectivos destinatários, e adstringente, inclusive, para o seu próprio autor, o Primeiro-Ministro. Um Primeiro-Ministro que, nesse conspecto, se auto-limita quer frente à Assembleia da República, quer face aos seus Vice-Primeiro-Ministro e Ministros. Efectivamente, ao incumprimento do programa do Governo não correspondem apenas sanções fáctico-políticas, designadamente, do foro eleitoral. Dele decorrem, também, verdadeiras sanções de natureza jurídica3, constitucionalmente prescritas. Em sede endo-governativa, traduzidas na susceptibilidade de proposta do Primeiro-Ministro ao Presidente da República de demissão do Vice-PrimeiroMinistro ou do Ministro incumpridores (arts. 191°, no 2, e 186°, no 2, Constituição) Em sede hetero-governativa, consubstanciadas na possibilidade de censura, ou de votação negativa da confiança, ao Governo e ao Primeiro-Ministro pela Assembleia da República (idem, art. 195°, no 1, als. f) e e), Constituição). Ou, num limite último, na virtual demissão do Primeiro-Ministro e do seu Governo pelo Presidente da República, com fundamento em irregular funcionamento das instituições (idem, n° 2). Efectivamente, o incumprimento manifesto, gravoso, reiterado, sistemático, do programa do Governo, consubstancia a violação de um pressuposto elementar do stado democrático, o da correspondência entre a vontade eleitoralmente expressa pelo Soberano e a superveniente acção política dos seus delegados representativos (arts. 1° e 2°, Constituição) . Mais: atenta a natureza funcional dessa faculdade de controlo político (idem, art. 120°), o Presidente da República encontra-se juridicamente adstrito a fazê-lo, não lhe sendo constitucionalmente permitido escolher entre demitir ou não demitir o Primeiro-Ministro e o Governo.

II- O programa do Governo configura-se como acto de estrutura normativa. Ou seja, dotado de generalidade, abstracção, imperatividade e bilateralidade. Aliás, como acto de estrutura reforçadamente normativa, considerando que nele se cumulam quer um grau elevado de generalidade, quer um elevado grau

las"; e DOGLIANI, op. cit., p. 84: "antes e além das funções públicas constitucionalmente consagradas existe uma realidade do Estado que se exprime através de uma actividade de direcção política, que é conhecida e regulada pelo Direito, mas que é autónoma e não redutível às normas que disciplinam o exercício formal das competências tradicionais". 3 No mesmo sentido, FERNANDEZ, op. cit., p. 136.

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de abstracção (art. 188°, 1• parte, Constituição) 4 • É certo que a observada normatividade reveste uma natureza matricialmente programática5 . Porém, semelhante natureza não prejudica nem a sua juridicidade, nem o jaez normativo dos respectivos conteúdos, do mesmo modo que os não prejudica o carácter programático das próprias normas constitucionais. E a analogia entre programa do Governo e a Lei Fundamental é tanto maior quanto o programa de Governo assume como finalidade essencial, precisamente, dar cumprimento à Constituição. Melhor: assume como escopo essencial a implementação das normas programáticas ou não exequíveis por si próprias patentes nessa Constituição6 .

III - O programa do Governo emerge como acto da função política. Emerge como acto da função constituída nuclear do Estado, antecedendo e primando, necessariamente, sobre a totalidade dos actos das funções administrativa e jurisdicional. Emerge como acto intrinsecamente inovador, como acto de escolha primária, de decisão liminar, relativamente à generalidade do devir colectivo naciona 7• Não obstante, encontra-se vinculado à escrupulosa observância das opções populares soberanas que o antecedem e das quais surge como mera inferência subsuntiva. Mais: exactamente por se integrar numa função constituída - embora a primeira entre as funções constituídas - o programa do Governo recorta-se como acto parcialmente vinculado. Na verdade, a função política encontra-se hierarquicamente subordinada às funções constitucionais, tanto originárias como derivadas. Isto é, a função política, o programa de Governo, situa-se num patamar dependente do programa de Estado que o antecede8 •

Diversamente, CANOTILHO, Constituição dirigente .. ., p. 469: o Programa do Governo "não assume carácter casuística e constitui, em geral, uma previsão abstracta em relação à sua concretização através de directivas". 5 Havendo mesmo quem, em razão dessa densificação limitada e exequibilidade mínima, se refira a um seu "carácter difuso necessário"; assim, CALVO, op. cit., p. 274. 6 Em sentido próximo, CALVO, op. cit., p. 278: designando os correspondentes pactos de coligação por "Programa de Estado" . 7 Próximo, PEREIRA, op. cit., p. 657: "governar é dar impulsão à vida pública, tomar iniciativas, preparar leis, nomear, demitir, punir. Agir, sobretudo". 8 No mesmo sentido, CANOTILHO, MOREIRA, op. cit., p . 414: a função política "pressupõe iniciativa e liberdade de acção, mas não é juridicamente desvinculada: a direcção política da maioria deve conformar a sua acção segundo o princípio da constitucionalidade". 4

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Programa que constitui não apenas um limite negativo à respectiva actuação, mas igualmente- ou sobretudo - um fundamento positivo dessa mesma actuação 9 10

IV - O programa do Governo apresenta-se como acto de direcção política. Efectivamente, a função política do Estado não se revela homogénea, comportando três distintas dimensões. A primeira, traduz-se no impulso motorizador, na decisão essencial, consubstanciando a função política de direcção. A segunda plasma-se- nos casos em que se revele necessário à implementação da direcção política - na formalização dessa direcção antecedente, revelando a ftmção política de legislação. A terceira desentranha-se na garantia da direcção e da legislação políticas, ou da adequação política da segunda à primeira, conformando a função política de controlo. O que significa que a função política de direcção emerge como pressuposto e fundamento principal de toda a remanescente acção constituída do Estado e se destaca, simultaneamente, como padrão de todas as restantes funções . Ora, o Programa do Governo assume como finalidade intrínseca, precisamente, imprimir à acção do Estado essa primeira direcção política.

V - O programa do Governo desenha-se como acto de direcção política

obje~tliva. · ent re d'uecçao - pol't' · e d'1recçao mpor t a, com e fe1'to, d'1s t'mgmr 11ca ob'1ect1va política subjectiva. A objectiva consubstancia-se em escolhas programáticas, em políticas públicas. A subjectiva reflecte-se na selecção das pessoas que procederão à correspondente implementação. No respectivo desenvolvimento, a direcção política objectiva apresenta cinco dimensões sequenciais. A primeira consiste na identificação dos fins do Estado, através da interpretação e integração dos fins constitucionais11 . 9

Próximo, embora referindo-se apenas a wn segmento da função política, CANOTILHO, Constituição dirigente..., p. 479: "a lei, no Estado democrático-constitucional, não é wn acto livre da Constituição, mas wna actividade positiva e negativamente determinada pela lei fundamental. Isto significa que tuna temia de limites ou wna teoria de autorização são insuficientes para explicar a heteronomia vinculativa, positiva e negativa, das normas constitucionais". 10 Em sentido oposto, SPADARO, op. cit., p. 296: a Constituição é "um sistema de limites jurídicos fundamentais". 11 No mesmo sentido, CRISAFULLI, cit. in MANNINO, op. cit., ps. 52 e 87: "predetermi-

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A segunda consubstancia-se na priorização desses mesmos fins do Estado, em ordem à consequente fixação e hierarquização de objectivos 12 . A terceira integra a respectiva temporização, mediante programação e calendarização implementativas 13 14 . A quarta contende com a definição instrumental, embora ainda política e consequentemente global, da metodologia e dos meios adequados à prossecução de tais fins. A quinta- e última- traduz-se na própria decisão directiva em sentido estrito, decisão que constitui o acto terminal e externo de direcção política objectiva 15 16 • No caso vertente - e, simultaneamente, mais paradigmático - o programa do Governo.

nação dos fins últimos e mais gerais"; "quem diz direcção diz necessariamente também fins"; e ROLLA, op. cit., p. 391: "actividade de primeira interpretação das prescrições teleológicas contidas na Constituição, tendo como fins garantir um desenvolvimento unitário das diversas funções estatais e adequar o indirizzo das forças operant~~ no sistema à progressiva realização dos fins gerais contidos na Constituição". 12 No mesmo sentido, DOGLIANI, op. cit., p . 211: "o indirizzo consiste em determinar os fins e os objectivos do Estado"; e LAVAGNA, op. cit., p. 761: actividade "caracterizada pelo facto de se dirigir à individualização e graduação dos fins públicos( ... ) livremente valoráveis, dentro dos limites introduzidos na Constituição". 13 No mesmo sentido, CIARLO, op. cit., p. 59: "decisão sobre quando e como devem ser actuados" . 14 Próximo, SCHNEIDER, op. cit., p. 350, mas autonomizando este segmento como função, a "função prospectiva". 15 Próximo, CAETANO, op. cit., p. 172: "assegurar a unidade e coesão nacionais, definir os ideais colectivos, escolher os objectivos concretos a realizar em cada época e os meios a empregar"; CANOTILHO, Constituição dirigente ..., p. 178, e Direito Constitucional..., p. 566: "tarefa global de planificação, fixação e execução dos fins constitucionais normativizados"; "conformação dos objectivos político-constitucionais mais importantes e a escolha dos meios ou instrumentos idóneos e oportunos para os prosseguir( ... ). A direcção ou decisão política assume-se, pois, com uma natureza normativa"; e ESTEBAN, GUERRA, op. cit., p. 243: "concepção e impulsão da política económica e social", " elaboração de objectivos" e "articulação das medidas necessárias para os alcançar". 16 Em sentido oposto, MARTINES, Indirizzo politico, p. 142, e Diritto Costituzionale, p. 430: "individualização dos fins" (momento teleológico), "funcionalização da vontade e predisposição de meios materiais" (momento instrumental) "obtenção dos fins" (momento de execução); "determinação", "predisposição dos meios" e "execução"; FERNANDEZ, op. cit., p. 144: "programação, direcção e execução da política do Estado"; e DOGLIANI, op. cit., p. 199: "a escolha e a determinação dos fins não é fase logicamente necessária e ineliminável, mas praticamente amalgamada e integrada no exercício das funções (legislativa ou executiva, nos seus vários aspectos) da qual resulta institucionalmente inseparável".

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VI - O programa do Governo recorta-se como acto de dupla direcção política objectiva. De um lado, de direcção política objectiva do próprio órgão complexo Governo. De outro lado, atenta a supremacia da função directiva deste último sobre todas as remanescentes, de direcção política objectiva do próprio Estado. O que significa que, mais do que como um acto de direcção política, o programa do Governo se ergue como o acto medular dessa direcção política. E que, analogamente, não se inscreve apenas na direcção da política geral do Governo (art. 201°, n° 1, al. a), Constituição), erguendo-se, na verdade, como o acto nuclear de semelhante política geraP 7 •

VII -O Programa do Governo flui directamente do programa eleitoral. Isto é, resulta directamente - e, democraticamente, não pode deixar de resultar directamente - da escolha sufragada pelo Soberano. Com efeito, seria abstruso que o Primeiro-Ministro e o Governo fossem vinculadamente escolhidos em função dos resultados eleitorais (art. 187°, maxime, n° 1)) e que, ao mesmo tempo, inexistisse qualquer correspondência entre a decisão substantiva popular e o programa do Governo. O programa eleitoral afirma-se, pois, como um programa directo, como um programa imediato do Governo. Como um programa que é posteriormente transposto e mediatizado em programa representativo desse Governo. Assim, no caso de este órgão ser composto por uma única formação 1 partidária, a correspondência entre programa eleitoral e programa de Governo deve apresentar-se integral. No caso de albergar mais de que um partido, o respectivo programa do Governo deve consubstanciar-se numa fusão dos vários programas eleitorais, nunca em novas propostas, ou, menos ainda, na antítese das sufragadas eleitoralmente.

VIII - O programa do Governo destaca-se como expressão primeira da direcção da política geral do Governo constitucionalmente deferida ao PrimeiroMinistro (art. 201°, no 1, al. a), Constituição). Dentro da direcção da política geral do Governo, a direcção política objectiva singular do Primeiro-Ministro revela-se a direcção mais nuclear, 17

No mesmo sentido, RUGGERI, op. cit., p . 333: o Programa do Governo recorta-se como "manifestação primeira e quadro primeiro da (... )política governativa"; e CANOTILHO, MOREIRA, op. cit., p . 439: o Programa do Governo é o "parâmetro imediato de toda a actividade governamental (legislativa ou não legislativa)".

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consubstanciando-se, exactamente, na elaboração desse Programa do Governo. A elaboração do acto analisando compete exclusivamente ao PrimeiroMinistro, enquadrando-se na respectiva reserva absoluta de direcção política essencial (idem).

IX - Em primeiro lugar, o programa do Governo insere-se nessa reserva político-directiva do Primeiro-Ministro porque a Constituição o não inclui entre os actos cuja aprovação se encontra distribuída ao órgão Conselho de Ministros (art. 200°, n° 1, a contrario, Constituição). Acresce que, ao contrário do que se verifica com o Primeiro-Ministro, órgão de direcção política genérico, o Conselho de Ministros se recorta constitucionalmente como órgão dotado apenas de funções de atribuição. Isto é, dotado apenas das funções que a Constituição - ou, porventura, o acto legislativo ordinário - expressamente prescreve.

X - Em segundo lugar, a elaboração do programa do Governo emerge juridicamente reservada ao Primeiro-Ministro porque a Lei Fundamental p{evê que os membros do Governo se encontram vinculados ao programa do Governo e às deliberações tomadas em Conselho de Ministros (art. 189°). Ora, se a esse Conselho de Ministros coubesse a aprovação do acto, o preceito estatuiria, apenas, que os membros do Governo estariam vinculados às deliberações do Conselho de Ministros, deliberações entre as quais se incluiria o programa do Governo. Ou, alternativamente, determinaria que esses membros do Governo estariam vinculados ao programa do Governo e às remanescentes deliberações tomadas em Conselho de Ministros.

XI -Em terceiro lugar, o modo de articulação funcional constitucionalmente previsto entre, por um lado, o Primeiro-Ministro, e, por outro, o Vice-PrimeiroMinistro e os Ministros, demonstra também a atribuição àquele da competência para a elaboração do programa do Governo. De facto, o Vice-Primeiro-Ministro e os Ministros são politicamente responsáveis perante o Primeiro-Ministro (art. 191°, no 2, Constituição) . Ora, esse tipo de responsabilidade implica a existência de confiança política naqueles por parte deste último. E, por seu turno, semelhante confiança política postula a existência de uma direcção política prévia que lhe sirva de suporte objectivo. Desse modo, o programa do Governo tem necessariamente de emergir num momento anterior à referida manifestação da confiança do Primeiro-Ministro no Vice-Primeiro-Ministro e nos Ministros.

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Manifestação que apenas se verifica ao tempo das respectivas propostas de nomeação pelo Chefe do Estado (art. 187°, no 2, Constituição). Mais: manifestação que ocorre de forma sempre desfasada da desses outros membros do Governo, em razão da inadmissibilidade constitucional do recurso à figura da indigitação18 . Acresce ainda que, fazer intervir o Vice-Primeiro-Ministro e os Ministros na elaboração do programa do Governo seria presumir uma aceitação dos respectivos cargos sem conhecimento prévio da direcção essencial a imprimir. Significaria, noutras palavras, admitir uma aceitação em branco desses mesmos cargos. Acresce que, sem esse enquadramento objectivo-programático da respectiva direcção, a própria responsabilidade política endo-governativa do Vice-PrimeiroMinistro e dos Ministros se converteria numa responsabilidade carente de qualquer conteúdo. Ou seja, uma responsabilidade accionável arbitrariamente - ou mesmo despoticamente - pelo Primeiro-Ministro, já que não conheceria o limite objectivo do cumprimento ou do incumprimento do programa do Governo por parte desses membros do Governo.

XII - Em quarto lugar, a competência para a elaboração do programa de Governo compete ao Primeiro-Ministro porque, num sistema de governo governamental e imediato, como o sistema português 19, semelhante acto estadual tem necessariamente por antecedente pré-estadual o programa eleitoral. O que significa que através desse programa os cidadãos são chamados a profmnciar-se sobre uma pré-direcção política, traduzindo o mesmo a existência de substancialidade e de fundamentação da decisão popular 20 • Ora, tipicamente, o programa eleitoral não é determinado pelo partido que corporiza a solução de Governo, mas elaborado, singularmente, pelo próprio líder de tal partido. Ademais, esse programa é ele próprio submetido a sufrágio partidário, em simultaneidade com a eleição, hoje usualmente directa, do líder do partido e futuro candidato ao cargo de Primeiro-Ministro. Nesse contexto, se o líder partidário elabora solitariamente esse programa ou se, no mínimo, dirige a respectiva elaboração, nenhum sentido teria que, uma vez nomeado Primeiro-Ministro, procedesse de modo distinto, precisamente na fase teleológica e mais primária da direcção política do Estado.

18

Nesse sentido, RODRIGUES, O Primeiro-Ministro .., ps. 288, ss. Idem. 20 "A ruptura desse nexo chocaria com a lógica interna do sistema democrático-eleitoral"; assim, CALVO, op. cit., p. 279. 19

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Nenhum sentido teria que a tradução, a formalização, ou mesmo o puro decalque do programa eleitoral em programa do Governo tivesse autor diverso do do contrato eleitoral pré-estadual. Acresce que, se nesse procedimento interno partidário o líder pode ser acompanhado por um grupo específico, não existe uma correspondência necessária - nem mesmo tendencial - entre a composição de semelhante grupo e a composição do Governo ou a do Conselho de Ministros. E, menos ainda, se verifica uma correspondência entre as funções de cada um dos seus membros e as funções que virtualmente desempenharão no órgão de Estado, mesmo nos casos em que existe um formal Governo-sombra. Logo, no procedimento de designação imediata popular, só o líder partidário é efectivamente sufragado. Melhor: apenas o líder do partido beneficia de uma legitimidade popular inequívoca, porque só ele é sufragado pessoalmente - embora não directamente - para um cargo determinado. Acresce, por fim, que à intrínseca genericidade do programa eleitoral corresponde basicamente a genericidade das funções do Primeiro-Ministro, maxime a direcção da política geral do Governo. E não a sectorialidade, para mais de ordem tendencialmente administd tiva, das funções atribuídas aos Ministros. Dir-se-à que essa predeterminação do programa do Governo pelo programa eleitoral reduz a saliência do primeiro. Mas semelhante conclusão não é inteiramente exacta. Desde logo, porque os programas eleitorais não possuem relevância jurídicopública21, já que não são produzidos por órgãos do Estado mas por órgãos de sujeitos de direito privado. Depois, porque se o programa do Governo revela sobretudo a transposição da direcção partidária para a direcção do Estado, facto é que também o programa do Governo se constitui num primeiro momento de definição da estratégia eleitoral a adoptar durante a totalidade da legislatura. Ou seja, o programa do Governo constitui-se no acto de direcção política que determina na sua essência o programa eleitoral subsequente do mesmo partido, ou que serve de base ao contraditório trazido pelos programas eleitorais dos partidos de oposição ao Governo. Mas, se o programa do Governo deriva do programa eleitoral que o antecede, a direcção política do Governo durante essa legislatura é também mais tarde sufragada - ou quiçá dessufragada - através do subsequente programa eleitoral.

21

Diferentemente, USERA, op. cit., p. 133: os programas eleitorais consubstanciam um "momento pré-jurídico e não apenas político, já que a acção dos partidos, cujo reconhecimento jurídico se encontra consagrado, prepara e dirige uma decisão do Estado, que se cristaliza na incorporação de objectivos políticos, transformando-os em fins, também políticos, do Estado".

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Desse modo, e sem prejuízo das suas distintas naturezas jurídicas, a relação entre programa eleitoral e programa de Governo constrói-se não como relação unilateral de causa-efeito mas como genuína relação bilateral, ou, até, como relação circular e permanente que a ambos engloba.

XIII - Em quinto lugar, a elaboração do programa do Governo surge constitucionalmente reservada ao Primeiro-Ministro porque nela se afirma que o mesmo é submetido à apreciação da Assembleia da República através de uma declaração daquele (art. 192°, n° 1), excluindo-se, assim, taxativamente, a intervenção de quaisquer outros membros do Governo. Ora, semelhante solução apenas se perfila compatível com a elaboração singular do programa pelo Primeiro-Ministro e nunca pelo Conselho de Ministros. Melhor: somente se revela compatível com uma coincidência entre a autoria do Programa e a responsabilidade política pela mesma.

XIV - Em sexto lugar - embora numa óptica diversa - a atribuição da competência para a elaboração do programa do Governo ao Primeiro-Ministro resulta ainda da detenção da responsabilidade pela política geral do Governo. Efectivamente, não pode o órgão que assume a responsabilidade pela mencionada direcção política ser diverso daquele que a determina. O que implica que, caso o Primeiro-Ministro, após a nomeação presidencial, mas antes da apresentação perante a Assembleia da República, constate uma não ;-desão de outro membro do Governo à direcção vertida nesse programa, a única solução exequível seja a imediata proposta ao Presidente da República da respectiva substituição.

XV - Não obstante, a elaboração do programa do Governo pelo PrimeiroMinistro recorta-se como uma manifestação diferenciada das remanescentes valências directivas, atenta a natureza essencialmente projectiva da política geral que nele se encerra. Efectivamente, ao contrário do que se constata em relação à generalidade dos actos de directivos políticos, a produção plena dos respectivos efeitos encontrase dependente de condição suspensiva, considerando que o Governo se assume como simples Governo de gestão antes da respectiva apreciação pela Assembleia da República (art. 186°, no 5, Constituição). Com efeito, se a designação do Primeiro-Ministro ocorre em momento anterior ao da dos restantes titulares do órgão, e se, consequentemente, inicia as respectivas funções antes destes, o Primeiro-Ministro, mesmo se já nomeado, é também, por maioria de razão, um mero órgão de gestão, um mero PrimeiroMinistro de gestão.

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Ora, o programa do Governo não pode, pela sua intrínseca relevância jurídico-política, ser qualificado como acto de gestão (idem). Nem pode conceber-se como acto estritamente necessário ao assegurar da gestão dos negócios públicos (idem). Nesse conspecto, tem de entender-se que a elaboração do Programa do Governo configura, para o Primeiro-Ministro- como configuraria mesmo que a competência fosse do Conselho de Ministros - a prática de um acto de direcção política sujeito a condição suspensiva. Condição suspensiva que se traduz na verificação de não desconfiança por parte da Assembleia da República, mas que, em razão dessa natureza negativa, não exprime uma partilha de direcção política entre os dois órgãos de soberania.

XVI - O principal acto de direcção política do Estado emana, pois, singularmente, do Primeiro-Ministro. Não de uma mera proposta desse Primeiro-Ministro ao Conselho de Ministros, ou, menos ainda, do próprio Conselho de Ministros. Mas ainda que se entendesse que a aprovação do mesmo deveria ter lugar em Conselho de Ministros, o acto sub judice revelaria sempre uma nattfreza complexa desigual. Efectivamente, o impulso básico em ordem à produção do mesmo teria sempre origem no Primeiro-Ministro, atenta a sua natureza funcional intrinsecamente política e não administrativa, em confronto com a do VicePrimeiro-Minsitro ou dos Ministros 22 23 24 • Sem embargo, num Estado moderno, a extensão e a densidade da tarefa sugere a partilha da respectiva produção material. Partilha não- ou não necessariamente - com os futuros titulares do Governo, mas com aqueles que formam - ou formarão subsequentemente - o seu próprio 22

23

24

Próximo, mesmo em Itália, RUGGERI, op. cit., p. 382: a competência é do Conselho de Ministros mas depende "de proposta juridicamente reservada ao Premier e essencialmente vinculante para os outros membros do Governo"; se aos Ministros não é permitido "tocar o núcleo conceptual e político do projecto presidencial, é-lhes todavia consentido especificar e corrigir( ... ) o texto"; e CALANDRA, op. cit., p. 76: o Primeiro-Ministro "é formalmente assistido pelo Governo". Diversamente, e mesmo em Itália, RESCIGNO, op. cit., p. 417: se a competência é formalmente do Conselho de Ministros, trata-se todavia de "um documento escrito pelo Primeiro-Ministro" . Em sentido oposto, CANOTILHO, MOREIRA, op. cit., ps. 440 e 438: "tudo indica que o Programa deve ser aprovado em Conselho de Ministros". "O Programa é elaborado e aprovado pelo Governo", mesmo se "as ideias fundamentais têm de estar adquiridas ou pressupostas aquando da nomeação do Primeiro-Ministro e da formação do elenco governamental"; mais: "nada impede que o Presidente da República seja consultado ou se pronuncie por iniciativa própria sobre ele".

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Gabinete. Isto é, com a burocracia política da confiança pessoal do Primeiro-Ministro.

XVII - Igualmente, quanto mais detalhado se configura o programa do Governo mais intensa se revela a correspondente direcção política do PrimeiroMinistro E mais circunscrita se torna, no plano endo-governativo, a direcção do Conselho de Ministros e das respectivas linhas gerais da política governamental (art. 200°, no 1, al. a), 1a parte, Constituição). E mais mitigada se apresenta, em sede hetero-governativa, a remanescente direcção política da Assembleia da República (idem, art. 16n. Contudo, o primeiro acto de direcção da política geral objectiva do Governo é insusceptível de normar substantivamente todas as questões atinentes à acção governamental, implicando semelhante acção uma direcção política complementar. Desde logo, sob a forma de integração autêntica, pelo Primeiro-Ministro, do seu Programa do Governo (idem, art. 201°, n° 1, als. a e b)). Designadamente, aquando da respectiva apresentação perante a Assembleia da República, apresentação cuja competência lhe cabe (idem, art. 192°), e, bem assim, durante as supervenientes discussão e apreciação. Depois, através da integração do programa do Governo por nova direcção política normativa complementar avulsa, produzida quer pelo Conselho de Ministros, quer pelo mesmo Primeiro-Ministro (idem, arts. 200°, n° 1, e 201°, n° 1, aLa)). I XVIII - Subsequentemente, o programa do Governo é submetido a apreciação da Assembleia da República (art. 192°, Constituição). Apreciação que se destaca como o primeiro acto de controlo político parlamentar desse primeiro acto de direcção política objectiva governamental. E não como o último acto do seu procedimento de formação, nem, por maioria de razão, como o derradeiro de definição ou de co-definição de semelhante direcção política 25 • Efectivamente, o programa do Governo revela-se insusceptível de votação, aprovação ou alteração (art. 192°, Constituição), podendo, tão-somente, ser apreciado (idem, n° 1) e, eventualmente, rejeitado - pela maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções (idem, no 4).

25

Em sentido oposto, embora referindo-se a Espanha, SANCHEZ, op. cit., p. 183: "se o objecto do controlo parlamentar é a actividade do órgão governamental, mal pode configurar-se a outorga de confiança como acto de controlo, sendo certo que tal actividade não existe".

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O que significa, em rigor, que apenas a rejeição pela Assembleia da República se configura como acto juridicamente relevante 26 • E significa, também, que a mencionada rejeição assume inequívoca natureza de controlo político27 . De controlo político da direcção política objectiva que o programa do Governo corporiza, e da adequação do mesmo ao programa eleitoral que o fundamenta. Assim, tacitamente, ao apreciar e ao não rejeitar o programa do Governo, a Assembleia da República procede à sua própria limitação funcional. Por um lado, à limitação da sua função política de direcção secundária e, inerentemente, à da função política legislativa que dela depende. Por outro lado, à limitação da sua função de controlo, contratualizando os termos e o alcance da responsabilidade política do Governo e do PrimeiroMinistro. Isto é, para a Assembleia da República, o programa do Governo traduz o parâmetro essencial da respectiva acção directiva e, outrossim, o padrão necessário da apreciação da superveniente acção do Governo ou, no limite, da respectiva censura. I I

XIX - No Reino Unido, sem embargo da relevância política historicamente atribuída aos eleitores e aos programas eleitorais - dos quais é, aliás, pioneiro28 inexiste, juridicamente, programa do Governo. Consequentemente, nem a Câmara dos Comuns nem, por maioria de razão, a Câmara dos Lordes, têm qualquer intervenção nesta sede. A entrada em funções do Governo depende, assim, tão-somente, de nomeação régia, em estrita obediência aos resultados eleitorais.

XX- Na Alemanha, o Chanceler é eleito, singularmente, pela Dieta Federal (art. 63°, § 1°, Constituição), não se prevendo a apresentação de um programa de Governo- nem, tão-pouco, de qualquer debate (idem) . No mesmo sentido, CANOTILHO, MOREIRA, op. cit., p . 344: "a apreciação em si mesma não reveste nenhuma forma, havendo moção apenas quando seja proposta a rejeição do Programa e ela seja aprovada". 27 Em sentido oposto, VITORINO, op. cit., p. 376: "a apreciação do Programa do Governo prefigura-se como um acto de orientação política, na medida em que o debate a que dá lugar incide sobre as linhas de acção política do Governo contidas no respectivo Programa e a votação a que pode haver lugar no final( ... ) é corolário desse debate sobre o Programa". 28 Nesse sentido, CHARLOT, op. cit., p. 124: em 1839, o então Primeiro-Ministro "Peel fez conhecer aos seus eleitores de Tamworth as grandes linhas da sua política, no famoso Tamworth Manifesto". 26

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Não obstante, encontra-se-lhe reservada, absolutamente, a superveniente fixação das designadas linhas gerais da política (idem, art. 65°), atinentes quer à política interna, quer à política externa 29 • Fixação que encontra como único limite substantivo a insusceptibilidade de invasão da reserva de competência ministerial, também ela constitucionalmente prevista (idem) 30 •

XXI- Em Espanha, encontra-se prevista a figura do programa do Governo, incumbindo ao candidato indigitado a Presidente do Governo, exclusivamente, a respectiva feitura (art. 99°, no 2, Constituição). Esse programa de Governo 31 é obrigatoriamente apreciado e votado pelo Congresso dos Deputados (idem) . Se este, por maioria absoluta, outorgar a confiança ao virtual Presidente do Governo, e, inerentemente, ao acto examinando, o Monarca promove a sua nomeação (idem, no 3), o mesmo se verificando no que tange aos remanescentes titulares governamentais.

XXII - Em França, a Constituição não se refere expressamente ao programa do Governo. Todavia, a elaboração das principais directivas governamentais resulta da competência genérica atribuída ao Primeiro-Ministro (arts. 20°, e 21°, Constituição), embora com a colaboração, em matérias constitucionalmente delimitadas, do Presidente da República (idem, maxime, arts. 5°,9° e 15°). Consequentemente, o início de funções governamentais plenas não depende de qualquer intervenção, nem positiva, nem negativa, da Assembleia Nacional ou do Senado. Aliás, o Primeiro-Ministro e os remanescentes titulares do Governo podem ser nomeados pelo Presidente da República num momento em que o Parlamento se não encontre, sequer, em funcionamento. No mesmo sentido, RIZZA, 11 Presidente .. ., p . 171: as richtlinien der politikconstituem-se na "decisão política primária"; e PITRUZZELLA, op. cit., p . 224: "representam a decisão determinante sobre o indirizzo da acção do Governo". 30 No mesmo sentido, VIVIANI, op. cit., p. 85: "as directivas do Chanceler devem ser de carácter geral e não podem colocar em causa, de modo algum, a autonomia dos Ministros nas questões da sua competência". "O Chanceler não pode dar ordens e directivas precisas e minuciosas aos membros do Governo"; e RIZZA, La Cancelleria ..., p. 401: "as directivas do Chanceler( ... ) não podem ignorar o Ministro, dirigindo-se imediatamente ao interior do Ministério, nem pode ser exercido nenhum poder de avocação" . 31 Mesmo se "nada há que obrigue o candidato a ir para além da exposição de umas linhas gerais de actuação, ou a propor, desde logo, um Governo concreto, com listas de pessoas e de pastas a ocupar", assim, CENDÓN, op. cit., ps. 155 e 156. 29

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XXIII - Em Itália, a determinação do programa do Governo incumbe ao órgão colegial Conselho de Ministros e não ao respectivo Presidente. E exige a aprovação expressa- e separada- das duas Câmaras do Parlamento (art. 94°, § 1°), a Câmara dos Deputados e o Senado da República. Mais: facticamente, as aludidas Câmaras parlamentares intervêm de forma positiva na respectiva elaboração, co-dirigindo politicamente o respectivo procedimento formativo 32 •

XXIV - O programa do Governo, no que se reporta ao conteúdo, "deve apresentar, com clareza, em todos os domínios, os objectivos a atingir e os meios a utilizar, indicando e fundamentando as opções que se colocarão, de modo a que seja possível estabelecer uma ordem de prioridades e a correspondente divisão de tarefas pelos departamentos competentes" 33 34 • Não obstante, quer a expressão orientações políticas, quer a locução medidas (art. 188°, Constituição) - esta última já existente em 1976, embora precisando então a Constituição tratar-se de medidas políticas e legislativas e não de medidas administrativas (art. 191°, versão original)- surgem inexactas. Quanto à primeira, porque o Primeiro-Ministro, à semelhança do próprio Conselho de Ministros, não se limita a orientar politicamente. O Primeiro-Ministro, sobretudo, dirige politicamente (art. 201°, n° 1, als. a) eb))3s. Quanto à segunda, porque terão de ser excluídas tanto uma eventual natureza administrativa do programa do Governo, como uma sua possível natureza concreta. No primeiro caso, dado que essas putativas medidas administrativas surgiriam antes da própria definição das linhas gerais da política governamental (art. 200°, n° 1, al. a), la parte), Constituição). Ou seja, porque surgiriam antes do aprofundamento político pelo Conselho de Ministros da direcção política do Primeiro-Ministro. No segundo caso, uma vez que tais medidas concretas se antecipariam às próprias linhas gerais de execução dessa política a definir preliminarmente pelo Conselho de Ministros (idem, art. 200°, n° 1, al. a), 2• parte). Isto é, porque a concretização administrativa antecederia a própria determinação administrativa genérica36 . Nesse sentido, CALANDRA, op. cit., p. 81: a confiança tem como fim "não só (...) o controlo-garantia", mas também uma "participação na fase teleológica do indirizzo" . 33 GOMES, op. cit., p . 80. 34 Em sentido oposto, FRANCESCH, op. cit., p. 45: "mera declaração de intenções genéricas" . 35 Diversamente, CANOTILHO, MOREIRA, op. cit., p. 439: orientações políticas são a "sua filosofia e os seus princípios, bem como os objectivos fundamentais". 36 Em sentido oposto, SANDULLI, op. cit., p. 120: "a actividade de alta administração( ... ) 32

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Assim, e por contraponto com a direcção política, a locução examinanda reportar-se-à a medidas sectoriais, mesmo se "o programa deve abordar discriminadamente todas as áreas governamentais"37 • Tratar-se-à, afinal, neste segundo caso, daquilo que a Constituição, ao referir-se ainda à competências do Primeiro-Ministro, designa por orientação política (idem, art. 201°, n° 1, al. a)).

XXV - Do exame e confronto conteudísticos entre os dezanove programas de Governos constitucionais da III República portuguesa, revela-se possível extrair algumas sumárias conclusões. Primeira: o linear e exponencial alargamento e aprofundamento dos respectivos conteúdos. Segunda: a alternância acíclica entre uma organização transversal das temáticas, por áreas ou domínios, e uma construção rigidamente ministerialdepartamental. Terceira: a frequente contraposição entre o primado do diagnóstico e a imediata apresentação de objectivos genéricos ou, até, de medidas específicas a adoptar. Quarta: a manifesta sobressaliência das questões económicas, ou económico-sociais, sobre as remanescentes e, designadamente, sobre as políticas strictu sensu. Quinta: a progressiva metamorfose subjacente à passagem do Estadoprodutor ao Estado-regulador. Sexta: a crescente visibilidade do Poder Local e, mais recentemente, das 1 Regiões Autónomas. Sétima: a intensificação - algo surpreendente- da matriz político-ideológica. Oitava: a actual impregnação pelo marketingpolítico e, inclusive, nos casos de continuação do ciclo partidário, pela retro-propaganda.

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ANEXO (Índices dos Programas dos Governos Constitucionais)

I Governo Constitucional I - Introdução II - Enquadramento político-constitucional

III - Objectivos e políticas do Governo II A) Construir o Estado democrático B) Planear e reorganizar a economia C) Assegurar a estabilização financeira indispensável à recuperação económica O) Consolidar as estruturas produtivas, combater o desemprego e expandir a produção E) Promover uma maior justiça na distribuição dos rendimentos F) Responder às necessidades básicas da população e promover a qualidade de vida G) Afirmar uma política de independência nacional e de cooperação internacional a favor da paz IV - Considerações finais

II Governo Constitucional I - Introdução II - Enquadramento político-constitucional e pressupostos políticos

III - Objectivos e políticas do Governo A) Consolidar o Estado democrático 1 - Organização e funcionamento do Governo 2 - Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira 3 - Poder local 4- Reforma administrativa 5 - Comunicação social 6 -Garantia da igualdade perante a lei 7 - Condição feminina

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B) Organização da economia 1 - Introdução 2 -O papel do Plano e do mercado na regulação da economia 3 - Dinamização e racionalização do sector empresarial do Estado 4 - Estímulo ao sector privado 5- Apoio ao sector da propriedade social, designadamente ao sector cooperativo 6 - Promoção e enquadramento do investimento estrangeiro C) Programa económico de estabilização para 1978 1 -Introdução, justificação e objectivos 2 - Política de balança de pagamentos 3 - Política orçamental 4- Política monetária e financeira 5 -Política de combate à inflação e política de rendimentos 6 - Compatibilização do programa de estabilização com as perspectivas da política social e da política de desenvolvimento a médio prazo D) Política de desenvolvimento económico e social a médio prazo 1 -Adesão às comunidades europeias 2 -Estratégia do desenvolvimento 3 - Política de orientação do investimento 4 - Desenvolvimento regional E) Políticas sectoriais 1 - Introdução 2- Agricultura e pescas 3 - Indústria e energia 4 - Comércio e turismo 5 - Transportes e comunicações 6 _L_ Trabalho, emprego e formação profissional F) Responder às necessidades básicas da população e promover a qualidade da vida 1 - Justiça 2 - Administração interna 3 - Educação e cultura 4- Segurança social e saúde (situação e determinantes da acção) 5 - Habitação, obras públicas e ambiente 6 - Desalojados 7- Reabilitação de deficientes G) Política de independência nacional e de cooperação a favor da paz 1 - Defesa nacional 2 - Política externa 3 - Cooperação com os países de expressão portuguesa 4 - Política de emigração IV - Considerações finais

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III Governo Constitucional I. Introdução II. Principais objectivos da acção governativa 1. Pressupostos e condicionantes 2. Grandes objectivos 2.1. Políticos 2.2. Económicos 2.3. Sociais e Administrativos III. Política Económica Geral 1. Orientações gerais 2. Política de balança de pagamentos 3. Política de combate à inflação 4. Politica monetária e de crédito 5. Política orçamental 6. Política de investimentos 7. Política regional 8. Sector Empresarial de Estado 9. Sector privado 10. Adesão às Comunidades IV. Políticas Sectoriais 1. Políticas sectoriais no domínio produtivo 1.1. Agricultura e Pescas 1.2. Indústria e Energia 1.3. Comércio e Turismo 1.4. Transportes e Comunicações 1.5. Seguros 2. Políticas sectoriais no domínio social e administrativo 2.1. Comunicação Social 2.2. Trabalho 2.3. Justiça 2.4. Administração Interna 2.5. Desalojados 2.6. Educação e Cultura 2.7. Segurança Social e Saúde 2.8. Habitação, Obras Públicas e Ambiente 2.9. Política de Reabilitação de Deficientes 3. Politica de Defesa 4. Política externa 5. Macau V. Regiões Autónomas VI. Administração Pública

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IV Governo Constitucional Introdução I - Linhas Gerais da Acção Governativa II - Política económico-social III - Aspectos sectoriais A. Matérias dependentes da Presidência do Conselho de Ministros 1. Cultura 2. Cooperativismo 3. Desalojados 4. Condição Feminina 5. Reabilitação de deficientes 6. Combate à Droga 7. Relações com as Regiões Autónomas 8. Macau 9. Administração Pública B. Políticas departamentais 1. Defesa Nacional 2. Finanças e Plano 3. Administração Interna 4. Justiça 5. Negócios Estrangeiros 6. Agricultura e Pescas 7. Indústria e Tecnologia 8. C<fiDércio e Turismo 9. Trabalho 10. Educação e Investigação Científica 11. Assuntos Sociais 12. Transportes e Comunicações 13. Habitação e Obras públicas 14. Comunicação Social

V Governo Constitucional I. Referências políticas do V Governo Constitucional II. Perspectivas globais III. Objectivos por áreas de problemas 1. Objectivos na área económica 2. Objectivos na área social 3. Objectivos na área cultural 4. Objectivos no domínio de segurança interna, da defesa nacional e da justiça 5. Objectivos no domínio das relações externas 6. Objectivos no domínio da gestão financeira

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7. Objectivos no domínio da Administração Local 8. Objectivos no âmbito da Administração Pública IV. Medidas sectoriais Preâmbulo 1. Medidas na área económica 2. Medidas na área social 3. Medidas na área cultural 4. Medidas no âmbito de segurança interne e da justiça 5. Medidas no âmbito das relações externas 6. Medidas no âmbito de gestão financeira 7. Medidas no âmbito da Administração Local 8. Medidas no âmbito da Administração Pública V. Preparação das eleições intercalares

VI Governo Constitucional I. Organização do Estado democrático 2. Reforma Administrativa 3. Administração Interna 4. Justiça 5. Negócios Estrangeiros 6. Defesa Nacional II. Política económica e social 7. Política económica global 8. Agricultura e Pescas 9. Comércio e Turismo 10. Indústria e Energia 11. Habitação e Obras Públicas 12. Transportes e Comunicações 13. Trabalho 14. Assuntos Sociais III. Educação e qualidade de vida 15. Educação e Ciência 16. Cultura 17. Comunicação Social 18. Ordenamento e Ambiente

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VII Governo Constitucional Estabilidade democrática e modernização da sociedade Capítulo I - Grandes opções 1. Política nacional 2. Política económica global

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3. Integração europeia Capítulo II - Organização do Estado 1. Reforma administrativa 2. Administração interna 3. Justiça 4. Negócios estrangeiros 5. Defesa nacional Capítulo III - Progresso económico e social 1. Agricultura 2. Pescas 3. Comércio 4. Turismo 5. Indústria e energia 6. Habitação e obras públicas 7. Transportes e comunicações 8. Trabalho 9. Emprego Capítulo IV - Melhoria da qualidade de vida 1. Educação e ciência 2. Assuntos sociais 3. Qualidade de vida 4. Cultura

VIII Governo Constitucional I

Intrddução Capítulo I - Construir o Estado de Direito democrático 1. Reforma administrativa 2. Administração interna 3. Justiça 4. Regiões autónomas 5. Comunicação social 6. Negócios estrangeiros 7. Macau 8. Defesa nacional Capítulo II - Recuperar e desenvolver a economia 1. Política económica global 2. Integração europeia 3. Agricultura 4. Comércio 5. Pescas 6. Indústria, energia e exportação 7. Turismo

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Capítulo III - Promover o reformismo social 1. Pressupostos de uma política reformista

2. Cultura e coordenação cientifica 3. Qualidade de vida 4. Habitação, obras públicas, transportes e comunicações 5. Educação 6. Assuntos sociais 7. Trabalho e emprego 8. Fomento cooperativo

IX Governo Constitucional I - Construção do Estado Democrático A - Introdução B - Principais orientações de carácter geral

1 - Defesa nacional 2 - Administração interna e segurança 3 -Política externa 4- Justiça 5 - Administração Pública e modernização administrativa 6- Comunicação social 7 - Ciência e tecnologia II - Política de solidariedade social 1 -Abrir o futuro à juventude 2 -A posição e o papel da mulher 3 - Cidadãos de terceira idade, não de terceira classe 4- Política de reabilitação 5 -Fomento cooperativo III - Estabilização financeira e desenvolvimento económico 1 - Orientação da política económica geral 2 - Integração europeia 3 -Políticas orçamental e fiscal 4 - Sector empresarial do Estado 5 -Política de investimentos e plano 6 -Política de rendimentos e preços 7 - Políticas monetária, financeira e cambial IV - Sector produtivo 1 -Agricultura, florestas e alimentação 2 - Uma nova concepção dos problemas do mar 3- Indústria e energia 4 - Comércio e turismo 5 - Equipamento social V - Sector social e cultural

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1 - Trabalho e segurança social 2 -Política de saúde 3 -Política de educação 4 -Política cultural 5 -Ordenamento do território e ambiente. Desportos. Defesa dos consumidores

X Governo Constitucional I - Organizar o Estado 1. Defesa nacional 2. Segurança interna 3. Justiça 4. Poder local 5. Política externa 6. Modernização administrativa II - Desenvolver a economia 1. Política económica global 2. Planeamento e desenvolvimento regional 3. Agricultura e pescas 4. Industria e energia 5. Comércio 6. Transportes e comunicações 7. Turismo 8. Fomento cooperativo III - Promover o bem-estar social 1. Trabalho, emprego e formação profissional 2. Construção e habitação 3. Saúde 4. Segurança social IV - Valorizar os recursos humanos 1. Educação 2. Cultura 3. Comunicação social 4. Comunidades portuguesas 3. Juventude 4. Desporto

XI Governo Constitucional I - Organizar o Estado. Fortalecer a democracia 1- Defesa Nacional 2- Justiça 3- Administração interna

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-Segurança Interna - Legislação Eleitoral 4- Política Externa - Integração Europeia - Cooperação 5 - Regionalização e Poder Local 6- Modernização Administrativa II - Modernizar o País. Criar mais riqueza 1 - Política Económica Global 2- Planeamento e desenvolvimento do território -Ordenamento do território 3 - Sector Empresarial do Estado 4- Sector cooperativo 5 -Agricultura 6- Pescas 7- Indústria e energia 8 - Construção 9 - Transportes e comunicações - Vias de comunicação - Transportes interiores - Transportes exteriores - Comunicações 10 -Comércio 11- Turismo III - Promover o bem estar. Reforçar a solidariedade l-Saúde 2 - Emprego e formação profissional 3 - Segurança Social 4 - Habitação 5 -Ambiente e recursos naturais 6 - Defesa do consumidor IV - Preparar o futuro. Apostar nos portugueses l-Educação 2 -Cultura 3 - Ciência e tecnologia 4 - Comunicação social 5- Juventude 6- Família 7 - Condição feminina 8 -Comunidades portuguesas 9 - 500 anos dos Descobrimentos 10- Desporto

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XII Governo Constitucional I - Modernizar o Estado. Mirmar Portugal 1 - Defesa nacional 1.1. Política de Defesa Nacional 1.2. Relações Externas de Segurança e Defesa 1.3. Componente Militar da Defesa Nacional 1.4. Componentes não militares 2- Justiça 2.1. Actividade Legislativa; 2.2. Política Judiciária; 2.3. Combate à Criminalidade e Reinserção Social; 2.4. Sistema Prisional; 2.5. Registos e Notariado; 2.6. Formação e Informação 3 - Administração interna 3.1. Segurança Interna; 3.2. Vigilância de Fronteiras; 3.3. Protecção Civil; 3.4. Legislação Eleitoral; 3.5. Lei dos Partidos Políticos 4 - Política externa 4.1. Objectivos Gerais; 4.2. Presidência Portuguesa da CEE; 4.3. Relações Bilaterais; 4.4. tCooperação; 4.5. Promoção da Língua e da Cultura Portuguesas; 4.6. Timor-Leste 5 - Modernização da Administração pública 6 - Regiões Autónomas 7 - Poder local e regionalização 7.1. Regionalização 7.2. Municípios e Freguesias II -Uma economia de mercado para o desenvolvimento económico e social 1 - Objectivos da política económica 1.1. Uma Economia Moderna e uma Sociedade Solidária 1.2. Assegurar a Convergência com a Comunidade Europeia 2 - Diálogo e concertação social 3 - Política orçamental 4 - Políticas financeiras estruturais 4.1. Política Monetária e Cambial 4.2. Privatizações e Função Accionista do Estado

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4.3. Mercado de Capitais 4.4. Sistema Financeiro 4.5. Projecção Externa 5 - Planeamento e desenvolvimento regional 5.1. Planeamento 5.2. Investimento Público e instrumentos Financeiros de Apoio; 5.3. Linhas de Actuação 6- O sistema de transportes, obras públicas e comunicações 6.1. Transportes 6.2. Sistema Rodoviário 6.3. Construção Civil 6.4. O sector das comunicações 7 - Agricultura 7.1. Modernização da Agricultura 7.2. A Estrutura Fundiária e o Tecido Empresarial Agrícola 7.3. Organizações Agrícolas e Interprofissionais 7.4. Desenvolvimento Rural e Redução das Assimetrias Regionais 7.5. Sector Agro-Industrial e Agro-Comercial e Qualidade dos Produtos I Alimentares 8 - Indústria 8.1. Indústria Transformadora 8.2. Indústria Extractiva 9- Energia 10 - Comércio 10.1. Na Área do comércio Interno 10.2. Na Área do Comércio Externo 11 - Internacionalização das empresas - investimento português no estrangeiro e investimento directo estrangeiro 12 - Turismo 12.1. Do Lado da Oferta 12.2. Do Lado da Procura 13 - Transportes marítimos, portos e pescas 13.1. Transportes marítimos e Navegação; 13.2 Portos; 13.3 Pescas 14 - Sector cooperativo III - Apostar no homem. Valorizar o futuro 1- Cultura 2- Educação 2.1. Apoio social no sistema Educativo 2.2. Ensino Básico, Secundário, Tecnológico, Artístico e Profissional 2.3. Ensino Superior e Investigação

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2.4. Administração e Gestão do Sistema Educativo 3 -Juventude 4- Desporto 5 - Formação profissional 6 - Ciência e tecnologia 7 - Comunicação social 8 - Comunidades portuguesas 9- Descobrimentos IV - Reforçar a solidariedade. Melhorar a qualidade de vida 1- Família 2 - Segurança social 3 - Deficientes 4 - Igualdade de oportunidades entre homens e mulheres 5- Saúde 6- Emprego 7 - Habitação 8 - Ambiente e recursos naturais 9 - Ordenamento do território 10 - Defesa do consumidor

XIII Governo Constitucional Introdução I - Área política e de Reforma do Estado 1 - Justiça 2 - dministração Interna 3 -Defesa Nacional 4 - Regionalização 5 - Planeamento e Administração do Território 6 - Reforma da Administração Pública 7- Regiões Autónomas 8- Juventude, Desporto, Comunicação Social 9 - Toxicodependência II - Política Externa 1 - Caracterização Global 2- União Europeia 3 - Cooperação para o Desenvolvimento 4- Comunidades Portuguesas 5- Timor 6-Macau III - Economia e desenvolvimento 1- Novo rumo, nova visão 2 - Participar na UEM

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3 - Política Orçamental e Privatizações 4 - Política de rendimentos e concertação estratégica 5 - Agricultura e desenvolvimento rural, pescas e aquacultura 6 -Indústria, energia, comérc io e turismo 7 - Equipamento Social 8 -Ambiente IV - Políticas sociais 1 - Solidariedade e Segurança Social 2- Política de Saúde 3 -Emprego, Formação Profissional e Relações do Trabalho V - Educação, Ciência e Cultura 1- Educação 2 - Ciência e Tecnologia 3 - Sociedade da informação 4- Cultura

XIV Governo Constitucional I Capítulo - Introdução II Capítulo - Duas grandes apostas transversais: a sociedade da informação e do conhecimento e a igualdade de oportunidades A) A sociedade da informação e do conhecimento B) A igualdade de oportunidades III Capítulo - Uma nova geração de políticas sociais A) Um objectivo nacional de modernidade e coesão: gerar emprego, valorizar as pessoas, apoiar as famílias, prevenir e diminuir fracturas sociais As novas apostas para um novo grande objectivo nacional Continuar a aposta na educação e na formação, promovendo o emprego de qualidade, a melhoria da produtividade e a empregabilidade Promover urna sociedade para todos, melhorando os níveis de garantia dos direitos sociais As reformas da saúde e da segurança social B) A Saúde, a nova prioridade da política social Aumentar os recursos consignados Um sistema de saúde mais eficiente e de qualidade reconhecida Acesso à saúde em condições de equidade social, de eficiência na gestão e com garantia de qualidade C) Educação, formação e emprego: Apostar no futuro, corrigir os efeitos dos erros do passado Uma educação com novos meios e outras ambições Criar para todos novas oportunidades de educação, formação e valorização profissional Promover um emprego de qualidade, melhorar a produtividade e desenvolver as

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políticas activas de emprego D) Prosseguir na garantia de direitos sociais fundamentais Combater as desigualdades sociais Promover uma política de desenvolvimento social Resolver as carências habitacionais, garantir o acesso à habitação Renovar as políticas de conciliação entre a vida familiar e profissional e de igualdade de oportunidades entre homens e mulheres Prosseguir uma política de apoio aos idosos Prosseguir a reforma da protecção de crianças e jovens em risco Melhorar a inserção das pessoas com deficiência Desenvolver a nova política para a toxicodependência E) Reforçar a sustentabilidade dos sistemas sociais, prosseguir a reforma da segurança social Servir melhor todos os cidadãos Uma nova protecção social, viável e legitimada pelos cidadãos Por uma segurança social forte e para todos no século XXI IV Capítulo- Desenvolvimento, emprego e bem-estar: uma economia moderna e competitiva A) O novo perfil da política económica B) O território português: factor de bem-estar dos cidadãos e de competitividade da economia C) A competitividade das empresas D) Um novo contrato entre o Estado e o mercado V Capítulo - A qualidade da democracia A) 1\jelhorar a relação das pessoas com as instituições políticas B) Uma sociedade mais segura e uma justiça eficaz Uma sociedade mais segura C) Uma justiça eficaz para garantir os direitos e a segurança dos cidadãos D) Organização territorial do Estado: Uma nova visão E) Uma nova relação do Estado com o cidadão F) Mirmação da identidade nacional no contexto europeu e mundial - política externa Caracterização global Cooperação para o Desenvolvimento Assuntos Europeus Uma política de efectiva promoção das Comunidades Portuguesas Expansão da língua portuguesa no mundo G) A defesa como elemento estruturante da identidade nacional e da afirmação de Portugal no mundo A política de defesa nacional num momento de viragem na cena internacional Consolidar uma política de defesa adequada à salvaguarda dos interesses nacionais Medidas de acção governativa

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H) Consolidação das autonomias regionais I) Uma nova aposta na ciência e na cultura, uma renovada atenção às estruturas comunicacionais Uma política de ciência e tecnologia para o desenvolvimento do País Uma política de cultura assente nos valores da cidadania O papel essencial conferido às estruturas comunicacionais

XV Governo Constitucional Introdução I -Um Estado com autoridade, moderno e eficaz 1- Defesa Nacional 2- Política Externa 3 - Administração Interna 4- Justiça 5 -Administração Pública 6 -Autonomia Regional 7- Descentralização II - Sanear as finanças públicas. Desenvolver a economia 1 -Finanças Públicas 2- Economia 3 -Obras Públicas e Transportes 4 - Indústria, Comércio e Serviços 5 -Turismo 6 -Agricultura 7- Pescas 8 - Política energética 9 - Telecomunicações III - Investir na qualificação dos portugueses 1- Educação 2 - Ciência e Ensino Superior 3 - Trabalho e Formação 4- Cultura 5 - Comunicação Social 6 - Sociedade de Informação IV - Reforçar a justiça social. Garantir a igualdade de oportunidades l-Saúde 2 - Segurança Social 3- Família 4 - Igualdade 5 -Minorias Étnicas e Imigração 6- Juventude 7- Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente

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8 - Habitação 9- Desporto 10- Defesa do Consumidor

XVI Governo Constitucional Introdução I -Um Estado com autoridade, moderno e eficaz 1 - Defesa Nacional 2- Política Externa 3 - Administração Interna 4- Justiça 5 - Administração Pública 6 -Autonomia Regional 7 - Descentralização 8 -Assuntos do Mar II - Apostar no crescimento e garantir o rigor 1 -Finanças Públicas 2- Economia 3 -Trabalho, Emprego e Formação 4- Turismo 5 -Agricultura 6 - Florestas 7- Pescas 8- ' bras Públicas e Transportes 9 -Política energética 10- Comunicações III - Reforçar a justiça social. Garantir a igualdade de oportunidades 1- Saúde 2 - Segurança Social 3- Família e Criança 4 - Igualdade 5 - Imigração 6 -Ambiente e Ordenamento do Território 7- Cidades, Desenvolvimento Regional e Administração Local 8 -Habitação 9 - Defesa do Consumidor IV - Investir na qualificação dos portugueses 1- Cultura 2 -Educação 3- Ensino Superior 4 - Ciência e Inovação 5 - Sociedade da Informação e do Conhecimento

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6 -Comunicação Social 7- Juventude 8- Desporto

XVII Governo Constitucional Introdução Capítulo I - Uma estratégia de crescimento para a próxima década I. Voltar a acreditar 1. Uma estratégia mobilizadora para mudar Portugal 2. Aproveitar as oportunidades oferecidas pelo quadro europeu II. Um plano tecnológico para uma agenda de crescimento 1. Mobilizar Portugal para a Sociedade da Informação 2. Imprimir um novo impulso à inovação 3. Vencer o atraso científico e tecnológico 4. Qualificar os portugueses III. Promover a eficiência do investimento e das empresas 1. Apoiar o desenvolvimento empresarial I 2. Desenvolver parcerias para a inovação e o emprego 3. Desburocratizar e criar um bom ambiente para os cidadãos e para as empresas 4. Estimular a concorrência, garantir a regulação 5. Melhorar a governação societária IV. Consolidar as finanças públicas 1. Falar verdade sobre a situação actual 2. Uma estratégia de consolidação orçamental 3. Revisão do Pacto de Estabilidade e Crescimento 4. Transparência das contas públicas 5. Novo processo orçamental 6. Qualificar o investimento público 7. Política fiscal V. Modernizar a Administração Pública para um país em crescimento 1. Facilitar a vida aos cidadãos e às empresas 2. Qualificar os recursos humanos e as condições de trabalho 3. Adequar a Administração aos objectivos de crescimento Capítulo II- Novas políticas sociais I. Mais e melhor educação 1. Educação de infância, ensino básico e ensino secundário 2. Ensino superior II. Valorizar a cultura 1. Um compromisso pela cultura 2. Favorecer o funcionamento em rede 3. Esclarecer regulamentações e missões 4. Livro e leitura, audiovisual - duas áreas de particular relevância

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5. Afirmar Portugal no Mundo III. Mercado de trabalho e emprego 1. Qualificar as pessoas e promover o emprego 2. Adaptar as empresas e o trabalho 3. Tornar o trabalho um factor de cidadania social 4. Reforçar o papel da economia social IV. Protecção social e combate à pobreza: mais futuro, melhor presente 1. Um sistema de Segurança Social sustentável 2. Uma nova fronteira do combate à pobreza e à exclusão 3. Reforçar a protecção social, com mais rigor e mais justiça 4. Gerir os recursos presentes para melhor garantir o futuro 5. Os regimes complementares como instrumento de melhoria das pensões 6. Mais informação, menos burocracia, mais transparência V . Saúde: um bem para as pessoas 1. Mais e melhor Saúde 2. Toxicodependências 3. VIH/SIDA 4. Um sistema justo e flexível 5. Um SNS bem gerido VI. Famílias, igualdade e tolerância 1. Novas políticas para as famílias 2. Combate à violência doméstica 3. Igualdade de género 4. Uma política de verdade para a Interrupção Voluntária da Gravidez 5. Política de não discriminação VII. ara uma política de imigração inclusiva VII . Políticas de juventude: educar para a cidadania, promover a participação democrática Capítulo III - Qualidade de vida e desenvolvimento sustentável I. Mais qualidade ambiental e melhor ordenamento do território 1. Ambiente e ordenamento do território no centro da estratégia de desenvolvimento 2. Para uma convergência ambiental com a Europa 3. Promover a coesão territorial, favorecer o desenvolvimento das regiões 4. Três condições para a coordenação das políticas territoriais II. Qualificar as cidades e melhorar o acesso à habitação 1. Dinamizar a política de cidades 2. Três eixos para uma política de habitação III. Cinco áreas decisivas para um desenvolvimento sustentável 1. Mobilidade e comunicação 2. Energia 3. Turismo 4. Agricultura e desenvolvimento rural 5. Mar e pescas

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IV. Mais e melhor desporto 1. Uma visão de serviço público do desporto 2. Generalizar a prática desportiva em segurança 3. Modernizar e melhorar a qualidade do desporto português 4. Dimensão internacional do desporto português 5. Partilha de competências entre Administração Pública e Movimento Associativo V. Relançar a defesa dos consumidores VI. Modernizar a Administração territorial autárquica Capítulo IV - Qualidade da democracia, cidadania, justiça e segurança I. Modernizar o sistema político, qualificar a democracia 1. Instituições e vida democrática 2. Comunicação social II. Justiça 1. A justiça ao serviço do desenvolvimento económico e social 2. Eliminar a burocracia e os actos inúteis 3. Promover a desjudicialização e a resolução alternativa de litígios 4. A inovação tecnológica na Justiça 5. Qualificar a resposta judicial í 6. Tornar mais eficaz o combate ao crime e a justiça penal, respeitando as garantias de defesa 7. Responsabilizar o Estado e as pessoas colectivas públicas 8. Reforçar a cooperação internacional III. Segurança interna e protecção civil 1. Afirmar a autoridade do Estado e garantir a segurança 2. Reduzir a sinistralidade rodoviária 3. Combater a criminalidade 4. Prevenir catástrofes - o caso dos incêndios 5. Garantir a segurança alimentar 6. Prevenir o terrorismo 7. Melhorar a coordenação dos serviços vitais à segurança CAPÍTULO V - Portugal na Europa e no mundo I. Política externa 1. Participação activa nos centros de decisão da vida e das instituições mundiais 2. Portugal na construção europeia 3. A internacionalização da economia portuguesa 4. Responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacional 5. Relançamento da política de cooperação 6. Política cultural externa 7. Valorização das Comunidades Portuguesas II. Defesa nacional 1. Um novo quadro de segurança internacional 2. Uma resposta integrada da política de defesa 3. Uma aposta na segurança cooperativa

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4. Missões das Forças Armadas 5. Modernização das Forças Armadas 6. Outras medidas governativas

XVIII Governo Constitucional Introdução 1. Um Programa de ambição para o futuro 2. Uma atitude de confiança, determinação e iniciativa 3. O progresso que o País fez 4. A recuperação económica interrompida pela crise internacional 5. Prioridades claras para o futuro I - Economia, Emprego e Modernização 1. Linhas gerais da política económica 2. Relançar a economia, promover o emprego 3. Modernizar Portugal 4. Regular o mercado, defender os consumidores 5. Prosseguir a consolidação das finanças públicas II - Conhecimento e Cultura 1. Mais e melhor educação para todos 2. Um contrato de confiança com o Ensino Superior 3. Renovar o compromisso com a ciência 4. Investir na cultura III - Políticas Sociais 1. ais protecção social 2. Apoiar as famílias e a natalidade 3. Saúde: um valor para todos 4. Integração dos imigrantes 5. Mais igualdade, combater as discriminações 6. Uma política integrada de juventude IV - Desenvolvimento Sustentável e Qualidade de Vida 1. Desenvolvimento sustentável e ambiente 2. Ordenamento do território e cidades 3. Uma estratégia para a habitação 4. Desenvolvimento regional e coesão do território 5. Mais desporto, melhor qualidade de vida V - Administração Autárquica Aprofundar a descentralização, uma administração autárquica para o Séc. XXI VI - Regiões Autónomas Aprofundar a autonomia VII- Justiça, Segurança e Qualidade da Democracia 1. Justiça 2. Combate à corrupção

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3.Segurança 4. Segurança Rodoviária e Protecção Civil 5. Modernizar o sistema político, qualificar a democracia 6. Comunicação Social VIII- Defesa Nacional, Política Externa, Integração Europeia e Comunidades Portuguesas 1. Defesa Nacional 2. Política Externa, Integração Europeia e Comunidades Portuguesas

XIX Governo Constitucional I. Confiança, Responsabilidade, Abertura II. O Desafio da Mudança Racionalização das estruturas do Governo Controlo e Gestão Regulação III. Finanças Públicas e Crescimento Finanças Públicas e Administração do Estado íI Objectivos estratégicos Medidas Enquadramento Prévio Orçamento Tesouro ê Finanças Assuntos Fiscais Receita fiscal Desvalorização e competitividade fiscal Combate à fraude e evasão fiscal e reforma da justiça tributária Administração Pública Objectivos estratégicos Medidas Economia e Emprego Emprego e Mercado de Trabalho Apoios e incentivos à reestruturação e renovação do tecido empresarial Inovação, Empreendedorismo e Internacionalização Recuperação e dinamização dos clusters tradicionais de exportação Aposta na indústria transformadora e nos bens e serviços transaccionáveis Estímulos específicos às Micro, Pequenas e Médias Empresas Investimento Directo Estrangeiro Transporte, Infra-estruturas e Comunicações Infra-estruturas rodoviárias Portos, aeroportos e logística Transportes Telecomunicações e serviços postais

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Mercado de arrendamento Mercado de energia e política energética Turismo Marcas, Mercados e Produtos Turísticos Agricultura, Mar, Ambiente e Ordenamento do Território Objectivos estratégicos Agricultura Florestas Mar Ambiente Ordenamento do Território Medidas Agricultura Florestas Mar Ambiente Ordenamento do Território IV. Cidadania e Solidariedade Justiça Objectivos estratégicos Medidas Administração Interna Administração Local e Reforma Administrativa Saúde Objectivos estratégicos Meâ idas Qvalidade e acesso efectivo aos cuidados de saúde Regulação do sector Linhas de orientação clínica Acreditação dos serviços do SNS Sustentabilidade económica e financeira do sistema de saúde Melhorar o desempenho e aumentar o rigor da gestão nas Unidades Públicas de Saúde Política do medicamento Um maior protagonismo dos cidadãos na utilização e gestão activa do sistema Melhorar a informação e o conhecimento do sistema de saúde Melhorar a transparência da informação em saúde Aprofundar a cooperação no domínio da saúde com a CPLP Segurança Social e Solidariedade Objectivos estratégicos Programa de Emergência Social Combater a Pobreza e Reforçar a Inclusão e a Coesão Sociais Economia Social

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Do programa do Governo, pág. 167-208

Família e Natalidade Promover a Sustentabilidade da Segurança Social Medidas Programa de Emergência Social Combater a Pobreza e Reforçar a Inclusão e a Coesão Sociais Economia Social - Reconhecer o trabalho de quem está no terreno e aproveitar ao máximo as suas capacidades instaladas Família e Natalidade Assegurar a sustentabilidade da segurança social e garantir a capacidade de escolha para as gerações mais novas Comunicação Social Igualdade de género, violência doméstica e integração de populações imigrantes e nómadas Desporto e Juventude Objectivos estratégicos Medidas V. Política Externa, Desenvolvimento e Defesa Nacional Negócios Estrangeiros I I Objectivos estratégicos Medidas Reforçar a Diplomacia Económica Evoluir nas Relações Bilaterais e Multilaterais Valorizar as Comunidades Portuguesas Defesa Nacional Objectivos estratégicos Medidas VI. O Desafio do Futuro Educação Ensino Pré-Escolar, Básico e Secundário Objectivos estratégicos Medidas Motivar e desenvolver os recursos humanos da educação Estabilidade e dignificação da profissão docente Desenvolver e consolidar uma cultura de avaliação a todos os níveis do sistema de ensino Racionalização da rede de oferta de ensino Gestão descentralizada da rede de estabelecimentos de ensino Orientar a organização do Ministério da Educação para os resultados Desenvolver e aperfeiçoar o ensino pré-escolar Melhorar a qualidade das aprendizagens no 1.0 Ciclo Aumentar o sucesso escolar no 2. 0 e 3.° Ciclos Apostar fortemente no ensino técnico e na formação profissional Ensino Superior

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L. Barbosa Rodrigues

Objectivos estratégicos Medidas Ciência Objectivos estratégicos Medidas Cultura Objectivos estratégicos Medidas Estrutura da Secretaria de Estado da Cultura Sector do livro, da leitura e da política da Língua Nas artes e no apoio às artes Património Indústrias criativas, direitos dos criadores e produtores Produtos, competências e serviços de excelência desenvolvidos no mercado nacional Promoção de novos clusters estratégicos Saúde - Incluir Portugal como destino para tratamento de doenças crónicas Educação e conhecimento Tecnologia e entretenimento

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ANDREA AMATUCCI HOMENAGEM

Manuel Pires 1 Há consagrações merecidas e sinais desse merecimento são a qualidade indiciada pelo prestígio, pelo nível atingido pelos colaboradores, reflectido nos respectivos trabalhos- e, se aliado àquela, o número dos autores, de um livr0 de homenagem. Se estas considerações preliminares estão certas- a estão certamente -, é impar a homenagem prestada ao Prof. Andrea Amatucci, da Universidade de Nápoles Federico II, através da obra «From Public Finance Law to Tax Law» (Editorial Temis S.A. - Jovene Editare Bogotá- Napoli, 2011) que consta de sete volumes, com mais de cinco mil páginas escritas por mais de uma centena e meia de autores localizados nos diversos continentes e a cujo Comité Cientifico pertencemos. Conhecemos Andrea em Salamanca, há muitos anos, tivémo-lo em Lisboa, numa das JORNADAS FISCAIS da Universidade onde desde há muito lecciono - a Universidade Lusíada - Lisboa - e também nos encontrámos no Curso de Doutoramento, em Bogotá, no âmbito do Projecto Alfa da União Europeia, onde co-lecionámos. Andrea Amatucci une os aspectos fundamentais de professor e mestre: profissional excelente, sabedor e pedagogo (ele sabe o que deve ensinar e como deve ensinar). Poderia não ser necessário escrever mais, mas vale a pena. Tem-se dedicado ao direito financeiro e ao direito tributário e suas relações, revelando conhecimento notável das diversas perspectivas sob as quais esses ramos do direito podem ser devidamente tratados, não se limitando, pois, ao jurídico, tratando das perspectivas económica e política e mesmo da própria análise económica do direito, dando jus à respectiva importância nomeadamente neste quadro do conhecimento. Também não esqueceu o histórico, abarcando, pois, os pressupostos relevantes da abrangência do direito financeiro face ao imposto, à despesa, ao 1

Professor Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa; Doutor em Direito.

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Manuel Pires

orçamento e à ligação entre a receita e a despesa. Para a demonstração do que se escreveu, é suficiente ler-se a lista dos seus trabalhos -mais de cento e vinte - incluída no vol. 1 da obra de homenagem. Andrea tem o privilégio de ser uma mente esclarecida, de a fazer frutificar com trabalho insano, sempre dirigido a prosseguir no caminho da verdade e a alcançá-la. Se Andrea teve a responsabilidade de pertencer a uma aula, em que, Raneletti, G. Ingrosso, Romanelli - Grimaldi, Sica, Abbamonte o antecederam, bem pode dizer-se que foi um notável continuador do prestígio anteriormente alcançado. Para avaliar a amplitude dos trabalhos de homenagem é suficiente indicar o plano da obra e o número individualizado dos colaboradores.

ESQUEMA GERAL

PartI METHODOLOGY AND INTERPRETATION OF TAX LAW First Section -Methodology (2 colaborações) Second Section- Interpretation (8 colaborações) Part II PUBLIC FINANCE LAW AND TAX LAW (4 colaborações)

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Part III THE INTERVENTION OF THE FINANCIAL RULE OF LAW lN THE ECONOMY: EXTRA FISCAL GOALS OF TAXES First Section- General Aspects (11 colaborações) Second Section -Particular Aspects (4 colaborações) Part IV THE CONCEPT AND THE SHARE OF TAXES First Section- General Aspects (7 colaborações) Second Section -Particular Aspects (10 colaborações)

PartV CONSTITUTIONAL PRINCIPLES OF TAXATION First Section- Financial Power and Taxing Power (12 colaborações) Second Section- Constitutional Principles of Taxation in General (3 colaborações) Third Section- The Single Constitutional Principles Relating to Tax Matters (18 colaborações) Fourth Section- Fiscal Federalism (6 colaborações)

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Andrea Amatucci - Homenagem, pág. 209-211

Part VI INTERNATIONAL TAX LAW ANO COMMUNITY TAX LAW First Section- International Tax Law (13 colaborações) Second Section- Cornmunity Tax Law (17 colaborações) Part VII TAX PROCEEDINGS ANO PROCESS First Section- General Aspects (1 colaborações) Second Section- Tax Proceedings (11 colaborações) Third Section- Tax Avoidance and Abuse of Rights (5 colaborações) Fourth Section- The Tax Process (5 colaborações) Fifth Section- Alterna tive Methods for Solving Tax Disputes (4 colaborações) Part VIII TAX CODIFICATION (3 colaborações)

Parabéns, pois, a Andrea pelo muito que tem feito e pela justa homenagem prestada, esperando o muito que ainda pode dar! 2012-07-17

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O SEGREDO BANCÁRIO E A FISCALIDADE NA ORDEM JURÍDICA PORTUGUESA Maria Eduarda Azevedo

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SUMÁRIO: 1. Colocação do Problema; 2. O Segredo Bancário no Direito Português; 3. O Segredo Bancário e a Fiscalização Tributária; 3.1. Introduçãq13.2. Antes da Lei Geral Tributária; 3.3. Na Lei Geral Tributária; 4. Notas Finais.

1. Colocação do problema

A regra do segredo, enquanto um elemento integrante do código deontológico de determinadas profissões, emerge por norma no âmbito de actividades, tanto públicas, como privadas, que pressupõem e implicam o conhecimento de factos respeitantes à vida particular de indivíduos e empresas. Conta-se neste número a actividade bancária2 / 3, que impõe às instituições 1

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Professora Auxiliar da Universidade Lusíada de Lisboa. Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Investigadora Jurista do Centro de Estudos Fiscais. Como destaca Luís Máximo dos Santos, A Derrogação por Razões Fiscais do Segredo Bancário, in: JANUS, Anuário de Relações Exteriores, Lisboa, Universidade Autónoma de Lisboa, 2000, p. 116,"sob diferentes enquadramentos e contextos, a regra do segredo bancário impôs-se desde os primórdios da actividade bancária como um dos seus pilares fundamentais". A origem do segredo bancário, ou pelo menos o seu reforço, parece ter origem na ética puritana calvinista, segundo a qual o dinheiro tem uma natureza reprodutiva e fecunda que está na base da ética capitalista, segundo Germano Marques da Silva, Segredo Bancário: da Tutela Penal na Legislação Portuguesa, in: Direito e Justiça, vol. Xll, tomo 2, 1998, pp. 33 e ss. Como observa Júlio Castro Caldas, O Sigilo Bancário, Problemas Actuais, in: AA. W., Sigilo Bancário, Instituto de Direito Bancário, Lisboa, Cosmos, 1997, pp. 37 e ss., "histórica e geograficamente o calvinismo e o metodismo deram origem ao nascimento de modelos de

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do sector, seus órgãos e funcionários o cumprimento de um dever geral de discrição relativamente aos dados de natureza pessoal e económica sobre os clientes, colhidos em exclusivo no exercício das suas funções, configurando uma proibição de revelação e utilização 4 • Na verdade, tratando-se de relações em que a boa fé e a confiança recíproca revestem uma importância capital5 - relações jurídicas uberrime fidei -, e visto o segredo constituir um factor decisivo da tutela desse valor que, importante para a actividade económica em geral, assume um carácter nuclear para o comércio bancário 6, torna-se compreensível a imposição de sigilo7 • Então, este há-de abranger não apenas a relação bancária hoc sensu, mesmo para além do seu termo, mas também as negociações preliminares a ela conducentes, maugrado o correspondente desfecho 8 . utilização do dinheiro sigilosamente depositado junto de homens tidos por escrupulosos e honestos". O mesmo Autor recorda ainda que o sigilo tinha então como benefício imediato e justificação reforçada "acautelar aquilo que era considerado reserva da sua própria identidade pessoal: os bens que protegiam do desamparo. É esse fundamento individual que é hoje considerado por muitos como valor negativo, censurável, porque o "berço puritano do dever de reserva foi no final do século XIX maciçamente desviado dos seus fins, legitimando a acção social de lhe pôr cobro. Para uma síntese histórica, Maria Célia Ramos, O Sigilo Bancário em Portugal - Origens, Evolução e Fundamentos, in: A A VV., Sigilo Bancário, Instituto de Direito Bancário, Lisboa, Cosmos, 1997, pp. 115 e ss.; Dominique Mirande, Le Code de Hamrnourabi et ses Origines, Paris, Leroux, 1913, pp. 74 e ss.; Raymond Farjat, Le Secret Bancaire, Étude de Droit Compare, Paris, LGDJ, 1970, pp. 13 e ss. 4 É esta a definição tradicional de segredo/sigilo bancário segundo Alberto Luís, O segred ~ bancário em Portugal, Rev. OA, Ano 41, 1981, p. 454, que realça o segredo bancário como um dever, de cunho marcadamente profissional, intimamente associado à actividade financeira, permitindo-lhe ser qualificado como uma espécie de segredo profissional. Uma tese que conheceu adesão sobretudo da doutrina francesa, Christian Gavalda, Le Secret Bancaire Français, Droit et Pratique du Commerce International, tome 16, no 1,1990, pp. 56 e ss., italiana, Cuido Ruta, Il Fondamento giuridico del segreto bancário, in: Banca, Borsa e Titoli di Credito, Milano, Nuova Serie, ano XXVII, 1964, pp. 318 e ss., e ainda, se bem que residualmente, da doutrina espanhola Azaustre Fernández, El Secreto bancario, Barcelona, Bosch, 2001, pp. 152 e ss 5 A propósito do contrato bancário como relação de confiança, os ingleses falam de "fiduciary relationship" e os alemães de "Vertranensgeschafte". 6 Como refere Rabindranath Capelo de Sousa, O Segredo Bancário. Em Especial, face às alterações fiscais da Lei 30-G/2000, de 29 de Dezembro, in: Direito. Revista Xuridica da Universidade de Santiago de Compostela, Santiago de Compostela, vol. 11, n° 2, 2002, p. 64, "o cliente, maxime/ depositante ou mutuário, realiza vulgarmente as suas operações no banco que lhe oferece maior confiança e mais radical ao fé, objectivas e subjectivas, isto é, reconhecidas publicamente e pelo próprio interessado. 7 Cf., Anselmo da Costa Freitas, O Sigilo Bancário, in: Bol. OA, n° 19, 1983, pp. 5 e ss.; Rogério Fernandes Ferreira, É necessário estabelecer um quadro judiciário específico, in: Sigilo Bancário, Forum Iustitiae, Direito & Sociedade, ano II, n° 15, Setembro, 2000, p. 14. 8 Cf., Jorge Patrício Paul, O Sigilo Bancário e a sua Relevância Fiscal, in: Rev. OA, Ano 62,

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Neste contexto, o dever de segredo, apreciado em toda a sua amplitude, não deixa de encerrar uma dupla natureza: moral e jurídica. Numa perspectiva ética, é o objectivo de assegurar a efectiva salvaguarda da reputação das partes envolvidas que motiva a instituição bancária a não revelar os segredos dos clientes, tanto no interesse imediato destes, como no seu próprio9 • Por outro lado, sob o prisma legal acaba por ser a consciência do carácter fulcral do sigilo que justifica e, sobretudo, legitima a jurisdicidade conferida pela ordem jurídica, manifestada na atribuição de uma força normativa que justifica a aplicação de sanções em caso de desrespeito 10 / 11 • Uma vez admitida a existência do segredo bancário, a Doutrina tem procurado encontrar o correspondente fundamento legal a partir de várias teses 12 que, ao destacarem vertentes particulares e distintas, não deixam de evidenciar, Abril, 2002, p. 574; J.L. Rives-Lange e M. Contamine-Raynaud, Droit Bancaire, Paris, Dalloz, 1986, 4• ed., pp. 168 e ss. 9 Configura simultaneamente um dever e um direito, que tem a particularidade de apresentar uma pluralidade de titulares: por um lado, o cliente bancário e, por outro, a própria instituição financeira. A este respeito, Legaz Lecambra, Filosofia del Derecho, Barcelona, Boch, 1961, pp, 716 e ss.; Victor Cathrein, Filosofia del derecho: el der~cho natural y el derecho positivo, Madrid, Editorial Reus, 1926, pp. 56 e ss.; Rabindranath Capelo de Sousa, O Segredo Bancário: em especial, face às alterações fiscais da Lei 30G/2000, de 29 de Dezembro, ob. cit., pp. 69 e ss.; Canaris, Bankvertragsrecht, 1, 3a ed. 1988, pp. 25 e ss.; Maria Eduarda Azevedo, O Segredo Bancário, in: CTF, n° 346/348, 1987, pp. 117 e ss. 1 °Como refere Maria Eduarda Azevedo, O Segredo Bancário, ob. cit., p. 74, "O banco fica vinculado a sigilo quanto aos conhecimentos adquiridos a propósito das operações que realize com a clientela susceptíveis de afectarem a correspondente situação patrimonial, assumindo as consequências civis e criminais emergentes de uma eventual inobservância. 11 Mais do que o receio de incorrer em sanções legais, a observância do dever de sigilo bancário cedo radicou numa condição de sobrevivência do próprio negócio. O banqueiro que não o cumprisse sujeitava-se à pior das sanções: a perda de clientela. Daí que, antes de plasmado nos ordenamentos jurídicos como um dever legal, a tutela do segredo bancário haja começado por afirmar-se pela via dos usos da actividade bancária e enquanto obrigação contratual. Aliás, ainda hoje, nos países de matriz anglo-saxónica, o dever de segredo bancário tem essencialmente base contratual. Neste sentido, Luís Máximo dos Santos, A Derrogação por Razões Fiscais do Segredo Bancário, ob. cit., p. 116. 12 A par do conceito e da natureza jurídica do segredo bancário, e perante a ausência de uma definição absoluta e internacionalmente sufragada, o fundamento deste instituto jurídico tem sido amplamente discutido, apresentando uma certa volatilidade, que varia consoante o ordenamento jurídico e o estado de evolução do seu reconhecimento, justificando assim o labor da doutrina no sentido de esboçar teorias quanto às suas causas jurídicas. Nesta linha, Noel Gomes, Segredo Bancário e Direito Fiscal, Coimbra, Almedina, 2006, pp. 20 e ss. Trata-se de uma questão que, porém, não tem merecido uma ampla discussão em Portugal, configurando uma indiferença aparente que não pode ser dissociada da imagem contratual do segredo bancário, que culminou já há algum tempo na substituição pela sua afirmação legal.

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quando articuladas, a sua real dimensão. Assim, para a teoria contratualista, o segredo recai sobre as instituições bancárias, seus órgãos e funcionários em virtude de contrato celebrado com cada cliente, assumindo a feição de obrigação acessória do contrato bancário13 jl4 . Por seu turno, à luz da teoria do dever profissional, a obrigação de sigilo surge como corolário do exercício de uma actividade específica, devendo por esse motivo circunscrever-se tão só aos elementos e às informações que as instituições bancárias, seus órgãos e funcionários hajam adquirido no âmbito e para o desempenho da profissão15 • De salientar ainda a tese do costume interpretativo, para que a referida cláusula contratual tem uma natureza tácita, não curando de qualquer tipo de explicitação dado o seu acatamento se haver tomado tradicional e reiterado16 . Deste modo, semelhante prática, acompanhada da consciência da essencialidade do comportamento, fornece o fundamento extracontratual de um dever cujo incumprimento faz incorrer os agentes em responsabilidade civil e criminal. Das teorias enunciadas parece não restarem dúvidas de que o reconhecimento legal do segredo bancário representa o culminar de um processo que, tendo tido irúcio como uma prática reiterada e sido seguido da aceitação social da sua obrigatoriedade, acabou com a elevação a uma norma específica que impõe aos bancos e demais entidades de crédito um dever geral e legal de reserva17• Todavia, uma apreciação crítica destas posições não pode deixar de demonstrar a suficiência relativa dos argumentos aduzidos em favor de cada uma. Na realidade, a perspectiva contratualista pressupõe que todos os contratos 13

Ehtre os interesses legítimos dos clientes figura, em primeiro lugar, o do segredo da sua situação patrimonial e dos seus negócios, por ele desvendados perante a instituição bancária em troca de conselho e/ ou de outros serviços que esta lhe há-de prestar. Nesta medida, o segredo corresponde a uma Nebenpflicht, obrigação jurídica acessória ao contrato bancário, como sublinham Scheerer, Probleme der Haftung der Kreditinstitute für die Erteilung von Auskünften in Deutschland und Frankreich unter besonderer Berücksichtigung der Haftungsfreizeichnungsklauten, FS Barmann, 1975, pp. 801 e ss. e Sichtermann, Das Bankgeheiminis in Deutschland, Frankfurt, Knapp, 1995, pp. 50 e ss.; Rabindranath Capelo de Sousa, O Segredo Bancário: em especial, face às alterações fiscais da Lei 30-G/2000, de 29 de Dezembro, ob. cit., pp. 69 e ss., e Sichtermann, Das Bankgeheiminis in Deutschland, 1995, pp. 50 e ss. 14 Cf., Hamel, Banques et opérations de banque, vol. I, Paris, Dalloz, 1933, pp. 258 e ss.; Bataglia, Il Segreto Bancaria, in: Rivista Casse Risparmio, 1950, pp. 39 e ss. 15 Cf., Prato Pisani, Appunti sul natura e sui limiti del segreto bancaria, in: Diritto e Giurisprudenza, 1959, pp. 241 e ss. 16 Cf., San tini, Il Segreto Bancário ed sui limiti, in: Rivista Bancária, 1950, pp. 400 e ss.; Goisis, La Funcione della banca nella practica italiana, Bologna, 1962, pp. 28 e ss.; Concetta Saccomanno e Antonio Verrilli, Diritto Bancaria, Napoli, Edizioni Simone, 1995, pp. 147 e ss. 17 Cf., Guillén Ferrer, El Secreto Bancaria y sus limites legales, Valencia, Tirant to blanch, 1997, pp. 43 e ss.

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bancários encerram uma cláusula reguladora do segredo, facto que nem sempre se verifica; a tese do dever profissional, por sua vez, só é válida, em bom rigor, para explicar o sigilo guardado pelo banqueiro, donde o seu carácter parcial; e, por fim, a teoria do costume interpretativo confunde duas questões de natureza distinta, uma que averigua o fundamento jurídico do dever de discrição e outra que discute os critérios da sua interpretação e aplicação. Nestes termos, parece claro que as perspectivas apontadas, ao autonomizarem parcelas do segredo bancário, são insuficientes só por si para lhe conferirem uma explicação cabal. Afinal, cada uma das teorias, ao focalizar meros segmentos do segredo bancário, limita-se a explicar de forma imperfeita, porque parcelar, a realidade em questão; contudo, a respectiva conjugação fornece uma perspectiva globalizante da essência do dever de sigilo e, bem assim, da praxis inerente. Acresce que, qualquer que seja a orientação perfilhada, cumpre não olvidar que o desrespeito do sigilo bancário não goza de impunidade, devendo antes ser encarado como infracção a uma obrigação jurídica autêntica, com consequências em sede de responsabilidade civil, criminal e disciplinar. Mas tão importante quanto o próprio segredo bancário, e com ele estreitamente conexo, surge ainda o problema das suas limitações, uma matéria que continua a ser o mote privilegiado de polémicas doutrinais vivas e acesas18 • De facto, a uma aceitação quase unânime da necessidade de sigilo contrapõem-se divergências profundas quanto aos limites da obrigação de discrição, em resultado de diferentes posições a propósito do elemento prevalecente do binómio interesse público-interesse privado. Neste contexto, a consagração do dever de segredo bancário sujeito a limites vagos e, sobretudo, admitindo a possibilidade de se desvendarem informações se/ e quando exigências de carácter público o justifiquem, significa o primado do interesse público e a afirmação do segredo como instituto de direito público. Ao invés, a conversão da obrigação de sigilo num reduto quase intocável, inspirado pelo interesse privado, parece supor o posicionamento do referido valor acima dos imperativos de ordem pública. Trata-se de posições que convocam atitudes ideológicas claras e distintas, predeterminando comportamentos diferentes em relação à sociedade e ao direito. No presente, se a complexidade crescente dos sistemas financeiros, firmada em meios tecnológicos altamente desenvolvidos e sofisticados, vem proporcionar à tutela do segredo bancário novos fundamentos e dimensões, o certo é que, de igual modo e de forma algo paradoxal, não há-de também deixar de tomar imperativa uma reavaliação segundo a ponderação de interesses vitais para a defesa da própria comunidade. Com efeito, quando a generalidade dos cidadãos goza do estatuto de cliente bancário e se assiste a um recurso maciço à utilização dos bancos, quer para a realização de operações financeiras de grande porte, quer para operações normais do quotidiano, a garantia de confidencialidade bancária toma-se ainda mais importante, 18

Cf., Christian Gavalda e Jean Stoufflet, Droit Bancaire, Institutions- Comptes- Opérations - Services, Paris, LITEC, 1994, pp. 85 e ss.

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assumindo-se como uma dimensão essencial do direito à reserva de privacidade19 • Mas ao mesmo tempo que as características da sociedade modema estão por detrás do aumento do nosso grau de exigência e rigor no que concerne à protecção do segredo bancário, é inquestionável que fornecem também razões igualmente válidas para justificar a admissibilidade de restrições importantes a esse dever. Na realidade, mesmo num contexto marcado pela livre circulação de capitais e prestação de serviços financeiros, como pela generalização das relações económicas transnacionais em resultado da globalização da economia, seria impensável não fazer ceder o segredo bancário quando confrontado com actos de criminalidade organizada internacional, mormente a imigração ilegal ou o tráfico ilícito de armas ou drogas, em que o sigilo pode constituir um poderoso incentivo a operações de branqueamento dos capitais produto de tais actividades20 . De igual modo, a quebra do sigilo há-de ser também, de certa forma, um instrumento ao serviço do sistema fiscal, como via para que este prossiga melhor e mais eficazmente os seus fins. A fuga aos impostos por parte de alguns contribuintes prejudica todos, na medida em que o Estado, para compensar a perda de receita dos tributos que deviam ser pagos, vê-se frequentemente obrigado a sobrecarregar a imposição dos contribuintes cumpridores. Deste modo, uma defesa equilibrada dos direitos dos cidadãos implica que o sigilo bancário não seja mantido nos casos em que impossibilite ou dificulte a correcta aplicação da lei fiscal21 • Contudo, a necessidade de combater o crime organizado ou de aumentar a obtenção de réditos públicos não deve facilitar conclusões apressadas e precipitadas seja sobre a extensão do incumprimento do dever de sigilo22 j23 , seja a respeito das 19

Cf.,'Rabindranath Capelo de Sousa, O Segredo Bancário: em especial, face às alterações fiscais da Lei 30-G/2000, de 29 de Dezembro, ob. cit., pp. 54 e ss. 20 A este respeito, entre outros, Maria Eduarda Azevedo, O Segredo Bancário e o Branqueamento de Capitais: A Posição da CEE, in: Fisco, Ano 3, no 35, 1991, pp. 3 e ss.; António Ramos Caniço, Criminalidade organizada internacional, in: Janus, Anuário de Relações Exteriores, Lisboa, Universidade Autónoma de Lisboa, 2004, pp. 200 e ss.; Valérie Malabat, Les aspects internationaux du blanchiment, Revue Droit Bancaire e Financier, a. 6, n° 4, 2005, pp. 41 e ss.; Jean-Louis Fort, Le cadre international et européen, in: Dossier "La Banque face au Blanchiment des Capitaux", Revue de Droit Bancaire et Financier, a. 8, n° 6, 2007, pp. 15 e ss.; Osvaldo Cucuzza, Segreti bancaria, criminalità organizzata, reciclagio, evasione fiscale in Italia, Padova, CEDAM, 1995, 65 e ss. 21 Cf., J. Silva Lopes, Acesso do fisco a informações protegidas pelo sigilo bancário, in: Forum Iustitiae, Direito & Sociedade, Sigilo Bancário, no 15, 2000, pp. 8 e ss. 22 Este o alerta, feito com particular lucidez por Júlio Castro Caldas, O Sigilo Bancário, Problemas Actuais, ob. cit., pp. 35 e ss. 23 De facto, como refere Sacha Calmon Navarro Coelho, , in: Caderno de Pesquisa Tributária, vol. 18, São Paulo, Ed. Resenha Tributária, 1993, p. 100, importa assumir que "não pode a ordem jurídica de um país razoavelmente civilizado fazer do sigilo bancário um baluarte em prol da impunidade, a favorecer proxenetas, lenões, bicheiros, corruptos, contrabandistas e sonegadores de tributos. O que cumpre ser feito é uma legislação cuidadosa que permita a manutenção dos princípios da privacidade e do sigilo de dados,

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condições do seu levantamento. 2. O Segredo Bancário no Direito Português Só em 1967 é que o ordenamento jurídico português passou a acolher uma referência normativa ao segredo bancário2\ consagrando expressamente a proibição de se utilizarem os elementos informativos fornecidos pelas instituições de crédito ao Banco de PortugaF5 j26 para outros fins que não os de natureza esta tística27 • Então, o incumprimento do dever de sigilo passou a constituir um crime de violação de segredo profissionaF8, punível pela legislação penal, conquanto circunscrito "aos elementos informativos obtidos junto do Banco de Portugal através dos pedidos feitos pelas instituições de crédito ao Serviço Centralizador dos Riscos de Crédito e respeitantes à concessão de crédito" 29 • sem torná-los bastiões da criminalidade". Sobre o regime do segredo bancário em termos comparados, Maria Eduarda Azevedo, O Segredo Bancário, in: CTF, n° 346/348, Lisboa, MF-DGCI, 1987, pp.73 e ss.; da mesma Autora, O Segredo Bancário, in: CTF, n° 157, Lisboa, MF-DGCI, 1989, pp. 26 e ss.; Thierry Samin, Le Secret Bancaire, Pris, AFB Diffusion, 1997, pp. 55 e ss.; Dennis Campbell, International Bank Secrecy, London, Sweet & Maxwell, 1992, pp. 3 e ss. 25 Cf., Decreto-Lei n° 47 909, de 7 de Setembro de 1967, que criou o Serviço de Centralização de Riscos de Crédito. Então, assistiu-se ao reconhecimento legislativo generalizado do dever de segredo bancário relativamente a todas as instituições de crédito. A este respeito, cf., Alberto Luís, Direito Bancário, ob. cit., pp. 95 e ss. 26 Para trás ficou a primeira referência constante do Regulamento do Banco de Lisboa, de 1822, pelo qual "as operações do Banco e os depósitos dos particulares são objecto de segredo" e o "empregado que o revelar será repreendido se da sua revelação não resultar dano, resultando será expulso, como assinala José M. Pires, O Dever de Segredo na Actividade Bancária, Lisboa, Rei dos Livros, 1988, pp. 15 e ss. Então, numa linha já legislativa, o Regulamento Administrativo do Banco de Portugal, aprovado pelo Decreto do Governo de 28 de Janeiro de 1987, veio garantir que as operações do banco e os depósitos particulares eram objecto de segredo, prevendo-se que a sua violação fosse sancionada disciplinarmente. A este respeito, Rabindranath Capelo de Sousa, O Segredo Bancário. Em Especial, face às alterações fiscais da Lei 30-G/2000, de 29 de Dezembro, ob. cit., pp. 60 e ss. 27 Cf., Art0 3°, n° 2 que, além de proibir a utilização dos elementos fornecidos pelas instituições de crédito para outros fins que não os de natureza estatística, afirmava a difusão para efeitos não previstos como uma violação do princípio do segredo bancário que assim acautelava as operações de crédito 28 Ao dever de segredo estavam vinculados os administradores, membros do conselho fiscal, directores, gerentes, empregados e quaisquer funcionários de instituições de crédito a que tivessem sido prestados os elementos informativos. 29 Tratava-se de uma referência normativa que se destacava pelo âmbito subjectivo limitado que concedia ao segredo bancário, uma vez que o aplicava tão só ao Banco de Portugal, deixando de fora as demais entidades que se dedicavam à realização da actividade financeira em território português. 24

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Mais tarde, porém, por efeito das convulsões políticas e sociais desencadeadas pela revolução de 25 de Abril de 1974 sobre o sistema económico e financeiro nacionaP0, o segredo bancário sofreu um ataque cerrado, em particular através de comportamentos assumidos ao arrepio da moldura jurídica vigente31. Daí que, perante o sentimento de incerteza que passou a grassar ao nível da banca, gerador de um ambiente propício à fuga de capitais para o estrangeiro, se haja tornado indispensável e, sobretudo, urgente adoptar medidas susceptíveis de fomentar quer a recuperação do sector bancário, quer o restabelecimento de um clima de confiança e estabilidade do sistema financeiro. Tratava-se, afinal, de um esforço que não podia deixar de ser feito sem o reforço legal da tutela conferida ao segredo bancário. Com este propósito a Lei Orgânica do Banco de PortugaP2 veio proibir aos membros dos conselhos de administração, auditoria e consultivo, bem como aos demais funcionários, a revelação de factos ou elementos cujo conhecimento lhes advinham em exclusivo do exercício das funções, exceptuados os que se destinavam a divulgação pública. Acresce que o legislador, além de haver estabelecido o sigilo bancário, considerou ainda que tal obrigação prevalecia quando confrontada com o dever de colaboração com a administração da justiça, tornando possível aos funcionários bancários recusarem-se a depor ou prestar declarações, em juízo ou fora dele, sobre factos ou elementos abrangidos pelo segredo profissional. Mais tarde, o Decreto-Lei no 729-F /75, de 22 de Dezembro, que estabeleceu as Bases Gerais das Instituições Bancárias recém-nacionalizadas, abraçou também em efinitivo o segredo bancário como segredo profissionaP3 / 34, reafirmando a sua

°Foi a devassa e publicação de contas bancárias no chamado "período revolucionário em

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curso, de 1974 e 1975. Como refere Maria Célia Ramos, O Sigilo Bancário em Portugal - Origens, Evolução e Fundamentos, ob . cit., pp. 125 e ss., a partir de finais de 1974 e no decurso de 1975, passou a ser prática corrente a" devassa das contas bancárias, vendo-se publicados em letra de forma, os movimentos bancários de personalidades das áreas financeiras, empresariais ou tão só figuras públicas, comentando-se nos órgãos de informação os montantes, a proveniência dos fundos, o seu fundamento, os pedidos de empréstimos, os motivos da sua concessão ou recusa, etc." 32 Cf., Decreto-Lei n° 644/75, de 15 de Novembro. 33 Cf., Artigo 7°. 34 Digamos que foi a sua inclusão no campo penalístico que lhe imprimiu esse carácter, uma vez que já de há muito as convenções colectivas de trabalho dos bancários previam a obrigação contratual, tipicamente profissional, de guardar segredo. Tinha-se, em suma, um segredo profissional para os operadores bancários individualmente considerados e um silêncio legislativo quanto aos bancos como entidades que exercem profissionalmente o crédito. A este propósito, cf., Alberto Luís, Direito Bancário, ob. cit., p . 99; A di Amato, Il segreto bancário, Università di Camerino, 1989, pp. 176 e ss; Cuido Ruta, Il fondamento giuridico del segreto bancaria, in: Banca, Borsa e Titoli di Credito, ob. Cit., pp. 318 e ss. 31

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primazia, designadamente perante o dever de colaboração com a justiça. No entanto, tal não constituiu óbice a que os tribunais e as autoridades policiais persistissem em requisitar o acesso a elementos e informações bancárias sigilosas. Aliás, com o propósito de contornar a prevalência do segredo bancário, foi mesmo posto de pé um esquema em que os pedidos de colaboração eram apresentados pela Inspecção-Geral de Créditos e Seguros (IGCS) que, no exercício dos poderes de gestão e fiscalização bancária35, solicitava às instituições de crédito os elementos e informações. Tratou-se afinal de uma prática que continuaria, mesmo após a extinção da IGCS e a consequente assunção das suas funções pelo Banco de Portugal. Nesta senda, atenta a intenção evidente de reconstruir a tutela do segredo bancário, foi precioso o contributo, sobretudo de índole política, dado pela Resolução do Conselho de Ministros, de 30 de Dezembro de 197536, em que se assinalou que o sigilo e a ética bancária eram garantidos para salvaguarda dos interesses dos depositantes, provocando o seu eventual incumprimento a aplicação de sanções previstas na lei. À data, não obstante os desenvolvimentos legislativos entretanto operados, continuava a sentir-se a falta de um diploma de âmbito geral que, em detrÍII}I=nto das referências avulsas, fosse capaz não só de emprestar um carácter sistemático à matéria do sigilo bancário, mas também de promover a unidade do tratamento da respectiva tutela legal. Uma lacuna suprida pelo Decreto-Lei n° 2/78, de 9 de Janeiro, que, ao debruçar-se sobre aspectos nucleares do segredo bancário37, concedeu-lhe uma forte protecção. Nesta medida, tendo começado por conceptualizar o sigilo bancário, não deixou de sistematizar e unificar a sua disciplina, reforçando-o ao máximo, como é visível na larga extensão do dever, nas poucas excepções admitidas ao seu levantamento e, ainda, nas duras consequências em caso de violação38• Deste modo, o segredo bancário passou a abranger explicitamente as instituições de crédito não nacionalizadas e seus agentes39, ao mesmo tempo que a

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Estavam em causa poderes cometidos pelo Decreto-Lei n° 46.493, de 18 de Agosto de 1965. Foi igualmente importante a reformulação do artigo 290° do Código Penal de 1886, levada a cabo pelo Decreto-Lei n° 475/76, de 16 de Junho. 37 Aspectos essenciais do segredo bancário, como a definição do seu âmbito objectivo e subjectivo, as consequências legais da sua violação e os respectivos limites, A este respeito, cf., Noel Gomes, Segredo Bancário e Direito Fiscal, ob. cit.., p. 28; António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, Coimbra, Almedina, 2006, p. 262. 38 Cf., Rabindranath Capelo de Sousa, O Segredo Bancário. Em especial, face às alterações fiscais da Lei 30-G/2000, de 29 de Dezembro, ob. cit., p. 62. 39 Cf., art. 0 1°, no 1 do Decreto-Lei no 2/78. 36

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sua violação40 relevava sob a forma consumada ou tentada 41, podendo ter expressão quer na revelação, quer no aproveitamento dos dados cobertos por sigilo42 . A legislação de 1978 admitia igualmente a dispensa de observância do dever de sigilo, ora por meio de autorização da instituição de crédito43 / 44, quanto a factos da vida desta, ora do cliente, mediante transmissão à instituição45 / 46, relativamente a elementos das relações cliente-instituição de crédito. Pelo sentido e alcance, o segredo bancário não apresentou por conseguinte uma natureza absoluta, antes cedendo face a deveres de informação, estatística ou de outra natureza que, à luz da legislação vigente, impendessem sobre as instituições de crédito47 / 48• 40

À luz do Decreto-Lei no 2/78 (art.o 1°, n° 1), o incumprimento do dever de sigilo bancário, além de fazer incorrer o infractor em responsabilidade civil e disciplinar, era ainda punível criminalmente nos termos do art. 0 290°, § 1°, do Código Penal. 41 Cf., Artigo 3° do Decreto-Lei n° 2/78. 42 Estavam sujeitos a segredo, mormente, os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos, operações bancárias, cambiais e financeiras realizadas, licenciamento de operações concedidas e elementos relativos a processos em curso na Inspecção de Crédito do Banco de Portugal. 43 Afinal, exigia-se lei própria para a quebra do segredo bancário, tendendo os tribunais a interpretar restritivamente o art. 0 5° do Decreto-Lei n° 2/78, não admitindo designadamente a aplicação das regras de colisão de direitos. A este propósito, Anselmo Rodrigues, Sigilo Bancário e Direito Constitucional, in: Sigilo Bancário, Instituto de Direito Bancário, Lisboa, Edições Cosmos, 1997, p. 55. 44 Como sublinham Maurice Aubert, Jean-Philippe Kernen e Herbert Schonle, Le Secret B~hcaire Suisse, Bern, Editions Staempfli, 1982, p. 76, " o papel do segredo profissional do banqueiro situa-se no limite dos direitos de personalidade e da necessidade de informar certos sectores do poder público, para que estes possam, bem entendido no interesse da sociedade, exercer as funções que lhes são atribuídas". 45 O segredo bancário, instituído para protecção de interesses públicos e tutelado por via estadual, podia porém ser levantado por iniciativa dos próprios interessados, nos termos do art. 0 2°, n°S 1 e 2. 46 A solução estabelecida foi considerada forte, no confronto com os múltiplos sistemas de tutela do sigilo bancário. Assim, perante a recusa do próprio, apenas era possível aceder à informação nos casos em que lei especial o permitisse e mediante decisão do Tribunal. A este respeito, PGR, Proc. n° 138/83, de 5 de Abril, BMJ, n° 342, 1985, pp. 55 e ss. 47 Afinal, exigia-se lei própria para a quebra do segredo bancário, tendendo os tribunais a interpretar restritivamente o art. 0 5° do Decreto-Lei n° 2/78, não admitindo designadamente a aplicação das regras de colisão de direitos. A este propósito, Anselmo Rodrigues, Sigilo Bancário e Direito Constitucional, in: Sigilo Bancário, Instituto de Direito Bancário, Lisboa, Edições Cosmos, 1997, p. 55. 48 Como sublinham Maurice Aubert, Jean-Philippe Kernen e Herbert Schonle, Le Secret Bancaire Suisse, Bern, Editions Staempfli, 1982, p . 76, " o papel do segredo profissional do banqueiro situa-se no limite dos direitos de personalidade e da necessidade de informar certos sectores do poder público, para que estes possam, bem entendido no interesse da sociedade, exercer as funções que lhes são atribuídas".

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Então, a definição do preceituado não se revelou pacífica, havendo suscitado dúvidas sobretudo em matéria de compatibilização do segredo bancário com o dever de colaboração com a administração da justiça e a Administração tributária49 . Porém, a evolução subsequente ficou marcada por um certo enfraquecimento do segredo bancário, uma debilitação sentida perante o Estado, atentas as exigências policiais e tributárias de quebra do sigilo, não, propriamente, em face dos particulares. Nesta linha, o Decreto-Lei n° 298 I 92, de 31 de Dezembro, em substituição do Decreto-Lei n° 2/78, ao aprovar o Regime Geral das Instituições de Crédito e das Sociedades Financeiras (RGICSF), procedeu a uma regulação mais aperfeiçoada do segredo bancário50 . Segundo o novo quadro normativo, que configura o actual regime jurídico português do segredo bancário, estão subordinados à norma geral impositiva de sigilo os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus funcionários, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional, no tocante a informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes, cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços"51 • Um critério funcional, complementado com uma enumeração exemplificativa, de que constam, entre outros, os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos, bem como outras operações bancárias52 • Idêntico dever recai também sobre as autoridades de supervisão e, bem assim, as autoridades, organismos e pessoas que participam na troca de informações, como a Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários (CMVM) ou o Instituto de Seguros de Portugal53 •

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Deixando as relações com a Administração tributária para momento ulterior, sublinhamos desde já que, em sede de colaboração com a administração de justiça, a PGR, em Parecer de 30 de Novembro de 1979, in: DR, II Série, de 24.02.1979, concluiu que o dever de sigilo bancário só deveria ceder perante o dever de informação consagrado na lei e que, nessa data, no direito português não havia disposição legal que o previsse e impusesse às instituições de crédito relativamente às autoridades judiciárias e policiais quanto a factos cobertos por sigilo. Acolhia-se, portanto, a designada teoria do paralelismo. Como assinala Alberto Luís, Direito Bancário, ob. cit., p. 109 e ss., o dever de informar as autoridades judiciais e policiais emergiu como uma obrigação em relação às entidades competentes para o inquérito ou a instrução, não para o julgamento, significando que persistia o impedimento de depor como testemunhas. E assim, nem na Suíça a justiça estava de tal maneira manietada 50 Cf., Fernando Conceição Nunes, Os deveres de segredo profissional no regime geral das instituições de crédito e sociedades financeiras, Rev. Banca, n° 29, 1994, pp. 39 e ss. 51 Cf., Artigo 78° do Decreto-Lei n° 298/92, de 31 de Dezembro. 52 Cf., Anselmo da Costa Freitas, O Sigilo Bancário, ob. cit., pp. 9 e ss. 53 Cf., Artigos 80° e 81° do Decreto-Lei n° 298/92, de 31 de Dezembro.

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O segredo bancário, da forma como está concebido pelo legislador, não surge enquanto um direito absoluto, ou seja, um direito insusceptível de sofrer restrições em todo e qualquer caso, independentemente dos bens e interesses que com ele conflituem. Neste âmbito, prevêem-se, além da revelação permitida mediante autorização do cliente, excepções através das quais se aceita a revelação a terceiros dos elementos cobertos por sigilo. Um leque taxativo de derrogações alicerçadas sobretudo em razões de interesse público que, fruto de uma ponderação levada a cabo pelo legislador, é prevalecente sobre o dever de sigilo. No plano das excepções, cumpre distinguir entre as revelações de pendor institucional, designadamente ao Banco de Portugal, à CMVM ou ao Fundo de Garantia de Depósitos54 / 55, e as revelações previstas na lei, seja, em diplomas penais, seja de carácter fiscal. Em consequência, a violação do dever de segredo bancário, entendida como revelação e/ ou aproveitamento fora dos casos admitidos, é considerada pela ordem jurídica como um acto ilícito, incorrendo o infractor, simultaneamente, em responsabilidade civil e penal56 •

3. O Segredo Bancário e a Fiscalização Tributária 3.1. Introdução

Tomando como principal marco a Lei Geral Tributária (LGT) 57, é possível distinguir e identificar um período anterior, caracterizado não só pela escassez de r ferências normativas às implicações tributárias do segredo bancário, mas também pela sua dispersão por vários diplomas legais, sendo visível ainda a ausência de preocupação em dar forma a um corpo minimamente organizado e 54

Cf., Artigo 79° do Decreto-Lei n° 298/92, de 31 de Dezembro. Como refere Jorge Patrício Paul, O Sigilo Bancário e a sua Relevância Fiscal, ob. cit., pp. 577-578, a alínea e) do artigo 79°, n° 2 do RGICSF prevê que os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo possam ser revelados "quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo". Deve entender-se que existirá limitação ao sigilo bancário, nos termos desta alínea, sempre que o conflito entre esse sigilo e outro dever tenha sido ponderado pelo legislador e a norma em causa solucionado tal conflito, impondo o sacrifício do dever de segredo. 56 Cf., Germano Marques da Silva, Segredo bancário: da tutela penal na legislação portuguesa, ob. cit., pp. 35 e ss. Como destaca António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, ob. cit., pp. 263-264, tem interesse relevar os preceitos penais que delimitam o dever de segredo. Quanto ao Código Penal, no art. 0 195°, na versão aprovada pelo Decreto-Lei n° 48/95, de 15 de Março, desapareceu a anterior exclusão de ilicitude, prevista no revogado artigo 185° do Código Penal. Assim, da reforma de 1995, resultou um reforço da tutela penal do segredo profissional e, para o caso, do segredo bancário. 57 Aprovada pelo Decreto-Lei n° 398778, de 17 de Dezembro. 55

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coerente. Mas na v1gencia da LGT, não obstante continuarem a persistir as referências de carácter avulso, assistiu-se já à criação de um conjunto normativo sistematizado, aplicável de forma indistinta à generalidade das relações jurídicotributárias. E mais tarde, o XIV Governo Constitucional, aproveitando a estrutura legal introduzida pela LGT, veio a operar uma flexibilização progressiva no que tange ao acesso a informações bancárias de cunho sigiloso. Então, ficou-se a saber que o Governo iria assumir e seguir as orientações que sobre a matéria haviam sido definidas no Relatório Silva Lopes, que preconizara uma posição gradualista no sentido em que admitia o levantamento do segredo bancário em determinadas condições. 3.2. Antes da Lei Geral Tributária

Após o 25 de Abril de 1974, o primeiro diploma relevante para o presente

iter analítico foi o Decreto-Lei no 363/78, de 28 de Novembro, que promoveu a reestruturação orgânica da DGCI, tendo atribuído à Administração tributária amplos poderes de fiscalização e exame58 / 59 • Neste contexto, as funções previstas, caso o contribuinte recusasse permitir o fornecimento das informações, só podiam ser exercidas quando ordenadas pela autoridade judicial competente, em pedido fundamentado pelo funcionário da fiscalização tributária requerendo a quebra de sigilo. Assim, os vastos poderes de fiscalização tributária, na ausência de qualquer ressalva expressa ao dever de sigilo bancário, à época regido pelo Decreto-Lei n° 2/78, de 9 de Janeiro, não podiam sobrepor-se a este último, pelo que os representantes das instituições de crédito deviam recusar-se a revelar os factos cobertos pelo dever de segredo, não obstante o seu interesse para a Administração fiscal. Nesta medida, suscitou-se o problema de saber se os poderes implicavam, ou não, a derrogação do dever de sigilo bancário, questionando-se se estava em causa um dever de informação ou de outra natureza das instituições de crédito, subsumível à previsão do mesmo normativo. À matéria a PGR respondeu negativamente, defendendo que as informações protegidas pelo segredo "estão fora do alcance dos poderes de exame da DGCI, por força do dever de sigilo bancário" 60 • 58

Para desenvolvimentos quanto à disciplina estabelecida por este diploma, Noel Gomes, Segredo Bancário e Direito Fiscal, ob. cit., pp. 231 e ss.; Jorge Patrício Paul, O Sigilo Bancário e a sua Relevância Fiscal, ob. cit., pp. 578-579. 59 As instituições de crédito, quer na qualidade de contribuintes, quer na de obrigados fiscais, ficaram, naturalmente, sujeitas à fiscalização da DGCI. 60 Cf., PGR, Parecer n° 183/83, de 5 d Abril de 1984. Este entendimento foi sufragado por Jorge Patrício Paúl, O Sigilo Bancário- sua Extensão e Limites no Direito Português, Rev. Banca, n° 12, 1989, pp. 77-78; Maria Margarida Mesquita, A protecção da confidencialidade em matéria fiscal, in: CTF, n° 364, Lisboa, MF-DGCI, 1991, pp. 225-226

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Ora, uma vez que a lei consagrava formalmente o dever de sigilo, a sua dispensa ou derrogação não podia deixar de emergir, de modo semelhante e transparente, de uma disposição legal que acolhesse expressamente e sem ambiguidades um dever de informação incidente sobre as instituições de crédito, circunstância que, porém, não se verificava com o diploma em apreço. Deste modo, perante a ausência de regime derrogatório, importava concluir que a Administração tributária não dispunha do poder de acesso aos dados protegidos pelo segredo bancário, a menos que, conforme o Decreto-Lei n°2/78, os órgãos de direcção das instituições de crédito ou os próprios clientes autorizassem a respectiva revelação, bem como na hipótese de recurso a providência judicial. Outro diploma relevante em sede das relações entre a Administração fiscal e o segredo bancário foi o Decreto-Lei n° 513-Z/79, de 27 de Maio, que, ao proceder à reestruturação da Inspecção-Geral das Finanças (IGF), atribuindo-lhe um leque de prerrogativas muito próximas das previstas para a DGCI., estatuiu claramente que as instituições bancárias estavam obrigadas a fornecer os elementos solicitados pelas autoridades fiscais 61 • Neste quadro, a diferença mais relevante residia no facto de, no caso da IGF, não estar prevista legalmente a faculdade de recurso ao tribunal, pelo que, em caso algum seria exigível a prestação de informações sujeitas a segredo bancário. Tal como tinha ocorrido em relação aos poderes cometidos à DGCI, a PGR veio sustentar também, no mesmo parecer e reiterando os argumentos aduzidos, que "o dever de sigilo bancário não sofreu derrogação imediata, por força dos poderes de fiscalização e exame reconhecidos à Administração Fiscal pelo Decreto-Lei no 513-Z/79. , Diversa, no entanto, a opinião do Tribunal Constitucional62, que considerou a n , rma constante do artigo 57°, n° 1, alínea e) uma verdadeira restrição ao segredo bancário, pronunciando-se pela sua inconstitucionalidade63 com base no argumento de que, tratando-se de matéria de direitos, liberdades e garantias, 61

No período anterior ao 25 de Abril, o ordenamento jurídico português contemplava alguns normativos que se referiam às relações entre a Administração fiscal e as informações protegidas por segredo bancário. Assim acontecia com o Código de Imposto de Capitais, em que se cometiam à DGCI poderes de fiscalização do cumprimento de obrigações fiscais que recaiam sobre as instituições de crédito de deduzirem e efectuarem o pagamento de imposto dos rendimentos de depósitos a prazo. Ora, estes poderes de fiscalização tinham justamente como limite o dever de segredo, que não era, porém, inultrapassável, na medida em que estava prevista a possibilidade da DGCI solicitar à IGF ou à Inspecção-Geral de Créditos e Seguros a realização de exames à escrita dos contribuintes ou responsáveis pelo pagamento de imposto. A este respeito, Noel Gomes, Segredo Bancário e Direito Fiscal, ob. cit., pp. 230-231. 62 Cf., Acórdão no 278/95, de 31 de Maio, BMJ, n° 451, de 1995, pp. 114-128. 63 O juízo de inconstitucionalidade não incidiu sobre a norma em abstracto, antes sobe um determinado segmento interpretativo. A este respeito, Noel Gomes, Segredo Bancário e Direito Fiscal, ob. cit., p. 235.

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devia ter sido elaborado directamente pelo Parlamento ou pelo Governo mediante a emissão de uma autorização legislativa64 • Todavia, ao contrário desta posição, tem-se entendido que tanto o Decreto-Lei n° 513-Z/79, como o Decreto-Lei no 363/78 encerram apenas normas de carácter organizativo, definidoras de atribuições e competências de natureza genérica, deles estando naturalmente ausentes preceitos susceptíveis quer de derrogar a observância do sigilo, quer de impor, sem ambiguidades, uma obrigação inequívoca de informação. Por conseguinte, devia continuar a prevalecer o dever de segredo, mesmo para as situações regidas pelos dois diplomas 65 • 3.3. Na Lei Geral Tributária

A dialéctica entre o dever de segredo bancário e o exercício das competências da Administração tributária não podia passar ao lado da LGT, em que se definem os princípios gerais regentes do direito fiscal português, os poderes da Administração e as garantias dos contribuintes. E neste contexto, a LGT ocupa-se da questão do sigilo bancário a propósito dos benefícios fiscais, por um lado, e, por outro, dos poderes de fiscalização e inspecção da Administração fiscal. Em sede de controlo dos benefícios fiscais, dispõe o artigo 14°, no 4 que "os titulares de benefícios fiscais de qualquer natureza são sempre obrigados a revelar ou a autorizar a revelação à Administração tributária dos pressupostos de concessão, ou a cumprir outras obrigações previstas na lei, nomeadamente as relativas aos impostos sobre o rendimento, a despesa ou património, ou às normas do sistema de segurança social, sob pena de os referidos benefícios ficarem sem efeito" 66 • Trata-se de um normativo que, ao arrepio do que podia resultar numa

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No Acórdão, entre outras lúcidas considerações formuladas na defesa da privacidade constitucionalmente protegida, pode ler-se: "na sociedade moderna uma conta corrente pode constituir uma verdadeira biografia em números". A este respeito, Augusto de Athaíde, Curso de Direito Bancário, vol. I, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 515. Embora reconheça que o segredo bancário não é um direito absoluto, podendo, portanto, sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, o Tribunal vai mesmo ao ponto de considerar o segredo bancário como uma dimensão do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar. No entanto, o Tribunal, neste acórdão, acabou por não apreciar nenhuma questão de inconstitucionalidade material, pois ficou prejudicada pela existência de uma inconstitucionalidade orgânica. 65 Esta foi a doutrina ínsita no Parecer da PGR, de 5 de Abril de 1984, in: DR, II Série, de 11 de 11-04-1985, pelo qual "o dever de sigilo bancário não sofreu derrogação imediata, por força dos poderes de fiscalização e exame conferidos à Administração Fiscal", através do Decreto-Lei no 363/78, de 28 de Novembro e Decreto-Lei no 513-Z/79, de 27 de Dezembro. 66 Segundo a redacção introduzida pelo Decreto-Lei n° 229/2202, d 31 de Outubro.

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análise meramente apriorística 67, não formula uma restrição do segredo bancário, nem legitima uma possível derrogação pela Administração tributária. Reforça antes o dever de colaboração dos contribuintes, cominando a sua falta com a extinção dos benefícios por impossibilidade de comprovação dos pressupostos de que depende a respectiva atribuição. Deste modo, a questão acaba por estar associada à amplitude desta colaboração, sendo legítimo indagar se envolve a obrigação dos contribuintes consentirem o acesso a informações cobertas pelo segredo bancário ou, pelo contrário, este constitui uma fronteira natural 68 . A este respeito, alguma Doutrina entende que o dever de colaboração não há-de nunca pôr em causa o dever de sigilo profissional. Outro segmento doutrinal, porém, defende que o contribuinte não há-de recusar a divulgação de elementos de informação bancária, imprescindíveis para comprovação dos pressupostos da atribuição de benefícios fiscais 69 • Mas mesmo para os que não consideram o dever de segredo como um limite ao dever de colaboração, a respectiva derrogação, porventura necessária para o controlo da verificação dos pressupostos dos benefícios fiscais, não seria decorrência directa do artigo 14°, n° 4, da LGT, antes de outros preceitos, como o artigo 63°, ou de consentimento do próprio contribuinte 70 • Por sua vez, no que concerne aos poderes de fiscalização, o art.0 63° da LGT dispôs, na versão inicial, que os órgãos competentes podem desenvolver todas as diligências necessárias ao apuramento da situação tributária dos contribuintes, clarificando que o acesso a informação protegida pelo sigilo profissional, ou outro dever qualquer legalmente regulado, estava dependente de autorização prévia de autoridade judicial, nos termos da legislação aplicáveFl. 1 Ao estabelecer que o acesso a informação bancária protegida pelo sigilo está dependente de autorização judicial, a LGT, em lugar de fazer um corte com o passado, acabou por consolidar a orientação tributária ínsita no Decreto-Lei n° 363/78. Na segunda metade da década de noventa, o XIII Governo Constitucional proclamou a necessidade de uma nova reforma fiscal, considerando que o sistema vigente, ao representar um modelo ainda inacabado, nem servia os interesses do Estado, por não constituir um meio eficaz de gestão da política económica, 67

Sufragamos a posição de Noel Gomes, Segredo Bancário e Direito Fiscal, ob. cit., p. 254. É a posição largamente sufragada entre nós. Por todos, Nuno Sá Gomes, Os Benefícios fiscais da Lei Geral Tributária, in: Problemas Fundamentais de Direito Tributário, Lisboa, Vislis Editores, 1999, pp. 106 e ss. 69 Cf., António Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária- Anotada, Lisboa, Rei dos Livros, 2001, pp. 291 e ss.; Maria Celeste Cardona, Breves Apontamentos sobre o Novo Regime do Levantamento do Segredo Bancário, in: Os Efeitos da Globalização na Tributação do Rendimento e da Despesa, in: Colóquio, CCTF, n° 188, Lisboa, MF-DGCI, 2000, pp. 502 e ss. 7 °Cf., Neste sentido, Noel Gomes, Segredo Bancário e Direito Fiscal, ob. cit., pp. 255 e ss. 71 Cf., A Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, ob. cit., pp. 278 e ss. 68

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nem era justo, pelas iniquidades e ineficiências que lhe eram assacadas 72 • Assim, impunha-se uma reforma tributária que iria limitar o segredo bancário, como forma de reduzir uma alegada fuga fiscal, demagogicamente apresentada como sendo a causa do défice das contas públicas73 • Todavia, em 2000, decorridos mais de três anos sem que nada de significativo tivesse acontecido em termos de concretização dos objectivos de redefinição da política fiscal, reiterando-se, bem pelo contrário, a prática tradicional de realizar reformas pela via orçamental, o Governo anunciou um novo ciclo reformista. Para tanto procedeu à criação da Estrutura de Coordenação da Reforma Fiscal (ECORFI), virada para a tributação do rendimento das pessoas singulares e das pessoas colectivas, bem como para o combate à evasão e fraude fiscais, enunciando no âmbito destas últimas dois objectivos: um primeiro, respeitante à inversão do ónus da prova e um segundo, atinente a derrogações do segredo bancário. Na sequência dos trabalhos desenvolvidos, o Executivo aprovou a Lei n° 30-G/2000, de 29 de Dezembro, que apresentou como uma verdadeira reforma fiscaF 4, mas cuja qualificação não deixou de ser questionada, aliment'}Pdo ' 72

Em meados da década de noventa havia-se começado a formar em Portugal um justificado consenso de que o nosso sistema fiscal, saído da meritória reforma de 1988-1989, necessitava de novo de profundas alterações, como sublinha Luís Máximo dos Santos, A Reforma da Tributação do Rendimento de 2000: o Reforço do Carácter Unitário do IRS e a Tributação das Mais-Valias Mobiliárias, Fisco, n°S 99/100, 2001, p.18, tão evidentes eram os seus desajustamentos e iniquidades. A título elucidativo, refira-se um grave problema de falta de equidade, como demonstra o facto de, na tributação do rendimento das pessoas singulares, quase 90% da carga tributária recair sobre os trabalhadores por conta de outrem e os pensionistas; por outro, o imperativo constitucional da unidade e progressividade da tributação do rendimento das pessoas singulares era cumprido de uma forma muito deficiente. Daí que a fraude e a evasão atingissem elevadas proporções, aumentando a iniquidade e falseando a concorrência, além de tornarem o esforço fiscal mais pesado para os contribuintes cumpridores. Era imperioso, ainda, melhorar certos aspectos relativos à tributação da família, designadamente conferindo-lhe uma maior protecção através do aumento de certas deduções à colecta. Por fim, era notório que qualquer esforço reformador tinha de envolver profundamente a Administração fiscal, como objecto e como sujeito, uma vez que sem maior eficiência da sua acção grande parte do esforço poderia ser em vão. Neste sentido, do mesmo Autor, Os Desenvolvimentos Posteriores à Reforma Fiscal de 1988/89, in: 15 Anos da Reforma Fiscal de 1988/89, Coimbra, Almedina, 2005, p. 59, sobre a consciência dos cidadãos, em finais da década de noventa, a propósito do elevado grau de iniquidade e ineficiência que vinha caracterizando o sistema fiscal; Rogério Fernandes Ferreira, Reflexões Dispersas, Fisco, n° 95/96, ano XII, 2001, p. 33. 73 Neste sentido, António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, ob. cit., p. 279. 74 Tratou-se de um processo de reforma fiscal que, encetado com a aprovação pela Assembleia da República das Leis n°S 30- F e 30- G/2000, ambas de 29 de Dezembro, veio

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profundas divergências de opinião75 j76• Em sede de sigilo bancário, a Lei, que se fez eco das recomendações da Comissão para o Desenvolvimento da Reforma FiscaF7 j78, estabeleceu um novo regime sobre o acesso a informação bancária por parte da Administração tributária, firmada na ampliação substancial das possibilidades de levantamento e na flexibilização do sigilo no domínio fiscal, configurando afinal uma nova orientação consolidada na LGT79 • Assim, o artigo 63°, mantendo a redacção do no 1 quanto aos poderes de inspecção dos órgãos da Administração fiscal no exercício das funções de apuramento da situação tributária dos contribuintes, contemplou no no 2 uma importante mudança, ao admitir a possibilidade, nas situações previstas na lei, de existir derrogação do dever de segredo sem necessidade de autorização judicial. Trata-se de uma medida de constitucionalidade duvidosa 80, não sendo evidentes as razões que levam a Administração a não passar por um juiz, tanto "mexer" com a tributação do rendimento e adoptar um importante leque de medidas destinadas a combater a evasão e a fraude fiscais . 75 A Lei n° 30-G/2000, de 29 de Dezembro foi considerada um "erro de política fiscal", uma vez que realizada, do ponto de vista da situação económica, a contra ciclo; foi também aprovada em contra-ciclo ao ciclo das reformas que feitas nos demais parceiros comunitários. Saldou-se ainda por um erro, na medida em que, após a respectiva aprovação parlamentar, foram suscitadas as maiores dúvidas de interpretação sobre o modo da respectiva aplicação. Neste sentido, Maria Celeste Cardona, Uma Política Fiscal para o Século XXI: Contributos para uma Reforma, ob. cit., p . 34, 76 Uma reforma que, segundo Pina Moura e Ricardo Sá Fernandes, A Reforma Fiscal Inadiáv ' l, ob. cit., p . IX, evidenciou a marca política e ideológica de um Governo do Partido Socialista. A este respeito, secundamos a posição de Paulo de Pitta e Cunha, Públicas e Direito Fiscal, ob. cit., pp. 20: "creio que melhor seria que uma reforma não ostentasse marcas deste tipo, que até podem afectar a sua durabilidade, pois semelhantes afirmações podem suscitar, por parte dos partidos que se sucedem no poder, o desejo de aporem também a sua marca, praticando alterações eventualmente desnecessárias" 77 A Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal (Comissão Silva Lopes) dedicou ao sigilo bancário uma parte importante- todo o capítulo 9- do seu extenso Relatório, publicado em Abril de 1969. Cf., Relatório da Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal, CCTF, n° 191, Lisboa, MF-DGCI 78 Cf., Jorge Patrício Paul, O Sigilo Bancário e a sua Relevância Fiscal, ob. cit., pp. 591-594. 79 Sobre uma análise detalhada dos artigos 63°, 63°-A, 63°-B e 64°-A da LGT, na sequência da reforma de 2000, Paula Elisabete Henriques Barbosa, Do Valor do Sigilo - o Sigilo Bancário, sua Evolução, Limites. Em Especial o Sigilo Bancário no Domínio Fiscal - a Reforma Fiscal, in: Rev. FDL, vol. XLVI- no 2, 2005, pp. 1259 e ss. ; José Casalta Nabais, Direito Fiscal, Coimbra, Almedina, 4 edição, 2008, pp. 496 e ss. 80 A este respeito, António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, ob. cit., pp. 279280, aponta que "basta ver que se pretende reduzir a um tema fiscal algo que se prende visceralmente com os direitos fundamentais. No século XX, essa defesa não passa pela proibição de torturas ou de confissões, de puro relevo histórico; processa-se, sim, no controlo do Estado e na vida e sossego privados de cada um.

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mais que podia prever-se para o efeito um processo acelerado. Por seu turno, o artigo 63°-A, relativo ao acesso a informações relativas a operações financeiras, regula a questão da informação automática sobre transferências transfronteiriças, isto é, a informação prestada independentemente de solicitação ou oficiosamente por iniciativa das instituições de crédito e instituições financeiras, sobre todos os eventos enquadráveis nessa previsão normativa, reportados a transferências de Portugal para o estrangeiro ou de sentido inverso. Quanto ao artigo 63°-B, respeitante ao acesso a informações e documentos bancários, acolhe a possibilidade da Administração aceder a informação caso o contribuinte recuse-se a apresentar documentos ou não autorize a sua consulta, uma situação de não colaboração que abre caminho a que a Administração actue unilateralmente, impondo o acesso à informação negada81 / 82 • De realçar por fim o artigo 64° que, embora estabeleça o dever de confidencialidade a nível fiscal, dando espaço a uma importante garantia do contribuinte, pela redacção vaga e indefinida, não permite um juízo de valor sobre as regras especiais de reserva da informação nele anunciadas, mas não devidamente explicitadas83 • Aliás, tais regras deviam constar, em pri eiro lugar, da própria lei, não ficarem remetidas para simples decisões de carácter puramente administrativo e legalidade duvidosa, cujo conhecimento se afigura difícil de obter pela generalidade dos contribuintes. Mais tarde, a temática do acesso da Administração fiscal ao segredo bancário foi uma vez mais alvo de alterações com a Lei n° 55-B/2004, de 30 de Dezembro, que deu uma nova redacção ao artigo 63°-B da LGT, introduzindo alguns ajustamentos no regime legal de acesso a informações e documentos bancários. 81

Este acesso pode ser directo, ou seja, sem dependência de autorização judicial prévia. E uma vez que não é exigido um despacho judicial a autorizar o acesso a informação por natureza sigilosa, a lei enumera, de modo taxativo, os casos em que se justifica. Admitem-se também, o acesso directo à informação bancária mediante a interposição de recurso judicial com efeito suspensivo da decisão de acesso, bem como audição prévia do tribunal nos casos em que se pretenda obter informação bancária respeitante a familiares ou terceiros que se encontrem numa relação especial com o contribuinte. A este respeito, cf., Maria Celeste Cardona, Breves Apontamentos sobre o Novo Regime Jurídico do Levantamento do Segredo Bancário, in: Colóquio "Os Efeitos da Globalização na Tributação do Rendimento e da Despesa, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, ob. cit., pp. 513-516. 82 Um regime demasiado complexo, susceptível de criar dificuldades de aplicação. Neste sentido, J. L. Saldanha Sanches, Sigilo bancário e fiscal, no domínio da Lei n° 5/2002, de 11 de Janeiro, in: Medidas de Combate à Criminalidade Organizada e Económico-Financeira, Centro de Estudos Fiscais, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 67. 83 Sobre o dever de confidencialidade a nível fiscal foi emitida uma larga cópia de pareceres da PGR, como assinala Paula Elisabete Henriques Barbosa, Do Valor do Sigilo - o Sigilo Bancário, sua Evolução, Limites. Em Especial o Sigilo Bancário no Domínio Fiscal -a Reforma Fiscal, ob. cit., pp. 124-127.

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Ajustamentos que vieram emprestar uma relativa flexibilização aos pressupostos do direito de acesso, com sequelas a nível das garantias procedimentais e processuais dos contribuintes Deste modo, permite-se já à Administração fiscal aceder aos elementos bancários que entender, bem como dar as justificações que lhe a prover, sem hipótese de recurso judicial, nem sequer devolutivo 84 • Entretanto, seguindo a mais do que discutível técnica de operar "reformas fiscais" por via do orçamento do Estado, a Lei do OE de 2009 85 veio determinar que os casos de tributação indirecta por desproporção entre o rendimento declarado e o património evidenciado passassem a incluir-se no leque das situações de acesso directo os casos de tributação indirecta, persistindo ao nível mais protegido as designadas situações de tributação por métodos indiciários. Ora, como a experiência tem demonstrado, a maior parte destas discrepâncias não tem subjacente quaisquer irregularidades, antes a existência de patrimónios herdados ou de rendimentos que, por serem tributados exclusivamente por retenção na fonte, não carecem de ser declarados. Abre-se, por conseguinte, a porta a que, em todas estas hipóteses, os contribuintes possam, de forma desproporcionada, ver devassada a sua intimidade privada. Dir-se-á, é certo, que alguns destes exemplos, podem ter subjacentes patrimónios adquiridos à custa de sociedades off-shore, aqui residindo, porventura, a justificação deste novo alargamento dos poderes da Administração. No entanto, hoje tais casos já se encontram abrangidos pela previsão da lei.

4.

~otas

Finais

Um dos factores que mais tem contribuído, em quase todo o mundo, para o enfraquecimento do segredo bancário é a pressão do fisco no sentido de ter poderes que permitam o apuramento tão completo quanto possível de valores que hão-de ser tributados. Em Portugal, a questão continua a suscitar animados debates, confrontandose, por um lado, os partidários da prevalência dos podres do fisco e, por outro, os defensores da manutenção de um segredo bancário forte. Neste cenário, as recentes alterações legais em matéria das relações entre o sigilo bancário e a Administração fiscal vieram criar um regime excepcional face ao que se verifica em outros ramos do Direito, mesmo quando as infracções ou os crimes a investigar são socialmente de grande relevância. Em todas elas continua

Sobre o art0 63°-C refere António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, ob. cit., p. 281, que se tornou uma "verdadeira salada", em resultado das circunstâncias que presidiram à aprovação e à promulgação do Orçamento do Estado para 2005 e ao salto em frente que o então demissionário Governo decidiu dar. 85 Cf., Lei n° 64-A/2008, de 31.12.2008. 84

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a ser sempre indispensável a intervenção de uma autoridade judiciária para que o sigilo bancário seja derrogado. Daí que a derrogação administrativa da obrigação de segredo bancário não devesse ter deixado de constituir uma medida de carácter muito excepcional, apenas aplicável caso o recurso aos tribunais não se mostre viável ou praticável em termos aceitáveis86 . De facto, o acesso directo, sem dependência de autorização judicial prévia, atribui à Administração fiscal um poder forte - porventura excessivo -, tendo presente que esta é parcial na defesa dos interesses económicos e financeiros que representa, ao invés dos tribunais que são instâncias independentes, cuja única tarefa é a salvaguarda do Direito, enquanto complexo de direitos e deveres e eixo basilar do Estado Democrático87 •

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A este propósito, sufragamos inteiramente a posição de José Casalta Nabais, Algumas reflexões sobre a recente reforma fiscal, Fiscalidade, n° 10, 2002, p . 21. 87 Neste sentido, Paula Elisabete Henriques Barbosa, Do Valor do Sigilo- o Sigilo Bancário, sua Evolução, Limites: em Especial o Sigilo Bancário no Domínio Fiscal - a Reforma Fiscal, ob. cit., p. 1271. Na mesma linha, António Menezes Cordeiro, Manual de direito Bancário, ob. cit., p. 357, destaca que o acesso da Administração a informação sobre o contribuinte sem prévio controlo judicial identifica-se com um extraordinário retrocesso na ideia de Estado de Direito e da separação de poderes.

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A MATERNIDADE DE SUBSTITUIÇÃO À LUZ DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE PERSONALIDADE Marta Costa 1 - Catarina Saraiva Lima 2

Resumo: A maternidade de substituição- técnica de procriação medicamente assistida, nos termos da qual uma mulher se dispõe a gerar uma criança no seu útero em benefício e por conta de outrem - é, entre nós, proibida. Objecto de intenso debate e controvérsia, como todas as matérias relacionadas com os "novos mundos" permitidos ao Homem pelo progresso científico, a maternidade de substituição é, por natureza, um tema transversal, polémico e sensível, desde pontos de vista tão variados como a medicina, a ciência, a ética, a biologia, o direito ou a moral. O presente estudo representa apenas uma vertente desta discussão: propomo-nos analisar a figura da maternidade de substituição à luz dos direitos de personalidade consagrados na Constituição da República Portuguesa, em particular, o direito a constituir família, o direito de disposição do próprio corpo e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, temperados pelos princípios do superior interesse da criança, da autonomia privada e da dignidade humana. Na sequência das recentes propostas e discussão da admissibilidade da maternidade de substituição na Assembleia da República, o presente artigo pretende contribuir para a análise da legitimidade da intervenção do Estado nesta matéria, desde uma perspectiva de direitos fundamentais, e reponderar o seu actual enquadramento legal: afinal, perante indivíduos livres e livremente dispostos a celebrar um contrato de maternidade de substituição, deverá ou poderá o Estado proibi-la? Abstract: Surrogacy - a medically assisted procreation technique in which a woman carries a child in her uterus for another person - is illegal in Portugal. A subject of great debate and controversy, like all "new worlds" opening up to 1 2

Professora Auxiliar da Universidade Lusíada de Lisboa; Doutora em Direito; Advogada. Advogada.

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Marta Costa e Catarina Saraiva Lima

humans through scientific progress are, surrogacy is, by its very nature, a broad, contentious and sensitive issue, from such varied perspectives as medicine, science, ethics, biology, law or morals. This study addresses just one aspect of this debate: the analysis of surrogacy from the perspective of the personal rights protected by the Portuguese Constitution, in particular, the right to have a family, the right over one's own body and the right to free personal development, all tempered by the principles of the best interest of the child, free will and human dignity. Further to the recent proposals and discussion in the Portuguese Parliament on whether or not surrogacy should be legalised, this article seeks to contribute to the analysis of the legitimacy of State's intervention in this matter, from the perspective of fundamental rights, and to rethink its current legal framework: after all, when faced with free individuais who are willing to enter into a surrogacy agreement, should or could the State prevent it?

I - Introdução

A maternidade de substituição não é tema incógnito ou sequer original dos tempos modernos. Na verdade, este tema tem sido amplamente romanceado e dramatizado sob diversas formas e meios de entretenimento nas últimas décadas. Em 1990, a cadeia de televisão brasileira Rede Globo transmitiu urna célebre novela com o título "Barriga de Aluguer"3, na qual um casal, que não podia ter filhos, contrata urna mulher para gerar um filho seu, com o material genético de am~os . Na famosa série norte-americana "Friends" (1994-2004) 4, Phoebe Buffay (interpretada por Lisa Kudrow), umas das personagens principais, dá à luz os filhos do irmão. O filme "Baby Mama" (2008) 5 conta a história de uma mulher solteira (interpretada por Tina Fey) que não pode ter filhos e contrata uma rapariga para os ter por ela. Numa outra série norte-americana, "Brothers and Sisters" (2006-2011) 6, o casalgayKevin (Matthew Rhys) e Scotty (Luke Macfarlane) contrata urna "barriga de aluguer", que é inseminada com material genético deste último. Muitos outros exemplos do "fenómeno" poderiam aqui ser enunciados; a própria Bíblia já contava a história de Sara, mulher de Abraão, que pede a este que tenha um filho com Hagar, sua criada, para que, através dela, também Sara se torne mãe 7 • Naturalmente, nenhuma destas histórias é contada sem dramatização: em "Barriga de Aluguer", Clara (a portadora da gravidez), mulher com escassos 3

Barriga de Aluguer teve o seu primeiro capítulo exibido originalmente em 20 de Agosto de 1990. 4 4." Temporada, exibida no canal televisivo norte-americano NBC em 1997/1998. 5 Produzido pela Universal Pictures, escrito e realizado por Michael McCullers. 6 Exibido pela cadeia televisiva ABC, com o seu primeiro episódio em 24 de Setembro de 2006. 7 Génesis, 30, 3.

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recursos económicos, e que trabalha, de dia, como balconista, e de noite, como dançarina, é tomada pelo sentimento da maternidade durante a gravidez, e, após um complicado parto que a deixa infértil, recusa-se a entregar a criança ao casal, apesar de nenhum dos materiais genéticos lhe pertencer; em "Friends", o irmão de Phoebe pede-lhe que aceite gerar os seus filhos porque a mulher com quem está casado, bastante mais velha, já não tem idade para o fazer; a própria Phoebe, que aceitou suportar a gravidez por altruísmo e amor fraterno, chega a ponderar pedir a guarda de um dos trigémeos ao irmão; em "Baby Mama", é comediada a problemática do controlo dos comportamentos irresponsáveis da "mãe de substituição"; e em "Brothers and Sisters", a portadora da gravidez simula um aborto espontâneo e foge do Estado da California, onde todos vivem, para prosseguir secretamente com a gestação, vindo a dar à luz a criança cuja maternidade assume. Estas histórias não são apenas fruto da imaginação e criatividade dos seus autores, e as tramas ficcionadas correspondem, afinal, às reais e complexas problemáticas da maternidade de substituição. Questões como o arrependimento da portadora da gravidez ou dos progenitores durante uma gravidez já em curso, o risco de exploração de mulheres economicamente mais desfavorecidj s, a responsabilidade e fiscalização do comportamento de quem suporta a gravidez ou os limites do recurso a este tipo de técnicas de procriação, como a idade ou a (in) fertilidade, têm a sua correspondência na vida real. Pensar sobre os problemas jurídicos envolvidos na maternidade de substituição implica primeiro revisitar os acontecimentos concretos que a constituem: a maternidade de substituição é um acordo entre uma mulher e um indivíduo ou casal, pelo qual aquela se dispõe, em nome e por conta destes, a gerar uma criança (que poderá ter o seu material genético ou não) no seu útero, a qual, a final, entregará aos beneficiários deste acordo, que assumirão a qualidade de seus progenitores. Por que razão é tão desafiante discutir moral, ética e juridicamente a maternidade de substituição? Porque é que é tão controversa a possibilidade de as pessoas decidirem o modo como podem ter filhos, ainda que a natureza lho impeça? Que valores, afinal, estão em causa? Pode "alugar-se" o útero? E emprestar? Quem devem ser considerados "pais" e como se resolve o conflito entre a maternidade e/ou paternidade genética e a biológica? O que define realmente ser "pai" e ser "mãe"? Cabe ao Estado estabelecer um critério único de filiação? E o que acontece, se a portadora da gravidez se arrepende e decide ficar com a criança, contra a vontade dos "pais"? E se estes pais, que contratam uma "barriga de aluguer", se arrependem a meio da gravidez, e deixam de querer ter um filho? Havendo incumprimento contratual, como resolver? Este contrato é exequível? Como? Devem aceitar-se indemnizações? Com que valor? A criança, que nascerá de todo o modo, com quem fica? Será injusto ou justificado impedir a procriação de mulheres medicamente incapazes de suportar uma gravidez (e dos seus cônjuges ou análogos), quando existem os meios adequados que lho permitem?

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Não há dúvidas de que "[o] desaparecimento de limites naturais à acção humana (... ) exige a destrinça entre o tecnicamente possível e o humanamente desejável" 8 • Com o avanço galopante da ciência na área da reprodução, e a multiplicação de casos reais tão comovedores quanto problemáticos pelo mundo fora, os termos desta destrinça têm sido discutidos na esfera política e na sociedade civil. Recentemente, em Portugal, foram apresentados, na Assembleia da República, por quase todos os partidos aí representados, projectos de lei sobre este assunto: o debate sobre a maternidade de substituição é, à data, actualíssimo 9• Todas as matérias relacionadas com os "novos mundos" permitidos ao Homem pelos avanços e progresso científicos são, por natureza, temas transversais, polémicos e sensíveis, de pontos de vista tão variados como a medicina, a ciência, a ética, a biologia, o direito ou a moral. O presente artigo representa apenas uma vertente desta discussão: propomo-nos levar a cabo o exame da legitimidade da proibição da maternidade de substituição pelo Estado, à luz dos direitos de personalidade consagrados na Constituição da República Portuguesa, que designaremos como direitos fundamentais de personalidade. Pretendemos enquadrar a maternidade de substituição no ordenamento jurídico português, e examinar em que medida este enquadramento é compatível com os direitos dos indivíduos envolvidos. Partindo da análise da autonomia privada, do direito a constituir família (dos beneficiários da gestação), do direito de dispor do próprio corpo (da mulher que se compromete a levar a cabo a gravidez), e do direito ao desenvolvimento da personalidade (de todos os envolvidos), procuraremos averiguar: afinal, perante indivíduos livres e livremente dispostos a celebrar um contrato de maternidade de substituição, deverá ou poderá o Estado proibi-la? I

I II - Enquadramento Legal e Outros Enquadramentos

Maternidade de substituição significa, nos termos da nossa legislação, qualquer situação em que uma mulher se disponha a suportar uma gravidez por conta de outrem, entregar a criança após o parto, e renunciar aos poderes e deveres próprios da maternidade (definição dada pelo número 2 do artigo 8.0 da Lei n. 0 32/2006, de 26 de

8

9

LuísA NETO, "A revisão do conceito de "ordem pública"? Cinco considerações sobre a legitimidade de intervenção do Direito na relação do sujeito consigo mesmo", in Revista Scientia Jurídica, Braga, Tomo LX, N. 0 326, 2011, pp. 331 ss. Recentemente, o próprio Boletim da Ordem dos Advogados publicou vários artigos de opinião sobre a maternidade de substituição: v. "Procriação Medicamente Assistida Liberdade de escolha" (rubrica Perspectivas), por RITA RoQUE DE PINHO, N. 0 87, Fevereiro de 2012; "Maternidade de Substituição" (rubrica Caso do Mês), por ANA IsABEL CABO, "Barrigas de Aluguer" (rubrica Perspectivas), por ALBERTO BARROS, "Maternidade de substituição: Quando a cegonha chega por contrato" (rubrica Perspectivas), por VERA LúCIA RAPOSO, N. 0 88, Março de 2012.

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Julho- Lei da Procriação Medicamente Assistida, doravante designada "Lei PMA") 10 . A maternidade de substituição tem sido um dos temas que mais dificuldades éticojurídicas tem suscitado no âmbito das técnicas de procriação medicamente assistida. Desde logo, o próprio termo "maternidade de substituição" não é isento de crítica, existindo doutrina que rejeita a utilização do vocábulo "substituição", por sugerir que verdadeira maternidade será apenas a maternidade associada com a gravidez e que operaria, nesta situação, uma substituição da verdadeira mãe por uma "não-mãe"11 • São propostas outras denominações, tais como "gestação de substituição", "mãe de gestação", "portadora da gravidez" ou "mãe hospedeira" 12 • 10

A necessidade de intervenção legislativa na matéria foi muito discutida não só no nosso país mas um pouco por todo o mundo. Vários Autores defenderam uma total liberdade para a prática científica, mesmo no que se referia a limites éticos e, consequentemente, a ausência de qualquer intervenção legislativa. Todavia, a corrente doutrinal dominante apresentou-se favorável à intervenção legislativa, essencialmente em nome da segurança jurídica. Diversos Estados-membros da União Europeia consagram, há várias décadas, diplomas legais disciplinadores da procriação medicamente assistida. É o caso.da lei sueca Act on Insemination, de 1985, da Ley sobre Técnicas de Reproducción Asistida espanhola, de 1988, ou das chamadas leis bioéticas francesas, de 1994. Mais rec 1 ntemente, outros legisladores têm seguido esse trilho, como foi o caso do italiano, com a publicação da lei relativa a Norme in ma teria di procreazione medicalmente assistita, de 2004 , e do português. V. MARTA CosTA, Convivência More Uxorio na perspectiva de harmonização do Direito da Família Europeu: Uniões Homossexuais, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pp. 507 ss. V. ainda, para análise detalhada da Lei PMA, CFR. PAULA MARTINHO DA SILVA/MARTA CosTA, A Lei da Procriação Medicamente Assistida Anotada, Colecção PLMJ, Coimbra Editora, Coimbra, 2011. 11 MARTA CosTA, Convivência More Uxorio na perspectiva de harmonização do Direito da Família Europeu: Uniões Homossexuais, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p . 525. 12 MrcHELE SESTA elenca três formas de maternidade de substituição, a saber: (i) doação de ovócitos a favor de uma mulher que leva ao fim a gravidez, para ter um filho "próprio"; (ü) caso em que o marido fecunda o ovócito de uma mulher que não a cônjuge, com autorização desta, mulher que levará a gravidez até ao fim, comprometendo-se a entregar a criança ao casal aquando do seu nascimento; (üi) embrião formado in vitro com material genético do casal interessado e posteriormente implantado no útero de uma terceira mulher que se compromete a levar até ao fim a gravidez e a entregar a criança ao casal ("Norme impera tive, ordine pubblico e buon costume: sono leciti gli accordi di surrogazione?", in La nuova Giurisprudenza Civile Commentata, II, 2000, p . 203, nota de rodapé n. 0 1). Sobre esta problemática, v. também GuiLHERME DE OLIVEIRA, "Aspectos jurídicos da procriação assitida",in Temas de Direito da Medicina, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p . 26; MARIA DOMINGO, Las técnicas procreativas y el derecho de familia: incidencia de la reproducción asistida en el matrimonio canonico, Civitas, Madrid, 2002, p. 27; GIANNI BALDINI, Tecnologie riproduttive e problerni giuridici, Giappichelli editore, Torino, 1996, pp. 96 ss; GIOVANNI M. ARMONE, "Procreazione assistita e trattamento degli embrioni umani. Prospettive di regolamentazione", in Rivista critica del diritto privato, 1994, p. 341; PAOLO ZATII, «La surrogazione nella maternità>>, in Questione Giustizia, n. 0 4, 1999, p. 827, nota de rodapé n. 0 9; ALESSIO ANCESCHI, La famiglia nel diritto internazionale

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Esta matéria, embora de reconhecida importância doutrinária, e até de princípio, reveste reduzida utilidade prática, principalmente quando em confronto com as questões complexas de fundo que assistem à maternidade de substituição, denominação que utilizaremos, a par de outras. A maternidade de substituição envolve uma relação contratual estabelecida entre os destinatários finais da filiação da criança (em abstracto, um casal, heterossexual ou homossexual, ou um indivíduo, homem ou mulher, heterossexual ou homossexual), que denominaremos "beneficiários" -são eles que impulsionam o processo de maternidade de substituição, pois é seu o desejo de procriação, e é a eles a quem é acordado entregar a criança, e em favor de quem deverão ser "renunciados" os poderes e deveres próprios da maternidade; e a mulher que se dispõe a suportar a gravidez, doando ou não o seu material genético, e que se obriga, após o parto, a entregar a criança aos beneficiários e a renunciar aos poderes e deveres de maternidade que lhe possam caber - denominada de "mãe de substituição", "mãe de gestação", "portadora" ou "mãe gestacional", entre outros. A maternidade de substituição relativiza as leis da natureza, segundo as quais a maternidade se estabelece, naturalmente, pelo nascimento da criança. Por razões lógicas e de ciência, nunca foi posto em causa que a mãe da criança é quem lhe dá à luz. Reflexo disso mesmo é o critério de estabelecimento de maternidade previsto no Código Civil (no seu artigo 1796.0 ) 13, nos termos do qual, relativamente à mãe, a filiação resulta do facto do nascimento (número 1 daquele artigo). A paternidade, por sua vez, estabelece-se por presunção, através da mãe: presume-se que o pai da criança é o marido da mulher que dá à luz (número 2 do mesmo artigo)14 • Desta lógica nasce o dito popular "As filhas das minhas filhas, minhas netas são; as filhas dos meus filhos, serão ou não". As técnicas de procriação medicamente assistida e, em particular, a maternidade de substituição, vêm disputar estas velhas máximas, per ·tindo que se questione, afinal, o brocardo latino ma ter semper certa est15: afinal, é possível que a mulher que dá à luz não seja sequer a mãe genética da criança. privato, Giappichelli editore, Torino, 2006, p . 200; ADIUANA WAGMAISTER, <<Maternidad subrogada», in Rivista de derecho de familia, n .0 3, 1990, p. 20. 13 A definição legal de maternidade substituição também reflecte este critério, ao referir a "renúncia dos poderes e deveres próprios da maternidade", associando, assim, a maternidade à gravidez e nascimento, e qualificando a entrega da criança aos beneficiários como renúncia- ilegítima- da maternidade. 14 A presunção de paternidade baseia-se numa outra presunção: a da fidelidade dos cônjuges, principalmente a da mulher, por ser biologicamente irrelevante que o homem tenha relações sexuais com outras pessoas. 15 Nas ordens jurídicas italiana e francesa, a mãe da criança pode pretender não ser nominada como mãe, permanecendo anónima, circunstância que constitui uma excepção ao referido brocardo latino. No entanto, em matéria de procriação medicamente assistida, o legislador italiano afastou essa possibilidade, e a mãe da criança nascida com recurso a estas técnicas não pode declarar não pretender ser nominada como tal no registo civil. Esta solução pretende impedir o abuso de direito na modalidade de venire contra factum pmprium. V. PAULA MARTINHO DA SILVA/MARTA CosTA, A Lei da Pmcriação Medicamente Assistida Anotada, Colecção PLMJ, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, anotação ao artigo 8. 0 •

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Na verdade, a criança nascida com recurso a esta técnica poderá ter cinco potenciais progenitores. Basta que nenhum dos beneficiários - aqueles que reconhecerão a maternidade e/ ou paternidade da criança que vier a nascer - tenha contribuído com os seus materiais genéticos (óvulos ou sémen) para a gravidez, nem tão pouco a mãe de gestação. Neste caso, a filiação poderá, em abstracto, ser atribuída a diferentes progenitores, dependendo do critério utilizado: aos progenitores sociais ou afectivos, isto é, aquele ou aqueles que venham a assumir as responsabilidades parentais da criança (os beneficiários), independentemente dos seus vínculos genéticos ou biológicos com a mesma; à progenitora gestacional, isto é, a mulher que suporta a gravidez e dá à luz a criança; ou aos progenitores genéticos, isto é, aos dadores de material genético (óvulos ou sémen). A maternidade de substituição coloca em perspectiva o critério de estabelecimento da filiação, obrigando a perguntar se a maternidade biológica, isto é, aquela que se estabelece pelo nascimento, é mais relevante do que qualquer outra, incluindo, por exemplo, a maternidade genética. É pertinente questionar se o vínculo estabelecido entre a mulher portadora e a criança que aquela gera no ventre é mais relevante do que o vínculo genético, através do qual se transmitem, inclusivamente, traços físicos e de personalidade. Parece que, perante o actual leque de possibilidades de procriação permitidas pela ciência (e, em m . itos casos, também pela lei), o critério de estabelecimento de filiação consagrado no Código Civil- o do nascimento -, elevando o princípio do biologismo sem mais, será insuficiente e inadequado. Note-se que o referido critério do Código Civil traria ainda à colação, no âmbito da maternidade de substituição, um sexto progenitor, totalmente alheio à criança, apesar de prioritário no estabelecimento da paternidade: o marido da progenitora gestacional, por operação da presunção do artigo 1796. 0 , número 2 do Código Civil, acima referida. Uma das críticas dirigidas à maternidade de substituição é, precisamente, a dificuldade (e inerente indefinição) de estabelecimento da filiação, já que a mãe portadora não poderia deixar de ser considerada mãe da criança. Esta dificuldade não é, no entanto, de difícil resolução. O biologismo não é sequer um valor absoluto no plano da filiação estabelecido pelo Código Civil, como adverte JoRGE DuARTE PINHEIR016 : "em diversos aspectos, o legislador afastou-se do princípio da verdade biológica. P.e., ao sujeitar as acções de investigação de maternidade, de investigação de paternidade e de impugnação da paternidade a prazos de caducidade (cfr., respectivamente, arts. 1817. 0 , 1873. 0 e 1842.0 ); ao excluir a acção de averiguação oficiosa susceptível de revelar uma ligação incestuosa (arts. 1809.0 , al. a) e 1866. 0 , al. a); ao exigir o assentimento do filho maior para que a perfilhação produza efeitos (art. 1857. 0 ); e ao impedir o estabelecimento da filiação, depois de decretada a adopção plena (1987.0 ) " . Ao contrário do que afirma DIOGO LEITE DE

16

JoRGE DuARTE PINHEIRO, O Direito da Família Contemporâneo, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 2008, p. 132.

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CAMPOS17, a filiação não é, nem sempre foi, assente na biologia, e o legislador tem muito que dizer neste âmbito, como o faz, nomeadamente, em matéria de adopção ou de doação de sémen, óvulos e embriões. PAULA MARTINHO DA SILVA reconhece também, em casos de separação entre o pai e o procriador: "[a] verdade biológica apagar-se-á, nestes casos, diante da realidade sociológica que faz com que uma família seja caracterizada e definida em primeiro lugar pelas relações afectivas privilegiadas e não somente pelas transmissões de óvulos e espermatozóides" 18. Parece-nos, portanto, que a problemática exposta do estabelecimento da filiação não é obstáculo definitivo à maternidade de substituição, sendo possível a sua resolução nos mesmos termos em que é consagrada a constituição da filiação por consentimento não adoptivo 19, modalidade de filiação não biológica e não adoptiva, adoptada pelo número 3 do artigo 1839. 0 do Código Civil, nos 17

DIOGO LEITE DE CAMPOS sustenta que: "A filiação é hoje, e sempre foi, uma relação assente na biologia. Tem-se entendido que está em causa um elemento fundamental do estatuto jurídico da pessoa humana, da sua dignidade natural: ser filha dos seus país biológicos - e não de quem o legislador entenda." ("A Procriação Medicamente Assistida e o Sigilo sobre o Dador - Ou a Omnipotência do Sujeito", in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66, III, 2006, p. 1029). Entendemos que as crianças nascidas por recurso a técnicas de procriação medicamente assistida, bem como todas aquelas que sejam adoptadas não podem ser prejudicadas no seu estatuto de pessoa humana e na sua dignidade natural por esse facto. 18 PAULA MARTINHO DA SILVA, A Procriação Artificial. Aspectos Jurídicos, Moraes Editores, Lisboa, 1986, p . 41. Também VERA LúCIA RAPoso refere que: "O próprio Código Civil apresenta várias excepções ao biologismo estrito. Por razões ditadas pelo interesse da cr? nça, pela estabilidade familiar, pela tranquilidade social e pela privacidade das partes, a lei permite que sejam considerados como pai ou como mãe pessoas que geneticamente o não são. Em tais casos, o legislador confere chancela jurídica a um acordo prévio entre as partes (...), o que indica que o legislador não afasta completamente a vontade privada em matéria de filiação", De Mãe para Mãe- Questões Legais e Éticas suscitadas pela Maternidade de Substituição, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 61. w JoRGE DuARTE PINHEIRO refere que: "A filiação por consentimento não adoptivo é uma modalidade de paternidade estabelecida por via de inseminação de mulher com esperma doado por terceiro. O vínculo de filiação por consentimento não adoptivo define-se por exclusão de partes: é a modalidade de filiação que não é biológica nem adoptiva. Demarca-se da filiação biológica, por ser independente dos laços de sangue. Demarca-se da filiação adoptiva por se não constituir mediante sentença de adopção, apesar de pressupor também a vontade daquele que virá a assumir uma posição juridicamente equivalente à de progenitor. A identificação da filiação por consentimento não adoptivo deve muito à análise doutrinária do art. 1839. 0 , n. 0 3. Ao proibir a impugnação de paternidade com fundamento em inseminação artificial ao cônjuge que nela consentiu, a disposição legal atribui a paternidade ao marido da mãe que foi sujeita a inseminação artificial, mesmo que o esperma seja de terceiro, o que representa um afastamento do crtério biológico de filiação, e sem que o vínculo de filiação tenha sido constituído por sentença, como acontece na adopção." (O Direito da Família Contemporâneo, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 2008, p. 259).

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termos do qual é proibido ao homem que consentiu na inseminação da mulher com sémen de terceiro (entenda-se, dador) revogar o consentimento concedido, impugnando a paternidade da criança (aliás, em consonância com o disposto no número 2 do artigo 10.0 da Lei PMA, o qual dispõe que "os dadores não podem ser havidos como progenitores da criança que vier a nascer"). Nesta situação, o consentimento na inseminação da mulher por sémen de terceiro determina o estabelecimento da filiação da criança que vier a nascer, e - note-se - vincula o seu autor, o qual sempre virá a assumir a sua paternidade, mesmo que contra a sua posterior vontade. JoRGEDuARTE PINHEIRO defende a solução legislativa plasmada no artigo 1839.0 , número 3, do Código Civil, invocando que "na procriação assistida heteróloga 20, não é razoável insistir no critério biológico, atribuindo ou impondo situações jurídicas paternais a alguém que é um mero dador de material genético" 21 . Não se poderá (ou deverá) invocar igualmente que, no caso da maternidade de substituição, não é razoável insistir no critério biológico, atribuindo ou impondo situações jurídicas paternais a alguém assume a mera gestação? Arrepiando a qualificação de mera gestação, arrepia igualmente, no entendimento das Autoras, a de mero titular do material genético - não é este único e irrepetível, có igo pessoalíssimo de identificação de cada ser humano? Pergunta-se se a gravidez e o nascimento deverão superar liminarmente a genética; e se, permitindo o nosso actual sistema que a genética seja superada, em caso de doação de óvulos, esperma ou embriões, não será este um sinal de tolerância e aceitação da nossa ordem jurídica relativamente aos projectos de parentalidade dos indivíduos, e à multiplicidade de meios e técnicas para a sua concretização. Como é notório, as técnicas de procriação medicamente assistida reclamam uma redensificação do conceito jurídico de filiação e progenitorialidade, que não deriva necessariamente de dados biológicos, mas depende também de "valores sociais de responsabilidade que podem até contradizer a verdade biológica"22. O recurso à maternidade de substituição sempre exigiria a aplicação de um critério de filiação diverso daquele estabelecido no artigo 1796. 0 do Código Civil. Uma tal solução legal não seria sequer, como visto, uma novidade legislativa: a consagração, relativamente a ambos os beneficiários, de um critério semelhante 20

Reprodução heteróloga é aquela que se concretiza através do recurso a óvulo, sémen ou embrião de um terceiro, alheio ao(s) beneficiário(s)."Trata-se de um recurso de natureza subsidiária, uma vez que constitui requisito essencial para a sua utilização a gravidez não poder ter sido obtida com utilização de gâmetas dos beneficiários progenitores (reprodução homóloga)", nas palavras de PAULA MARTINHO DA SILVA/MARTA CosTA (A Lei da Procriação Medicamente Assistida Anotada, Colecção PLMJ, Coimbra Editora, 2011, Coimbra, anotação ao artigo art. 10. 0 ). 21 JoRGE DuARTE PINHEIRO, O Direito da Família Contemporâneo, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, Lisboa, 2008, p . 261. 22 AMADEO SANTosuosso, "Utero in affitto: il difficile contratto", in Questione Giustizia, N. 2, 2000, p. 375. 0

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àquele aplicável à filiação por consentimento não adoptivo, permitiria resolver o estabelecimento da maternidade e/ ou paternidade da criança nascida com recurso à maternidade substituição, definindo-os à partida, sem possibilidade de impugnação ou revogação. A matéria da maternidade de substituição encontra-se regulada, entre nós, pela Lei PMA23 • Este diploma regula a maternidade de substituição em apenas dois artigos. No artigo 8. 0 , é estabelecida a nulidade dos contratos de maternidade de substituição, sejam gratuitos ou onerosos (número 1). Ou seja, a maternidade de substituição é, entre nós, proibida24 . Em coerência com esta regra, e com a própria norma estabelecida pelo Código Civil (acima referida), a mulher que suportar uma gravidez de substituição é havida, para todos os efeitos legais, como a mãe da criança que vier a nascer (número 3) - ainda que, note-se, os beneficiários da gestação sejam os pais genéticos. Esta solução, principalmente se contrária à vontade da mãe de gestação 25, leva a questionar o critério de estabelecimento de maternidade consagrado nesta norma. Não parece razoável que a sanção da nulidade destes contratos resulte na imposição, à mãe de gestação, da maternidade da criança que vier a nascer, a qual parece ser utilizada como moeda de "castigo", quer para a mulher que tem de assumir a sua maternidade, quer para os beneficiários que se vêem impedidos de o fazer, contra a vontade de todos os intervenientes. Principalmente, não parece que assim se salvaguarde o interesse superior da criança (adiante analisado). O artigo 39. 0 , por sua vez, criminaliza a maternidade de substituição nos seguintes termos: "quem concretizar contratos de maternidade de substituição D 'd a a regulação desta matéria no âmbito da legislação de técnicas de procriação medicamente assistida, poder-se-ia entender que estaria excluído o método tradicional (relação sexual), exemplificado pela história biblíca de Sara, Abraão e Hagar (dr. Nota 5). Parece-nos, no entanto, que as questões de fundo que existentes na maternidade de substituição se aplicam quer a mulher portadora seja inseminada com recurso a técnicas médicas ou a gravidez decorra de relação sexual - é a promessa de entrega da criança e renúncia aos poderes/deveres da maternidade que define e caracteriza a maternidade de substituição, e não a forma como é alcançada a gravidez. A título de curiosidade note-se que, ainda recentemente, veio ao conhecimento público um destes casos - o Senhor Demetrius Soupolos, estéril, alemão, pagou a um vizinho para engravidar a sua mulher, tendo relações sexuais com ela, durante um período de 6 meses (notícia disponível, entre muitos outros meios de comunicação, em http:/ /www.trcbnews.com/ truth-is-stranger-than-fiction/111739 I, visitado a 28.05.2012). 24 Os contratos de maternidade de substituição são permitidos em pouquíssimos países, encontrando-se, entre estes, Grécia, Canadá, Índia, alguns estados dos Estados Unidos da América, e, em excepcionais situações, Inglaterra. 25 A gravidez pode ser um longo período de grande instabilidade emocional, em que se estabelece um vínculo afectivo entre a portadora e a criança gerada no seu ventre. A questão do arrependimento da mãe portadora é a problemática mais comum no histórico da maternidade de substituição, e constitui a grande causa dos litígios entre a mãe gestacional e os beneficiários. O direito (ou não) ao arrependimento será analisada adiante. 23

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a título oneroso" (número 1), bem como "quem promover, por qualquer meio, designadamente através de convite directo ou por interposta pessoa, ou de anúncio público" (número 2), "é punido com pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias". Assim, não só a maternidade de substituição é, em Portugal, proibida, como a sua prática onerosa e a sua promoção, nos termos acima escritos, são criminalizados. Parece-nos que a criminalização destes actos é excessiva. FIGUEIREDO DIAS refere, sobre a definição do comportamento criminal: "Mesmo que possa concordar-se que todo o crime se traduz num comportamento determinante de uma danosidade ou ofensividade social, a verdade é que nem toda aquela danosidade deve legitimamente constituir um crime" 26. De facto, a legitimidade do Estado para qualificar, perseguir e condenar determinados comportamentos como criminosos (o direito de punir) tem o limite dos princípios da necessidade, da não intervenção moderada e da subsidiariedade do direito penal: "o Estado só deve tomar de cada pessoa o mínimo dos seus direitos e liberdades que se revele indispensável ao funcionamento sem entraves da comunidade( ... ), na medida em que isso se torne imprescindível ao asseguramento dos direitos e liberdades" 27 • 1 Parece-nos profundamente duvidoso que o acordo livremente celebrado entre os indivíduos envolvidos num contrato de maternidade de substituição constitua um dano social ou entrave ao funcionamento da comunidade. Mas, mesmo que assim se entenda, é ainda dúbia a legitimidade e justiça da sua criminalização. Cremos que a maternidade de substituição é matéria demasiado sensível para legitimamente se procurar impedir a sua ocorrência através de um mecanismo de prevenção tão repressor (e subsidiário) como a criminalização. Além de excessivo e desproporcionado, não se dirige a nenhuma das complexas questões suscitadas em redor da figura em análise, e coloca em causa o interesse superior da criança, mais do que o próprio acto punido, pois esta, além de ter uma mãe que não a deseja (já que a maternidade da criança será imposta à mãe gestacional), terá uma mãe presa. Além do mais, suscita algumas dúvidas o significado de "concretizar contratos': falamos das partes contratantes?, dos progenitores beneficiários e da mãe de gestação?, dos médicos e demais pessoal envolvido, caso assim seja? E se o contrato não vier a executar-se, será, ainda assim, a sua celebração criminalizada?

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Direito Penal, Parte Geral, Tomo I (Questões fundamentais. A doutrina geral do crime), 2." edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p . 110. GUILHERME DE OuvEIRA também problematiza a criminalização da maternidade de substituição - apesar de esta, à data da obra em questão, não ser criminalizada -, em Mãe há só Uma - o Contrato de Gestação, Coimbra Editora, Coimbra, 1992, pp. 78 ss. 27 V JoRGE FIGUEIREOO DIAS, Direito Penal, Pm-te Geral, Tomo I (Questões fundamentais. A doutrina geral do crilne), 2." edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 123. Sobre a definição do comportamento criminal, bem como os princípios mencionados, v. Capítulos 4. 0 a 7. 0 • JoRGE FIGUEIREDO DIAS,

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Note-se ainda que apenas a maternidade de substituição a título oneroso é punida criminalmente. O legislador português escolheu "diferenciar esses efeitos, consoante o negócio seja gratuito o oneroso. Assim, o negócio é sempre, do ponto de vista civil, nulo, e quando o negócio seja oneroso é cumulativamente aplicávelmna sanção criminal" 28 • Isto parece significar que a maternidade de substituição a título gratuito é melhor tolerada pelo legislador português, podendo significar a abertura a eventuais alterações legislativas neste sentido. Entre Dezembro de 2011 e Janeiro de 2012, foram apresentados na Assembleia da República os seguintes projectos de lei, visando a alteração à Lei PMN9: (i) projecto de lei n. 0 122/XII, apresentado pelo Bloco de Esquerda, a 21.12.2011; (ii) projecto de lei n .0 131/XII, apresentado pelo Partido Socialista, a 6.01.2012; (iii) projecto de lei n. 0 137 /XII, apresentado por um Grupo Parlamentar composto por 5 deputados do Partido Socialista, a 11.01.2012; (iv) projecto de lei n. 0 138/XII, apresentado pelo Partido Social Democrata, a 13.01.2012. Dos referidos projectos de lei, três visam propor alterações à Lei PMA no sentido da admissibilidade da maternidade de substituição. São, designadamente, o projecto de lei n .0 122/XII, o projecto de lei n. 0 131/XII e o projecto de lei n. 0 138/XII. No âmbito das iniciativas legislativas ora identificadas, e a solicitação da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República, emitiram parecer o Ministério Público, a Ordem dos Advogados e o Conselho Superior da Magistratura, tendo aquela Comissão, e ainda a Comissão Parlamentar de Saúde, emitido igualmente o seu parecer30 • Todos os referidos projectos consagram a gratuidade do contrato de maternidade de substituição, como condição do recurso a esta técnica de procriação medicamente assi tida. Esta opção assenta no reconhecimento dos riscos de comercialização da ma ernidade e do corpo humano, de exploração de mulheres com escassos recursos económicos, e as preocupações com a dignidade humana relacionadas com a atribuição de um preço ao processo de maternidade em causa. Outro requisito comum a todos os projectos, é o da excepcionalidade do recurso à maternidade de substituição, muito embora com leves diferenças. Assim: (i) o projecto de lei n .0 122/XII prevê a possibilidade de recorrer a esta técnica de procriação medicamente assistida apenas em caso de ausência, lesão ou doença do útero, que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher, e ainda, a 28

V. Acórdão do Tribunal Constitucional n. 0 101/2009, de 3 de Março (publicado no Diário

da República, 2." série, n .0 64, de 1 de Abril de 2009, e disponível em www.dre.pt ou em www.tribunalconstitucional.pt): "O legislador não é necessariamente obrigado a criminalizar uma conduta, sempre que se entende haver um bem jurídico digno de tutela". V. também JoRGE FIGUEIREDO DIAs sobre o princípio da necessidade, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I (Questões fundamentais. A doutrina geral do crime), 2." edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007. 29 Todos disponíveis em http:/ /app.parlamento.pt/. 30 Todos disponíveis em www.parlamento.pt/ ActividadeParlamentar/Paginas/Detalheiniciativa.aspx?BID=36633.

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título excepcional, noutras situações clínicas que o justifiquem, autorizadas pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, ouvida previamente a Ordem dos Médicos 31 ; este projecto foi rejeitado a 20.01.2012; (ü) o projecto de lei n. 0 131/XII prevê a possibilidade de recorrer a esta técnica de procriação medicamente assistida apenas em caso de ausência, lesão ou doença do útero, ou outra situação clínica que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher, e, cumulativamente, autorização do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, ouvida previamente a Ordem dos Médicos; este projecto prevê ainda que esta possibilidade seja restrita aos casos em que haja recurso aos gâmetas de, pelo menos, um dos respectivos beneficiários; este projecto encontra-se, à data da preparação deste artigo, em apreciação na generalidade pela Comissão de Saúde da Assembleia da República; (üi) o projecto de lei n. 0 138 /XII prevê a possibilidade de recorrer a esta técnica de procriação medicamente assistida apenas em caso de ausência de útero na parceira feminina do casal, ou. alternativamente, em situações clínicas que o justifiquem, autorizadas pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, ouvida previamente a Ordem dos Médicos; este projecto encontra-se, à data da preparação deste artigo, em apreciação na generalidade pela Comissão de Saúde da Assembleia da República. 1 Visto o enquadramento actual da maternidade de substituição no ordenamento jurídico português- a proibição de contratos deste tipo, cominados com a nulidade e o reconhecimento da maternidade a favor da mãe de gestação, e, em certos casos, a sua criminalização -, caberá analisar os direitos fundamentais de personalidade envolvidos e averiguar se, e em que medida, eles podem ou devem obrigar a repensar o actual enquadramento, exigindo do legislador comportamento diverso.

III - DIREITOS DE PERSONALIDADE Os direitos de personalidade32 são posições jurídicas inerentes à Pessoa, pela sua natureza humana e enquanto - na conhecida construção de Kant fim em si mesma. Estes direitos estão intimamente ligados à mera existência e condição de ser de qualquer indivíduo e constituem situações jurídicas

31

Este projecto de lei previa ainda a eliminação dos critérios de estado civil e orientação sexual dos beneficiários das técnicas de procriação medicamente assistida (apenas indivíduos heterossexuais, casados entre si), permitindo o acesso a todos os casais e a todas as mulheres, independentemente do seu estado civil, e bem assim o duplo reconhecimento das técnicas de procriação medicamente assistida como método subsidiário e, também, alternativo de procriação, não sendo exigível o diagnóstico de infertilidade. Este projecto era o mais ousado nesta matéria. 32 Sobre os Direitos de Personalidade, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo III (As Pessoas), Almedina, Coimbra, 2004, pp. 29 ss (capítulo II: "O Direito de Personalidade").

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básicas do homem, reconhecidas pela lei civil33• Protegem bens como a vida, a integridade física e moral, o nome ou a imagem, e são direitos absolutos - na medida em que são oponíveis a todos e não requerem uma relação jurídica, mas antes se consubstanciam na pessoa, simultaneamente seu objecto e titular -, não patrimoniais- na medida em que não têm correspondência monetária, ainda que alguns destes bens possam ser comercializáveis, como a imagem -, e irrenunciáveis - na medida em que são inatos à própria Pessoa e não se lhe podem ser dissociados ou definitivamente alienados. Os direitos de personalidade constituem um círculo de direitos necessários; um conteúdo mínimo e imprescindível da esfera jurídica de cada pessoa34• Dada a sua imprescindibilidade, muitos destes direitos estão consagrados na Constituição da República Portuguesa (doravante, "CRP"), assumindo, nesses casos, o estatuto de Direito Fundamental, e beneficiando, assim, de um regime de protecção especialmente reforçado35 . É o caso do direito à vida (artigo 24.0 ), o direito à integridade física e moral (artigo 25.0 ), o direito à identidade pessoal (artigo 26.0 ), o direito ao desenvolvimento da personalidade (idem), entre outros (todos artigos da CRP). Muitos dos bens protegidos por direitos de personalidade e por direitos fundamentais são ainda protegidos internacionalmente, enquanto direitos do Homem, em declarações ou tratados internacionais, tais como a Declaração Universal de Direitos Humanos 36 e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos37, adoptados sob a égide da Organização das Nações Unidas, a 33

JosÉ DE MELo ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais, Introdução Geral, 2." edição, Principia, Lisboa, 2011, p. 34. 34 CAJ LOS ALBERTO MOTA PINTo, Teoria geral do Direito Civil, 3." edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pp. 87 ss. 35 Sobre a distinção entre direitos de personalidade e direitos fundamentais, escreve JosÉ DE MELo ALEXANDRINO que: "Os direitos previstos na Constituição, ainda que possam incidir sobre o mesmo objecto (imagem, bom nome, intimidade da vida privada) são direitos fundamentais e não direitos de personalidade, devendo a distinção entre ambos passar pelas seguintes ideias: (i) os direitos de personalidade estão previstos no Código Civil, ao passo que os direitos fundamentais estão consagrados na Constituição - daí que os direitos de personalidade pertençam ao domínio do Direito Civil e os direitos fundamentais ao do Direito Constitucional (sendo regulados, estudados e protegidos pelos institutos, categorias e mecanismos do Direito Constitucional); (ii) os direitos de personalidade (por pressuporem relações de igualdade) não têm uma projecção especial face ao Estado, ao passo que os direitos fundamentais pressupoem sempre um relacionamento directo e uma especial vinculação ao Estado( ... )" (Direitos Fundamentais, Introdução Geral, 2." edição, Principia, Lisboa, 2011, pp. 34-35). Sobre o regime dos direitos fundamentais, v. CLAUS-WILHELM CANARIS, Direitos Fundamentais e Direito Privado, trad. por Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto, Almedina, Coimbra, 2006. 36 Adoptada e proclamada pela Resolução n. 0 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de Dezembro de 1948. 37 Adoptado pela Resolução n. 0 2.200-A (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 16 de Dezembro de 1966.

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Convenção Europeia de Direitos Humanos 38, adoptada pelo Conselho da Europa, ou a Convenção Americana de Direitos Humanos 39, adoptada no âmbito da Organização dos Estados Americanos. Assim, não se confundindo estas figuras jurídicas- direitos de personalidade, direitos fundamentais e direitos do Homem-, podem, no entanto, sobrepor-se relativamente ao bem protegido, caso em que a sua protecção é reforçadíssima, aplicando-se os respectivos regimes, institutos e mecanismos de garantia, dependendo da situação, sujeitos e reivindicação em causa. É a especial dignidade e inerência à Pessoa destes bens de personalidade que justifica a sua consagração em diversos níveis jurídicos, nomeadamente, e ao que ora nos importa, quanto à possibilidade de restrição dos mesmos, quer por terceiros -públicos ou privados, nacionais ou internacionais, estaduais ou não estaduais -, quer pelos próprios titulares (caso da renúncia). Os que se analisarão de seguida são exemplo destes direitos superprotegidos, consagrados quer a nível civil (direitos de personalidade), quer constitucional (direitos fundamentais), pelo que os denominaremos "direitos fundamentais de personalidade"- isto é, direitos de personalidade reconhecidos na CRP. O seu reconhecimento obrigará a uma rigorosa delimitação da acçãp do Estado, relativamente aos mesmos. No âmbito da maternidade de substituiÇão, é necessária a delimitação dos direitos em causa - dos beneficiários, da portadora da gravidez, da criança - para definir, e eventualmente limitar, a legitimidade de intervenção do Estado, no sentido da admissibilidade ou proibição da maternidade de substituição. Com efeito, se na maternidade de substituição estiver em causa o exercício de um direito (ou mesmo de vários) fundamental de personalidade, a autonomia privada e os limites da intervenção estadual que assistem à sua realização e exercício são rigorosíssimos, não podendo o Estado restringir tal direito em nome da mera sensibilidade moral, ou de determinados valores e princípios de alguns membros da sociedade, ainda que dominantes ou maioritários.

IV -

PASSO PRELIMINAR: AUTONOMIA PRIVADA, LIBERDADE E LIMITES

A autonomia privada é um princípio transversal e basilar de todo o direito civil, o qual "se encontra directamente ao serviço da pessoa na sua vida com as outras pessoas, visando precisamente assegurar a autonomia e a realização da

38

Adoptada em Roma, em 4 de Novembro de 1950, pelo Conselho da Europa, tendo entrado em vigor em 3 de Setembro de 1953. 39 Também denominado Pacto de San José de Costa Rica, adoptada e aberta à assinatura na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, em San José de Costa Rica, em 22 de Novembro de 1969, tendo entrado em vigor em 18 de Julho de 1978.

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personalidade" 40 . Nas palavras de MoTA PINTO, a autonomia privada da pessoa "na modelação imediata da sua vida quotidiana liga-se umbilicalmente a uma concepção humanista ou personalista do Homem como sujeito da História: uma concepção que o reconhece como actor capaz de decidir o curso dos acontecimentos, com liberdade relativa num quadro de relativo indeterminismo, e de se manifestar contra a injustiça e os erros" 41 . A autonomia privada significa, assim, a regra geral de liberdade de acção; é reconhecida, ao ser humano, liberdade de decisão e condução da sua vida, pelo exercício da sua própria vontade, em todos os seus aspectos, podendo regulálos livremente e estabelecendo-lhes o conteúdo e a respectiva disciplina jurídica. Também o exercício dos direitos de personalidade deve ser desenvolvido num plano de autonomia: muito embora sejam irrenunciáveis, na medida em que estão intimamente ligados à Pessoa (que, enquanto existe, os detém), eles representam posições de liberdade, e nessa qualidade, implicam disponibilidade 42. Caberá indagar se esta liberdade de decisão e condução da própria vida - enquanto regra geral de conduta - não justificará a admissibilidade da maternidade de substituição, enquanto fruto da vontade livre dos indivíduos envolvidos. Pergunta-se ainda se a autonomia privada não deverá conduzir à rejeição de interferência (ou admissão de interferência mínima) do Estado em d ecisões tão íntimas como as decisões reprodutoras, os projectos parentais ou a disposição do próprio corpo dos indivíduos; final e principalmente, pondere-se se essas decisões não correspondem ao exercício de direitos (fundamentais) de personalidade, razão pela qual a intervenção do Estado será ainda mais limitada. Naturalmente, esta autonomia não existe toda-poderosa e sem limites, mas é te~perada com limites determinados - as excepções que sempre confirmam a regra. O Código Civil reconhece isto mesmo, ao estabelecer que os indivíduos têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, criar e celebrar contratos diferentes daqueles legalmente previstos ou incluir neles as cláusulas que lhes aprouver, desde que dentro dos limites da lei (artigos 398. 0 e 405.0 ) . Um limite fundamental ao princípio da liberdade contratual, corolário da autonomia privada, encontra-se consagrado no número 2 do artigo 280. 0 do Código Civil, nos termos do qual os negócios contrários à ordem pública ou aos bons costumes são nulos. Os bons costumes e a ordem pública são conceitos indeterminados e evolutivos, e, por isso, apenas determináveis em cada momento, analisando a sociedade numa óptica de actualidade. É essencial, para o efeito, a contextualização do conceito de bons costumes (ou seja, as regras éticas e de conduta próprias e

°CARLOS ALBERTO MoTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 3." edição, Coimbra Editora,

4

Coimbra, pp. 42 ss. CARLOS ALBERTO MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 3." edição, Coimbra Editora, Coimbra, pp. 81 ss. 42 ANTÓNIO MENEZES CoRDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Parte Geral, Tomo III (As Pessoas), Almedina, Coimbra, 2004, pp. 107 ss. 41

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vigentes na sociedade em cada momento), o qual correspondia, à época da sua consagração e décadas seguintes, a um código de decoro e pudor social que, nos dias actuais, já não vigora. A óptica da actualidade revela hoje uma sociedade multifacetada, democrática e pluralista, onde os valores correspondentes aos "bons costumes" são essencialmente aqueles tutelados pelo direito penal, e aqueles que, em última análise, repousam na dignidade humana, base constitucionalmente reconhecida do sistema jurídico português (conforme dispõe o artigo 1. 0 da CRP). Já a ordem pública dirá respeito aos princípios fundamentais do Estado e da sociedade, a maioria dos quais encontram-se consagrados na CRP, cuja violação choca e repugna as suas consciência e base jurídica. Assim, caso se considere que os contratos de maternidade de substituição são contrários à ordem pública e/ ou aos bons costumes, os mesmos deverão ser nulos, mesmo sem necessidade de proibição expressa - poder-se-ia, aliás, questionar se a previsão expressa de nulidade destes contratos não poderia/ deveria ser interpretada precisamente no sentido de aquela não violar a ordem pública ou os bons costumes (caso em que não necessitaria de proibição expressa), sendo antes uma opção político-legislativa. Mesmo o exercício dos direitos de personalidade - onde a auton mia privada deve ser ampliada- tem limites. Nesse sentido, o Código Civil admite a liberdade de limitação voluntária ao seu exercício, desde que não seja contrária aos princípios da ordem pública (número 1 do artigo 81. 0 do Código Civil). Assim, são válidas, por exemplo, determinadas restrições à integridade física, como a sujeição a certas intervenções médicas, e já não qualquer lesão do bem vida. É admissível, nomeadamente, que um lutador de boxe se disponha a ser ferido na sua integridade física, por via da própria luta; mas já não será admitida a mutilação a pedido do próprio, pois este consentimento é contra a ordem pública. Da mesma maneira, o comportamento sexual libertino não é recriminado (do ponto de vista jurídico, não moralista e não religioso), mas um contrato nos termos do qual alguém se obriga, contra o pagamento de um preço, a prestar serviços sexuais já não será conforme à ordem pública. Note-se que, no âmbito da limitação voluntária dos direitos de personalidade, já não são legalmente invocados os bons costumes. Pergunta-se se um contrato que, consubstanciando uma limitação de um direito de personalidade, viole alegados bons costumes, será nulo. Parece que, ao exercício dos direitos de personalidade -entendendo-se, no seu âmbito, o direito a limitá-lo- deve ser concedido amplo espaço de liberdade. A interpretação comparada entre os limites à liberdade contratual e aqueles à limitação voluntária dos direitos de personalidade parece apontar para uma maior restrição dos primeiros, em benefício dos segundos: assim, se eu posso limitar os meus direitos de personalidade, devo poder contratar nesse sentido. Faltará um requisito à validade da renúncia dos direitos de personalidade: a sua livre revogabilidade, prevista no número 2 do artigo 81. 0 do Código Civil -questão que, como se verá, trará muitos problemas à colação, nomeadamente,

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relativamente ao direito ao arrependimento, pois, no âmbito da maternidade de substituição, a gravidez é, a partir de determinado momento da gestação, irreversível e irrevogável. Em suma, o indivíduo tem liberdade geral de acção, desde que não viole a ordem pública, os bons costumes e os limites da lei. Em particular, estando em causa o exercício (que inclui a sua limitação ou renúncia) de um direito de personalidade, esta liberdade de acção é ainda mais ampla, incluindo a liberdade de revogação, unilateral, do consentimento dado. Caberá, nesta liberdade contratual, o direito a celebrar um contrato de maternidade de substituição, gratuito ou mesmo oneroso, ou será este contrato, pelo contrário, violador da ordem pública e dos bons costumes? Note-se que, se reconhecermos, envolvidos na maternidade de substituição, determinados direitos de personalidade, os limites da liberdade do seu exercício (incluindose, no exercício, o direito de renúncia dos mesmos) serão apenas aqueles acima descritos. A autonomia privada do indivíduo poderá ser, assim, base de legitimidade para que uma mulher decida suportar uma gravidez por outrem, tomando essa decisão sem ou com intervenção mínima do Estado, o mesmo se dizendo relativamente ao indivíduo ou casal que decida ter um filho através do útero dessa mulher. Cabe perguntar se, existindo o acordo de todas as partes envolvidas na concretização de uma gestação de substituição, poderá o Estado legitimamente impedi-lo, restringindo a sua autonomia privada: a que título, com que legitimidade e em nome de quê? O exercício de direitos de personalidade pelo indivíduo deve ser sempre temperado com os limites da autonomia privada, isto é, os contratos de maternidade de substituição podem ser proibidos (embora não criminalizados, no nosso entendimento) se considerarmos que violam a ordem pública. Já não o poderão ser por confronto com alegados bons costumes, aos quais não é atribuído, como visto, carácter de limite ao exercício dos direitos de personalidade. Mas partindo do reconhecimento de determinados direitos fundamentais de personalidade- isto é, direitos de personalidade reconhecidos na CRP -,vamos mais longe: a admissibilidade de intromissão do Estado nos mesmos, enquanto restrição ou limite do seu alcance e extensão, deve observar termos mais restritos, como se verá.

V-

PERANTE DIREITOS FUNDAMENTAIS: RESTRIÇÕES ÀS RESTRIÇÕES

Como acima referido, os bens de personalidade- vida, integridade física e moral, desenvolvimento da personalidade, entre outros -, pela sua especial natureza e dignidade, são muitas vezes consagrados também na CRP, sendolhes conferido estatuto de direito fundamental, e gozando, portanto, de especial protecção. É o caso dos direitos de personalidade envolvidos na maternidade de substituição, como adiante se verá, pelo que se assumirá a aplicação do regime

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daí decorrente, o qual ora se explicará. Note-se que a possibilidade de limitação dos direitos de personalidade é francamente mais ampla que aquela permitida aos direitos fundamentais de personalidade, onde, por exemplo, não há qualquer consagração de ordem pública. Assim, a análise destes direitos à luz da CRP não é mero exercício académico, mas tem enorme relevância prática na aplicação do respectivo regime, em particular, relativamente às restrições permitidas. A CRP estabelece, no seu artigo 18. 0 , regra fundamentalíssima deste regime: "a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos" (número 2), "revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais" (número 3). Esta norma estabelece uma regra restritiva das restrições, através do superior princípio da proporcionalidade43 • Assim, qualquer restrição de um direito fundamental só será válida se cumpridos os seguintes requisitos: (i) adequação (ou idoneidade), isto é, a restrição deve ser meio adequado e idóneo para a prossecução do fim visado (o qual deve corresponder ao ponto (iii)); (ii) necessidade (exigibilidade ou indispensabilidade), isto é, a restrição deve ser indispensável e ter apenas a medida estritamente neces/ ária, proibindo-se o excesso; e (iii) proporcionalidade (em sentido estrito), ou seja, a restrição deve ser feita em nome de fim proporcional e digno de tutela equivalente (outro direito de igual natureza ou princípio ou interesse constitucionalmente protegido), exigindo-se aqui uma medida justa entre meios (a restrição) e fins (o direito, interesse ou princípio a proteger).44 Relativamente ao princípio referido no ponto (i), é exigido que a restrição seja medida capaz de obter o resultado alcançado. Naturalmente, uma restrição sem efeito útil perde o seu sentido e a sua justificação e legitimidade, e o direito restringido deve ser devolvido à sua integral extensão. O princípio referido no ponto (ii) impõe o não excesso e a intervenção mínima, isto é, proíbe qualquer restrição ou medida de restrição que vá além da medida necessária para o efeito pretendido. Tratando-se de direitos fundamentais, a sua restrição deve ser excepcional e limitar-se à medida mínima necessária. No ponto (iii), é enunciado o princípio segundo o qual a restrição só se pode admitir e justificar para salvaguarda de outro direito ou interesse constitucionalmente constituído, por exemplo, um direito fundamental de outro indivíduo que esteja em conflito com aquele a restringir, ou a dignidade humana, prevista no artigo 1. 0 (e outros) da CRP. Isto significa que os direitos fundamentais não podem ser objecto de

43

V. JosÉ DE MELO ALEXANDRINO, numa explicação bastante clara do princípio da proporcionalidade, em Direitos Fundamentais, Introdução Geral, 2." edição, Principia, Lisboa, 2011, p. 134 ss. 44 J.J. GoMEs CANOTILHo/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4." edição, Coimbra Editora, Coimbra, anotação ao artigo 18. 0 •

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restrição em nome de um "bem menor", que não tenha, pelo menos, dignidade equivalente ao direito restringido. Faça-se referência, a este respeito, à declaração do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, pronunciando-se sobre o tema da infertilidade e das técnicas de procriação medicamente assistida nos seguintes termos: Não é justo nem eticamente fundamentado, sendo antes injusto e desproporcionado, barrar a possibilidade de ter filhos a pessoas impossibilitadas de procriar em situações medicamente verificadas e justificadas 45 • Com efeito, o reconhecimento de direitos fundamentais de personalidade, envolvidos num contrato de maternidade de substituição, elevará o critério da proporcionalidade (em todos os seus subprincípios) a condição da admissibilidade de intervenção restritiva por parte do Estado nesta matéria. Cabe então perguntar se a proibição liminar da maternidade de substituição não será restrição desproporcionadíssima dos direitos em causa; e se não será mais conforme ao regime dos direitos fundamentais de personalidade (nomeadamente o direito a constituir família, o direito a dispor do próprio corpo e o direito ao desenvolvimento da personalidade) admitir a maternidade de substituição, sob critérios estritos e cuidadosamente regulamentados. A criminalização da maternidade de substituição, por outro lado, deixa menor espaço à dúvida: é certamente desproporcionada esta forma de intervenção do Estado, com resultados nefastos e excessivos para os todos os intervenientes, os quais não provocam nem constituem um perigo para a vida em sociedade. Às restrições dos direitos fundamentais é imposto ainda um limite adicional: as mesmas não podem diminuir a extensão ou o alcance do seu conteúdo essencial, isto é, o seu conteúdo mínimo irredutível. Sobre o que seja este conteúdo, GoMEs CANOTILHO e VITAL MoREIRA ensinam: "A questão do conteúdo essencial de um direito não pode equacionar-se senão em confronto com outro bem; mas nos termos da Constituição, nunca essa ponderação poderá conduzir à aniquilação de qualquer direito fundamental. A garantia do conteúdo essencial é um mais em relação ao princípio da proporcionalidade. A própria definição de conteúdo essencial é, por isso mesmo, controvertida. Umas vezes, aponta-se como critério saber se a restrição deixa algum sentido útil ao direito fundamental, isto é, se há possibilidade de este, depois de restringido, ainda poder desempenhar a sua finalidade; outras vezes, o núcleo essencial é identificado com a subsistência de um mínimo de autonomia da posição jurídica do cidadão face ao Estado, havendo intromissão no núcleo essencial quando o cidadão for convertido em mero objecto da actividade estadual" 46 • Este requisito assume a maior importância, no âmbito

45

Comunicação proferida pelo Senhor Vice-Presidente do CNPMA, Prof. Doutor SALVADOR MASSANO CARDOSO, na Conferência do CNECV "As Leis da IVG e da PMA- Uma Apreciação Bioética", em 17 de Maio de 2011, no Porto. 46 J.J. GoMES CANOTILHo/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4." edição, Coimbra Editora, Coimbra, anotação ao artigo 18.0 •

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da discussão da admissibilidade da maternidade de substituição, naquelas situações em que os potenciais beneficiários não são elegíveis para recorrer a qualquer outra técnica de procriação medicamente assistida -nestes casos, pode considerar-se que o conteúdo mínimo do direito (discutível, como adiante se verá) a constituir família é totalmente negado. Pense-se que o progresso científico permite que estes beneficiários reproduzam o seu material genético, que em alguns países esta possibilidade é até permitida, e que esta técnica seria a única forma de procriar disponível para estes indivíduos. Já relativamente à possibilidade de renúncia de um direito fundamental de personalidade - expressão máxima da liberdade de exercício de um direito será a liberdade negativa desse direito, isto é, a sua auto-limitação -, parecenos que esta questão não se colocará no plano do direito fundamental, o qual será inseparável do indivíduo em si mesmo e perante o Estado, mas antes no plano individual das relações civis, fundadas no princípio geral da liberdade. Sobre a liberdade dos indivíduos relativamente ao exercício dos seus direitos fundamentais, entende (e bem) JosÉ DE MELO ALEXANDRINO que "o fundamento do poder de renúncia encontra-se no primeiro dos elementos estruturantes materi;üs do sistema- no princípio da liberdade. Porque os direitos, liberdades e garantias são expressão de liberdade, têm por fim a liberdade e se realizam na liberda~e, é antes de mais ao beneficiário da liberdade (à pessoa humana concreta) que deve ser reconhecido o poder de definir o conteúdo e o uso concretos da sua liberdade, do mesmo modo que lhe foi reconhecida( .. .) a primazia na definição do conteúdo da sua dignidade. (... ) [A]o titular dos direitos deve ser em regra reconhecido um poder de definição de prioridades na realização concreta da sua esfera de liberdade" 47• Assim, a conteúdo da própria dignidade humana, relativamente a cada indivíduo, deve ser densificado e concretizado pelo próprio, na condução da sua vida, segundo um princípio de liberdade. A CRP reconhece à dignidade humana o estatuto de princípio último onde repousa toda a sua ordem jurídica, ao dispor que "Portugal é uma República soberana baseada na dignidade da pessoa humana" (artigo 1. 0 da CRP). Suportando toda a sua construção e "conferindo uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais" 48 , encontrase, com efeito, a dignidade humana. É esta a pedra basilar de todo o sistema jurídico-constitucional português, causa e condição dos direitos fundamentais de personalidade. Esta trave mestra, no entanto, não é um dado rígido e petrificado: "[a] dimensão intrínseca e autónoma da dignidade da pessoa humana articulase com a liberdade de conformação e de orientação da vida segundo o projecto espiritual de cada pessoa, o que aponta para a necessidade de, não obstante

47

em Direitos Fundamentais/ Introdução Geral, 2." edição, Principia, Lisboa, 2011, p. 150. 48 JoRGE MIRANDA/ Manual de Direito Constitucional/ Tomo IV, 4." edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, p. 197. JosÉ DE MELo ALEXANDRINO,

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a existência de uma constante antropológica, haver uma abertura às novas exigências da própria pessoa humana" 49. Dignidade humana e autonomia privada não são, afinal, dados contrários que se devem contrabalançar, mas causas e condições recíprocas: a dignidade humana pressupõe a autonomia privada, enquanto liberdade geral de agir e conduzir a vida na própria pessoa e segundo a própria vontade, para o desenvolvimento máximo da personalidade do Homem; a autonomia privada parte da dignidade humana, na medida em que é em nome dela que se justifica e legitima. Se a dignidade humana é inerente ao ser da pessoa humana, então o seu agir deve ser livre, só assim se dignificando aquela 50 .

VI- DIREITOS

CoNCRETAMENTE EM CAUSA

Vistos os limites que assistem ao exerc1c1o dos direitos fundamentais e ao princípio geral da autonomia privada - os quais justificam e legitimam a intervenção do Estado em certas matérias e cumpridos determinados requisitos -,cabe agora analisar os direitos concretamente envolvidos, e a medida em que eles podem (e/ou devem) ser restringidos, à luz daqueles limites; em particular, analisaremos se, e em que medida, a actual proibição da maternidade de substituição pelo Estado é conforme a estes limites. (I) DIREITO A CONSTITUIR FAMÍLIA (Dos BENEFICIÁRIOS)

Dispõe o número 1 do artigo 36. 0 da CRP que "todos têm o direito de constituir família". Cabe analisar qual o alcance e conteúdo deste direito a constituir família, para perceber se o indivíduo se pode ancorar nesta disposição para justificar (e exigir?) a não proibição desta técnica de procriação medicamente assistida. É pacífico o entendimento segundo o qual o direito a constituir família abrange um direito a ter filhos, entendido no sentido de liberdade de procriação, 1

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J.J. GoMES CANOTILHo/VJTAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4." edição, Coimbra Editora, Coimbra, anotação ao artigo 1. 0 • V. Relatório PMA, AcoSTlNHO ALMEIDA SANTOS/MrCHEL RENAUD PEREIRA/RITA AMARAL CABRAL, membros do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, 2004, p. 17, onde se refere: "O princípio de não instrumentalização da pessoa humana merece um comentário: é necessário fazer a distinção entre o ser da pessoa e o seu agir. É evidente que, no seu agü~ a pessoa presta serviços, realiza finalidade concretas, ajuda os outros; a acção humana possui finalidades particulares que são meios para a realização da pessoa, mas não meios para a sua instrumentalização. O trabalho, a prestação de serviços são meios (ou, no sentido largo, instrumentos) da realização da pessoa; mmca podem transformar o ser da pessoa num meio para a obtenção de outros fins. Aliás esta transformação esteve na base da escravatura. A dignidade humana opõe-se portanto a todas as formas de instrumentalização do ser da pessoa" (disponível em www.cnecv.gov.pt).

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"não havendo lugar para interdições de procriação, limites ao número de filhos e esterilização forçada, que de resto não seriam compatíveis com a dignidade da pessoa humana e a autodeterminação pessoal que lhe é inerente. Problemático é saber até que ponto é que o direito a ter filhos envolve um direito à inseminação artificial heteróloga (com esperma de terceiro) ou à gestação por "mãe de aluguer" 51 . Com efeito, deve questionar-se se o direito fundamental a constituir família abrange, liminarmente, o direito a ter filhos ou a recorrer a técnicas de procriação medicamente assistida. Em particular, e em caso positivo, deve questionar-se se existe um direito a incluir, nelas, o direito a recorrer à maternidade de substituição, podendo inclusivamente questionar-se se existe sequer um direito a adoptar; ou se, pelo contrário, o "direito" a ter filhos é, ou deve ser, afinal, um mero desejo íntimo. As respostas a estas questões não são unânimes na doutrina. PAMPLONA CORTE-REAL sustenta que as práticas de procriação medicamente assistida correspondem ainda ao exercício do direito a procriar, o qual, nos termos da nossa lei, deve ter "um recorte conceptual alargado" 52 • Droco LEITE DE CAMPos parece reconhecer este direito, ao entender que "trata-se, diria, de uma necessidade fundamental de muitos seres humanos, de uma liberá ade fundamental, a de procriar, que é, e deve ser, assegurada por constituições e leis ordinárias"53 . VERA LúciA RAroso entende que "a norma que mais directamente consolida os direitos reprodutivos é o direito a constituir família. Família, não apenas enquanto direito ao matrimónio, mas também direito a procriar [artigo 36. o da CRP],livre de obstáculos ao estabelecimento da filiação.( ... ) [N]o momento da feitura do preceito não se pensou na procriação mediante técnicas médicas, que à data estavam longe de constituir um problema jurídico. Mas a interpretação tem necessariamente que ser uma tarefa dinâmica, sob pena de a Constituição se tornar obsoleta e desadequada ao alucinante ritmo dos tempos" 54 • 51

J.J. GoMES CANOTILHO/VITAL MoREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4." edição, Coimbra Editora, Coimbra, anotação ao artigo 36. 0 • Pensamos que estes Autores reconhecem o direito fundamental a procriar, apenas considerando que o mesmo pode estar sujeito a restrições, posição que condividimos inteiramente. V. também JoRGE MIRANDA/Rui MEDEIROS, CRP Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, anotação ao artigo 36. do qual entendem poder extrair-se "um direito fundamental, não apenas a procria1~ mas também ao conhecimento e reconhecimento da paternidade e maternidade" . 52 CARLOS PAMPLONA CoRTE-REAL, "Os efeitos familiares e sucessórias (P.M.A.)", in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Gaivão Telles, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 355-356. 53 DIOGO LEITE DE CAMPOS, "A procriação medicamente assistida e o sigilo sobre o dador- ou a omnipotência do sujeito", in Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, Ano 66, Vol. III, 2006, ponto 8. 54 VERA LúCIA RAroso, "Direitos Reprodutivos", in Lex Medicinae, Ano 2, n .0 3, 2005, p. 117. 0

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Já GuiLHERME DE OLIVEIRA defende que, "enquanto liberdade fundamental, o direito de procriar dê aos inférteis urna expectativa razoável e urna legitimidade de princípio para se socorrerem dos meios técnicos que a sociedade alcançou; porém, isto não pode significar a atribuição de urna legitimidade indiscutível para usar um qualquer meio concreto, tecnicamente possível, mas que ainda não foi objecto de urna apreciação pela comunidade ou foi mesmo reprovado" 55 . TIAGO DuARTE, concordando expressamente com este Autor, entende que "o art. 36. 0 n .0 l [da CRP] consagra [apenas] o direito a procriar e a ver a prole juridicamente reconhecida sem discrirninações" 56 • Também FERNANDO ARAúJO entende que "a liberdade de procriar é um interesse muito relevante, mas a sua promoção a direito pode suscitar questões rnelindrosas" 57 • Em voto vencido no acórdão do Tribunal Constitucional que apreciou a inconstitucionalidade da Lei PMA, BENJAMIM RoDRIGUES considerou que "não existem dúvidas que a Constituição reconhece o direito de ter filhos a quem os pode gerar (artigo 68. 0 ) " , mas não entende que "ela reconheça qualquer direito fundamental a quem só os possa obter através da doação de terceiros, dado que se não se trata de urna prestação que o estado possa reclamar de terceiros ou satisfazer directamente". 58 Este último argumento, contudo, não deve proceder: naturalmente, a tutela do direito a procriar, com recurso a técnicas de procriação medicamente assistida ou por via natural, é, antes de mais, urna obrigação de não intervenção ou intervenção mínima, isto é, incumbirá ao Estado o dever de não intervir, pelo menos desproporcionalmente, no seu exercício, nos termos do artigo 18.0 da CRP; o direito a procriar estabelece, em relação ao Estado, urna mera obrigação de meios, mas ,não de resultados. Acresce que esta obrigação de meios, quanto à procriação me icarnente assistida, está prevista nos artigos 36. 0 e 67. 0 da CRP, vinculando o Estado a reconhecer e regulamentar a procriação medicamente assistida, garantir o seu acesso sem discriminações e proteger os interesses e direitos de todos os intervenientes. 55

GUILHERME DE OLIVElRA, Mãe há só Uma - o Contrato de Gestação, Coimbra Editora, Coimbra, 1992, p . 51. 56 TIAGO DuARTE, h1 Ví'tro Veritas? A Procriação Medicamente Assistida na Constituição e na Lei, 2003, Almedina, Coimbra, p. 35, fazendo ainda referência a GUILHERME DE OLIVEIRA," Aspectos Jurídicos da Procriação Assistida", in Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, Ano 49, 1989, p . 774. Sem prejuízo, TIAGO DUARTE ressalva (citando GUILHERME DE OLIVEIRA, "O estabelecimento da filiação, mudança recente e perspectivas", in Temas de Direito da Família, Almedina, 1986, p. 107): "a resposta, porém, não deve considerar-se definitiva nesta segunda hipótese (mãe portadora que não contribui com o óvulo)". 57 V. FERNANDO ARAúJO, A procriação assistida e o problema da santidade da vida, Almedina, Coimbra, 1999. 58 Acórdão do Tribunal Constitucional n .0 101/2009, de 3 de Março (publicado no Diário da República, 2." série, n. 0 64, de 1 de Abril de 2009, e disponível em www.dre.pt, ou em www. tribunalcons titucional. pt) .

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Julgamos que a ordem jurídica portuguesa consagra um direito fundamental a procriar, através de recurso a técnicas de procriação medicamente assistida, nos termos do artigo 36. 0 , número 1, da CRP59 . A própria CRP impõe ao Estado, no já aludido artigo 67. 0 , no âmbito do seu dever de protecção da família, o dever de regulamentar a procriação medicamente assistida, em termos tais que salvaguardem a dignidade da pessoa humana (alínea e) do número 2 daquele artigo), admitindo, assim, um "pluralismo mundivivencial ou de concepções" 60 , desde que sempre ancorado e respeitando tal dignidade. Esta norma reveste a maior importância, na medida em que reconhece a procriação medicamente assistida como fonte de relações familiares legítima, oferecendo ainda, expressamente, a referência normativa que deve pautar essa regulamentação61 • Naturalmente, este direito, como qualquer outro, não é reconhecido de modo ilimitado e sem possibilidade de restrições. Assim, reconhecendo-se um direito a procriar com recurso a técnicas de procriação medicamente assistida, o exercício do mesmo deverá ser regulamentado. Esta regulamentação, no entanto, na medida em que estabelecer restrições ao direito a procriar, deverá obedecer aos limites já anteriormente referidos. Designadamente, as restrições deverão ser proporcionais, necessárias e adequadas à protecção de outros direitos fundamentais e interesses constitucionalmente protegidos. Finalmente, a intromissão do Estado no exercício do direito a procriar, mesmo com recurso a técnicas de procriação medicamente assistida, deverá respeitar o conteúdo mínimo do direito em questão, nos termos anteriormente referidos. Poder-se-á questionar, então, se a proibição da maternidade de substituição não será inadmissível, por restringir o direito a procriar sem observância dos requisitos mencionados. Com efeito, em caso de impossibilidade de suportar uma gravidez por ausência ou lesão do útero da mulher potencial beneficiária, o 59

MARTA CosTA, Convivência More Uxorio na perspectiva de harmonização do Direito da Família Europeu: Uniões Homossexuais, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pp. 535 ss. 60 V. Acórdão do Tribunal Constitucional n .0 105/90, de 29 de Março (disponível em www. tribunalconstitucional.pt). V. também Relatório PMA, AGOSTINHO ALMEIDA SANros/MICHEL RENAUD PEREIRA/RITA AMARAL CABRAL, membros do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, 2004, p. 17, disponível em www.cnecv.gov.pt. 61 V. Acórdão do Tribunal Constitucionaln. 0 101/2009, de 3 de Março (publicado no Diário da República, 2." série, n. 0 64, de 1 de Abril de 2009, e disponível em www.dre.pt, ou em www.tribunalconstitucional.pt): "O legislador constitucional não se limitou, como se vê, a impor um dever de regulamentar a procriação medicamente assistida. Deu ainda uma referência normativa, uma indicação de princípio, a que o legislador ordinário se deverá submeter, ao exigir que a matéria seja regulada «em termos que salvaguardem a dignidade da pessoa humana. A norma resolve, por um lado, a questão da admissibilidade constitucional da procriação assistida, ao estabelecer uma imposição constitucional de regulação; mas, simultaneamente, não reconhece um direito a toda e qualquer procriação possível segundo o estado actual da técnica, excluindo, à partida, as formas de procriação assistida lesivas da dignidade da pessoa humana (Gomes Canotilho/Vital Moreira, CRP Anotada, vol. I, 4." edição, Coimbra, pág. 859)".

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conteúdo mínimo do direito a procriar será totalmente aniquilado e inexistente, sendo possível questionar se não é violado o número 3 do artigo 18. 0 da CRP, que limita as restrições legalmente admissíveis aos direitos fundamentais. A questão é ainda mais pertinente, considerando o disposto no artigo 4. 0 da Lei PMA- nos termos do qual a utilização de procriação medicamente assistida só pode verificar-se mediante diagnóstico de infertilidade, para tratamento de doença grave ou prevenção do risco de transmissão de doenças de origem genética, infecciosa ou outras. Assim sendo, parece que os indivíduos inférteis, sempre se poderão reproduzir, já que o seu diagnóstico de infertilidade lhes confere o direito de acesso às técnicas de procriação medicamente assistida; já as mulheres que, sendo férteis (e não podendo, por isso, recorrer a técnicas de procriação medicamente assistida, nos termos do artigo 4. 0 da Lei PMA), não podem contudo suportar uma gravidez, por motivo de lesão ou ausência de útero, doença ou outro, nunca se poderão reproduzir, já que a única alternativa que se adapta ao seu problema é proibida, não lhes restando qualquer outra. Esta era, precisamente, a situação da Sra. Stern, no célebre caso Baby !vf'Z: a mulher beneficiária (a Sra. Stern) não era infértil, mas tinha sido diagnosticada com esclerose múltipla - doença não transmissível e menos hereditária do que qualquer histórico familiar de problemas cardíacos ou alergias -, pelo que o parto constituía um risco consideravelmente elevado para a sua saúde63 • 62

Este caso ocorreu nos EUA, em 1986: dois cônjuges, heterossexuais, recorreram a um centro de tratamento de esterilidade, o qual operou como mediador entre o casal e uma mulher que estava disposta a ser fecundada com o sémen do cônjuge e a entregar a 1 cv ança ao casal aquando do seu nascimento. Todavia, a portadora da gravidez arrependeu-se, recusando-se, a final, a entregar a criança. Os cônjuges pediram ao tribunal que a condenasse a tal, pois, por força do contrato celebrado entre as partes, a criança deveria ser considerada filha do casal. O tribunal decidiu que as partes tinham celebrado um contrato válido, pelo que a criança deveria ser entregue aos cônjuges. Posteriormente, o Supremo Tribunal de New Jersey modificou a decisão, deliberando que os acordos de maternidade de substituição só eram válidos se constituíssem o resultado de um acto de liberdade da mãe portadora da gravidez. O acordo foi considerado revogável relativamente aos direitos parentais. A maternidade foi reconhecida à mulher portadora, e a paternidade ao marido do casal de beneficiários. Não obstante, o Supremo Tribunal entregou a guarda da criança aos cônjuges, dado ter entendido que eles poderiam garantir-lhe um crescimento mais sereno e equilibrado. Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de New Jersey, de 3 de Fevereiro de 1988. V. também, entre muitos, MARTA CoSTA, Convivência More Uxorio na perspectiva de harmonização do Direito da Família Europeu: Uniões Homossexuais, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, pp. 527 ss, e PAULA MARTINHO DA SILVA/MARTA CoSTA, A Lei da Procriação Medicamente Assistida Anotada, Colecção PLMJ, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, p. 58. 63 Os estudos sobre esclerose múltipla, doença auto-imune, degenerativa e crónica, têm demonstrado que, embora o período da gravidez seja um período relativamente protegido relativamente à evolução da doença, este risco aumenta significativamente durante e após o parto (bem como em caso aborto espontâneo), pelo que a gestação levada a cabo

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A proibição da maternidade de substituição, analisada nesta óptica, não será ilegítima, por desproporcionada, permitindo que as mulheres inférteis se possam reproduzir, mas já não aquelas que, sendo férteis, não podem suportar uma gravidez? Neste último caso, não haverá ainda violação do conteúdo mínimo do direito em causa, visto que não permanece salvaguardado qualquer conteúdo? Entendemos, com efeito, que o conteúdo mínimo do direito a procriar, no caso das mulheres férteis que não podem suportar uma gravidez, é integralmente aniquilado. Não será a proibição da maternidade de substituição uma restrição profundamente desproporcionada, injustificada e injusta - logo inconstitucional -, por violação do artigo 18.0 da CRP? Questionamo-nos ainda se esta proibição não será maior violação da dignidade humana, por negar totalmente às mulheres que sofram de ausência ou lesão de útero, ou outra doença que as impeça de levar a cabo uma gravidez, a possibilidade de recorrerem à única técnica médica que se adequa à sua situação clínica, do que a admissibilidade da maternidade de substituição, ainda que em termos restritíssimos. O argumento segundo o qual estaria ainda salvaguardado o conteúdo mínimo deste direito, na medida em que a adopção é sempre alternativa possível64, não procede, no nosso entendimento. Naturalmente, "o interess~ das crianças já existentes em encontrar uma família, e o conexo interesse de toda a sociedade em fornecer um lar a essas crianças, não pode ser menosprezado no momento de analisar a legitimidade das técnicas de procriação assistida e da maternidade de substituição (... ) [mas] o mesmo argumento poderá invocar-se contra casais férteis. Por que lhe é permitido reproduzirem-se quando há tantas crianças por adoptar?" 65 Com efeito, apesar das afinidades entre estes dois tipos de filiação, estão em causa institutos diferentes, e que podem corresponder a interesses diferentes. O desejo (e direito) de procriar não é equivalente ao desejo (e direito) de adoptar66 e, reconhecendo-se a nobreza da decisão de adoptar, essa nobreza não pode ser por uma mulher com esclerose múltipla acarreta sério risco para a sua saúde. GuiLHERME DE ÜLIVEIRA, "Legislar sobre Procriação Assistida", in Temas de Direito da Medicina, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pp. 49 ss; Francesca Cristiani, "ln tema di rapporti tra inseminazione artificiale e adozione", in Il diritto di famiglia e delle persone, 1987, pp. 1049 ss. 65 VERA LúciA RAroso refere: "Aliás, a sociedade, no seu todo, tem responsabilidades para com as crianças sem lar. Logo, não é legítimo colocar um encargo tão pesado sobre estas pessoas [inférteis], imputando-lhes toda a responsabilidade de encontrar um lar para abandonados." (De Mãe para Mãe- Questões Legais e Éticas suscitadas pela Matemidade de Substituição, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 23). 66 V. TIAGO DuARTE, ln Vitro Veritas? A Procriaçao Medicamente Assistida na Constituição e na Lei, 2003, Almedina, Coimbra, p. 91: "[E]nquanto se continuarem a estabelecer paralelismos entre este contrato e a adopção, a proibição continuará. Creio que já vai sendo tempo de não pretender regular da mesma forma, recorrendo à analogia, situações que, à partida, são diferentes, embora se reconheça terem pontos comuns". 64

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imposta, exigida ou sequer esperada. Esta distinção é, aliás, a razão pela qual o projecto de lei n. 0 131/XII (supra referido), no âmbito da alteração à Lei PMA, prevê a limitação do recurso à maternidade de substituição aos casos em que haja recurso aos gâmetas de, pelo menos, um dos respectivos beneficiários: caso não exista qualquer vínculo genético com a criança que venha a nascer, deixará de estar em causa o exercício de um direito a procriar, pois não estaríamos em presença de situação distinta do instituto da adopção, caso em que se relativiza o interesse em "criar" um novo ser humano para os mesmos efeitos que assistem a este instituto. Tudo considerado, cremos que, reconhecendo o direito fundamental a constituir família e, em particular, com o recurso a técnicas de procriação medicamente assistida - sem nunca significar que o mesmo seja absoluto e ilimitado -, a intervenção restritiva, por parte do Estado, só deverá ser admitida em ponderação com outros direitos fundamentais, interesses e princípios constitucionalmente protegidos, como o superior interesse da criança ou a dignidade da pessoa humana, e sempre numa óptica de proporcionalidade e salvaguarda do conteúdo mínimo. Com efeito, e nas palavras de GoMES CANOTILHO e VITAL MoREIRA, o artigo 36. 0 da CRP "só poderá oferecer algum subsídio para a questão em conjugação com os princípios da dignidade da pessoa humana e do Estado de direito democrático, que garantem simultaneamente a irredutível autonomia pessoal, bem como os seus limites" 67 • Resta notar que, caso não se encontrem reunidos os requisitos constitucionalmente estabelecidos, e já analisados, relativamente a restrições do direito fundamental a procriar, nomeadamente com recurso a técnicas de pro riação medicamente assistida, a intervenção do Estado é inadmissível, e a regra deve ser a da liberdade das partes no exercício deste direito, em particular, a livre decisão e celebração de um contrato de maternidade de substituição. (n) DIREITO soBRE o PRóPRIO CoRPO (DA MÃE DE GESTAÇÃo)

É pacífico que o indivíduo é dono e soberano do seu próprio corpo. O indivíduo tem o direito de decidir, por exemplo, fazer um ou sete piercings ou tatuagens, sujeitar-se a tratamentos de acupunctura ou a dolorosas sessões de depilação a laser, doar sangue, vender cabelo, frequentar um salário para queimar a pele, ser fumador, ter relações sexuais com quem e quantas pessoas entender ou mesmo submeter-se a intervenções cirúrgicas apenas para melhorar o aspecto físico. Não há dúvida de que, dentro de certos limites, temos o direito de dispor do nosso próprio corpo. Que limites serão esses? No âmbito da maternidade de substituição, uma mulher pode decidir levar a cabo uma gravidez em nome de outrem? Tenha-se em conta que a mulher portadora corre o risco de abortar, de 67

J.J. GoMES CANOTILHo/VITAL MoREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4." edição, Coimbra Editora, Coimbra, anotação ao artigo 36. 0 •

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sofrer lesões graves e, em casos extremos, até de morte. Deve questionar-se se as mulheres têm, afinal, o direito a dispor do seu útero, decidindo gerar a criança de outrem, ou se, pelo contrário, o Estado deve (e tem legitimidade para) intervir neste acto de disposição do próprio corpo, proibindo-o. O direito a dispor do próprio corpo compreende não só o direito à integridade física, a qual é inviolável (artigo 25. 0 da CRP) e protegida de agressões por quaisquer terceiros, incluindo o Estado (fundamento da criminalização, por exemplo, da agressão, da tortura ou da violação); mas também a autonomia privada na disposição do corpo, que permite a tomada de decisões sobre o mesmo. O direito a dispor do próprio corpo não é unanimemente entendido como um direito fundamental, mas apenas como uma manifestação da liberdade geral sobre a própria pessoa, reflexo da autonomia privada- caso em que o restritivo regime de restrições não se lhe aplicaria, mas antes o regime do Código Civil, designadamente os limites contratuais já anteriormente analisados. Com efeito, existe doutrina que entende que "o direito à integridade física e psíquica condiciona severamente a hipótese de se recortar constitucionalmente um direito a dispor do próprio corpo. Ressalvando as hipóteses de disposição do corpo com efeito post mortem (venda ou dação do cadáver ou parte dele), de substâncias regenerativas (sangue, edula óssea, pele, líquido seminal) ou de órgãos parcialmente doáveis a pessoas com relações de proximidade existencial (ex.: rins), o princípio é o da indisponibilidade do próprio corpo( ...) corolário lógico do princípio da não venalidade do corpo" 68 • Este entendimento, segundo o qual não existe um direito fundamental à disposição do corpo, conduz à aplicação dos limites (anteriormente expostos) relativos à autonomia privada, e já não dos limites às restrições dos direitos fundamentais. Essa conclusão permitirá, por exemplo, que a sensibilidade moral se possa escudar nos bons costumes para justificar a nulidade dos contratos. No entanto, ainda que assim se entenda, a imposição de limites à propriedade sobre o próprio corpo pelo Estado deve ser cautelosa e fundamentada. O corpo de cada um é o que de mais íntimo e próprio o indivíduo possui. Não sendo função do Estado tutelar a virtude ou a moral, ainda que dominante, em nome de quê poderá o Estado proibir determinados actos com o corpo, que não apenas aqueles concretizados em casos extremos que atentem contra a dignidade da pessoa humana? "Como compatibilizar, nalgumas situações, a suposta indisponibilidade e inviolabilidade corporal com a possibilidade de o Homem se autodeterminar racionalmente, auto-realizando-se, recusando por exemplo tratamento? A liberdade do Homem é "liberdade da decisão", não porém no sentido de eleição entre diversas possibilidades de acção mas no de decisão de ele e sobre ele: o Homem determina a sua acção através da livre decisão sobre si mesmo. Maxime, sobre o seu corpo" 69 • 68

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J.J. GoMEs CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4." edição, Coimbra Editora, Coimbra, anotação ao artigo 25.0 • LuísA N ETO, "A revisão do conceito de "ordem pública"? Cinco considerações sobre a le-

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Estamos perante um argumento de oposição à maternidade de substituição frequentemente esgrimido, segundo o qual a disposição do corpo inerente a esta técnica de procriação violaria a dignidade humana, permitindo a comercialização do útero e do corpo para satisfazer interesses reprodutivos de terceiros. Teríamos a instrumentalização do corpo humano, e, em consequência, da própria Pessoa. Vozes existem que chegam a comparar a maternidade de substituição à escravatura70, no sentido em que o corpo - no caso, o útero - seria considerado objecto de propriedade, como uma casa ou um carro, cuja posse, gozo ou fruição se poderia dispor, emprestar ou locar. Não deixa de ser curioso, no entanto, como nota FERNANDO ARAúJ0 71 , que a venda de sémen seja legítima e legal em muitos países, e não levante tamanha animosidade em defesa da dignidade humana, e em oposição da comercialização do corpo humano e das capacidades reprodutivas - mesmo por comparação à maternidade de substituição gratuita. "Conhecem-se os casos de doação de esperma tão popular entre os estudantes universitários que, não escondem, vêm nesta forma fácil e aparentemente altruísta uma modalidade de aumentar a sua mesada" 72 Na verdade, a disposição do corpo compreende actos tão intímos como doação de óvulos e sémen, de cabelo, de sangue, de medula, de pele, de órgãos - todos permitidos em Portugal.

gitimidade de intervenção do Direito na relação do sujeito consigo mesmo", in Scientia Iuridica, Braga, Tomo LX, N. 0 326, 2011, p .331 ss. 70 Entre muitos outros, v. Declaração conjunta sobre Parecer n .0 63 do Conselho Nacional de;;:tica para as Ciências da Vida sobre Procriação Medicamente Assistida e Gestação de Substituição: "A comercialização anónima do corpo abre com efeito a via a novas formas de escravatura'~ (disponível em http: / /www.parlamento.pt/ ActividadeParlamentar/ Paginas/Detalhelniciativa.aspx?BID=36663). 71 FERNANDO ARAúJO, A procriação assistida e o problema da santidade da vida, Almedina, Coimbra, 1999, pág. 30. 72 PAULA MARTINHO DA SILVA/MARTA CosTA, A Lei da Procriação Medicamente Assistida, Colecção PLMJ, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, anotação ao artigo art. 18. 0 • Em Portugal, no entanto, e nos termos deste artigo, "É proibida a compra ou venda de óvulos, sémen ou embriões ou de qualquer material biológico decorrente da aplicação de técnicas de PMA". " [Esta] disposição vai ao encontro do princípio de que o corpo humano não deve ser comercializado nem ao mesmo ser dado valor económico. Este princípio está subjacente a todas as situações que envolvam doação de partes do corpo humano, como é o caso, por exemplo, da doação de órgãos, mas também de tecidos ou células. No entanto, parece estar assente que os actos técnicos que envolvam estes materiais (pasteurização, recolha, teste, purificação, armazenagem, cultura, transporte) são excluídos desta proibição [neste sentido, Relatório Explicativo à Convenção de Biomedicina do Conselho da Europa, disponível em http:/ I conventions.coe.int/treaty I en/Reports/Html/164. htm]. Por outro lado, tais disposições não proíbem que o dador receba uma compensação que, não consistindo numa retribuição dada ao material biológico em si mesmo considerado, compense a pessoa dos incómodos e encargos em que incorreu com a dádiva."

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Menos animosidade levanta, por exemplo, o comércio do sexo: a indústria pornográfica gera carreiras profissionais no âmbito das quais homens e mulheres, actores e actrizes, se obrigam a protagonizar cenas de sexo explícito e profissional. Estes mesmos homens e mulheres recebem um pagamento pelas suas actuações, pela utilização do seu próprio corpo para um dos actos mais íntimos do ser humano, com o objectivo de ser visionado por qualquer indivíduo. Parece que estamos perante uma realidade que, por excelência, instrumentaliza o corpo humano- e o acto sexual- para fins meramente lúdicos de terceiros. Certamente chocará a sensibilidade de muitos, mas a questão que deve ser analisada é a de saber se estamos perante uma violação dos bons costumes e da ordem pública. Deve questionar-se se não constituirão estes contratos- esta realidade- profunda violação da dignidade humana, instrumentalização absurda do corpo humano, e, em consequência, da própria Pessoa. Parece que não, visto que o Estado não proíbe a celebração deste tipo de contratos (de trabalho?, de prestação de serviços?f3, nem tão pouco a realização, produção ou comercialização de materiais ou conteúdos pornográficos. Ora, assim sendo, como justificar que uma mulher possa oferecer o seu corpo e a sua actuação sexual a milhares de espectadores, a troco do paga ento de preço, com fins lucrativos e para fins superficiais de entretenimento, mas já não possa dispor do seu útero, nem a título gratuito, para auxiliar terceiros na concretização dos seus essenciais projectos de vida e de parentalidade? Perguntase se a dignidade humana será violada neste último caso de forma particular, mas já não naquele primeiro. Há ainda quem defenda que é "pelo menos tão difícil admitir que se possa comprar uma gestação como comprar serviços sexuais do domínio da prostituição" 74 • Com efeito, a prostituição não é generalizadamente aceite como consentânea de bons costumes e ordem pública. No entanto, embora não se crendo que pudesse ser requerida judicialmente a execução de um tal contrato (nos termos do qual uma parte se obriga a prestar um acto sexual, contra o pagamento de um preço), a prática da prostituição tão pouco é frontalmente proibida (ressalvando-se a criminalização do lenocínio, isto é, a exploração 73

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Em Portugal, apenas a pornografia de menores é criminalizada, no artigo 176. do Código Penal, o qual dispõe: "Quem a) Utilizar menor em espectáculo pornográfico ou o aliciar para esse fim; b) Utilizar menor em fotografia, filme ou gravação pornográficos, independentemente do seu suporte, ou o aliciar para esse fim; c) Produzi!~ distribuir, importar, exportar, divulgar, exibir ou ceder; É punido com pena de prisão de um a cinco anos". O mesmo artigo pune ainda a prática dos actos anteriormente descritos com carácter profissional ou com intenção lucrativa; dos actos previstos nas alíneas c) e d), utilizando material pornográfico com representação realista de menor; a aquisição ou detenção dos materiais previstos na alínea b); e a tentativa de quaisquer dos anteriormente referidos. GuiLHERME DE OLIVEIRA, Mãe há só Uma - o Contrato de Gestação, Coimbra Editora, Coimbra, 1992, p. 26.

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profissional ou com intenções lucrativas do exerc1c1o, por outra pessoa, de prostituição75), e não havendo normas a proibir ou criminalizar a prostituição, como acontece com a maternidade de substituição. Parece que o Estado, nos exemplos mencionados, se absteve de tomar posição ou imposição sobre os comportamentos das pessoas em causa, arredando pé para deixar que "cada um faça o que entender"- a autonomia privada -, desde que, com isso, não lese direitos de terceiros. Cabe questionar se, no âmbito da maternidade de substituição, a preocupação relativamente à instrumentalização do corpo é coerente com os usos e costumes de disposição e comercialização do corpo vigentes; ou se visa, antes, a protecção de uma sensibilidade moral reticente perante a maternidade de substituição. Como justificar que o Estado proíba (e, em alguns casos, criminalize) que uma mulher disponha do seu corpo (do seu útero) para a gestação de filho de terceiro, e permita, por outro lado (e sem que esse facto levante grande animosidade), a doação de material genético ou a celebração de contratos no âmbito da pornografia, ou que não proíba, nem criminalize a prostituição? VERA LúCIA RAroso entende que o direito a dispor do próprio corpo deve ser sempre analisado na óptica da autonomia pessoal, afirmando que: "De acordo com este princípio, cada pessoa é livre de escolher como conduz a sua vida e utiliza o seu corpo, desde que com isso não lese os outros. Aplicando-se este princípio à maternidade de substituição, conclui-se que as pessoas devem ser livres na realização da sua capacidade reprodutiva, seja colocando os seus "serviços reprodutivos" à disposição (gratuita ou onerosa) de terceiros, seja superando a sua incapacidade reprodutiva (com o auxílio das técnicas reprodutivas, ou com o mfxilio de uma mulher que esteja disposta a gerar uma criança e, porventura, a transmitir-lhe o respectivo material genético)" 76 • É necessário reflectir se a possibilidade de celebração de um contrato de maternidade de substituição constituirá violação da dignidade humana, na medida Com efeito, em Portugal, a prostituição não é uma actividade ilegal, de acordo com o Código Penal. No entanto, não é permitido a um terceiro lucrar, promover encorajar ou facilitar a prostituição, sendo proibida a prostituição organizada tal como os bordéis, grupos de prostituição ou outras formas de proxenetismo. Neste sentido, o artigo 169. do Código Penal dispõe: "Quem, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição é punido com pena de seis meses a cinco anos." (n. 0 1). Estabelece ainda este artigo: "2- Se o agente cometer o crime previsto no número anterior: a) Por meio de violência ou ameaça grave; b) Através de ardil ou manobra fraudulenta; c) Com abuso de autoridade resultante de uma relação familiar, de tutela ou cura tela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho; ou d) Aproveitando-se de incapacidade psíquica ou de situação de especial vulnerabilidade da vítima; É punido com pena de prisão de um a oito anos." O artigo 175. 0 do Código Penal criminaliza, em particular, o lenocínio de menores. 76 VERA LúciA RAroso, De Mãe para Mãe- Questões Legais e Éticas suscitadas pela Maternidade de Substituição, 2005, Coimbra Editora, Coimbra, p. 67. 75

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em que permite a disposição, ainda que a título gratuito, do corpo humano. A mulher que se obriga a gerar um filho de outrém no seu útero terá o direito a utilizar o seu corpo desta forma e para estes fins? Caber-lhe-á, em última análise, a decisão sobre o que fazer com o seu útero, sem que o Estado possa decidir por ela? Ou pelo contrário, este acto viola a dignidade humana, podendo ou devendo o Estado intervir, como o faz, proibindo a técnica de procriação em causa? O artigo 149.0 do Código Penal, por seu lado, estabelece que "para efeito de consentimento a integridade física considera-se livremente disponível" (número 1), acrescentando, no seu número 2, que "para decidir se a ofensa ao corpo ou à saúde contraria os bons costumes tomam-se em conta, nomeadamente, os motivos e os fins do agente ou do ofendido, bem como os meios empregados e a amplitude previsível da ofensa". Bem se vê que, até em matéria criminal, o nosso ordenamento jurídico é relativamente tolerante à livre disposição do corpo, permitindo, inclusivamente, o consentimento na ofensa à própria integridade física; desde que este consentimento não viole os bons costumes, a disposição do direito à integridade física (repita-se, para efeitos da sua ofensa voluntária) é livre e válida. Pressupondo que existe um consentimento informado e esclarecido, parece-nos que o acto de disponibilização, por uma mulher, do seu útero,I. não é mais violador da dignidade humana do que qualquer técnica de reprodução heteróloga - aquelas nas quais se recorre ao material genético de um terceiro, o qual doa (também) parte do seu sistema reprodutor em benefício de um projecto parental que lhe é alheio. Sob o critério da violação da dignidade humana por instrumentalização do corpo, não cremos que seja mais chocante a utilização de útero alheio, do que a fertilização com óvulo ou sémen alheio- caso em que os dados genéticos permanecerão vinculados à criança que vier a nascer durante toda a sua vida, e dos doadores. Uma outra questão que se deve colocar relativamente ao direito sobre o próprio corpo, quando já exista gravidez, é a de saber se, e em que moldes, poderão os beneficiários da gestação exigir ou supervisionar determinados comportamentos da portadora, nomeadamente cuidados de saúde, abstenção de consumo de álcool, drogas ou tabaco, repouso e alimentação equilibrada. Estes cuidados são fundamentais para o bom desenvolvimento do feto, e não nos choca que a mãe hospedeira se possa obrigar a adoptar estes comportamentos obrigações de lacere e de non lacere. Não cremos que a sua autonomia pessoal seja posta em causa; pelo contrário, a autonomia privada exprime-se, precisamente, na faculdade de assumir as obrigações dos contratos que entender celebrar e executar. Todavia, o que sucede se a portadora, a dado momento, se recusar a cumprir? Compreende-se que, não vindo a assumir qualquer maternidade, é possível que esta mãe portadora possa desresponsabilizar-se de alguns cuidados básicos a ter durante uma gravidez. Para esta mesma questão apontava já GUILHERME OuvErRA: "costuma também invocar-se que as mulheres que se prestam a gerar para outrem( ... ) tenderão a constituir uma relação afectiva deficiente com o feto em gestação. Este défice afectivo tenderá a exprimir-se num comportamento

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menos indicado - no uso de drogas nocivas, no consumo de tabaco - sempre ao arrepio das prescrições médicas e com desrespeito manifesto dos contratos que normalmente estabelecem regras de conduta durante a gravidez. Este "estilo de vida" terá consequências perniciosas, e já hoje bem conhecidas, para o desenvolvimento da criança" 77 . Poderão estes ser-lhe impostos, sem coartar este direito de exclusiva disposição do próprio corpo? Que decisão judicial vai impor deveres de não fumar ou não ingerir álcool- e como executar tal decisão? Se a criança vier a nascer com deficiências ou patologias devido a comportamentos irresponsáveis da mãe portadora (que não virá a assumir a maternidade), poderão os beneficiários recusar assumir a criança, por incumprimento do contrato? Qual o destino desta criança? O risco de insegurança do destino da criança é o mais forte argumento de oposição à maternidade de substituição. Relembre-se, no entanto, e como já referido, a opção do legislador a propósito da constituição da filiação por consentimento não adoptivo 78, disposta no artigo 1839.0 , número 3, do Código Civil: proíbe-se que o homem que consentiu na inseminação da mulher com sémen de terceiro (doador) possa voltar atrás na palavra, impugnando a paternidade da criança. Ou seja, na situação em análise, o consentimento na inseminação da mulher por sémen de terceiro determina definitivamente o estabelecimento da filiação da criança que vier a nascer, e - note-se - vincula o cônjuge que o deu, o qual sempre virá a assumir a paternidade, mesmo que contra a sua posterior vontade. Admite-se uma solução deste género também para a maternidade de substituição. Neste termos, o abandono de um filho gerado através da maternidade de substituição por deficiência repugnará tanto quanto o abandono, pelos mesmos motivos, de um filho genética, biológica e afec ivamente relacionado com os progenitores. ; A complexidade desta questão é ampliada, se considerarmos a matéria do aborto: a mãe de gestação poderá decidir interromper a gravidez, sem mais? Como já vimos, toda a limitação voluntária de direitos de personalidade é revogável (artigo 81. 0 , número 2, do Código Civil). No entanto, mesmo os defensores mais acérrimos do direito à interrupção da gravidez não excluem da discussão a ponderação do valor da vida, ainda que potencial. Ora não sendo 'seu' o filho que gera no ventre, a portadora poderá livremente interromper a gravidez, sem o consentimento dos progenitores beneficiários, com base no seu direito de dispor do próprio corpo? Esta questão é especialmente delicada no caso em que os beneficiários são ambos progenitores genéticos da futura criança, cumprindo a portadora a 'mera' função de hospedeira. A actual regulação da interrupção voluntária da gravidez (prevista nos artigos 140. 0 a 142. 0 do Código Penal) parece indicar resposta positiva, nesta

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GuiLHERME DE OuvEIRA,

Mãe há só Uma - o Contrato de Gestação, Coimbra Editora,

Coimbra, 1992, p . 37. 78 Cfr. Nota 17, supra.

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matéria, mesmo quando os beneficiários da maternidade de substituição sejam os progenitores genéticos da criança. De facto, actualmente a mulher pode optar abortar livremente nas dez primeiras semanas de gravidez, sem qualquer necessidade de consentimento do futuro pai da criança, o que aponta para uma prevalência do direito a dispor do próprio corpo, sobre o interesse dos futuros progenitores. Ora, sendo esta a regra, a mulher portadora da gravidez, na maternidade de substituição, poderia decidir abortar nos termos deste artigo, mesmo que não tivesse qualquer relação genética com o feto, e ainda que os beneficiários tivessem, ambos, este vínculo. Considerada a opção legal relativa à interrupção voluntária da gravidez, e ainda que não concordemos com os seus termos (questão cuja análise não teremos, nesta sede, oportunidade de desenvolver), parece que o ordenamento jurídico responde a esta questão, dando particular peso e relevância ao direito a dispor do próprio corpo, ainda que não se lhe reconheça o estatuto de direito fundamental. Mais complicada será a questão de saber se os progenitores beneficiários poderão requerer que a portadora aborte, por qualquer motivo- malformação do feto, incumprimento de cuidados e conduta acordados adoptar durante a gravidez pela mãe portadora ou até mero arrependimento. No entanto, considerado o regime legal da interrupção voluntária da gravidez lícita, acima analisado, a resposta não pode deixar de ser a mesma: também aqui, é a portadora quem decide, em última instância, o que fazer com o seu corpo, e pode não querer sujeitar-se a um procedimento tão sério como este, ou até recusar-se por objecção de consciência. Mas nesse caso, surge outro problema: se a gravidez só é levada ao seu termo por decisão da portadora, quem assume a criança, no final? Fará algum sentido a imposição, à portadora da gravidez, de uma maternidade, como moeda de troca e condição do exercício do direito a dispor do corpo? Repita-se tudo quanto se disse relativamente ao estabelecimento de filiação por consentimento não adoptivo. Entendemos que, a admitir-se a maternidade de substituição, o acordo dos beneficiários não deve permitir que estes denunciem o contrato, uma vez iniciada a gravidez, do mesmo modo que não se permite que o marido da mulher inseminada com sémen de dador revogue o consentimento dado ao estabelecimento da paternidade. Defendemos também que o consentimento dado pela mãe portadora deveria, pelo menos, vinculála a abster-se de interromper voluntariamente a gravidez em curso (salvo se a mesma puser em risco a sua saúde ou integridade física), da mesma maneira que considerámos admissível, supra, a vinculaçao da mãe portadora a adoptar determinados comportamentos (obrigações de lacere e de non lacere), tendo em vista o saudável e regular desenvolvimento da gravidez. Não podemos, no entanto, desconsiderar que a actual legislação sobre a interrupção voluntária da gravidez, tal como vigora, releva com particular incidência o direito de disposição sobre o próprio corpo, e não exige mais consentimento que o da mulher grávida. Em suma, não vemos razão suficiente para que o Estado se deixe repugnar com a disposição do corpo no âmbito da maternidade de substituição, sendo

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tolerante relativamente a outras matérias de igual ou superior sensibilidade. Tãopouco aceitamos a relevância de eventual repulsa da sociedade, na medida em que essa sensibilidade não concida estritamente com a ordem pública, ou não constitua direito fundamental ou outro interesse constitucionalmente protegido, que conflitue com a disposição do próprio corpo no âmbito da maternidade de substituição. Cremos que esta sensibilidade não constitui ordem pública nem outro valor constitucionalmente protegido, mas está, antes, relacionada com valores e morais próprios de determinados indíviduos e sectores da sociedade, que devem ser protegidos com o mesmo vigor que merecem valores e morais opostos. Sendo (ou devendo ser) a sociedade pluralista e democrática, consideramos que existe (ou deve existir) espaço legalmente protegido para todo o tipo de valores e visões. Com efeito, "se as proibições de dispor se impõem normalmente em favor de determinados sujeitos que são os beneficiados pela proibição, para nós trata-se de saber se do suposto benefício legal não pode resultar urna situação que acabe por manietar o sujeito que visava supostamente beneficiar." 79• Nesta medida, não compreendemos que o Estado possa intervir no direito a dispor do próprio corpo da mãe de gestação, permitindo-lhe, nomeadamente, que disponha do seu sexo, mas proibindo-a de dispor do seu útero. (III) DIREITO AO DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE (DE ToDOS OS INTERVENIENTES)

A CRP reconhece a todos, desde a revisão constitucional de 1997, o direito ao desenvolvimento da personalidade, no número 1 do seu artigo 26. 0 • O alcance deste direito é abstracto e bastante abrangente, sendo muito discutido na doutrina. ÜUVEJRA AscENSÃ080 comenta: "À primeira vista, é estranho. Dir-se-ia que cada um desenvolve corrfo quer a sua personalidade, sem que interferências exteriores o possam impedir". GoMES CANOTILHO e VITAL MoREJRA entendem que este direito "não pode ser encarado apenas corno urna liberdade ou direito geral ("direito geral de liberdade") de natureza complementar ou subsidiária. Na qualidade de expressão geral de urna esfera de liberdade pessoal, ele constitui um direito subjectivo fundamental do indivíduo, garantindo-lhe um direito à formação livre da personalidade ou liberdade de acção corno sujeito autónomo dotado de autodeterminação decisória, e um direito de personalidade fundamentalmente garantidor da sua esfera jurídicopessoal e, em especial, da integridade desta" 81 • Estes autores ensinam, assim, que este direito se concretiza na formação livre da personalidade, sem intervenção ou imposição de modelos pelo Estado; e na liberdade de acção, por outro, baseada na 79

LuísA NETO, "A revisão do conceito de "ordem pública"? Cinco considerações sobre a legitimidade de intervenção do Direito na relação do sujeito consigo mesmo", in Revista Scientia Iuridica, Braga, Torno LX, N. 0 326,2011, pp. 331 ss.

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JosÉ OLIVEIRA AscENSÃO," A Dignidade da Pessoa e o fundamento dos direitos humanos", in Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, Ano 68, Tomo I, 2008, pp. 97 ss. 81 J.J. GoMES CANOTILHO/VITAL MoREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4." edição, Coimbra Editora, Coimbra, anotação ao artigo 26. 0 •

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dignidade humana e consequente reconhecimento do Homem como ser dotado de capacidade decisória para determinar o seu próprio projecto de vida. Assim, a Pessoa tem o direito de tomar as suas próprias decisões, desde a maneira como se veste e a música que ouve às ideias que defende, a carreira que escolhe ou os projectos de parentalidade que traça. O direito ao desenvolvimento da personalidade compreende a essencialíssima vertente de liberdade de autodeterminação e autoconformação da identidade, integridade e conduta da Pessoa, subentendendo a proibição, como regra geral, de ingerência dos poderes públicos.82 Neste sentido, o direito de desenvolvimento da personalidade é o direito fundamental mais próximo da autonomia privada, implicando a abstenção do Estado de se intrometer nas decisões do indivíduo, o qual deve ter um amplo espaço de liberdade para decidir o modo de condução da sua vida. No âmbito da maternidade de substituição, é necessário averiguar se este direito abrange ainda as decisões reprodutivas dos indivíduos, no caso, dos beneficiários da maternidade de substituição, que decidem recorrer a este método, e da mãe de gestação, que decide suportar a gravidez em nome daqueles 83 . Os mesmos exemplos utilizados no capítulo anterior também aqui servem: um indivíduo pode desenvolver a su a personalid, de, nomeadamente, fazendo determinadas opções profissionais - como escolher ser actor pornográfico, doar o seu sémen ou óvulos, consentir validamente numa ofensa à sua integridade física -, mas já não poderá recorrer à maternidade de substituição ou disponibilizar-se para gerar um filho por outrem. Qual é, afinal, o limite da liberdade de conformação da personalidade, e onde termina a minha capacidade de livremente definir os meus valores, projectos de vida e objectivos? Pensamos que, neste âmbito, enquanto não se lesem direitos de terceiros, nem se violem interesses constitucionalmente protegidos, a sociedade deve ser pluralista e tolerante, permitindo todo o tipo de escolhas e projectos de vida. A liberdade 82

"O desenvolvimento da personalidade transporta também uma dimensão de liberdade

indispensável à autoconformação da identidade, da integridade e conduta do indivíduo. Neste contexto, o direito ao desenvolvimento da personalidade pressupõe, desde logo, a existência de proibição de ingerências dos poderes públicos", J.J. GoMES CANOTILHo/VITAL MoREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4." edição, Coim83

bra Editora, Coimbra, anotação ao artigo 26. 0 • VERA LúciA RAPoso considera, a este respeito que " [a] mesma liberdade que deve proteger a mulher de intromissões estaduais nas suas decisões reprodutivas (tais como o livre acesso ao aborto ou a contraceptivos, segundo o "women's body, women's rights") deve permitir-lhe contratar nestes termos [de maternidade substituição]", De Mãe para Mãe- Questões Legais e Éticas suscitadas p ela Maternidade de Substituição, 2005, Coimbra Editora, Coimbra, p. 45. V. ainda Acórdão do Tribunal Constitucional n . 288/98, de 18.04.1998, publicado no Diário da República, I Série A, n .0 91 (e disponível em www. dre.pt ou em www.tribunalconstitucional.pt), considerou não inconstitucional a proposta que lhe havia sido submetida, na parte em que admitia a interrupção da gravidez em determinadas situações, invocando o direito ao livre desenvolvimento da personalidade. 0

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individual de conduzir a própria vida segundo determinados princ1p10s e valores não deverá reprimir liberdades diversas, e esta conciliação, baseada na velha máxima "a minha liberdade acaba onde começa a liberdade do outro", deve ser construída com especial cuidado, tratando-se de direitos fundamentais. A função do Estado, neste âmbito, é a de proteger a linha de confronto entre as liberdades de uns e de outros, permitindo, em tudo quanto exceda essa tarefa, que os indivíduos vivam, desfrutem e concretizem os seus princípios, valores e projectos em liberdade e tolerância, sem que ele próprio adopte posições quanto aos mesmos, salvo se estiver em causa outro interesse constitucionalmente protegido (como a dignidade humana, questão que analisaremos adiante). Posto isto, cumpre indagar também se o mesmo direito ao desenvolvimento da personalidade que permite legitimar que alguém possa decidir contratar uma mulher para suportar uma gravidez em seu nome (dentro de determinados requisitos), bem como a decisão da própria mulher hospedeira nesse sentido, não permitirá também fundamentar um "direito" ao arrependimento (pedra-toque da problemática da maternidade de substituição), ainda que em incumprimento do contrato. Com efeito, admitir a celebração de contratos de maternidade de substituição implica admitir também, como em qualquer contrato, a possibilidade de incumprimento do mesmo por qualquer uma das partes. Na verdade, em qualquer contrato, as partes têm a liberdade de facto de incumprir obrigações, sujeitando-se, naturalmente, às respectivas consequências. No entanto, no âmbito de contratos de maternidade de substituição, qualquer eventual incumprimento supera as partes envolvidas, podendo existir já uma criança nascida, e os danos que podem advir desse incumprimento são irreparáveis por mera indemnização a título de resolução por incumprimento. A natureza da maternidade de sulfstituição obriga a ponderar todos os cenários possíveis: o incumprimento por qualquer uma das partes poderá deixar à mãe portadora as hipóteses de assumir a criança nascida que não quis perfilhar ou entregá-la à adopção, aos beneficiários o drama de perderem o filho que consideram seu, e à criança nascida - o mais grave dos cenários - o abandono por todos os intervenientes. A análise da admissibilidade da maternidade de substituição não poderá, assim, deixar de reflectir e acautelar a hipótese do arrependimento. Pergunta-se se algum dos intervenientes poderá, como com qualquer outro contrato, resolver o contrato de maternidade de substituição, e não se admitindo essa resolução, quais as consequências do seu incumprimento, não apenas em relação aos danos ou eventual indemnização (deve admitir-se?), mas também e principalmente à criança que, entretanto, nascerá. Já se antevê que as dificuldades opostas à maternidade de substituição vão desembocar na necessidade de salvaguarda do superior interesse da criança (do qual infra nos ocuparemos). Relativamente aos beneficiários, já foi exposto supra o nosso entendimento: é razoável impor a estes intervenientes, a partir do seu consentimento, a maternidade e/ ou paternidade da criança que vier a nascer, com as consequências normalmente impostas a quaisquer titulares de responsabilidades parentais.

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Quanto à mãe de substituição, porém, a questão é mais delicada, dado o inevitável vínculo afectivo (e, naturalmente, biológico) com a criança que tem dentro de si durante um período de nove meses. Será que a esta mulher pode, a meio ou no termo da gravidez, decidir ficar com a criança? Será uma violência inaceitável "arrancar" a criança dos braços desta mulher? Cremos ser questionável que a maternidade biológica, isto é, aquela que se estabelece pelo nascimento, seja de tal modo relevante que deva, inclusivamente, superar a maternidade genética. Não nos parece líquido que o vínculo estabelecido pela mulher portadora com a criança que leva no ventre seja mais relevante ou mais forte do que o vínculo genético, através do qual se transmitem, inclusivamente, traços físicos e de personalidade, que definem e acompanham a criança por toda a sua vida. Há quem defenda, inclusivamente, que "mãe há-de ser a que transmite o património genético pois só é esse insubstituível, único e irrepetível. É face a ela que se vão estabelecer os impedimentos matrimoniais não obstante se reconhecer que a mãe uterina também beneficia de uma relação forte, certamente inesquecível, com a criança que dá à luz( ... ) mas não é mãe" 84 . Concordamos com este entendimento: parece-nos que, na situação em que os beneficiários tenham ambos contribuído com os seus materiais genéJicos (óvulos ou sémen) para a gravidez, a portadora não poderá reivindicar a maternidade da criança que vier a nascer. Naturalmente, este raciocínio obriga a uma adaptação ou alteração das regras do Código Civil relativamente ao critério de estabelecimento da maternidade, mais conforme com as avançadas técnicas de procriação medicamente assistida hoje existentes, como anteriormente referido. A situação é, porém, mais complexa, em caso de reprodução heteróloga, isto é, recurso a material genético (esperma, óvulos ou embriões) de um terceiro, dador; em particular, se a própria portadora é dadora, tendo contribuído com o seu material genético para a mesma gravidez que suporta no seu ventre. Nestas situações, poderá existir um verdadeiro conflito de "parentalidade" - os tais (pelo menos) cinco potenciais progenitores, referidos logo no início desta análise, dependendo do critério utilizado. Será que, nestes casos (os quais são, aliás, os casos mais comuns de conflitos entre beneficiários e portadora, nos casos reais de maternidade de substituição), a portadora poderá mudar de ideias no âmbito da obrigação a que se vinculou, querendo, a final, assumir a criança (com a qual tem um vínculo biológico e genético) como sua? Parece-nos que esta situação se encontra resolvida pelo regime aplicável às doações de espermatozóides, óvulos e embriões, disposto no artigo 10.0 da Lei PMA: os dadores não podem ser havidos como progenitores da criança que vai nascer. Nestes termos, os beneficiários das técnicas de procriação medicamente assistida são, perante a lei, os progenitores da criança, assumindo o projecto parental como o objectivo primordial do recurso a tais técnicas. Este princípio é 84

ln Vitro Veritas? A Procriaçao Medicamente Assistida na Constituição e na Lei, 2003, Almedina, Coimbra, pp. 72-73.

TIAGO DuARTE,

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consagrado (como, aliás, na totalidade das legislações que permitem o recurso a dador), em prol da estabilidade, não só dos beneficiários da técnica, como também da criança assim nascida. Ora se, no caso em que o material genético pertence à portadora, esta não poderá assumir a maternidade pelo critério da doação do mesmo, a mesma solução poderá (no nosso entendimento, deverá) aplicar-se à maternidade de substituição propriamente dita: se aqueles que doam os seus materiais genéticos são afastados como progenitores da criança que vier a nascer, de igual modo se poderá afastar a mulher que "doa" a função de gestação, não se justificando, aliás, a sua sobreposição liminar aos demais critérios. Concluímos, assim, que, em nenhum caso, deverá ser legítimo, à portadora, a reivindicação da criança. Sobrará o caso em que não exista qualquer relação genética entre a criança que venha a nascer e os beneficiários. Parece-nos, como expusemos e defendemos supra, que a maternidade de substituição já não deverá ser admitida caso não exista qualquer vinculo genético com a criança que venha a nascer. Nessa situação, já não estaríamos em presença de um direito a procriar, mas de realidade semelhante à adopção, caso em que se relativiza o interesse em dar vida a um novo ser humano sem qualquer relação genética ou biológica com os beneficiários da maternidade de substituição, quando nasceram já milhares de crianças que, órfãs ou abandonadas, se encontram na mesma situação.

VII - SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA

Í "Se é certo que a realização dos projectos a ter filhos cabe nas faculdades inseridas no direito ao desenvolvimento da personalidade, não pode desconhecerse que esse direito se realiza mediante a geração de uma pessoa e que é intolerável que a protecção dos direitos da pessoa nascida esteja avassalada aos direitos de quem decidiu que ela havia de nascer" 85. Com efeito, no centro de toda a polémica da maternidade de substituição, não pode deixar de conferir-se especial atenção ao superior interesse da criança86 • 85

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Acórdão do Tribunal Constitucional n . 101/2009, de 3 de Março (publicado no Diário da República, 2.• série, n .0 64, de 1 de Abril de 2009, e disponível em www.dre.pt, ou em www. tribunalcons ti tucional. pt). 86 O princípio do superior interesse da criança é perfilhado como princípio geral na maior parte dos Estados europeus, representando outro dos eventos que mais notoriamente contribuiu para fortalecer a discussão da harmonização no seio do direito da família, trazendo para a ribalta outro ponto de convergência jurídica. Em França, o princípio do superior interesse da criança teve notável influência legal logo desde o início do século XIX. O Código napoleónico estabelecia o poder paternal como uma prerrogativa discricionária conferida ao pai da criança, mas alguns Autores, como PHILIPPEMALAURJE, defendiam já que o poder paternal - actualmente, "responsabilidades parentais" - devia ser exercido de acordo com o superior interesse da criança (Cours de Droit Civil, La

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Conceito indeterminado, e muito embora sem definição legal, o interesse superior da criança pode ser retirado de diversos instrumentos e diplomas que o consagram, e o elevam a princípio relevantíssimo. Este princípio significa que todas as decisões que digam respeito à criança devem ter plenamente em conta o seu interesse, o qual deve ser especialmente considerado em relação aos demais, e devendo o Estado garantir à criança cuidados adequados quando os pais, ou outras pessoas responsáveis por ela, não tenham capacidade para o fazer 87 . O superior interesse da criança é, assim, "um princípio jurídico-formal, que actua como critério orientador; um standard hermenêutico (ou seja, um parâmetro auxiliar na concretização); uma pauta para a conformação do ordenamento jurídico pelo legislador; uma pauta obrigatória na resolução de casos concretos" 88 • São inúmeros os diplomas que tutelam o superior interesse da criança. A Declaração dos Direitos da Criança89 dispõe: "A criança gozará de protecção especial e deverão ser-lhe dadas oportunidades e facilidades através da lei e outros meios para o seu desenvolvimento psíquico, mental, espiritual e social num ambiente saudável e normal e em condições de liberdade e dignidade. Na elaboração das leis com este propósito, o superior interesse da criança constituirá a preocupação fundamental" 90• Também a Convenção dos Direitos da Crianç;9 1 o prevê, literal e expressamente, na maioria dos seus artigos (designadamente 3. 0 , Famille, Cujas, Paris, 1989, n . o 789). Na Alemanha, por sua vez, o princípio vem enfatizado em publicações de índole psiquiátrica e psicológica desde a década de 60. Hodiernamente, as legislações dos países europeus concedem-lhe um valor proeminente, especialmente em matéria de adopção, designando-o através de termos variados, como: "justos motivos" e "vantagens para o adoptado" (Bélgica e Luxemburgo); "bem-estar", "bem da criança" ou "welfare" (Alemanha, Inglaterra, Áustria, Dinamarca, Finlândia, Irlanda, Suíça); "reais vantagens" (Portugal); "interesse do adoptado" (França, Grécia, Noruega, Suécia); "superior interesse da criança" (Portugal, Espanha e Itália); "manifesto interesse da criança" (Holanda); etc. A Convenção das Nações Unidas relativa aos Direitos das Crianças de 1989, por sua vez, recorre à fórmula "superior interesse da criança". 87 V. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 08.07.2008 (proc. n .0 5895 /2008-1): "Não existe uma definição legal se superior interesse do menor, mas o mesmo tem de ser entendido em termos suficientemente amplos de modo a abranger tudo o que envolva os legítimos anseios, realizações e necessidades daquele e nos mais variados aspectos: físico, intelectual, moral, religioso e social"; v. também, do mesmo Tribunal, acórdão de 06.04.2006 (proc. n. 0 1977 /2006-6); acórdão de 20.10.2005 (proc. n. 0 8552/2006-6); acórdão de 01.04.2004 (proc. n. 0 2476/2004-6); e acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 06.12.2007 (proc. n .0 2256/07-3); entre outros, todos disponíveis em www.dgsi.pt. 88 JosÉ DE MELO ALEXANDRINO, "Os Direitos das Crianças- Linhas para uma construção unitária", in Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, Ano 68, I, 2008, pp. 275-309. 89 Adoptada pela Assembleia das Nações Unidas de 20 de Novembro de 1959. 90 Princípio 2. 0 da Declaração dos Direitos da Criança, de 1959. 91 Adoptada pelas Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990.

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9.", 15.", 18.", 20. 0 , 21. 0 , 37. 0 , 40. 0 ), bem como nos seus Protocolos Facultativos92 • O próprio Parlamento Europeu reconhece que "a protecção da criança deve ser orientada de acordo com o interesse superior da criança, com os princípios da liberdade e da dignidade da mesma" 93 . A CRP também o consagra, não só através da recepção dos instrumentos internacionais acima referidos nos termos do artigo 8. mas também de forma mais directa, através do artigo 69. o qual dispõe que as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão, e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições. Esta norma encontra-se sistematicamente inserida na categoria dos direitos e deveres sociais, isto é, fora do âmbito do regime especial dos direitos, liberdades e garantias. Cabe, neste âmbito, ressalvar que, embora seja admissível a restrição de um direito de máxima protecção constitucional - o direito a procriai~ com recurso a técnicas de procriação medicamente assistida -, em nome da protecção de mn direito igualmente fundamental - o direito à protecção da infância -, este último apenas usufruirá do regime especial consagrado o artigo 18. 0 da CRP (o qual estabelece a regra restritiva das restrições dos direitos, liberdades e garantias) se for considerado direito de natureza análoga 94 • Parece-nos, quanto a isto, inteiramente razoável que se lhe reconheça tal natureza análoga: é possível, actualmente, falar de ponderação de princípios constitucionais, e não unicamente de valores, não se duvidando do relevo fundamental do princípio da protecção da infância, mesmo face ao princípio da protecção da família, superando-se assim aquela eventual dificuldade. Acresce que, ao lado deste princípio tutelado constitucionalmente, não se pode deixar de reconhecer o direito individual de cada criança, enquanto pessoa, ao livre desenvolvimento da sua personalidade, consagrado no artigo 26. 0 da CPR, que faz inegavelmente parte do cardápio dos direitos, liberdades e garantias. GoMES CANOTJLHO e VITAL MoREIRA acrescentam, a este propósito: "A noção de desenvolvimento integral [da criança] - que deve ser aproximada da noção de desenvolvimento da personalidade - assenta em dois pressupostos: por 0

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Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo à Venda de Crianças, Prostituição e Pornografia Infantis, e Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança relativo ao Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados, ambos adoptados pela Assembleia Geral nas Nações Unidas em 25 de Maio de 2000 e ratificados por Portugal, respectivamente em 16 de Maio de 2003 e 19 de Agosto de 2003. Resolução A3-314/91, sobre os problemas da criança na Comunidade Europeia (JO n." C13 de 20.01.92, pp. 536 e 537). Dispõe o artigo 17. da Constituição da República Portuguesa: "O regime dos direitos, liberdades e garantias [do qual o artigo 18. 0 faz parte] aplica-se aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga." Sobre o que (ou quais) sejam os direitos fundamentais de natureza análoga, v. J.J. GoMES CANOTILHO/VITAL MoREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.a edição, Coimbra Editora, Coimbra, anotação ao artigo 17.".

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um lado, a garantia da dignidade da pessoa humana (dr. art. 1°), elemento estático, mas fundamental para o alicerçamento do direito ao desenvolvimento; por outro lado, a consideração da criança como pessoa em formação, elemento dinâmico, cujo desenvolvimento exige o aproveitamento de todas as suas virtualidades 95• Acrescentam ainda que, a partir das dimensões fundantes da dignidade da pessoa da criança e do desenvolvimento da personalidade, colocarão os interesses da criança como parâmetro material básico de qualquer política de protecção de crianças e jovens". Assim, na análise da admissibilidade da maternidade de substituição, "deverá também a análise sobre o melhor interesse do menor ser exaustivamente analisada e ponderada, pois trata-se de uma matéria em que as soluções adoptadas são, por natureza, irreversíveis e afectam profundamente o ser e a vida de um menor, que também por natureza não tem liberdade de escolha" 96• A análise crítica e eventual reformulação do enquadramento legal da maternidade de substituição devem, impreterivelmente, considerar o superior interesse da criança, a qual deve beneficiar, no seio de uma família, de um desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, bem como do seu direito a viver num ambiente familiar estável do ponto de vista afectivo e económico. O superior interesse da criança deve pautar toda a dec~ão, regulamentação e intervenção, quer do Estado, quer dos seus responsáveis. • Perguntamo-nos, então, se a admissibilidade da maternidade de substituição, só por si, prejudica, ou de algum modo põe em causa o superior interesse da criança, ou seja, se o seu bem-estar, saúde, compleição, inteligência e equilib rio emocionais e psicológicos estarão em perigo, por ter sido gerada no ventre de uma mulher que não é sua progenitora. Estarão em risco, por via do recurso a esta técnica de procriação, os seus futuros legítimos anseios, realizações e necessidades físicas, intelectuais, morais, religiosos ou sociais? Será que, como entende o actual Bastonário da Ordem dos Advogados, "dificilmente este filho(a) deixará de ser visto como um filho( a) alheio ou estranho, pelo componente do "casal estável" que não é progenitor biológico com prejuízo para o filho( a) constituído desta forma" 97? Não nos parece. Numa sociedade que se revela - e ainda bem- cada vez mais pluralista, e onde os progressos da ciência se sucedem de forma vertiginosa, não cremos que as crianças que venham a nascer neste século estranhem a existência de várias formas de nascimento, através do recurso a várias técnicas médicas. Acresce que, num mundo repleto de crianças cujos nascimentos são fruto de um descuido ou de ausência de planeamento familiar, e de crianças órfãs ou abandonadas, esta criança certamente terá especial consciência do quão desejada foi. Mais: as crianças 95

J.J. GoMEs CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4."

edição, Coimbra Editora, Coimbra, anotação ao artigo 69. 0 • RITA RoQUE DE PINHo, "Procriação Medicamente Assistida, Liberdade de Escolha", in Boletim da Ordem dos Advogados, n. 0 87, Fevereiro 2012, pp. 24-25. 97 Parecer da Ordem dos Advogados sobre o Projecto de Lei n. 0 122/XII (BE), o Projecto de Lei n .0 127 /XII (BE), o Projecto de Lei n. 0 131/XII (PS), o Projecto de Lei n. 0 137 /XII (PS) e o Projecto de Lei n .0 138/XII (PSD), disponível em www.parlamento.pt. 96

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de hoje são mais receptivas do que as gerações que as antecedem à diferença na família. São mais os filhos de pais divorciados, casais multirraciais, homossexuais ou solteiros, que aqueles que ainda vivem no seio de uma família tradicional. Tudo passa, a final, pela educação e ambiente que os pais proporcionam ao crescimento e desenvolvimento harmonioso, equilibrado e são, em todas as vertentes da vida da criança. E esta educação e ambiente não estão, de modo algum, relacionados com a forma como cada um nasce. As considerações acima expostas não respondem, no entanto, aos sérios problemas que podem ser suscitados em caso de arrependimento ou incumprimento por alguma das partes do contrato em causa, quer dando lugar a um conflito positivo pela perfilhação da criança, situação em que ambas as partes, beneficiários e portadora, reivindicariam a sua paternidade e/ ou maternidade; quer (caso de maior gravidade) dando lugar a um conflito negativo, situação em nenhuma das partes quer perfilhar a criança. Os exemplos de cada uma das situações expostas são fáceis de adivinhar: na primeira, a portadora deixa-se envolver emocionalmente com a criança que gera dentro de si, e acaba por recusar enh·egá-la aos beneficiários98; na segunda, os beneficiários recusam receber a criança, por esta sofrer anomalia ou deficiência, ou porque, entretanto, se separaram99 • Nestas situações, o incumprimento do contrato celebrado entre os beneficiários e a portadora não afecta apenas, nem sobretudo, o interesse das partes, mas principal e irreversivelmente o interesse da criança nascida ou que vier a nascer, que poderá ser sujeita ao conflito entre todas as partes envolvidas, ou ao abandono e rejeição por todas elas. Argumentar que os beneficiários desejam profundamente a criança que vier a nascer não responde à hipótese de conflito positivo (caso em que ambas as partes envolvidas, portadora e beneficiários, reclamam a maternidade e/ ou patemidade da 'criança), nem é suficiente para afastar a preocupação pelo supremo interesse da criança, e bastará que haja lugar a uma minima possibilidade de situação de abandono da criança que vier a nasce1~ para que se imponha o abrandamento de qualquer euforia legislativa nesta matéria, e uma séria ponderação nas questões potencialmente suscitadas. Será interessante perguntar, com JosÉ DE MELO ALEXANDRINO, se deve ser reconhecido um princípio de in dubio pro puerd00 , isto é, Foi o que aconteceu no célebre caso Baby M(cfr. Nota 61, supra). Em 2008, ocorreu um caso como o descrito, que chamou a atenção da imprensa da Índia (país onde é permitido o recurso à maternidade de substituição): um casal japonês celebrou um contrato de maternidade de substituição com uma mulher oriunda da Índia, que em Julho desse ano deu à luz uma criança. O casal separou-se antes do nascimento, e tanto a portadora como a beneficiária (e mãe genética da criança) se recusaram a perfilhar a criança. O pai biológico, por seu lado, não podia recorrer à adopção da criança, dado que as leis indianas não permitem a adopção por homens solteiros. Notícia disponível em http: I I www.bbc.co.ukl portuguesel reporterbbcl story 12008 I 08 I 080806_maedealuguelindiafn.shtml, a 23.05.2012. 100 JosÉ DE MELO ALEXANDRINO, "Os Direitos das Crianças- Linhas para uma construção unitária", in Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, Ano 68, I, 2008, pp. 275-309. 98 99

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em caso de dúvida, resolva-se a favor da protecção do superior interesse da criança. Afinal, o perigo de desprotecção da criança que pode advir da possibilidade de conflito entre portadora e beneficiários será motivo suficiente para justificar a sua absoluta e liminar proibição? O abandono e o tratamento negligente de crianças é fenómeno não raro: no último ano, foram acompanhadas pelas Comissões de Protecção de Menores quase 68 mil crianças, a maior parte das quais nas faixas etárias até aos 5, e entre os 11 e os 14 anos101 • Por outro lado, a sujeição de crianças a conflitos pela sua guarda - frequentemente caracterizados por elevados níveis de hostilidade, e nos quais muitas vezes a criança é utilizada como "arma" contra a outra parte102 - é situação cada vez mais comum. Estas problemáticas são seriamente prejudiciais para o harmonioso desenvolvimento da criança, em todas as suas vertentes, e constituem exemplos flagrantes de violação do seu supremo interesse, exigindo do Estado estruturas, normas e medidas de prevenção para a sua protecção. Caberá, no entanto, questionar se a infeliz constatação da existência destas realidades justificará a proibição, pelo Estado, do direito de procriar, em particular, com recurso à maternidade de substituição, ou se será antes mais consentâneo com o sistema jurídico vigente, e com o próprio princípio da proporcionali~ade, submeter os beneficiários da maternidade de substituição aos mesmos deveres e responsabilidades que recaem sobre quaisquer outros progenitores; em particular, cometendo-lhes também as mesmas consequências em caso de violação daqueles. De facto, note-se que o risco ou receio de maternidade e/ ou paternidade irresponsáveis não legitimam o Estado a intervir preventivamente, proibindo ou restringindo a procriação em nome de um princípio de cautela desmesurada. Seria irrazoavelmente desproporcionado se o direito fundamental a constituir família pudesse ser genericamente limitado ou excluído à partida, em nome do receio de violação das respectivas responsabilidades parentais (e, em última análise, do supremo interesse da criança). Da mesma maneira que o Estado não pode, por exemplo, coagir uma mulher com escassos recursos económicos, que tenha já sete 101

Dados divulgados numa peça noticiosa divulgada pela estação de rádio TSR consultada e disponível no site www.tsf.pt a 23.05.2012. 102 O Síndrome da Alienação Parental é um claro exemplo desta forma de violação do superior interesse da criança resultante de conflitos entre os seus progenitores. Trata-se de um conceito proposto pela primeira vez pelo psiquiatra norte-americano Richard Gardner, em 1985, para descrever as consequências resultantes da situação em que a mãe ou o pai de uma criança a influencia para romper os laços afectivos com o outro progenitm~ através de uma campanha de brainwashing destinada a denegrir o progenitor alienado. Os casos mais frequentes do Síndrome da Alienação Parental estão associados a situações de ruptura da vida conjugal, onde o filho é utilizado como instrumento de agressividade no processo de destruição, vingança, desmoralização e descrédito do ex-cônjuge. A criança desenvolve, assim, fortes sentimentos de ansiedade, ódio ou temor em relação ao seu progenitor alienado. A criança é colocada no meio do conflito e ganha um papel de colaboração activa nesta campanha, sujeita a manipulação.

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filhos, a não voltar a engravida!~ tão pouco poderá rejeitar o recurso à maternidade de substituição com fundamento no hipotético perigo de rejeição da criança: acresce que este perigo não reveste especial probabilidade, no âmbito da maternidade de substituição, por confronto às demais formas de procriação. Não cremos que os potenciais beneficiários da maternidade de substituição, como todos os beneficiários de quaisquer técnicas de procriação medicamente assistida e quaisquer indivíduos que desejem reproduzir-se de modo natural, possam ser st*itos a restrições preventivas (arbitrárias, desadequadas e desproporcionadas) ao seu direito a procriar, sem fundamento justificado. É impossível controlar a "habilidade" de qualquer indivíduo para ser progenitor, sendo igualmente impensável controlar a procriação com base nesse critério. Cremos, outrossim, que aos beneficiários da maternidade de substituição devem ser reconhecidos os mesmos poderes-deveres resultantes das responsabilidades paternais, que cabem a quaisquer outros pais e mães, em particular o direito-dever de educação, sustento e manutenção dos filhos. Não queremos, com o exposto, negligenciar ou subvalorizar as complexas realidades que podem resultar da celebração e incumprimento do contrato de maternidade de substituição. Pelo contrário, entendemos que as relações entre as partes contratantes e a criança que venha a nascer devem ser cuidadosamente reguladas, e feitas cumprir nos termos gerais: os conflitos positivos e negativos entre as partes sobre a perfilhação devem encontrar-se previamente resolvidos, através de regulamentação que defina expressa e claramente a maternidade e/ ou paternidade da criança que vier a nascer. A dignidade da criança nascida com recurso à maternidade de substituição (ou a qualquer outra técnica de procriação medicamente assistida) ditará que lhe seja conferida a mesmíssima especial protecção que assiste a qualquer outra, em ambos os casos sempre se considerando as suas especiais necessidades e circunstâncias, independentemente do seu modo de nascimento.

VII -

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não há dúvidas de que a maternidade de substituição, como qualquer outra matéria onde os avanços da ciência permitam superar os obstáculos da natureza, suscita inúmeras questões e desafios, dando lugar a vivos e complexos debates, sob perspectivas tão variadas como o Direito, a Ética, a Moral e até a Religião. "A procriação artificial coloca questões que ultrapassam o campo da terapêutica e da ciência que as fez nascer. Põem em causa o estado das pessoas, as estruturas familiares e as liberdades individuais do ser humano" 103• As tomadas de posição neste tipo de temas são, muitas vezes, emotivas e intimamente enraizadas nas convicções pessoais dos seus defensores. 103

PAULA MARTINHO DA SILVA, A Procriação Artificial. Aspectos fwidicos, Moraes Editores, Lisboa, 1986, p.107.

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Reconhecemos a multiplicidade de problemáticas que resultam, ou podem resultar, da celebração de um contrato de maternidade de substituição, próprias da figura em questão, ou comuns a qualquer técnica de procriação medicamente assistida. Não falamos apenas das questões de fundo, éticas e valorativas, relacionadas com o valor da maternidade, do corpo humano, da vida e da dignidade humanas, as quais obrigam a um exigente e profundo exercício de reflexão e ponderação de interesses, valores e princípios; a análise da maternidade de substituição suscita ainda dificuldades complexas de ordem prática e real, e, portanto, a análise da sua admissibilidade não pode deixar de as considerar. O estabelecimento da filiação é, desde logo, um desafio a resolver, pois temos múltiplos intervenientes na gestação de uma criança, cabendo perguntar qual o critério em última análise relevante para a definição da sua maternidade e/ ou paternidade. A multiplicidade de critérios de filiação (biológico, genético, afectivo ou presuntivo), e o potencial de conflituosidade daí decorrente, obriga a que se questione e pondere: filho de quem? O reconhecimento constitucional de um direito a constituir família e, nele abrangido, de um direito a procriar104, gera também difíceis questões: a proliferação de técnicas de reprodução e a superação de limites impostos pela natureza, permitida pelo progresso da ciência, obrigam a questionar q~al o verdadeiro conteúdo deste direito. Mesmo defendendo, como o fazemos, a existência de um direito fundamental a procriar com recurso a técnicas de procriação medicamente assistida, sempre haverá que analisar criticamente quais os seus limites, em particular, os relativos à maternidade de substituição. O reconhecimento do direito a procriar não poderá deixar de ponderar criticamente aspectos como a idade dos beneficiários (deverá permitir-se que indivíduos com 60 anos recorram à maternidade de substituição?), os motivos que os levam a recorrer a esta figura (deverá admitir-se o recurso à maternidade de substituição por razões estéticas ou de mera comodidade física da mulher beneficiária?), o carácter subsidiário ou não da mesma (em que termos se confina a fronteira de eligibilidade?), o seu estado civil (os beneficiários deverão ser um casal?) ou a estabilidade da relação (deverá ser imposto um limite mínimo de relação entre os beneficiários, caso sejam um casal? Deverá ser admitido o recurso a pessoas solteiras?). Questões similares se podem levantar relativamente à mulher que se dispõe a suportar a gravidez por conta dos beneficiários: a mãe portadora deverá ter maturidade para assumir a responsabilidade da obrigação em causa e poderão ser problematizados factores como a sua idade (deverá ser imposta uma idade

104

GUILHERME DE OLIVEIRA, "Legislar sobre Procriação Assistida", in Temas de Direito da Medicina, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pp. 34 ss; relativamente à ordem jurídica italiana, v. INEs CORTI, <<La maternità per sostituzione: analisi del fenomeno>>, in Verso nuove forme di maternità, in Verso nu ove forme di maternità, a cura di CARLO ALBERTO GRAZIANI/lNES CoRn, Giuffre editore, 2002, p . 23.

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mínima? E máxima?), a sua expenencia (será importante que esta mulher já tenha tido uma gravidez, ou deve permitir-se a qualquer que possa suportar uma gravidez, ainda que tenha decidido não ter filhos próprios?), o seu estado civil (deverá ser solteira, ou, pelo contrário, casada, tendo a sua própria família? Neste último caso, deverá ser exigido o consentimento do marido? Deverão aceitar-se, como portadoras, mulheres que vivam em condições análogas às dos cônjuges?), ou as suas motivações (deverá admitir-se apenas por razões altruístas? Ou será razoável admitir-se uma compensação de qualquer tipo? Uma mulher com escasso recursos económicos poderá fazê-lo para ajudar o sustento da sua família?). Em concreto, podem também ser suscitados problemas relativamente ao modo de condução da gravidez pela portadora, não podendo deixar de se reconhecer a possibilidade de adopção de comportamentos irresponsáveis da sua parte, pois não gera um filho próprio, com particular gravidade quando estes comportamentos afectem o saudável e normal desenvolvimento do feto, resultando em anomalias, deficiências ou patologias irreversíveis. Colocam-se ainda questões seríssimas relativas à possibilidade de arrependimento e, consequentemente, incumprimento do contrato, por qualquer uma das partes. Neste âmbito, cabe questionar se deverá ser concedido à portadora um período de reflexão para arrependimento lícito (que não constitua, portanto, incumprimento), e se esta solução fará sentido ainda que a portadora não tenha qualquer relação genética com a criança; ou se, pelo contrário, a maternidade e/ ou paternidade da criança deve encontrar-se já definida, imperativamente, no momento da celebração do contrato de maternidade de substituição, sem poss,ibilidade de revogação posterior pelas partes envolvidas. Na base do reconhecimento e análise de todas estas problemáticas, deve ser ainda reconhecido e acautelado o supremo interesse da criança, o que se pode revelar particularmente delicado, pois se, por um lado, toda a finalidade da maternidade de substituição é dar vida a uma criança, cujo nascimento e perfilhação são muito desejados pelos beneficiários, por outro lado, a degradação das relações estabelecidas entre as partes intervenientes, e a possibilidade de conflitos de interesses que podem surgir no seu seio, podem colocar a criança que vier a nascer em posição especialmente vulnerávet comprometendo-se o seu bem-estar e são desenvolvimento. Reconhecida a natureza potencialmente problemática da maternidade de substituição, não podemos, por isso, abster-nos de analisar e procurar resposta à questão de fundo que assiste o presente artigo: deve tal técnica de procriação ser admitida, impondo-se uma alteração fundamental da legislação vigente nesse sentido? Como exposto supra, está em causa a análise da legitimidade do Estado para intervir nesta matéria, proibindo liminarmente a maternidade de substituição, tendo em conta o exercício de direitos fundamentais de personalidade (isto é, direitos inerentes à Pessoa, à condição de ser humano, consagrados e protegidos

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constitucionalmente) dos intervenientes, no caso, (i) o direito a constituir família dos beneficiários, o qual abrange, no nosso entender, não apenas o direito a procriar, mas também o direito de o fazer recorrendo a técnicas de procriação medicamente assistida, cabendo aqui perguntar se a maternidade de substituição deverá integrar o elenco de técnicas de procriação permitidas para a prossecução e exercício deste direito; (ii) o direito de disposição sobre o próprio corpo da portadora, que inclui a liberdade de escolha e disposição do mesmo, incluindo o de decidir suportar uma gravidez no seu útero para auxiliar a gestação de filho de terceiros; e (iii) o direito ao livre desenvolvimento da personalidade de todos os intervenientes, segundo o qual os indivíduos têm o direito e a liberdade de tomar as decisões e adoptar as condutas que melhor lhes aprouver para a prossecução e concretização do seus projectos e objectivos de vida, em especiat a liberdade dos beneficiários na decisão de se reproduzirem, lançando mão de todas as técnicas que existam ao seu alcance, se não o puderem fazer de outra forma, e ainda a liberdade da portadora de decisão de gestação de filho de e por outrem, em benefício da concretização dos sonhos parentais de outros, que estejam impossibilitados de o fazer por si. O exercício dos direitos fundamentais de personalidade acima refer ·dos só pode ser restringido pelo Estado, corno já foi exposto, nos estritos termos estabelecidos no artigo 18. da CRP105 • Qualquer intervenção restritiva do Estado no exercício de direitos fundamentais dos indivíduos deve, com efeito, obedecer a determinadas regras e requisitos próprios, sob pena da sua inadmissibilidade (e inconstitucionalidade). Isto significa que a análise da legitimidade do Estado para estabelecer a proibição da maternidade de substituição (e, portanto, a intervenção restritiva no exercício do direito de procriar, do direito de disposição de disposição do próprio corpo e do direito ao livre desenvolvimento da personalidade) deverá ser apreciada à luz da admissibilidade (ou não) da restrição, operada por tal proibição, nos direitos em presença. Em particular, a proibição da maternidade de substituição deve ser analisada à luz do princípio da proporcionalidade, nas suas vertentes da necessidade ("deve limitar-se ao necessário ... "), adequação (" ... para salvaguardar.. .") e proporcionalidade (" ... outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos"), devendo ainda manter intactos a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos direitos restringidos. Um interesse constitucionalmente protegido relevante, no âmbito da maternidade de substituição, será o superior interesse da criança, cujo nascimento 0

105

O qual dispõe, relembre-se, que: "1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. 3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito rectroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais."

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é o fim último de qualquer técnica de procriação medicamente assistida, e cujo bem-estar e protecção devem ser sempre acautelados. Caberá, nesta sede, ponderar se a proibição liminar da maternidade de substituição será medida restritiva (dos direitos fundamentais em causa) necessária e adequada a proteger aquele interesse. Entendemos que não. Desde logo, parece-nos que a criança não verá o seu desenvolvimento físico, emocional, psicológico e cognitivo comprometidos pelo facto de ter nascido através do recurso à maternidade de substituição- a vida é mais complexa do que isso, e esta criança, como qualquer outra, terá os seus problemas e as suas alegrias, as suas inseguranças, as suas dores e as suas esperanças, independentemente do modo como foi gerada. A proibição liminar da maternidade de substituição, para estes efeitos, não é medida nem adequada nem necessária para proteger a criança da vida, tendo em conta, além do mais, a admissibilidade de tantas outras "desconcertantes" técnicas de procriação medicamente assistida. Por outro lado, a potencial sujeição da criança a conflitos entre as partes envolvidas na sua gestação não é acautelada pela prevenção do seu nascimento. As crianças nascidas por via natural estão sujeitas a riscos similares, não se proibindo liminarmente, ainda assim, o divórcio, nem tão pouco se atrevendo o Estado a proibir novo acto de procriação. A proibição, sem mais, da maternidade de substituição parece-nos medida excessiva e desadequada para a protecção do interesse da criança, a qual não terá, aliás, qualquer interesse, caso a sua gestação e nascimento sejam impedidos. Este superior interesse não é lançado ao abandono pela admissibilidade da maternidade de substituição, e o Estado não se demite da sua função de último protector da criança, nomeadamente, através de legislação relativa ao exercício das responsabilidades e tutela parentais, de institutos e organismos públicos de protecção de crianças ou de regras e processos especiais relativos a matérias de família e menores. A importante tarefa de protecção da criança que cabe ao Estado não pode ser prosseguida de modo tão preventivo que anteceda o seu próprio nascimento, impedindo-o, mas deve ser orientada pela consideração do seu superior interesse, consideradas as circunstâncias concretas da sua vida. Por outras palavras, a criança que vier a nascer deve ser protegida da mesma maneira, recorrendo aos mesmos meios e princípios, que aquelas que nasceram por via natural, e o Estado não deverá, nem poderá, numa e noutra situação, proibir a procriação, por arbitrariamente considerar que aquela criança pode ser colocada numa situação vulnerável. Se consideramos, por um lado, que a proibição liminar da maternidade de substituição, em nome do superior interesse da criança, é restrição arbitrária, excessiva e desadequada à protecção daquele interesse, não deixamos de reconhecer, porém, que a sua admissibilidade, sem mais, o desprotegeria de forma irrazoável e irresponsável. É possível, no entanto, alcançar uma solução de equilíbrio entre os interesses constitucionalmente protegidos em causa, nomeadamente, através de uma regulação cuidadosa das relações entre a portadora e os beneficiários, estabelecendo, entre outros, a maternidade e I ou

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paternidade da criança de forma clara e imperativa, aplicando-se, em tudo o resto, as normas vigentes relativas ao exercício das responsabilidades parentais, vinculativas para quaisquer progenitores, quer hajam recorrido a técnicas de procriação medicamente assistida ou não, quer sejam biológicos ou adoptivos. Concluímos, assim, que o superior interesse da criança não é violado pela admissibilidade da maternidade de substituição, devendo antes a sua protecção, quanto a estas crianças, ser protegido nos mesmo termos aplicáveis a todas as demais. Matérias fracturantes deste tipo, no âmbito das quais se enfrentam ciência e ética, moral e direito, o valor da vida e os limites do progresso científico, o derradeiro argumento é o da dignidade humana. Previsto logo no primeiríssimo artigo da CRP, que o eleva a fundamento último do Estado Português, e esgrimido por todas as partes (em nome da dignidade humana se defende a proibição da maternidade de substituição, e em seu nome também a sua admissibilidade), cabe perguntar, afinal, o que é a dignidade humana, pois nenhuma medida restritiva será excessiva quando e se face à salvaguarda necessária da dignidade humana. "O que está então por detrás do recurso nas constituições à dignidade da pessoa humana?( ... ) O homem tem dignidade porque é pessoa. É um ser ético, porque é auto-consciente e dotado antes de mais de auto-determinação e consciência moral. Não é apenas um ser biológico ou um ser ao sabor do arbítrio: é um ser com fins de realização próprios. É responsável pela condução da sua vida. Nisso reside a sua dignidade" 106• Cabe analisar se a admissibilidade da maternidade de substituição viola, de facto, a dignidade humana. Em especial, cabe averiguar se, e por que razão, admitindo-se actualmente tantos procedimentos e técnicas de procriação medicamente assistida, é a maternidade de substituição especial e liminarmente proibida. De facto, a substituição de uma mulher por outra na gestação e no parto, para satisfazer o desejo de ser mãe sentido pela primeira, é, em certa medida, uma variante da inseminação/implantação artificial heteróloga por parte de um dador (masculino) de esperma ou (feminino) de óvulos. Não nos parece razoável que, admitindo-se a inseminação de uma mulher com sémen, ou a implantação de óvulos, doados por um total desconhecido (sendo transmitidos, com esta doação, todos os dados genéticos do dador, de forma anónima), não se permita, por outro lado, a disposição do útero de uma mulher para prosseguir a gestação de outra. Não cremos que os materiais genéticos possam ser considerados menos íntimos e pessoais que o útero -pelo contrário, já que, como considerado supra, embora pareça mais chocante a gestação em nome de outrem (até por ser facto notório e, por isso, associado visual e directamente à relação familiar), os dados genéticos são vitalícios e definem traços determinantes de um ser humano, tais como características físicas, psicológicas e patológicas. 106

JosÉ OLIVEIRA AscENSÃO, "A Dignidade da Pessoa e o fundamento dos Direitos Humanos", in Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, Ano 68, I, 2008, p. 97 ss.

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Não cremos que as situações assinaladas sejam fundamentalmente distintas, no que respeita à dignidade humana, mas apenas quanto ao procedimento técnico de procriação medicamente assistida utilizado. Parece-nos, portanto, que, não havendo violação da dignidade da pessoa humana nas primeiras (as quais são permitidas, conforme previsto no artigo 10. 0 da Lei PMA 107), tão pouco poderá entender-se que ela haverá na segunda, justificando-se a sua proibição liminar. Do ponto de vista dos beneficiários, esta realidade legislativa é particularmente inconsistente, se pensarmos que a beneficiária pode ser fértil, não podendo apenas prosseguir, com sucesso, uma gravidez: permite-se, assim, a procriação de indivíduos inférteis (situação efectivamente mais "contra-natura"), através do recurso a óvulos e/ ou sémen de dadores desconhecidos, admitido na Lei PMA; mas já não a de uma mulher fértil, com doença, ausência de útero ou outra causa de impossibilidade de gestação, através do recurso a maternidade de substituição, proibido pela mesma Lei, conforme supra exposto. Do ponto de vista dos "contribuintes" para o processo de procriação (por exemplo, os dadores de sémen e óvulos ou a mulher portadora da gravidez), por outro lado, não nos parece que a dignidade humana, fundadora do princípio de indisponibilidade do corpo, seja questionada de forma mais intensa na doação de materiais genéticos (permitida), por comparação à cedência de útero (proibida), tendo em conta a natureza íntima e pessoalíssima dos dados desta natureza, indissociados e indissociáveis do ser humano. Ora não sendo a proibição liminar da maternidade de substituição medida necessária ou adequada à protecção do superior interesse da criança, o qual não é concreta ou especificamente violado pelo recurso a esta técnica de procriação; nem podendo conceder, por outro lado, que a dignidade humana seja posta em causa, de forma particular, pela admissibilidade da maternidade de substituição, quando tantas outras técnicas mais controversas são hoje aceites e legalmente permitidas; resta-nos perguntar se a proibição da maternidade de substituição não será, afinal, uma decisão político-legislativa, por parte de um Estado cauteloso que não se quer atravessar no campo de um debate tão fracturante, preferindo aguardar a maturação do tema e da sensibilidade social, para o voltar a repensar. Não nos parece, no entanto, que esta margem de ambientação à sensibilidade social seja admissível ou justificada: os direitos em causa são superiores a esta sensibilidade, e a fundamentalidade do seu exercício não se compadece com limites por esta ditados, mas apenas aqueles constitucionalmente previstos, nas estritas condições aí definidas. "A perfeição ética implica (... ) o respeito pela alteridade, respeito que impede o agir de se deixar guiar, pela tentativa de 107

O qual dispõe: "1 - Pode recorrer-se à dádiva de ovócitos, de espermatozóides ou de embriões quando, face aos conhecimentos médico-científicos objectivamente disponíveis, não possa obter-se gravidez através do recurso a qualquer outra técnica que utilize os gâmetas dos beneficiários e desde que sejam asseguradas condições eficazes de garantir a qualidade dos gâmetas. 2- O dadores não podem ser havidos como progenitores da criança que vai nascer."

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assimilação do outro à nossa ideia dele" 108 . É intrínseca (e necessária) a qualquer sociedade a existência de um espaço de conflito, que permita a adopção de princípios, valores, projectos e opções individuais, não devendo (nem podendo) o legislador assumir posição senão em nome de valores fundamentais à própria sociedade. A conclusão de que a maternidade de substituição não viola, per se, o superior interesse da criança, a dignidade humana ou o valor da vida, é motivo bastante para não se reconhecer legitimidade ou fundamento na sua proibição liminar. Restam-nos as pautas de liberdade e autonomia privada, simultaneamente fundadoras e fundadas na dignidade do ser humano, inerentes à Pessoa, as quais devem orientar o modo de condução de vida dos indivíduos, sempre dentro dos limites ditados pela mesmíssima dignidade humana. Concluímos, enfim, pela rejeição da proibição liminar da maternidade de substituição. Defendemos a reformulação da actual legislação sobre a mesma, no sentido da sua admissibilidade, em termos cuidadosamente regulados, que definam clara e expressamente, e de forma imperativa, o estabelecimento da maternidade e/ ou paternidade da criança que vier a nascer com recurso a esta técnica, de modo a afastar a conflituosidade que possa advir desta (como de qualquer outra) relação, devendo ainda ser ponderadas e reguladas as que tões supra reconhecidas, com especial cuidado com aquelas que possam afectar a vida da criança que vier a nascer, e sempre firmemente aferrados à pauta normativa da dignidade humana, conforme estabelecido especificamente no artigo 67.0 , número 2, alínea e), da CRP.

108

LuísA NETO, "A revisão do conceito de "ordem pública"? Cinco considerações sobre a legitimidade de intervenção do Direito na relação do sujeito consigo mesmo", in Revista Scientia Jurídica, Braga, Tomo LX, N. 0 326,2011, p. 331 ss.

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TRABALHOS ACADร MICOS

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O CONFISCO AMPLIADO NO DIREITO PENAL PORTUGUÊS 1 Paulo Silva Marques 2

SUMÁRIO: Introdução; I. O confisco ampliado no direito internd; II. Requisitos de aplicação do confisco ampliado; III. A presunção e a inversão do ónus de prova; IV. O processo de determinação da liquidação; V. A contraprova do arguido; VI. O arresto como garantia de eficácia do confisco; VII. A natureza jurídica; VIII. A relação de tensão com a presunção de inocência; Conclusões.

INTRODUÇÃO Não obstante a actual realidade social marcada, de forma impressiva, pelos avanços tecnológicos possibilitar uma melhor qualidade de vida, suscita, outrossim, novas formas delituosas que apostam na impunidade para aniquilar a ordem e a segurança pública, pondo em causa, desta forma, o próprio Estado de Direito Democrático. É inequívoco que com o dealbar da globalização, a análise da delinquência 1

O texto corresponde de forma substancial ao capítulo III da Dissertação de Mestrado, discutida publicamente em 18 de Maio de 2011 na Universidade Lusíada de Lisboa, sob o título "A perda de bens a favor do Estado como forma de combate à criminalidade organizada". Foram-lhe introduzidas algumas modificações, resultantes essencialmente do aprofundamento do tema e de alterações legislativas entretanto verificadas que de forma directa se relacionam com a temática. Deixam-se aqui expressos os agradecimentos ao Professor Doutor Augusto Silva Dias, pela sua disponibilidade para a orientação, quer da Dissertação quer do presente trabalho, o qual com a sua sapiência e olhar crítico tornou possível a realização de ambos. 2 Mestre em Direito.

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muda de foco: os delitos do paradigma clássico do sistema penal perdem espaço focando-se atenções, em termos de política-criminal, em novas formas de criminalidade, maxime a criminalidade organizada e a criminalidade económicofinanceira. De facto, relativamente a esta criminalidade moderna, um dos maiores desafios que se coloca ao Direito Penal concentra-se em alcançar maneiras eficazes de reprimir tais fenomenologias, que apresentam características muito específicas, as quais inviabilizam o seu combate através dos institutos penais tradicionais. Efectivamente, sem embargo das diferenças, a criminalidade organizada encontra na actividade económica o seu campo primacial de motivação e realização, partilhando, assim, com a criminalidade económica a relevância do lucro como seu fito capitaP. É certeiro quando se refere que, pelo seu gigantesco poder financeiro, a criminalidade organizada influencia secretamente toda a nossa vida económica, a ordem social, a administração pública e a justiça. Nalguns casos chega a ditar a sua lei e os seus valores à poHtica4 • Não causa perplexo, pois, que o combate ao lucro ilícito gerado por estas formas delituosas, desempenhe um papel fundamental em termos de políticacriminal. Isso mesmo é reconhecido ao nível dos mais importantes instrumentos internacionais e comunitários sobre a matéria5, os quais como denominador comum entendem que sendo o lucro a principal motivação desta criminalidade, qualquer tentativa de prevenir e reprimir tais fenomenologias, de forma eficaz, deve passar pela detecção, congelamento, apreensão e perda dos produtos do crime. Neste conspecto, sendo realidade consolidada que os institutos clássicos de Direito Penat existentes actualmente, se mostram obsoletos para levar a cabo tal desiderato 6, muito por força das dificuldades probatórias que estes encerram, surgem diversas medidas propostas pela doutrina e consagradas em vários ordenamentos jurídicos, que visam obviar a tais dificuldades, facilitando exponencialmente essa tarefa probatória e, concomitantemente esse congelamento, apreensão e perda dos produtos do crime. Das diversas medidas pensadas para o combate ao lucro ilícito torna-se 3

Neste sentido Augusto Silva Dias, Criminalidade organizada e combate ao lucro ilícito, in 2° Congresso de Investigação Criminal. Almedina, 2010, pág. 30. 4 Jean Ziegler, Os Senhores do Crime As novas máfias contra a democracia, Lisboa, Terramar, 1999, pág 17, apud Echardt Werthebach. 5 Pela sua importância saliento ao nível internacional a Convenção contra o crime organizado transnacional, também conhecida por Convenção de Palermo, aprovada na 55 a Assembleia-geral das Nações Unidas em 15-11-2000 da qual Portugal é parte desde 2004. A nível comunitário assume relevo a Decisão-quadro 2005/212/JAI do Conselho, de 24 de Fevereiro aprovada no âmbito dos trabalhos do "terceiro pilar". 6 Nomeadamente o instituto da perda de instrumentos, produtos e vantagens do crime, previsto nos art."s 109." a 112. do nosso Código Penal. 0

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patente um aspecto comum a todas elas. O alargamento gradual do conceito de lucro 7 • De facto, se tradicionalmente o lucro era entendido como os proventos extraídos directamente da prática de um ilícito típico 8, hodiernamente para o combate à criminalidade organizada e económico-financeira, verifica-se a propensão para o conceito de lucro abranger toda a vantagem económica que se presume obtida através da actividade criminosa do agente. Assim, os ganhos estimados com relevo para este conceito de lucro, reportam-se à totalidade da actividade criminosa e não directamente a um ilícito típico determinado. Este alargamento do lucro incide, ainda, no plano subjectivo, visto que pode estenderse aos rendimentos ou património de terceiros com quem o agente mantém relações de proximidade. Das medidas supra referidas para o combate a estas práticas delituosas merecem destaque, ainda que a traço grosso, as que passam pela incriminação directa ou indirecta do enriquecimento ou lucro injustificado e as que se concentram no plano das consequências jurídicas. Assim, as primeiras consistem, por um lado, na criação de um crime de enriquecimento injustificado o qual poderá, ou não, ser circunscrito a funcionários e/ ou agentes públicos, baseando-se este tipo de crime na mera observação da existência de património de cuja origem ilícita se suspeita, fundamentandose a reacção penal apenas na suspeita da prática de outros crimes, no qual o património superior ao declarado é apenas um indício - incriminação directa9 . A criação de crimes de mera suspeita tem suscitado fortes críticas por parte da 7

Por vezes o debate sobre a questão é afectado por alguma falta de clareza entre os conceitos de lucro ilícito e lucro injustificado, tornando-se importante a sua distinção, visto cada um dos conceitos suscitar uma ordem de problemas diferentes. Como bem refere Augusto Silva Dias, ob cit, pág. 32, enquanto o lucro ilícito é composto pelos ganhos que se prova em juízo resultarem da prática de um crime, o enriquecimento injustificado é composto pelas vantagens cuja proveniência o arguido não explica de todo ou não explica satisfatoriamente. 8 Exemplificando, no caso paradigmático da burla o lucro do agente é identificado com a diminuição do activo patrimonial da vítima, não sendo tidos em conta os lucros futuros do agente resultantes do crime. 9 Também entre nós foi aprovado, ainda que na generalidade, em 23-09-2011, o projecto de Lei 72/XII do PSD e CDS-PP, que prevê a introdução no ordenamento jurídico-penal do crime de enriquecimento ilícito, no âmbito da luta contra a corrupção, o qual se destina a funcionários e titulares de cargos políticos ou altos cargos públicos. O projecto baixou para a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. O problema da criminalização do enriquecimento ilícito é bastante controverso, em virtude de levantar dúvidas sobre a sua constitucionalidade, nomeadamente por violação dos princípios gerais que enformam o Direito Penal. Acrescente-se, ainda que esta figura é praticamente desconhecida na legislação dos países da União Europeia e também nos Estados Unidos da América, pelo que me parece que o Tribunal Constitucional ou em sede de fiscalização preventiva ou por via da fiscalização sucessiva será determinante nesta criminalização.

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doutrina, argumentando-se que tais crimes violam o núcleo essencial de princípios constitucionais estruturantes do processo penal, maxime a presunção de inocência. Ou, por outro lado, na solução que passa pela incriminação indirecta e que se prende com uma particular interpretação dada ao crime de branqueamento de capitais. Esta interpretação passa pela dispensa de comprovação judicial de aspectos fundamentais do ilícito típico precedente, bastando a suspeita quanto à proveniência criminosa dos fundos, para que se possam punir os agentes de branqueamento relativamente a esses mesmos fundos. O segundo rol de medidas traduz-se, por um lado na aplicação da denominada multa proporcional a qual consiste brevitatis causa/ na aplicação de uma pena de multa indexada ao montante do lucro injustificado ou a um multiplicador desse lucro obtido com a prática do crime - dobro, triplo ou outro múltiplo desse valor 10 - surgindo, assim, como instrumento indirecto do confisco do lucro obtido, cuja determinação prescinde qualquer conexão com os elementos do crime. Efectivamente, esta solução não é compatível com o figurino constitucional português, por razões que se relacionam com os princípios da culpa e da legalidade. Em relação aquele a fixação desta pena de multa resulta, unicamente, de cálculos aritméticos puramente objectivos, escapando ao método de aplicação desta pena fundado no princípio da culpa; relativamente a este a multa proporcional constitui uma pena absolutamente indeterminada, pois a estatuição legal não nos permite perceber quais os seus limites mínimos e máximos, tornando-se a reacção penal, que vier a ser aplicada, imprevisível para os seus destinatários. Por outro lado, e como segunda medida centrada nas consequências jurídicas, surge o confisco dos lucros que se presumem provenientes da actividade criminosa do agente, designado pela doutrina

confisco ampliado. Como já supra referido, o regime geral de perda de bens que constituem vantagens obtidas com o crime, consagrado no código Penal, mostra-se inócuo para combater certas formas delituosas, nomeadamente a criminalidade organizada e a criminalidade económico-financeira, atendendo, sobremaneira, pela conexão probatória exigida a levar a cabo entre a origem dos bens e o ilícito típico concreto. Neste conspecto, desde a Convenção de Viena de 1988 - Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas - que se apontava a vantagem de os Estados tomarem medidas legislativas sobre a inversão do ónus de prova relativa à origem lícita de certos bens. Destarte, surgem, pois, em diversos ordenamentos jurídicos formas de 10

Esta solução encontra aplicação no Código Penal de Espanha, com carácter excepcional, para alguns crimes v.g. art.o 301. 0 receptação e 377. 0 tráfico de estupefacientes. Também não ordenamento jurídico alemão vigorou uma pena de multa proporcional, introduzida no art." 43." do StGB pela Lei contra o tráfico ilegal de estupefacientes e outras formas de criminalidade organizada, contudo, seria declarada inconstitucional pelo BVerG em Março de 2002.

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confisco ampliado, os quais através do uso de presunções com inversão do ónus de prova, criaram uma via probatória facilitada para o sequestro do património que se mostre incongruente com o rendimento lícito do suspeito ou condenado. Longe de ser pacífica, a figura do confisco ampliado surge na nossa legislação através da Lei 5/2002 11 , de 11 de Janeiro (doravante apenas designada por Lei), com uma série de questões problemáticas, que colocam duvidas não despiciendas ao intérprete e aplicador da lei. Ora é neste sentido que o presente trabalho encontra o seu cerne, tentando, de certa forma, abordar essas questões tentando, em paralelo, mostrar soluções.

I. O CONFISCO AMPLIADO NO DIREITO INTERNO

Tendo ficado devidamente vincada a necessidade político-criminal de combater, pela vertente patrimonial, estas formas graves de ilícitos que vimos referindo, que encontram no lucro a sua principal motivação, os diversos ordenamentos jurídicos foram-se munindo com algumas das medidas supra expressas, visando facilitar tal empresa. Internamente o nosso legislador não fugiu a essa tendência político-crin#nat criando, através da referida Lei, o instituto designado de "Perda de bens a favor do Estado". Assim, o legislador interno rompendo com a nossa tradição jurídica, introduziu a presunção de que após condenação por um dos crimes do catálogo ínsito na Lei - art. 0 1.0 - , o património do arguido que se mostre incongruente com os seus rendimentos lícitos, presume-se de proveniência ilícita, sendo consequentemente liquidado. Ao arguido cabe ilidir a presunção de que o seu património não terá origem ilícita, podendo falar-se, assim, de inversão do ónus deprava. Pode-se, desde já, salientar que o arquétipo do confisco ampliado é composto, como aliás já se referiu, por uma presunção e uma inversão do ónus de prova: Assim, a condenação do arguido pela prática de um crime sob a forma organizada é suficiente para lançar a suspeita de que o seu património, que seja desproporcionado aos seus rendimentos lícitos, provém de actividade criminosa - a conjugação da existência de património desproporcionado e o lucro que caracteriza esse tipo de criminalidade fundamentam a presunção; Concomitantemente, à acusação apenas compete a prova da existência de património desproporcionado ao rendimento lícito do arguido, cabendo a este afastar essa suspeita ou, dito de outra forma, ilidir a presunção de que esse património provém da actividade criminosa. Esta solução do confisco ampliado dirigido às vantagens do crime, com 11

A Lei de que se cura prevê ainda regras de derrogação do segredo fiscal e das entidades financeiras, em ordem a facilitar a investigação criminal (art. 0 S 2. 0 a 5°) e o reconhecimento de voz e imagem como meio de prova (art.o 6. 0

).

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base na inversão do ónus de prova, pode exigir uma maior ou menor ligação ao cometimento da actividade criminosa precedente. Em certos casos esta ligação é praticamente afastada. Trata-se, desta forma, de uma inversão pura e simples do ónus de prova, bastando a condenação pela prática de certos crimes, para se presumir que todo o património do condenado resulta da prática de crimes, a dita actividade criminosa. Diferentemente, porém, se o confisco ampliado tiver por base uma flexibilização do ónus de prova, apesar de o confisco não exigir a concreta prova da origem ilícita do património, também não se basta só com a presunção, ou seja, necessita da prova de factos dos quais resulte o convencimento do tribunal em relação à origem ilícita do património, isto é, necessita de um mínimo de certeza da existência da anterior actividade criminosa12 • Neste contexto, adianta-se desde já, que parece que o legislador pátrio optou por uma solução de confisco ampliado, que se funda numa presunção e numa inversão do ónus de prova tout court, não sendo necessário à acusação a demonstração dessa actividade criminosa, a carreira criminosa nas palavras usadas pelo legislador na exposição de motivos da Lei13 . Contudo, esta necessidade, ou não, de demonstração da actividade criminosa, pelo relevo que assume, será referida com mais detalhe no ponto IV do presente texto.

II. REQUISITOS DE APLICAÇÃO DO CONFISCO AMPLIADO Como já ficou devidamente esclarecido, as dificuldades probatórias sentidas na determinação da origem ilícita dos bens que o Estado pretende confiscat~ terão detetminado o legislador a consagrar o regime que agora se cura. Sem entrar em pormenores sobre a questão, os quais serão abordados infra, trata-se de uma inversão do ónus da prova que exonera o Ministério Público de provar a prática de outros crimes, aquando da existência de património detido pelo arguido que não seja adequado, congruente, aos seus rendimentos lícitos. Esta incongruência patrimonial alimenta a suspeita da existência de uma anterior actividade criminosa. Os requisitos para a inversão do ónus de prova são estabelecidos na regra base contida no n. 0 1 do artigo 7. 0 da Lei, sob a epígrafe "Perda de bens", que 12

Neste sentido, Jorge A. Fernandes Godinho, Brandos costumes? O Confisco Penal com base na inversão do ónus de prova (Lei n. o 5/2002, de 11 de janeiro, artigos 1. o e 7. a a 12. "), in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 1327. 13 Esta necessidade de demonstração da actividade criminosa, é um dos aspectos que considero problemáticos na Lei, visto que se na exposição de motivos o legislador parece exigir tal demonstração, o certo é que por falta de apoio literal o legislador terá consagrado a sua não exigência, adensando, desta forma, as incertezas sobre a legitimidade que gera o confisco de bens com base em presunções.

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determina que em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1. ~ e para efeitos de perda de bens a favor do Estado/ presume-se constituir vantagem de actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito. Verifica-se como requisito fundamental, a necessidade de condenação pela prática de um qualquer crime elencado pelo legislador no catálogo do artigo 1.0 da Lei pelo que, o confisco alargado não pode ser decretado pelo Tribunal se o arguido for absolvido na questão principaP 4 • Contudo, este requisito impõe que não se trate de uma qualquer condenação. De facto, apesar de a Lei nada referir quanto à espécie e medida de pena exigida para decretar o confisco, parece consensual na doutrina que a condenação tem que passar pela fixação de pena de prisão efectiva imposta ao arguido, por questões de adequação e proporcionalidade 15 • De facto, dado o carácter incisivo e gravoso que o confisco repercute nos direitos patrimoniais do arguido, não seria admissível a sua aplicação se ao mesmo fosse imposta uma pena de multa, uma dispensa de pena ou mesmo uma condenação em pena suspensa. Requisito também necessário, é a demonstração da incongruência entre o real património do arguido e os seus rendimentos lícitos. Tal demonstr ção, deverá ser realizada na fase de inquérito pelo Ministério Público16, e consiste numa investigação paralela 17 à levada a cabo para determinação da verificação da existência do crime de catálogo, que passa essencialmente pelo: -Apuramento de todo o património actual e que foi adquirido pelo arguido nos últimos 5 anos 18; 14

Parece notório que o confisco ampliado não pode ser declarado perante inimputáveis, posto que o legislador parece exigir, como requisito fundamental, para aplicação daquele a condenação em crime de catálogo, não se bastando pelo facto ilícito. 15 Neste sentido Silva Dias, in Criminalidade Organizada e Combate ao Lucm Ilícito, pág. 45.e José Damião da Cunha in Perda de bens a favor do Estado, Arts. 7. 0 - 12. 0 da Lei n. 0 5/2002, de 11 de Janeiro in Medidas de Combate à Criminalidade Organizada e Económico-Financeira, Centro de Estudos Judiciários, Coimbra Editora, 2004, pág. 125. 16 Ou por órgão de policia criminal, pois trata-se de um acto que pode ser delegado pelo Ministério Público, nos termos do artigo 270. 0 do Código de Processo Penal. 17 Neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal III, pág.74 e 75 refere que no inquérito, para além das finalidades essenciais (investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação), existem finalidades acessórias (por exemplo, para aplicação de medidas de coacção) que são prosseguidas recorrendo-se a investigações autónomas. Parece evidente que se o Ministério Público pretender lançar mão deste poderoso mecanismo, deve efectuar uma investigação autónoma para determinar a incongruência patrimonial do arguido. Só depois dessa investigação faz sentido o recurso ao confisco alargado. 18 Não se segue, neste particular, o entendimento de Damião da Cunha, quando refere que o âmbito da presunção é todo o património do arguido, (... ) todo o património tem fonte ilícita, ob cit., pág. 137.

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-Determinação dos rendimentos lícitos do arguido; -Apuramento da diferença entre aquele e este. Neste contexto, toma-se misterreferir a criação através da Lei 45/201t de 24 de Junho, do Gabinete de Recuperação de Activos (adiante GRA), em cumprimento da Decisão n. 0 2007/845 /JAI, do Conselho, de 6 de Dezembro, relativa à cooperação entre os gabinetes de recuperação de bens dos Estados membros no domínio da detecção e identificação de produtos ou outros bens relacionados com o crime. Criado na dependência da Polícia Judiciária, com atribuições de investigação análogas às dos órgãos de polícia criminat o GRA tem por missão proceder à identificação, localização e apreensão de bens ou produtos relacionados com crimes, a nível interno e intemacionat bem como cooperar com os seus congéneres criados por outros Estados. A sua competência vem fixada no art. 0 4. 0 da Lei 45/2011, que no seu n. 1 refere: O GRA procede à investigação financeira ou patrimonial mencionada no artigo ante1ior por determinação do Ministério Público: a) Quando se trate de instrumentos/ bens ou produtos relacionados com crimes puníveis com pena de prisão igual ou superior a 3 anos; e b) Quando o valor estimado dos mesmos seja supelior a 1000 unidades de conta. As apreensões realizadas pelo GRA são efectuadas nos termos do Código de Processo Penal cfr. n. 0 3 do mesmo art. 0 • Diferentemente, porém, do regime geral plasmado no n. 0 1 do art. 0 4 acabado de referir, e que parece aplicar-se à criminalidade em gerat é o regime especial criado para a investigação financeira ou patrimonial no âmbito da criminalidade organizada e económico-financeira, previsto no n. 6 do citado artigo. Aí se refere que A investigação financeira ou patrimonial pode realizar-se/ para efeitos do n. o 2 do artigo 8. o da Lei n. o 5/2002/ de 11 de janeiro/ depois de encerrado o inquérito. Ora ainda que de forma breve, importa salientar que para as formas delituosas que podem ser objecto de confisco ampliado, a investigação financeira ou patrimonial levada a cabo pelos GRA, apenas pode iniciar-se depois de encerrado o inquérito, o que não deixa de causar alguma perplexidade, visto serem estas práticas criminais que mais necessitam de uma investigação paralela, rigorosa e célere para, de facto, se apurar com alguma certeza o montante a liquidar pelo Ministério Público para efeitos de funcionamento da presunção de proveniência ilícita desse património. Poder-se-á conjecturar que o legislador pretende esperar pelo encerramento do inquérito para, desta forma, averiguar da existência, ou não, dos fortes indícios da prática do crime de catálogo e consequentemente das maiores probabilidades de condenação - pressuposto de funcionamento da presunção - e só depois dessa maior certeza lançar mão da investigação pelo GRA, o que até se compreende em virtude do carácter fortemente intrusivo que a sanção incorpora em sede de direitos patrimoniais para o arguido. Mas o argumento não parece convincente. De facto, se o Ministério Público optar por não recorrer ao GRA- e a Lei 45/2011 não vincula o Ministério Público a tal, pois emprega a expressão pode realizar-se- pode, ainda assim, durante o inquérito averiguar da existência 0

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de património 19 que seja incongruente e efectuar a liquidação no momento do encerramento do inquérito, podendo, desta maneira, recorrer ao arresto de forma mais precoce aumentando a garantia de não dissipação patrimonial, não se compreendendo, desta forma, o porquê da intervenção do GRA estar condicionada ao dito encerramento do inquérito, o que certamente aumentará as possibilidades de dissipação patrimonial do arguido quando confrontado com o despacho de acusação. Modestamente não parece ser a melhor opção em termos práticos. Não poderia o Ministério Público solicitar a investigação do GRA durante o inquérito e, concluído o mesmo, liquidar o património que se mostre incongruente, com base nos elementos recolhidos por esse gabinete especializado em investigação financeira? Porquê esperar para o encerramento do inquérito, para só depois iniciar a investigação da existência de património incongruente, de forma séria e rigorosa, arrastando a prolação da liquidação para momento posterior! Após esta breve alusão, que me parecia importante, importa constatar que o âmbito da presunção não pode ser todo o património do arguido, como é defendido, entre nós, por alguma doutrina, mas apenas o património, que após investigação, se verifique que não seja congruente com os seus rendimentos lícitos e que tenha sido adquirido nos últimos cinco anos contados a part& da data da sua constituição como arguido. Um pequeno exemplo ilustra claramente o referido. Do património de um arguido faz parte um luxuoso iate, contudo, apesar de ser manifesta a incongruência entre os seus rendimentos lícitos e o património que actualmente ostenta, constata-se através de prova documental (v.g. registos) que o mesmo tomou-se proprietário da dita embarcação há seis anos contados a partir da sua constituição como arguido. Destarte, não se afigura admissível a contabilização do valor deste bem para efeitos de cálculo da liquidação. Assim sendo, não parece que todo o património possa fazer parte do âmbito da presunção. Ainda como requisito lógico-necessário para aplicação do confisco, é que o Ministério Público identifique bens ao arguido. De facto, se não se determinar a existência de bens aptos a serem confiscados, a medida não tem aplicação prática, por falta de objectd0• A Lei define no mesmo artigo 7. 0 , n. 0 2, que por património do arguido se deve entender os bens que estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o beneficio, à data da constituição como arguido ou posteriormente ou transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido e, ainda, os bens recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino. O conceito de titularidade visa, sobretudo, abranger o direito de propriedade, 19 20

Podendo para tal, por exemplo, socorrer-se dos órgãos de polícia criminal. Jorge Godinho, Brandos costumes? O confisco Penal, pág. 1342.

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mas parece poder aplicar-se a outras formas jurídicas. Assim todos os bens dos quais o arguido seja titular nominal, ainda que co-titular, estarão sujeitos ao confisco 21 • Mas a forma como a Lei define o património do arguido, permite que o confisco possa incidir sobre bens que não estejam na titularidade do arguido. É o caso o das alíneas b) e c)22 e da 2a parte da alínea a). Relativamente a estes bens, isto é, que não estejam na titularidade do arguido, mas dos quais ele, ainda assim, retira as vantagens, ou que os transmitiu a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, visam-se, essencialmente, os bens na posse de outra pessoa, seja singular ou colectiva. O problema mais sério que se pode colocar nesta sede, prende-se com o funcionamento da presunção de origem ilícita de bens e a tutela de terceiros de boa fé. De facto, ao contrário de outros ordenamentos jurídicos23, a nossa Lei não parece tutelar terceiros de boa fé, que tenham adquirido legalmente os bens, parecendo a Lei ir no sentido de se prescindir da prova dessa doação ou transmissão. Dito de outra forma, a presunção de ilicitude dispensaria o Ministério Público de provar o anÍmus do autor da doação ou da transferência com contrapartida irrisória, afigurando-se a presença de uma presunção de que tais negócios foram celebrados de forma fraudulenta, impondo a esses terceiros o ónus de provar essa intenção. Não parece ser possível dar tal amplitude à presunção. Neste contexto, certeiramente a doutrina menciona o carácter pessoal das penas e dos seus efeitos como factor impeditivo de tal possibilidade24, posto que, caberá ao Ministério Público provar a gratuitidade ou quase gratuitidade dessas transferências e, ainda, que ela teve lugar nos cinco anos anteriores à constituição de arguido. III. A PRESUNÇÃO E A INVERSÃO DO ÓNUS DE PROVA 21

É o caso de automóveis, embarcações, aeronaves, contas bancárias, imóveis, etc. Obviamente que não sendo localizados ou localizáveis os bens pelo Ministério Público, a razão de ser deste normativo passa, sobretudo, por contabilizar o respectivo valor para aferir do real valor do património do agente do crime em causa, para efeitos de liquidação. 23 É o caso dos Estados Unidos da América, o qual na secção 984 do USC autoriza a apreensão, em termos de direito civil, dos bens e fundos suspeitos de resultarem do tráfico de estupefaciente, com a ressalva de o proprietário e/ou possuidor de tais bens ou fundos poder fazer prova do contrário, ou fazer prova de que é um "proprietário de boa fé", ou seja, que desconhecia a origem criminosa dos bens em questão, cfr. JACQUELINE RIFFAULT, Le blanchiment de capitaux en droit compare, apud Duarte, Jorge Dias, Lei n. o 22

5/2002, de 11 de janeiro- Breve comentálio aos novos regimes de segredo profissional e perda de bens a favor do Estado, Revista do Ministério Público, Ano 23, Jan/Mar, n. 89, 2002, pág. 148. Neste sentido Silva Dias in Criminalidade Organizada e Combate ao Lucro Ilícito, pág. 46 e Jorge Godinho in Brandos Costumes? ... pág. 1355. 0

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Torna-se oportuno, neste momento, entrar na questão da presunção e correspectiva inversão do ónus de prova, que a Lei, no seu artigo 7. 0 , de forma inovadora, introduziu no direito processual penal interno. A presunção legaF5 pode ser definida como o mecanismo pelo qual, através de um facto conhecido, se aceita como válido outro facto, desconhecido, sem que se recorra a qualquer meio de prova, pelo que ter-se-á como assente esse facto presumido se não for feita prova em contrário26 . Refira-se, que as presunções legais encontram respaldo, na probabilidade racional baseada em regras de experiencia, de que uma vez verificado o facto real, o facto presumido seja verdadeiro. O artigo 342. 0 do Código Civil sob a epígrafe "ónus de prova" refere no seu 0 n. 1, "àquele que invocar um direito cabe fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado". Sintetizando, verifica-se que a função prática específica das presunções, é que a regra sobre ónus de prova se inverte, nos termos do artigo 344. 0 , n. 0 1 do Código Civil. Analisando agora, as presunções iuris tantum 27, verifica-se que estas se caracterizam pelo facto de a sua estrutura ser constituída por três elemento/: -O facto base ou base da presunção; -O facto presumido; - A relação lógica-causal entre os dois factos, de tal forma que o facto presumido deriva da base da presunção em virtude de uma probabilidade racional assente em uma regra máxima de experiência28 . Por regra as presunções legais são próprias e encontram-se com frequência 25

As presunções podem ser legais ou de direito e presunções judiciais ou de facto: Aquelas caracterizam-se por estarem descritas na própria lei, isto é, é a própria lei que dá como provado certo facto uma vez verificado um outro; Diferentemente, nas presunções judiciais as ilações são extraídas pelo julgador e fundam-se nas regras práticas da experiência, nos ensinamentos hauridos através da observação (empírica) dos factos. É nesse saber de experiência feito que mergulham as s uas raízes as presunções continuadamente usadas pelo juiz na apreciação de muitas situações de facto. Cfr. Varela, Antunes I Bezerra, J. Miguel I Nora, Sampaio e, in Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, pág. 502. 26 A matéria das presunções vem regulada no Livro I, Título II, Capítulo II, Secção II sob a designação presunções, nos artigos 349. 0 a 351. 0 do Código Civil. 27 As presunções podem também ser classificadas em presunções iuris tantum e presunções iure et de iure, conforme sejam os não refutáveis: Aquelas são elidíveis, isto é, admitem prova em contrário e tem valor de prova plena. É este o tipo que consta da Lei de que o trabalho cura; Diferentemente, as presunções iure et de iure são presunções absoultamente irrefutáveis têm o valor de prova pleníssima. Cfr. José João Batista, in Processo Civil I (Teoria Geral e Processo Declarativo, com referências ao Ante-projecto do novo Código de Processo Civil), Universidade Lusíada, Lisboa, 1993, pág. 285. 28 Neste sentido Alexandra Vilela, Considerações Acerca da Presunção de Inocência em Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 2005, pág. 81.

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no direito civil, no qual prevalece, como se sabe, o princípio do dispositivo ou da verdade formal, pelo que é às partes - e só a elas - que compete a adução do material de facto que há-de servir de base à decisão,( ... ) recaindo (. . .)sobre as partes todo o risco da condução do processo/ através dos ónus/ que soblY: elas incidem/ de afirmai~ contradizer e impugnar 9 • A parte que tiver a seu favor a presunção deve apenas demonstrar a base da presunção, pelo que ter-se-á como assente o facto presumido se não for produzida prova em contrário. Diferentemente, no processo penal sobreleva o princípio da investigação ou da verdade material, pelo que a adução e esclarecimento do material de facto não pertence aqui exclusivamente às partes/ mas em último teimo ao juiz. De facto, dado o dever de investigação judicial autónoma da verdade/ logo se compreende que não impenda nunca sob as partes/ em processo penal/ qualquer ónus de afilma~ contradizer e impugnar10 . Assim, não se concebe em processo penal uma situação em que o não cumprimento do referido ónus de provar um facto, tenha como consequência que o tribunal assente, sem mais, a decisão no facto contrário. Apesar de como supra se referiu o uso de presunções ser própria do direito civil, onde o que está em causa é uma verdade fmmal, o legisladm~ in casu, transportou esta realidade para o processo penal no qual, diferentemente, se procura uma verdade mateiial. Sendo certo que as presunções assentam em probabilidades racionais baseadas em regras de experiência, porém, como refere Pires de Lima e Antunes Varela31 as presunções são meios de prova por sua natureza falíveis/ precários/ cuja força persuasiva pode/ por isso mesmo/ ser afastada por simples contraprova. Efectivamente, se com o recurso às presunções na maioria das constelações fácticas, a verdade formal corresponderá à verdade material, não se pode olvidar, porém, que o risco de não se verificar essa correspondência existe. De facto, a probabilidade de erro é real e não pode ser ignorada, maxime se levarmos em linha de conta que as consequências jurídicas do direito penal, são consideravelmente as mais gravosas para o cidadão. Já acima se referiu que as presunções iwis tantum são compostas por três elementos na sua estrutura. Cabe agora transportar a situação para o caso concreto da nossa Lei. Na Lei a base da presunção parece ser constituída pelos seguintes factos: - Condenação pela prática de pelo menos um dos crimes constantes no artigo 1.", da Lei; - Em certos casos específicos, para além da condenação acima mencionada, a prova que esse crime foi praticado de forma organizada32; 29

Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1" Edição 1974, reimpressão 2004, pág. 189. 30 Ibidem, pág. 193. 31 Em anotação ao artigo 349.", in Código Civil Anotado, Volume I, 4° Edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 312. 32 É o caso dos crimes de contrabando, tráfico e viciação de veículos furtados, lenocínio e

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- Incongruência patrimonial, ou seja, desproporção entre os rendimentos obtidos de forma lícita e o património total do arguido adquirido nos últimos cinco anos a partir da data da sua constituição como arguido no processo em causa. O facto presumido, logo se vê, será a consideração que o património identificado na liquidação pelo Ministério Público tem origem ilícita. Por fim, a relação lógica-causal existente entre a base da presunção e o facto presumido parece assentar, claramente no raciocínio que os crimes previstos no artigo 1.0 da Lei, são potencialmente aptos a gerar ganhos avultados, maxime se praticados de forma organizada, pelo que, a condenação pela prática desses crimes, torna razoável a suspeita de que o património incongruente possuído pelo condenado provém de fonte ilícita. A consequência imediata da presunção traduz-se, na necessidade de o arguido ter que fornecer dados para o processo, que permitam a prova do contrário, visto que o seu silêncio ou a sua inacção, se traduzirá na verificação da presunção, com a consequência de que o património será efectivamente 1 confiscado. Parece ser este um dos aspectos potencialmente criticáveis da Lei. Destarte, o direito ao silêncio, um dos corolários mais importantes do princípio nemo tenetur consagrado implicitamente na Constituição da República Portuguesa33, é amplamente comprimido, visto o arguido correr o risco de ser forçado a proferir declarações, as quais lhe poderão ser desfavoráveis no encadeamento da questão principal, para fugir ao confisco. Seguindo de perto a doutrina e a jurisprudência que entende que o fundamento constitucional do direito ao silêncio se encontra na estrutura acusatória do processo e nas garantias de defesa do arguiddl 4, parece que a imposição ao arguido do dever de carrear prova, rectiusproferir declarações que lhe podem ser desfavoráveis, para efeitos de obstar ao confisco, viola este direito ao silêncio, enquanto direito que integra as garantias de defesa do arguido constitucionalmente previstas, máxime no artigo 32. 0 , n. 0 1 35da Constituição da República Portuguesa36 • contrafacção de moeda e de títulos equiparados a moeda, cfr. n. 0 2, do artigo 1. 0 da Lei. 33 Cfr. Augusto Silva Dias /Vânia Costa Ramos, O Direito à Não Auto-Inculpação (Nemo Tenetur Se Ipsum Accusare) No Processo Penal e Contra-Ordenacional Português, Coimbra Editora, 2009, pág. 14 e seg. 34 Ibidem pág. 15. 35 Sob a epígrafe "Garantias de processo criminal" refere "O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. 36 De facto, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem feito referência que o direito ao silêncio é parte integrante das garantias de defesa, asseguradas no n. 0 1 do artigo 32. 0 da Constituição da Republica Portuguesa, cujo principal objectivo é a protecção do arguido como sujeito do processo. Neste sentido vão os Acórdãos 695/95, 304 /2004, 181/2005 e 155/2007 todos do Tribunal Constitucional. Matéria disponível em www.

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Ainda como consequência da presunção, se o tribunal não lograr dissipar a dúvida sobre a sua verificação, isto é, sobre a origem ilícita do património a confiscar, o mesmo deve decidir no sentido desfavorável do condenado37 . Um outro aspecto que merece reparo, é a inclusão do crime de organização terrorista (previsto no artigo 2. 0 da Lei n. 0 52/2003, de 22 de Agosto) e associação criminosa (artigo 299. do Código Penal) no catálogo de crimes da Lei. Se o legislador fundou a presunção na base do raciocínio de que os crimes previstos no referido catálogo são aptos a gerar avultados lucros, não parece, contudo, que este seja o caso, visto tratarem-se de crimes de perigo abstracto 38, os quais como se sabe não são aptos a tal desiderato. Não se quer com isto dizer que tais tipologias não mereçam um regime excepcional, que se mostre eficaz para as combate1~ muito pelo contrário, o que aqui releva salientar é que a relação lógicacausal entre facto presumido e base da presunção, que supra se enunciou, in casu não se verifica. Neste contexto, faz-se o reparo para referü~ que a falta de um mecanismo legal que permita que o confisco ampliado abranja o património da organização criminosa, quando não se verifique preenchido o crime de associação criminosa, constitui uma séria lacuna em termos de política-criminal. De facto, tendo a decisão condenatória do tribunal dado como provada a ligação do condenado a uma organização criminosa, deveria a presunção, também, incidir sobre o património desta, recaindo sobre o condenado o ónus de a ilidir. Ainda no âmbito da presunção parece ser notório que este regime foi criado tendo por base a suspeita de que terão sido praticados outros crimes anteriormente, a actividade criminosa na expressão da Lei, os quais proporcionaram avultadas vantagens ao seu agente. Acrescente-se, neste contexto que como supra já se viu, a própria exposição de motivos da Lei refere-se a ( ... )proventos acumulados no decurso de uma caiTeira criminosa. Assim, o que fica em aberto é saber se a actividade criminosa deve ou não ser demonstrada na base da presunção. Adiante-se, desde já, que a solução perfilhada no quadro normativo do diploma legal parece ir no sentido negativo, desonerando, assim, a acusação de qualquer ónus de demonstrar essa anterior actividade criminosa. Efectivamente, a referência a este aspecto é bastante proeminente se levarmos em linha de conta, que o sequestro de bens que o Estado queira fazer sobre o património do condenado, se deve basear num mínimo de certeza, quanto ao 0

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tribunalconstitucional.pt. Neste sentido Lourenço Martins, in, Luta contra o Tráfico de Droga -necessidades da investigação e sistema garantístico, Revista do Ministério Público, Ano 28, Jul-Set, n. 111, pág. 51 Neste sentido, Jorge de Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, anotação ao artigo 299."- Associação criminosa- do CP, pág. 1157, valendo o mesmo raciocínio para o crime de organizações terroristas, visto este tipo tratar-se de um cl"Íme qualificado face ao constante do art. o 299. '~ anotação ao art.o 300. do CP, ob. cit., pág. 1176. 0

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facto de se tratar de vantagens provenientes de crimes, expressamente previstos na Lei e, portanto, passíveis de serem submetidos a este regime incisivo. Neste conspecto a base da presunção seria constituída pelos requisitos já supra mencionados, acrescida da demonstração de uma actividade criminosa em conexão com os crimes de catálogo39 . Contudo, não é essa a solução que parece resultar da letra da Lei. De facto, o legislador parece presumir, que o arguido uma vez condenado por um dos crimes do catálogo, todo o seu património (adquirido nos cinco anos anteriores à constituição de arguido) se presume ter por fonte a referida actividade criminosa sem mais. É a conclusão que nos parece mais coincidente com a letra da Lei, a qual refere no artigo 7.", n." 1 que em caso de condenação pela prática de um crime referido no artigo 1. '~ e para efeitos de perda de bens a favor do Estado/ presume-se constituir vantagem de actividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito. Efectivamente, a ser assim, isto é, ao afastar o Ministério Público de qualquer dever de demonstração dessa actividade criminosa anterior o legislador, para além de se colocar em total antagonismo com o que parece ser sugerido na Exposição de Motivos da Lei, coloca, ainda, sobre o arguido um ónus de prova demasiado excessivo, fazendo sobre ele recair a prova negativa, facilitando-se, concomitantemente, a tarefa do órgão acusador 40 • Acrescenta-se, ainda, que esta não exigência de demonstração da actividade criminosa anterior pode, certamente, gerar situações de incerteza quanto ao facto de se tratar, ou não, de património proveniente de crimes praticados sob a forma organizada. Para melhor aclarar o que foi referido, poderiam ser referidas uma miríade de constelações fácticas. Cito apenas um exemplo, que parece ser esclarecedor: um arguido condenado pelo crime de tráfico de estupefacientes, podendo tratar-se de um acto esporádico, até quiçá praticado de forma singular, pode, perfeitamente, suceder que dos fundamentos da decisão condenatória não resulte essa conclusão. Ora não necessitando de fazer prova que o crime de tráfico de estupefaciente foi praticado de forma organizada, concomitantemente com a não necessidade de, pelo menos, demonstrar a probabilidade de uma actividade criminosa anterior, ainda que baseada em meros indícios credíveis, o Estado pode, ainda assim, lançar mão do confisco ampliado, situação a qual, manifestamente, não se enquadra no espírito que o legislador parece ter pretendido imprimir ao 39

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Damião da Cunha parece ainda ir mais longe ao referir a exigência da actividade criminosa ter que estar em conexão com o crime de catálogo pelo qual o arguido foi condenado, ob. cit. pág. 127. É esta também a posição de Augusto Silva Dias, quando refere que a presunção de proveniência ilícita de uma parcela do património só nasce depois de provado que o arguido praticou o crime sob forma organizada e que a condenação também se documentou nessa prova, e da articulação desses aspectos com o género de actividade que o condenado realizava, concluindo que só deste modo o ónus é repartido pelo Ministério Público e pelo arguido, ob. cit. pág. 45, nota 45.

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instituto em causa. É que como já se referiu, o uso de presunções envolve certos riscos de erro, pelo que esta exigência adicional, da acusação demonstrar a actividade criminosa, sempre levaria à diminuição desse risco, legitimando exponencialmente o Estado no confisco ampliado dos bens do condenado. Por outro lado, parece ser pernicioso poder conjecturar-se que pelo facto de o agente ter sido condenado por um crime se venha a presumir que existe uma carreira criminosa anterior.

IV. O PROCESSO DE DETERMINAÇÃO DA LIQUIDAÇÃO Parece simples e isento de dúvidas o desencadear do processo de promoção do confisco que é designado na Lei por liquidação41/ o qual não esta sujeito a requisitos formais adicionais. Assim, o legislador estabeleceu dois momentos distintos, para que o Ministério Público possa lançar mão do mecanismo e liquidar o património do arguido, com vista ao seu confisco. É o que consta do artigo 8." sob a epígrafe "Promoção da perda de bens". O primeiro momento em que o Ministério Público pode liquidar os bens é quando profere a acusação contra o arguido (cfr. artigo 8.", n." 1 da Lei42 ), podendo ainda recorrer a um segundo momento, caso não seja possível em simultâneo com a acusação, sendo neste caso até ao trigésimo dia anterior à data da designada para o inicio da audiência de discussão e julgamento (dr. artigo 8.", n." 2 da Lei 43 ). Caso o Ministério Público não efectue a liquidação até ao trigésimo dia a que acima se alude, o processo de Perda de bens a favor do Estado não mais poderá ser suscitado por se ter tomado extemporâneo. Mas apresentando a liquidação conjuntamente com a acusação o Ministério Público pode ainda altera-la, quer para montante superim~ quer para montante inferior, caso verifique que esse montante apurado não corresponde à realidade patrimonial do arguido, podendo fazê-lo até ao trigésimo dia antes do inicio da primeira audiência de discussão e julgamento. Diferentemente, se a liquidação for apresentada no limite do prazo a que alude o n." 2 do artigo em causa, esta já não pode ser alterada (dr. artigo 8.", n." 3 da Lei44 ). A liquidação é nos termos da 2" parte do n." 1 do artigo 8." da Lei, ( ) o montante apurado como devendo ser perdido a favor do Estado. Trata-se portanto de um valor monetário que vai ser confiscado e não os bens em concreto. 42 Que refere 1 O Ministério Público liquida, na acusação, ( ). 43 Que refere 2- Se não for possível a liquidação no momento da acusação, ela pode ainda ser efectuada até ao 30." dia anterior à data designada para a realização da primeira audiência de discussão e julgamento, sendo deduzida nos próprios autos. 44 3 Efectuada a liquidação, pode esta ser alterada dentro do prazo previsto no número anterior se houver conhecimento superveniente da inexactidão do valor antes determinado. 41

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Por fim, prevê-se no n .0 4 que "Recebida a liquidação, ou a respectiva alteração, no tribunal, é imediatamente notificada ao arguido e seu defensor". Verifica-se, de imediato, que este normativo pode colocar em causa a eficácia do instituto, pois é intuitivo que o arguido ao tomar conhecimento do confisco, tentará dissipar o património de forma a obstar à sua perda 45 .

V. A CONTRAPROVA DO ARGUIDO Logicamente, tratando-se de uma presunção iuris tantum a Lei dispõe de mecanismos para que o arguido a possa ilidir, definindo como e quando é feita essa defesa. É o que consta do artigo 9. 0 , n. 0 3 podendo tal contraprova ser efectuada se o arguido demonstrar que os bens foram adquiridos com rendimentos de actividade lícita, que estavam na sua titularidade há pelo menos cinco anos no momento em que é constituído arguido ou, que foram por si adquiridos com rendimentos obtidos há pelo menos cinco anos também no momento em que é constituído arguido Na alínea a) do citado normativo estabelece-se que o arguido deve enunciar a natureza dos rendimentos, que estiveram na base da aquisição dos bens qJe são visados na liquidação, v.g. rendimentos de trabalho, doações, mais-valias, juros, heranças, rendas, e estabelecer um nexo entre esse rendimento e a aquisição dos bens em causa. Já na segunda forma de ilidir a presunção, o arguido deve demonstrar que a titularidade dos bens remonta há pelo menos cinco anos, contados a partir da data da sua constituição como arguido, dr. al. b) . Parece ser suficiente a exibição de prova documental, (v.g. registos de conservatórias, extractos bancários) que espelhe a titularidade nominal do bem em questão, mas parece também ser viável a apresentação de prova testemunhal46, no sentido de demonstrar o momento de entrada dos bens na esfera jurídica do arguido. Por fim, a al. c) prevê que o arguido demonstre que os bens foram adquiridos com rendimentos obtidos há mais de cinco anos. Também nesta forma, o arguido deve lançar mão quer da prova documental quer da prova testemunhal para sua defesa, demonstrando o nexo existente entre o rendimento obtido, anterior aos cinco anos da sua constituição como arguido, e a entrada na sua esfera jurídica dos bens em vias de serem confiscados. A Lei consagra no n .0 4 do artigo em questão, à semelhança do que estipula para a apresentação da liquidação, dois momentos distintos para a apresentação da defesa em relação ao confisco, os quais estão dependentes do momento em

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Sobre esta questão a figura do arresto pode assumir relevo fulcral. A situação será abordada infra. 46 Até porque a Lei é clara nesse sentido quando refere no n. 0 2 do artigo em análise que é admissível qualquer meio de pmva válido em pmcesso penal.

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que é apresentada a liquidação pelo Ministério Público: Assim, se a liquidação for deduzida na acusação o prazo será o da contestação47; Se a liquidação for apresentada posteriormente à acusação o prazo será de 20 dias contados a partir da recepção da notificação da liquidação. O prazo estabelecido para a produção de prova, com vista a contrariar o disposto na liquidação é, assim, de 20 dias, o qual parece ser manifestamente insuficiente, se tivermos em atenção que a consequência imediata da não apresentação de prova, ou da sua insuficiência, é o confisco de todos os bens arrolados na liquidação. Questão que não é clara na doutrina, prende-se com a intervenção do tribunal na discussão do processo de confisco alargado dos bens, isto é, se pode ou não o tribunal oficiosamente averiguar a verdadeira origem dos bens, indo mais além da prova apresentada pelo Ministério Público e arguido. Os termos usados na Lei de que sem prejuízo da consMeração pelo tribunal, nos termos gerais, de toda a prova produzida no processo, parece inculcar que o tribunal pode investigar, se estão ou não provados, os requisitos que constituem a base da presunção. De facto, seria incompreensível que o tribunal tivesse obrigado a cingir-se a uma liquidação, para a qual a Lei nem estabelece requisitos formais, e não pudesse recorrer à prova que é feita na audiência. Por outro lado e reforçando a ideia, resulta da Lei que é na sentença condenatória que o tribunal vai declarar qual o valor apurado que deve ser perdido a favor do Estado (dr. artigo 12. 0 n. 0 1, da Lei), prevendo-se no n. 0 2 do mesmo normativo que "Se este valor for inferior ao dos bens arrestados ou à caução prestada, são um ou o outro reduzidos até esse montante". Ora depreendese com relativa facilidade que o tribunal pode oficiosamente investigar sobre o mecanismo de confisco alargado, não se encontrando vinculado unicamente à prova apresentada, quer pelo Ministério Público quer pelo arguido. Neste sentido, parece que o tribunal apenas está vinculado em termos probatórios a recorrer à presunção, isto é, averiguar se estão ou não provados os requisitos que constituem a base da presunção e se esta foi ou não ilidida pelo arguido. Mas a actividade exercida pelo tribunal, para a verificação da existência ou não desses requisitos, não se pode circunscrever apenas à prova apresentada pelas partes48 •

VI. O ARRESTO COMO GARANTIA DE EFICÁCIA DO CONFISCO Cfr. Artigo 315. 0 do Código de Processo Penal, que prevê no seu n. 0 1 o prazo de 20 dias para apresentação da contestação e rol de testemunhas a contar da notificação do despacho que designa o dia para a audiência. 18 ' Neste sentido, Lourenço Martins, Luta contra o tráfico de droga necessidades da investigação e sistema garantístico, in Revista do Ministério Público, ano 28 (Jul-Set 2007), n." 111, pág. 49. Em sentido contrário Jorge Godinho, Brandos costumes?, in Liber Discipulm·um, Pág. 1344. 47

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Não parece de difícil compreensão, que o proprietário ou possuidor de património que se veja na contingência de o ver perdido para o Estado, tentará a via da sua dissipação ou ocultação. De facto, para garantir a eficácia do confisco ampliado torna-se mister que sejam colocados à disposição do Ministério Público, meios processuais que permitam a conservação do património do arguido, de forma a eliminar ou diminuir o poder de disposição que sobre ele o arguido possui. O mecanismo criado para obstar a essa disposição patrimonial consta do artigo 10. da Lei, sob a epígrafe" Arresto 49 ", o qual refere que a todo o tempo, o Ministério Público requer o arresto de bens do arguido no valor ao correspondente ao apurado como constituindo vantagem da actividade criminosa. Verifica-se, também, que neste particular a Lei não é isenta de dúvidas, colocando algumas questões nebulosas ao intérprete e aplicador da lei. De facto, a expressão usada pelo legislador, no n. 0 2 do citado artigo, "a todo o tempo" faz emergir a dúvida se o arresto pode ser requerido durante o inquérito ou só após a acusação. Questão prévia que de imediato surge, prende-se com a exequibilidade do confisco ampliado se o arresto apenas for requerido após a acusação, ou dito de outra forma, no decurso do inquérito o arguido prevendo a perda dos bens pode dissipar o património visado. · Efectivamente, se tivermos por referência o instituto do arresto preventivo, como parece ser sugerido no n. 0 4 do normativo em causa, a resposta parece ir no sentido de que a medida de garantia pode ser requerida no decurso do inquérito. Acresce ainda o facto, da Lei no n. 0 3 do citado artigo não exigir a verificação dos pressupostos a que alude o artigo 227.", n. 0 1, do C. P. Penal5°, para requerer o arresto. Mas parecem-me insuficientes os argumentos expendidos nesse sentido. Isto porque a Lei exige no mesmo n." 3 in fine, a existência de fortes indícios da prática do crime, para que o arresto possa ser decretado. Ora esse juízo de fortes indícios da prática do crime, só surge com o acto formal da acusação do arguido levada a cabo pelo Ministério Público quando termina a investigação51 • Por outro 0

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O arresto é uma apreensão judicial de bens, nos termos do artigo 406. 0 , n. 0 2 do Código de Processo Civil, contudo, não se confunde com a apreensão de bens prevista nos artigos 178. e seguintes do Código de Processo Penal. Sobre a distinção entre arresto e apreensão vide Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. II, 2002, pág. 217. 50 Pressupostos para a exequibilidade do arresto são o fundado receio que faltem ou diminuam substancialmente as garantias patrimoniais. 51 Cfr. Artigo 283. do CPP o qual refere no seu n." 1 que "Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele:" Repare-se que a Lei é mais exigente ao estabelecer o requisito de fortes indícios, contrariamente ao que se estabelece no CPP, que se basta com a verificação de indícios suficientes para que o Ministério Público possa acusar o arguido. 0

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lado, não parece razoável impor tamanha restrição à liberdade patrimonial do arguido ou, quiçá, só mero suspeito52, numa fase tão precoce e volátil em termos de aquisição probatória como é a fase de inquérito, ainda mais como refere a Lei,

a todo o tempo. Neste contexto, apesar das dúvidas que possam transparecer da letra da Lei, uma interpretação correcta impõem que o arresto só possa ser requerido após o despacho de acusação, ou em simultâneo com este, por parte do Ministério Público, pois só com esta se verificam os fortes indícios da pratica de um crime de catalogo53, garantindo-se assim, ainda que minimamente, que a liberdade patrimonial do arguido não seja afectada sem que exista uma qualquer probabilidade séria de ser declarado o confisco ampliado, o que só se verifica se com a sentença condenatória. Acrescenta-se, porém, que esta linha de raciocínio não parece inviabilizar a investigação, que deve ser levada a cabo, no sentido de determinar a massa patrimonial que possa ser alvo de confisco, investigação essa que deveria ser iniciada o mais cedo possível- paralela à investigação dos factos criminosos e se possível por especialistas, in casu com a intervenção do GRA, o que como supra se viu a lei parece limitar ao encerramento do inquérito. Situação também não isenta de dúvidas na Lei, prende-se com o facto de quais são os bens que podem ser alvo de arresto por parte do Ministério Público, isto é, os bens que podem ser sujeitos à apreensão judicial podem integrar bens que nada tem a ver com a propriedade do arguido, visto a Lei considerar património do arguido bens que tenham sido transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória/ nos cinco anos anteriores à constituição como arguido54/ bem como bens que ainda que não estejam na titularidade do arguido ele tenha o domínio e o beneficio à data da constituição como arguido

ou posteriormente55. Neste contexto surge a questão. Podem estes bens de terceiros ser arrestados, como forma de garantia de eficácia do confisco alargado? A resposta parece ir no sentido negativo, visto que o n. 0 4 do artigo 10. 0 da Lei, remete para o regime do arresto preventivo do C. P. Penal, sendo que por sua vez este remete para os termos da lei do processo civil. Ora nos termos da lei civil o regime do arresto surge como uma providência cautelar nominal, na qual só são susceptíveis, por regra, de ser arrestados bens do devedor, pelo que á partida os bens de terceiros não são susceptíveis de execução. Afigura-se, neste sentido, que os bens que

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Pois a qualidade de arguido pode vir a ser só adquirida na fase final do inquérito. Neste sentido, mas com argumentos diferentes Silva Dias, in Criminalidade e Combate ao Lucro Ilícito, pág. 47, o qual acrescenta, certeiramente, que para obstar à eventual dissipação patrimonial, que pode ser levada a cabo pelo arguido, nada impede que a notificação da liquidação relativa ao confisco alargado, obrigatoriamente comunicada ao arguido, seja precedida do arresto dos bens. 54 Cfr. Artigo 7." n." 2, al. b) da Lei. 55 Cfr. Artigo 7." n." 2, al. a) da Lei. 53

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fujam à titularidade do arguido sejam insusceptíveis de arresto 56 • Parece pertinente concluir-se, quer pelo facto do timming em que o arresto pode ser requerido, quer pelo facto de certos bens serem insusceptíveis de ser arrestados, que é de muito duvidosa eficiência este mecanismo plasmado na Lei, como garante de eficácia do confisco alargado.

VII. A NATUREZA JURÍDICA Não existe um consenso entre a doutrina, sobre a concreta natureza do confisco ampliado previsto na Lei. Contribui para adensar a questão, a diversidade de soluções existentes nos diversos ordenamentos quanto à sua natureza. Internamente não se fugiu a essa realidade. Damião da Cunha57 defende a sua caracterização como de carácter não penal (no sentido de que nada tem a ver com um crime) atribuindo-lhe a natureza de sanção administrativa prejudicada por uma anterior condenaçãopenal. Modestamente não se partilha desta opinião, pelas razões seguintes: i) como já se salientou supra, todo o processo decorre nos quadros específicos do direito penal: ii) o facto de a Lei decretar o confisco ampliado, numa altura que está viva a presunção de inocência, parece querer estender o recurso penal a esta medida; iii) à semelhança da perda de vantagens resultantes do facto ilícito típico, o confisco cumpre finalidades de prevenção geral e especial, inerentes ao sistema penal; i v) e, questão importante relacionada com a anterior, isto é, sendo uma medida de carácter punitivo fortemente incisiva dos direitos do arguido (concretamente patrimoniais), que cumpre finalidades de política criminal, qual seria o seu sistema de garantias, sabendo-se de antemão que nenhum outro ramo jurídico oferece um sistema de garantias como o processual penal58 • Lourenço Martins, por sua vez, de forma a fugir às críticas que são feitas ao confisco alargado por colisão com o princípio in dúbio pró reo, defende que a solução passe por considerar o confisco como um processo civil, um enxerto cível dentro do processo penal, estabelecendo-se para isso uma diferença clara entre procedimento conducente à culpabilidade ou inocência de uma pessoa e, o procedimento especial para a determinação se a origem de um bem é lícita ou ilícita59 . Também esta posição é de rejeitar pelas mesmíssimas razões apontadas para Damião da Cunha. Já em tónica diferente, surge a posição de Jorge Godinho. Começa por se afastar das anteriores teorias, desde logo, pelo facto de considerar a matéria do

Neste sentido Damião da Cunha, Perda de Bens a favor do Estado, pág. 147. In Perda de bens a favor do Estado, pág. 154. 58 Neste sentido Augusto Silva Dias, Criminalidade Organizada e Combate ao Lucro Ilícito, pág. 41. 59 In Luta Contra o Tráfico de Droga necessidades da investigação e sistema garantístico, Revista do Ministério Público, ano 28, Jul-Set, 2007, n." 111, pág. 50 e seg.

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confisco alargado de índole penal60 • Depois, seguindo a posição de Figueiredo Dias em matéria de perda de vantagens do artigo 111. 0 do Código Penal, define o mecanismo da Lei como uma reacção análoga a uma medida de segurança, realçando as analogias entre os regimes e referindo que a especificidade do confisco alargado reside no facto de que o ilícito típico a que se dirige não necessita ser provado/ devendo por isso ser decretado independentemente da culpa ou da imputabilidade do agente 61 . Também esta caracterização não parece convencer, nomeadamente por duas ordens de razão: primeiro, porque o confisco ampliado previsto no artigo 7. da Lei, pressupõem uma condenação por um dos crimes de catálogo, não prescindindo neste capítulo, dos requisitos relativos à culpa, ou seja, não se basta com o facto ilícito típico; depois, o autor refere como pressuposto básico para funcionamento do confisco a necessária condenação do arguido, admitindo, porém, a aplicação do mesmo a inimputáveis e agentes sem culpa62 • Por fim, um reparo por desacordo da afirmação de que o ilícito típico não necessita de ser provado/ dando a entender que uma medida como o confisco alargado, que reveste natureza excepcional e é fortemente incisiva, possui pressupostos de aplicação menos exigentes que o regime clássico do Código. Não parece que assim seja, visto que o único ilícito típico em jogo é o da questão principal e, aí, a Lei exige a condenação. Não se acompanha, pois, a posição de Jorge Godinho, quando argumenta que o facto de o arguido não conseguir ilidir a presunção implica dar como assentes que foram praticados outros crimes. A presunção apenas tem implícito que a incongruência patrimonial provém da actividade criminal organizada . .· Já aceitável parece a posição de Augusto Silva Dias63 , ao caracterizar o confisco ampliado como um efeito da pena, de consequências patrimoniais, não automáticas, para o arguido. De facto, com esta caracterização o ilustre Professor consegue obstar às críticas apontadas atrás. Para tal, socorre-se de Figueiredo Dias que apesar de lhe atribuir carácter penal, refere que os efeitos das penas, não assumem a natureza de verdadeiras penas por lhe faltar o sentido/ a justificação/ as finalidades e os limites próprios daquelas64 (das penas), adiantando que os efeitos das penas não se fundam em cirnmstancialismos ligados à culpa, mas unicamente em exigências de prevenção (nomeadamente de segurança geral e individual65). Efectivamente, configurado o confisco ampliado como um efeito da pena, o mesmo não será aplicável em situações de decisão absolutória no processo 0

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In Brandos costumes? ... pág. 1348. Brandos Costumes? ... pág. 1349. 62 Ibidem pág. 1342 e 1349. 63 In Criminalidade Organizada e Combate ao Lucro Ilícito, pág. 39 e seg. 64 In Direito Penal Português, Parte Geral II, As consequências Jurídicas do Crime, Reimpressão, Coimbra Editora, 2005, pág. 93. 65 Ibidem, pág. 177. 61

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principal, tornando-se então, místei; que a decisão da questão principal seja previamente solucionada relativamente à decisão do confisco, compatibilizandose, assim, com o elemento literal do artigo 7. 0 ínsito na Lei. Por outro lado, e importante, o confisco assim configurado escapa às criticas de colidir frontalmente com a presunção de inocência, visto nenhuma relação directa manter com exigências de culpa, ou seja, a incapacidade de ilidir a presunção de proveniência ilícita do património apenas configura um requisito de um efeito da pena de repercussões patrimoniais.

VIU. A RELAÇÃO DE TENSÃO COM A PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, votada em França pela Assembleia Constituinte no ano de 1789, consagrou, pela primeira vez, no seu artigo 9. 0 , a presunção de inocência. Entre nós, foi elevado à categoria de princípio constitucional com a Constituição da República Portuguesa de 1976, constando, actualmente, no n. 0 2 do artigo 32. 066 , fazendo parte do catálogo de direitos, liberdades e garantias fundamentais. A Constituição consagra-lhe duas grandes vertentes: enquanto modo de tratamento a dispensar ao arguido quando contra si corre um processocrime (restringindo as limitações à sua liberdade) e enquanto regra probatória aliada ao princípio ín dúbio pró reo. Admite-se, de facto, que o confisco ampliado imprime alguma constrição ao princípio, enquanto regra probatória, designadamente: o facto de o confisco assentar numa presunção íurís tantum com a respectiva inversão do ónus de prova; que a medida pode ser decretada numa altura do processo em que está viva a presunção de inocência, isto é, antes do trânsito em julgado da decisão principal; que em caso de dúvida insanável a solução a adoptar pelo tribunal, em virtude da presunção, resolve-se em desfavor do arguido. No entanto adianta-se, desde já, que a presunção de inocência pode sofrer constrições até certo limite, limite esse resultante da aplicação do regime previsto no artigo 18. do texto constitucional67. Por outras palavras, encontrando-se a presunção de inocência em tensão com outros direitos fundamentais, aquela pode ser constringida, desde que seja preservado o seu núcleo essencial. Neste sentido, não se pode olvidar que o direito à segurança ínsito no n. 0 1 do artigo 27. 0 da nossa Constituição68 faz parte do rol de direito fundamentais e, que as formas e proporções que as estruturas do crime organizado dispõem afectam seriamente 0

66

Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa. 67 Alexandra Vilela, Considerações Acerca da Presunção de Inocência em Direito Processual Penal, pág. 26. 68 "Todos têm direito à liberdade e segurança''.

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tal direito, lesando bens jurídicos tidos por essenciais, pondo em causa, inclusive, o próprio Estado de Direito. Neste contexto, o confisco ampliado colhendo por finalidade o combate ao lucro ilícito, de cujos efeitos perniciosos já se deram conta, relembrando o que supra já se mencionou sobre a sua natureza de pena acessória, o facto do núcleo essencial da presunção a inocência estar salvaguardado, em virtude dos seus efeitos incidirem exclusivamente em direitos patrimoniais69, não se afigura desproporcional e por conseguinte não põem em causa as exigências do artigo 18. 0 da Constituição pátria. Por outro lado, não é adequada para o confisco ampliado a critica que se expende para o crime de enriquecimento injustificado, apesar de ambos assentarem na mesma base70 • Aqui não ilidir a presunção de proveniência ilícita do património significa confirmar a culpa, sendo, por isso, o fundamento da pena. Estar-se-ia na presença de uma verdadeira presunção de culpabilidade 71, totalmente contrária à presunção de inocência. No confisco alargado, com a sua natureza de efeito da pena o facto de não conseguir ilidir a presunção da proveniência ilícita do património é requisito desse efeito da pena, nenhuma conexão mantendo com a culpa. A relação que se estabelece com a culpa verificase na condenação do arguido, por um dos crimes do art. 0 1. 0 da Lei, e nesta sede nenhuma presunção se verifica. A presunção estabelecida na Lei não é a de que o arguido é culpado da prática do crime que é objecto do processo ou de crimes praticados anteriormente, mas apenas que a incongruência patrimonial verificada no seu património, tem origem no âmbito da actividade criminosa organizada.

CONCLUSÕES Hodiernamente, é recorrente nos diversos ordenamentos jurídicos, o combate ao crime organizado recorrendo-se à vertente patrimonial, maxíme o combate ao lucro injustificado. Do acervo de medidas pensadas para tal desiderato, o legislador interno acolheu o confisco alargado, dirigido às vantagens do crime. Este mecanismo, rompendo com a nossa tradição jurídica, introduziu uma presunção júris tantum: após a condenação por um dos crimes do catálogo da Lei, o património do arguido que se mostre incongruente com os seus rendimentos lícitos presume-se de proveniência ilícita. Ao arguido cabe ilidir a presunção de que esse património não tem origem ilícita, criando a inversão do ónus de prova.

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Sendo unívoco na doutrina e jurisprudência que a prisão preventiva não afecta o núcleo essencial do princípio, aqui do que se trata é tão-só a privação de património. 70 Existência de uma presunção com inversão do ónus probatório. 71 Próprias de regimes de concepção autoritária do Estado, nos quais o processo criminal é de cariz marcadamente inquisitório.

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Longe de ser pacífica, a figura do confisco alargado coloca ainda problemas de interpretação, em alguns dos seus aspectos mais relevantes: e O âmbito da presunção será o património do arguido, que não seja congruente com os seus rendimentos lícitos adquirido nos últimos cinco anos, contados a partir da data da sua constituição como arguido. e A medida não deve prejudicar terceiros de boa fé, que tenham adquirido de forma legal os bens. Neste sentido, a presunção não deve funcionar contra esses terceiros, pelo que caberá ao Ministério Público provar a gratuitidade ou quase gratuitidade dessas transferências. e A Lei parece prescindir na base da presunção, da demonstração, pelo Ministério Público, de uma anterior actividade criminosa. Contudo, uma tal demonstração ainda que baseada em meros indícios, sempre contribuiria para uma melhor repartição do ónus de prova e, por outro lado, faria aumentar a garantia de que o património sequestrado era proveniente de crimes que a Lei quis particularmente abarcar. e A intervenção do tribunal na discussão do confisco alargado, não está limitada à prova apresentada pelas partes, podendo, oficiosamente, investigar relativamente à questão acessória do confisco. e O direito à não auto-incriminação é comprimido visto o argúido, quando confrontado com a liquidação, ter necessariamente que proferir declarações, as quais, pese embora de índole patrimonial, sempre lhe poderão ser desfavoráveis no contexto da questão principal. e O arresto representa a garantia que o confisco não se torne numa sanção virtual, contudo, apenas deve ser requerido pelo Ministério Público após a acusação pelo (s) crime (s) de catálogo. <~> Pese embora a Lei somente se referir a condenação, nada referindo sobre a espécie e medida da pena, uma medida tão gravosa do ponto de vista dos direitos patrimoniais como esta, deve exigir a condenação do arguido em pena de prisão efectiva, por razões de adequação e proporcionalidade. e A natureza do confisco é penal, devendo ser caracterizado como um efeito da pena, de consequências patrimoniais, não automáticas, para o arguido. e Com tal configuração o confisco alargado foge às críticas que normalmente são imputadas à solução de incriminação do enriquecimento injustificado, a qual vista como crime de mera suspeita, no nosso ordenamento colidiria frontalmente com o princípio da presunção de inocência.

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II VIDA DA FACULDADE



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§1 MESTRADOS (18 de Novembro de 2010) João Pires Cardoso Alves: Propriedade horizontal: as limitações de Direito Privado à realização de obras que prejudicam a segurança/ a estética e a linha arquitectónica do edifício Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor José Alberto Rodriguez Lorenzo Gonzalez; Prof. Doutor Jorge Henrique Pinto Furtado; Prof. Doutor Pedro João Fialho da Costa Cordeiro. (13 de Janeiro de 2011) Filipa Brazão Gonçalves Melo: O Direito à informação dos accionistas Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Jorge Henrique Pinto Furtado; Prof. Dr. Miguel José de Almeida Pupo Correia; Prof. Doutor José Alberto Rodriguez Lorenzo Gonzalez. (17 de Janeiro de 2011) Luís Tiago Moutinho Pinto Garcez: Sobre a arbitragem em Direito Fiscal Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Manuel Pires; Prof. Doutor Joaquim Rocha; Prof. Doutora Rita Sofia Martins Calçada Pires; Prof. Doutor José Alberto Rodriguez Lorenzo Gonzalez. (17 de Janeiro de 2011) Patrícia João Meneses de Sousa Leirião: A cláusula geral anti-abuso e o seu procedimento de aplicação Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Manuel Pires; Prof. Doutor Joaquim Rocha; Prof. Doutora Rita Sofia Martins Calçada Pires; Prof. Doutor António Manuel de Almeida Santos Cordeiro.

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Mestrados

(1 de Fevereiro de 2011) Laura Teimão Lopes Costa: O voto dos portugueses residentes no estrangeiro no actual ordenamento jwidico português Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Afonso Filipe Pereira de Oliveira Martins; Prof. Doutor Luís Manuel Barbosa Rodrigues; Prof. Dr. Ricardo Luís Leite Pinto. (3 de Fevereiro de 2011) José David Cinta Matias: Direito de Autor: Direito de colocação à disposição do público Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Pedro João Fialho da Costa Cordeiro; Prof. Doutor Dário Moura Vicente; Prof. Doutor José Alberto Rodriguez Lorenzo Gonzalez (3 de Março de 2011) Sandra Inês Ferreira Feitor: A síndrome da alienação parental e o seu tratamento à luz do Direito de Menores Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Eduardo Augusto Alves Vera-Cruz Pinto; Prof. a Doutora Marta Andrea Matos da Costa; Prof. Doutora Tânia Gaspar Sintra dos Santos. (14 de Março de 2011) Ana Alexandra Ferreira Gaspar: A trabalho igual/ salário igual Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Pedro Manuel Ortins de Bettencourt; Prof. Doutor Luís Manuel Barbosa Rodrigues; Prof.a Doutora Elizabeth Accioly Rodrigues da Costa (5 de Maio de 2011) João Miguel de Almeida Lopes Monso: O período de prova no contrato individual de trabalho e a sua utilização irregular Júri: Prof. Doutor José Alberto Rodriguez Lorenzo Gonzalez (Presidente); Prof. Doutor Pedro Manuel Ortins de Bettencourt; Prof.a Doutora Teresa Coelho Moreira. (18 de Maio de 2011) Paulo Jorge da Silva Marques: A perda de bens a favor do Estado como forma de combate à oiminalidade organizada Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Augusto Manuel Gomes da Silva Dias; Prof. Doutor Fernando José dos Santos Pinto Torrão; Prof.a Doutora Maria da Conceição Santana Vald'água.

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(15 de Junho de 2011) João Manuel dos Santos Milhano: Protecção de vítimas de crime. Reflexão sobre medidas de última linha Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Augusto Manuel Gomes da Silva Dias; Prof." Doutora Maria da Conceição Santana Vald'água; Prof. Doutor José Alberto Rodriguez Lorenzo Gonzalez (16 de Junho de 2011) Paulo Domingos das Neves Coelho: O traçado das linhas de base- o caso particular das linhas de fecho e de base recta portuguesas Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Afonso Filipe Pereira de Oliveira Martins; Prof. Doutor Fernando Manuel Pereira Loureiro Bastos; Prof. Doutora Elizabeth Accioly Rodrigues da Costa (1 de Julho de 2011) João Ramos Piúla Casimiro: O contrato de sociedade no Código Civil Português de1966 Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Eduardo Augusto Alves Vera-Cruz Pinto; Prof. Doutor José Alberto Rodriguez Lorenzo Gonzalez (6 de Julho de 2011) Fábio Leonel da Silva Vieira: O crime de furto e os meios inf01máticos Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Augusto Manuel Gomes da Silva Dias; Prof. a Doutora Maria Margarida da Costa e Silva Pereira Taveira de Sousa; Prof. a Doutora Maria da Conceição Santana Vald'água (7 de Julho de 2011) Rute Sofia Ovos Belchior: O superior interesse da criança. Como alcançar este Princípio? Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Eduardo Augusto Alves Vera-Cruz Pinto; Prof. Doutor José João Gonçalves de Proença; Prof. Doutor Joaquim Manuel Croca Caeiro (21 de Julho de 2011) Sílvia Maria Gaivão Teles Franco Pulido Pereira: A autoliquidação dos impostos Júri: Diamantino Freitas Gomes Durão (Presidente); Prof. Doutor José Duarte Nogueira; Prof. Doutor Manuel Pires; Prof. Doutor Joaquim Manuel Freitas Rocha; Prof. Doutor Afonso Filipe Pereira de Oliveira Martins

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(29 de Setembro de 2011) Stella Espírito Santo Alves: Fusões comerciais à luz da legislação angolana Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Jorge Henrique Pinto Furtado; Prof. Doutor Eduardo Augusto Alves Vera-Cruz Pinto; Prof. Doutor José Alberto Rodriguez Lorenzo Gonzalez (20 de Outubro de 2011) Lídia Cristina Cristina Coelho Perdigão: As repercussões da declaração de insolvência nos contratos de trabalho Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Pedro Manuel Gomes Ortins de Bettencourt; Prof. Doutor Jorge Henrique Pinto Furtado; Prof. Doutor José Alberto Rodriguez Lorenzo Gonzalez (10 de Novembro de 2011) Cláudio Paulino Domingos dos Santos: O regime jwidico dos centros comerciais em Angola. O comerciante: sua relação com o ouiTo Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Jorge Henrique Pinto Furtado; Prof. Doutor Eduardo Augusto Alves Vera-Cruz Pinto; Prof. Dr. Miguel José de Almeida Pupo Correia (12 de Dezembro de 2011) Rossana Alexandra Moreira Bastos Martins: Os direitos do cônjuge sobrevivo em Angola Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Eduardo Augusto Alves Vera-Cruz Pinto; Prof. Doutor Jorge Alberto Caras Altas Duarte Pinheiro; Prof. Doutor Luís Manuel Barbosa Rodrigues (15 de Dezembro de 2011) Miguel Carlos de Barros e Cunha Pereira Coutinho: Da responsabÍ!idade civil ambiental: sua adesão ao Processo Penal Português Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutora Elizabeth Accioly Rodrigues da Costa; Prof. Doutora Branca Maria Pereira da Silva Martins da Cruz; Prof. Doutora Maria Margarida da Costa e Silva Pereira Taveira de Sousa; Prof. Doutor José Rubens Morato Leite (19 de Janeiro de 2012) Marta Duarte Nogueira: Julgados de Paz: o passado/ o presente e o que ambicionamos para o futuro -o caso singular do recurso nos Julgados de Paz Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Eduardo Augusto Alves Vera-Cruz Pinto; Prof. Doutor Jaime Octávio Cardona Ferreira; Prof. Doutor Luís Manuel Barbosa Rodrigues

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Mestrados

(9 de Fevereiro de 2012) Fernando Manuel Castanheira de Brito: A localização celular no Pmcesso Penal. Análise do respectivo regime jwidico no âmbito do Pmcesso Penal Português Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Fernando José dos Santos Pinto Torrão; Prof. Doutor José Alberto Rodriguez Lorenzo Gonzalez (16 de Fevereiro de 2012) Andreia Marisa Bento Gonçalves: A publicidade enganosa Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor António Manuel de Almeida Santos Cordeiro; Prof. Doutora Maria Eduarda de Almeida Azevedo; Prof. Dr. Miguel José de Almeida Pupo Correia (8 de Março de 2012) Vítor Manuel Fernandes Fonseca: Especificidades das marcas de prestígio Júri: Prof. Doutor José Alberto Rodriguez Lorenzo Gonzalez (Presidente); Prof. Doutor Pedro João Fialho da Costa Cordeiro; Prof. Doutora Marta Andrea Matos da Costa (15 de Março de 2012) Rosa Maria de Jesus Taborda Félix Barros: O Direito à reserva da intimidade da vida privada nos doentes com VIH/SIDA: reforço dos meios de garantia e tutela Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutora Maria do Céu Rueff de Saro Negrão; Prof. Doutor Pedro João Fialho da Costa Cordeiro; Prof. Doutora Maria Margarida da Costa e Silva Pereira Taveira de Sousa

(16 de Abril de 2012) António Miranda Pinheiro dos Santos: O crime de mubo de uso de veículo (carjacking). Previsão e punibilidade no Código Penal Português Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Augusto Manuel Gomes da Silva Dias; Prof. Doutora Maria Margarida da Costa e Silva Pereira Taveira de Sousa; Maria da Conceição Santana Vald'água (18 de Abril de 2012) Anselmo Muleleno Jeteio: Direito de Autor na sociedade de informação: cópia piivada e uso pJivado: o pmblema da liberdade e do consumidor na intemet Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Pedro João Fialho da Costa Cordeiro; Prof. Doutor José Alberto Rodriguez Lorenzo Gonzalez

Lusíada. Direito. Lisboa, n." 10 (2012)

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Mestrados

(23 de Abril de 2012) António Mário Stoffel Blaz: A responsabilidade penal da pessoa colectiva e o problema da culpa da organização Júri: Prof. Doutor José Duarte Nogueira (Presidente); Prof. Doutor Eduardo Augusto Alves Vera-Cruz Pinto; Prof.a Doutora Anabela Maria Pinto de Miranda Rodrigues; Prof. Doutor José Alberto Rodriguez Lorenzo Gonzalez

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Licenciados

-B-

§1 LICENCIADOS EM DIREITO 11040506 11127307 11098307 11078005 11176708 11052007 11157909 11170107 11183003 11149707 11018808 11099108 11093007 11063306 11048007 11093110 11045406 11098592 11055005 11115603 11146003 11043407 11082805 11107507 11007707 11113708

ALIAKSEI KARATSIUK ANA CRISTINA BARRETO ALVES DA SILVA ANA IRINA ALVES SARDINHA ANA ISABEL DA SILVA BRITO ANA MARGARIDA VERÍSSIMO ALVES ANA RITA QUINTAS SETAS MARTINS ANA SOFIA CORREIA DA SILVA ANA SOFIA DOS SANTOS NUNES PIRES ANA ZARA SOARES DA FONSECA CADIMA ANDRÉ TIAGO MENDES MAGALHÃES ANDREIA NICOLE DE ALBUQUERQUE CARVALHO ANTONICA MANUEL PERES PEREIRA PEDRO ANTÓNIO MANUEL DE JESUS TEIXEIRA BRUNA MAURÍCIA MARTINS COTA VALADÃO ROCHA CARLA LUISA VENTURA DE OLIVEIRA CLÁUDIO RUI MARQUES PALHEIRA DIOGO NUNO PEREIRA MONTEIRO ÉLIA MARIA DOS SANTOS COSTA JERÓNIMO ELODIE NADEGE MARQUES MEALHA FERNANDO ANTÓNIO VENÂNCIO ANDRÉ FILIPE OLIVEIRA PILOTO HELENA ISABEL DE JESUS RIBEIRO HUGO MIGUEL REGUEIRA COELHO CARREIRA JOANA MARGARIDA PINTO FARINHA JOÃO JOSÉ MIRANDA ABELHO JOÃO JOSÉ NEVES LUCIANO

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Licenciados

11033205 11026706 11050205 11111107 11142993 11096807 11021007 11107007 11085009 11003505 11088806 11034005 11091705 11087706 11036105 11112005 11079907 11107606 11116907 11100703 11080807 11058805 11026107 11039505 11069307 11133807 11155807 11154507 11138807 11073202 11057805 11092810 11067405 11113807 11149810 11153707 11043207 11065910 11107807 11096307 11055206 11051305

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JOÃO MIGUEL AFONSO LOURO RAMOS CRAVO JOÃO PAES DE SANDE E CASTRO JORGE ANDRÉ VENTURA SIMÕES JOSÉ ALBINO DA LUZ SANTOS JOSÉ RUI AFONSO VERA-CRUZ KESCIANNY SUELEY DE BARROS MIGUEZ LAURINDO CUSTÓDIO FERNANDES MIGUEL LEONEL LOURENÇO MADEIRA LILIANA CLÁUDIA DA CONCEIÇÃO FARINHA GUEDES DO ESPÍRITO SANTO MANUEL ARMANDO SOARES BASTO MARCO ALEXANDRE PALMEIRO CANUDO MARCO ALEXANDRE ROMÃO DE SOUSA MARIA CARLOTA CORREIA CARDOSO PINTO MARIA JOSÉ LEVITA MARTINS MARIA VALE E AZEVEDO SEABRA MARIANA ISABEL DE ALMEIDA CAVALEIRO MARTA DE VASCONCELOS GUIMARÃES CABRAL MARTIM ROQUETTE VAZ DA SILVA MAURA RODRIGUES HASHIMOTO MIGUEL HOCHIMINI ALMEIDA PIRES SEMEDO DA VEIGA NUNO JOSÉ ROCHAANACLETO NUNO NEVES PETRUCCI MADRINHA PEDRO FILIPE GOMES RODRIGUES PEDRO NUNO MATAMOUROS MARTINS VICENTE PEDRO TIAGO DE MELO FERNANDES RENATA GOUVEIA MARTINS RITA ROSÁRIO DUARTE RODOLFO MANUEL MESTRE TAVARES ROMINA HELENA DA SILVA ASSIS BERNARDINO PAIS RUI MIGUEL MADEIRA GONÇALVES RUI PAULO PRATES ESTEVES SARA ALEXANDRA CORTINHAS PINTO SARA CRISTINA CAIXEIRO GRILO SARA RAQUEL SERRALHA ALVES SÉRGIO PAULO DOS SANTOS BARBOSA SORAIA CATARINA DE LIMA ALMEIDA SUSANA CRISTINA COELHO DA SILVA PITA SOARES TÂNIA MARGARIDA ANDRÉ JACINTO TEOTÓNIO FERREIRA DA MATA MONIZ LONDA TIAGO SILVA FRIAS DE OLIVEIRA BARATA TOMÁS JOSÉ DA COSTA DE SOUSA DE MACEDO TOMÁS LEAL DE OLIVEIRA MARÇAL

Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 10 (2012)


Licenciados

11082107 11056507

VANESSA VICENTE BEXIGA VERA LÚCIA GUERREIRO BARROSO

§2

LICENCIADOS EM SOLICITADO RIA 11147810 11082308 11148308 11010608 11099308 11045506 11106108 11086708 11117607 11005208 11151008 TE IRO 11054208 11012408

ANA MARIA VIDAL HENRIQUES ANA SOFIA BRILHANTE DINIS DE ABREU BELMIRA ALVES MARTINS CARLA CRISTINA PINHEIRO CORREIA DO VALE CHRISTIAN TOMÁS BREGIEIRO PEDROSA DINA SÓNIA ALVES ORNELAS ISABEL MARIA DA COSTA DUARTE SANTOS RITA ALEXANDRA DOS REIS FERREIRA SANTIAGO SARA LILIANA ROMÃO FERNANDES SÍLVIA MARIA BERNARDO PEIXOTO TERESA SOFIA MARQUES TOMÁS GRADE MONTIAGO FERNANDO PEREIRA DOS SANTOS DIAS VERA ALEXANDRA GOMES DA COSTA JESUS

Lusíada. Direito. Lisboa, n. 0 10 (2012)

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