Lusíada Política Internacional e Segurança - 6/7

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Lusíada Série I, n.º 6/7 (2012)

Política Internacional e Segurança


Mediateca da Universidade Lusíada – Catalogação na Publicação LUSÍADA. Política internacional e segurança. Lisboa, 2008 Lusíada. Política internacional e segurança / propr. Fundação Minerva – Cultura – Ensino e Investigação Científica ; dir. José Francisco Pavia. – S. 1, n. 1 (2008)-

. – Lisboa : Universidade Lusíada, 2008-

. - 24 cm. - Semestral

ISSN 1647-1342 1. Política Internacional - Periódicos 2. Segurança Internacional - Periódicos I – PAVIA, José Francisco Lynce Zagalo, 1967CBC

JZ9.L87

Ficha Técnica Título Proprietário Director Conselho Científico

Lusíada. Política internacional e segurança

Série I

N.º 6-7

Fundação Minerva - Cultura - Ensino e Investigação Científica Prof. Doutor José Francisco Lynce Zagalo Pavia Prof. Doutor Luís Lobo Fernandes (Universidade do Minho) Prof. Doutor Carlos Motta (Universidade Lusíada de Lisboa) Prof. Doutor Luís Castelo Branco (Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento) Prof. Doutor André Thomashausen (University of South Africa) Prof. Doutor Moisés Silva Fernandes (Universidade de Lisboa) Prof.ª Doutora Maria José Stock (Universidade de Évora) Prof. Doutor Francisco Proença Garcia (Delegação Portuguesa na OTAN)

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286245/2008 1647-1342 Lisboa 2012 Semestral Universidade Lusíada Editora Rua da Junqueira, 188-198 1349-001 Lisboa Tel.: +351 213611500 / +351 213611568 Fax: +351 213638307 URL: http://editora.lis.ulusiada.pt E-mail: editora@lis.ulusiada.pt

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SUMÁRIO PROCEDIMENTOS DE ARBITRAGEM CIENTÍFICA ............................................ 7 NOTA DE ABERTURA E POLÍTICA EDITORIAL .................................................. 9 A Multi-Track Diplomacy na prevenção e resolução dos conflitos em África: o caso de Moçambique. COMUNICAÇÃO Apresentada na Conferência Internacional A Prevenção e a Resolução de Conflitos em África que decorreu no Instituto de Defesa Nacional, Lisboa, nos dias 10 e 11 de Outubro de 2011 José Francisco Lynce Zagallo Pavia .......................................................................... 11 Cabo Verde e a graduação da lista de Países Menos Avançados - da validação política à transição sustentável Irina Luís Pais ........................................................................................................... 51 A CRISE FINANCEIRA E A SOFT DEFENCE António Rebelo de Sousa ........................................................................................... 71 Inquietações com o Sistema de Defesa Antimísseis na Europa Luís Eduardo Saraiva................................................................................................. 83 Segurança Marítima Cooperativa: Perspectivas face às Novas Ameaças A. Jorge Pereira Lourenço ......................................................................................... 97 O Sistema de Defesa antimíssil da Aliança Atlântica Francisco Proença Garcia ........................................................................................ 123

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dEZ ANOS DO EURO. vALEU A PENA? António Luvualu de carvalho................................................................................... 135 60 Anos de Política Externa Económica Japonesa Pedro Miguel Amakasu Raposo de Medeiros Carvalho........................................... 171 Filosofia, cristianismo e democracia. A importância da sintonia cristã entre razão e fé para a vitalidade das democracias e para o reencontro do Ocidente consigo mesmo e com o mundo Abel Diogo Morais Sarmento Xavier Madureira ................................................... 199 A Política Externa Iraniana Post 1979 Rui Faro Saraiva ..................................................................................................... 229 O novo grande jogo de energia da ásia Manuel Martins Lopes ............................................................................................ 253 Contributos para a Problemática da Segurança Privada em Portugal. Director de Segurança António Cayolla, António Coito e Joaquim Santos ................................................. 341


PROCEDIMENTO DE ARBITRAGEM CIENTÍFICA Em estreita relação com a Política Editorial, a Revista Lusíada - Série Política Internacional e Segurança foi pensada com o objectivo de fornecer um conjunto de contributos científicos originais e actualizados no campo da Ciência Política, das Relações Internacionais e das Políticas de Segurança em geral. O procedimento de arbitragem científica tem de ter obrigatoriamente em consideração a especificidade da Revista tal como é descrita na Nota de Abertura e Política Editorial. O Conselho Científico foi constituído por investigadores nacionais e estrangeiros especializados nas diversas áreas de investigação, como consta dos respectivos currículos. O objectivo foi conciliar a necessária qualidade científica e a variedade de especializações com a diversidade de temáticas. Os membros do Conselho Científico serão os garantes da qualidade e validade científica das diversas contribuições para os números sucessivos da Revista. Assim, periodicamente serão convidados segundo as respectivas qualificações científicas e especialidades, a dar a sua opinião, em sistema de blind review, sobre a qualidade dos textos, a orientação geral, os dossiers temáticos e as diversas secções de cada número. Será solicitado a cada membro um relatório onde constem devidamente explicitados, as diversas observações e propostas de melhoria. Os resultados desta avaliação traduzir-se-ão numa alteração, reajustamento ou rectificação quer da linha editorial quer das contribuições presentes e futuras, numa perspectiva evolutiva centrada na preservação da qualidade científica e da actualização temática da Revista.

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NOTA DE ABERTURA E POLÍTICA EDITORIAL Lançamos agora o sexto/sétimo número da Revista Lusíada Política Internacional e Segurança. O próximo número, o oitavo, terá lançamento previsto para Dezembro de 2012; tentaremos sempre, na medida do possível e como já foi referido em nota anterior, acompanhar a actualidade internacional que, como sabemos, é dinâmica, imprevisível e cheia de surpresas. Tentaremos também reforçar o carácter transdisciplinar incentivando a colaboração de autores de outras áreas científicas. Mais uma vez se relembra que está aberto em permanência um endereço de e-mail para onde deverão ser enviadas as propostas de artigos, que depois de submetidos às exigências do escrutínio por arbitragem independente, poderão ser aqui publicados. O referido endereço electrónico é: pavia.jose@gmail. com

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A Multi-Track Diplomacy na prevenção e resolução dos conflitos em África: o caso de Moçambique. Comunicação Apresentada na Conferência Internacional A Prevenção e a Resolução de Conflitos em África que decorreu no Instituto de Defesa Nacional, Lisboa, nos dias 10 e 11 de Outubro de 2011

José Francisco Lynce Zagallo Pavia Professor Auxiliar da Universidade Lusíada de Lisboa. Coordenador da linha de investigação Europa, África, Segurança e Migrações do CEPESE (Centro de Estudos sobre a População, Economia e Sociedade) da Universidade do Porto. Auditor de Defesa Nacional pelo IDN (Instituto de Defesa Nacional) e Director da Revista Lusíada de Politica Internacional e Segurança. email: pavia.jose@gmail.com

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Resumo: A resolução da guerra civil moçambicana, a subsequente assinatura dos Acordos de Paz em Roma e a realização de eleições multipartidárias que se têm repetido periodicamente sem conflitos de maior até aos dias de hoje, transformaram o caso moçambicano numa história de sucesso em África. Para que isto acontecesse foi necessário um esforço diplomático que durou vários anos, envolveu diversas entidades, conheceu avanços e recuos, mas, finalmente, conseguiu resolver um dos mais sangrentos conflitos civis no continente africano. É este o conceito de Multi-track diplomacy, ou seja, uma situação onde podem aparecer vários níveis de entidades diferentes que, em conjunto, fazem parte de um sistema que tem em vista alcançar a paz. Incluem-se aqui governos, entidades não-governamentais, mas, também empresários, cidadãos individuais, activistas, religiosos, filantropos, meios de comunicação social, professores, etc. Iremos, nesta comunicação, recordar esse caminho, evidenciar os diversos actores envolvidos e tentar demonstrar que o caso moçambicano foi um sucesso devido precisamente à sua especificidade e à utilização de meios não-convencionais que conseguiram no seu conjunto a cessação das hostilidades e a ulterior transição política. Palavras-Chave: Moçambique / Multi-Track Diplomacy / Acordos de Paz / Guerra Civil. Abstract: The resolution of the Mozambican civil war, the subsequent signing of the Peace Agreements in Rome and the holding of multiparty elections that have been repeated periodically until the present day, turned on the Mozambican case a success story in Africa. For this to happen it took a diplomatic effort that lasted several years, various bodies involved, experienced advances and setbacks, but finally managed to solve one of the bloodiest civil conflicts in Africa. This is the concept of multi-track diplomacy, ie, a situation in which may appear several levels of different entities, which together are part of a system that aims to achieve peace. These include governments, non-governmental entities, but also businessmen, individual citizens, activists, religious, philanthropic, media, teachers, etc.. We will, in this communication, remember that path, to show the various actors involved and try to show that the Mozambican case was a success precisely because of its specificity and use of unconventional means who

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managed as a whole the cessation of hostilities and further political transition. Key-Words: Mozambique / Multi-Track Diplomacy / Peace Agreements / Civil War. 1. A Entrada em Cena da Comunidade de Santo Egídio

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Nos princípios de 1988, a Comunidade de Santo Egídio de Roma, e D. Jaime Gonçalves, Arcebispo da Beira, iniciaram um processo de aproximação dos beligerantes. Esta Comunidade da Igreja Católica surgiu em 1968, aparentando ter bons contactos com círculos esquerdistas na Itália e em muitos outros países, nomeadamente no terceiro mundo. É composta por cerca de 15.000 voluntários em vinte países, com uma presença significativa na costa oriental de África.1 O envolvimento da Comunidade de Santo Egídio na política moçambicana data dos princípios da década de 1980 quando providenciou encontros entre o partido Comunista Italiano (PCI) e a Igreja Católica Moçambicana. O objectivo destes contactos era tentar persuadir o PCI a usar a sua influência sobre a Frelimo de modo a esta aliviar a sua perseguição à Igreja Católica. No seu esforço de tentar aproximar a Igreja Católica à Frelimo, a Comunidade de Santo Egídio revelou-se fundamental na realização das visitas de Samora Machel, e depois, de Joaquim Chissano ao Vaticano. A aproximação dos dois Estados culminou com a visita do Papa a Moçambique em 1988, e a retirada pela Frelimo da censura à Igreja Católica, e pelas devoluções de propriedades da Igreja que tinham sido ocupadas.2 O papel que vai ser desempenhado pela Comunidade de Santo Egídio nas conversações de paz foi complementar aos constantes apelos à reconciliação feitos pela Igreja. Estes apelos eram publicados nas cartas pastorais e foram muitas vezes censurados pela Frelimo; tais apelos também reflectiam a agenda própria da Igreja Católica Moçambicana. Antes da independência, a Igreja era vista como um dos pilares do regime colonial. Depois de 1975, a Igreja tentou adaptar-se às novas realidades. Um dos aspectos mais salientes foi a subida hierárquica dos negros dentro do movimento eclesiástico; outro aspecto, foi uma aproximação maior da Igreja à sociedade, e isto deu origem a que Stº Egídio3 tivesse um envolvimento quase decisivo nas conversações de paz. Venâncio, Moisés e Chan, Stephen (1998) War and Peace in Mozambique. MacMillan Press. London. P. 19. 2 Idem. P. 20. 3 Moita, Madalena e Zuppi, Matteo A Comunidade de Sant`Egídio em Moçambique in: Janus 2005 Portugal no Mundo: A Guerra e a Paz nos nossos dias. Público/UAL. Lisboa. Segundo estes autores as características que permitiram o sucesso de Sant`Egídio em Moçambique foram: o conhecimento, o desprendimento, a imparcialidade, a discrição, a criatividade e perseverança, a flexibilidade, a oportunidade, a multidimensionalidade, o consenso, os contactos e o realismo. 1

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Por outro lado, num país caracterizado pelo crescimento do protestantismo, por uma grande comunidade islâmica e por importantes expressões animistas, o envolvimento da Igreja Católica no processo de paz deu um novo estímulo à evangelização de Moçambique. A ligação entre a Comunidade de Santo Egídio e Moçambique deu-se, como indicámos, através de D. Jaime Gonçalves, que quando estudava em Roma teve contactos com a organização. D. Jaime revelar-se-ia uma figura central no processo de paz não só pela ligação à Comunidade de Santo Egídio, mas também à Renamo. Ele não só é oriundo do mesmo grupo étnico a que pertence quase toda a liderança da Renamo, os N’Dau, como também é parente da mulher de Dhlakama.4 Em 1988, outro acontecimento ajudou a abrir caminho para as negociações de paz. O encontro do Songo (província de Tete, próximo de Cahora Bassa) entre Joaquim Chissano e P. W. Botha (presidente sul-africano), foi um reafirmar do empenhamento sul-africano em não ajudar a Renamo. As relações entre os dois países estavam num ponto morto desde a morte de Machel em 1986, e o encontro foi importante para relançar a comunicação entre Maputo e Pretória. Botha sugeriu a Chissano um diálogo com a Renamo, eventualmente com a mediação dos EUA. Este plano foi recusado por Maputo, mas, no entanto, já aqui se evidenciam as tentativas feitas pela África do Sul para se chegar a uma solução negociada. Depois da derrota do exército sul-africano em Cuito Canavale, nos fins de 1987, os círculos militares na África do Sul começaram a mudar a sua Estratégia Total. A atitude sul-africana passa a ser mais moderada e a ir progressivamente ao encontro do diálogo e da coexistência pacífica com os países da região, incluindo Moçambique.5 O outro acontecimento que iria ter repercussões relevantes em Moçambique e nos actores internacionais mais directamente envolvidos foi a divulgação do Relatório Gersony em Abril de 1988.6 Neste relatório, elaborado por Robert Gersony, a pedido do Departamento de Estado norte-americano, é feita uma descrição muito negativa da Renamo e das suas acções no território moçambicano, nomeadamente o massacre na localidade de Homoine, em Outubro de 1987, que lhe foi atribuído. Este desenvolvimento, teve como principal consequência um apoio mais forte à Frelimo por parte dos diversos actores internacionais e, também, uma condenação generalizada da Renamo. Eventualmente, essa situação terá contribuído para que a Renamo, depois deste revés diplomático, estivesse mais aberta a um processo de negociações com a Frelimo, que efectivamente começa em 1989 com as negociações de Nairobi. A Renamo estava, ainda, sujeita a diversas pressões e incentivos no sentido de caminhar para negociações. Um facto menos conhecido foi a circunstância de, em Agosto de 1989, quando a delegação da Renamo, liderada por Afonso Dhlakama, se deslocou de Lilongwe

Venâncio and Chan (1998) Op. Cit. P. 21. Abrahamsson, Hans e Nilsson, Anders (1994) Moçambique em Transição. CEEI-ISRI. Maputo. Pp. 92-93. 6 Idem. P.105. 4 5

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no Malawi, para Nairobi no Quénia, no avião da Lonrho,7 também ir nesse avião a embaixadora dos EUA em Moçambique, Melissa Wells, que além do incentivo a Dhlakama, lhe terá exigido que a Renamo apresentasse quinze homens credíveis para a Renamo poder formar um governo sombra.8 Os EUA faziam, portanto, uma pressão dupla junto da Frelimo e da Renamo no sentido de encaminhar o processo para um acordo de paz e para um desenvolvimento da abertura democrática. Estas iniciativas da administração norte-americana são, em especial, confirmadas por Witney W. Schneidman9 quando afirma: (...) Outro desenvolvimento significativo no processo de mediação ocorreu na Primavera de 1989 quando o Embaixador Herman J. Cohen, que tinha substituído Chester Crocker, enquanto sub-secretário de Estado para os Assuntos Africanos, afirmou: Penso que a situação em Moçambique é tão má e a necessidade de paz tão grande, que eu falarei com toda a gente. Este discurso de Cohen indicava uma mudança de orientação da política norte-americana, que tinha sido até aí de evitar qualquer contacto oficial com a Renamo. Pouco tempo depois deste discurso, Chissano faria constar junto do Departamento de Estado que não tinha nada a opor às diligências norte-americanas junto da Renamo. O discurso de Cohen permitiu aos EUA começarem a ter um papel activo, mas discreto, no sentido de facilitar o processo de mediação (...). [Trad. do autor]. O ano de 1989 vai ser o ponto mais alto daquilo a que nós temos vindo a apelidar de novo realismo. Vai-se realizar o V Congresso da Frelimo e vão-se iniciar em Nairobi as negociações de paz, que apesar de não virem a ter sucesso, abriram a porta à entrada do mediador decisivo - a Comunidade de Santo Egídio - e à transferência das negociações para Roma. Em Abril de 1989, a Frelimo estava sob crescente pressão internacional para negociar com os rebeldes. No decurso desse mês, a primeira ministra britânica Mrs. Thatcher, o ministro dos negócios estrangeiros da África do Sul, Pik Botha, e Anatoli Adamishin, encarregado soviético dos assuntos africanos, visitaram Maputo e exerceram pressão directa sobre a Frelimo no sentido desta iniciar conversações de paz e caminhar mais rapidamente para a democratização. A acrescentar à pressão internacional, estava também o estado caótico do exército governamental e a situação caótica da economia.10 Antes, em 26 de Fevereiro desse ano, uma delegação de clérigos moçambicanos tinha já iniciado os primeiros contactos com a delegação da Multinacional de origem britânica, liderada por Tiny Rowland, e com vastos interesses no Zimbabwe e em Moçambique. 8 Estes factos foram relatados por Raúl Domingos ao autor, em entrevista que decorreu em Maputo no dia 28/12/2000. 9 Witney W. Schneidman Conflict Resolution in Mozambique: A Status Report in: CSIS Africa Notes, Nº 121, February 28, 1991. Pp. 4-6. 10 Venâncio and Chan (1998) Op. Cit. Pp. 22-23. 7

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Renamo em Nairobi.11 Esses contactos serão suspensos durante a realização do V Congresso da Frelimo, que decorrerá de 24 a 31 de Julho de 1989.12 Retomaramse as negociações, logo em Agosto, que ainda continuarão durante algum tempo sem que se alcancem quaisquer resultados, o que terá como consequência, como assinalámos, na sua transferência para Roma. Houve nestes contactos a interferência de uma figura, Tiny Rowland, que terá tido um papel bastante importante, segundo alguns,13 em todo o processo. Tiny Rowland era o líder da multinacional britânica Lonrho, que tinha interesses vários em Moçambique, nomeadamente, na zona centro e na área do corredor da Beira; tinha também grandes interesses no Zimbabwe, além de outros países africanos. Uma empresa moçambicana, a Lomaco, era a filial da Lonrho em Moçambique, cujo capital era detido em 51% pela casa-mãe, e os restantes 49% pelo governo moçambicano.14 Rowland tinha enormes concessões do governo moçambicano em termos agrícolas, e beneficiava ainda de algumas isenções de impostos e facilidades de vária ordem.15 Teria também sido através de Rowland que os militares britânicos se haviam envolvido no treinamento de tropas moçambicanas e fornecido mesmo algum material militar.16 Os contactos de Rowland não se limitavam apenas ao governo. Desde pelo menos 198217 que a Lonrho faria pagamentos à Renamo, a troco de esta não atacar os seus interesses. Contudo, vendo que estes pagamentos não eram suficientes, Rowland envolveu-se no processo negocial. Foi assim, desde 1989 até ao fim do processo negocial. Em especial, foi o avião da Lonrho que assegurava transporte a Afonso Dhlakama e a outros membros das delegações da Renamo de e para as diversas capitais, onde era necessária a presença do líder da Renamo. Foi ainda o dinheiro da Lonrho que pagou várias despesas, e foi a influência de Rowland que conseguiu em fases mais complicadas do processo fazer - pelo menos em parte - com que este avançasse.18 Houve, inclusivamente, tentativas de concertação com as autoridades portuguesas, por intermédio de António Alves Gomes, representante da Lonrho em Maputo,19 e directamente através do próprio Rowland. Já depois da assinatura do AGP (Acordo Geral de Paz) os homens da Renamo que estavam em Maputo ficaram instalados no Hotel Cardoso - que pertencia à Lonrho - durante quase dois anos.20 Terão havido ainda incentivos financeiros para que a Renamo assinasse o AGP, Cfr. www.c-r.org/acc_moz/sengulane.htm. Acesso em 12/07/2006. Para uma análise exaustiva deste processo de Nairobi e a intervenção dos clérigos moçambicanos, veja-se: www.c-r.org/acc_moz/sengulane.htm. Acesso em 12/07/2006. 13 Como por exemplo, Alex Vines in: www.c-r.org/acc_moz/vines.htm. Acesso em 12/07/2006. 14 Tiny Rowland: The Ugly Face of Neocolonialism in Africa in: Executive Intelligence Review, Washington, D.C. 1993. P. 104. 15 Idem. P. 105. 16 Ibidem. P. 105. 17 Alex Vines in: www.c-r.org/acc_moz/vines.htm. Acesso em 12/07/2006. 11 12

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Idem.

Alves Gomes confirmou este facto ao autor em entrevista ocorrida em Maputo, em Dezembro de 1995. 20 O próprio autor confirmou este facto na sequência das suas deslocações a Maputo. 19

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e também durante a fase imediatamente anterior às eleições.21 O que parece ser facto é que nos discursos de agradecimento que, quer Afonso Dhlakama, quer Joaquim Chissano, fizeram em Roma, por ocasião da assinatura do AGP, ambos agradeceram o empenho pessoal de Rowland em todo o processo. Fica mais uma vez patente, através das ocorrências que acabámos de descrever, que o processo de transformação política em Moçambique teve a contribuição decisiva de vários actores internacionais, actores estes que não são apenas Estados ou organizações multilaterais, ou ainda ONG (organizações não-governamentais), mas até, como foi neste caso, a intervenção pessoal de alguém, que era o líder de uma transnacional, com vastos interesses em Moçambique. Foi, também esta, uma intervenção externa que se revelaria também ela, importante, em várias fases do processo. O V Congresso da Frelimo que se realizou em finais de Julho de 1989, vai marcar definitivamente uma viragem no discurso político da Frelimo, pois essa viragem, como temos vindo a constatar, vem de trás. Neste congresso, o partido apoiou os esforços de paz do presidente Chissano e aprovou um documento de 350 páginas onde não se faz uma única referência ao marxismo-leninismo.22 Foram discutidas diversas teses23 que genericamente consagravam uma maior abertura do partido Frelimo à mudança; abertura, essa, que se consubstanciava num afastamento do modelo marxista-leninista, quer em termos políticos, quer em termos económicos, apelando a uma união dos moçambicanos. Por outro lado, permitia o livre associativismo dos cidadãos, enunciava alguma auto-crítica ao reconhecer abusos e arbitrariedades cometidos pelo exército governamental, e, reconhecia que a centralização da gestão e a falta de preparação dos próprios decisores, teriam sido em parte responsáveis pela ruína económica. Em termos de política externa, a Frelimo iria ter agora um discurso mais moderado, já longe dos tempos dos slogans internacionalistas. O Congresso reflectiu as orientações e recomendações que eram sugeridas pelas instituições de Bretton Woods, e também por outros actores relevantes do sistema internacional. Esta reunião magna do partido Frelimo tinha sido acompanhada por importantes passos no sentido de um maior respeito pelos direitos humanos; três exemplos foram a abolição, em Março de 1989, dos tribunais militares revolucionários, a libertação de cerca de mil detidos,24 e a revogação da lei da chicotada em Setembro do mesmo ano.25 Como se pôde constatar então, debaixo da bandeira da good governance - que associava capitalismo com a democracia multipartidária - os doadores ajudavam a persuadir as autoridades moçambicanas dos benefícios económicos que seriam ganhos com a implementação de reformas políticas. Cfr. Alex Vines in: www.c-r.org/acc_moz/vines.htm. Acesso em 12/07/2006. Partido Frelimo (1989): Directivas Económicas e Sociais, Colecção 5º Congresso. Maputo. 23 Para uma descrição mais pormenorizada ver: Torp, Jens Erik (1989) Marxist Regimes: Mozambique. Pinter Publishers. London and New York. Fifth Party Congress Supplement. Pp. 4-9. 24 Human Rights Watch (1992) Conspicuous Destruction: War, Famine and the Reform Process in Mozambique. Africa Watch Report. New York. P. 142. 25 Idem. P. 142. 21

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Efectivamente, no interregno entre o abandono do marxismo-leninismo no V Congresso e a adopção da nova Constituição em Dezembro de 1990, o Presidente George H. W. Bush retirou Moçambique da lista negra dos Estados marxistas, autorizando o governo de Maputo a ter acesso aos créditos bancários oficiais de importação e exportação.26 Era já o resultado palpável da visita de Chissano a Washington, em Março de 1990, onde foi recebido pelo presidente norte-americano, que no discurso de boas vindas incentivava as autoridades moçambicanas a prosseguirem as reformas:27 (...) A América apoia com muita ênfase o governo de Moçambique e as suas reformas políticas e económicas. Eu reafirmei ao presidente Chissano que ele continuará a contar com o nosso apoio na prossecução dessas reformas. Essas reformas estreitaram os laços que ligam Moçambique aos EUA e consagraram direitos que são centrais para nós: o direito de votar e de possuir propriedade privada e a liberdade de religião. (..) Recomendamos-lhe que avance agora no sentido da democratização tal como avançou no sentido das reformas económicas. (...) [Trad. do autor]. Por sua vez, o presidente Joaquim Chissano no discurso de agradecimentos feito na ocasião, diria:28 (...) Nos últimos anos tomámos iniciativas muito importantes no sentido de criarmos as estruturas para uma maior democratização e liberalização económica em Moçambique. Mais recentemente, aprovámos um projecto de constituição que prevê a eleição directa do presidente da república e uma assembleia popular baseada no sufrágio universal, assegurando os direitos elementares do Povo, e estabelecendo as bases constitucionais para a propriedade privada. (...) [Trad. do autor]. 2. Os Acordos de Roma A intervenção da Comunidade de Santo Egídio (CSE) no processo de paz em Moçambique vem dar expressão a uma das proposições que o autor vem defendendo, isto é, a ideia de que a influência do sistema internacional e de vários dos seus actores foi decisiva para o processo de transformação política em Mark Simpson Foreign and Domestic Factors in the Transformation of Frelimo in: The Journal of Modern African Studies, Vol. 31, nº 2 (1993), pp. 309-337. 27 Discurso do Presidente Bush por ocasião da visita do Presidente Chissano. In: http://bushlibrary. tamu.edu/papers/1990/90031304.html. Acesso em 12/09/2006. 28 Discurso de agradecimentos de Joaquim Chissano. In: http://bushlibrary.tamu.edu/ papers/1990/90031304.html. Acesso em 12/09/2006. 26

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Moçambique. Anteriormente enquadrámos já as circunstâncias que propiciaram a entrada em cena da Comunidade de Santo Egídio no processo de paz moçambicano. A intervenção de uma terceira parte num processo negocial pode assim subdividir-se em diversas modalidades:29 • Bons ofícios - são como que uma antecâmara do processo negocial; é, portanto, o primeiro passo da intervenção de uma terceira parte num processo de negociação quando as negociações directas falharam. Esta terceira parte pode ser convidada por qualquer um dos intervenientes na disputa, ou então pode, por sua própria iniciativa, oferecer os seus préstimos. Os bons ofícios são uma situação ad-hoc, enquanto que o passo seguinte, ou seja, a mediação, já é uma situação formalizada. Nos bons ofícios tenta-se encontrar uma solução num espaço de tempo que normalmente medeia entre seis a doze meses; caso não se consiga chegar a um consenso, então avalia-se qual a modalidade seguinte mais adequada para a solução do caso, e na maior parte das situações opta-se pela mediação; • Mediação - esta situação acontece quando na fase anterior (bons ofícios) se chega a um impasse; nessa altura, as partes vão tentar com a ajuda de um terceiro elemento - o mediador - formalmente convidado, alcançar uma solução desejável. As propostas do mediador têm carácter recomendatório e a mediação deve estar sujeita ao acordo comum das partes. O objectivo da mediação é tentar apaziguar a disputa através da reconciliação dos pontos de vista e das exigências das partes procurando chegar a uma plataforma de entendimento satisfatória para todos; • Conciliação - esta situação diferencia-se da mediação quanto aos objectivos já que, aqui, o que se pretende é clarificar os pontos em disputa tentando encontrar uma solução aceitável para ambas as partes. Também a conciliação tem apenas carácter recomendatório para as partes; • Arbitragem – nesta situação está em causa a tentativa de resolução do conflito por meio da intervenção de uma terceira parte cuja resolução é obrigatória. Normalmente esta terceira parte é um chefe de Estado escolhido por consenso entre as partes em litígio. Portugal recorreu por diversas vezes a esta modalidade, como foi o caso da intervenção do presidente francês Mac-Mahon na disputa entre Portugal e o Reino Unido por causa da baía de Lourenço Marques em Moçambique; • Decisão judicial – quando as partes decidem recorrer a um tribunal, normalmente o Tribunal Internacional de Justiça para a resolução de um conflito, essa decisão é, tal como na situação anterior, obrigatória; • Inquérito ou aferição de factos – é a tentativa de esclarecer um determinado facto, cuja interpretação constitui um diferendo entre as partes. O objectivo é uma clarificação imparcial de factos em disputa. 29

Mrázek, Joseph (1991) Third-Party Element in the Peaceful Settlement of International Disputes in the Framework of the CSCE Process. In: Bardonnet, Daniel (Edit.) The Peaceful Settlement of International Disputes in Europe: Future Prospects. Martinus Nijhoff Publishers, London. Pp. 609-625.

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Ora, de todas as modalidades anteriores, a Comunidade de Santo Egídio socorreu-se das duas primeiras, os bons ofícios numa primeira fase, e depois, numa segunda, da mediação. É, aliás, este o desenrolar normal das intervenções de uma dada terceira parte num processo negocial. Cameron Hume,30 fala-nos ainda numa outra modalidade, a facilitação, que no fundo não difere muito da conciliação. O papel de mediador não é fácil, alerta Cameron Hume;31 os mediadores devem ter a confiança das partes, serem concisos, precisos e criativos, terem a arte e o engenho de criarem pontes de contacto, expressar as preocupações das partes em linguagem não prejudicial, não ferir susceptibilidades, e terem paciência e determinação em prosseguir uma tarefa que se pode revelar longa e cansativa. Por último, mas não menos importante, os mediadores devem agir de boa fé, não sendo, portanto, uma parte interessada no conflito, ou seja, não tendo nada a ganhar ou a perder, a não ser, eventualmente, o reconhecimento de se ter conseguido levar a paz e a reconciliação a um país devastado pela guerra; este último ponto terá sido, aliás, um dos factores principais que contribuíram para o sucesso da mediação levada a cabo pela Comunidade de Santo Egídio. A Comunidade revelou-se ao longo do processo um mediador desinteressado (o único interesse seria a paz e a reconciliação entre os moçambicanos), contrastando com as anteriores tentativas de mediação (Quénia, Zimbabwe) que foram acusadas de favorecerem uma ou a outra parte criando por isso desconfianças que levaram ao fracasso, como aconteceu no quadro das negociações de Nairobi em 1989.32 Não podemos, no entanto, concluir aprioristicamente, que existem mediadores verdadeiramente desinteressados, ou seja, que agem por puro altruísmo.33 No caso da Comunidade de Santo Egídio, poder-se-á argumentar que a Igreja Católica tinha um interesse específico, que era o de aumentar a sua visibilidade e prestígio em Moçambique, contrabalançando, deste modo, a crescente influência islâmica, ou de outras correntes religiosas. A Comunidade de Santo Egídio viu efectivamente o seu prestígio alargado com o sucesso do caso moçambicano e, portanto, a sua margem de influência e manobra junto da opinião pública aumentou também proporcionalmente. O Estado italiano também não foi um actor desinteressado, já que os interesses económicos e políticos dos italianos Hume, Cameron (1994) Ending Mozambique’s war, United States Institute of Peace, USA. Pp. 25-26. Idem. P. 26. 32 Segundo John Burton (1972) a tarefa dos mediadores consiste em aproximar as partes, criar condições de confiança, considerar as discussões exploratórias, não se preocupar muito no plano funcional que as partes sejam classificadas como rebeldes, e por fim ajudar as partes a confrontar as suas percepções da situação com a realidade. Cfr. Burton, John W. (1972) A Resolução dos Conflitos in: Braillard, Philippe (1990) Teoria das Relações Internacionais, Fundação Calouste Gulbenkian, Pp. 538-565. 33 Esta crítica, em especial às ONG, é definida pelos neorealistas como a falácia dos comportamentos desinteressados. Cfr. Lobo-Fernandes, Luís (2000) O Modelo Global: Espaço de Teste da Paz e Segurança Internacionais. In: Nação e Defesa, Outono-Inverno 2000, nº 95/96 – 2ª Série, Pp. 43-53. 30 31

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em Moçambique eram substanciais, assim como também era nítido o interesse da diplomacia de Roma de ganhar prestígio junto dos seus parceiros e da opinião pública internacional. B. A. Kiplagat, o enviado queniano do Presidente Arap Moi, que tentou mediar, sem sucesso, o conflito moçambicano, alerta-nos exactamente para esta situação:34 (...) As pessoas podem-se matar durante anos sem que os seus vizinhos, organizações africanas, ou a comunidade internacional dêem o alarme. A atenção só se volta para esses pontos de crise quando os media, particularmente a televisão, projecta o sofrimento para dentro das salas de estar em todo o mundo. Assim que a atenção internacional se foca numa determinada crise africana, logo os candidatos a mediadores (...) competem entre si para obter as luzes da ribalta. Foi este o caso de Moçambique até a Comunidade de Santo Egídio assumir esse papel. Mesmo depois disso diversos países continuavam a tentar obter visibilidade (...). Mas depois do processo de paz moçambicano ter sido assinado, o interesse da comunidade internacional desvaneceu-se (...). [Trad. do autor]. Estas palavras são reveladoras de alguma frustração sentida pelo candidato a mediador queniano que se viu ultrapassado pela Comunidade de Santo Egídio, mas não deixam de explicitar a envolvente dos processos de mediação. O papel de mediador desempenhado pela CSE foi, portanto, fundamental para o sucesso das negociações, mas, como mais uma vez refere Hume:35 (...) Mesmo quando os mediadores ajudam a desencadear as negociações, eles raramente têm o poder de influenciar decisivamente as partes. As antigas potências coloniais, os grandes poderes, os Estados vizinhos, as organizações regionais, e as Nações Unidas tiveram todos esse papel. [Trad. do autor]. Ou seja, os actores internacionais mencionados tiveram um papel determinante junto das partes no sentido de, numa primeira fase, os levar à mesa de negociações, e depois, irem usando a sua influência e meios de persuasão com o objectivo de se atingir um acordo, o que acabou por acontecer.36 O papel Kiplagat, B. A (1995) The African Role in Conflict Management and Resolution. In: Smock, David and Crocker, Chester A. (1995) African Conflict Resolution: The U.S. Role in Peacemaking. United States Institute of Peace Press, Washington, D.C. P. 29. 35 Hume, Cameron (1994) Op. Cit. P. 26. 36 É este o conceito de Multi-track diplomacy, ou seja, uma situação onde podem aparecer vários níveis de entidades diferentes que, em conjunto, fazem parte de um sistema que tem em vista alcançar a paz. Incluem-se aqui governos, entidades não-governamentais, mas, também empresários, cidadãos individuais, activistas, religiosos, filantropos, meios de comunicação social, professores, etc. Para desenvolver este assunto consulte-se: Rafael, Mónica James Carter e as Experiências de Mediação in: Janus 2005 Portugal no Mundo: A Guerra e a Paz nos nossos dias. Público/UAL. 34

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de Portugal enquanto antiga potência colonial e, portanto, integrando o lote de actores com capacidade de influência foi também muito importante.37 Quanto ao Estado italiano, teve também um papel fundamental, já que foi o principal financiador de todo o processo, e teve um seu representante, o Senador Mario Raffaeli, integrado no grupo de mediadores; disponibilizaria ainda todas as facilidades para o bom andamento das negociações em termos logísticos, humanos e materiais, e terá contribuído com incentivos financeiros junto da Renamo, nomeadamente em situações de impasse ou de manifesta intransigência, permitindo assim desbloquear situações complicadas. 3. A Intervenção dos Estados Unidos da América Relativamente aos EUA, o papel destes na tentativa de resolução de conflitos em África pode assumir cinco tipos de intervenção diferentes:38 1) Pressão sobre os actores internos para estes negociarem Hoje em dia, à luz de doutrinas como a do direito de intervenção, ou ingerência humanitária (há até quem a considere um dever), é corrente que um actor internacional com a dimensão e as responsabilidades dos EUA intervenham nos mais diversos conflitos que violem os direitos humanos de certos grupos e, portanto, causem uma séria ameaça à estabilidade e ao bem-estar da comunidade mundial;39 2) Actividade de mediação indirecta Em determinadas situações os EUA podem apoiar uma terceira parte no seu esforço de mediação. Foi o caso de Angola e dos Acordos de Bicesse, onde Portugal viu o seu esforço de mediação ser apoiado pela Casa Branca, bem como por outros actores internacionais. No caso de Moçambique e das negociações de Roma, Washington também desempenhou um importante papel auxiliando o mediador directo principal que era a Comunidade de Santo Egidío; 3) Mediação directa Nesta situação serão os próprios EUA directamente a assegurarem o papel de mediadores. Foi o caso das negociações entre os etíopes e os eritreus em 1989, que levaram à posterior independência da Eritreia; Lisboa. Pavia, José Francisco O Modo Português de Fazer a Paz: o Caso de Moçambique in: Revista Lusíada. Política Internacional e Segurança, Série 1 - nº 1, Dezembro de 2008, pp. 19-40. 38 Rothchild, Donald (1995) The U.S. Role in Managing African Conflicts: Lessons from the Past. In: Smock, David and Crocker, Chester A. (1995) African Conflict Resolution: The U.S. Role in Peacemaking. United States Institute of Peace Press, Washington, D.C. Pp. 41-55. 39 A intervenção no Kosovo foi justificada pelas alegadas atrocidades sérvias contra a população de origem albanesa. 37

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4) Intervenção diplomática e militar O melhor exemplo que ilustra esta situação foi a intervenção dos Estados Unidos na Somália, em 1992-1993, que tinha como principal objectivo assegurar um cessar-fogo que permitisse a distribuição em segurança do auxílio humanitário e uma eventual reconciliação nacional; 5) Implementação dos acordos. Neste caso, os EUA têm-se deparado com fracassos e com sucessos. Relativamente aos fracassos o caso de Angola é paradigmático. No que concerne aos êxitos o caso de Moçambique é talvez a ilustração mais interessante, embora agora em sentido positivo. O papel de Washington na implementação dos Acordos de Roma em Moçambique foi, efectivamente, muito importante como iremos ver mais à frente. No caso vertente de Moçambique, e durante o processo de negociações, os Estados Unidos socorreram-se dos dois primeiros tipos de intervenção; já na fase pós-acordo, os EUA contribuíram para a sua implementação, utilizando o último dos tipos de intervenção acima indicados (implementação dos acordos). Os Estados Unidos, na realidade, exerceram grandes pressões sobre os intervenientes, quer directamente, por exemplo, através dos seus embaixadores40 e de outros diplomatas e funcionários governamentais, quer indirectamente através das instituições de Bretton Woods. É a chamada política do stick and carrot, isto é, dando incentivos às partes quando estas seguem o caminho que é considerado o mais correcto ou, em alternativa, penalizando-as quando acontece o inverso. Relativamente à mediação indirecta e à implementação dos acordos, Donald Rothchild (1995), em especial, parece confirmar que:41 (...) A actividade de mediação indirecta exercida pelos EUA foi muito importante durante a fase crítica, em 1992, por ocasião das negociações moçambicanas entre o governo e a Renamo. Estas conversações eram mediadas conjuntamente pelo governo italiano, pelo arcebispo católico da Beira, e pela Comunidade de Santo Egídio. No seu papel de observador oficial, os EUA enviaram para Roma especialistas em assuntos jurídicos e militares para auxiliarem as negociações; estes especialistas tinham frequentes reuniões com as partes sobre o cessar-fogo e outros assuntos de carácter militar. Além disso, os EUA concordaram em participar no esforço coordenado pelas Nações Unidas para a implementação do acordo de paz. [Trad. do autor]. Como foi o caso da Embaixadora dos EUA em Maputo, Melissa Wells. Foi-nos relatado directamente pelo próprio Armando Guebuza, em entrevista que decorreu no dia 23 de Junho de 2004, no Hotel Tivoli, em Lisboa, que os americanos tinham tido um papel importante, nomeadamente nas questões militares, e que o seu representante em Roma, Cameron Hume, foi muito útil. 41 Rothchild, Donald (1995) Op. Cit. Pp. 44-45. 40

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Os EUA tiveram, assim, um importante papel que não foi, porém, um papel de liderança, foi antes uma acção discreta, mais de bastidores, em consonância com aquilo que eram as orientações da diplomacia americana na altura. Do mesmo modo, Rothchild refere:42 (...) Os conflitos internos continuam a proliferar enquanto que as grandes potências se retiram progressivamente. O impacto destes acontecimentos na diplomacia americana será significativo nos próximos anos. Em vez de tomarem a dianteira em negociações formais do tipo angolano, espera-se agora que os diplomatas norteamericanos se empenhem progressivamente em contactos atrás das cortinas com proeminentes actores locais e que trabalhem sob os auspícios de organizações locais, regionais ou globais. Esse trabalho de equipa será provavelmente mais útil na prevenção e resolução de conflitos no séc. XXI, e espera-se que contribua para outro objectivo norte-americano: aumentar a capacidade das organizações regionais e internacionais para se empenharem com tempo e efectivamente na prevenção e resolução de conflitos (...). [Trad. do autor]. Existiu, porém, uma outra face da intervenção norte-americana em Moçambique que é menos conhecida, que foi a intervenção privada de indivíduos, como foi o caso mais conhecido de James U. Blanchard III, homem de negócios da Louisiana ligado aos conservadores do partido republicano; de igual modo, várias organizações ligadas a círculos conservadores e a instituições religiosas protestantes estiveram envolvidas como, por exemplo, a Heritage Foundation, a World Anti-Communist League ou a Freedom Research Foundation no primeiro caso, e a Christ for the Nations no segundo. Era esta uma das componentes externas de apoio à Renamo que constituía um lóbi no Congresso em Washington, tentando alterar a política oficial do governo dos EUA no que dizia respeito a Moçambique. Esta componente privada foi particularmente activa durante os mandatos do presidente Reagan, estendendo-se até à assinatura do AGP, sem que, no entanto, tenha conseguido muitos êxitos; nomeadamente, não conseguiu impedir a viagem de Samora Machel a Washington, tal como não conseguiu que Moçambique se tenha tornado no maior receptor de ajuda norte-americana na África Sub-Sahariana. Também não obteve sucesso em que a Renamo tivesse o tratamento que era dado, por exemplo, à UNITA, e fosse considerada uma organização de freedom fighters. A Renamo recebia, porém, ajuda financeira e logística destes indivíduos e organizações. Toda esta questão está bem documentada numa publicação que, apesar de ter algum carácter propagandístico pró-Frelimo, é mesmo assim bastante categórica.43 A acção 42 43

Idem. Pp. 52-53. Minter, William and Austin, Kathi (1994) Invisible Crimes: U.S. Private Intervention in the War in Mozambique. African Policy Information Center. Washington D.C.

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do casal Ellie e Rodney Hein, pastores da organização religiosa Christ for the Nations, foi inclusivamente descrita pelos próprios em duas publicações44 como sendo pró-Renamo, veiculando as concepções da direita ultra-religiosa e conservadora dos EUA. O lóbi da Renamo em Washington, apesar de não ter conseguido muitos sucessos, ia mesmo assim criando dificuldades ao governo da Frelimo e à própria diplomacia oficial norte-americana, como foi o caso do bloqueio pelo Senado - durante vários meses - da nomeação da embaixadora Melissa Wells para Maputo pelo facto de esta ser considerada pró-Frelimo. Noutro plano, durante o processo negocial de Roma terá havido algum choque de influências entre a representação da Renamo nos EUA e a sua representação em Lisboa, o que gerou atrasos e bloqueios nas negociações.45 Em termos gerais, pode dizer-se que o apoio de sectores privados norte-americanos à Renamo contribuiu para que esta diversificasse os seus patrocinadores e deixasse de ser apresentada como um instrumento dos sulafricanos; situação, esta, que já não acontecia desde finais de 1984, pois, desde essa altura, em função do Acordo de Nkomati, a Renamo vinha alargando os seus apoios como se pode comprovar pelas seguintes palavras:46 (...) Assim, Evo Fernandes, através do presidente da comunidade islâmica de Lisboa, Dr. Vali Mamede, consegue em finais de 1984 fornecimentos de armas de Oman e Arábia Saudita, transportados em aviões C-130, via Comores e Somália e descarregados à noite no Norte do país, enquanto um campo vai sendo aberto secretamente no Sul da Tanzânia sem o conhecimento das autoridades deste país, para esses reabastecimentos. Por sua vez, a África do Sul, na sequência das transformações políticas que ela própria estava a atravessar, também contribuiu para o avanço do processo de paz moçambicano. O presidente De Klerk tinha uma visão mais realista, e como parte da sua tentativa de melhorar a imagem internacional da África do Sul, cedeu a pressões da comunidade internacional no sentido de se dar início ao processo de paz em Moçambique.47 A Grã-Bretanha foi outro actor que esteve presente e que contribuiu igualmente para o bom caminhar das negociações. Os ingleses desde sempre que patenteiam um interesse económico e estratégico em Moçambique, principalmente por duas ordens de razões: a) o papel dominante que já tinham as companhias inglesas desde a época colonial, e, b) o facto de Moçambique Hein, Ellie (1991) Mozambique: The Cross and the Crown. Christ for the Nations, Inc. Dallas. Ver, também: Hein, Ellie (2000) Beyond the Shadow. Christ for the Nations, Inc. Dallas. 45 Sobre o lóbi da Renamo em Washington, ver: Cabrita, João (2000) Mozambique: The Tourtuous Road to Democracy. Palgrave. New York. Pp. 261-268. 46 Tajú, Gulamo (1988) Renamo: Os Factos que Conhecemos. Cadernos de História. Universidade Eduardo Mondlane. Maputo. P. 29. 47 Abrahamsson e Nilsson (1994) Op. Cit. P. 93. 44

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ser rodeado por seis ex-colónias britânicas que pertencem à Commonwealth. A diplomacia de Londres esteve também presente na ajuda à Frelimo através do envio de instrutores militares e do fornecimento de ajuda económica.48 Esteve ainda presente, embora indirectamente, apoiando as iniciativas do Quénia e do Zimbabwe, assim como de Tiny Rowland – que referimos mais atrás - na tentativa de se chegar à via negocial. Também durante o processo de Roma os ingleses estiveram presentes, primeiro informalmente, e depois fazendo parte dos observadores oficiais, conjuntamente com Portugal, os EUA e a França; de algum modo a comprovar esta presença e os seus resultados está a adesão de Moçambique à Commonwealth logo no ano seguinte às eleições gerais, em finais de 1995. A nível macrorregional, exceptuando a África do Sul, houve também contribuições não negligenciáveis do Botswana, em termos de apoio diplomático, mas sobretudo, do Zimbabwe. Não podemos esquecer que este país tinha em Moçambique um grande contigente de tropas, que combatiam ao lado da Frelimo e tinha interesses económicos vitais, nomeadamente no corredor da Beira, estando este país, por isso, muito interessado em que se chegasse a uma solução negocial. Outra das influências internacionais determinantes neste processo, foi a acção das agências especializadas das Nações Unidas, como o Programa Alimentar Mundial (PAM), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Fundo das Nações Unidas para a Criança (UNICEF), a Organização para a Agricultura e Alimentação (FAO), a Organização Mundial de Saúde (OMS), e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). A acção das ONG49 foi igualmente relevante na pressão e nos incentivos que prestavam às partes com o objectivo de as persuadir à assinatura do AGP; nomeadamente, e, em primeiro lugar, o Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV), mas também a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch, entre outras. No capítulo da ajuda humanitária, sabemos que, em princípio, as organizações envolvidas devem ter um papel neutral e não tomar partido nas suas acções de intervenção. Porém, será difícil encontrar uma situação em que a ajuda humanitária não tenha sido usada por pelo menos uma das partes em conflito, para fins políticos ou militares.50 No caso vertente de Moçambique, quase toda a ajuda humanitária durante os anos do conflito destinou-se às áreas Human Rights Watch (1992) Op. Cit. Pp. 182-183. Em 1987, 120 oficiais moçambicanos frequentaram um curso ministrado pelo exército britânico no Zimbabue, e a Grã-Bretanha forneceu ao exército moçambicano 600 sofisticadas espingardas Enfield. Em 1988, a assistência militar inglesa a Moçambique ascendia a 8 milhões de dólares por ano. 49 Vencer a Fome, a Doença e o Legado da Guerra. In: Africa Recovery. New York, ONU, nº 8, Maio de 1993. Segundo esta publicação, em 1990 havia não menos que 26 organismos oficiais da ONU, 6 agências multilaterais que não pertenciam à ONU, 44 doadores bilaterais e órgãos oficiais de 35 países, bem como 143 ONG externas de 23 países, activas em Moçambique. 50 Barnes, Sam (1998) Humanitarian Assistance as a Factor in the Mozambican Peace Negotiations: 1990-92. In: Venâncio and Chan (1998) Op. Cit. P.117. 48

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controladas pelo governo. Só uma organização - o Comité Internacional da Cruz Vermelha - cujo estatuto único lhe confere a possibilidade de assistir vítimas dos dois lados num conflito interno armado, é que fornecia assistência humanitária aos civis nas áreas controladas pela Renamo.51 Sam Barnes, em especial, enfatiza este ponto:52 (...) A Renamo, enquanto movimento ou organização política, nunca obteve a necessária legitimidade da comunidade internacional ou das Nações Unidas, durante o conflito, para obter assistência humanitária. Foi só já no final do processo de negociações, em meados de 1992, que as agências das Nações Unidas começaram a reconsiderar a assistência às áreas da Renamo. Esta mudança deveu-se às severas condições de seca que se viveram nessa altura e ao consequente aumento do número de civis em risco. As negociações de paz, apoiadas pela comunidade internacional, estavam a progredir. A Renamo, em 1992, podia ser recompensada pelo seu comportamento aceitável aos olhos da comunidade internacional. (...) A ausência de programas de assistência aos civis nas áreas controladas pela Renamo tornou-se um ponto controverso nas negociações de paz. O factor humanitário, e as pressões das organizações humanitárias (nomeadamente o Comité Internacional da Cruz Vermelha), aceleraram as discussões relacionadas com o acesso às populações civis em crise e a necessidade do cessar-fogo. (...) [Trad. do autor]. É, portanto, legítimo considerar que a seca que assolou a África Austral em geral, e Moçambique, em particular, em 1992, criou uma situação insustentável para a Renamo, já que as populações que viviam nas áreas por si controladas estavam a morrer de fome e a dirigir-se para as áreas controladas pelo governo, onde teriam acesso à ajuda humanitária. Ora, o processo negocial que entretanto decorria em Roma reflectia esta situação; a Renamo sofria pressões por parte das agências doadoras para que se chegasse a um compromisso que permitisse canalizar ajuda às suas áreas de influência. Por seu lado, o governo da Frelimo também estava sujeito a pressões, nomeadamente por parte do PNUD,53 mas também de outros actores internacionais no sentido de se construir um acordo, já que estava em jogo a vida de dezenas de milhar de moçambicanos. Parecem ter Idem. P. 118. Ibidem. P. 118. 53 O PNUD, discretamente, persuadia o governo da necessidade de se alcançar uma plataforma de entendimento com a Renamo, já que disso dependia a boa vontade da disponibilização da ajuda que Moçambique recebia das numerosas agências das Nações Unidas e não só. Entrevista conduzida pelo autor a Moisés Venâncio, já várias vezes citado neste trabalho, que nessa altura desempenhava as funções de Junior Professional Officer do PNUD em Moçambique. A entrevista realizou-se em Maputo, em 30 de Agosto de 1994. 51 52

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sido estas pressões finais que levaram as duas partes a assinar o AGP. Mais uma vez Barnes sublinha esta circunstância:54 (...) Claramente a assistência humanitária não foi o único factor, nem sequer o mais importante, no processo de negociações, mas em 1992 foi um incentivo importante que levou a um cessar-fogo imediato. (...) O caso de Moçambique sublinha o claro contexto político e impacto da assistência humanitária. [Trad. e ênfase do autor]. 4. As eleições de 1994 e a intervenção crucial das Nações Unidas O período que decorreu entre a assinatura do AGP e a realização das primeiras eleições gerais, em Outubro de 1994, corresponde no essencial ao período da Opération des Nations Unies au Mozambique (ONUMOZ).55 A ONUMOZ, tendo sido uma operação de manutenção de paz das Nações Unidas, encontra os seus fundamentos jurídicos56 na Carta das Nações Unidas. No início dos anos de 1990 surge uma segunda geração de operações de manutenção de paz, também conhecidas por operações multifuncionais, devido às múltiplas tarefas que doravante passam a ter sob a sua responsabilidade. Esta segunda geração, tal como a primeira, tinha por mandato expresso ajudar as partes a aplicar plenamente o acordo já negociado; contudo, o acervo de tarefas aumentou passando a incluir, por exemplo, a segurança policial, as operações de recenseamento da população e a fiscalização de eleições, entre outras.57 54 55

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57

Barnes, Sam (1998) Op. Cit. P. 119. O acrónimo Onumoz deriva do francês, já que o Português não é uma língua oficial das Nações Unidas. Carvalho, Pedro Raposo de Medeiros (2003) Nações Unidas: Um Actor na Resolução de Conflitos. Colecção Teses - Universidade Lusíada Editora. Lisboa. P. 36. Na generalidade, as operações de paz encontram o seu fundamento no art.1º.1 e 33º. Especificamente, a Carta reconhece capacidade aos órgãos principais para criar órgãos subsidiários necessários ao exercício das suas funções (art. 7º.2, art. 14º, 22º e 24º.1) para a Assembleia Geral, e (art. 24º.1, 36º.1 do Capít.VI e art´s 39º, 40º, 42º do Capít. VII) para o Conselho de Segurança. A Carta concede ainda poderes autónomos ao Secretário-Geral para levar ao Conselho de Segurança assuntos que possam ameaçar a paz e a segurança internacionais (art. 99º), e para desempenhar as funções atribuídas pelos órgãos das Nações Unidas (art.98º). Por último, a Carta outorga poderes (art. 52º-Capít.VII) às organizações regionais para levarem a cabo operações de manutenção de paz, desde que genuinamente consensuais, sem permissão da organização. Contudo, se o mandato incluir o uso da força, então aqui é obrigatória a autorização do Conselho de Segurança. (art. 53º.1). Idem. Pp. 40-41. As operações multifuncionais, assim chamadas por Boutros Boutros-Ghali, tinham como principais objectivos: supervisão do cessar-fogo; reagrupamento, desmobilização e reintegração das tropas na vida civil; destruição das suas armas; remoção de minas; o regresso de refugiados e pessoas deslocadas; prestação de auxílio humanitário; a supervisão das estruturas administrativas e económicas existentes, tendo em vista a sua reabilitação; verificação do respeito pelos direitos humanos; formulação e supervisão de reformas constitucionais; e, realização de referendos e eleições.

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O caso de Moçambique - tal como os da Namíbia ou de Angola - é um exemplo demonstrativo deste tipo de operações de manutenção de paz de segunda geração. Estas operações têm vindo a reflectir os novos padrões de conflito, e daí um desenvolvimento crescente da sua área de actuação, alargandose esta a funções cada vez mais complexas. Algumas dessas funções ultrapassam inclusivamente algumas prerrogativas tradicionais dos Estados, tais como os movimentos, controlo e desmobilização das forças armadas, a manutenção da integridade territorial do Estado, da lei e da ordem, a administração pública temporária, e a supervisão de eleições. Porém, apesar de uma maior complexidade, as operações de manutenção de paz continuam a ser um mecanismo ad hoc, dependente de considerações políticas e financeiras e das motivações e interesses específicos dos diversos Estados membros da ONU.58 As Nações Unidas já se tinham envolvido oficialmente no processo de paz moçambicano com o estatuto de observador, tal como Portugal, França, EUA e Reino Unido, desde Junho de 1992. Na sequência do AGP, as Nações Unidas foram convidadas oficialmente pelo presidente Joaquim Chissano, em carta datada de 4 de Outubro de 1992, dirigida ao Secretário-Geral das Nações Unidas, Boutros Boutros-Ghali, a monitorar a efectiva implementação do AGP e dos protocolos anexos, bem como a supervisionar as eleições legislativas e presidenciais que se realizariam a breve trecho.59 O fundamento legal de qualquer relacionamento entre uma operação de manutenção de paz e o país que a acolhe baseia-se no pedido formal por parte desse governo à Organização das Nações Unidas (ONU), solicitando a montagem da operação, ou então o consentimento dado pelo governo a um pedido da ONU. Embora este seja um princípio geral baseado na condição soberana dos Estados nas relações internacionais, a dimensão interna que é a característica principal da conflitualidade pós-guerra fria, requer que os governos beligerantes, ou os próprios insurrectos, também concordem com o pedido formal, ou, pelo menos dêem a sua anuência à operação.60 Quando esta situação não se verifica, entramos noutro tipo de operações que são as operações de intervenção humanitária ou, Brito, Miguel. The Relationship Between Peacekeepers, Host Governments and the Local Population. In: Conflict Management, Peacekeeping and Peace-Building: Lessons for Africa from a Seminar Past, ISS Monograph Series, Nº.10, April 1997. Pp. 59-60. 59 The United Nations and Mozambique, 1992-1995. The United Nations Blue Book Series, Vol. V. Department of Public Information, United Nations, New York. P. 105. 60 Brito, Miguel (1997) Op. Cit. P. 60. Qualquer operação de manutenção de paz tem o carácter legal de uma agência das Nações Unidas, e o seu estatuto no país que a acolhe é determinado pelos artigos 104 e 105 da Carta das Nações Unidas e pela Convenção dos Privilégios e Imunidades das Nações Unidas de 1946. Daqui se infere, que o país que acolhe alguma destas operações deve garantirlhes a capacidade legal e todos os privilégios e imunidades necessários ao cumprimento cabal da missão. Os privilégios, imunidades e obrigações dos peacekeepers nos países onde se encontram a cumprir as suas missões incluem, por exemplo, o seguinte: o direito de hastear a bandeira da ONU em aquartelamentos, outras instalações ou veículos; o direito de contratar, adquirir e dispôr de propriedades; o direito de usar toda a espécie de comunicações sem restrições; a liberdade de circulação sem restrições; o direito de usar armas; a imunidade relativamente à jurisdição criminal do Estado receptor, etc. 58

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então, as operações de imposição de paz potencialmente mais perigosas já que irão, em princípio, contar com a hostilidade aberta de grupos organizados dentro do país de destino, como foi o caso da Somália em 1992-1993.61 Na sequência do pedido feito pelo governo moçambicano, o Conselho de Segurança das Nações Unidas emite a resolução nº 782 de 1992, onde saúda a assinatura do AGP, aprova o envio de observadores militares e confirma a nomeação de Aldo Ajello como representante especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para Moçambique.62 A 15 de Outubro, Ajello e os primeiros observadores militares chegam a Moçambique – coincidente com o cessar-fogo acordado entre as partes – ainda que com pequenas violações sem consequências de maior. Ajello, de nacionalidade italiana (a Itália desempenhou um papel fulcral no processo de paz e vai ser um dos principais contribuintes em homens e financiamentos para a ONUMOZ) vai revelar-se uma figura chave para o sucesso da operação.63 Ele próprio relata os problemas que encontrou ao chegar a Moçambique:64 (...) O primeiro problema que tivemos de resolver foi o calendário. Se o acordo era honesto e realista, o mesmo não se podia dizer do calendário. Ele era, bem pelo contrário, perfeitamente irrealista. Nenhuma das três partes, Governo, Renamo e as próprias Nações Unidas estavam em condições de o respeitar. O Governo não tinha avaliado completamente o impacte político e logístico da chegada da Renamo a Maputo e às outras capitais provinciais e o impacte político, logístico e institucional da chegada de um contigente da ONUMOZ muito mais numeroso do que fora inicialmente previsto. O desastre de Angola induzira o SecretárioGeral e o Conselho de Segurança a optar por uma missão de grandes dimensões. A questão da soberania nacional foi levantada na Assembleia da República e a negociação para o Status of Forces Agreement arrastou-se por vários meses antes de ser concluída. A Renamo, pelo seu lado, não tinha quadros suficientes e suficientemente preparados para pôr em funcionamento de maneira Cfr. Thomashausen, Sophie (2002) Humanitarian Intervention in an Evolving World Order: The Cases of Iraq, Somalia, Kosovo and East Timor. Africa Institute of South Africa. Pretoria. Pp. 51-87. 62 Synge, Richard (1997) Mozambique: U.N Peacekeeping in Action, 1992-1994. United States Institute of Peace Press. Washington, D.C. P. xix. 63 Crocker, Chester A. What Kind of U.S. Role in African Conflict Resolution? In: Smock, David and Crocker, Chester A. (1995) African Conflict Resolution: The U.S. Role in Peacemaking. United States Institute of Peace Press, Washington, D.C. Pp. 129-130. Segundo este autor, Aldo Ajello desempenhou um papel fundamental. As suas qualidades pessoais e o apoio que teve da Itália, o seu país de origem, ajudaram a ultrapassar a burocracia da ONU, bem como o papel muitas vezes não cooperante das partes em litígio. 64 Ajello, Aldo. O papel da ONUMOZ no processo de pacificação. In: Mazula, Brazão (1995) Moçambique: Eleições, Democracia e Desenvolvimento. Inter-África Group. Maputo. Pp. 126-127. 61

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efectiva o complexo mecanismo das Comissões previstas no Acordo de Paz. (...) As Nações Unidas, finalmente, não estavam em condições de enviar para o terreno, em poucas semanas, cinco batalhões de infantaria com todo o apoio administrativo e logístico. Foram precisos cerca de sete meses para que o desdobramento das forças fosse completado. O segundo problema dizia respeito, mais em geral, à relação entre o Governo e a Renamo. O Acordo de Paz previa a condição de parceiro igual para ambas as partes, mas a disparidade existente entre a capacidade operativa do Governo e a da Renamo era demasiado grande para que o processo de paz pudesse avançar rapidamente. (...). Por todos estes motivos, a ONUMOZ prolongou-se por dois anos, no que a tornou numa das mais caras operações de manutenção de paz das Nações Unidas, mas também foi aquela que teve mais êxito, e tendo em conta, por exemplo, o caso negativo de Angola, esta operação ficou quase como que um paradigma daquilo que devem ser as operações de manutenção de paz da presente época.65 Em meados de Dezembro de 1992, concretamente nos dias 15 e 16, dois factos vieram dar o impulso final ao andamento do processo moçambicano; o primeiro foi a aprovação pelo Conselho de Segurança da ONU, em 16 de Dezembro, da resolução nº 797, que criava a ONUMOZ;66 o segundo, foi a realização em Roma, a 15 e 16 do mesmo mês, da conferência de doadores, que se comprometeram a contribuir financeiramente para assegurar a operação em todas as suas componentes: política, militar, eleitoral e humanitária.67 O problema mais imediato que urgia agora resolver era, tal como estava previsto no AGP, proceder à evacuação de todas as tropas estrangeiras em Moçambique, nomeadamente as tropas do Zimbabwe no corredor da Beira, e as tropas do Malawi no corredor de Nacala, e substituí-las por tropas das Nações Unidas. Contudo, o atraso na chegada dos capacetes azuis levou a que os contingentes do Zimbabwe e do Malawi se mantivessem ainda durante mais algum tempo, já que só em Março de 1993 é que começaram a chegar os primeiros militares do contingente italiano que vinham tomar posições no corredor da Beira, sendo o corredor de Nacala controlado por tropas do Bangladesh. Este país foi quem forneceu o maior número de militares para a ONUMOZ, com 1363 homens, seguindo-se-lhe a Itália, com 1010 e a Índia, com 899. Portugal ficou em sétimo nesta contagem com um total de 280 militares.68 Entretanto, em 13 de Fevereiro, 65

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O caso de Angola é bastante citado devido à sua proximidade no tempo relativamente ao processo moçambicano, devido ao facto de Angola ser tal como Moçambique um PALOP, e também ao facto de ambos terem passado por um período de guerra civil de características semelhantes, embora com factores de diferenciação que serão analisados mais à frente. The United Nations and Mozambique, 1992-1995. Op. Cit. P. 158. Idem. Pp. 159-170. Cfr: The United Nations and Mozambique, 1992-1995. Op. Cit. P. 31.

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o major-general Lélio Gonçalves Rodrigues da Silva, de nacionalidade brasileira, tinha sido nomeado pelo Secretário-Geral das Nações Unidas como comandante militar da ONUMOZ. Em Agosto de 1993, o contingente militar da ONUMOZ chegaria a um total de 6000 tropas, sendo que tal número se manteria até meados de 1994, quando começou a retirada de parte deste contingente em antecipação do fim da operação.69 Se a este contingente somarmos mais cerca de 2000 pessoas em tarefas civis, chegamos ao total de cerca de 8000 efectivos, que custaram só às Nações Unidas (excluindo, portanto as contribuições especiais de cada país) cerca de 500 milhões de dólares, nos dois anos que durou a operação.70 Este investimento das Nações Unidas foi, pois, fundamental para o sucesso do caso moçambicano - tendo em conta que uma das críticas que se apontaram à intervenção em Angola, foi precisamente a falta de empenhamento e de meios como refere Martin Meredith (2005):71 (...) Lembrando-se do fracasso da iniciativa de paz em Angola, as Nações Unidas decidiram investir fortemente em recursos humanos, dinheiro e material em Moçambique, montando uma verdadeira administração paralela. A maioria das tarefas-chave desde a desmobilização e desarmamento até ao reassentamento de refugiados e acantonamento de militares foram executadas pelas agências especializadas das Nações Unidas ou por ONG actuando em seu nome. 4.1 O Trust Fund O Trust Fund foi um instrumento original utilizado pelas Nações Unidas, que tinha como objectivo principal a implementação do AGP através de um apoio aos partidos políticos em Moçambique; a promessa de constituição deste Fundo já tinha sido feita na Conferência de Doadores em Roma.72 A 10 de Maio de 1993, foi então criado o Trust Fund pelas Nações Unidas, que teve logo uma contribuição especial por parte da Itália de 6 milhões de dólares.73 O Trust Fund iria permitir à Renamo a sua transformação de um movimento rebelde em partido político, garantindo-lhe financiamentos para a prossecução das suas actividades políticas em todo o país; ao mesmo tempo, permitia satisfazer algumas pretensões de Afonso Dhlakama nesse sentido, fazendo com que houvesse mais abertura e disponibilidade de cooperação. O próprio SecretárioGeral das Nações Unidas, Boutros Boutros-Ghali vai afirmar mais tarde na sua Agenda for Democratization:74 69 70 71 72 73 74

Idem. P. 31. Carvalho, Pedro Raposo de Medeiros (2003). Op. Cit. P. 251. Meredith, Martin (2005) The State of Africa, The Free Press, London. P. 610. The United Nations and Mozambique, 1992-1995. Op. Cit. P. 161. Idem. P. 31. Boutros-Ghali, Boutros (1996) An Agenda for Democratization. United Nations Department of

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(...) Em Moçambique (1994), as Nações Unidas ajudaram a transformar a Renamo num partido político, facilitando assim a transição desse país dum sistema mono-partidário para um multipartidarismo. [Trad. do autor]. E, apontaria também que:75 (...) Nalguns casos, a paz, o desenvolvimento e a democracia foram tarefas prosseguidas ao mesmo tempo. Foi o caso do Cambodja, de El Salvador e de Moçambique, onde os esforços das Nações Unidas de apoio à democratização serviram de ligação entre a resolução do conflito, por um lado, e a reconstrução e desenvolvimento, por outro. [Trad. do autor]. Aldo Ajello, por sua vez, terá dito mais tarde, que as contribuições para o Trust Fund era dinheiro bem gasto,76 acrescentando depois que:77 (...) A relativamente pequena quantia de dinheiro que foi necessária para o Trust Fund foi a garantia de que tudo o resto iria funcionar bem(...). Ajello está, aliás, convencido ainda hoje que o Trust Fund foi um instrumento de vital importância para o êxito da missão.78 Esta importância fundamental que os analistas da realidade moçambicana dão ao Trust Fund ilustra também a tese que nós vimos defendendo: foi a acção dos diversos actores internacionais que teve uma influência decisiva no êxito do processo de transformação política em Moçambique. Já o mesmo não aconteceu no caso de Angola, onde o investimento no acordo de paz que saíu de Bicesse foi muito menor. Num país com uma dimensão territorial muito superior à de Moçambique, o número de elementos das Nações Unidas na Missão de Verificação das Nações Unidas em Angola (UNAVEM II)79 era de cerca de 600 elementos, onde existiam apenas cerca de 350 observadores militares.80 Quando a guerra rebentou em Luanda e depois alastrou a todo o país - na sequência da recusa da UNITA em aceitar os resultados das eleições de Public Information, United Nations, New York. P. 17. Idem. P. 53. 76 Synge, Richard (1997) Op. Cit. P. 45. 77 Idem. P. 45. 78 Ajello, Aldo. O papel da ONUMOZ no processo de pacificação. In: Mazula, Brazão (1995) Op. Cit. P. 127. 79 A UNAVEM II (United Nations Verification Mission II) foi constituída pela Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas nº 696, de 30 de Maio de 1991, por ocasião da assinatura do Acordo de Bicesse, em 31 de Maio de 1991. 80 Carvalho, Pedro Raposo de Medeiros (2003). Op. Cit. Pp. 243-244. 75

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1992 - as Nações Unidas foram impotentes para parar o conflito, isto porque não dispunham de um mandato claro, não tinham pessoal suficiente, e o Acordo de Bicesse não estipulava garantias suficientes de desmobilização e acantonamento das forças em confronto. Como não houve fiscalização nem verificação, nem capacidade de dissuasão, nem incentivos às partes, nomeadamente à UNITA, no sentido de a persuadir que a paz era preferível à guerra, esta recomeçou em finais de 1992. Ou seja, a intervenção dos diversos actores internacionais em Angola, a começar pelas Nações Unidas, foi muito limitada face às reais necessidades da situação no terreno. A ONUMOZ em Moçambique não iria cometer o mesmo erro e daí a magnitude dessa operação, quer em termos financeiros e humanos, quer na sua duração no tempo. Aldo Ajello tirou as seguintes conclusões da experiência da ONUMOZ:81 (...) 1- Não é possível impor a paz quando as partes não a querem e, portanto, uma forte vontade de paz das partes e da comunidade nacional é imprescindível para o êxito de uma operação de manutenção de paz; 2- Um acordo de paz bem feito é o elemento essencial para que um processo de paz possa ter sucesso; 3- As Nações Unidas devem ser o motor de todo o processo e não apenas um observador passivo; 4- A comunidade internacional tem que assumir um papel activo de forma unívoca e coordenada e apoiar com decisão a acção das Nações Unidas; 5- O mandato das Nações Unidas tem que ser interpretado com flexibilidade para permitir resolver problemas concretos no terreno e criar instrumentos novos e inéditos sempre que tal se torne necessário. (...). Estas conclusões foram assumidas pelas Nações Unidas, já que na sequência do fracasso da UNAVEM II pelos motivos que foram apontados, a UNAVEM III82 tinha um mandato mais claro e acima de tudo contava agora com cerca de 6000 membros do contigente militar e mais algumas centenas de observadores civis e militares.83 Sabemos, hoje, que a UNAVEM III, apesar de ter aproveitado algumas lições da ONUMOZ, também não teve êxito prático, já que o fim do conflito em Angola se resolveu com a vitória militar das forças do governo, com a destruição da capacidade militar da UNITA e, por último, mas não menos 81

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Ajello, Aldo. O papel da ONUMOZ no processo de pacificação. In: Mazula, Brazão (1995) Op. Cit. P. 129. A UNAVEM III foi criada pela Resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas nº 976, de 8 de Fevereiro de 1995, na sequência da assinatura do Protocolo de Lusaka, em 20 de Novembro de 1994. Carvalho, Pedro Raposo de Medeiros (2003). Op. Cit. P. 261.

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importante, com a morte de Jonas Savimbi, o líder da UNITA. Poder-se-á dizer que no caso de Angola faltava a primeira das conclusões enunciadas atrás por Ajello, e que era a vontade explícita das partes em fazer a paz, e por isso o conflito teve um epílogo militar. 4.2 O Processo de Desmobilização e Acantonamento O processo mais complexo em que a ONUMOZ esteve envolvida foi o do acantonamento e desmobilização das tropas. Havia o espectro do fracasso do processo angolano a pairar sobre Moçambique e, como já assinalámos, tinhase chegado à conclusão de que a guerra tinha recomeçado em Angola porque, entre outros factores, a desmobilização e o acantonamento das tropas não tinham funcionado. Por outro lado, devido às características do conflito em Moçambique, nem a Frelimo, nem especialmente a Renamo, estavam particularmente interessadas em se desfazerem dos seus exércitos. Este era um problema central para a Renamo já que a sua força residia essencialmente nas armas, e a direcção da Renamo tinha consciência da sua debilidade política; daí, que a Renamo só aceitasse a desmobilização e o acantonamento sob forte pressão dos diversos actores internacionais, nomeadamente com incentivos - caso do Trust Fund e com garantias expressas de que esse processo não iria ser aproveitado pela Frelimo para destruir a Renamo. Segundo Ajello,84 foram introduzidos dois instrumentos novos e inéditos, a unidade técnica e o subsídio de reintegração, que contribuíram bastante para o sucesso da operação. A unidade técnica planificou e realizou todo o processo de acantonamento das tropas, organizando uma base de dados que evitou duplas desmobilizações, dotando cada soldado com documentos de identificação e pagando um subsídio de reintegração. Este subsídio de reintegração foi precisamente o segundo instrumento que contribuiu para o sucesso do empreendimento: pagava um adicional de dezoito meses, além dos seis meses já disponibilizados pelo governo a cada desmobilizado, o que perfazia um total de vinte e quatro meses, permitindo que houvesse uma reintegração social dos desmobilizados, desincentivando assim tentações de se recorrer à criminalidade ou até a um regresso às armas.85 O sucesso deste subsídio foi tal que se eventualmente houvesse maneira de se esconder alguma parte dos efectivos, estes recusar-se-iam, já que assim perderiam a oportunidade de ter acesso ao apoio pecuniário. Em paralelo à desmobilização e ao acantonamento tinha ficado acordado no protocolo relativo às questões militares, que se avançaria para a criação de um novo exército mais reduzido constituído por 30000 efectivos, 15000 de cada parte. A criação técnica deste novo exército começou com a Declaração de Lisboa, em 84

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Ajello, Aldo. O papel da ONUMOZ no processo de pacificação. In: Mazula, Brazão (1995) Op. Cit. P. 128. Idem. P. 128.

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Fevereiro de 1993, onde Portugal, a Grã-Bretanha e a França se comprometeram em treinar e, nalguns casos, a equipar a nova força. Em Agosto de 1994, o número de tropas registado era de 91691,86 dos quais cerca de 78078 foram desmobilizados, enquanto que os restantes transitaram para o novo exército. O plano de constituição do novo exército de 30000 homens antes das eleições não foi totalmente cumprido;87 porém, é inegável que o processo no seu todo foi um êxito bastante assinalável. Consideramos que tal só foi possível porque houve um verdadeiro empenho por parte de alguns actores internacionais, que mais uma vez se revelaram decisivos para o bom andamento do processo. 4.3 O Repatriamento dos Refugiados A ONUMOZ, entre outras atribuições, tinha uma tarefa humanitária a desempenhar, e aqui o seu grande desafio foi ajudar à reinstalação de refugiados e deslocados e, também, no fornecimento de ajuda alimentar e outros tipos de ajuda de emergência. Estimava-se que existissem cerca de 1,5 milhões de refugiados nos países vizinhos, principalmente no Malawi e no Zimbabwe, e cerca de 4 milhões de deslocados.88 Para essa tarefa fora criada, no quadro da ONUMOZ e dependente do representante especial do Secretário-Geral das Nações Unidas, a Agência para a Coordenação da Assistência Humanitária (UNOHAC) que tinha como funções coordenar os programas de assistência humanitária com os representantes de órgãos da ONU e com as ONG. A ONUMOZ contaria com a colaboração de várias agências especializadas da ONU, tais como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Programa Alimentar Mundial (PAM), a Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO), o Fundo das Nações Unidas para a Criança (UNICEF), a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO). Além disso, contou também com o apoio de centenas de ONG, entre as quais o Comité Internacional da Cruz Vermelha, a CARE, a AMI, a OIKOS, a OXFAM, os Médicos Sem Fronteiras, etc, que desenvolveram um trabalho muito importante de apoio a milhões de pessoas. 4.4 O Recenseamento e as Eleições O processo de recenseamento eleitoral e a ulterior fiscalização das eleições e, consequentemente, o culminar das tarefas da ONUMOZ em Moçambique Vines, Alex (1996) Renamo, From terrorism to democracy in Mozambique?, James Currey, London. P. 155. 87 Idem. P. 155. 88 Moçambique saindo das ruínas da guerra. In: Africa Recovery, 8 de Maio de 1993. ONU. New York. P. 1. 86

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ocorreria já em 1994. Também aqui os doadores providenciaram um pacote de ajudas e apoios ao processo eleitoral, que se consubstanciaram em recursos financeiros e técnicos, mas também, em apoio político, que era essencial ao sucesso da operação. De tal apoio resultou o estabelecimento de uma moldura institucional e administrativa, que assegurou as condições necessárias para o bom desenrolar do processo. Os partidos políticos receberam, como indicámos, ajuda financeira e técnica e foram criados programas de educação cívica a nível nacional com o objectivo de esclarecer os eleitores sobre o significado das eleições. Houve, nessa sequência, um envolvimento importante da sociedade moçambicana, o que permitiu que se verificasse uma afluência às urnas nas primeiras eleições democráticas em Moçambique de cerca de 87% dos eleitores recenseados.89 Cerca de três meses antes das eleições tinham sido registados junto do Ministério da Justiça 17 partidos.90 Nessa mesma altura, em Julho de 1994, foi criado um novo Trust Fund de assistência aos partidos registados que contemplava apoios às forças políticas que não tinham participado na guerra civil; o objectivo era o de proporcionar meios a esses partidos para fortalecerem a sua organização, de modo a poderem competir nas eleições de uma maneira mais eficaz.91 A divisão eleitoral da ONUMOZ monitorou o processo eleitoral, incluindo o seu mandato a verificação da imparcialidade da Comissão Nacional de Eleições (CNE) e a administração propriamente dita do acto eleitoral; assegurava o acesso dos partidos à imprensa; monitorava o grau de liberdade de acção dos partidos na sua organização, deslocações e campanhas eleitorais; e, finalmente, competia-lhe a implementação do processo eleitoral, incluindo o apuramento dos resultados.92 A campanha eleitoral começou oficialmente a 22 de Setembro de 1994, tendo sido recenseados um total de 6148842 eleitores e concorreram às eleições legislativas doze partidos e duas coligações,93 e às eleições presidenciais doze candidatos.94 A campanha decorreu num clima tenso, com ameaças de ambos os lados, mas sem incidentes de maior.95 Ainda antes de a campanha ter começado 89

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Jett, Dennis. Cementing Democracy: Institution-Building in Mozambique. In: South Africa Journal of International Affairs, Vol. 3, Nº 2, Winter 1996, pp. 1-12. Waterhouse, Rachel. 17 Parties Registered. In: Mozambique Peace Process Bulletim. Awepa, Aug. , 1994. Amsterdam. P. 1. Turner, J. Michael e Nelson, Sue e Mahling-Clark, Kimberly. Mozambique´s Vote for Democratic Governance. In: Kumar, Krishna (Edit) (1998) Postconflict Elections, Democratization and International Assistance. Lynne Rienner Publishers. London. P. 157. Idem. P. 157. Vines, Alex (1996) Op. Cit. Pp. 157-158. The United Nations and Mozambique, 1992-1995. Op. Cit. P. 61. Uma excelente descrição da campanha eleitoral é feita por Michel Cahen, na sua obra, Les Bandits: Un Historien au Mozambique, editada pela Fundação Gulbenkian, em 2002. O autor acompanhou a campanha eleitoral da Renamo, sendo dos poucos, senão o único académico a fazê-lo, e traz-nos uma visão bastante detalhada da campanha eleitoral. O facto de ter acompanhado a campanha eleitoral da Renamo trouxe-lhe algumas desconfianças por parte nomeadamente daqueles que, abertamente ou não, militavam na causa da Frelimo; o próprio Michel Cahen nos relata esse episódio na pág. 136 do seu livro.

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tinha-se falado com alguma insistência na possibilidade de depois das eleições se constituir um governo de unidade nacional, tal como tinha ocorrido nas eleições sul-africanas de Abril de 1994. Houve inclusivamente fortes pressões por parte de diversos doadores internacionais96 nesse sentido; o sub-secretário norteamericano para os assuntos africanos, George Moose, declarou nessa altura:97 (...) Onde não haja tradição de uma oposição leal, é crucial que se assegure que os derrotados continuem a ter o seu papel no processo democrático, ou então eles perderão a fé e poderão iniciar uma nova forma de tirania. [Trad. do autor]. Todavia, nem essa pressão, nem a pressão exercida pelo recém eleito presidente sul-africano, Nelson Mandela, surtiram qualquer efeito.98 Terá sido esta uma das poucas vezes, após alguma insistência, que o governo da Frelimo não cedeu perante as pressões internacionais. A explicação mais razoável para esta atitude terá sido a confiança da Frelimo na vitória eleitoral e, portanto, a não necessidade de se estabelecer um tal acordo. A data das eleições estava marcada para 27 e 28 de Outubro, mas no dia 26, Afonso Dhlakama declara que se retirava das eleições devido a alegadas manobras fraudulentas por parte da Frelimo. Depois de garantias por parte da ONUMOZ de que investigaria estas alegações de fraude, e como resultado de algumas pressões internacionais, Dhlakama e a Renamo voltam ao processo de votação que, entretanto, tinha sido alargado por mais um dia devido a estes acontecimentos. Apesar do apoio em termos de transportes e comunicações providenciado pela ONUMOZ, foram necessárias algumas semanas para se ultimar a contagem dos votos das cerca de 7000 assembleias e verificar os respectivos resultados. Joaquim Chissano, da Frelimo, foi o vencedor da corrida presidencial com 53,3% dos votos, ficando o candidato da Renamo, Afonso Dhlakama, em segundo lugar com 33,7% dos votos. Nenhum dos outros dez candidatos obteve mais de 2,9% dos votos.99 Os votos ficaram assim distribuídos: Eleições Presidenciais Inscritos Votantes Abstenções Votos brancos Votos nulos

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6.148.842 eleitores 5.402.940 (87,87 %) 774.587 (12,60 %) 312.143 (5,7%) 149.282 (2,76%)

Vines, Alex (1996) Op. Cit. P.157. Alden, Chris. The United Nations, Elections and Resolution of Conflict in Mozambique. In: Venâncio e Chan (1998) Op. Cit. P. 91. Idem. P. 91. Jett, Dennis (1996) Op. Cit. P. 6.

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Candidatos, Votos e Percentagens 1º - Joaquim Chissano 2º - Afonso Dhlakama 3º - Wehia Ripua 4º - Carlos Reis 5º - Máximo Dias 6º - Vasco Mamboia 7º - Jacobe Sibindy 8º - Domingos Arouca 9º - Carlos Jeque 10º - Casimiro Nhamitambo 11º - Mário Machele 12º - Padimbe Kamati Fonte: Comissão Nacional de Eleições

2.435.488 votos (53,66%) 1.666.965 votos (33,73%) 141.905 votos (2,87%) 120.708 votos (2,44%) 115.442 votos (2,34%) 58.848 votos (1,19%) 51.070 votos (1,03%) 37.767 votos (0,76%) 34.588 votos (0,70%) 32.036 votos (0,65%) 24.238 votos (0,49%) 24.208 votos (0,49%)

Nas eleições para a Assembleia da República, a Frelimo, no entanto, não obteve uma maioria eleitoral; o partido de Chissano obteria 44% dos votos, enquanto a Renamo conseguiu 38%. Ainda assim, o sistema eleitoral adoptado por Moçambique - o sistema proporcional com escrutínio de lista - utilizando o sub-método de Hondt (conjugado com a cláusula-barreira que impede os partidos com menos de 5% dos votos de terem representação parlamentar), permitiu que os 44% de votos expressos ganhos pela Frelimo fossem transformados em 51,6% dos lugares no parlamento, o que equivalia a 129 dos 250 deputados, conseguindo por esta via uma maioria parlamentar para o partido do governo.100 Também a Renamo aumentou o seu score por via do sistema eleitoral, ficando com 112 deputados, enquanto a coligação União Democrática, a única além da Renamo e da Frelimo a ultrapassar a barreira dos 5%, garantia nove lugares.101 A distribuição de votos nas legislativas ficaria como segue: Eleições Legislativas Inscritos Votantes Abstenções Votos Brancos Votos Nulos

6.148.842 Eleitores 5.404.199 (87,89%) 773.583 (12,58%) 457.382 (8,46%) 173.592 (3,21%)

Candidatos, Votos e Percentagens 1º - Frelimo 2º - Renamo 3º - UD 4º - AP 5º - SOL 6º - FUMO 7º - PCN 8º - PIMO 9º - Pacode

2.115.793 votos (44,33%) 1.803.506 votos (37,78%) 245.793 votos (5,15%) 93.031 votos (1,95%) 79.622 votos (1,67%) 66.527 votos (1,39%) 60.635 votos (1,27%) 58.590 votos (1,23%) 52.446 votos (1,10%)

Esta situação não é exclusiva de Moçambique. Em Portugal onde o sistema eleitoral nas eleições legislativas é o mesmo, acontece uma situação semelhante. A Aliança Democrática, nas eleições de 1979, apesar de não ter conseguido uma maioria de votos expressos, conseguiu uma maioria absoluta de deputados na Assembleia da República. O PSD, em 1987, alcançou a sua primeira maioria absoluta através do mesmo fenómeno. Tais situações podem ocorrer porque o sub-método de Hondt favorece os partidos mais votados. 101 Jett, Dennis (1996) Op. Cit. P. 6. 100

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10º - PPPM 11º - PRD 12º - Pademo 13º - Unamo 14º - PT Fonte: Comissão Nacional de Eleições

50.793 votos (1,06%) 48.030 votos (1,01%) 36.689 votos (0,77%) 34.809 votos (0,73%) 26.961 votos (0,56%)

Estes resultados foram oficialmente anunciados no dia 19 de Novembro pelo presidente do Conselho Nacional de Eleições, Brazão Mazula. No mesmo dia, Ajello, em nome das Nações Unidas declarava as eleições em Moçambique livres e justas. Do mesmo modo a Organização de Unidade Africana (OUA) e a União Europeia também declararam as eleições livres e justas.102 No dia 21, a Resolução do Conselho de Segurança nº 960 exortava as partes a aceitarem o resultado das eleições, aceitação que Afonso Dhlakama já tinha feito em telefonema para o Secretário-Geral da ONU, no dia 14 de Novembro.103 O mandato da ONUMOZ terminará a 9 de Dezembro de 1994, por ocasião da tomada de posse de Joaquim Chissano enquanto presidente democraticamente eleito de Moçambique. Ajello sai de Moçambique no dia 13 de Dezembro, deixando atrás de si uma das mais caras operações de manutenção de paz das Nações Unidas, mas também uma das que teve mais sucesso. 5. A especificidade do caso moçambicano: um processo de transição democrática sui generis Os processos de democratização contemplam normalmente três fases: a liberalização (que pode ser simultaneamente económica e política ou, então – como aconteceu na maior parte dos casos, nomeadamente em África – iniciar-se por uma liberalização económica que dará origem mais tarde a um processo de abertura política); a transição; e, a consolidação. No caso africano será, talvez cedo, falar-se em democracias consolidadas104, de modo que a maior parte dos estudos debruçam-se apenas sobre as duas primeiras fases. Moçambique enquadra-se neste contexto, já que será, na nossa opinião, prematuro falar-se em consolidação democrática stricto sensu naquele país.105 O processo de transformação política The United Nations and Mozambique, 1992-1995. Op. Cit. P. 65. Idem. P. 64. 104 Talvez com as possíveis excepções de Cabo Verde, África do Sul, Botswana e Maurícias. Por coincidência, ou talvez não, são estes os países da África Subsariana que ocupam os lugares cimeiros, no continente africano, do Índice de Desenvolvimento Humano, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Cfr. Relatório de Desenvolvimento Humano 2004, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Mensagem - Serviço de Recursos Editoriais, Lisboa. 105 Cfr. Pavia, José Francisco (2005) Moçambique: Um caso de sucesso nas transições democráticas em África? In: Motta, Carlos e Correia, José (Edts.) Estudos Comemorativos dos 15 Anos da Licenciatura em Relações Internacionais, Vol.II, 2005. Universidade Lusíada Editora. Lisboa, Pp. 23-34. No mesmo sentido, cfr. Pitcher, Anne (2005) Eleições de 2004 em Moçambique in: Política Internacional, nº 28, II Série, Julho de 2005, pp. 59-78. 102 103

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em Moçambique será um caso de transição simples já que se iniciou com uma liberalização económica consubstanciada nos acordos com o FMI e o Banco Mundial, a que se seguiu um processo de abertura política que, como vimos, teve como corolário o V congresso da Frelimo, em 1989, e a entrada em vigor da nova constituição de 1990. No entanto, para que verdadeiramente ocorresse o processo de transição democrática faltavam o fim da guerra e as eleições multipartidárias que efectivamente vieram a ter lugar em Outubro de 1994. As founding elections legislativas e presidenciais consagraram, portanto, a transição para a democracia; estas foram consideradas livres e justas pela comunidade internacional e, a partir desse momento, com a eleição democrática de uma assembleia legislativa e de um chefe de Estado entrava-se na fase de consolidação necessariamente mais longa. Todo este processo que acabámos de referenciar foi acompanhado de uma forte componente internacional que, quanto a nós, foi decisiva para o sucesso da transição democrática em Moçambique. O carácter específico e sui generis do caso moçambicano é ainda reforçado pelo papel que a CSE teve no processo de mediação e nas negociações de Roma,106 e também o papel crucial que tiveram a ONU e todas as suas agências especializadas.107 Esta singularidade é ainda patente noutras vertentes do caso moçambicano como nos relata Pedro Borges Graça (2005):108 (...) A originalidade do processo de construção da nação em África é pois um facto, assim como a singularidade do caso de Moçambique. Este tem evidentemente a ver com a especificidade do legado colonial e da herança africana e da interacção entre ambos os fundamentos culturais, (...). Mas a tonalidade lusófona dá-lhe um carácter particular que deriva da dinâmica de convivência social constante da Cultura Portuguesa e da sua inclusividade, que é manifestamente diferente da dinâmica de coexistência social e de exclusividade próprias da Cultura de origem anglo-saxónica que constitui o legado colonial dos países fronteiros a Moçambique. Este carácter é vulgarmente reconhecido como afável e/ ou friendly (...) os próprios moçambicanos (...) possuem uma percepção etnocêntrica bem definida quanto à alteridade, reconhecendo-se por exemplo à distância pela linguagem corporal. (...) Outro autor, Gabriel Ribeiro (2000), reforça ainda mais esta singularidade ao referir-se mais concretamente ao carácter distintivo da cultura política dos moçambicanos; ele aponta o facto de também nesta vertente do processo político Cfr. Bolinhas, Inês A Mediação da Comunidade de Santo Egídio no Conflito Moçambicano in: Revista Militar, II Século, 57º Volume, nº 4, Abril de 2005, pp. 393-411. 107 Cfr. Castelo Branco, Luís As Missões da ONU na África Austral: Sucessos e Fracassos in: Nação e Defesa, nº 105, Verão de 2003, 2ª Série, pp. 81-101. 108 Graça, Pedro Borges (2005) A Construção da Nação em África, Almedina, Coimbra. Pp. 290-291. 106

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encontrar elementos específicos e contrastantes em Moçambique. Ribeiro (2000), a este respeito, afirma o seguinte:109 (...) Com efeito, a cultura política dos moçambicanos é caracterizada por um locus de controlo externo demasiado forte que se torna de certa forma patológico. (...) Na análise do processo de paz em Moçambique cumpre, ainda, destacar a intervenção de Portugal em todas as suas vertentes, que apesar de discreto e de nem sempre cabalmente reconhecido foi quanto a nós também muito importante.110 Este processo, precisamente devido ao seu carácter específico, é dificilmente repetível; porém, podem-se retirar alguns ensinamentos que poderão ser úteis no futuro em processos de democratização pós-conflito armado. Alguns dos procedimentos que poderão ser utilizados em processos similares, de modo a que se possa prever algum êxito dado o bom resultado alcançado em Moçambique, seriam: a) a existência de um mediador desinteressado que reúna a confiança de ambas as partes; b) o processo de paz deve ter a garantia de poderosos actores internacionais, como por exemplo, a ONU, os EUA, ou outros; c) depois do acordo de paz concluído, garantir e implementar uma efectiva desmobilização e acantonamento dos exércitos de ambos os beligerantes; d) o repatriamento de refugiados em condições eficazes; e) a entrega aos partidos que entretanto se vierem a constituir de um Trust Fund de modo a garantir que estes, nomeadamente os partidos da oposição, possam concorrer às eleições em condições mínimas de igualdade com o partido que está no poder; f) a garantia de que as eleições serão livres e justas; g) uma presença efectiva e substancial das Nações Unidas (capacetes azuis, observadores, técnicos) de modo a assegurar que todo o processo decorra com transparência e boa-fé; h) por último, a garantia de que os partidos que ficarem na oposição tenham uma existência digna para poderem cumprir o seu papel de oposição ao governo que vier a ser eleito. Conclusão O envolvimento internacional foi determinante na resolução do conflito moçambicano. Sustentamos que o sucesso desta operação se ficou a dever, em grande medida, ao empenho dos diversos actores internacionais que mais directamente estiveram envolvidos. Porventura, o espectro do falhanço do processo angolano que pairava sobre Moçambique ajudou a um maior empenhamento da ONU e dos outros intervenientes. Por outro lado, o sucesso 109

110

Ribeiro, Gabriel Sérgio Mithá (2000) As Representações Sociais dos Moçambicanos, Instituto da Cooperação Portuguesa, Lisboa, P. 181. Pavia, José Francisco (2008) Op. Cit.

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das eleições sul-africanas - que tinham ocorrido poucos meses antes - também galvanizou os moçambicanos, incentivando-os a repetir a experiência do seu poderoso vizinho. O Secretário-Geral da ONU, o Conselho de Segurança, os EUA e outros actores internacionais mais envolvidos neste processo mostraram um grau de cometimento muito maior do que tinham mostrado no caso angolano.111 É certo que nem sempre as relações da ONUMOZ com o governo de Moçambique correram da melhor forma, já que Maputo reagia negativamente ao que considerava ser atentatório da sua soberania: por exemplo, a demora na negociação do Status of Forces Agreement.112 Apesar destas vicissitudes, o caso moçambicano é bem demonstrativo de que as pressões, influências, conselhos e sugestões dos diversos actores internacionais podem contribuir em grande medida para o êxito de um processo de transformação política induzido do exterior, e que a Multi-Track Diplomacy pode ser um factor de sucesso para se chegar a uma plataforma de entendimento, quando a diplomacia dita tradicional não consegue alcançar esse objectivo. Bibliografia Livros e Capítulos de Livros Abrahamsson, Hans e Nilsson, Anders (1994) Moçambique em Transição, Centro de Estudos Estratégicos Internacionais - Instituto Superior de Relações Internacionais, Maputo. Ajello, Aldo. O papel da ONUMOZ no processo de pacificação. In: Mazula, Brazão (1995) Moçambique: Eleições, Democracia e Desenvolvimento, Inter-África Group, Maputo. Alden, Chris. The United Nations, Elections and Resolution of Conflict in Mozambique. In: Venâncio, Moisés e Chan, Stephen (1998) War and Peace in Mozambique, MacMillan Press, London. Barnes, Sam. Humanitarian Assistance as a Factor in the Mozambican Peace Negotiations: 1990-92. In: Venâncio, Moisés and Chan, Stephen (1998) War and Peace in Mozambique, MacMillan Press, London. Braillard, Philippe (1990) Teoria das Relações Internacionais, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. Oakley, Robert B. A Diplomatic Perspective on African Conflict Resolution. In: Smock, David e Crocker, Chester A. (1995) African Conflict Resolution: The U.S. Role in Peacemaking. United States Institute of Peace Press, Washington, D.C. Pp. 67-68. 112 Brito, Miguel (1997) Op. Cit. P. 60. O SOFA (Status of Forces Agreement) é um acordo assinado entre as Nações Unidas e o governo onde vai decorrer a operação de manutenção de paz; consiste numa garantia de legalidade, assegura os direitos dos peacekeepers, e, fundamentalmente, cobre todas as áreas de jurisdição da operação. O governo de Moçambique sentia a sua soberania ameaçada pelo SOFA e só concordou devido às pressões internacionais. 111

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Cabo Verde e a graduação da lista de Países Menos Avançados - da validação política à transição sustentável

Irina de Luís Pais Licenciada em Relações Internacionais. Técnica Sectorial de Cooperação do Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento a exercer funções nos serviços de cooperação da Embaixada de Portugal na Cidade da Praia. email: irina.pais@hotmail.com

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Resumo: Em 2008, Cabo Verde tornou-se o segundo país do mundo a graduar da lista de Países Menos Avançados (PMA). Consubstanciando-se no reconhecimento político pela comunidade internacional do sucesso que Cabo Verde alcançara na implementação da sua estratégia de desenvolvimento, a graduação representa não um fim em si mesmo mas abre antes caminho a um novo e mais ambicioso e exigente desafio: a efectiva transição para a categoria de País de Rendimento Médio. Assim, assume-se como crucial garantir que a comunidade internacional está de facto em condições de contribuir para a graduação plena, responsável e sustentável dos Menos Avançados. Em suma, mais do que promover e validar graduações políticas, afigura-se que compete às Nações Unidas garantir que os sucessos hoje por si reconhecidos e potenciados não se transformam, amanhã, em verdadeiros fiascos – questão que é tão mais pertinente se considerarmos o caso de países que, como Cabo Verde, apresentam ainda extremas vulnerabilidades. Palavras-Chave: Desenvolvimento / Países Menos Avançados/ Cabo Verde/ Graduação/ Sustentabilidade Abstract: In 2008, Cape Verde became the second country in the world to graduate from the list of Least Developed Countries. Founded on the political acknowledgement of Cape Verde’ success in its development strategy’ implementation, the graduation is not an end in itself but quite the opposite. Graduating from LDC’ list sets up a new, more ambitious and daring challenge: to accomplish an effective transition to the Middle Income Countries’ group. Therefore, international community shall understand the important role they get to play in this dynamic process: a continued support by development partners is indeed critical for graduated Least Developed Countries to achieve a complete, accountable and sustainable graduation. Bearing in mind the severe vulnerabilities that graduated or near-graduating countries usually present, we, the people of the United Nations, must make sure that the success we once recognized will not end up as a complete flop, which could seriously hurt the sustained development of graduated countries Key-Words: Development / Least Developed Countries/ Cape Verde / Graduation / Sustainability

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Sumário Este texto tem como objectivo principal efectuar uma análise da graduação de Cabo Verde da lista de Países Menos Avançados, designadamente na perspectiva das complexas vulnerabilidades que condicionam o desenvolvimento do país. Complementarmente, propomo-nos efectuar uma análise do mecanismo da graduação e sobre algumas questões que se encontram directamente relacionadas com a sua operacionalização e, em última instância, com a promoção de graduações plenas e sustentáveis. O texto encontra-se, assim, estruturado em três secções: a graduação de Cabo Verde da lista de Países Menos Avançados; as vulnerabilidades e desafios da graduação de Cabo Verde e considerações sobre o mecanismo de graduação, na perspectiva do desafio da transição efectiva e sustentável. A graduação de Cabo Verde da lista de Países Menos Avançados Dono de uma forte identidade cultural, Cabo Verde é um pequeno Estadonação insular que, no contexto geográfico e político em que se insere, constitui uma referência em matéria de boa governação, de respeito pelos direitos fundamentais e de desenvolvimento socioeconómico. Independente desde 1975, Cabo Verde cedo despertou para a necessidade de conceber uma visão estratégica de Desenvolvimento que potenciasse a viabilização económica do país A descontinuidade geográfica, a diversidade de realidades por esta forjada e o impacto negativo provocado i) pela ausência de recursos naturais, ii) pelas condições climáticas adversas e iii) pela reduzida dimensão do mercado interno impunham sérios constrangimentos ao crescimento da frágil economia cabo-verdiana. Complementarmente, cabe notar que à data da independência, a situação socioeconómica de Cabo Verde era particularmente complexa, senão mesmo dramática. Como descreve José Vicente Lopes, e a par da estagnação que se verificava nos demais sectores económicos, Cabo Verde vivia na altura o seu sétimo ano consecutivo de seca, com a agravante da temporada agrícola de 1974 ter sido afectada por pragas de gafanhotos. Noventa por cento da população, que

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se ocupava do sector agrícola, está pois, na sua grande maioria, no desemprego (…) E do ponto de vista alimentar, o stock de açúcar encontrava-se no nível zero, o do leite deveria terminar dentro de dias, o do milho daria até 15 de Fevereiro e o do feijão até 15 de Março; e o que era mais grave, não havia dinheiro para a aquisição de novos abastecimentos1. Perante esta realidade, o Estado cabo-verdiano considerou essencial o aproveitamento de certos factores para o desenvolvimento do país: a valorização dos recursos humanos, o esforço no sentido de travar o processo de desertificação ecológica e humana no meio rural, a captação de recursos externos para o financiamento de uma política de formação de capital, o aproveitamento da posição geoestratégica do país para a implantação de indústrias e serviços que o tornassem menos dependente do exterior2. Durante a década de 1980, e empenhado em contrariar as análises mais pessimistas que apontavam sérias dúvidas quanto à viabilidade do Estado recémcriado, o governo de Cabo Verde apostou na implementação de Planos Nacionais de Desenvolvimento, os quais reflectiam uma estratégia socialista, redistributiva, preocupada com a valorização dos recursos endógenos (ambiente, educação, formação técnica e saúde), com a solvabilidade externa, com a unificação do mercado interno, com a satisfação das necessidades das populações (produção para o mercado interno)3 e assente numa perspectiva do desenvolvimento humano. Tendo a infra-estruturação do país como prioridade primeira, os referidos Planos (que vigoraram entre 1982/1985 e 1986/1990) concretizavam-se em programas sectoriais orientados para a promoção do desenvolvimento rural, bem como para o desenvolvimento dos sectores das pescas, da energia, do turismo, da educação, da saúde, da habitação, do comércio e de outros serviços que contribuíssem para a manutenção do equilíbrio do conjunto da economia e da política de emprego e formação. Na década de 1980, a economia cabo-verdiana cresceria a um ritmo médio superior a 5%4. As medidas de política adoptadas entre 1975 e 1990 tiveram um impacto muito positivo na melhoria da qualidade de vida da população caboverdiana, como se deduz da extraordinária evolução registada ao nível do PIB per capita, que de 170 USD em 1975, cresceria para 546 USD em 1980, fixando-se

LOPES, José Vicente. Os Bastidores da Independência. 2ª ed. Praia: Spleen Edições, 2002. p. 410. QUERIDO, Chyanda. Estabilização Macroeconómica e Financiamento do Desenvolvimento em Cabo Verde. Lisboa: Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento. 2005. p. 89. 3 VAIA DOS REIS, Vítor Manuel. Principais Estratégias de desenvolvimento em confronto na República de Cabo Verde após a Independência. Lisboa: Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. 2000. p. 102. 4 De acordo com dados disponibilizados pelo Fundo Monetário Internacional, entre 1980 e 1985 a economia cabo-verdiana cresceu a um ritmo médio de 6,4%. No período compreendido entre 1986 e 1990, o ritmo médio de crescimento da economia cabo-verdiana registaria um abrandamento, situando-se na ordem dos 3,9 %. 1 2

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em 1990 nos 899 USD5. No fim dos anos de 1980 e início da década de 1990, acontecimentos como a queda do Muro de Berlim e a realização de eleições no leste europeu socialista conduziram ao fim da Guerra-Fria. Estas profundas mudanças no sistema internacional traduziram-se na emergência de uma nova conjuntura, no quadro da qual o pluralismo democrático e o apoio à iniciativa privada passaram a constituir condições fundamentais para o acesso privilegiado à Ajuda Pública ao Desenvolvimento e aos mercados internacionais. Em Cabo Verde, a liberalização económica iniciada em 1988 esteve na origem da abertura política do regime. A realização das primeiras eleições livres e directas em 1991 marcou a transição serena para a Democracia. Neste contexto, assistiu-se ao desencadear de um amplo processo de reformas económicas sustentado pela convicção de que Cabo Verde deve(ria) inserir-se de modo pleno no sistema económico mundial e aí, através da criação de uma dinâmica de vantagens concorrenciais, situar o processo de desenvolvimento do país6. Com efeito, o regime económico defendido (…) assentava na ideia de que o mercado constitui uma forma dominante de afectação de recursos e de que a estabilidade macroeconómica – entendida como estabilidade de preços e disciplina das finanças públicas – é uma condição necessária a um crescimento e desenvolvimento sustentados7. À luz destes pressupostos, o governo procuraria ultrapassar a lógica distributiva dos fluxos externos mobilizados em que o sistema económico até então vigente assentava e afirmaria a sua intenção de promover a inserção da economia nacional no mercado internacional. Neste sentido, o III Plano Nacional de Desenvolvimento (que seria implementado entre 1992 e 1995) cometia ao Estado importantes responsabilidades no que tocava a infra-estruturação do país e ao reforço do capital humano, reservando aos operadores privados o papel de agentes directos económicos. As medidas de política então adoptadas favoreceram o desenvolvimento da economia cabo-verdiana que, naquele quinquénio, registaria um crescimento médio anual de 6,2%. Todavia, a partir de 1996, assistiu-se a uma deterioração sistemática do défice orçamental e da balança de pagamentos, à depreciação da taxa de câmbio efectiva real, ao aumento da inflação e a um forte crescimento do stock da dívida interna8. Perante este cenário, o IV Plano Nacional de Desenvolvimento, adoptado para o período compreendido entre 1997 e 2000, teve como principal objectivo a estabilização macroeconómica. Seria neste enquadramento que, em 1998, Portugal e Cabo Verde procederam à assinatura do Acordo de Cooperação Cambial (ACC), ao abrigo do qual se estabeleceu a paridade fixa entre os escudos 5 Fonte: Fundo Monetário Internacional. World Economic Outlook Database. 6 Ministério das Finanças e do Planeamento de Cabo Verde, III Plano de Desenvolvimento 1992-1995. p. 69 7 QUERIDO, Chyanda. op.cit. p. 99. 8 Ministério da Coordenação Económica, II Plano Nacional de Desenvolvimento 1997-2000. p. 14.

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cabo-verdiano e português (que, a partir de 1 de Janeiro de 1999, com a entrada de Portugal na zona Euro, foi convertida numa paridade face à moeda europeia). O ACC colocou, assim, um ponto final ao sistema volátil até então praticado em Cabo Verde, segundo o qual a convertibilidade do escudo cabo-verdiano estava ligada a um cabaz de moedas dos principais parceiros comerciais e países fonte de remessas de emigrantes. Efectivamente, e desde então, o ACC tem-se afirmado como um instrumento fundamental de promoção e preservação da estabilidade macroeconómica e cambial. Da mesma forma, e em virtude do quadro de compromissos assumidos por Cabo Verde e que conduziram à aplicação dos critérios de Maastricht em matéria de gestão macroeconómica, este Acordo tem igualmente funcionado como um importante estímulo de um maior rigor na gestão das Finanças Públicas. Não obstante as variações que a situação macroeconómica conheceu, o PIB per capita manteria a tendência positiva registada na década anterior: de cerca de 900 USD em 1990, o PIB per capita alcançou os 1.264 USD em 20009. Como se conclui da análise do Perfil Demográfico, Socioeconómico e Sanitário publicado em 2004 pelo Instituto Nacional de Estatística, em apenas vinte e cinco anos, Cabo Verde conseguiu ganhos substanciais reais no domínio do desenvolvimento socioeconómico. Entre os muitos progressos realizados, destacaremos a título de exemplo i) a muito significativa descida da Taxa de Mortalidade Infantil (que de um valor superior a 100 por mil observado no quinquénio de 1971 a 1975 cai para cerca de 31 por mil em 2000); ii) o considerável alargamento da esperança média de vida (os 59,8 anos estimados no início da década de 1980 cresceriam para 70,8 em 2000) e iii) a drástica redução do analfabetismo (de uma percentagem estimada de 63,3% em 1975, o analfabetismo não abrangia mais do que 25% do total da população cabo-verdiana em 2000). O início de um novo século foi também sinónimo de uma nova dinâmica de desenvolvimento para Cabo Verde. Partindo da visão consagrada nas Grandes Opções do Plano10, o Governo cabo-verdiano aprovou, em 2003, a Agenda Estratégica, a qual, tendo como desiderato a inserção competitiva de Cabo Verde na economia global, assume o objectivo de transformar o país num centro internacional de prestação de serviços nos domínios financeiro, dos transportes aéreos e marítimos, das tecnologias de informação, do comércio e do turismo. Fonte: Perfil Demográfico, Socioeconómico e Sanitário de Cabo Verde, Praia: Instituto Nacional de Estatística, 2004. p.83. 10 As Grandes Opções do Plano adoptadas para o período 2002-2005 impunham ao governo o ambicioso desafio de fazer com que os cabo-verdianos ascendam a um patamar de rendimento económico e de qualidade de vida que valorize a sua dignidade humana, seguindo uma política económica que garanta um desenvolvimento sustentado, compatível com a solidariedade social, regional e inter-geracional, que seja consentâneo com a sustentabilidade ambiental e assente num padrão de crescimento ancorado em crescentes ganhos de produtividade, enfim um desenvolvimento que minimize a pobreza e a exclusão social e seja portador de equidade e de justiça social. Consultar na internet: < http://www.minfin.gov.cv/downloads/GOP2002_2005.doc>. 9

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Constituindo o coração do projecto de desenvolvimento que Cabo Verde ambiciosamente traçou para si mesmo, a operacionalização desta Agenda (bem como das diferentes estratégias sectoriais que dela emanam) tem constituído, desde 2003, o fio condutor da acção governativa. A confiança e a credibilidade que Cabo Verde soube conquistar junto da comunidade internacional ocupam uma importância determinante na estratégia de mobilização de recursos que o Governo tem, até à data, prosseguido com sucesso. Corridos que estão quase dez anos após a adopção da Agenda Estratégica, os ganhos alcançados em matéria de infra-estruturação do país, da implantação das energias renováveis, da reforma do Estado, da capacitação dos recursos humanos, da mudança de paradigma na educação através da introdução das novas tecnologias, entre outros, são reais e bem visíveis. Neste contexto, o Primeiro-Ministro de Cabo Verde11 definiu o desafio do desenvolvimento enquanto um processo de modernização nas esferas política, económica, social e cultural. José Maria Neves afirmou ainda que Cabo Verde vive um momento crucial da sua História: ou conseguimos fazer a descolagem e navegar no espaço turbulento da competição global ou deslizamos na pista sem poder levantar voo, por excesso de pressão ambiental, escassez de combustível e de equipamentos adequados que nos permitam prever as condições de navegabilidade e enfrentar as eventuais tempestades e poços de ar. Desde então, Cabo Verde registou progressos deveras significativos. Cabo Verde tem sido capaz de manter a dinâmica de crescimento da sua economia, de promover o amplo desenvolvimento de infra-estruturas físicas, o reforço da cobertura sanitária do país, o alargamento da educação e das tecnologias de comunicação e informação, entre outros. Mas todas as moedas têm duas faces. Como tal, e a par de se reconhecer as conquistas já alcançadas, importará ter a consciência dos múltiplos e complexos desafios que permanecem por cumprir para que Cabo Verde possa, com propriedade e responsabilidade, afirmar a sua condição plena de país de Rendimento Médio e, nesse contexto, assegurar a sustentabilidade do seu desenvolvimento. Referimo-nos, por exemplo, ao desemprego jovem12, à pobreza13, aos problemas no abastecimento de água e energia, o endividamento do Estado14, a melhoria da qualidade do sistema de ensino e o reforço da NEVES, José Maria. Uma Agenda de Transformação para Cabo Verde. Lisboa: Letras Várias. 2010.p. 88 e 89. 12 Segundo o IV Recenseamento Geral da População e Habitação realizado em 2010, a taxa de desemprego entre os jovens (15 a 24 anos) chegou a 21,3 por cento, quase três vezes superior à dos trabalhadores mais velhos (25 a 64 anos). 13 De acordo com o Inquérito de Despesas e Receitas Familiares aplicado em 2001/2002, a percentagem de pobres no país situava-se perto dos 37%. O Questionário Unificado de Indicadores Básicos de Bem-estar aplicado em 2007 dava conta de uma muito positiva evolução da situação, expressa na redução em cerca de 10 pontos percentuais, ou seja, a pobreza afectava agora cerca de 27% do total da população cabo-verdiana. Em 2010, alguns estudos realizados pelo Governo terão indiciado uma nova redução da pobreza em Cabo Verde, para os 24%. 14 De acordo com dados disponibilizados pelo Ministério das Finanças, em 2000 a dívida externa 11

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produtividade. Considerado como um candidato elegível à graduação da lista de Países Menos Avançados desde 1997, a transição de Cabo Verde para o grupo de Países de Rendimento Médio seria confirmada em 2004. No dia 1 de Janeiro de 2008, Cabo Verde tornou-se o segundo país do sistema das Nações Unidas a graduar da lista de Países Menos Avançados – feito até à data apenas alcançado pelo Botswana em 1994. As vulnerabilidades e desafios da graduação de Cabo Verde Fundamentada pelo bom desempenho continuamente registado em dois dos três critérios de avaliação instituídos para o efeito: o PIB per capita e o índice compósito de capital humano (que congrega quatro indicadores, dois no domínio da Educação e outros dois respeitantes à Saúde), a graduação de Cabo Verde traduz, assim, o reconhecimento da comunidade internacional pelo notável caminho de desenvolvimento percorrido pelo país desde a sua independência. No entanto, a economia cabo-verdiana encerra ainda complexos constrangimentos estruturais que condicionam fortemente o seu crescimento. Os desafios15 que se impõem a Cabo Verde no âmbito da profunda vulnerabilidade económica de que o país permanece refém são assaz grandes e imediatos. A superação dos desafios assume-se, pois, como fundamental para assegurar a sustentabilidade económica do país. A fim de melhor compreender a complexidade e dimensão dos desafios que se colocam a Cabo Verde, propomo-nos agora realizar uma análise sistematizada das profundas vulnerabilidades e diferentes desafios com que o país se debate. No contexto das vulnerabilidades estruturais, consideraremos, num primeiro momento, os elevados custos económicos decorrentes da influência negativa da articulação dos seguintes factores que caracterizam a realidade caboverdiana: a insularidade e a dispersão territorial – um dos principais desafios de Cabo Verde decorre indubitavelmente da sua insularidade, a que acresce a sua

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correspondia a 52,1% do PIB, valor que, em 2006, recuaria para os 48,8%. De acordo com os dados disponibilizados no relatório da Primeira Avaliação ao Abrigo do Instrumento de Apoio à Política Económica e Solicitações de Dispensa pelo não Cumprimento e de Modificação de Critérios de Avaliação, elaborado pelo Fundo Monetário Internacional em Julho de 2011, a dívida externa de Cabo Verde representava, em 2009, 46,4% do PIB, valor que cresceria para os 51,3% em 2010. De salientar que, no total, a dívida pública cabo-verdiana representava, em 2009, 63% do PIB, valor que aumentaria para os 66,4% em 2010. Conforme previsto no mesmo relatório, em 2011, a dívida pública deverá corresponder a 67,2% do PIB, sendo esperado um novo aumento (para os 72,4%) em 2012. No que respeita à dívida externa, perspectiva-se que esta corresponda em 2011 a 50,4% do PIB, valor que, em 2012, deverá aumentar para os 55%. Para este efeito seguiremos de perto Cape Verde: Constraints to Growth, Transformation and Poverty Alleviation, Ministério das Finanças de Cabo Verde, Praia, Julho de 2010.

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condição arquipelágica. A par dos múltiplos problemas técnicos e financeiros que esta condição impõe ao desenvolvimento de sectores como a energia, água e saneamento e os transportes, a descontinuidade geográfica resulta em custos acrescidos para o Estado, que se vê confrontado com a necessidade de promover a descentralização das diferentes instituições e serviços que congrega. Cumulativamente, cabe realçar o impacto negativo que estas duas variáveis (acrescidas das fragilidades ainda existentes ao nível do transporte inter-ilhas de pessoas e bens) têm no aumento das assimetrias regionais, no agravamento dos custos de produção e, por sua vez, dos preços, bem como as condicionantes que coloca à consolidação de um mercado interno e dinâmico. a acidentada orografia do terreno e a ausência de recursos naturais – a inexistência de matérias-primas e o facto de apenas cerca de 10% do solo de Cabo Verde apresentar condições favoráveis à prática agrícola constituem fortes condicionantes à expansão da base produtiva, impõem uma forte dependência das importações e agravam a vulnerabilidade do país face a choques externos resultantes, por exemplo, da degradação do preços internacionais. a dimensão da economia – A par da fragmentação territorial, Cabo Verde tem um reduzido universo populacional e uma pequena dimensão geográfica – a combinação destes três aspectos impõe inevitavelmente complexos obstáculos à criação de economias de escala e à implantação de uma boa base concorrencial. Por sua vez, e no capítulo dos principais desafios que se impõem no quadro da sustentabilidade do desenvolvimento de Cabo Verde, a água e a energia assumem-se desde logo como questões centrais e incontornáveis. Essencialmente resultante dos baixos índices de pluviosidade e da reduzida dimensão dos lençóis freáticos, a escassez de água tem amplas e profundas repercussões aos níveis social e económico. Com efeito, em Cabo Verde cerca de 90% da água consumida tem origem na dessalinização – um processo físicoquímico altamente dispendioso e muito exigente do ponto de vista energético. A situação de escassez e o elevado custo do processo de dessalinização são razões que, por si só, conduzem ao encarecimento do preço da água potável. Perante este cenário, a água constitui uma variável muito pesada nas equações económica e social. Por sua vez, a complexa dimensão do problema da energia encontra, em larga medida, justificação na extrema dependência do país relativamente à importação de combustíveis fósseis para a produção de energia – facto que se reflecte no preço deste bem/factor essencial. Os diferentes estudos de diagnóstico efectuados sobre esta problemática apontam problemas que respeitam desde a (in)capacidade de gestão técnica e financeira da empresa pública produtora e distribuidora de água e energia até à estruturação do próprio sector. Complementarmente, importará realçar que as sistemáticas e prolongadas falhas no sistema de abastecimento de energia materializam-se não apenas em avultados custos nas mais diferentes áreas de actividade económica (directamente resultantes do inevitável acréscimo de investimento com a aquisição de

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equipamentos suplementares, do aumento substancial dos custos de produção e de manutenção e da significativa baixa de produtividade) como também impõem sérios constrangimentos ao próprio funcionamento do Estado. A questão energética constitui, assim, um forte entrave ao crescimento da economia caboverdiana e, naturalmente, à captação de investimento estrangeiro. As fragilidades nos sectores da água e energia são tão mais preocupantes se considerarmos, por exemplo, o impacto naturalmente negativo que o contínuo e acelerado aumento da pressão no lado da procura (decorrente, entre outras, das crescentes necessidades resultantes dos processos de urbanização e do desenvolvimento do turismo) terá na já extrema dependência de combustíveis fósseis para efeitos de produção de energia. Água e Energia são alicerces naturais e fundamentais de todo e qualquer processo de desenvolvimento, não só pela importância que detêm enquanto factores indispensáveis à prática de todas as actividades económicas e ao funcionamento das instituições e serviços, como sobretudo pela sua condição de bem essencial à sobrevivência humana. Neste sentido, a resolução das debilidades sentidas ao nível dos sistemas de abastecimento de água e energia constitui uma questão incontornável para Cabo Verde, no quadro dos objectivos e metas de desenvolvimento oportunamente assumidas. Identificadas as vulnerabilidades existentes neste sector, cabe igualmente notar os esforços que têm vindo a ser empreendidos no sentido da superação dos actuais problemas. Assim, e a par do processo em curso de reforma institucional do sector energético, importa referir os importantes investimentos efectuados (nomeadamente desde 2010) e que deverão contribuir para o cumprimento do objectivo assumido no Programa de Governo em 2006: assegurar que, em 2011, 25% da energia produzida tem origem em fontes alternativas (designadamente eólica e solar). Referimo-nos, por exemplo, à instalação dos dois parques solares fotovoltaicos nas Ilhas de Santiago (o maior do continente africano) e do Sal, bem como à construção (em curso) de quatro parques eólicos nas Ilhas de Santiago (o único até à data inaugurado), Sal, Boavista e São Vicente. Aos constrangimentos identificados no âmbito da Água e Energia, acresce somar um outro desafio: a qualificação do capital humano cabo-verdiano. Tendo presentes os extraordinários progressos registados neste domínio desde 1975, cabe agora reconhecer a emergência de novos e mais ambiciosos desafios que têm como questão central a melhoria da qualidade. Não obstante o bom desempenho do país no que respeita as taxas de escolarização e a progressiva erradicação do analfabetismo, importará continuar a investir na formação e na qualificação da mão-de-obra. Com efeito, a existência de profissionais especializados constitui um factor determinante para o reforço da competitividade da economia cabo-verdiana. Da mesma forma, importará continuar a trabalhar no sentido de uma melhor adequação da oferta formativa às efectivas necessidades de desenvolvimento do país e, claro está, igualmente ajustada às solicitações do

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sector privado, a quem normalmente compete o papel de agente catalisador do crescimento económico. Este pressuposto adquire especial relevância no contexto do combate ao desemprego (fenómeno que em Cabo Verde é particularmente agudo entre os jovens) e, em última instância, no esforço de luta contra a pobreza. Ainda no capítulo da relação existente entre a adequação da oferta formativa e o reforço da empregabilidade, cabe destacar a importância de que se reveste a realização de estudos e estatísticas que, como o Perfil do Desempregado, permitam ter uma percepção real e continuamente actualizada da dinâmica do fenómeno do desemprego. Em Cabo Verde, a acelerada e pouco enquadrada proliferação de universidades (em pouco mais de cinco anos, assistiu-se à instalação de uma universidade pública e oito privadas) terá certamente um impacto forte na evolução a médio prazo do perfil do desempregado, correndo Cabo Verde seriamente o risco de se deparar com um novo e mais complexo desafio, o desemprego qualificado. A par das debilidades estruturais e dos amplos desafios com que o país se depara, cabe realçar o significativo contributo que a Ajuda Pública ao Desenvolvimento, os empréstimos (designadamente concessionais) e as remessas de emigrantes continuam a assegurar para o financiamento do desenvolvimento de Cabo Verde. Neste âmbito, importará ter presente a possibilidade da graduação de Cabo Verde conduzir a uma gradual redução do nível de Ajuda, bem como à supressão (igualmente progressiva) de outros benefícios inerentes ao estatuto de PMA (como sendo, por exemplo, a diminuição do grau de concessionalidade dos empréstimos e a revisão dos pressupostos que sustentam as trocas comerciais). Não obstante, até à data, os parceiros de desenvolvimento terem, na sua generalidade, mantido os níveis de APD, a graduação da lista de Menos Avançados e o actual contexto económico internacional poderão servir de mote ao ajustamento das dinâmicas de cooperação entre a comunidade internacional e Cabo Verde – evolução esta já operada no relacionamento com a Áustria e com os Países Baixos No que respeita às remessas de emigrantes, cabe igualmente considerar a hipótese de, gradualmente, se assistir à diminuição das divisas. Não obstante numerosa, a diáspora cabo-verdiana começa registar uma nova dinâmica decorrente da afirmação dos emigrantes de segunda e terceira geração. Assim, perspectiva-se que, no médio e longo prazos, o enfraquecimento dos laços ao país de origem possa conduzir paulatinamente à redução do fluxo de remessas. Ciente do muito que existe ainda por fazer no quadro da criação de condições que garantam a sustentabilidade da dinâmica de desenvolvimento alcançada por Cabo Verde, e tendo igualmente presente as limitações impostas pelo contexto económico internacional adverso, a Ministra das Finanças e do Planeamento, Cristina Duarte, afirmou em Outubro de 2011 que Cabo Verde corre o risco de cair na armadilha de ser um País de Rendimento Médio. Efectivamente, e como posteriormente reforçado pelo Ministro das Relações Exteriores de Cabo Verde, Jorge Borges, o país corre sérios riscos para garantir a irreversibilidade dessa

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graduação, tanto mais que a elevada vulnerabilidade económica que Cabo Verde encerra é amplamente influenciada por factores externos. Considerações sobre o mecanismo de graduação – o desafio da transição efectiva e sustentável Em Março de 201116, a Comissão para as Políticas de Desenvolvimento, órgão subsidiário do Conselho Económico e Social das Nações Unidas, (re) definiu os PMA, caracterizando-os como países de rendimento baixo e que encerram profundas vulnerabilidades estruturais, as quais, por sua vez, constituem constrangimentos reais ao desenvolvimento sustentável do país. A recente inclusão de uma referência explícita ao conceito de desenvolvimento sustentável revela assim a crescente importância conferida à necessidade de promover processos de desenvolvimento integrado que, de uma forma coerente e harmoniosa, preserve o equilíbrio entre as esferas económica, social e ambiental. Posteriormente, em Maio de 2011, teve lugar em Istambul a IV Conferência do Grupo de Países Menos Avançados, no quadro da qual as Nações Unidas assumiram a intenção de, até 2020, continuar a trabalhar no sentido da criação de condições que favoreçam a graduação de, pelo menos, metade dos países que dão corpo ao Grupo dos Menos Avançados. O objectivo traçado torna-se tão mais ambicioso (diria até ousado) se considerarmos que, não obstante congregar mais de 800 milhões de pessoas (cerca de 12% da população mundial), os 48 países que, no momento, integram este Grupo geram um contributo inferior a 2% para o PIB mundial, representando menos de 1% do comércio internacional de mercadorias. No momento em que se completam vinte anos desde a instituição deste mecanismo, e tendo por base o caso específico de Cabo Verde, afigura-se pertinente efectuar uma análise do conceito da graduação em si mesmo e sobre algumas questões que se encontram directamente relacionadas com a sua operacionalização e, em última instância, com a promoção de graduações plenas e sustentáveis. Com efeito, encontrávamo-nos em Dezembro de 1991 quando a AssembleiaGeral das Nações Unidas reconheceu, pela primeira vez, a possibilidade de se operarem graduações da lista de PMA. Na mesma resolução, a Assembleia-Geral alerta para a necessidade da graduação de países da lista de PMA ser sustentada por uma estratégia de transição suave, como forma para evitar, ou pelo menos minimizar, desvios aos planos, programas e projectos de desenvolvimento17. Sobre a operacionalização da referida estratégia, e para além do forte apelo feito Cf. Relatório da 13ª Sessão da Comissão para as Políticas de Desenvolvimento (21 a 25 de Março de 2011), ECOSOC, Official Records, Supplement No. 13 (E/2011/33), 2011. 17 Cf. Resolução A/RES/46/206 da Assembleia-Geral das Nações Unidas de 20 de Dezembro de 1991. Consultar na internet: http://www.un.org/documents/ga/res/46/a46r206.htm. 16

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aos parceiros de desenvolvimento para que participem e facilitem o processo de transição suave, apenas se refere que a mesma deverá ser implementada no horizonte temporal de três anos, intervalo de tempo que dista entre a decisão da Assembleia-Geral das Nações Unidas de graduar o país e a graduação efectiva do mesmo. Correspondendo a uma fase prévia da graduação, durante este período o país continua a beneficiar do conjunto de prerrogativas atribuídas aos PMA18. Apesar do consenso expresso nas diferentes decisões e recomendações produzidas ao longo dos anos no quadro das diferentes instâncias das Nações Unidas, o desafio de como promover a implementação de estratégias de transição suave e efectiva permanece por cumprir. Neste contexto, impõe-se desde logo uma reflexão sobre a pertinência e a adequabilidade dos critérios subjacentes à graduação: PIB per capita e os índices compósitos de capital humano (composto por indicadores de Educação e Saúde) e vulnerabilidade económica (que pretende medir a resiliência do país perante os constrangimentos que se lhe colocam). Centremo-nos, por exemplo, no critério referente ao PIB per capita. Tratandose de um indicador que, ao estabelecer a relação entre o total da produção de bens e serviços num dado país e num período de tempo determinado e o universo populacional desse mesmo país, pretende medir uma tendência de crescimento económico, o PIB per capita não leva em consideração as desigualdades existentes no que respeita a distribuição da riqueza – aspecto fundamental para compreender a dinâmica real do desenvolvimento socioeconómico de um dado país. Não obstante a questão da desigualdade ser abordada no âmbito dos Perfis de Vulnerabilidade elaborados para os países elegíveis à graduação, a inclusão do Coeficiente de Gini19, enquanto um indicador complementar de avaliação do rendimento, permitiria efectuar uma mais real interpretação do PIB per capita e, consequentemente, ter uma mais fiel percepção da efectiva dinâmica de desenvolvimento do país. Esta questão é tão mais pertinente se considerarmos que, desde 2009, o mecanismo da graduação pode ser accionado apenas com base num elevado PIB per capita20. Enquanto PMA, o país ver-lhe-ia reconhecida a possibilidade (e direito) de beneficiar de fluxos de Ajuda Pública ao Desenvolvimento e de créditos altamente concessionais. A estes somavamse condições privilegiadas no acesso ao mercado, amplos envelopes de assistência técnica, bem como outros mecanismos flexíveis de apoio orientados para facilitar o cumprimento dos diferentes acordos e normas internacionais. 19 De acordo com a definição formulada pelo Instituto Nacional de Estatística de Portugal, trata-se de um indicador que pretende medir a desigualdade na distribuição do rendimento, sintetizando num único valor a assimetria dessa distribuição. O coeficiente pode assumir valores entre 0 (quando todos os indivíduos têm igual rendimento) e 1 (quando todo o rendimento se concentra num único indivíduo). 20 Desde 2009, para ser elegível à graduação um país tem de se enquadrar numa de duas situações: i) cumprir no mínimo dois dos três critérios acima indicados ou ii) deter um PIB per capita equivalente (pelo menos) ao dobro do limite estipulado para esse mesmo efeito. De realçar que para que se opere efectivamente a graduação, o país em causa carece manter (ou melhorar) o desempenho que sustenta o seu estatuto de elegível em pelo menos dois exercícios de revisão trienal consecutivos. 18

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Atentemos, por breves instantes na situação da Guiné Equatorial que tudo indica graduará em 2012. Em 2009, o país foi considerado elegível à graduação em virtude do elevado PIB per capita que exibia: entre 2005 e 2007, o PIB per capita da Guiné Equatorial ascendeu a 8.957 USD – valor em pelo menos oito vezes superior ao patamar então estabelecido para o efeito (1.086 USD). Contudo, importará igualmente notar que o extraordinário desempenho aferido no critério respeitante ao rendimento não se estendia aos dois outros critérios da equação – os índices de capital humano e de vulnerabilidade económica, no quadro dos quais a performance do país era significativamente inferior aos mínimos exigidos. Considerando que a graduação do grupo de PMA deve reflectir o sucesso que um determinado país alcançou na implementação do seu plano de desenvolvimento, a graduação da Guiné Equatorial afigura-se deveras controversa, dadas as profundas vulnerabilidades que país, não obstante o elevado rendimento per capita, ainda encerra. Mais do que ler os números, impõe-se a necessidade (e como tal a vontade) de saber ler e interpretar a realidade e, apenas à luz desta, analisar a sustentabilidade de um dado projecto de desenvolvimento. Paralelamente, cabe notar que, por contraste com o que sucede com a fase prévia à graduação, o período de transição (que corresponde ao pós-graduação) não tem um horizonte temporal definido. Tratando-se de uma fase que se pretende transitória, espera-se que o período de transição constitua uma espécie de trampolim, ou seja, que o país recém-graduado seja capaz de, com o apoio dos parceiros de desenvolvimento, ascender a uma nova e sustentável dinâmica de desenvolvimento. Deste modo, pretende-se que os países recém-graduados tirem melhor partido do quadro de prerrogativas (designadamente no que respeita ao acesso ao financiamento) de que beneficiavam enquanto PMA e de que continuam usufruindo durante a fase de transição. Porém, sejamos práticos: qual o significado da graduação se, após esta, se mantiver ad eternum o tratamento de que estes países beneficiavam enquanto Menos Avançados? Mais do que perpetuar a fase de transição, importa criar condições que sejam indutoras da referida dinâmica crescente e sustentável de desenvolvimento. Este é, de facto, o desafio que decorre da graduação. A questão é complexa e torna-se tão mais pertinente se consideramos que a graduação não resolve as múltiplas e profundas vulnerabilidades que os países até então Menos Avançados apresentam, como nos ensina o caso de Cabo Verde. A graduação, sendo um mecanismo de validação política que, como importa sublinhar, pode ser accionado sem o prévio consentimento do país em causa, não atenua as necessidades de financiamento destes países; pelo contrário. Deste modo, impõe-se a consciência de que a sustentabilidade dos projectos de desenvolvimento destes países é em larga medida função do interesse e disponibilidade que a comunidade internacional revelar para, através de novos e mais ajustados mecanismos e instrumentos, assegurar a continuidade do seu apoio aos mesmos. Acresce sublinhar que, considerando que as realidades, à semelhança das

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mentalidades, não se mudam por decreto, a definição de um prazo máximo de duração da fase de transição deverá assentar na premissa de que toda e qualquer estratégia de transformação de um dado país necessita ser devidamente implementada e consolidada - processo que, em termos temporais, corresponde em média a não menos do que 10 ou até mesmo 15 anos. Por norma, os processos de reforma são complexos, morosos e dispendiosos; uma implementação acelerada (e por via desta descuidada) pode condicionar consideravelmente a obtenção dos resultados esperados. Neste sentido, e sem prejuízo de se justificar uma análise caso-a-caso, afigura-se que a definição de um prazo inferior a 10 ou 15 anos poderá revelar-se irrealista e, como tal, prejudicar o processo (e o sucesso) da graduação. Neste contexto, poderemos concluir que a inexistência de um prazo máximo que (embora ajustado à dinâmica de transformação do país) delimite a extensão do período transitório, bem como a ausência de um quadro orientador que, de forma clara e objectiva, defina o estatuto (direitos e deveres) dos países recémgraduados, facilita a emergência não de Países de Rendimento Médio mas antes de uma categoria híbrida que designaremos de PMA+. De salientar que esta situação pode, a médio ou longo prazos, ser criadora de tensões entre a comunidade internacional, mormente entre os demais PMA e os países graduados. Com efeito, não se afigura coerente que estes países, uma vez graduados a Rendimento Médio, continuem a usufruir de um conjunto de regalias que já não é consistente com o estatuto que detêm perante a comunidade internacional. Se por um lado as questões são inúmeras e densas, por outro, as respostas são vagas e escassas. Todavia, caberá à comunidade internacional o importante papel de zelar para que os sucessos hoje por si reconhecidos e potenciados não se transformam, amanhã, em verdadeiros fiascos. Este imperativo adquire especial relevância no quadro dos ambiciosos objectivos assumidos na IV Conferência do Grupo de PMA, i.e., graduar pelo menos 24 dos 48 Países Menos Avançados ao longo da próxima década. Ciente das vulnerabilidades que dois (Cabo Verde e Maldivas21) dos três países22 já graduados encerram, é crucial que a comunidade internacional promova consensos em torno dos procedimentos, objectivos e responsabilidades que deverão ser observados no quadro da concepção e execução de estratégias concretas que favoreçam de facto transições suaves. Neste contexto, afigura-se fundamental conceber um modelo de intervenção integrada que, sendo suficientemente flexível para acomodar as especificidades de cada país, transcenda a esfera da genérica declaração de intenções e se traduza Depois do Botswana em 1994 e de Cabo Verde em 2008, as Maldivas afirmaram-se como o terceiro país do sistema das Nações Unidas a alcançar a graduação da lista de Países Menos Avançados. A graduação produziu efeitos no dia 1 de Janeiro de 2011. 22 O Botswana, dada a diversidade e dimensão dos recursos naturais de que dispõe e em virtude do extraordinário desenvolvimento que a sua economia conheceu (essencialmente durante a década de 1990), distancia-se de forma clara da situação de Cabo Verde e das Maldivas. 21

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num plano de acção orientado para a obtenção de resultados quantificáveis e verificáveis. Complementarmente, cabe salientar a importância de apostar na definição de critérios e indicadores que, de forma objectiva, possam medir o impacto da graduação no processo de desenvolvimento destes países. No presente, o seguimento e avaliação desse impacto continua a ser perspectivado à luz dos critérios utilizados para os efeitos de inclusão e graduação da lista de PMA. Assim, e sem prejuízo dos estudos de monitoria promovidos, considera-se que a análise ora efectuada poderia ser complementada com indicadores especificamente orientados para captar a dinâmica que o país experimentou no pós-graduação e, nesse âmbito, procurar aferir os ganhos, bem como as perdas e as consequências destas resultantes; esta relação custo-benefício assume-se como uma questão central para que este mecanismo continue a ser apelativo para os Países Menos Avançados. Mais do que promover e validar graduações políticas, importará garantir que estaremos em condições de contribuir para a viabilização responsável e sustentável da progressão dos Menos Avançados na rota do Desenvolvimento. Vinte anos após a instituição do mecanismo da graduação, é chegado o tempo de discutir e avaliar os resultados alcançados, de perceber se os frutos colhidos correspondem às expectativas criadas e, em todo o caso, de retirar as devidas lições – este processo de reflexão assume-se como fundamental para garantir a necessária credibilização do mecanismo de graduação no contexto da promoção do desenvolvimento sustentável. Nas palavras de Amílcar Cabral, é chegada a hora de pensar para agir e agir para pensar. Bibliografia LOPES, José Vicente. Os Bastidores da Independência. 2ª ed. Praia: Spleen Edições, 2002, p. 410. NEVES, José Maria.Uma Agenda de Transformação para Cabo Verde. Lisboa: Letras Várias. 2010. QUERIDO, Chyanda. Estabilização Macroeconómica e Financiamento do Desenvolvimento em Cabo Verde. Lisboa: Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento. 2005. VAIA DOS REIS, Vítor Manuel. Principais Estratégias de desenvolvimento em confronto na República de Cabo Verde após a Independência. Lisboa: Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. 2000. p. 102. Outras fontes: Inquérito de Despesas e Receitas Familiares aplicado em 2001/2002. Praia: Instituto Nacional de Estatística. [s.n., 2002?].

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Perfil Demográfico, Socioeconómico e Sanitário de Cabo Verde. Praia: Instituto Nacional de Estatística, 2004. IV Recenseamento Geral da População e Habitação de Cabo Verde. Praia: Instituto Nacional de Estatística, [s.n.], 2010. Ministério das Finanças e do Planeamento de Cabo Verde, II Plano de Desenvolvimento 1992-1995. Praia: [s.n., 1996?]. Ministério da Coordenação Económica de Cabo Verde, III Plano Nacional de Desenvolvimento 1997-2000. Praia: [s.n., 2001?] República de Cabo Verde, As Grandes Opções do Plano – Uma Agenda Estratégica. Praia: [s.n.], 2001. Ministério das Finanças de Cabo Verde, Cape Verde: Constraints to Growth, Transformation and Poverty Alleviation. Praia: [s.n.], 2010. Fundo Monetário Internacional, World Economic Database Outlook – Setembro de 2011. http://www.imf.org/external/pubs/ft/weo/2011/02/weodata/ index.aspx. Primeira Avaliação ao Abrigo do Instrumento de Apoio à Política Económica e Solicitações de Dispensa pelo não Cumprimento e de Modificação de Critérios de Avaliação. Washington: 2011. Fundo Monetário Internacional. Resolução A/RES/46/206 da Assembleia-Geral das Nações Unidas de 20 de Dezembro de 1991. Consultar na internet: http://www.un.org/documents/ ga/res/46/a46r206.htm. Relatório da 13ª Sessão da Comissão para as Políticas de Desenvolvimento (21 a 25 de Março de 2011), ECOSOC, Official Records, Supplement No. 13 (E/2011/33), 2011. Declaração de Istambul, Resolução A/Cof.219/L.1 de 12 de Maio de 2011 da IV Conferência de Países Menos Avançados. Consultar na internet: http://www. ldc4istanbul.org/uploads/InformationNoteForParticipants-FinalVersion.pdf.

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A CRISE FINANCEIRA E A SOFT DEFENCE

António Rebelo de Sousa Professor associado com agregação da Universidade Lusíada de Lisboa email: antonio.rebelo.sousa@hotmail.com

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Resumo: Pretende-se no presente artigo analisar as virtualidades do conceito de soft defence e, muito em particular, da acção subversiva, chamandose, todavia, a atenção para a indispensabilidade de, concomitantemente, se manter a hard defence. Procura-se, ainda, sublinhar a importância de uma adequada articulação entre soft defence e hard defence, no actual quadro de crise económica e financeira internacional, apontando-se, simultaneamente, para o reforço da vertente federalista do processo integracionista europeu. Palavras-Chave: Soft Defence / Hard Defence / Crise Financeira / Europa Abstract: The purpose of the present article is to analyse the concept of soft defence as well as the significance of active subversion, considering, at the the same time, the necessity of the existence of hard defence. The author tries to support the idea of the real necessity of putting together soft and hard defence in the present situation, considering also the importance of an evolution towards federalism in Europe. Key-Words: Soft Defence / Hard Defence / Financial Crisis / Europe

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1. Introdução É do conhecimento geral que, após a crise financeira e económica internacional que se desencadeou nos últimos anos, a que se seguiu a crise das dívidas soberanas, passou a considerar-se mais actual a questão da relevância do que se convencionou designar de soft defence. De facto, faz sentido, hoje em dia, que as organizações, em geral, privilegiem a adopção de estruturas flexíveis que funcionem, sobretudo, na base de custos variáveis e não de custos fixos. A adopção de estruturas flexíveis permite uma maior adaptabilidade das organizações à conjuntura, evitando-se situações conducentes à existência de pesos mortos, geradores de deseconomias e, por isso mesmo, de ineficiências. Também ao nível do Estado e, muito em particular, nas áreas da Segurança e da Defesa, faz sentido apostar-se em organizações flexíveis, pelo que se compreende a relevância de que se reveste o novo conceito de soft defence. Vou, todavia, procurar defender uma tese polémica sobre esta matéria, tese essa assente, essencialmente, em quatro pilares, a saber: 1º - a adopção de estruturas flexíveis faz, plenamente, sentido em certas sub-áreas de intervenção como, por exemplo, a luta contra o terrorismo e a luta contra a criminalidade; 2º - o sistema de soft-defence (no sentido da defesa preventiva) mais eficaz consiste na acção subversiva; 3º - sem prejuízo do apoio complementar da soft defence, continua a apresentar-se fundamental a manutenção de estruturas de hard defence, como instrumentos de dissuasão. 4º - Na actual situação, se, porventura vier a agravar-se a crise existente na zona do euro, com eventuais divisões profundas na Europa e regresso a experiências inspiradas em modalidades de nacionalismo exacerbado ou de populismo radical, existe o perigo de aproveitamento das novas vulnerabilidades por potências de vocação hegemónica e de concepção de ocupação territorial associada ao exercício do poder imperial.

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2. Da Soft Defence Se centrarmos a nossa análise na luta contra o terrorismo e contra a criminalidade, contribuições analíticas como as de KOLTKO-RIVERA e HANCOCK (2004) ou, ainda, como as de HUDSON (1999) apresentam-se da maior relevância. Para os autores e, mais especificamente, no que concerne à luta contra o terrorismo, importa considerar três facetas distintas: - o anti-terrorismo; - o contra-terrorismo; - a gestão de danos. Para a compreensão destas facetas diferenciadas apresenta-se essencial ter em conta o papel da Psicologia, atendendo-se, nomeadamente, aos seguintes domínios do conhecimento: - psicologia social; - psicologia de raiz cultural; - Psicologia Educacional; - Psicologia do Consumo; - Psicologia Ambiental. - Psicometria (entendida como medição de funções, faculdades e manifestações psíquicas). - HF / E – i.e., Factores Humanos e Ergonomics. Na acção anti-terrorista, importa ter em conta o comportamento do factor humano1 (incluindo a função-reacção previsível do terrorista), o meio-ambiente (enquadramento geral), o aprofundamento do conhecimento dos factores condicionantes da acção terrorista e a indispensabilidade do reforço do trabalho em conjunto e em rede. No contra-terrorismo, convirá salientar a acção preventiva e a capacidade de bloqueamento do seu desencadeamento, na fase inicial, ou de interrupção do eventual ciclo de acção terrorista. Tal significa que deve procurar-se impedir o desencadeamento de iniciativas (terroristas ou criminais), numa primeira linha de intervenção, ou, então, de se conseguir fechar o ciclo, i.e., de se atingir o objectivo pretendido, numa última linha. Na limitação / controle de danos (gestão das suas consequências), convirá dar particular relevância à estabilização da situação que venha a verificarse, a posteriori, apoiando-se as autoridades civis, bem como a mecanismos de evacuação, à promoção da resiliência das populações e ao apoio às vítimas2. 1 2

STOUT, CE – The Psychology of Terrorism, 14 vols), Praeger, 2002. DANIELI, Y; ENGDAHL, B; SCHLENGER, W.C. – The psychosocial aftermath of terrorism, American Psychological

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Convirá, todavia, salientar que a forma mais eficaz de implementação de uma estratégia de soft defence está na aposta na subversão. A primeira regra de quem aposte na Intelligence como modalidade de soft defence deverá consistir em saber colocar-se na posição do opositor, prevendo as suas reacções e antecipando o seu comportamento. O comportamento humano nem sempre é ditado pela razão, havendo uma componente psicológica muito importante na explicação dos fenómenos económicos, políticos e sociais. Essa componente psicológica conduz, em muitos casos, a comportamentos de imitação que designo de comportamentos FTL – Follow the leader. O mecanismo de subversão mais eficaz está na criação de desconfiança em relação ao agente de referência ou leader, construindo-se zonas de clivagem endógenas, desestabilizadoras do núcleo central da organização, gerando-se, por essa via, uma certa incapacidade da acção interventiva. Como já afirmei anteriormente3, quanto mais rígidas forem as sociedades, mais fácil se torna criar condições potenciadoras de zonas de clivagem, desde que se perca o medo e se consiga fazer evoluir as estruturas organizativas internas para formas preliminares de liberalização e de descentralização. De facto, o que se apresenta difícil é dar o primeiro passo, i.e., criar condições para formas de flexibilização do relacionamento entre membros ou agentes integradores da comunidade em que se opera. Qualquer flexibilização que atenue o clima de terror permitirá iniciar o indispensável processo subversivo, mas, para tal, apresenta-se da maior importância a motivação dos interventores. E não é com um paradigma em crise – que deveria servir de modelo orientador dos interventores – que o agente subversivo estará, necessariamente, motivado. Logo, a acção subversiva de sucesso implica que o modelo de referência que inspira os seus agentes não esteja mergulhado numa profunda crise sistémica de consequências imprevisíveis. Um outro aspecto a considerar tem que ver com o facto de a soft defence – nas mais diversas versões, incluindo forças flexíveis de transporte rápido e adaptáveis aos mais diferentes tipos de terreno – não dispensar a hard defence. 3. Das novas ameaças Existe o perigo iminente de um acréscimo das vulnerabilidades existentes no que se convencionou designar de Ocidente, nomeadamente ao nível dos países da U.E. 3

SOUSA, António Rebelo de – Tendências actuais da Espionagem Económica, Ver. Segurança e Defesa, nº 7, Set. 2008.

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A crise da zona do euro tem vindo a agravar-se, estando a sua raiz fundamental no facto de não existir uma União Monetária completa, ao contrário do que sucede nos EUA. Não existe um Orçamento Europeu forte, nem tão pouco uma coordenação de políticas económicas e financeiras na Europa. O BCE – Banco Central Europeu está condicionado em termos de possibilidade de intervenção na aquisição de dívida soberana dos Estados em situação de dificuldade. O FEEF – Fundo Europeu de Estabilização Financeira não dispõe dos meios necessários à ultrapassagem da actual situação crítica. Os fundos estruturais apresentam-se insuficientes e o próprio Pacto de Estabilidade deveria sofrer ajustamentos. A ortodoxia monetarista e o radicalismo de alguns supply siders levaram a que certos sectores passassem a certidão de óbito ao neo-Keynesianismo, com base nos seguintes argumentos sagrados: - é um modelo não aplicável às pequenas economias abertas; - é um modelo que privilegia o SBNT – Sector de Bens Não Transaccionáveis, em detrimento do SBT – Sector de Bens Transaccionáveis, o qual se apresenta de maior relevância para uma estratégia de crescimento bem sucedida; -é um paliativo, contribuindo para inflacionar a economia e desresponsabilizar os políticos; - é um modelo que conduz a um estado sobre-dimensionado, ao excesso de burocracia, enfim, à ineficiência. Sucede que, mesmo em economias abertas, não se apresenta correcto afirmar-se que o efeito multiplicador do investimento é, necessariamente, nulo, pois tal só faria sentido se a propensão marginal a consumir produtos nacionais fosse igual a zero. Acresce ao que se disse que, se se pensar na implementação de uma política macroeconómica consistente ao nível da EU, estaremos confrontados com uma economia fechada, com moeda própria e que poderia passar a ter uma política orçamental própria relevante. Por outro lado, a ideia de que o modelo Keynesiano privilegia, necessariamente, o SBNT e a adopção de combinações trabalho-intensivas não corresponde à verdade. Keynes jamais afirmou que o investimento público teria que ser canalizado para o SBNT e para sectores utilizadores de combinações trabalho-intensivas. O que não significa que, em determinados condicionalismos históricos, políticos e sociais, tal não tivesse sucedido, mas trata-se de algo, totalmente, diferente. Aliás a tese de acordo com a qual se apresenta fundamental apostar no SBT tem aspectos, altamente, positivos, mas apresenta uma importante debilidade.

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De facto, se se pretender contribuir para o crescimento da economia, para o aumento da produtividade e para a expansão das exportações importa apostar no SBT. O SBT pode ajudar a acelerar o crescimento da economia, a incrementar a produtividade e a melhorar o desequilíbrio externo, mas não soluciona, necessariamente, o problema do desemprego. Tal explica a insensibilidade presente da Lei de OKUN ao aumento do nível de actividade económica. É o que sucede, actualmente, com a economia americana a crescer ao ritmo de 2,5 – 2,6% ao ano e com uma taxa de desemprego de cerca de 9%. O problema está no facto de o SBT ser capital-intensivo e, por conseguinte, não gerar todo o emprego necessário à absorção da mão-de-obra excedentária liberta pelo SBNT. Daí que, concomitantemente com a expansão do SBT, se torne indispensável algum crescimento do SBNT. Quanto à questão dos paliativos, os mesmos são relevantes na medicina como na política económica, influenciando a componente expectativas do investimento, condicionando o comportamento dos agentes económicos. Em boa verdade, apresenta-se mais fácil introduzir reformas no Ensino, na Saúde e na Administração Pública se a taxa de desemprego não atingir valores elevados e se não existirem sectores da população a viver em situação de miséria extrema do que na situação contrária, ainda que a obtenção de patamares existenciais mais elevados tenha comportado algo susceptível de ser considerado artificial. Keynes e os neo-Keynesianos responsáveis nunca advogaram a tese de que os défices orçamentais são sempre desejáveis e que os Bancos Centrais devem estar sempre a emitir moeda, facilitando a vida a governos despesistas. Keynes só era favorável ao financiamento de défices orçamentais pelos Bancos Centrais em situação de para-recessão ou de recessão, precisamente porque entendia que, em certas circunstâncias, o objectivo de controle da inflação se apresentava menos relevante do que o objectivo de crescimento económico e de combate ao desemprego. Finalmente, um Estado regulador que intervém, em certas circunstâncias, não tem que ser sobredimensionado, nem tão pouco ineficiente, como aliás sucede em algumas Sociedades do Norte da Europa. Muito pelo contrário, às vezes – até pela força das circunstâncias – são partidos liberais – conservadores que aumentam o peso do Estado na economia, agravando a carga fiscal e intervindo directamente em certos sectores como o financeiro. Confundir neo-Keynesianismo com socialismo radical é, por conseguinte, uma profunda manifestação de ignorância. Mas, minhas senhoras, meus senhores, regressando à crise europeia, tem prevalecido a tese de que o BCE não deveria intervir directamente na aquisição

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de dívida soberana, recorrendo-se à criação de um Fundo de Estabilização que deveria assegurar o financiamento dos Estados rm situação difícil. O FEEF, o MEEF e o futuro Fundo de Estabilização Permanente não dispõem dos recursos financeiros indispensáveis à implementação de programas de apoio a países com a Itália, a Espanha e a Bélgica. Se houver contaminação da crise grega a estes países, a França estará em dificuldades dentro de quatro meses e a própria Alemanha estará em recessão em seis ou sete meses. A zona do euro poderá implodir, existirão profundas divisões na Europa, alguns países regressarão mesmo a modelos de substituição de importações, proteccionistas, de inspiração nacionalista exarcebada. A Europa estará, profundamente, enfraquecida, aumentando as suas vulnerabilidades a uma agressão externa. E, em termos de forças convencionais, existirá um grande desequilíbrio entre a Europa Ocidental e uma importante potência (assente num bloco de poder hegemónico e com efectiva unidade de comando), a qual poderá recuperar parte das fronteiras do extinto Império Soviético. Mais, a haver uma crise sistémica na Europa, ela poderá afectar a economia americana e a economia mundial, não sendo, porventura, viável, na oportunidade, avançar-se para um Plano Marshall II. Daí que importe não descurar a hard defence, entendida como Sistema Defensivo construído a partir de infraestruturas militares pesadas com capacidade efectiva de dissuasão do potencial inimigo. Mesmo pequenos países como Portugal, privilegiando a soft defence no combate ao terrorismo e à criminalidade, devem ter a sua quota-parte de participação na hard Defence. 4. Das conclusões Estamos numa encruzilhada. Existem similitudes entre o momento que vivemos e a década de 30 do século passado. A tendência para uma recessão ou para uma estagnação prolongadas, a emergência das teses proteccionistas e de fenómenos de nacionalismo exacerbado, tudo aponta para a existência de traços comuns. A Europa Democrática e Livre se pretende sobreviver como tal precisa de enveredar pelo reforço da vertente federalista. Precisa de um Orçamento mais forte. Precisa de um Ministro das Finanças. Precisa de autorizar o Banco Central Europeu a comprar dívida soberana dos Estados Membros. Precisa de reforçar os fundos estruturais.

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Precisa de ajustar o Pacto de Estabilidade, não considerando a parte nacional num investimento comparticipado por fundos estruturais, para efeitos do critério do défice. E precisa de conciliar a aposta na Soft Defence – incluindo na subversão das organizações que contra ela conspiram - com a manutenção de uma Hard Defence verdadeiramente dissuasora. Por vezes, aqueles que se dizem os grandes defensores do sistema de economia de mercado, enveredando pela mais estreita ortodoxia, fazem lembrar um velho ditado americano: O teu maior inimigo é o teu maior amigo. O que é certo, isso sim, é que a Europa e o próprio Sistema Financeiro têm que passar por reformas, se se pretender que o Paradigma da Liberdade, da Democracia e da Livre Iniciativa, na tolerância e na solidariedade, continue a ter a dominância do presente no Futuro. Como diria o Presidente Roosevelt, temos que fazer reformas, se queremos conservar. 5. Bibliografia DANIELI; ENGDAHL; SCHLENGER – The psychosocial aftermath of terrorism, American Psychological Association, 2004. HUDSON, R. A. – The sociology and psychology of terrorism: who becomes a terrorist and why?, Washington, DC, Library of Congress, Federal Research Division, 1999. KOLTKO-RIVERA; HANCOCK – Psychological Strategies for the Defence Against Terrotism, NATO, PSG, Winter Park, Florida, Out. 2004. SOUSA, António Rebelo de – Tendências actuais da Espionagem Económica, Ver. Segurança e Defesa, nº 7, Set. 2008. STOUT, CE – The Psychology of Terrorism, IV vols, Praeger, 2002.

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Inquietações com o Sistema de Defesa Antimísseis na Europa

Luís Eduardo Saraiva Oficial do Exército na reserva e Doutor em Relações Internacionais na Universidade Lusíada de Lisboa. email: luis.saraiva@defesa.pt

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Resumo: Estará em curso uma nova época de Guerra fria? Os russos mostramse apreensivos quanto à hipótese de o sistema AEGIS e as novas iniciativas de dissuasão nuclear da NATO se estarem a posicionar visando a Rússia como alvo primário e não, de acordo com o discurso oficial norte-americano, o Irão ou quaisquer Estados-párias. Este texto argumenta que a NATO e os EUA ainda não deram suficientes garantias de que a Rússia não é o alvo dos novos sistemas, o que poderá levar a uma nova era de corrida aos armamentos e quiçá, proporcionar o ambiente propício ao desenvolvimento de uma nova era de Guerra-Fria. Palavras-Chave: Dissuasão nuclear / Rússia / sistema antimísseis / Irão Abstract: Is a new Cold War being prepared? The Russians are concerned with the hypothesis that the AEGIS system and the new NATO initiatives being deployed are directed to Russia as a primary target and not Iran or any other rogue state, in accordance with the indications of the American authorities. This paper argues that NATO and the USA did not give yet any guarantee that Russia is not the target of the new systems, what can lead to a new arms race and maybe would develop the conditions similar to those of the Cold-war Era. Key-Words: Nuclear deterrence / Russia / Antimissile systems / Iran

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1. Introdução A recente decisão dos EUA de instalarem um sistema antimísseis na Europa, em que a República Checa, a Polónia ou a Roménia, para além de outras possibilidades, seriam os hospedeiros, sobressaltou e irritou a Rússia e levou a um amplo debate que ainda decorre. No entanto tal sistema de armas faz parte do cenário europeu já há algumas décadas e pareceria que nada de novo se estaria a desenrolar. Adicionalmente, a Rússia já não seria o adversário perante o qual seria necessário levantar armas, tendo-se mesmo mostrado disponível, após convite dos Estados Unidos e da NATO, para colaborar e participar em sistemas comuns de comando e controlo. Entretanto também a Turquia já se mostrou disponível para receber parte do sistema, o que dá força ao argumento Norte-americano de que o sistema visaria ameaças nucleares emergentes vindas de Estados párias do Médio Oriente. No entanto, apesar de os EUA continuarem a afirmar que tal dispositivo se destina essencialmente a proteger a Europa de ataques nucleares de surpresa lançados de países como o Irão, este argumento parece não ter convencido muitos daqueles atores do sistema internacional que virão a ficar ao alcance destas armas. A Rússia tem tentado apresentar evidências de que os EUA estarão a rodear os vastos territórios da Federação Russa com um sistema de mísseis que visam o seu território e não quaisquer outras potências. A argumentação deste trabalho é que, embora existam razões que assistem aos dois lados, o que fica por estabelecer claramente é se o alvo último dos sistemas antimísseis é ou não a Rússia ou então outras potências emergentes com interesse na Europa ou com vontade de alterarem o regime atual, incluindo países que ameaçariam a paz mundial através da promoção do desenvolvimento de armas nucleares, como o Irão. 2. Antecedentes Quais foram as condições que levaram à renovação da defesa antimíssil na Europa? Durante a Guerra Fria, as forças nucleares da NATO tinham jogado um papel central na estratégia de resposta flexível da Aliança. Para evitar um novo grande conflito na Europa, as armas nucleares foram integradas na estrutura

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global de forças da NATO, e a Aliança manteve uma variedade de planos de ataque que poderiam ser executados com reduzido pré-aviso. Este papel englobava altos níveis de prontidão e posturas de alerta de reação rápida em partes substanciais das forças nucleares.1 A validade do propósito desta Aliança mostrou-se assim claramente durante todo o período da Guerra Fria. Após a Guerra fria o papel da NATO e nomeadamente das suas forças nucleares parecia menos claro. Mas a Cimeira de Washington de Abril de 1999, notando embora que o clima de segurança Euro-Atlântico tinha mudado radicalmente, sublinhava na altura o advento de novos desafios, como a eventual proliferação de armas de destruição maciça, o que levava necessariamente a relevar de novo o papel da NATO e a determinação de se manterem as capacidades militares necessárias para cumprir a panóplia completa de missões da Aliança.2 Assim, evitou-se o desmantelamento de todo o arsenal nuclear, embora tivessem decorrido grandes reduções, acompanhadas de iguais iniciativas pela Federação Russa. Adicionalmente a Cimeira de Lisboa de 2010 parece ter reencaminhado os destinos da NATO, depois de uma fase de grandes indecisões quanto ao seu futuro. Assim também a sua componente de dissuasão nuclear foi alvo de grandes mudanças, refletidas nos conteúdos da Declaração da Cimeira de Lisboa.3 Aí se afirma que o novo conceito estratégico sublinha o compromisso da Aliança de assegurar as capacidades necessárias para deter qualquer ameaça à segurança das populações e territórios dos países aliados. Para essa finalidade, a NATO manterá um conjunto de forças convencionais, nucleares e de defesa antimíssil em que esta se tornará parte integral da postura de defesa global da Aliança. O objetivo será incrementar a dissuasão como um elemento crucial da Defesa coletiva, contribuindo para segurança da Aliança, que esta considera indivisível.4 Apesar de tudo o que foi decidido e aprovado em Lisboa, o Conselho do Atlântico Norte foi também incumbido de continuar a rever a postura global da NATO no que concerne à dissuasão e defesa contra o espetro geral de ameaças que se poderiam apresentar perante a Aliança, isto tendo em consideração as mudanças constantes no ambiente internacional de segurança. A revisão é solicitada a todos os aliados na base de uma postura de dissuasão e de defesa como acordado no Conceito Estratégico, tendo em consideração a proliferação das Armas de Destruição Massiva e mísseis balísticos. Deverão ser incluídas aqui as capacidades estratégicas da NATO consideradas necessárias, incluindo a nuclear5, e a defesa antimísseis e outros meios de dissuasão e defesa estratégicas.6 NATO Handbook. 2001. NATO Office of Information and Press. Brussels, p. 53 Idem. 3 NATO Lisbon Summit Declaration. 2010. [http://www.nato.int/cps/en/natolive/official_ texts_68828.htm?mode=pressrelease, visitado em 6 de Dezembro de 2011]. 4 Idem. 5 Isto aplica-se unicamente às armas nucleares atribuídas à NATO. 6 Idem. 1 2

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O início do presente sistema de defesa antimíssil da NATO Em 2001 era anunciada a formação do Team Janus, um conjunto de empresas, entre as quais a Lockheed Martin Missiles and Fire Control e uma série de outras companhias internacionais ligadas à indústrias aeroespacial e de defesa. Este consórcio foi encarregue de elaborar um estudo sobre a possibilidade de se estabelecer uma NATO Theatre Ballistic Missile Defence (TBMD), um sistema de defesa contra mísseis balísticos. Estavam também ligadas a estas empresas outras empresas fornecedoras de serviços de apoio com origem na Grécia, na Espanha, na Holanda, na Turquia e nos EUA. 7 Mas embora o consórcio só tivesse visto a luz do dia em 2001, a necessidade do estudo de que foi incumbido já anteriormente tinha sido estabelecida no âmbito da política da NATO relativa à expansão do sistema de Defesa Aérea, no que era conhecido como a Extended Air Defence. Assim, em 1993 o Conselho da NATO aprovou um quadro conceptual para a extensão da defesa aérea, necessidade identificada pelo Comité da Defesa Aérea, para fazer face aos mísseis balísticos táticos. Quatro anos depois, em 1997, o Comité Militar da NATO aprovava uma Necessidade Operacional Militar para uma TBMD. Em 1998 a Conferência de Diretores Nacionais de Armamento aprovou um plano de programa para a aquisição de uma TBMD que respondesse ao requisito identificado. Partir destas iniciativas começou a delinear-se um sistema cujo natureza e objetivo os resultados da Cimeira da NATO em Lisboa, e o tratado com este nome, ajudariam a compreender. A Cimeira de Lisboa A Cimeira de Lisboa, em Novembro de 2010, vem reforçar e sublinhar as características da NATO como uma aliança nuclear, através do novo Conceito da Aliança, aí aprovado: enquanto houver armas nucleares no mundo, a NATO continuará a ser uma Aliança Nuclear. Definindo as três tarefas fundamentais da NATO – defesa coletiva, gestão de crises e segurança cooperativa – a Estratégia reforça a ideia de que a Aliança deterá e se defenderá de qualquer ameaça de agressão e contra quaisquer desafios emergentes à segurança que possam pôr em causa a segurança fundamental dos aliados, seja isoladamente seja à Aliança como um todo. 7

Cf. Team Janus Formed to Compete for NATO TBMD Feasibility Study Contract - Lockheed Martin Leads International Team (DALLAS, TX, April 2nd, 2001): The Team Janus consortium is composed of the following companies: Lockheed Martin Corporation acting through Lockheed Martin Missiles and Fire Control (U.S), Aerospatiale Matra Missiles (France), Alenia Marconi Systems (UK and Italy), BAE SYSTEMS, EADS/LFK-Lenkflugkorpersysteme GmbH (Germany) acting also for Military Aircraft, Ground Radars and ASTRIUM GmbH, Matra-BAe Dynamics (France and UK), and TRW Space and Missile Systems Division (U.S.). Craig Vanbebber, Senior Manager - Media & Trade Relations. 972-603-1615. [http://www.lockheedmartin.com/news/press_releases/2001/ TeamJanusFormedCompeteForNATOTBMDFe.html, página visitada em 6 de Novembro de 2011].

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A Cimeira de Lisboa também caracteriza um novo ambiente de segurança que dá novas formas à postura da NATO. Assim, a NATO garantirá segurança contra a ameaça de mísseis balísticos8, mas também contra o terrorismo, a instabilidade ou conflitos fora do espaço euro-atlântico, a ataques cibernéticos, a quebras no fornecimento de energia e ainda a graves crises ambientais ou energéticas. O texto da declaração de Lisboa afirma que as ameaças às populações, territórios e forças europeias da NATO, colocadas pela proliferação de mísseis balísticos está a aumentar. Como a uma defesa antimíssil constitui parte de uma resposta alargada a essa ameaça, os aliados decidiram que a Aliança desenvolveria uma capacidade de defesa antimíssil, como forma de fazer face a essa ameaça. Para este fim decidiram que fosse expandido, para além da proteção das forças NATO no terreno, o alcance das capacidades de Comando, Controlo e Comunicações dos programas da Defesa antimísseis balísticos designada por Active Layered Theatre Ballistic Missile Defence (ALTBMD), para incluir também as populações e território. Foi nesse sentido que a Aliança deu as boas-vindas à iniciativa Norte-Americana European Phased Adaptive Approach (APAA) como uma contribuição voluntária para a arquitetura de defesa antimísseis, tal como acolherá outras contribuições voluntárias dos aliados. Assim foi o Conselho do Atlântico Norte encarregue de desenvolver até março de 2011, no âmbito da reunião dos ministros da defesa, acordos sobre mecanismos de consulta, de comando e de controlo sobre defesa antimísseis. Adicionalmente o Conselho ficou encarregue de gizar um plano de ação sobre as fases necessárias à implementação da capacidade de defesa antimíssil a ser apresentado na reunião de ministros de defesa em Junho de 2011. O texto do novo conceito reafirma clara e repetidamente que a NATO é uma aliança nuclear e a dissuasão, baseada numa combinação de capacidades nucleares e convencionais, permanece o fator central da sua estratégia geral. Assim, a garantia suprema de segurança dos aliados é dada pelas forças estratégicas nucleares da Aliança. É por isso que o novo texto de Lisboa sublinha a vontade de se desenvolver a capacidade de defesa contra ataques com mísseis balísticos como elemento crucial da defesa coletiva. No entanto procurará ativamente promover a cooperação com a Rússia e outros parceiros. Na verdade, embora o fim da Guerra Fria tenha levado a uma grande redução do número de armas nucleares estacionadas na Europa, a NATO acabou por reafirmar em Lisboa que procurará criar as condições para continuar o processo de mais reduções no futuro. Esta postura parece reafirmar que a NATO não será uma ameaça para a Federação Russa, uma das mensagens mais claras e diretas do tratado de Lisboa. Pelo contrário, esse texto afirma que a NATO continuará a envidar esforços para que seja desenvolvida uma verdadeira parceria estratégica 8

NATO Lisbon Summit Declaration. 2010. [http://www.nato.int/cps/en/natolive/official_ texts_68828.htm?mode=pressrelease, visitado em 6 de Dezembro de 2011]

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com a Rússia. 3. Quem quer o sistema de defesa antimíssil? Quem quer o sistema antimísseis na Europa? Sem dúvida os novos aliados de Leste, pois querem garantir a segurança contra uma Rússia que ainda os amedronta. Esta projeta uma sombra demasiado grande sobre os antigos satélites da ex-União Soviética. Assim, não é despiciente afirmar que esses países preferem acolher-se à sombra de uma aliança de defesa que garantiu a liberdade dos seus aliados durante meio século. No entanto, outros países, por uma razão ou por outra, também são adeptos do novo sistema. E não são todos europeus ou da NATO. Os argumentos dos defensores dos novos sistemas de defesa antimíssil passarão um pouco por aí, o que também justificará algumas das razões que levaram à decisão de certos países europeus acolherem parte dos equipamentos de defesa antimíssil. No entanto, ou por causa dessas mesmas razões, são de colocar em cima da mesa algumas questões. A primeira diz respeito à disponibilidade da Turquia em acolher parte do novo sistema antimísseis, pondo fim a um período de birra com os EUA, que se terá iniciado com a recusa de autorização de utilização do seu território e espaço aéreo para os EUA acederem ao Iraque. Claro que esta disponibilidade da Turquia constitui também um fator de poder para este país, na medida em que apoia as suas aspirações regionais. Apesar disso e mesmo por causa disso, poder-se-á garantir que a Turquia estará sempre dentro de todos e quaisquer sistemas de defesa da Europa, como o presente sistema de defesa antimísseis? Outra questão prende-se com a relevância do novo sistema para o posicionamento regional de Israel. Assim, que pensará Israel da nova estrutura antimíssil? Servirá os seus interesses de defesa, constituindo-se como um muito importante reforço da sua própria capacidade de dissuasão na região? Uma outra questão prende-se com as inquietações misturadas com esperança que advêm da agitação dos povos do Magrebe e Mashreque. O flanco Sul da Aliança Atlântica nunca mereceu muita importância, especialmente durante a Guerra-fria quando o adversário se identificava claramente a Leste e noutros pontos do planeta só se desenrolavam conflitos por interposta pessoa. Assim é de questionar se a primavera árabe criará uma zona de amizade e segurança no flanco Sul da NATO, potenciando-se nesta região a Parceria para a Paz (PfP) promovida desde o final da Guerra fria pela NATO? Uma outra questão prende-se com o novo vigor da Espanha no seio da NATO, que se materializou nos últimos tempos com a sua aceitação de receber na base de Rota, no Sul espanhol, parte do sistema antimíssil norte-americano. A Espanha aparece assim, cada vez mais, como um aliado relevante no flanco Sudoeste, em substituição de Portugal, cujo Comando NATO instalado no seu

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território vai perdendo cada vez mais importância, com tendência a tornar-se irrelevante. Vai-se assim materializando uma aspiração atlantista (e também mediterrânica9) de Espanha, que se começou a delinear desde a sua adesão à NATO na década de 1980. Do ponto de vista dos Aliados a Espanha é uma aposta melhor que Portugal, contando com uma posição geográfica mais central em termos europeus, dispondo de melhores recursos de defesa e politicamente mostrando-se mais disponível para se empenhar nos compromissos de defesa coletiva. É de salientar que a grande vantagem de Portugal – que levou mesmo o país ser convidado para uma aliança de democracias na altura em que estava submetido a um sistema político autoritário – era os EUA disporem de uma base a meio do Atlântico, os Açores, quando as capacidades logísticas e a tecnologia da altura não permitiam as autonomias atuais dos meios estratégicos. Tornouse irrelevante esta vantagem o que, conjugado com a exiguidade das suas capacidades militares e o seu diminuto contributo para o orçamento da Aliança, acabaram por sublinhar as vantagens comparativas de Espanha. 4. Quem se opõe? Não são muitas as vozes que se levantam contra as novas estruturas antimísseis na Europa. Dentro do espaço geográfico que se chama Europa, a Rússia constitui incontornavelmente aquela potência que apresenta maiores dúvidas sobre a bondade dos sistemas, seja o AEGIS norte-americano seja a sua versão NATO. Na Declaração formal da Cimeira de Lisboa, a Aliança convidou a Rússia a intensificar a sua cooperação em áreas onde existissem interesses comuns, inclusive no desenvolvimento da capacidade antimíssil para proteger populações, territórios e forças europeus. A Rússia foi mesmo convidada a voltar a participar em exercícios conjuntos no âmbito da defesa antimíssil. Dando as boas vindas à conclusão do novo tratado START, a NATO transmitiu a mensagem de que esperava da Rússia passos que conduzissem à sua ratificação e implementação. Com as alterações do ambiente de segurança desde o fim da Guerra-fria, foi reduzido drasticamente o número de armas nucleares estacionadas na Europa, esperando a NATO que tal processo pudesse continuar no futuro.10 Bom, isto foram as declarações em Lisboa, diferente foram os passos dados, segundo se queixavam as autoridades russas. Os receios e desconfianças da Rússia têm sido uma constante em todo o processo de transformação da NATO e foram incrementados com as recentes decisões relativas ao sistema antimísseis. Mas os argumentos em favor do sistema têm apontado noutras direções a justificação para implementação do sistema. A Rússia, Conforme escreve Loureiro dos Santos: é outro ator estratégico 9

Como muito bem notou José Fânzeres em recente conversa com o autor sobre este tema. NATO Lisbon Summit Declaration. 2010. [http://www.nato.int/cps/en/natolive/official_ texts_68828.htm?mode=pressrelease, visitado em 6 de Dezembro de 2011].

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que, presentemente, convém considerar ao mesmo tempo que a Europa (A outra Europa). Saída da implosão da União Soviética, a sua situação aparente o percurso de uma longa transição, no fim da qual os russos pretenderão readquirir uma posição mundial de grande afirmação: Porventura, semelhante à que a União Soviética atingiu no seu auge ou, pelo menos, retomar um papel de primeiro plano no equilíbrio de forças europeu, como já teve no passado. 11 As pretensões regionais do Irão Os sistemas antimísseis que a NATO (nomeadamente os EUA) vem desenvolvendo visam formalmente fazer face a ameaças que se perfilam no horizonte, como muito claramente parece ser o caso do Irão. Este país assinou em 17 de Dezembro de 1974 um acordo com a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) sobre garantias (salvaguardas) relativas ao tratado de não proliferação de armas nucleares12, onde se comprometia a cooperar com a Agência para facilitar a implementação das salvaguardas providenciadas por aquele documento. Na verdade, parece que tem sido usada por aquele país toda uma série de artimanhas para se esquivar à supervisão oficial e legal da AIEA sobre os projetos iranianos em desenvolvimento relacionados com o enriquecimento de urânio. Por outro lado, o Irão tem aperfeiçoado tecnologia de foguetes, incluindo os estudos de adaptação dos sistemas da Coreia do Norte. Com uma população de mais de 69 milhões de habitantes e sendo um dos países com mais importantes reservas de petróleo e de gás natural, além de carvão e urânio, o país tem ambições hegemónicas regionais, rivalizando naturalmente com Israel e com a Turquia, para além da Arábia Saudita. Segundo relatório da AIEA de 200913 as últimas estatísticas do Ministério da Energia indicavam reservas de petróleo de cerca de 138, 22 mil milhões de barris de petróleo e de 28,13 biliões de metros cúbicos de gás em 2006. As reservas de gás dão ao Irão, teoricamente, um período de extração de gás de 166 anos, ao nível de exploração atual. Também as reservas de carvão são estimadas em 11 mil milhões de toneladas, embora a capacidade de exploração, com a tecnologia atual, se situe em cerca de 8,5%. Os recursos em urânio não são completamente conhecidos, pois anteriormente eram considerados escassos. A primeira tentativa da AIEA de conhecer as atividades de exploração contabilizou a existência de cerca de 3000 toneladas de urânio já explorados. No entanto os cálculos apontam para a existência de cerca de 20.000 a 30.000 toneladas de U308, no subsolo iraniano. Isto 11

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General Loureiro dos Santos. 2003. A Idade Imperial – a Nova Era. Publicações Europa-América: Mem Martins, p. 115. Cf. Doc. Em www.iaec.org/Publications/Documents/Infcircs/Others/Infcir214.pdf, consultado em 14Nov11. www-pub.iaea.org/MTCD/Publications/PDF/CNPP2009/countryprofiles/Iran/Iran2008.htm, em 14 Nov11.

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implica que o país terá reservas suficientes para fornecer o minério necessário no futuro para as suas centrais nucleares. A situação da energia nuclear iraniana teve diversas fases, desde que foi iniciada em meados dos anos 1970. Um grande programa de energia nuclear foi iniciado em meados de 1970 com o início da construção de duas centrais com 1294 megawats de potência em Busher, que foi suspensa em 1979. O programa recomeçou em 1991, após acordo com a China para o fornecimento de duas unidades de 300 MW de potência. Este acordo foi confirmado em 1993 mas nunca concretizado. Em 1992 o Irão tinha feito um acordo com a Rússia visando a utilização pacífica de energia atómica, o que resultou na decisão de completar a unidade n.º 1 de Busher com um reator de tipo WWER-1000.14 O Departamento iraniano responsável pelas centrais nucleares está a levar a cabo um conjunto de atividades incluídas no seu 4.º Plano Quinquenal em que se destaca a aprovação do plano para a construção de uma capacidade total de geração de energia nuclear de 20.000 megawatts até 2025. Atualmente, o Departamento iraniano responsável pelas centrais nucleares está a levar a cabo um conjunto de atividades incluídas no seu 4.º Plano Quinquenal em que se destaca a aprovação do plano para a construção de uma capacidade total de geração de energia nuclear de 20.000 megawatts até 2025. O Irão dispõe de uma instalação de tratamento de urânio que produz algumas das fases do material combustível nuclear, que pode ser utilizado para a produção de energia e também para reatores de pesquisa. Os serviços de gestão de resíduos estão sob a responsabilidade da organização iraniana de energia nuclear. De tudo o que acima se assinalou, deduz-se que o Irão tem a capacidade para se tornar um dos grandes fornecedores de energia de origem nuclear a nível mundial, desenvolvendo também o uso de centrais nucleares, as atuais de origem russa. Assim, não é despicienda a cautela que a Comunidade Internacional põe sobre a interpretação das verdadeiras intenções do Irão para o futuro. Conforme assinala reis Rodrigues, num artigo publicado em 16 de Novembro no Jornal Defesa e relações Internacionais (on-line)15 Não há qualquer consenso sobre as medidas que devem ser tomadas contra o Irão em face de novas evidências a contrariar frontalmente a tese de Teerão de que o programa nuclear iraniano visa exclusivamente fins pacíficos (…) Se esta acabar por se verificar (…) crescerá o risco de um confronto nuclear bilateral entre Israel e o Irão.

5. A Guerra fria não acabou? 14 15

Dados da IAEA. Alexandre Reis Rodrigues. 2011. Que deve ser feito em relação ao Irão? In Jornal de Defesa e Relações Internacionais [http://www.jornaldefesa.com, visitada em 17 de Novembro de 2011].

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Finalmente analisemos brevemente o cenário atual de forma a vislumbrar se existe ou não uma tendência para se regressar às tensões de política global que caracterizaram o período denominado Guerra-fria. É de notar, de qualquer modo, que alguns autores sempre usaram de cuidado nas afirmações a propósito do fim desse período. Ao terminar o seu livro (publicado em 2000 na sua verão original), Compreender os Conflitos Internacionais, Joseph S. Nye notava que A Guerra Fria pode ter terminado, mas não a era das armas nucleares e não convencionais.16 A NATO, na Cimeira de Lisboa, convidou formalmente a Rússia a participar nos sistemas de comando e controlo da defesa antimíssil na Europa. Este gesto é uma forma de demonstrar as intenções da Aliança de levantar um sistema não contra a Rússia, mas sim contra ameaças de diferente origem.17 No entanto, autores defensores de argumentos mais fortes, onde se poderá talvez detetar algum anti-americanismo, como F. William Engdahl, encontram aspetos inquietantes no processo de intenções da Aliança e dos EUA. Conforme nota Engdahl, a maior parte do mundo civilizado estará completamente inconsciente de que o mundo está a marchar inevitavelmente para uma cada vez mais provável guerra nuclear preventiva. E não se tratará do confronto entre Irão e Israel, mas sim da decisão de Washington e do Pentágono de encurralar Moscovo com o que é eufemisticamente chamado – segundo afirma – Defesa contra Misseis Balísticos (BMD).18 De qualquer modo, enquanto os EUA e a NATO renovam sistemas de mísseis na Europa, na Polónia, Roménia, Bulgária e na Turquia, com apoios em Espanha e noutros pontos do globo, a Federação Russa declara-se, nas palavras do Presidente Medvedev, preparada para instalar os seus mísseis nas fronteiras com a UE, entre a Polónia e a Lituânia, e, talvez mesmo, no seu flanco Sul, junto à Geórgia e à Turquia. Anunciou mesmo na televisão russa que A Federação Russa instalará a Oeste e a Sul do país modernos sistemas de armas que poderão ser utilizados para destruir a componente europeia do sistema de mísseis norteamericanos19. Um desses passos poderia ser a instalação dos sistemas de mísseis Iskander em Kaliningrado, enclave russo dentro do espaço UE. Para além destas declarações, o presidente russo terá, segundo Engdahl, Joseph S. Nye. 2002. Compreender os Conflitos Internacionais. Gradiva, Lisboa, p. 178. We will continue to explore opportunities for missile defence co-operation with Russia in a spirit of reciprocity, maximum transparency and mutual confidence. We reaffirm the Alliance’s readiness to invite Russia to explore jointly the potential for linking current and planned missile defence systems at an appropriate time in mutually beneficial ways. NATO Lisbon Summit Declaration. 2010. [http://www.nato.int/cps/en/natolive/official_texts_68828.htm?mode=pressrelease, visitado em 6 de Dezembro de 2011]. 18 F. William Engdahl. 2011. Why Moscow does not trust Washington on Missile Defence. In Voltaire Network [www.voltairenet.org/Why-Moscow-doesn-t-believe, descarregada em 6 de Dezembro de 2011]. 19 Idem. 16 17

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tomado algumas medidas. Terá ordenado ao ministro da defesa russo para colocar sistemas de radar em Kaliningrado, solicitado que fosse aumentado o alcance das forças nucleares estratégicas da Rússia e que se reequipasse o arsenal nuclear com novas ogivas capazes de perfurar o escudo de defesa EUA/UE (escudo que estará operacional em 2018). Terá também ameaçado tirar a Rússia do novo tratado de redução de mísseis START se os EUA derem os passos que anunciaram.20 Na verdade os EUA ainda não foram capazes de dar garantias aos russos de que os sistemas que vêm desenvolvendo e instalando não pretendem ter Moscovo como alvo, mas sim estados párias como será atualmente o Irão. E enquanto essas garantias não forem dadas é de todo lógico que os russos se vejam como alvos. 6. Bibliografia Engdahl, F. William. 2011. Why Moscow does not trust Washington on Missile Defence. In Voltaire Network [www.voltairenet.org/Why-Moscow-doesn-tbelieve, descarregada em 6 de Dezembro de 2011]. NATO Handbook. 2001. NATO Office of Information and Press. Brussels. NATO Lisbon Summit Declaration. 2010. [http://www.nato.int/cps/en/ natolive/official_texts_68828.htm?mode=pressrelease, visitado em 6 de Dezembro de 2011] Joseph S. Nye. 2002. Compreender os Conflitos Internacionais. Gradiva, Lisboa. Rodrigues, Alexandre Reis. 2011. Que deve ser feito em relação ao Irão? In Jornal de Defesa e Relações Internacionais [http://www.jornaldefesa.com, visitada em 17 de Novembro de 2011]. Santos, General Loureiro dos. 2003. A Idade Imperial – a Nova Era. Publicações Europa-América: Mem Martins, p. 115.

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Idem.

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Segurança Marítima Cooperativa: Perspectivas face às Novas Ameaças

A. Jorge Pereira Lourenço Capitão-de-mar-e-guerra Doutorando em História, Defesa e Relações Internacionais pelo ISCTE / Instituto Universitário de Lisboa e Academia Militar email: jorgelourenco52@gmail.com



Segurança Marítima Cooperativa: Perspectivas face às Novas Ameaças, pág. 97-122

Resumo: O presente artigo tem como objectivo colocar em evidência a complexidade da eficaz e eficiente operacionalização da segurança marítima nas suas várias dimensões. Discorre sobre a importância do uso do mar no quadro de uma economia cada vez mais interdependente e global, que assenta na manutenção de uma circulação marítima cada vez mais intensa e através de rotas diversificadas. Oferece uma reflexão sobre a relevância da segurança marítima conjunta, combinada, cooperativa e multisectorial e multiagência, num esforço que deverá contar com coordenação de iniciativas articuladas com Estados, organizações internacionais e sector privado, tendo presentes as especificidades do mar, e que tem que ter por pano de fundo a necessidade de consolidar uma cultura de segurança que seja verdadeiramente operativa nos espaços marítimos e que carece de consciencialização junto da sociedade civil, como via para o bem estar e desenvolvimento da humanidade. Palavras-Chave: Segurança Marítima / Protecção Marítima / Protecção portuária / Economia do mar / Segurança / Segurança Colectiva Abstract: This article aims to emphasize the need of a suitable and efficient operationalization maritime security in his inherent dimensions. Analyzes the sea use importance within am interdependent and globalized economy, which relays in the maintenance of an increasing maritime circulation trough different sea routes. Offers a reflection concerning the relevance of a joint, combined, cooperative, trough different sectors and agencies maritime security, within a coordinated and articulated effort of States, International Organizations and private sector. Having in mind the sea and oceans specific nature, and the need of an operative security culture within the maritime space, based on the participation of the civil society as a guarantee of the man kind development and well being. Key-Words: Maritime Security / Maritime Safety / Harbor protection / Sea economy / Cooperative Security / Collective Security

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Segurança Marítima Cooperativa: Perspectivas face às Novas Ameaças, pág. 97-122

1. Introdução O bem estar da humanidade depende hoje muito do uso sustentado do mar quer como fonte de recursos quer como via de comunicação essencial para colocar em contacto as comunidades que o utilizam, quer para possibilitar um cada vez maior fluxo de pessoas e bens que circulam nos oceanos. Os riscos e desafios que emergem nos espaços marítimos têm hoje uma natureza complexa, não são facilmente detectáveis nem interpretáveis, e que requerem um grande esforço para levar a cabo iniciativas no quadro da segurança marítima que redunda em processos intrincados, em que se articulam múltiplas entidades. Acresce que o entendimento das realidades vivenciadas nos mares e oceanos não é um exercício fácil. Assim, o que intuitivamente pensamos em terra em matéria de segurança, adquire cambiantes mais complexos quando se trata de operacionalizar medidas desse âmbito aplicadas ao mar, sobretudo porque são tendencialmente multissectoriais e de natureza sistémica. Com esta análise pretendemos identificar os desafios com que a segurança nos espaços marítimos se confronta nos dias de hoje, reflectir sobre a importância de encontrar soluções cooperativas naquele contexto que redundem em benefícios a escalas nacionais, regionais e globais, tendo presente o valor que representa hoje a segurança para as sociedades, que bastas vezes não têm consciência do seu real alcance, desde logo porque naquele termo radica muito num estado de essência psicológica e subjectiva, sendo certo que em muitos casos a segurança só se valoriza quando existe a possibilidade de se desvanecer ou atenuar, colocando em causa o desenvolvimento e bem estar das comunidades. 2. Importância do uso do mar na actualidade O valor e potencial do mar são inegáveis e constituem um dos mais ricos patrimónios da humanidade, contribuindo de forma significativa para o progresso das sociedades e para a melhoria de vida das populações em geral. É crescentemente importante para as nações e organizações que têm desenvolvido capacidades para tirarem melhor partido da sua riqueza, quer no presente, quer na óptica do seu uso futuro.

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O mar apresenta funcionalidades essenciais que têm evoluído em função dos interesses que suscita aos estados e às organizações internacionais. Numa acepção clássica, Coutau-Bégarie (2007, p. 21) considera que os oceanos apresentam três funcionalidades principais, designadamente, fonte de riquezas, via de comunicação e meio de projecção de poder1. A dependência crescente que a maioria das nações tem do mundo marítimo, motiva que modernamente se desenvolvam cada vez mais reflexões em torno da utilidade económica do mar (Grove, 1990) ou maritimização da economia (Vigarié, 1995). Os países tecnicamente mais desenvolvidos, e cujas classes politicas e elites estão mais conscientes da importância do mar, têm vindo a desenvolver a clusterizacão da economia marítima2. A importância do mar numa perspectiva sistémica à escala global determinou o desenvolvimento de formulações estratégicas interdisciplinares integrando várias vertentes de utilização do mar e dos seus recursos, de forma equilibrada, eficiente e sustentável3. Numa abordagem à segurança no mar não se podem ignorar as realidades específicas inerentes aquele meio físico, pelo que de forma sintética passaremos a analisar algumas das principais actividades e utilizações adstritas ao espaço marítimo e litoral, que se constituem como valor agregado nas referidas áreas. 2.1. Fonte de fornecimento de recursos vivos O mar alberga uma impressionante diversidade biológica, contendo cerca de 80% dos seres vivos do planeta (Matias, 2008). O factor mais significativo no contexto do abastecimento de recursos vivos e proteína de origem animal é o da pesca, que é uma actividade quase tão antiga como a humanidade. Modernamente a análise deste sector encontra-se agregada à aquacultura4. A pesca é um sector que desempenha um papel primordial na vida das Os mares e oceanos, porque suscitam conveniências diferenciados que têm influenciado de forma dinâmica os interesses dos actores estatais, configuram-se como fonte estruturante de poder. 2 Tratam-se de empreendimentos sistémicos em rede e de valor acrescentado em torno do mar, que de acordo com Matias (2005, p. 11) agregam de forma organizada sectores com fortes relações económicas e tecnológicas e cuja interacção, gera um potencial de inovação, que esses sectores separadamente nunca poderiam ambicionar ter. 3 De que são exemplo a National Strategy for Maritime Security adoptada pelos EUA em Setembro de 2005, e dois anos depois a Cooperative Strategy for 21st Century Seapower. A União Europeia (UE) desenvolveu em Junho de 2006 o Livro Verde para uma futura politica marítima: Uma visão europeia para os oceanos e mares, e já em 2011 desenvolveu uma estratégia marítima para a Região Atlântica. A NATO após a promulgação em Novembro de 2010 em Lisboa do novo Conceito Estratégico, desenvolveu e publicou em Março de 2011 a Alliance Maritime Strategy. 4 A análise quantitativa e de tendências do sector é desenvolvida pela Organização das nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), que avalia capturas das espécies e consumos de pescado. Em 2008 o sector da aquacultura (, explorações em terra, em águas interiores ou no off shore) representou 46% das capturas (FAO, 2010, p. 3), configurando-se como um dos sectores de produção de proteínas com maior crescimento a nível global. 1

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sociedades, caracterizando-se por grandes diferenças a nível regional, quer em termos do tipo de pesca e aquacultura, quer no que concerne ao consumo das espécies capturadas, emprego de mão-de-obra directamente no sector ou nas indústrias suas associadas, que redundam de opções técnicas, capturas, aprovisionamentos e condicionamentos de mercado muito dispares (Brito, 2000) 5. Não obstante as referidas assimetrias, genericamente a nível mundial o esforço de pescas é superior aos recursos existentes e os stocks estão próximos dos máximos de exploração sustentável (Comissão Estratégica dos Oceanos, 2004), ou, como acontece com cerca de 70% das espécies, assiste-se a uma diminuição acelerada que coloca o risco da respectiva sobrevivência (FAO, 2008; 2010). Este aspecto relaciona-se com a tendência crescente, ao longo das últimas décadas para a depredação de recursos marinhos vivos (Cajarabille, 2008), sendo que 95% destes se localizam na Zona Económica Exclusiva (ZEE)6 sob a jurisdição de diferentes estados (Caron, 2007). Contudo verifica-se hoje que estados ribeirinhos menos desenvolvidos não revelam capacidade para gerir aqueles recursos, nem para garantir a sua utilização racional. Por isso outros estados mais aptos demonstram uma crescente vontade para alargar as suas competências nesses espaços (Ribeiro, 2008). A competição em torno dos recursos haliêuticos é uma realidade do mundo de hoje (SAER, 2009). A escassez do pescado e a prática da sobrepesca, com a consequente diminuição quantitativa e qualitativa de espécies enquadra-se na problemática da segurança alimentar. Especificamente a escassez de recursos piscícolas tem contribuído para o desenvolvimento de disputas estratégicas (Ribeiro, 2008). Esta tendência, terá, muito provavelmente no futuro uma maior expressão, quiçá com muito maior veemência do que já se verificou num passado recente7. 1.2. Fonte de recursos minerais e energéticos Os fundos oceânicos foram desde sempre uma importante fonte de recursos minerais. Actualmente são relevantes sob o ponto de vista económico as exploração de inertes (areia e areão), agregados (areias e cascalhos), estanho, fosforites e minérios preciosos – prata, ouro, platina e diamantes (Correia, 2010), 5

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Globalmente a pesca proporciona 25% da ingesta proteica de origem animal (FAO, 2008). Para alguns países tem um peso muito significativo na respectiva actividade económica. Na UE este sector emprega, no seu conjunto cerca de 526.000 pessoas (Comissão das Comunidades Europeias, 2006). Nos termos do artº 56 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar - CNUDM (Assembleia da Republica, 1997) o estado costeiro detém, nesta zona, direitos de soberania para fins de exploração e gestão de recursos vivos na coluna de água, e, detém jurisdição relativamente à protecção e preservação do meio marinho. A este propósito Coutau-Bégarie, op. cit., p. 28, recorda que se registaram as guerras da lagosta entre a França e o Brasil (1963). O mais conhecida destas disputas foi a guerra do bacalhau entre a Inglaterra e a Islândia que ocorreu em 1974.

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e também zinco, manganês, crómio, ferro, enxofre (Coutau-Bégarie, 2007) e ainda sulfuretos polimetálicos8, e, nódulos polimetálicos com concentrações de óxidos de ferro e manganês, presentes nos solos marinhos, com significativas quantidades de outros elementos metálicos, economicamente importantes, tais como níquel, cobre e cobalto (Matias, 2008). Alguns deste recursos apresentam ainda elevados custos de exploração, requerendo inclusive novas soluções tecnológicas. Contudo o seu potencial económico tem vindo a gerar cada vez maior atenção, e, as expectativas geradas em torno da exploração e comercialização dos nódulos polimetálicos contribuíram em muito para a emergência do conceito de património comum da humanidade consagrado na CNDUM9. O actual modelo de desenvolvimento económico a nível global é fortemente dependente de recursos energéticos, com destaque para os combustíveis fósseis em que assume relevo o petróleo, cuja procura pelos países mais industrializados não para de aumentar, criando renovadas dinâmicas nas relações internacionais, igualmente condicionadas por imperativos de segurança energética, com enfoque na diversificação das fontes de abastecimento do ouro negro. Uma parte muito significativa do produção de petróleo tem a sua origem no mar10. Esse aspecto é particularmente significativo se considerarmos que em 2009, 70% das reservas daquele hidrocarboneto por parte do maior consumidor mundial – Os EUA - provinham de explorações no offshore11. O custo de extracção do petróleo nos oceanos é ainda elevado quando comparado com o proveniente das jazidas em terra, embora tenha vindo a baixar gradualmente com a introdução de novas tecnologias, sendo expectável que os referidos custos continuem a baixar. A existência de petróleo no fundo do mar, ou a expectativa dele ali existir, tem levantado problemas na definição dos limites das águas de jurisdição nacional ou das plataformas continentais (Correia, 2010). A possibilidade da apropriação de recursos minerais do fundo do mar, ainda que potenciais, tem sido um dos leitmotiv dos projectos de extensão da plataforma continental por parte de diferentes estados, que corporizam um alargamento das fronteiras marítimas, com outorga de direitos sob os recursos do solo e subsolo marinhos12. Depositados por processos hidrotermais que se desenvolvem nos fundos oceânicos (Dias, op cit., p. 106) 9 Comissão Estratégica dos Oceanos, op. cit., p. 201-202. 10 Em 2006 a extracção de petróleo no offshore representava 35% da produção mundial (CoutauBégarie, op. cit., p. 35). 11 Energy Information Administration, 2009, p. 42. 12 O oceano é, de resto conjuntamente com o espaço exterior do planeta, um dos dois espaços físicos explorados pela humanidade que tem capacidades de expansão e de incremento de exploração económica ao alcance de muitos estados, constituindo-se, em linha com o que já anteriormente referimos, como fonte estrutural de poder, que certamente estará na origem de disputas futuras (Nogueira, 2011, p. 262). Nos termos da CNUDM os estados ribeirinhos detém soberania na plataforma continental para efeitos de exploração e aproveitamento de recursos, que com a outorga pela ONU da extensão desta área se pode estender até às 350 milhas náuticas das linhas de base de delimitação. 8

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Outro dos recursos energéticos existente nos oceanos, que tem conhecido uma crescente extracção é o gás natural (Coutau-Bégarie, op. cit., p.36). O desenvolvimento das energias renováveis tem tido nos últimos anos um incremento muito significativo no mar e junto à costa, com destaque para as fontes de carácter dinâmico13, termodinâmico14 (Soares, 2008) e eólico no offshore15. 1.3. Recursos com progressivo potencial e importância para o futuro Os oceanos e mares encerram características e recursos que se configuram como um importante potencial para o futuro sob várias perspectivas, que se encontram nalguns casos ainda em fase de estudo e avaliação. Um dos recursos que se perspectiva venha a ter uma enorme importância no futuro como combustível primário, é o dos hidratos de metano (Correia, 2010). O mar tem proporcionado a exploração de novas oportunidades no campo da biotecnologia e da biomedicina16 (Soares, 2008). Neste âmbito cabe ainda referir que alguns tipos de algas têm sido objecto de experimentação tendo em vista o incremento da capacidade de fixação do dióxido de carbono (Matias, 2008), potencializado o papel de regulador climático (Santos, 2009), que é já desempenhado pelos oceanos há milhões de anos17. 1.4. A relevância do transporte marítimo na actualidade Numa análise deste sector, consideramos ser significativo ter em consideração as diferentes vertentes de uma actividade que é na sua essência sistémica, interdependente, multifactorial, dinâmica e variável, mas que tem na sua base uma característica imutável correlacionada com as características do meio físico onde se desenvolve - o mar - que cobre cerca de 71% do nosso planeta, traduzido numa superfície marítima que ascende a 130 milhões de milhas marítimas quadradas (Hollis, 2010), sendo a maioria desta área considerada alto mar, e não sujeita à soberania e jurisdição de nenhum estado, mas imperando aí, por força do ordenamento jurídico internacional, o principio de liberdade de

Ondas, marés e correntes. Diferenças de temperaturas, salinidades, pressões e consequente de densidade da coluna de água. 15 A exploração das energias renováveis reduz a dependência energética dos países que nela investem em relação às energias fósseis, contribuindo para a diminuição das emissões de gases de efeito de estufa (GEE), com benefícios ambientais (Borges et al., 2009). 16 Especialmente ao nível da extracção de compostos existentes nas algas, peixes, crustáceos, esponjas, ou fungos para fins alimentares, farmacêuticos ou industriais. 17 Os oceanos desempenham uma dupla função no sistema climático. Absorvem a energia térmica, decorrente da acumulação de GEE, armazenando cerca de mil vezes mais calor que a atmosfera (Archer e Rahmstorf, 2010). Funcionam como sumidoros de dióxido de carbono retirando enormes quantidades de carbono da atmosfera (Yun, 2008). Assim, os oceanos têm um papel fundamental na atenuação das alterações climáticas, que têm vindo a ser identificadas como uma das maiores ameaças ambientais, sociais e económicas, que o planeta e a humanidade enfrentam na actualidade. 13 14

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navegação18. Um outro aspecto relevante, no âmbito do sistema de transporte marítimo global, regional e local, prende-se com realidades dinâmicas de âmbito demográfico, que assume expressão no desenvolvimento da grande concentração dos aglomerados populacionais no litoral19, onde se fixam igualmente cada vez mais industrias, centros produtivos, pólos logísticos e metrópoles mais populosas, servidas por inúmeros portos. Estas realidades têm a sua génese no desenvolvimento do modelo económico de produção e desenvolvimento globalizado, que foi tomando forma desde finais do século XIX20. 1.4.1. Transporte marítimo global O modelo económico vigente à escala planetária, a que já aludimos, assumiu uma expressão mais significativa desde o início dos anos noventa do século XX (Work, 2008). O sistema de transporte marítimo de cariz global21 constitui o fulcro daquele modelo22, que por usa vez se fundamenta numa complexa rede composta por vários elementos, que se articulam numa lógica concorrencial e competitiva, que tem como corolário o paradigma emergente just in time, just enough23, que se traduz numa crescente diversidade, volume e densidade de tráfego marítimo24. De facto nas No termos da CNUDM o alto mar está aberto a todos os estados, quer costeiros quer sem litoral, sendo a liberdade do alto mar consentânea com outras normas de direito internacional, imperando naquela área, entre outros os princípios de liberdade de navegação, pesca e investigação científica, exercidas por todos os Estados, tendo em conta os interesses de outros Estados no seu exercício da liberdade do alto mar. 19 Cerca de 80% da população mundial vive a menos de 100 milhas da costa (North Atlantic Military Committee, 2011). 20 Entre o final daquele século e meados da década de sessenta do século XX, a população do globo duplicou, sendo que a tonelagem dos navios quintuplicou (Correia, 2010). Desde a segunda metade do século XX que se verifica uma redução das barreiras e tarifas alfandegárias bem como o livre acesso às cargas em mercado aberto e concorrencial, o que facilitou o desenvolvimento de uma economia globalizada, assente no transporte marítimo (Lopes, 2008). 21 Que se desmultiplica em redes intermodais à escala regional e ou nacional (Comissão das Comunidades Europeias, 2007). 22 Trata-se da economia globalizada, em que pontuam grandes empresas transnacionais, que reduzem custos através da segmentação e deslocalização dos seus centros de produção em função da disponibilidade de mão-de-obra mais produtiva, especializada e mais barata, assente numa cadeia logística dependente do livre tráfego por via marítima, que une centros interdependentes de obtenção de matéria prima, centros de produção e que permite colocar os produtos transformados no mercado global (Chanterac, 2007). 23 A globalização assenta igualmente na circulação da informação e na facilidade de comunicar, também aqui o mar desempenha um papel fundamental já que os cabos submarinos de comunicações transportam cerca de 95% do tráfego do ciberespaço – tanto de voz como de dados – de todo o mundo (North Atlantic Military Committee, 2011). 24 De acordo com os dados publicados pela Conferencia das Nações Unidas sobre o Comércio e Desenvolvimento (United Nations Conference on Trade and Development – UNCTAD) no quinquénio 2006 / 2007 o volume de carga transportada por via marítima cresceu a uma média de cerca de 7% ao ano. Registando em 2010 um valor de 1,276 Mil Milhões de Toneladas de Porte Útil, que foram deslocados em 102.194 navios comerciais (UNCTAD, 2010) 18

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últimas quatro décadas, o comercio marítimo mais do que quadruplicou(Roughead et al., 2007). Mais de 90% dos bens transaccionados a nível mundial são transportados por via marítima (North Atlantic Council, 2011). A mesma cifra afecta o comércio externo da UE, sendo que neste mesmo espaço 40% do comercio interno é também transportado por mar (Comissão das Comunidades Europeias, 2006). O sistema de transporte marítimo actual é, de acordo com Botella (2008), maioritariamente responsável por fluxos de bens essenciais como é o caso da energia necessária ao sistema produtivo e às necessidades energéticas das populações (petróleo e seus derivados25, gases liquefeitos, carvão, etc.), bem como pelo transporte de produtos alimentares para suprir necessidades nutricionais das sociedades, e, garantir a produção de outros bens deste tipo (cereais, , alimentos refrigerados e congelados, sementes, rações para a produção de carne e fertilizantes necessários ao sector primário). A necessidade de manter a regularidade destes fluxos tem subjacente a segurança energética e alimentar, indispensáveis ao funcionamento da sociedades actuais26. A alternância na importância dos centros económico-produtivos e a necessidade de materializar as ligações entre produtores, transformadores e consumidores, vai determinado a variabilidade de algumas rotas marítimas, com reflexo na importância geoestratégica dos espaços marítimos que as contêm. Contudo, e mais uma vez por circunstancialismos físicos inerentes ao nosso planeta, 75% das rotas comerciais marítimas desenvolve-se através de pontos focais - maritime choke points - nevrálgicos (North Atlantic Council, 2011), que se situam maioritariamente nas proximidades das áreas mais instáveis e inseguras do globo27. Ameaças efectivas sobre esses pontos focais podem colocar em causa a segurança da navegação naquelas áreas, acarretando por consequência avultados prejuízos para a economia global. O sistema de transporte marítimo internacional possui, como se verifica, um carácter dinâmico, diversificado e evolutivo em função da variação dos seus factores constituintes28. Independentemente desta variabilidade verifica-se que a globalização tem acelerado o crescimento do transporte marítimo (Ribeiro et al., 2010) de uma forma consistente.

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Mais de dois terços do petróleo, que supre as necessidades do planeta, são transportados por via marítima (Roughead et al., 2007). O transporte marítimo caracteriza-se por, comparativamente com os outros meios, ser o mais seguro e o mais barato atendendo ao volume de carga aliado à dimensão do meio de transporte (Ribeiro et al., 2010). Entre os principais pontos focais atravessados pelos navios que transportam petróleo e seus derivados distinguem-se o Canal do Suez, o Canal do Panamá, e os Estreitos de Gibraltar, Bósforo Bab-el-Mandeb, Ormuz e Malaca (Rodrigue, 2004). Um dos sectores que tem registado um incremento muito significativo é o de transporte de passageiros, com destaque para o turismo de cruzeiros, que nos últimos anos e relativamente ao espaço europeu, registou um crescimento anual superior a 10%. Outro sector que regista crescimento na sua actividade é o da náutica de recreio, que tem crescido a cerca de 6% ao ano também na Europa (Comissão das Comunidades Europeias, 2006).

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1.4.2. Importância dos portos A importância crescente do transporte marítimo e os desenvolvimentos económicos da economia globalizada motivaram a explosão da contentorização29, que teve como consequência uma alteração significativa na configuração, superfície e características técnicas dos portos, que lhes permite movimentar grandes volumes de carga, em menos tempo e, tentativamente, a mais baixo custo30. Por outro lado o incremento do turismo de cruzeiros e consequente aumento do fluxo de passageiros por via marítima, obrigaram igualmente a novas soluções para oferecerem acesso a serviços diversificados de qualidade, por forma a que os portos praticados pelos navios de cruzeiro continuem a ser atractivos31. Os portos são hoje pólos de desenvolvimento muito importantes para as economias dos países onde se situam. Constituem-se como áreas onde passageiros e mercadorias são recepcionados e transferidos do sistema de transporte marítimo para outros meios de transporte e tenham acesso a múltiplos serviços. A evolução dos portos foi marcada pela transposição de interfaces mar/ terra tradicionais, para plataformas logísticas que oferecem e disponibilizam um cada vez maior número de serviços (UNESCAP, 2005), e propiciam a fixação de complexos industriais e centros de actividade do sector terciário (Correia, 2010)32. A crescente procura do transporte marítimo tem tido como consequência a construção de navios de cada vez maior porte, o que motiva que os portos tenham que evoluir tecnologicamente para receber, carregar e descarregar construções navais de grandes dimensões e volume de carga33, e, receber navios de passageiros com cada vez maior lotação. Neste pressuposto, a afluência aos principais portos de um cada vez maior número de navios de carga e passageiros, faz destas infra-estruturas também pontos focais (RODRIGUE, 2004), colocando, Coutau-Bégarie, op. cit., p. 51. O segmento Portos e Logística representou, a nível mundial, 25 milhares de milhão em 2005 e prevê-se que 2010 esse valor tenha sido da ordem dos 30 milhares de milhão (SAER, 2009, p. 95). Nos portos da UE são hoje movimentadas cerca de 3,5 mil milhões de toneladas, anualmente (Comissão das Comunidades Europeias, 2006). 31 Anualmente 350 milhões de passageiros transitam pelos portos marítimos europeus. O volume de negócios directo do sector do turismo marítimo neste continente, atingiu neste continente o valor de 72 mil milhões de euros em 2004 (Comissão das Comunidades Europeias, 2006). 32 Os portos são assim tipicamente centros de transporte combinado (marítimo, ferroviário, rodoviário), e, são igualmente áreas multifuncionais comerciais e industriais, onde os passageiros e as mercadorias estão em trânsito, sendo processados e redistribuídos. Para funcionar adequadamente os portos devem ser integrados na cadeia logística global. Um porto eficiente requer infra-estruturas, super-estruturas e equipamento adequado, boas comunicações e uma equipa de gestão dedicada e qualificada, e, mão-de-obra motivada e treinada (UNCTAD, 2005, p. 137). O sucesso do porto e da logística que lhe está associada, mede-se pelo nível de intensidade e qualidade dos serviços prestados. 33 Os navios porta-contentores estão já na sexta geração de construção, sendo que os navios de maior porte, têm comprimentos de quase 400 metros, com capacidades de deslocar entre 11.000 e 14.500 Toneladas de Arqueção Bruta (UNESCAP, 2005). 29 30

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tal como para o caso dos maritime choke points, no topo das preocupações a necessária segurança marítimo-portuária. 1.4.3. Tendências evolutivas da industria portuária e dos transportes marítimos Do anteriormente exposto depreende-se que a actividade de transporte marítimo e o movimento portuário devem continuar a registar aumentos significativos no que concerne a passageiros e carga. Relativamente a este sector são de destacar as projecções que apontam para uma duplicação do número de contentores transportados nos próximos anos, estimulado sobretudo pelo crescimento de três macro-regiões mundiais: Europa – Ásia – América do Norte; prevê-se que se mantenham taxas de crescimento da actividade de transporte superiores às taxas de crescimento económico geral34. O crescimento e renovação da frota de navios deverá prosseguir genericamente, com ênfase nas novas gerações de porta-contentores com capacidade superior a 6.000 Toneladas de Arqueação Bruta, que poucos portos a nível mundial estão preparados para receber35. A emergência de novos centros económico-produtivos, bem como a abertura das rotas do Árctico, como consequência das alterações climáticas (Coutau-Bégarie, 2007), e o alargamento do Canal do Panamá (UNESCAP, 2007)36, determinarão fluxos renovados de transporte marítimo, com incrementos quantitativos e qualitativos. Estes factos, considerados conjuntamente com a expansão exponencial das actividades conexas ao sistema de transporte marítimo, à sua cadeia logística, e, à tendência para fixação de indústrias e pólos de serviços nas proximidades dos portos, farão aumentar consideravelmente a pressão sobre a segurança marítima (Comissão das Comunidades Europeias, 2009, p. 7). Assim a exigência de maior segurança no mar e portos tende a aumentar à medida que crescem os interesses económicos ligados à exploração desses espaços37. O necessário reforço de medidas de segurança implica consequências de natureza económica, que têm que ser equacionadas e avaliadas, em dois planos distintos: - Por um lado, no agravamento dos custos de exploração de navios e portos, com eventuais repercussões nas actividades empresariais, tendo em Mesmo num quadro de desaceleração económica no ocidente, a China prosseguirá a busca constante de matérias primas, que serão para lá transportadas, tendo igualmente necessidade de escoar manufacturas e ter acesso ao mercado global (Dousson, 2007). Por outro lado haverá uma tendência para a crescente maritimização da economia no quadro da globalização, que evoluirá no sentido mais favorável daquele sistema, havendo necessidade de fácil acesso às matérias primas e aos mercados emergentes, que se traduz numa circulação de produtos e mercadorias (Vigarié, op. cit., p. 39). 35 Comissão Estratégica dos Oceanos, op. cit., p. 113. 36 Prevista para 2014. 37 Lopes, op. cit., p. 43. 34

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atenção as condições gerais em que os mercados funcionam. - Por outro lado, um global desagravamento dos custos para a comunidade marítima resultante de poupanças, que se podem conseguir mitigando os riscos e as ameaças que poderão ocorrer no mar e no litoral38, o que só se pode alcançar com um esforço continuado e sistematizado de desenvolvimento da segurança da actividade marítima a nível mundial. 2. Ameaças e Riscos no Mar e no Litoral O mar e os seus recursos, o litoral, o sistema de transporte marítimo e a economia que lhe está agregada podem hoje ser associadas a finalidades ilegais, riscos e ameaças, tirando partido das especificidades próprias dos mares e oceanos39. Os estados costeiros estão expostos a uma multiplicidade de ameaças e riscos emergentes, que tiram partido do mar, podendo muitas delas desenvolverse de forma encoberta e insidiosa, sendo assim de difícil detecção, mas carecendo de novas respostas por parte dos Estados ou regiões onde têm lugar, sob pena de produzirem efeitos altamente prejudiciais às economias nacionais, regionais e ou global. Estão neste caso sobretudo actividades criminosas de depredação de recursos vivos (frequentemente os haliêuticos) ou não vivos (sobretudo minerais), tráficos ilícitos (de pessoas, estupefacientes, armamento ligeiro ou de destruição maciça, ou outros), imigração clandestina e crimes ambientais. Estas actividades deliberadamente dissimuladas podem não interferir com a circulação marítima, mas o seu combate exige mobilização de meios e recursos na maioria dos casos multissectoriais (Cajarabille, 2008). Outras ameaças podem assumir formas mais explícitas e influir na circulação marítima, constituindo-se inclusive como um perigo para a navegação. Estão neste caso actividades como a pirataria40, assalto à mão armada contra navios41, Comissão Estratégica dos Oceanos, op. cit., p. 112. A vastidão oceânica, a que já se fez referencia, associada às múltiplas alternativas de circuitos de navegação que aquela propicia, torna inviável o seu controlo total por parte dos estados (Diogo, 2004). Nesta acepção o mar apresenta duas faces geopolíticas em função da relação que os estados com ele estabelecem: porta aberta para o mundo , e ou flanco desprotegido de onde podem vir ameaças (Nogueira, 2011, p. 261). Assim, considerando que todos os dias, e a qualquer hora existem milhares de navios no mar e a demandar portos, tendo presente a indetectabilidade de determinados fenómenos que se desenvolvem no mar, bem como a existência de um quadro jurídico inerente aos espaços marítimos, algo permissivo, estamos perante um conjunto de vulnerabilidades que propiciam o desenvolvimento de actividades ilícitas e ou criminosas em torno da actividade marítima. 40 Ilícito praticado no alto mar, definido no art. 101º da CNUDM, e que tem, geralmente como móbil o lucro privado decorrente da captura de navios, carga e toma de reféns (que poderá render resgates de elevado custo). 41 Actividade criminosa cometida no mar territorial, nas águas arquipelágicas, nos portos ou nas águas interiores e definido pela International Maritime Organization (2002). 38 39

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terrorismo marítimo42 e actos dolosos de poluição marítima. Todas estas ameaças e actos ilícitos, são muitas vezes desenvolvidas por redes transnacionais de criminalidade organizada e particularmente violenta43, que exploram vulnerabilidades decorrentes da fragmentação dos regimes legais aplicáveis ao mar, e ou vazios de poder dos espaços marítimos menos sujeitos a vigilância. Torna-se essencial impedir este tipo de acções contra navios ou infra-estruturas que asseguram o modo de vida das sociedades modernas44. Alguns destes ilícitos graves têm persistido nos espaços marítimos durante décadas, outros são relativamente novos e emergiram tirando partido da vigente multiplicação dos sistemas de informação e comunicações com cobertura mundial, do comercio livre, na evolução do sistema internacional e nas consequentes alterações ao ambiente de segurança e defesa à escala planetária, factores que foram propiciados pelo imperante paradigma da globalização (Richter, 2006). O desenvolvimento destes actos criminosos nos espaços marítimos de determinadas regiões em escalas significativas, é facilitado pela ocorrência ou persistência de vulnerabilidades decorrentes do insuficiente exercício de autoridade e soberania dos estados no mar45; de dificuldades económicas e financeiras de muitos estados costeiros (cujas populações podem ser atraídas para actos ilícitos); fraca governação e ou deficit de aplicação da justiça que favoreça a corrupção de alto nível ou fugas de informação (Silva, 2011). Se não se mitigarem ou neutralizarem os riscos e ameaças associados à criminalidade no mar, a partir do mar e no litoral, a prática de ilícitos pode assumir proporções muito mais gravosas. Este ilícito criminal carece de uma tipificação jurídica, embora a Convenção para a Supressão de Actos Ilícitos Contra a Segurança da Navegação Marítima , que entrou em vigor em 1992 se refira a este tipo de actos, que são definido por Chalk (2008, p. 3) como a execução de actividades ou actos terroristas que tenham lugar no ambiente marítimo, fazendo uso ou tendo como alvo navios ou plataformas no mar, ou em portos, ou contra um passageiro ou trabalhador, contra instalações costeiras ou áreas ou populações portuárias. Este acto criminoso particularmente violento, visa geralmente a disrupção politica e social. 43 As vultuosas verbas geradas pelo comercio ilegal, pelos roubos perpetrados nos espaços marítimos, ou pelo tráfico de drogas no mar, ou ainda pelos elevados resgates pagos pelos reféns vítimas da pirataria (as estimativas dos custos associados à pirataria ascendem a valores entre os 7 e 12 mil milhões de dólares por ano – Ministry od Defense, 2011), são branqueadas no sistema financeiro internacional e utilizadas pelos grupos criminosos para subornar governantes e fomentar actividades ilegais, onde se incluem o tráfico de armas e acções terroristas que destabilizam vastas regiões e facilitam as actividades clandestinas (Cajarabille, op. cit., p. 58). 44 Estes actos criminosos têm tido particular significado nos mares arábicos, e ou no oceano Índico, mas também no Mediterrâneo, onde entre 1985 e 2008 ocorreram acções de terrorismo marítimo (que tiveram como alvos entre outros o Achille Lauro, o USS Cole, Limburg, Super Ferry 14, e, mesmo os atentados terroristas em Mumbai foram lançados a partir do mar). Estas ameaças estão igualmente presentes nas áreas de interesse estratégico de Portugal (Correia, op. cit., p. 360). 45 Que se pode caracterizar por falta de capacidades para desenvolver medidas de vigilância marítima, costeira e de protecção portuária. A não consecução destas acções de exercício da autoridade pode facilitar, inicialmente, a concretização de actos de pequena criminalidade, que não sendo reprimidos e objecto de acção coerciva, podem permitir conjuntamente com outros factores a catalisação de ilícitos criminais mais violentos e em maior escala. 42

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Não é difícil presumir, até porque já ocorreram incidentes deste tipo, que por motivações ideológicas, por pobreza ou por simples criminalidade um qualquer grupo possa perpetrar um acto terrorista, que consiga bloquear ou inviabilizar a circulação em vias marítimas criticas, ou portos importantes (choke points), ou produzir destruições de larga escala nas imediações de terminais portuários (Daly, 2008). Acções desta natureza podem afectar os interesses dos estados, provocar rupturas no sistema global marítimo e na economia globalizada dele dependente, com consequências que podem ser muito onerosas, e, ter impactos muito negativos na comunidade internacional e no funcionamento da sociedade dos nossos dias. 3. Importância da segurança marítima no mundo actual Tendo em consideração as funcionalidades que o mar proporciona aos Estados, e ponderados os riscos, ameaças e desafios que pendem sobre os espaços marítimos, julgamos ser evidente que a segurança marítima é um desígnio que as nações e as organizações internacionais têm que prosseguir, uma vez que quer o acesso e aproveitamento de recursos do mar, quer o comércio, a indústria e a economia mundial, num mundo cada vez mais globalizado e descentralizado, dependem do desenvolvimento de actividades de profissionais nos espaços marítimos, e são influenciados pela segurança da navegação e pela liberdade de circulação proporcionada pelas vias de comunicação oceânicas, o que confere a mobilidade e interligação entre produtores, transformadores e consumidores. Esta realidade releva a importância da defesa das linhas de comunicação marítimas (Sacchetti, 2001), que ao serem protegidas configuram um importante papel no âmbito da segurança comum, à escala global (Tangredi, 2002), uma vez que o livre uso do mar conduz à riqueza em tempo de paz (Carvalho, 1998, 283). Por outro lado os marítimos também estão sujeitos a riscos decorrentes de ameaças de intempéries ou catástrofes naturais motivando danos, acidentes, desastres ambientais e naufrágios, que bastas vezes têm como resultado perdas de vidas, e ou avultados prejuízos ou impactos nos ecossistemas, pelo que é igualmente imperioso acautelar a assistência humanitária, a salvaguarda da vida humana no mar e a capacidade para fazer face a crises de natureza ambiental. É pois entendível que os países desenvolvidos invistam meios, recursos e desenvolvam capacidades no sentido de incrementar a segurança e defesa dos espaços marítimos, e que se preocupem com a falta de lei e ordem nos oceanos. 3.1. Segurança no mar, desenvolvimento e interdependência Quando consideramos a segurança no contexto do mar, depreendese do que referimos anteriormente que, temos que ter presente o seu carácter multidimensional. Segurança face às ameaças de acções criminosas contra a

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segurança das pessoas, bens e recursos, segurança ambiental e da navegação face a acidentes de origem humana ou decorrentes de catástrofes naturais (Cunha, 2010). Para uma melhor precisão destas dimensões da segurança marítima, é vantajoso considerar as designações em língua inglesa, que as separa em maritime security46 e maritime safety47, que agregam um conjunto de operações, tarefas e preocupações diferenciadas. Verifica-se assim que para preservar o valor intrínseco dos oceanos os estados não podem deixar de exercer a sua soberania no mar, devendo esta constituir-se como uma das principais preocupações e obrigações dos estados ribeirinhos, quer na perspectiva do seu desenvolvimento quer na interdependente perspectiva da segurança. De resto, como se pode depreender do que até aqui foi dito, na actualidade o mar é por excelência um espaço onde o nexo segurança e desenvolvimento faz sentido48. Nesse sentido o exercício da soberania do estado no mar deve pautar-se pelo desenvolvimento e ou manutenção de capacidades, que lhe permitam desenvolver a prevenção e intervenção face a ameaças nos espaços marítimos sobre a sua jurisdição, no quadro de operações de segurança marítima49 (Grove, 1990). Atendendo a que os países ribeirinhos não estão isolados, e considerando que a interdependência entre segurança e desenvolvimento faz sobretudo sentido A actividade maritime security é geralmente traduzida para português por protecção marítima, engloba a protecção face a ameaças e riscos internacionais, inserindo-se no contexto da integridade de pessoas e bens no mar ou instalações portuárias. Envolve acções de prevenção, detecção e combate contra pirataria, assaltos à mão armada contra navios, terrorismo marítimo, actos dolosos de poluição marítima; actividades criminosas de depredação de recursos do mar e combate aos tráficos ilícitos, imigração clandestina e crimes ambientais. 47 A maritime safety compreende entre outros aspectos a segurança da navegação (safety of navigation), a busca e salvamento (search and rescue - SAR) no âmbito da Convenção internacional para a salvaguarda da vida humana no mar, que outorga aos estados ratificantes a responsabilidade pela operação de um sistema de busca e salvamento, na respectiva área de responsabilidade SAR – esta dimensão é geralmente expressa em português pela expressão Segurança Marítima. 48 Se nos alongarmos sobre este paradigma, parece-nos no entanto pertinente realçar que, em função da evolução e diversificação que a ideia de segurança adquiriu no últimos anos (a que aludiremos de forma breve mais adiante) assistiu-se a que aquele estado ou processo que visa a protecção (que está na base do conceito operativo de segurança), deixou de ser da exclusiva preocupação do Estado e das Organizações de Segurança Colectiva, passou a se a ser uma preocupação global e condição essencial ao desenvolvimento que por sua vez passou a ser considerado como indissociável da segurança, que assim se constitui como pré-condição daquele factor e garante da paz. Essa visão foi expressa por Ban Ki-moon, Secretário Geral das Nações Unidas em Relatório de 23 de Janeiro de 2008 apresentado ao Conselho de Segurança sobre o apoio daquela organização à reforma do sector de segurança, como garante da paz e desenvolvimento (United Nations, 2008). Sem segurança nos espaços marítimos não se podem tirar vantagens do uso económico do mar que facilita o desenvolvimento à escala global. E o desenvolvimento gerado por essa via tem que se constituir como a primeira linha de defesa de um sistema de segurança assente na capacidade dos estados e das organizações internacionais de fazerem face aos riscos e ameaças no mar e litoral. 49 A expressão segurança marítima está aqui empregue em sentido lato, envolvendo as dimensões maritime security (protecção marítima) e maritime safety (segurança marítima – em sentido estrito – segurança da navegação e busca e salvamento). 46

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quando aplicada ao uso do mar, é extremamente relevante considerar o esforço desenvolvido pelos estados para mitigar ameaças e acidentes nos oceanos. 3.2. Considerações sobre segurança cooperativa Numa ordem internacional dominada pela interdependência e imprevisibilidade, as preocupações em torno da segurança, defesa e desenvolvimento não deixam de preocupar as sociedades e os estados confrontados com a necessidade de conservarem a sua integridade nos domínios da economia, soberania e identidade cultural. As vulnerabilidades das sociedades, dos estados e das organizações internacionais em relação à segurança têm, sido patentes recorrentemente, sobretudo desde o final da Guerra Fria50, de tal forma que hoje nenhum estado poderá presumir que detém só por si todas as capacidades para garantir a sua segurança51. A tipologia e as características das ameaças diversificaram-se radicalmente em relação às suas congéneres da era bipolar, a uma escala tal que motivaram alterações de paradigmas, conceitos e objectivos relativamente à segurança, que deixou de ser uma preocupação exclusiva dos estados, passando a ser uma preocupação global. Neste pressuposto a globalização desterritorializou a segurança (Fernandes, 2004), fazendo com que os objectivos e os interesses de segurança se alargassem muito para além das fronteiras tradicionais e geográficas dos estados ou da área de responsabilidade das organizações internacionais52. A inclusão no quadro global das ameaças de intervenientes transnacionais, que são factores enformadores da segurança global, obrigaram a repensar a segurança e a defesa sob a óptica da cooperação internacional. Nesse sentido a 50 Na era bipolar o eixo fulcral do sistema internacional era dominado pelas duas aliança militares e os estados que perspectivavam a dinâmica dos seus interesses sem dificuldades de maior desde que, certificassem a respectiva segurança e defesa, consistente com os princípios da escola realista das relações internacionais. A defesa e segurança no mar materializava-se genericamente na contenção, vigilância dos flancos marítimos do bloco ocidental, e das principais linhas de comunicações marítimas, e, na dissuasão pelas plataformas submarinas lançadoras de Mísseis Balísticos (SmithWindsor, 2009). Nesse sentido os oceanos e os fluxos marítimos estavam sujeitos a um controlo que se verificou eficaz. 51 Finda a era bipolar a ideia de segurança, que em sentido amplo diz respeito ao normal funcionamento de uma sociedade e que se alcança através da defesa, enquanto praxis de acção (Nogueira, 2005), viu a sua ambiguidade exponenciada, foi objecto de amplos debates académicos, passando a ser afectada por uma assinalável polimorfia de concepções (Fernandes, 2004), pese embora, no limite, continue a constituir-se como um dos grandes fins últimos da política (Couto, 1980, p. 11), que deve permitir a estabilidade e a base de confiança necessária para alcançar os objectivos almejados. 52 A fronteira de segurança e defesa tem um carácter mutante e flutuante decorrendo das responsabilidades internacionais naquele âmbito (Nogueira, 2005). Relativamente a Portugal o Conceito Estratégico de Defesa Nacional, considera o Espaço Estratégico de Interesse Nacional Conjuntural, que se estende muito além das fronteiras políticas de soberania ou jurisdição nacional, e que compreende entre outros, o espaço euro-atlântico (onde se inclui o Atlântico em geral e o Mediterrâneo).

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relevância dos Estados passou a depender da sua capacidade e disponibilidade para contribuir activamente para a manutenção de paz e da segurança internacionais e, em especial, para a eficácia da acção multilateral no referido âmbito53. Os países e as organizações internacionais estão assim convocados para contribuírem para a segurança global, entendida como partilhada e alcançada pela cooperação, cabendo-lhe a identificação da taxa de esforço que podem assumir nesse desígnio, determinando as suas obrigações, para conseguir um nível de segurança aceitável, no exercício de decisão estratégica que deverá ter em linha de conta a redução das suas vulnerabilidades, o proveito dos seus factores intrínsecos e das capacidades ao seu alcance. 3.3. Operacionalização da segurança marítima A segurança no mar constitui um subsistema da segurança nacional, com implicações e envolvimento de várias entidades à escala regional e global, determinada por especificidades próprias inerentes ao meio e à natureza das operações que envolvem a segurança marítima nas dimensões que a compõem. Contudo as referidas dimensões não são estanques, sendo mais razoável encarálas sob a óptica da justaposição54. As acções de segurança marítima envolvem no seu conjunto, um vasto leque de tarefas que enquadram o trânsito de pessoas, navios e mercadorias que cruzam os mares e praticam portos, onde se tem que promover igualmente as adequadas medidas de controlo e segurança. Como a área onde essas acções se desenvolvem é vastíssima, é impossível que qualquer nação ou organização supranacional sejam capazes de, per se garantir a lei e a ordem no mar (Ribeiro et al., p. 66), com eficácia, verificando-se assim ser indispensável a cooperação internacional, naquele âmbito, especialmente em áreas onde se verificam insuficiências de meios e capacidades adstritos à segurança marítima. A sua operacionalização é hoje desenvolvida de forma conjunta, combinada e cooperativa ou multi-agência, de facto para além de autoridades marítimas, meios das Marinhas, Guardas Costeiras ou Serviços e Forças de Segurança, 53

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Este aspecto é enfatizado no conceito estratégico da NATO, aprovado em Lisboa (North Atlantic Treaty Organization, 2010), afirmando a determinação da Aliança para a melhoria da segurança internacional, entre outras através da promoção de parcerias com os países e organizações que sejam relevantes no referido âmbito. As medidas para prevenir acidentes/incidentes provocados por problemas técnicos, por causas naturais ou sem interferência humana propositada, inserem-se no conceito de segurança (segurança da navegação), ao passo que, as que se destinam a proteger pessoas e bens (transporte marítimo, portos e instalações portuárias) contra actos ilícitos intencionais, integram o conceito de protecção. Contudo, os que procuram tirar vantagem das ameaças difusas (do crime organizado ao terrorismo internacional) utilizam muitas vezes navios, que por si só, podem constituir verdadeiras ameaças ambientais previamente orientadas para os seus objectivos (Lopes, 2008). Este facto dificulta o estabelecimento de uma fronteira bem demarcada na avaliação dos dois tipos de ameaça. Essa avaliação de per si já está eivada de complexidade se atendermos ao carácter de imprevisibilidade das acções e dos meios empregues para desenvolver os ilícitos.

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porque em concreto o seu âmbito, para além de regional e global, é como já referimos, transversal a diversos sectores de actividade a nível nacional, há um vasto conjunto de outras organizações internacionais, regionais e locais que directa e ou indirectamente concorrem para aquele desiderato55. Um sistema de segurança marítima que pretenda ser operacionalmente eficaz e eficiente na perspectiva multidimensional, carece de múltiplas funcionalidades e capacidades desenvolvidas de forma articulada e coordenada nacional e internacionalmente, de entre as quais salientamos: - Monitorização das condições ambientais no espaço marítimo56; - Disponibilidade de informações relativas ao tráfego marítimo57; - Informações relativas aos marítimos (tripulações de navios) directamente envolvidos no transporte internacional de bens e passageiros; - Informações relativas aos navios58; - Natureza, características e tipologia das cargas e produtos transportados pelos navios; - Capacidade para exercer vigilância, policiamento e presença naval nos quadros da jurisdição dos espaços marítimos e no quadro do exercício da soberania59; A interacção multi-agência e cooperativa possibilita o desenvolvimento de operações de maritime security e maritime safety, à escala nacional, regional e global. Para tal é fundamental o desenvolvimento de coordenações entre outras da Organização Marítima Internacional (IMO, que integra 170 estados membros e tem tido um papel de grande relevo com a aprovação de várias convenções e protocolos nas duas vertentes da segurança marítima), da Organização Mundial Aduaneira (WCO), a Organização Internacional do Trabalho (ILO), a NATO, a UE (a segurança marítima integra-se na Politica de Defesa e de Segurança Comum e articula-se com várias agências especializadas e iniciativas, entre elas EMSA – Agencia Europeia de Segurança Marítima, com sede em Lisboa; Agência Espacial Europeia – ESA; Agência Europeia de Defesa –EDA; Agência Europeia de Gestão da Cooperação Operacional nas Fronteiras Externas dos Estados-Membros da União Europeia -FRONTEX) e os Organismos, Serviços e Forças de Segurança e ramos das Forças Armadas que a nível nacional concorrem para a segurança no espaço marítimo de soberania ou jurisdição, portos e infra-estruturas portuárias. 56 Nas várias dimensões que o compõem enquanto espaço físico, e sua envolvente, englobando a superfície, sub-superficie, as áreas terrestre e aéreas adjacentes. 57 Através de sistemas de identificação e acompanhamento de navios a longa distancia (Long Range Identification and Tracking), que permite um conhecimento global do panorama de superfície relativo a navios com mais de 300 toneladas em todos os oceanos do globo, e, sistemas de controlo de tráfego marítimo – VTS (Vessel Traffic Service), que permitem a identificação, o controlo, o seguimento e a comunicação de informações relativas aos navios. 58 Com relevância no quadro da implementação de medidas de protecção física previstas no Código Internacional para a Protecção dos Navios e das Instalações Portuárias (International Ship and Port Facility Security Code - ISPS ), e nas responsabilidades no âmbito da aplicação da CNUDM relativas a responsabilidades internacionalmente adoptadas através do controlo pelo Estado de bandeira (Flag State Control), controlo pelo Estado de porto (Port State Control) e controlo pelo Estado costeiro (Coastal State Control), de forma a identificar, prevenir e minimizar as grandes fontes de risco inerentes ao transporte marítimo. 59 Que implica a presença de meios navais no mar com capacidade de dissuasão e de intervenção, visando o cumprimento das regras de regulação do tráfego marítimo, monitorização e controlo da poluição, preservação dos recursos marinhos e investigação científica do mar, que se constituem como acções de apoio ao desenvolvimento económico do mar. 55

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- Capacidade de desenvolver operações de salvamento para assistir pessoas, navios e embarcações em perigo no mar60; - Capacidade para exercer o controlo e vigilância das operações portuárias, de controlo de pessoas e bens nos portos e segurança das instalações portuárias. Para que os esforços e diligências de segurança marítima tenham uma escala mais alargada e se repercutam no uso e protecção do mar na perspectiva da salvaguarda da economia globalizada têm que ter uma articulação com as iniciativas de defesa colectiva e expedicionária, travejadas nas leis internacionais e com a participação das organizações que prosseguem a segurança e defesa – ONU, NATO, OSCE e UE61 - essencialmente para fazer face aos riscos, ameaças e criminalidade de carácter internacional ou transnacional, a que já nos referimos, e ainda no esforço de ajuda humanitária internacional no mar e através do mar. Neste particular a NATO continua a ter um papel de destaque principalmente pelo conhecimento adquirido em operações navais multinacionais e capacidades de comando e controlo, e, no desenvolvimento, implementação, operacionalização, treino e melhoria contínua de conceitos como Maritime Situational Awareness (MSA)62 e Maritime Security Operations (MSO)63, que possibilitam o desenvolvimento integrado e eficiente de operações navais da Aliança, muitas vezes em parceria ou colaboração com outras organizações, e ou países não membros que manifestem disponibilidade para integrarem essas iniciativas64. Para a consecução das actividades de segurança marítima no seu conjunto, de uma forma sustentada, é fundamental garantir a sua potencialização, através de várias iniciativas e esforços, que passam por: Baseado nas responsabilidades de Busca e Salvamento (Search and Rescue – SAR) e salvaguarda da vida humana no mar, vertidas em diversas convenções internacionais, que envolve responsabilidades para os estados de disporem de Centros de Coordenação de Operações de Socorro (Maritime Rescue Coordination Centre – MRCC – existe um em Lisboa) que coordenam e exercem o Comando e Controlo das operações de salvamento envolvendo meios navais, aéreos e serviços de socorros marítimos, e articulados igualmente com o Sistema Global de Socorro e Segurança Marítima (Global Maritime Distress and Safety System – GMDSS). 61 Que desenvolve importantes operações navais como são o caso das levadas a cabo no quadro da EUROMARFOR (em muitos casos em colaboração com a FRONTEX), com destaque para o Mediterrâneo (articulando esforços também com marinhas do Magrebe) e para a operação ATALANTA de prevenção e combate à pirataria ao largo da Somália. 62 Constitui-se como uma iniciativa que corporiza uma gestão multisistema que visa obter e exponenciar e integrar informações de várias origens, fundamentais ao conhecimento do panorama de superfície que permite o desenvolvimento de operações de segurança marítima nos âmbitos maritime security e maritime safety. 63 Objecto de precisão conceptual e doutrinária, enquadrada no Conceito Estratégico de Lisboa (NATO, 2010) e vertida em documentação estruturante (North Atlantic Council, 2011; North Atlantic Military Committee, 2011). 64 Como por exemplo no controlo da imigração ilegal no mar no entorno europeu com a colaboração da FRONTEX, ou no combate ao tráfico de estupefacientes por via marítima em colaboração com a EUROPOL e INTERPOL. 60

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- Conhecimento cientifico do mar, possibilitando entre outras, as medidas de preservação dos ecossistemas dos espaços marinhos, e de redução dos impactos resultantes das alterações climáticas (medidas de mitigação e de adaptação); - Operacionalização de uma visão focalizada em torno de uma cultura de segurança marítima, e a noção da seu alcance e real valia no quadro geral de segurança nas escalas nacional65, regional e global; - Desenvolvimento de uma verdadeira consciência das importância dos assuntos do mar e da dependência das nações do uso sustentado dos espaços marítimos, que se traduz em bem estar e progresso, e, que continuará a ter um incontornável papel no futuro da humanidade. 4. Conclusões A análise atrás desenvolvida permite-nos concluir que o quadro geral de segurança marítima sofreu grandes transformações nos últimos trinta anos. O seu desenvolvimento está intimamente ligada à tipologia diversificada e complexa das ameaças e riscos que hoje pende sobre as áreas de soberania e jurisdição marítima dos estados, com repercussões a escalas transnacionais, regionais e globais. Os vários tipos de ilícitos criminais que tiram partido das especificidades próprias do mar, e o impacto dos acidentes marítimos com origem humana ou natural, colocam em evidência insuficiências que apenas podem ser mitigadas com recurso à cooperação internacional de carácter multilateral, assente na partilha de princípios e visões comuns dos desafios de segurança, informação, meios, tecnologia, e outros, que conjugados se traduzam numa segurança acrescida, e maior em valor absoluto da que seria possível conseguir com a participação do estado por si só.

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Numa apreciação breve sobe o caso nacional, há que realçar que Portugal possui soberania ou jurisdição sobre uma extensíssima área marítima de que se destaca uma ZEE que representa uma superfície equivalente a 18 vezes o tamanho da sua zona emersa; que apresentou a candidatura à extensão da Plataforma Continental, que quando aprovada, representará um aumento da soberania nacional sob o solo e sub-solo do mar em quase 39 vezes o território português e a mais de 82% da área terrestre do conjunto dos 27 países da UE (Correia, 2010); o pais assumiu o compromisso, acordado internacionalmente, de assegurar um serviço SAR numa área de responsabilidade a que representa cerca de 63 vezes a sua superfície (Ribeiro, Silva, Palma e Monteiro, 2010, p. 53), e que faz fronteira com áreas congéneres dos EUA e do Senegal (na qual se encontra incluída a área SAR de Cabo Verde). Acresce que participam no esforço de segurança marítima portuguesa organismos e entidades como Forças e Serviços de Segurança (PSP, GNR, PJ SEF, SIS ASAE, Autoridade Nacional de Protecção Civil), Marinha, Força Aérea, Autoridade Marítima Nacional, Administrações Portuárias, Direcção Geral das Alfandegas, Autoridade Nacional de Saúde. Portugal participa em iniciativas de segurança marítima no quadro regional e global, integrando missões multinacionais sob a égide da ONU, NATO e UE.

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O vigente modelo de economia globalizada depende de uma eficaz e eficiente segurança marítima assenta numa operacionalização da segurança marítima conjunta, combinada, cooperativa, multinível. que faça uso de instrumentos de soft e hard power, credíveis, equilibrados, coordenados e sustentáveis. O alcance e eficácia da segurança marítima depende do envolvimento dos Estados e das organizações internacionais, envolvendo os sectores público, privado e sociedade civil caldeados numa cultura de segurança de largo espectro, que tenha como referencial a importância do uso do mar para a humanidade. 5. Referências Bibliográficas ARCHER, David, RAHMSTORF, Stefan. The Climate Crisis; An Introductory Guide to Climate Change. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA. Resolução da Assembleia da República nº 60-B/97, Aprova para ratificação, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, 1997, [em linha] disponível em: http://www.mdn.gov.pt/ NR/rdonlyres/ADE9B30F-02F0-49EE-A90E-5605CE5B2858/0/CNUDM_ DL_293_14101997.pdf. BOTELLA, José. Seguridad Marítima: Tendencias y Retos. In Ministerio de Defensa, Cuadernos de Estrategia, Abril 2008, nº 140, [em linha], disponível em: http://www.ieee.es/publicaciones/cuadernos-estrategia/cuadernos/ cuaderno-140.html. BORGES, Maria, CABRAL, Henrique, ANDRADE, Francisco. Oceano. In Henrique PEREIRA et al., Ecosistemas e bem-estar humano; Avaliação para Portugal do Millennium Ecosystem Assessment, Lisboa: Escolar Editora, 2009, p. 437-461. BRITO, Raquel. O Atlântico, um oceano entre três mundos: Uma visão de geógrafa. [em linha], 2000, disponível em: http://www2.dao.ua.pt/brasilportugal2000/ pdf/ATLANTIC_RBrito_Com%20.pdf CAJARABILLE, Vítor. Conceito de Segurança; Aplicação ao Mar. Cadernos Navais. 2008, nº 24, Janeiro-Março, Lisboa: Edições Culturais de Marinha, pp. 55-65. CARON, François. Peut-on encore parler de maitrise de la mer. Strategique, 2007, nº 89/90, Paris: Económica, pp. 136-149. CARVALHO, Virgílio de. Os oceanos, as marinhas e a soberania. Anais do Clube Militar Naval, 1998, Vol. CXXVIII, Lisboa, p. 269-285. CHALK, Peter. The Maritime Dimension of International Security: Terrorism, Piracy, and Challenges for the United States. [em linha], 2008, disponível em: http://www.rand.org/pubs/monographs/2008/RAND_MG697.pdf. CHANTERAC, Audouin. Puissance Maritime et Économie, Bulletin D’Études de la Marine, [em linha], nº 36, Janvier 2007, disponível em: http://www.fbls. org/pages/FR/colloquium/documents/BEM_n_36.web.pdf.

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Francisco Proença Garcia Tenente-Coronel do Exército, Agregado em Relações Internacionais. email: garcia.smgpp@mail.exercito.pt

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Resumo: Esta breve intervenção está organizada em quatro tópicos. Com o primeiro procuramos saber a resposta aos motivos que levam a Aliança a desenvolver esta capacidade militar; em segundo lugar interessa perceber como é desenvolvido o sistema. Falar em defesa antimíssil na NATO implica forçosamente falar em novas formas de dissuasão e no reforço do link transatlântico, tema a abordar no terceiro tópico e, por último é forçoso abordar ainda a temática da cooperação com a Rússia (RUS). Palavras-Chave: Defesa Anti-Míssil / Nuclear / Cooperação com a Rússia / Dissuasão. Abstract: This brief intervention is organized into four topics. With the first we try to know the answer to the reasons that lead the Alliance to develop the military capacity, and secondly interested to see how the system is developed. Speaking on the NATO missile defense necessarily involves talking about new forms of deterrence and strengthening the transatlantic link, topic to be addressed in the third topic, and finally it must also address the issue of cooperation with Russia (RUS). Key-Words: Missile Defense / Nuclear / Cooperation with Russia / Deterrence.

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Porquê? A ameaça colocada pelo dilema da proliferação de Armas de destruição massiva (ADM) cria uma alteração significativa na segurança internacional. Aproximamo-nos, a passos largos, de uma situação de não retorno, em que o desgaste dos Tratados pode levar a um efeito de cascata na proliferação, sendo os casos mais problemáticos identificados no Médio-Oriente e no Golfo Pérsico, onde, se prevê, que se o Irão adquirir esta capacidade, a Arábia Saudita e a Turquia lhe seguirão as passadas. A Comunidade Internacional deve preocupar-se com esta situação, dado que há um incremento de actores estatais e não-estatais que procuram construir/ obter as suas próprias ADM. Estes podem depois constituir-se em fontes de proliferação, assumindo particular relevo a ameaça que constitui a possibilidade de grupos terroristas terem acesso a tecnologia nuclear e poderem chantagear, destabilizar ou concretizar acções de terror. Hoje são 9 os Estados identificados com arsenais nucleares, de um total de 12 que têm programas de armamento nuclear. Há ainda um total de 27 países que possuem mísseis balísticos. Um outro perigo prende-se com a criação de stocks elevados de material nuclear e radioactivo, estando algumas quantidades armazenadas em condições que oferecem pouca segurança. O factor humano desempenha também um importante papel. Há cientistas que trabalham no sector que expressaram a sua disponibilidade em trabalhar para Estados considerados proliferadores. Um outro exemplo surge com Qadeer Khan, pai do programa nuclear Paquistanês, que criou o Walmart do sector privado da proliferação. Ao que tudo indica, Khan foi o grande responsável pela proliferação Sul-Sul, tendo criado uma rede internacional clandestina relacionada com a proliferação de tecnologia de armamento nuclear, do Paquistão para a Líbia, Irão e Coreia do Norte. Nestas circunstâncias, o risco de acesso por elementos terroristas a tecnologia nuclear aumenta significativamente e, não podemos deixar de ter em conta que a liderança da al-Qaeda tem tentado, de forma sustentada, adquirir, furtar ou conceber uma ADM.

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Esta persistência na proliferação, para além dos motivos de prestígio internacional e mesmo de economia, acontece sobretudo pela percepção de segurança que a posse de uma arma nuclear confere, nomeadamente quanto a uma eventual intervenção militar norte-americana. Mas a proliferação também se prende com a crença existente entre os estados com capacidade nuclear, do atual e contínuo valor daquele tipo de armamento, o que nos conduz ao círculo da dissuasão, incentivando aqueles que o não possuem, a adquiri-lo. No atual complexo ambiente estratégico, a Aliança considera como a sua principal ameaça, e que terá de enfrentar durante os próximos 10 a 15 anos, a proliferação de ADM e o Terrorismo nuclear. Mas apoiemos as nossas afirmações nas palavras do Secretário-Geral da NATO, proferidas este Verão no Royal United Services Institute em Londres: As we sit here discussing missile defence, some people elsewhere in the world are discussing missile attack Alguns Estados têm capacidade de atingir o território Europeu, outros podem vir a ameaçar interesses da Aliança, em consequência da evolução tecnológica e do infindável desafio do combate à proliferação de armas de destruição massiva. O Secretário-Geral da NATO, considera assim que aliados não podem permitir que o seu espaço possa vir a ser violado ou atacado, sendo a NATO responsável pela defesa das suas Forças, do seu território e também pela protecção de cerca de 900 milhões de pessoas que vivem no espaço transatlântico. Os sistemas de defesa antimíssil (MD), que descreveremos adiante, estão a ser desenvolvidos para fazer face a uma possível ameaça de mísseis balísticos e, na Cimeira dos 60 anos da Aliança que teve lugar em Estrasburgo/Kehl, com base na análise técnica e político-militar, foi decidido que a ameaça deveria ser abordada por prioridades, motivo pela qual se entende que no imediato, a principal ameaça balística que a Aliança poderá enfrentar é proveniente do Médio-Oriente, nomeadamente do Irão. Irão que actualmente tem potencial conhecimento científico e tecnológico para desenvolver armas nucleares e desenvolve programas de enriquecimento de urânio e de produção de plutónio e, será capaz de desenvolver, construir e testar um engenho nuclear de um desenho simples, em dois ou três anos, após decisão para o executar, podendo levar cinco anos para transitar de um engenho simples para o desenvolvimento de uma ogiva nuclear capaz de ser acoplada num míssil balístico. Em paralelo com o programa nuclear, o Irão desenvolve mísseis balísticos, com o objectivo aparente de ser capaz de projectar ogivas nucleares para além das suas fronteiras. Esta, recordamos, é uma ameaça hipotética, pois apesar de o Irão desenvolver todas estas capacidades, não há evidência que procure ameaçar territórios, Forças ou populações da Aliança.

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Como? Na última Cimeira foi reafirmado que a proliferação de mísseis balísticos coloca uma crescente ameaça às Forças, territórios e população dos Aliados, sendo que a MD constitui parte de uma resposta mais alargada para conter essa ameaça. Mas, ao falarmos em MD na NATO temos de abordar o tema em duas grandes áreas: Defesa de Teatro e defesa Territorial. Active Layered Theatre Ballistic Missile Defence (ALTBMD) O Programa do ALTBMD tem em vista o desenvolvimento de uma capacidade de defesa anti-míssil, capaz de conferir protecção às forças NATO, fundamentalmente para mísseis balísticos com alcances até 3000 Km. O estudo de viabilidade deste Programa foi lançado em Julho 2001 como resposta à proliferação das tecnologias ligadas ao emprego de mísseis balísticos e à existência de equipamentos capazes de alcançar partes do território da Aliança (podendo, mesmo, transportar ADM). Em Março de 2004, o Conselho do Atlântico Norte aprovou o programa ALTBMD que foi posteriormente ratificado pelos Chefes de Estado e de Governo na Cimeira de Istanbul. Este programa desenvolve-se por fases de implementação e baseiase na integração dos diferentes sistemas em uso nas nações NATO. A Interim Operational Capability ou fase interina, foi concluída este ano e garante já proteção às curtas distâncias, estando atualmente em desenvolvimento a Initial Operational Capability que servirá para apoio à NATO Response Force, à qual se segue uma Full Lower Layer TMD C2, implementada através da estrutura de comandos fixa e móvel da Aliança; e, por último, a Integrated Upper/Lower Layer C2. A arquitectura final espera-se que seja atingida em 2017. Na cimeira que aprovou o novo Conceito Estratégico e que decorreu em Lisboa, os Estados membros aprovaram o objetivo do programa de comando, controlo e comunicações do ALTBMD, ser expandido para que a proteção seja garantida às populações e territórios dos Estados membros da Aliança. Atualmente decorrem estudos para verificar a viabilidade da integração deste sistema no novo sistema norte-americano, sendo que o ALTBMD, é a base do sistema de defesa antimíssil territorial da Aliança. Defesa antimíssil Territorial Foi na Cimeira de Praga em 2002 que foi decidido o lançamento de um estudo de exequibilidade do ambicioso projecto do Territorial Missile Defence, que tem como objectivo proteger não só as forças, como o território e as populações das nações da Aliança e, a 17 de Setembro de 2009, o Presidente Obama apresentou uma nova visão para a defesa antimíssil, o que veio alterar os trabalhos em curso na Aliança. A solução apresentada caracteriza-se essencialmente por

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se desenvolver em quatro fases até 2020 e foi designada como Phased Adaptive Approach (PAA). Na Cimeira de Lisboa este foi um dos temas centrais. O projecto tem como objectivo proteger as forças, o território e as cidades com mais de 125.000 habitantes. A capacidade de defesa anti-míssil será desenvolvida a partir da arquitectura do Sistema Integrado de Defesa Aérea da Aliança, constituindo uma estrutura integrada dos dois sistemas (defesa aérea e antimíssil). O Sistema a criar baseia-se nos diversos contributos nacionais. Os EUA disponibilizaram o seu actual modelo, o PAA, que deverá ser complementado com os sistemas de outros Aliados, tendo a NATO de fornecer o sistema de Comando, Controlo, Comunicações e de Gestão de Batalha, que será criado a partir da expansão do Sistema ALTBMD. O projeto teve por base, por um lado, uma reavaliação da ameaça balística, nomeadamente por o Irão progredir mais rapidamente do que estava inicialmente previsto na sua capacidade de produção de mísseis de curto e médio alcance e, por outro lado, aproveitar a tecnologia e os meios disponíveis – os navios Aegis com interceptores SM-3 Block I-A – para fazer face à ameaça. Desta forma antecipa-se a efectiva protecção do território europeu em alguns anos. O sistema deverá evoluir em quatro fases: • A partir de 2011, a operacionalização do projecto terá, essencialmente, por base os interceptores móveis colocados a bordo de navios no Mediterrâneo oriental. Capacidade de defesa para mísseis de curto e médio alcance (entre 1000 e 3000 km); • A partir de 2015, numa segunda fase, o sistema será complementado por interceptores terrestres, localizados no Nordeste europeu; • Até 2018 será efectuado o alargamento para o dobro da área de cobertura graças ao novo interceptor (SM-3 Block IIA) desenvolvido em cooperação com o Japão e a instalação de três novos sites, dois em terra (Roménia em 2015 e Polónia em 2018) e um no Mediterrâneo. Nesta fase também se terá novas capacidades de detecção e deverá cobrir todo o território e populações dos países da NATO contra MRBM/IRBM (até 5500 km); • Finalmente, em 2020, o sistema deverá ter capacidade de interceptar mísseis intercontinentais (+ 5500 km), conferindo cobertura completa do território europeu da Aliança. Esta abordagem terá menores custos do que outras apresentadas anteriormente, será mais flexível e adaptável, apresenta uma maior capacidade de sobrevivência e garantirá o princípio fundamental da indivisibilidade da Segurança para todos os membros da Aliança, sendo que, a arquitectura se desenvolve face à evolução da ameaça, tendo sido decidido que a prioridade na resposta deve antes incidir sobre os mísseis de curto e médio alcance, relativamente aos quais o Irão, como já referimos anteriormente, dispõe de capacidade desenvolvida. Quanto aos mísseis intercontinentais, a revisão

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efectuada concluiu que o acesso a uma tecnologia fiável e disponível não será uma realidade, no curto e médio prazo. Este projeto ilustra bem os benefícios da Smart Defence conseguida com as economias de escala de abordagens multinacionais, tendo a Aliança como objectivo anunciar uma capacidade interina já na próxima Cimeira em Chicago. Todo este sistema deve ser avaliado de uma forma global, inserido no âmbito de uma estratégia de dissuasão norte-americana que engloba diversos parceiros. Na Ásia o Japão, a Coreia do Sul e Taiwan; no médio oriente Israel, Arábia Saudita, Kuwait e Turquia e, na Europa, a Alemanha, Holanda, Espanha e Grécia, todos dotados de sistemas Patriot. De lembrar que a Espanha e Noruega possuem também navios Aegis. O Link Transatântico Esta questão demonstra a importância do papel crítico do link transatlântico e não pode também ser desligada da presença nuclear norte-americana na Europa. Enquanto esta se mantiver, a NATO deve desenvolver a defesa antimíssil como um elemento da sua postura defensiva cada vez mais importante, acrescentando assim um importante vector de dissuasão pela negação. Um sistema de defesa antimíssil efectivo pode ser complementar e eventualmente, a seu tempo, o substituto da nuclear sharing, como meio de manter os EUA empenhados na Defesa Europeia; acresce que alguns Estados-Membro, não sentirão a necessidade de desenvolver os seus próprios meios nucleares, e ainda, este sistema não manterá na Aliança o estatuto diferenciador entre países nucleares e não nucleares. Recordamos que as actuais Forças nucleares disponíveis para a Aliança, já não se destinam a ser empregues contra um país ou alvo específico e o seu emprego é extremamente remoto, sendo a sua função política, enviando uma mensagem de dissuasão clara por parte da Aliança. Esta capacidade continua a proporcionar uma resposta gradual e proporcional a um qualquer risco emergente, evitando uma escalada massiva; mas e sobretudo, continuam a dar a clara indicação política que mantêm o link transatlântico e o garante da Extended Deterrence, ficando sempre um sinal político negativo com a sua retirada. Cooperação com a Rússia O diálogo com a RUS é fundamental em áreas cruciais para a segurança internacional, como sejam as discussões em torno do controlo de armamento, desarmamento e não proliferação, armas convencionais e nucleares, defesa antimíssil, segurança energética, bem como de tudo o que se relaciona com o espaço e o ciberespaço. Acresce que este relacionamento é igualmente relevante para as operações que decorrem no Afeganistão, no combate ao terrorismo, ao tráfico de droga e à pirataria.

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De entre os programas em curso no âmbito do Nato Russia Council (NRC), é de destacar a cooperação a nível Theatre Missile Defence. Este programa tem como objectivo conseguir a interoperabilidade entre os meios da RUS e da NATO, com o consequente aumento da eficácia global do sistema. A mais recente doutrina militar russa considera o alargamento da NATO uma das principais ameaças à sua segurança, isto em paralelo com o desenvolvimento do eventual sistema antimíssil, perturbadores da actual estabilidade e alinhamento no campo do nuclear, bem como da militarização do espaço e a projecção de sistemas de armas estratégicas não nucleares. A RUS reserva o direito de empregar armas nucleares em resposta à utilização deste tipo de armas ou de qualquer outro tipo de ADM contra si ou contra os seus Aliados, ou também de qualquer outro tipo de armas contra a Federação, desde que a existência do Estado esteja sobre ameaça, Deixa no entanto a porta aberta para negociações no que ao MD diz respeito, pois admite a possibilidade da criação de mecanismos para a regulação e cooperação bi e multi-lateral neste âmbito. Tudo depende do papel que lhe for atribuído e do grau de participação no processo de decisão. Mas porquê a preocupação e a insistência com o envolvimento russo no MD? Com efeito, a RUS possui capacidades de detecção, identificação e tracking de um qualquer disparo, que seriam não só um contributo útil, como um corte nos custos de todo o projecto MD territorial. Esta cooperação é ainda fundamental pelas consequências associadas aos destroços que surgirão após a intercepção/ destruição de um qualquer míssil cujo alvo se localize em certas regiões da Europa, uma vez que o território russo terá a probabilidade de ser o território mais afectado. Os EUA referem e forçam mesmo no seio da Aliança esta eventual cooperação com os russos na partilha de informação e na área dos radares, aproveitando a sua oferta, em 2007, de utilização das instalações em Kabala (Azerbeijão), e, em Armavir (Rússia), devido à sua capacidade para uma detecção precoce de lançamentos a partir do Irão. Esta cooperação deve assentar numa relação de confiança, no acordo de princípios e objetivos políticos, mas Autoridades russas continuam a mostrar preocupação quanto às fases III e IV do sistema e, pretendem obter garantias que não afectem o equilíbrio estratégico. Os EUA tentam explicar que a capacidade de interceção do sistema European Phased Adaptive Approach não se destina, nem tem capacidade de interceptar mísseis intercontinentais. Porém, apesar das garantias de que o programa MD não se destina a fazer face aquela nação, mas fundamentalmente à ameaça crescente do Irão, os russos, caso não sejam membros activos no processo, rogam-se no direito de considerar ameaça, todo o míssil que cruzar o seu espaço e de tomar as medidas que entenderem por adequadas, assumindo actualmente uma posição interessante, definida pelo seu Representante Permanente junto da Aliança, Embaixador Rogosin como de trust but verify. No fundo tudo dependerá do papel que lhe for atribuído e do grau de participação no processo de decisão.

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Quando a Aliança Atlântica convidou a RUS para cooperar num modelo de defesa antimíssil do território europeu, previa a existência de dois sistemas independentes e coordenados, não abdicando a NATO da sua responsabilidade exclusiva pela defesa do território dos seus Aliados. A insistência do Presidente Medvedev num sistema único, com uma componente de comando e controlo centralizada, e dividido em sectores regionais, veio de algum modo atrapalhar a metodologia pensada para o prosseguimento deste importante mandato dimanado de Lisboa. A Aliança apresentou a proposta de criação de dois centros conjuntos, um mais no âmbito técnico para fusão de dados, e outro para negociações e trabalho de estado-maior. Estes centros permitirão a obtenção de um panorama operacional comum. A informação fluirá para o Centro através dos sensores da NATO, e da RUS. Este conceito mantém dois sistemas independentes, protegendo NATO o território da Aliança e RUS o seu território; esta independência de sistemas permite que o ciclo de controlo de disparo fique também ele independente do centro conjunto de processamento de dados. Um ano após a Cimeira de Lisboa, é possível testemunhar evoluções nas posições russas em relação ao desafio lançado pela NATO. Hoje Rogosin, embora não oculte ainda algum cepticismo, reconhece que o sistema antimíssil da Aliança é possível de concretizar com a RUS ou contra a RUS. Da reunião do NRC ocorrido a quatro de Julho deste ano em Sochi, o Secretário-Geral da Aliança reiterou na conferência de imprensa, o empenhamento da Aliança e da RUS no estabelecimento de um ambiente de confiança recíproca em prol da segurança internacional, considerando que esta postura dará um novo impulso ao compromisso estabelecido pelo programa de defesa anti-míssil da Aliança. Concluía com um desafio para o debate. Para mim, nesta discussão o mais importante é a manutenção da foot print norte-americano no Velho Continente, essa é a verdadeira importância político-estratégica do Programa de defesa antimíssil. Bibliografia e outras Fontes: ANTHONY, Ian (2010) - The future of nuclear weapons in NATO: a SIPRI study. Apresentação efectuada durante a Annual NATO Conference on WMD Arms Control, Disarmament and Non-Proliferation, realizada em Praga em Junho de 2010. EASTWEST INSTITUTE (2009) – Iran´s Nuclear And Missile Potential. A joint Threat assessment by US And Russian Technical Experts. Brussels. FITZPATRICK, Mark (2010) - Iran’s Ballistic Missile Capabilities: A net assessment. International Institute for Strategic Studies, London.

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Dez anos do Euro. Valeu apena?

António Luvualu de Carvalho Professor Auxiliar e Coordenador Adjunto do Curso de Relações Internacionais da Universidade Lusíada de Angola. Licenciado em Relações Internacionais pela Universidade Lusíada de Angola, Mestre e Doutorando em Relações Internacionais pela Universidade Lusíada de Lisboa. Investigador do Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade CEPESE. antonioluvualudecarvalho@gmail.com

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Resumo: A introdução do Euro é mais uma das etapas do processo de integração que pretende levar a Europa a união política depois de já ter passado pela Zona de Comercio Livre, União Aduaneira, Mercado Comum, e agora União Económica e Monetária. Perante o quadro da integração regional chegandose a estas etapas, podemos nos perguntar, qual é a vantagem de se ter uma moeda única? O benefício mais óbvio de adoptar uma moeda única é remover o custo de troca de moeda, teoricamente permitindo que empresas e indivíduos concretizem negócios que antes não eram lucrativos. Para os consumidores, os bancos da Zona do Euro devem cobrar o mesmo valor para transacções entre membros como transacções puramente nacionais de pagamentos electrónicos (por exemplo, cartões de crédito, cartões de débito e máquinas de levantamento de dinheiro). A ausência de moedas distintas também remove os riscos da flutuação das taxas de câmbio. O risco do movimento inesperado das taxas de câmbio tem sempre acrescentado um risco adicional ou incerteza para as empresas ou indivíduos que investem ou possuem o comércio fora das suas zonas de moeda própria. As empresas que lutam contra esse risco já não terão necessidade de arcar com este custo adicional da flutuação das várias moedas. No caso especial da Europa, este facto é particularmente importante para os países cujas moedas tiveram tradicionalmente muita oscilação muito forte, especificamente as nações do Mediterrâneo. Veremos neste trabalho a evolução da moeda até chegarmos ao Euro e como de facto é que ele alterou a vida dos cidadãos da Zona Euro podendo no fim chegar a uma conclusão se o Euro valeu apena. Palavras-Chave: Euro / Falência / Crise / Resgate / União Europeia / Zona Euro. Abstract: The introduction of the euro is another step in the integration process that aims to bring Europe into political union having already passed the Free Trade Area, Customs Union, Common Market, and now economic and monetary union. Given the context of regional integration coming to these steps, we can ask ourselves, what is the advantage of having a single currency? The most obvious benefit of adopting a single currency is to remove

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the cost of exchanging currency, theoretically allowing businesses and individuals do business that were not profitable. For consumers, banks in the Euro zone must charge the same for transactions between members as purely domestic transactions for electronic payments (eg credit cards, debit cards and cash withdrawal machines). The absence of distinct currencies also removes the risk of fluctuating exchange rates. The risk of unexpected movement of exchange rates has always added an additional risk or uncertainty for companies or individuals who have trade or invest outside their own currency zones. Companies that are struggling against this risk will no longer need to bear this additional cost of shifting currencies. In the special case in Europe, this is particularly important for countries whose currencies have traditionally had very strong oscillation, specifically the Mediterranean nations. We will see in this work the evolution of money until we get the Euro and how it is in fact changed the lives of citizens of the euro zone could in the end reach a conclusion if the Euro was worthily. Key-Words: Euro, Bankruptcy, Crisis, Rescue, European Union, The Euro Zone.

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No primeiro dia do presente ano comemorou-se uma década da introdução no mercado europeu do Euro. Nos dias que hoje, a data não é comemorada com nenhuma pompa nem circunstancia já que muitos políticos e cidadãos da Zona Euro culpam a moeda única pela profunda crise que vivem. No final do mês de Janeiro, soube-se que a Alemanha pediu uma perda da soberania financeira da Grécia transferindo-se as competências financeiras da Grécia para um comissário que teria o poder de fiscalizar os orçamentos gregos e vetar algumas necessidades helénicas. Neste sentido, a meu ver, muitos países da Zona Euro estão susceptíveis a perder a sua soberania começando pelos países mais fracos como Portugal, Irlanda, Espanha e Itália. Se fossem todos para este caminho, a Alemanha em breve transformar-se-ia em um super Estado deixando de fazer sentido os Estados estarem unidos sob a bandeira da União Europeia. Em seguida, veremos a história da moeda única e analisaremos os porquês do seu fracasso. 1.1 Os antecedentes do Euro. 1.1.1 O sistema Padrão Ouro e o seu colapso. Como é por nós sabido, o padrão-ouro foi o sistema monetário cuja primeira fase vigorou desde o século XIX até a Primeira Guerra Mundial. A teoria pioneira do padrão-ouro, chamada de teoria quantitativa da moeda, foi elaborada por David Hume em 1752, sob o nome de modelo de fluxo de moedas metálicas e destacava as relações entre moeda e níveis de preço (base de fenómenos da inflação e deflação). De acordo com a teoria aplicada ao comércio internacional e nos dizeres do economista René Villarreal, os países superavitários sofreriam processos inflacionários, já nos países deficitários os preços se moveriam em sentido inverso, até que se restabelecesse o equilíbrio. Cada banco era obrigado a converter as notas bancárias por ele emitida em ouro (ou prata), sempre que solicitado pelo cliente. A introdução de notas bancárias sem esse lastro causou escândalos na França. Com o padrão-ouro, utilizado principalmente pela Inglaterra, o sistema conseguiu estabilidade e permaneceu até o término da Primeira Guerra Mundial. Em alguns países periféricos, o sistema não foi adoptado por se achar que a presença desses países e seus problemas de financiamento desestabilizariam o sistema. Dessa forma,

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a circulação de papel-moeda foi feita pelo chamado sistema de curso forçado. Em termos internacionais, o padrão-ouro significou a adopção de um regime cambial fixo por parte de praticamente todos os grandes países comerciais de sua época. Cada país se comprometeu em fixar o valor de sua moeda em relação a uma quantidade específica de ouro, e a realizar políticas monetárias, de compra e venda de ouro, de modo a preservar tal paridade definida. Operando no regime de padrão-ouro, o banco central de cada país mantém grande parte de seus activos de reserva internacional sob a forma de ouro. As diferenças entre as reservas de ouro sob a propriedade de cada país reflectiam, portanto, as suas necessidades comerciais. Pois, nesse padrão, os fluxos de ouro financiavam os desequilíbrios nas balanças de pagamentos de cada país. Se um país fosse deficitário em sua balança de pagamentos, isto é, se a soma de bens e serviços importados do exterior fosse superior à soma de bens e serviços exportados ao mesmo, o país deveria corrigir o déficit exportando ouro. Os países superavitários, por sua vez, tornavam-se importadores de ouro. As regras do jogo prevalecentes no sistema de padrão-ouro eram simples: a quantidade de reservas de ouro do país determinava, portanto, a sua oferta monetária. Se um país fosse superavitário em sua balança de pagamentos, deveria importar ouro dos países deficitários. Isso elevaria sua oferta interna de moeda, levando a uma expansão da base monetária, o que provocaria um aumento de preços que, no final das contas, tiraria competitividade de seus produtos nos mercados internacionais, travando assim, novos superávits. Já se o país fosse deficitário na balança comercial, exportaria ouro, sofreria contracção monetária, seus preços internos baixariam e, no final das contas, aumentaria a competitividade de seus produtos no exterior. Entretanto, o sistema padrão-ouro sofreu várias crises que posteriormente levaram a Europa a criar o seu sistema monetário denominado SME que veremos mais adiante. Assim sendo, entre 1750 e 1870 registou-se a crise da moeda de prata e das células. No final do século XVII, guerras e o comércio com a China, que vendeu à Europa mas teve pouco uso para os bens europeus, drenaram a prata das economias da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. As moedas foram cunhadas em números cada vez menores, e havia uma proliferação de notas de bancos e acções usadas como dinheiro. Na década de 1790, a Inglaterra, que sofria uma grande escassez de moedas de prata, cessou a cunhagem das moedas de prata maiores, emitiu moedas de prata em fichas e prensou moedas estrangeiras. Com o fim das guerras napoleónicas, a Inglaterra começou um programa massivo de re-cunhagem que criou soberanos de ouro, coroas e meias-coroas, e eventualmente pences de cobre em 1821. A recunhagem de prata na Inglaterra após uma grande seca produziu uma explosão de moedas: a Inglaterra atingiu cerca de 40 milhões de shillings entre 1816 e 1820, 17 milhões de meias-coroas e 1,3 milhões de coroas de prata. A Lei de 1819 para a retomada dos pagamentos em numerário definiu 1823 como a data para a retomada

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da conversibilidade, mas alcançada já em 1821. Por toda a década de 1820, pequenas notas eram emitidas pelos bancos regionais, que foram finalmente restritos em 1826, enquanto foi permitida ao Banco da Inglaterra a criação de sucursais regionais. Em 1833, no entanto, as notas do Banco da Inglaterra ganharam força legal, e a retomada pelos outros bancos foi desencorajada. Em 1844, o Bank Charter Act estabeleceu que as notas do Banco da Inglaterra, completamente vinculadas ao ouro, eram de cunho legal. De acordo com a interpretação estrita do padrãoouro, essa lei de 1844 marca o estabelecimento de um padrão-ouro completo para o dinheiro britânico (Villareal 1984 pp 63, 86). Os Estados Unidos adoptaram um padrão-prata baseado no dólar fresado espanhol em 1785. Isto foi codificado na Lei da Casa da Moeda e Cunhagem, e pelo uso por parte do Governo Federal do Banco dos Estados Unidos para guardar suas reservas, bem como estabelecendo uma razão fixa de ouro em relação ao dólar americano. Isso era, na verdade, um padrão-prata derivado, visto que não se exigia que o banco mantivesse uma relação da prata com a moeda emitida. Começou uma longa série de tentativas nos Estados Unidos para criar um padrão bimetálico para o dólar americano, que continuaria até a década de 1920. As moedas de ouro e prata tinham cunho legal, incluindo o real espanhol, uma moeda de prata cunhada no hemisfério ocidental. Devido à grande dívida criada pelo Governo Federal dos Estados Unidos da América para financiar a Guerra Revolucionária, as moedas de prata cunhadas pelo governo deixaram de circular, e em 1806 o Presidente Jefferson suspendeu a produção de moedas de prata. O Tesouro dos Estados Unidos foi colocado em rígido padrão de dinheiro, fazendo negócios apenas em moedas de ouro e prata como parte do Independent Treasury Act de 1848, que legalmente separou as contas do Governo Federal do sistema bancário. Entretanto, as taxas fixas do ouro e da prata sobrevalorizaram a prata em relação à demanda por ouro no comércio e empréstimos com a Inglaterra. A fuga do ouro em benefício da prata levou à procura do ouro, incluindo a Corrida do Ouro da Califórnia de 1849. Seguindo a Lei de Gresham, a prata multiplicou-se nos Estados Unidos, que comercializava com outros países que usavam a prata, enquanto o ouro tornou-se escasso. Em 1853, os EUA reduziram o peso das moedas de prata para mantê-las em circulação, e em 1857 removeram a condição de cunho legal da cunhagem estrangeira. Em 1857, a crise final da era dos bancos livres das finanças internacionais começou, com os bancos norte-americanos suspendendo o pagamento em prata, repercutindo no jovem sistema financeiro internacional dos bancos centrais. Nos Estados Unidos, esse colapso foi um facto que contribuiu para a Guerra Civil Americana, e em 1861 o governo dos EUA suspendeu o pagamento em ouro e prata, terminando de fato com as tentativas de formar um padrão-prata para o dólar. Durante o período 1860-1871, várias tentativas de ressuscitar os padrões bimetálicos foram feitas, incluindo uma baseada no franco de ouro e prata. No entanto, com o rápido influxo de prata dos novos depósitos descobertos, a expectativa de escassez da prata acabou.

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A interacção entre os bancos centrais e a moeda base formou a fonte primária da instabilidade monetária durante este período. A combinação que produziu estabilidade económica foi uma restrição da oferta de novas notas, um monopólio do governo na emissão de notas directamente, e indirectamente, um banco central e uma unidade única de valor. Tentativas de evitar essas condições produziram crises monetárias periódicas: com as notas desvalorizando, ou a prata parando de circular como uma reserva de valor, ou havendo uma depressão com os governos demandando espécies como pagamento, diminuindo o meio circulante na economia. Na mesma época, havia uma necessidade dramaticamente expandida por crédito, sendo que os grandes bancos estavam sendo fretados em vários estados, incluindo, em 1872, o Japão. A necessidade de uma base sólida em assuntos monetários produziria uma rápida aceitação do padrão-ouro no período que se seguiu. A título de exemplo, e seguindo a decisão da Alemanha após a Guerra franco-prussiana de exigir reparações para facilitar um movimento para o padrão-ouro, o Japão obteve as reservas necessárias após a Guerra Sino-Japonesa de 1894-1895. É debatido se o padrão-ouro fornecia a um governo autenticidade suficiente quando ele procurava pegar empréstimos no exterior. Para o Japão, mudar para o ouro era considerado vital para ganhar acesso aos mercados de capital do Ocidente. Entretanto, de 1914 a 1925 o sistema sentiu o impacto negativo da primeira guerra mundial e do difícil processo de recuperação económica do pós guerra. Durante a Primeira Guerra Mundial, a maioria dos países abandonou o padrãoouro, principalmente devido às expansões monetárias e fiscais realizadas por eles durante a guerra, as quais desequilibraram enormemente o comércio internacional. Os governos enfrentaram uma necessidade de financiar altos níveis de despesas, mas com fontes limitadas de receita tributária, conversibilidade suspensa da moeda com o ouro em inúmeras ocasiões no século XIX. O governo britânico suspendeu a conversibilidade (ou seja, ele saiu do padrão-ouro) durante as Guerras Napoleónicas e o governo dos Estados Unidos durante a Guerra de Secessão. Em ambos os casos, a conversibilidade foi reassumida após a guerra. O teste real, no entanto, veio com a Primeira Guerra Mundial, um teste que falhou totalmente de acordo com o economista Richard Lipsey. Com o objectivo de financiar os custos da guerra, a maior parte dos países beligerantes saíram do padrão-ouro durante a guerra, sofrendo níveis significantes de inflação. Como os níveis de inflação variavam entre os estados, quando eles voltaram para o padrão após a guerra a um preço determinado por eles próprios (alguns, por exemplo, escolheram entrar a preços do pré-guerra), os bens de alguns países estavam subvalorizados e alguns sobrevalorizados. Em última análise, o sistema tal como estava não poderia lidar rapidamente o suficiente com os grandes deficits e excedentes criados no balanço de pagamentos. Isto foi previamente atribuído à crescente rigidez dos salários (principalmente em termos de cortes de salários) trazida com o advento do trabalho sindicalizado, mas hoje é mais razoável pensar como uma falha inerente ao sistema que veio a ser descoberta

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devido às pressões da guerra e a rápida mudança tecnológica. Em qualquer caso, os preços não alcançaram o equilíbrio na época da Grande Depressão, o que serviu para matá-lo completamente. Por exemplo, a Alemanha abandonou o padrão-ouro em 1914 e não poderia retornar para ele efectivamente, visto que o país perdeu grande parte de suas reservas de ouro restantes em reparações. O banco central alemão emitiu marcos sem lastro e virtualmente sem limite para comprar moeda estrangeira para mais reparações e para apoiar os trabalhadores durante a ocupação do Ruhr, finalmente levando à hiper-inflação da década de 1920. De 1925 a 1931 o padrão-ouro registou um declínio. Já que o padrão ouroespécie terminou no Reino Unido e no resto do Império Britânico com a eclosão da Primeira Guerra Mundial. As notas do Tesouro substituíram a circulação dos soberanos de ouro e meio soberanos de ouro. No entanto, legalmente, o padrão ouro-espécie não foi revogado. O fim do padrão-ouro foi realizado com sucesso por apelos ao patriotismo quando alguém pedia ao Banco da Inglaterra para resgatar os seus papéis-moeda em troca de ouro em espécie. Foi apenas no ano de 1925, quando a Grã-Bretanha retornou ao padrão-ouro em conjunto com a Austrália e África do Sul, que o padrão do ouro-espécie foi oficialmente encerrado. A Lei Britânica do Padrão-Ouro de 1925 introduziu o padrão barra-ouro e simultaneamente revogou o padrão do ouro-espécie. O novo padrão barraouro não previa o retorno à circulação das moedas de ouro. Pelo contrário, a lei obrigava as autoridades a vender barras de ouro à demanda a um preço fixo. Este padrão barra-ouro durou até 1931. Em 19 de Setembro de 1931, o Reino Unido deixou o padrão-ouro revisado, forçado a suspender o padrão barra-ouro devido a grandes fluxos de ouro que saiam do país para o outro lado do Oceano Atlântico. Os britânicos beneficiaram-se da partida. Eles agora poderiam usar a política monetária para estimular a economia através da diminuição das taxas de juros. A Austrália e a Nova Zelândia já tinham sido retiradas padrão-ouro pelas mesmas pressões relacionadas à Grande Depressão, e o Canadá rapidamente seguiu o Reino Unido ( Lempsey 1975 pp 683, 702). Neste sentido, os efeitos da Grande Depressão e a segunda guerra mundial, levaram a um período difícil de 1932 a 1946. Alguns historiadores económicos tais como o professor Norte-Americano Barry Eichengreen, culpou o padrãoouro da década de 1920 pelo prolongamento da Grande Depressão. Outros, incluindo o actual Director do Federal Reserve Ben Bernanke e o vencedor do Prémio Nobel de economia Milton Friedman aplicam algum grau de culpa na Reserva Federal dos EUA Fed. O padrão-ouro limitou a flexibilidade da política monetária do banco central dos EUA ao restringir a sua habilidade de expandir a oferta monetária, e assim sua habilidade de diminuir as taxas de juros. Nos Estados Unidos, a Federal Reserve foi obrigado por lei a ter 40% de ouro ligados à demanda de notas da Fed e, desse modo, não poderia expandir a oferta monetária além do que era permitido pelas reservas de ouro nos seus cofres.

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No inicio da década de 1930, a Federal Reserve defendeu o preço fixo dos dólares em relação ao padrão-ouro ao aumentar as taxas de juros, tentando aumentar a demanda por dólar. O seu compromisso e adesão ao padrão-ouro explica porque os Estados Unidos não se engajaram na política monetária expansionista. Para competir na economia internacional, os EUA mantiveram altas taxas de juros. Isto ajudou a atrair investidores internacionais que compraram activos estrangeiros com ouro. Maiores taxas de juros intensificaram a pressão e deflacionariam o dólar e reduziram os investimentos nos bancos Norte Americanos. Os bancos comerciais também converteram as Notas do Federal Reserve para o ouro em 1931, reduzindo as reservas de ouro da Fed e forçando uma redução correspondente no volume das Notas do Federal Reserve em circulação. Esse ataque especulativo ao dólar criou um pânico no sistema bancário dos Estados Unidos. Temendo uma iminente desvalorização do dólar, muitos depositantes estrangeiros e domésticos retiraram fundos dos bancos dos EUA para convertê-los em ouro ou outros activos. A contracção forçada da oferta monetária causada pelas pessoas que retiravam seus fundos do sistema bancário durante as crises de pânico bancário resultou em deflação. Até mesmo as taxas nominais de juros caíram e as taxas reais de juros ajustadas pela inflação permaneceram altas, recompensando aqueles que guardavam dinheiro ao invés de gastá-lo, causando uma maior desaceleração na economia. A recuperação nos Estados Unidos foi mais lenta que na Grã-Bretanha, em parte devido a relutância do Congresso em abandonar o padrão-ouro e deixar a moeda Norte-Americana flutuar assim como a GrãBretanha fez. O Congresso Norte Americano aprovou a Lei de Reserva de Ouro em 30 de Janeiro de 1934. A medida nacionalizou todo o ouro ao ordenar os bancos do Federal Reserve a entregar sua oferta ao Tesouro dos Estados Unidos. Em retorno, os bancos receberam certificados de ouro a serem usados como reservas contra depósitos e notas do Federal Reserve. A lei também autorizou o presidente a desvalorizar o dólar de ouro para que ele não tivesse mais do que 60% de seu preço existente. Com esta autoridade, o presidente, em 31 de Janeiro de 1934, fixou o valor do dólar de ouro a 59,06 cêntimos. Porem, o Reino Unido da Grã- Bretanha hesitou em retornar ao padrãoouro. Durante o período 1939-1942, o Reino Unido esgotou a maior parte das suas reservas de ouro em compras de munições e armas à base do cash-and-carry dos Estados Unidos e outros países. Esse esgotamento das reservas do Reino Unido convenceu Winston Churchill da impraticabilidade do retorno ao padrão-ouro ao estilo do pré-guerra. De forma mais simples, a guerra faliu a Grã-Bretanha. John Maynard Keynes, que lutou contra o padrão-ouro, propôs colocar o poder de imprimir dinheiro nas mãos de um Banco da Inglaterra de propriedade privada. Keynes, ao advertir sobre as ameaças da inflação, disse que por um contínuo processo de inflação, os governos podem confiscar, secretamente e sem serem observados, uma importante parte da riqueza de seus cidadãos. Por este método,

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eles não apenas confiscam, mas eles confiscam arbitrariamente. E enquanto este processo empobrece muitos, ele enriquece outros. Muito possivelmente devido a isso, o Acordo de Bretton Woods estabeleceu a criação do Fundo Monetário Internacional e um sistema monetário internacional baseado na convertibilidade de várias moedas nacionais em um dólar Norte-americano que era, por sua vez, convertível em ouro. Desse modo, as autoridades deveriam exigir dos bancos e demais instituições monetárias que negociassem seus passivos respeitando esse preço fixo em relação ao ouro, como forma de estabilizar a economia. Esta fase do padrão-ouro, o padrão ourodólar, que se baseava no acordo de Bretton Woods, terminou quando os EUA abandonaram o acordado no início dos anos 1970, por causa das necessidades de financiamento crescentes causadas pela Guerra do Vietname. Nesse período o padrão ouro-dólar também não pôde ser seguido pelo Brasil e outros países similares, que adoptaram formas de cunho forçado e alternativas como crawling peg que é um regime de flutuação cambial, geralmente visto como uma forma parcial de câmbio fixo, onde permite-se a depreciação ou apreciação da taxa de câmbio de forma gradual. Alguns bancos centrais utilizam fórmulas que alteram a taxa de câmbio em consonância com certas condições por exemplo, quando há aumento na taxa de inflação enquanto outros preferem não fazer uso de fórmulas e modificam a taxa de câmbio frequentemente para desencorajar especulações. O crawling peg é uma tentativa de manter a taxa de câmbio real estável. O princípio base do sistema consiste em fazer pequenas desvalorizações que igualem o diferencial entre a inflação do país e a inflação de um ou mais parceiros comerciais (Eichengreen 2008). Com o novo cenário internacional, o período que vai de 1946 a 1971 marca o fim do padrão ouro-dolar no sistema internacional. Após a Segunda Guerra Mundial, um sistema semelhante ao padrão-ouro e algumas vezes descrito como um padrão câmbio-ouro foi estabelecido pelos Acordos de Bretton Woods. Sob este sistema, muitos países fixaram suas taxas de câmbio em relação ao dólar dos Estados Unidos. Os EUA prometeram fixar o preço do ouro aproximadamente a $35 por onça. Implicitamente, portanto, todas as moedas atreladas ao dólar também tinham um valor fixo em termos de ouro. Sob a administração do Presidente francês Charles de Gaulle até 1970, a França reduziu as suas reservas de dólar, trocando-as por ouro do governo Norte-Americano, reduzindo a influência económica dos Estados Unidos no exterior. Isto, juntamente com a restrição fiscal dos gastos federais com a Guerra do Vietname e deficits persistentes no balanço de pagamentos, levou o Presidente Richard Nixon a acabar com a convertibilidade directa do dólar em relação ao ouro em 15 de Agosto de 1971, resultando no fim do sistema.

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1.1.2 O Sistema Monetário Europeu SME Quando, em 1971, os Estados Unidos decidiram abolir a relação fixa entre o dólar e o preço oficial do ouro, que assegurava a estabilidade monetária mundial desde a Segunda Guerra Mundial, pôs se termo ao sistema de taxas de câmbio fixas. Tendo em vista a concretização da sua própria união monetária, os EstadosMembros da União Europeia decidiram evitar margens de flutuação superiores a 2,25% entre as moedas europeias, através de uma intervenção concertada nos mercados cambiais, o que levou à criação do Sistema Monetário Europeu SME estabelecido em Março de 1979. O SME propunha três pontos essências que eram: - O ECU European Currency Unit ou Unidade de Conta Europeia que era um cabaz de moedas, em que todas estavam ligadas de forma a que nenhuma taxa de câmbio bilateral pudesse variar mais de 2,25% relativamente a cada uma das outras. - Um Mecanismo de Taxas de Câmbio MTC European Exchange Rate Mechanism ou ERM tinha como objectivo instituir um mecanismo de controlo das taxas de câmbio das moedas daqueles países, reduzindo as flutuações, de modo a assegurar a estabilidade monetária na Europa. Do Sistema Monetário Europeu participavam França, Alemanha, Itália, Bélgica, Dinamarca, Irlanda, Luxemburgo, os Países Baixos e o Reino unido. Com excepção do Reino Unido, todos os estados-membros subscreveram o MTC componente central do SME. Os países signatários restringiram as taxas de câmbio das suas moedas dentro de certas margens de flutuação, com o objectivo de criar uma unidade de conta e de câmbio única a Unidade Monetária Europeia ECU tendo em vista a futura integração monetária europeia ( Infopedia, Porto Editora 2003-2012). - O Fundo Europeu de Cooperação Monetária FECOM criado em Outubro de 1972 para ser o agente das operações do sistema monetário europeu. Extinto em 1 de Janeiro de 1994 (altura em que entrou em funcionamento o Instituto Monetário Europeu), era um fundo composto por reservas de divisas e ouro dos países-membros. Cabia-lhe a emissão de ECUs, em volume equivalente ao das reservas de ouro e dólares dos países-membros, em benefício dos bancos centrais que as cedessem. Os ECUs poderiam ser utilizados pelos bancos centrais apenas para liquidar débitos entre si surgidos como resultado de intervenções no mercado de câmbios. Ajustamentos periódicos permitiam a subida das taxas de câmbio das moedas mais fortes e a descidas das mais fracas, mas após 1986 passou-se a utilizar alterações às taxas de juro internas para manter as taxas de câmbio dentro da banda de flutuação autorizada. No início dos anos 90, o SME estava pressionado pelas condições e políticas económicas muito diferentes nos seus países membros, nomeadamente tendo em conta o esforço de reunificação

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da Alemanha, o que levou à saída do Reino Unido do Sistema. Daqui resultou o chamado compromisso de Bruxelas, que alargou a banda de flutuação para 15%. Em 1 de Janeiro de 1999 foi lançado o SME 2, que já não funciona com base no ECU (cabaz das moedas dos participantes) mas no Euro, que se tornou assim a referência em torno da qual a flutuação máxima da taxa de câmbio não pode exceder os 15%. Este acaba por ser o caminho de entrada para os pretendentes à utilização do Euro. 1.1.3 Portugal no Sistema Monetário Europeu SME. De 1987 a 1990, Portugal teve que aplicar o Crawling Peg (já explicado anteriormente) já o que diferencial de inflação entre Portugal e os seus parceiros comerciais era adequado por uma política de desvalorização constante do escudo, de 3% ao ano, procurando-se assim manter a competitividade da oferta do Estado Luso. Em 1990 Miguel Beleza então Ministro das Finanças defendia que a adesão ao MTC era uma opção fundamental da política económica. A questão seria quando entrar e quando anunciar a entrada. A resposta era entrar assim que fosse tecnicamente possível, viável e credível. Na mesma altura, Ernâni Lopes olhava para o SME como uma etapa no caminho para a União Económica e Monetária: as economias e as sociedades que se puserem fora do circuito estão a definir-se, ficam definidas…. Em Outubro de 1990, Portugal entra para o processo conhecido como Shadowing ou seja, coloca-se o escudo na sombra de outras moedas preparandose a adesão ao MTC através da fixação pelo Banco de Portugal de um objectivo unilateral de manter o câmbio do escudo dentro de uma margem estreita face a um pacote dos 5 principais componentes do SME que eram: Marco 35.562, Peseta 19.535, Franco 19.327, Libra 14.825, Lira 10.735. Com esta actuação, o Banco de Portugal acaba com a acomodação dos diferenciais de inflação face ao exterior, eliminando a sustentação da competitividade via desvalorização da taxa de câmbio. É uma fase de preparação do Banco de Portugal para o MTC e de avaliação da capacidade de controlar o câmbio do escudo. Para os agentes é um período de adaptação a uma realidade de competição sem protecção cambial (Infopedia, Porto Editora 2003-20129). O Escudo português entra no MTC, na margem dos +-6%, com uma paridade central de 178.735 escudos por ECU (86.939 por Marco). A entrada é considerada por alguns como uma decisão eminentemente política de consagração da estabilidade nominal do Escudo face às restantes moedas do SME, o que já acontecia com o shadowing. O pendor político da decisão pode também passar pelo facto de Portugal ter estado naquele semestre na Presidência da Comunidade Europeia. No momento da adesão ao MTC, a inflação média anual estava em 10,2% e a homóloga em 8%. O elevado diferencial de taxas de juro relativamente ao resto da Europa, num cenário em que a liberalização da circulação de capitais

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era crescente, levou ao afluxo maciço de capitais estrangeiros e à apreciação do escudo, que cedo se tornou a moeda mais forte (mais próxima da margem superior de flutuação) do MTC. Para Aníbal Cavaco Silva então primeiro-ministro, a decisão de entrada visa credibilizar os objectivos de combate à inflação, implicando a alteração da política cambial no sentido da estabilidade de preços e da disciplina orçamental. A adesão ao MTC conduziu a efeitos positivos às transacções, ao investimento e à eficiência dos mercados. Do lado dos efeitos negativos, registou a perda do instrumento taxa de câmbio como sustentador da competitividade, perdendo-se a autonomia da política monetária causando-se o caos que vivemos nos dias de hoje já que Portugal não pode desvalorizar a sua moeda para equilibrar as suas contas. Nesse ano o relatório do Banco de Portugal indicava que o objectivo das políticas monetárias e cambial durante o ano foi a estabilização nominal da economia. A situação no mercado de trabalho é definida como de quase pleno emprego, sendo as pressões inflacionistas difíceis de suster. Até Agosto existiam ainda algumas autonomias da política monetária interna, assegurada por restrições à liberdade de capitais. A perda da autonomia da política cambial, que era já relativa dada a política de não acomodação face à evolução de um conjunto de moedas europeias ficou formalizada com a adesão ao MTC do SME. Seguiu-se a liberalização integral dos movimentos de capitais com o exterior. A autonomia da política monetária ficou delimitada pela margem de flutuação do escudo no MTC, ficando a política de taxas de juro inteiramente afecta a estes objectivos. O combate às pressões inflacionistas passou a ficar inteiramente a cargo de políticas orçamentais. Entretanto, as primeiras dificuldades verdadeiramente ditas começaram a ser sentidas em Setembro de 1992 já que entrou-se um período de fortes pressões no SME. A 14 de Setembro do mesmo ano, a libra tinha desvalorizado 7% e a 16 de Setembro abandona o MTC, no que é acompanhada pela lira. A peseta desvaloriza 5%, sem alterações no escudo. A instabilidade do SME em 1992 devese a motivos essenciais: - As dificuldades de ratificação do Tratado de Maastricht, marcadas pelo não dinamarquês, retiraram credibilidade ao processo de integração e alimentaram movimentos especulativos de ataque às moedas mais fracas do SME; - As incertezas quanto ao referendo francês, marcado para 20 de Setembro, agudizam as tensões; - A Alemanha encontrava-se em pleno processo de reunificação, sustentando taxas de juro elevadas como forma de evitar tensões inflacionistas; - As restantes economias lutavam para sair da recessão, pretendendo taxas de juro baixas para estimular o crescimento, mas forçam-se a acompanhar a Alemanha.

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Criou-se uma situação de inconsistência entre objectivos de estabilização cambial e crescimento interno e a grelha de paridades perdeu credibilidade. A 8 de Setembro os especuladores atacam a Markka finlandesa e conseguem romper a ligação desta ao ECU. Os raids seguintes dos especuladores são à libra e à lira. A Espanha, a braços com taxas de desemprego elevadas (como a que regista agora em 2012 que é a maior da Zona Euro) e pretendendo ganhar competitividade nas exportações, não acompanha a subida dos juros. Por seu lado, a Alemanha não se mostra disposta a aumentar a oferta de marcos, não defendendo a peseta. Em consequência do realinhamento, escudo e peseta passam para a parte inferior da banda de flutuação. Em 21 de Novembro de 1992 a peseta e o escudo desvalorizam 6%. Esta nova crise resulta do abandono da ligação da coroa sueca ao ECU, uma vez que a situação interna (recessão, pressões inflacionistas) não permitiria defender a moeda de ataques especulativos. Segundo Cavaco Silva, a desvalorização tratouse de uma questão de prudência. A evolução da peseta aumenta a competitividade das exportações espanholas e afecta directamente os produtores portugueses. Todo o período seguinte fica marcado pelo dilema do escudo em acompanhar a evolução nominal do marco sem perder competitividade face à peseta (Alemanha e Espanha são os principais parceiros comerciais). A 13 de Maio de 1993 ocorre uma desvalorização de 8% da peseta, com o escudo a desvalorizar 6,5%. O boletim trimestral do Banco de Portugal reconhece que a política monetária alemã é adequada à situação interna do país (inflação), mas que será injustificadamente dura para a maioria dos restantes participantes no sistema. O Banco de Portugal alega uma que os mercados ainda fazem uma forte associação entre peseta e escudo e que a evolução negativa da peseta, motivada pela má performance económica interna, acaba por estender ao escudo a tendência de depreciação da peseta. A 18 de Maio o segundo referendo dinamarquês dá o Sim a Maastricht, seguindo-se a ratificação pelo Reino Unido. Perante este cenário, surgiu na altura a necessidade de se alargar as bandas de flutuação da moeda. A 2 de Agosto de 1993 as bandas de flutuação passam para ±15%, em resultado de pressões sobre Franco francês, Coroa dinamarquesa, Franco belga, Peseta e Escudo. Passa-se de um sistema de câmbios quase fixos a um sistema de câmbios potencialmente flutuantes. Perante um clima de recessão generalizado, reconhece-se que a capacidade de defesa das moedas face a ataques especulativos é reduzida, alargando-se as margens de flutuação. A apreciação do Banco de Portugal quanto ao período de crise levanta a questão da falta de coordenação das políticas monetárias nacionais num ambiente de perfeita liberdade de circulação de capitais. Conclui-se pela incapacidade dos bancos centrais em defenderem a moeda consistentemente com base apenas nas reservas de divisas (Itália, Reino Unido, Irlanda, Espanha, Portugal, Dinamarca e Bélgica tentaram-no). As taxas de juro são o instrumento mais eficaz, mas a sua utilização é muito restrita, o que explica as tensões do sistema como resultantes do impacto da reunificação alemã. Em Dezembro de 1993 Eduardo Catroga toma

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posse como Ministro das Finanças e na altura afirmava que: numa pequena economia aberta ao exterior, como a portuguesa, torna-se crucial a preservação da estabilidade cambial na medida em que: 1- Favorece a estabilidade dos fluxos comerciais externos; 2- Facilita as estratégias e as políticas de médio prazo das empresas, estimulando o investimento produtivo; 3- Preserva o poder de compra dos consumidores e o valor patrimonial dos activos internos; 4- Contribui para o reforço do processo de des-inflação e do custo de financiamento das empresas. A 6 de Março de 1995 a peseta desvaloriza 7%, com o escudo a desvalorizar 3,5%. Este novo período de instabilidade inicia-se com a crise de pagamentos do México e com a consequente recomposição de carteiras dos agentes internacionais, vendendo dólares e comprando marcos. Daqui resultou a valorização do marco face ao dólar. No âmbito do MTC a consequência foi a valorização das moedas mais próximas do marco face às restantes, forçando a desvalorização destas. Coloca-se nesta altura a questão de qual deve ser o referencial relativamente ao qual se deve estabelecer o objectivo de estabilidade do escudo: - O marco, enquanto reserva de valor internacional, está sujeito a choques externos frequentes. Neste caso, acompanhar a apreciação do escudo seria artificial, porque não baseado num ganho de competitividade interno, e descredibilizaria a política de estabilidade cambial seguida. - O ECU podia ser um cabaz de referência, mas 30% das moedas que o compunham não fazia parte do MTC. - A peseta apresentava uma evolução menos credível que o próprio escudo, pelo que seria uma má referência. - Utilizando o franco francês, ou um cabaz composto por Marco, Franco e Peseta, observa-se que o comportamento do Escudo através das crises tinha sido positivo. Esta teoria ainda alimenta até aos dias de hoje as pessoas que defendem o retorno ao Escudo pois como vemos a moeda era mais forte que muitas outras que unidas ao Euro causaram a actual crise. Este choque levanta novamente a questão da ligação entre o escudo e a peseta. O então Ministro das Finanças Eduardo Catroga defende que os mercados acreditam que a peseta encontrava-se subavaliada, pelo que mais tarde teria de existir uma inflexão no seu comportamento. Face à necessidade de manter a tendência decrescente de inflação e taxa de juro, o escudo desvaloriza apenas parcialmente face à peseta, para o que seria a paridade real entre as duas moedas. Segundo Catroga, a evolução escudo/peseta ao longo dos ajustamentos do MTC representa uma percepção diferenciada dos mercados relativamente às duas moedas, tendo a relação entre as duas moedas vindo a atenuar-se.

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1.1.4 Mecanismos para a entrada na União Económica e Monetária. 1.1.4.1 Primeira fase da UEM criação dos mecanismos jurídicos. Em Junho de 1988, o Conselho Europeu confirmou o objectivo da realização progressiva da União Económica e Monetária UEM. Atribuiu a um comité presidido por Jacques Delors, que, na altura, era o presidente da Comissão Europeia, o mandato de estudar e propor um plano concreto para levar a efeito a união. O comité era composto pelos governadores dos bancos centrais nacionais da Comunidade Europeia; por Alexandre Lamfalussy, o então director-geral do Banco de Pagamentos Internacionais; por Niels Thygesen, professor de Economia dinamarquês; e por Miguel Boyer, o então presidente do Banco Exterior de Espanha. Relatório Delors resultante de um profundo estudo propunha que a união económica e monetária fosse alcançada em três fases distintas que veremos uma a uma e que se podem ver no quadro asseguir.

Fonte: Banco Central Europeu, Eurosistema.

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Assim sendo, com base no Relatório Delors, o Conselho Europeu decidiu em Junho de 1989 que a Primeira Fase da UEM teria início em 1 de Julho de 1990. Nessa data, foram abolidas, em princípio, todas as restrições ao movimento de capitais entre os Estados-Membros. Esta etapa teve três pontos essenciais: - Total liberdade de circulação de capitais na UE (supressão dos controlos cambiais); - Aumento dos recursos destinados a corrigir desequilíbrios entre regiões europeias (fundos estruturais); - Convergência económica, através da supervisão multilateral das políticas económicas dos Estados-Membros. Ao Comité de Governadores dos bancos centrais dos Estados-Membros da Comunidade Económica Europeia, que vinha a desempenhar um papel cada vez mais importante na cooperação monetária desde a sua criação em Maio de 1964, foram atribuídas responsabilidades adicionais, que foram definidas numa decisão do Conselho datada de 12 de Março de 1990. As novas atribuições do comité incluíam a realização de consultas e o fomento da coordenação no domínio das políticas monetárias dos Estados-Membros, com o objectivo de ser alcançada a estabilidade de preços. Tendo em consideração a escassez do tempo disponível e a complexidade dos objectivos a atingir, os trabalhos preparatórios para a Terceira Fase da UEM foram igualmente iniciados pelo Comité de Governadores. O primeiro passo era identificar todas as questões a analisar num estádio inicial, definir um programa de trabalho até ao final de 1993 e, em conformidade, especificar os mandatos dos subcomités existentes e dos grupos de trabalho criados para o efeito. Para a execução da segunda e da terceira fase, era necessário rever o Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia (o Tratado de Roma) por forma a ser criada a devida estrutura institucional. Para tal, foi convocada uma conferência intergovernamental sobre a UEM, que teve lugar em 1991 em paralelo com a conferência intergovernamental sobre a união política. As negociações resultaram no Tratado da União Europeia, acordado em Dezembro de 1991 e assinado em Maastricht em 7 de Fevereiro de 1992. Contudo, devido a atrasos no processo de ratificação, o Tratado (que alterava o Tratado que institui a Comunidade Económica Europeia, modificando o seu nome para Tratado que institui a Comunidade Europeia, e que introduzia, designadamente, o Protocolo relativo aos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu e o Protocolo relativo aos Estatutos do Instituto Monetário Europeu) só entrou em vigor em 1 de Novembro de 1993.

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1.1.4.2 Segunda fase da UEM Fundação do Instituto Monetário Europeu e do Banco Central Europeu. A segunda etapa da UEM teve inicio a 1 de Janeiro de 1994 com a criação em Frankfurt do Instituto Monetário Europeu IME e, a partir desse momento, o Comité de Governadores deixou de existir. A existência transitória do IME reflectia igualmente o estado da integração monetária dentro da Comunidade. O IME não tinha qualquer responsabilidade pela condução da política monetária da União Europeia, a qual continuava a ser da competência das autoridades nacionais, e não podia realizar intervenções cambiais. O IME teve duas atribuições importantíssimas que eram: - Reforçar a cooperação entre os bancos centrais e a coordenação em matéria de política monetária; - Proceder aos preparativos necessários para o estabelecimento do Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC), para a condução da política monetária única e para a introdução da moeda única na Terceira Fase. Para o efeito, o IME proporcionou um fórum de consulta e de intercâmbio de ideias e informação sobre questões de política e especificou o quadro regulamentar, organizativo e logístico necessário para o SEBC desempenhar as suas atribuições na Terceira Fase. Assim sendo, o IME trabalhou em diversos aspectos que aqui podemos resumir. De acordo com o artigo 117.º (ex-artigo 109.º-F) do Tratado que institui a Comunidade Europeia (a seguir designado por Tratado), o Instituto Monetário Europeu (IME) deveria definir o quadro regulamentar, organizacional e logístico necessário para o Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC), composto pelo Banco Central Europeu (BCE) e pelos bancos centrais nacionais (BCN) dos Estados-Membros da UE, desempenhar as suas atribuições na Terceira Fase da União Económica e Monetária (UEM) e deveria submeter esse quadro a aprovação pelo BCE, aquando da sua instituição. Uma das principais atribuições do IME foi, por conseguinte, preparar o terreno para que o SEBC pudesse iniciar a sua actividade no início da Terceira Fase. Em conformidade com o mandato estipulado no Tratado, o IME tomou a seu cargo, nomeadamente:  A preparação de um conjunto de instrumentos e de procedimentos para a condução da política monetária única na futura área do euro e a análise das potenciais estratégias de política monetária;  A promoção da harmonização da recolha, compilação e distribuição de estatísticas devidamente articuladas para a área do euro referentes à balança de pagamentos, às estatísticas monetárias e bancárias e a outros dados financeiros;  A definição do quadro para a realização de operações cambiais, assim como para a detenção e gestão das reservas oficiais em moeda estrangeira

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dos Estados-Membros participantes na área do euro;  A promoção da eficiência nos pagamentos transfronteiras e nas transacções de liquidação de títulos de modo a reforçar a integração do mercado monetário do euro, nomeadamente, desenvolvendo a infraestrutura técnica (o sistema TARGET) para que o processamento dos pagamentos transfronteiras em euros passasse a ser tão eficiente como o dos pagamentos domésticos; e  A preparação das notas de euro, incluindo o seu desenho e especificações técnicas. Tendo em vista os preparativos adicionais para o estabelecimento do SEBC, tal como também se encontra delineado nos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu (a seguir designados por Estatutos), anexados ao Tratado, o IME ficou incumbido de:  Elaborar normas e regras contabilísticas harmonizadas para possibilitar a elaboração de um balanço consolidado do SEBC para efeitos de apresentação de informação a nível interno e externo;  Criar o suporte necessário em termos de sistemas de informação e de comunicação para as funções operacionais e de política monetária que iriam ser assumidas pelo SEBC; e  Identificar as possíveis formas de o SEBC contribuir para as políticas conduzidas pelas autoridades de supervisão competentes no sentido de fomentarem a estabilidade das instituições de crédito e do sistema financeiro. O IME ajudou igualmente a preparar a legislação nacional e comunitária relacionada com a transição para a Terceira Fase, nomeadamente, no que diz respeito à legislação monetária e financeira, incluindo os estatutos dos BCN. Além disso, o IME cooperou com outros órgãos da UE na preparação da Terceira Fase. Em conformidade com as disposições do Tratado ou em resposta a um convite do Conselho Europeu, apresentou relatórios sobre, designadamente:  Um cenário de transição para a moeda única;  A cooperação a nível de política monetária e cambial entre a área do euro e outros países da UE; e  Os progressos alcançados pelos Estados-Membros da UE no cumprimento das suas obrigações relativamente à satisfação das condições necessárias para a participação na União Económica e Monetária (convergência jurídica e económica). De acordo com os requisitos estatutários, o IME prestou regularmente informações sobre os progressos realizados nos trabalhos preparatórios através, sobretudo, dos seus quatro relatórios anuais, que abrangem os anos de 1994 a 1997. Além disso, em Janeiro de 1997, o IME publicou um relatório definindo o quadro

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operacional do SEBC para a condução da política monetária única, em conformidade com a exigência do Tratado de que este quadro deveria ser especificado, o mais tardar, até 31 de Dezembro de 1996. Foram publicados, em três ocasiões, relatórios separados sobre os progressos em matéria de convergência. Um conjunto de publicações mais especializadas debruçou-se sobre aspectos relacionados com política monetária, política cambial, sistemas de pagamentos e de liquidação de títulos, estatísticas, notas de banco e a transição para o euro. Em Dezembro de 1995, o Conselho Europeu decidiu que a unidade monetária europeia a introduzir no início da Terceira Fase passaria a designar-se euro e confirmou que a Terceira Fase da UEM teria início em 1 de Janeiro de 1999. Uma sequência cronológica dos eventos conducentes à transição para o euro foi previamente anunciada. O cenário tinha por base sobretudo as propostas pormenorizadas elaboradas pelo IME. Simultaneamente, foi atribuída ao IME a missão de levar a cabo os trabalhos preparatórios relativamente às futuras relações cambiais e monetárias entre a área do euro e os outros países da União Europeia. Em Dezembro de 1996, o IME apresentou o seu relatório ao Conselho Europeu, o qual serviu de base à resolução do Conselho Europeu que estabelece os princípios e elementos fundamentais do novo mecanismo de taxas de câmbio (MTC II) e que foi adoptada em Junho de 1997. Em Dezembro de 1996, o IME apresentou também ao Conselho Europeu e, subsequentemente, ao público as séries de desenhos seleccionadas para as notas de euro, que iriam entrar em circulação em 1 de Janeiro de 2002. Para complementar e especificar as disposições do Tratado sobre a UEM, o Conselho Europeu adoptou, em Junho de 1997, o Pacto de Estabilidade e Crescimento PEC, do qual fazem parte duas resoluções e que visa assegurar a disciplina orçamental no que respeita à UEM. Em Maio de 1998, o Pacto foi complementado, e os respectivos compromissos reforçados, por uma declaração do Conselho. De acordo com o PEC, todos os países da União Europeia devem apresentar regularmente programas de estabilidade ou programas de convergência (aqueles para os países que fazem parte da área do euro, estes para os que ainda não adoptaram o euro), devem respeitar os objectivos macroeconómicos contidos nesses programas e devem evitar défices públicos superiores a 3% do PIB, bem como valores da dívida pública superiores a 60% do PIB (valores do PIB a preços de mercado). Défices superiores àquele valor podem levar a sanções, incluindo pagamento de multas. Do PEC destacam-se as seguintes intenções a concretizar através de legislação posterior. Em termos de IRS/IRC: 1) Sujeição à taxa de 20% de todas as mais-valias mobiliárias, ficando excluídos os investidores que obtenham mais-valias num valor anual até 500 €. 2) O valor das deduções à colecta do IRS será diferenciado tendo em conta o rendimento colectável dos contribuintes. Para o efeito serão estabelecidos

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limites, correspondentes a uma percentagem do rendimento colectável, para cada escalão de rendimentos. Ficam excluídos desta regra os dois primeiros escalões de IRS e as deduções relativas às pessoas com deficiência. 3) Eliminação da dedução com seguros de vida e de acidentes pessoais. 4) Redução da dedução específica, actualmente de 6.000 €, para rendimentos de pensões de valor anual superior a 22.500 €. 5) Criação de uma nova taxa marginal de IRS de 45%, aplicável aos sujeitos passivos que obtenham um rendimento anual superior a 150.000 €. 6) Congelamento das deduções actualmente indexadas à RMMG (Retribuição Mínima Mensal Garantida), até que o IAS (Indexante dos Apoios Sociais) corresponda à RMMG em vigor em 2010. 7) Sujeição a tributação autónoma dos salários ou quaisquer retribuições, acima de um determinado limite de referência, aos Administradores, Sócios ou Gerentes de empresas que apresentem prejuízos. 8) Reforço da tributação autónoma aplicável a benefícios acessórios, designadamente para as empresas que paguem ajudas de custo, atribuam viaturas aos seus colaboradores, ou pratiquem outras formas de retribuição em espécie. 9) Criação de estímulos fiscais à aquisição de veículos eléctricos por parte das empresas. 10) O incentivo ao abate ficará progressivamente reservado à compra de veículos eléctricos ou com emissões até 100 g/Km. Em termos de Segurança Social: 1) O PEC prevê uma medida de carácter programático, que consiste no alargamento e controlo da base contributiva. 2) O Objectivo acima mencionado já se encontrava previsto no Código Contributivo aprovado o ano passado e cuja entrada em vigor foi adiada para um de Janeiro de 2011. 3) Reforço de cruzamento de dados com a Administração Fiscal. 4) Processo automatizado de declarações de remunerações oficiosas. Um dos principais objectivos do PEC é a distribuição equitativa do esforço de consolidação orçamental e a promoção do reforço da equidade fiscal. Em 2 de Maio de 1998, o Conselho da União Europeia, reunido a nível de chefes de Estado ou de governo, decidiu por unanimidade que 11 Estados-Membros tinham cumprido as condições necessárias para participarem na Terceira Fase da UEM e para adoptarem a moeda única no dia 1 de Janeiro de 1999. Os participantes iniciais eram a Bélgica, a Alemanha, a Espanha, a França, a Irlanda, a Itália, o Luxemburgo, os Países Baixos, a Áustria, Portugal e a Finlândia. Os chefes de Estado ou de governo chegaram igualmente a um acordo político sobre as pessoas a recomendar para a nomeação dos membros da Comissão Executiva do BCE.

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Também em Maio de 1998, os ministros das Finanças dos Estados-Membros que iriam adoptar o euro acordaram com os governadores dos respectivos bancos centrais nacionais, a Comissão Europeia e o IME que as taxas centrais bilaterais do MTC em vigor relativas às moedas dos Estados-Membros participantes seriam utilizadas para determinar as taxas de conversão irrevogáveis do euro. Em 25 de Maio de 1998, os governos dos 11 Estados-Membros participantes nomearam o presidente, o vice-presidente e os outros quatro membros da Comissão Executiva do BCE. A nomeação passou a ter efeitos a partir de 1 de Junho de 1998 e assinalou a instituição do BCE. O BCE e os bancos centrais nacionais dos Estados-Membros participantes constituem o Eurosistema, que formula e define a política monetária única na Terceira Fase da UEM. Com a instituição do BCE em 1 de Junho de 1998, o IME cessou as suas funções. Em conformidade com o artigo 123.º (ex-artigo 109.º–L) do Tratado que institui a Comunidade Europeia, o IME entrou em liquidação no momento em que o BCE iniciou a actividade. Todos os trabalhos preparatórios a cargo do IME foram concluídos a tempo, tendo o BCE dedicado os meses restantes de 1998 ao ensaio final de sistemas e procedimentos. Assim sendo, Cada Estado-Membro deve cumprir cinco critérios de convergência para poder passar à terceira etapa. São eles: • Estabilidade dos preços: a taxa de inflação não pode ultrapassar em mais de 1,5% a média dos três Estados que tenham a inflação mais baixa; • Taxas de juro: as taxas de juro a longo prazo não podem variar mais de 2% em relação à média das taxas dos três Estados com taxas mais baixas; • Défices: os défices públicos nacionais devem ser inferiores a 3% do PIB; • Dívida pública: a dívida pública não pode exceder 60% do PIB; • Estabilidade das taxas de câmbio: as taxas de câmbio deverão ter se mantido dentro da margem de flutuação autorizada durante os dois anos anteriores. 1.1.4.3 Terceira etapa da UEM - Criação do Euro e fixação irrevogável das taxas de câmbio. Em 1 de Janeiro de 1999, a terceira e última fase da UEM teve início com a fixação irrevogável das taxas de câmbio das moedas dos 11 Estados-Membros que inicialmente participariam na União Monetária e com a condução de uma política monetária única sob a responsabilidade do BCE. O Euro passou assim a ser a moeda comum da Áustria, da Bélgica, da Finlândia, da França, da Alemanha, da Irlanda, da Itália, do Luxemburgo, dos Países Baixos, de Portugal e de Espanha (aos quais se juntou a Grécia em 1 de Janeiro de 2001). A partir deste momento, o Banco Central Europeu substituiu o IME e passou a ser responsável pela política monetária, que é definida e executada em euros. Em 1 de Janeiro de 2007, a Eslovénia tornou-se o décimo terceiro membro, sendo seguida por Chipre e Malta um ano mais tarde, pela Eslováquia em 1 de Janeiro de 2009, e pela Estó-

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nia em 1 de Janeiro de 2011. Nas datas em que estes países entraram para a área do euro, os respectivos bancos centrais passaram automaticamente a ser parte integrante do Eurosistema. O euro foi estabelecido pelas disposições em 1992 no Tratado de Maastricht, introduzido como moeda escritural ( nome dado ao uso de depósitos bancários como moeda de pagamento) a 1 de Janeiro de 1999, e em formas de notas e moedas a 1 de Janeiro de 2002. Para participar da moeda, os Estados membros são orientados a considerar critérios rigorosos, como ter um deficit orçamental de menos de três por cento do seu Produto Interno Bruto PIB, um rácio da dívida inferior a sessenta por cento do PIB (ambos critérios acabaram por ser largamente desrespeitados após introdução), inflação baixa e juros a taxas próximas à média da União Europeia. No Tratado de Maastricht, foram concedidas isenções ao Reino Unido e a Dinamarca a seu pedido já que havia incertezas internas quanto a eficácia de uma moeda única. Passaram a fazer parte da Zona Euro a Alemanha, Áustria, Bélgica, Chipre, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Estónia, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Malta, Países Baixos ou Holanda e Portugal. Alguns países pequenos que não praticam políticas de moeda própria usam também o euro sendo eles Andorra, Mónaco, São Marino e Vaticano. O Montenegro também utiliza o euro como sendo a sua moeda oficial. Também no Kosovo, o euro passou a circular mesmo antes da sua declaração de independência unilateral. Entretanto, outros países tinham a sua moeda firmada a uma antiga moeda europeia este era o caso do escudo cabo-verdiano, que estava ligado ao escudo português, e do franco CFA que é uma moeda corrente usada em doze países africanos, anteriormente possessões francesas Camarões, Costa do Marfim, Burkina Faso, Gabão, Benim, Congo, Mali, República Centro-Africana, Togo, Níger, Chade e Senegal sendo também usado na Guiné-Bissau e na Guiné Equatorial, e o Franco CFP, dos territórios franceses no Pacífico. 1.2 O MTC II e a entrada na Zona Euro. Exceptuando-se a Dinamarca e o Reino Unido, que têm derrogações sob o Tratado de Maastricht, espera-se que todos os outros membros da UE adiram à zona euro. Os seguintes membros aderiram ao MTC II, no qual devem passar dois anos antes de adoptar oficialmente o euro: • Lituânia- O Litas lituano faz parte do MTC II, e na prática, está vinculado ao euro a uma taxa de conversão de 3,4528 litai = 1 euro. A Lituânia originalmente queria a data de 1 de Janeiro de 2007 como a data alvo para a mudança para o euro, mas o projecto lituano para a mudança foi rejeitado pela Comissão Europeia. O principal factor da rejeição foi o facto de a inflação estar um pouco mais elevada do que a estabelecida pela UE. Em Dezembro de 2006, o governo lituano aprovou um novo plano de convergência, no qual reafirma que o governo da Lituânia deseja aderir

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à zona euro o mais rápido possível. Porém, o governo também disse que o melhor período para a mudança só poderia ocorrer em 2010 ou depois, já que as previsões de inflação para 2007, 2008 e 2009 continuariam altas. Uma pesquisa de opinião publicada em Janeiro de 2007 mostrou que são mais os lituanos opositores à adopção do euro do que os que são a favor. Contudo, de acordo com analistas do SEB bankas, da Lituânia, o país não será capaz de adoptar o euro antes de 1 de Janeiro de 2013, principalmente devido à alta inflação, que alcançou uma taxa anual de 11% em Outubro de 2008, bem acima do critério estabelecido no Tratado de Maastricht, de 4,2%. • Letónia - é um membro da União Europeia desde 1 de Maio de 2004, e é também um membro da União Económica e Monetária da União Europeia. A sua moeda corrente, o Lats letão, faz parte do MTC II, e a sua taxa de conversão flutua dentro de um limite de 15% para mais ou para menos do valor acordado de 0,702804 lats = 1 euro. A Letónia tinha originalmente planeando adoptar o euro em 1 de Janeiro de 2008, mas não será capaz de realizar a mudança antes de 2012, embora o chefe do Banco Nacional da Letónia tivesse sugerido que o ano de 2013 seria uma data mais realista. O ano de 2013 foi mais tarde praticamente descartado depois da declaração do banco central da Letónia sobre a impossibilidade de se adoptar o euro antes de 2014. • Dinamarca - A Dinamarca vinculou a coroa dinamarquesa ao euro a uma taxa de conversão de 7,46038 coroas = 1 euro (que varia 2,25% para mais ou para menos) e a coroa continua fazendo parte do MTC II. Em Dezembro de 1992, a Dinamarca negociou várias cláusulas derrogativas doTratado de Maastricht (Acordo de Edimburgo), que inclui a não adopção do euro como moeda corrente. Isto foi feito como resposta ao facto do Tratado de Maastricht ser rejeitado pelo povo dinamarquês, confirmado num referendo realizado mais cedo naquele ano. Como resultado das mudanças, o tratado foi finalmente ratificado num referendo realizado em 1993. Em 28 de Setembro de 2000, outro referendo realizou-se na Dinamarca sobre o euro, que teve como resultado a não adopção do euro, suportado por 53,2% dos votantes dinamarqueses. Em 22 de Novembro de 2007, o novo governo reeleito declarou a sua intenção de realizar um novo referendo sobre a abolição de quatro cláusulas derrogativas, incluindo o euro, em 2011. Uma pesquisa de opinião aconteceu entre 31 de Março e 2 de Abril de 2008, tendo como resultado a adopção do euro sendo apoiada pela maioria dos dinamarqueses. Com as consequências da Crise económica de 2008, as Ilhas Faroe, dependência autónoma da Dinamarca, cogitaram a hipótese da adopção do euro de forma independente da Dinamarca. As Ilhas Faroe justificariam o uso do euro com base do acordo financeiro entre as ilhas e a Dinamarca, que seria semelhante aos acordos estabelecidos entre os

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micro-Estados e os países que usam o euro. Com isso, as Ilhas Faroe estariam autorizados pela UE a usar o euro e a cunhar as suas próprias moedas, embora não tivesse poder político dentro da zona euro. Entretanto, há duas modalidades para os Estados que pretendam adoptar o Euro. Uns têm que aderir os Mecanismos de Taxas de Cambio e outros não. Neste sentido, têm que aderir ao MTC II os seguintes países: • Bulgária - O lev búlgaro não faz parte do MTC II, mas está vinculado ao euro a uma taxa de conversão de 1,95583 levs = 1 euro desde o seu lançamento. Anteriormente, o lev búlgaro estava vinculado ao marco alemão. Portanto, a Bulgária já completou a grande maioria dos critérios dos membros da União Económica e Monetária da União Europeia (EMU) e deve completar, a partir de 2009, os critérios do Tratado de Maastricht para aderir à zona euro em 2012, ano alvo definido pelo ministro búlgaro das finanças Plamen Oresharski. Enquanto que a taxa de conversão fixa entre o lev e o euro tem sido benéfica ao país, completando boa parte dos critérios estabelecidos pela EMU bem antes do previsto, a taxa de conversão fixa tem sido um incómodo para a economia búlgara. O primeiro-ministro disse que a Bulgária quer manter a taxa de conversão atrelada ao euro até a adopção do mesmo. Porém, factores, tais como a alta inflação, uma taxa de conversão ao euro não realista e a baixa produtividade do país têm afectado negativamente o sistema económico nacional. A Bulgária completa três critérios para se juntar à zona euro, mas falha em dois. A tentativa da mudança para o euro não é completada devido à instabilidade dos preços. A inflação búlgara anual em Março de 2008 alcançou 9,4%, bem acima dos 4,2% estabelecidos pelo Tratado de Maastricht. Pelo outro lado, a Bulgária completa o critério do orçamento nacional, que prevê que o défice não deverá exceder 3% do PIB búlgaro. A Bulgária também se enquadra dentro do critério da dívida pública, que se encontra abaixo dos 60% definidos pelo Tratado de Maastricht. A dívida governamental está caindo consistentemente, que caiu de 50% para apenas 18% em 2007. Espera-se que a dívida pública caia para apenas 11% do PIB em 2009. Algumas análises recentes indicam que a Bulgária não será capaz de se juntar à zona euro antes de 2015, principalmente devido à alta inflação e às repercussões da crise económica de 2008. Porém, o governo búlgaro está considerando a introdução unilateral do euro, o que não é bem-vindo segundo a Comissão Europeia. No entanto, a Bulgária iria aderir ao MTC II, e assim adoptar o euro futuramente, em Novembro de 2009, mas a decisão foi adiada para Janeiro de 2010. • República Checa- A República Checa está de modo similar obrigada pelo Tratado de Adesão de 2003 a aderir à zona euro a um certo ponto, mas não se espera que isto venha a ocorrer de maneira rápida. A coroa checa não faz parte do MTC II. Desde que a República Checa aderiu à

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UE em 2004, tem adoptado uma política fiscal e monetária que tem como objectivo o alinhamento do país com as condições macroeconómicas do restante da União Europeia. Actualmente, a questão mais difícil de ser resolvida é o grande défice fiscal checo. Originalmente, a República Checa queria aderir ao MTC II em 2008 ou em 2009, mas o governo actual disse que o ano de 2010 seria o ano alvo para a adesão, e disse que o país não se enquadraria dentro do critério económico antes disso. Foi sugerido que o ano de 2013 seria o ano marcado para a transição da moeda. Embora o país esteja economicamente mais bem posicionado do que outros membros da UE no que diz respeito à adesão à zona euro, não se espera que o país troque a sua moeda pelo euro antes de 2015 devido a relutâncias políticas nesta questão. Em 1 de Janeiro de 2009, o primeiro-ministro checo Mirek Topolánek anunciou que 1 de Novembro de 2009 seria a data que o governo iria determinar a data alvo para adesão à zona euro, mas o ministro das finanças daquele país disse que a República Checa poderia adoptar o euro já no próximo ano de 2013. • Hungria - O governo húngaro, que anteriormente tinha marcado a adesão do país à zona euro em 2010, cancelou os seus planos. A maior parte dos estudos financeiros, tais como aqueles produzidos pela Standard & Poor›s e pela Fitch Ratings, sugerem que a Hungria não será capaz de adoptar o euro antes de 2011 ou 2012, devido ao alto défice, que em 2006 excedeu 10% do PIB. Por outro lado, o défice caiu para 5% no final de 2008, e poderá alcançar apenas 3,8%. O ministro das finanças da Hungria disse que o país poderia começar a discutir sobre a sua adesão à zona euro em 2013 ou 2014. • Polónia - A Polónia está obrigada pelo Tratado de Adesão de 2003 a aderir à zona euro em algum ponto, mas indicações actuais dizem que isto não será possível por pelo menos alguns anos, até que a economia polaca se enquadre com os critérios estabelecidos. O zloty polaco não faz parte do MTC II, sendo isto um requerimento obrigatório para que um país se junte à zona euro. Em 10 de Setembro de 2008, falando na abertura de um fórum económico no resort polaco de Krynica-Zdrój, o primeiro-ministro polaco, Donald Tusk, anunciou que o objectivo governamental dominante é a adesão à zona euro em 2012 através de um referendo a ser realizado em 2010, que poderá ser aprovado pelo Banco Central Europeu em 2011. Porém, a constituição polaca terá que ser mudada antes. Além disso, para a Polónia aderir à zona euro em 2011, o país terá que aderir ao MTC II antes do segundo trimestre de 2009. Devido a todos estes empecilhos, o ano de 2011, ano alvo estabelecido pelo governo polaco para a adesão ao euro, não é realista, segundo especialistas económicos como se veio a concretizar já que estamos em 2012 e nada avança.

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• Roménia - A Roménia planeia que a sua moeda corrente, o leu romeno, será substituído pelo euro quando o país atender todos os critérios de convergência do euro. Segundo o governo romeno, o euro estará em circulação no país a partir de 2014. • Suécia - De acordo com o Tratado de Adesão de 1994, aprovado por referendo (com 52% dos votantes a favor do tratado), a Suécia terá que aderir à zona euro, em algum momento, quando os critérios de convergência forem cumpridos. Porém, em 14 de Setembro de 2003, 56% dos suecos rejeitaram a adopção do euro num referendo. O governo sueco tem argumentado que não adoptar o Euro é legal, já que um dos requerimentos para a adesão ao euro é ter aderido ao MTC II por pelo menos dois anos; ao simplesmente escolher a não adesão ao MTC II, o governo sueco está a preparar um meio formal de evitar as obrigações de adoptar o euro. Alguns grandes partidos políticos suecos continuam a acreditar que o interesse real dos suecos é o desejo da adesão ao euro, mas que mesmo aqueles que são a favor da adesão ao euro preferem acreditar no resultado geral do referendo, o que dificulta a entrada da questão em discussões futuras. Antes das eleições parlamentares de Setembro de 2006, todos os grandes partidos políticos concordaram não colocar a questão do euro antes das próximas eleições parlamentares (que ocorreram em Setembro de 2010). Os partidos políticos parecem concordar que a Suécia não irá adoptar o euro antes que um segundo referendo. Porém, o primeiro-ministro sueco disse em Dezembro de 2007 que não haverá outro referendo a menos que a opinião pública o suporte. As pesquisas de opinião têm mostrado um suporte estável ao não. Porém, nas últimas pesquisas, o resultado está incerto, com 48% continuando a apoiar o não, mas 44% apoiam o sim, tendo 6% indecisos. Entretanto, o Reino Unido também não é obrigado a aderir ao MTC II a semelhança da Dinamarca. A moeda corrente britânica é a libra esterlina e o país tem uma derrogação dos membros da UE. O governo do ex-primeiroministro britânico, Tony Blair, montou cinco testes económicos que devem ser superados antes de o Reino Unido ser recomendado a aderir ao euro; e sinalizou um possível referendo público para se verificar, juntamente com os membros decisórios, a possível aprovação dos cinco testes económicos. Além do critério nacional interno, o Reino Unido deverá atingir os critérios económicos de convergência da economia da UE (critérios estabelecidos pelo Tratado de Maastricht), antes de adoptar o euro. Em 2008, o Reino Unido já atingiu todos os critérios da adesão ao euro, excepto a permanência do país no MTC II. O Reino Unido redesenhou a maior parte das suas moedas em 2008. Segundo o jornal alemão Der Spiegel, isto é uma indicação que o Reino Unido não tem a intenção de adoptar o euro tão brevemente. Embora estivesse numa recente contradição, o Presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, disse a uma

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rádio francesa que os políticos britânicos podiam estar a considerar a mudança devido aos efeitos da crise global de crédito. Em Fevereiro de 2009, o Comissário dos Assuntos da Política Monetária, Joaquín Almunía, disse que A hipótese da libra esterlina ser substituída pelo euro seria alta. As Bases Britânicas Soberanas de Akrotiri e Dhekelia introduziram o euro ao mesmo tempo em que o Chipre, em 1 de Janeiro de 2008, já que as bases soberanas usavam anteriormente a libra cipriota. Porém, as bases não cunham moedas separadamente. Entretanto, até ao presente ano de 2012, o Reino Unido parece não querer mesmo adoptar o Euro em função dos sinais dados pelo seu primeiro-ministro nos conselhos europeus sendo mesmo o Reino Único acusado de tomas medidas que vão contra a União Europeia. 2 O Euro e a crise económica de 2008-2011 A crise económica de 2008-2011, também chamada de Grande Recessão, é um desdobramento da crise financeira internacional precipitada pela falência do tradicional banco de investimento Norte-Americano Lehman Brothers, fundado em 1850. Em efeito dominó, outras grandes instituições financeiras fragmentaram, no processo também conhecido como crise dos subprimes. Alguns economistas, no entanto, consideram que a crise dos subprimes tem sua causa primeira na explosão da bolha da Internet dot-com bubble, em 2001, quando o índice Nasdaq (que mede a variação de preço das acções de empresas de informática e telecomunicações) despenhou. De todo modo, a falencia do Lehman Brothers foi seguida, no espaço de poucos dias, pela falência técnica da maior empresa seguradora dos Estados Unidos da América, a American International Group AIG. O governo norte-americano, que se recusara a oferecer garantias para que o banco inglês Barclays adquirisse o controlo do cambaleante Lehman Brothers, alarmado com o efeito sistémico que a falência dessa tradicional e poderosa instituição financeira - abandonada às soluções de mercado provocou nos mercados financeiros mundiais, resolveu, em vinte e quatro horas, injectar oitenta e cinco bilhões de dólares de dinheiro público na AIG para salvar suas operações. Mas, em poucas semanas, a crise norte-americana já atravessava o Atlântico: a Islândia estatizou o segundo maior banco do país, que passava por sérias dificuldades. As mais importantes instituições financeiras do mundo, Citigroup e Merrill Lynch, nos Estados Unidos;Northern Rock, no Reino Unido; Swiss Re e UBS, na Suíça; Société Générale, em França declararam ter tido perdas colossais nos seus relatórios e contas, o que agravou ainda mais o clima de desconfiança, que se generalizou. ara evitar colapso, o governo norte-americano reestatizou as agências de crédito imobiliário Fannie Mae e Freddie Mac, privatizadas em1968, que agora ficarão sob o controlo do governo dos EUA por tempo indeterminado.

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Em Outubro de 2008, a Alemanha, a França, a Áustria, os Países Baixos e a Itália anunciaram pacotes que somam 1,17 trilhão de euros em ajuda ao seus sistemas financeiros. O Produto Interno Bruto da Zona do Euro teve uma queda de 1,5% no quarto trimestre de 2008, em relação ao trimestre anterior, a maior contracção da história da economia da zona. 2.1 A crise da divida pública da Zona Euro A famosa crise da divida pública da Zona Euro teve inicio na Grécia no ano de 2010. Tornou-se público que durante anos o governo grego assumiu profundas dívidas, gastando descontroladamente, o que contrariava os acordos económicos europeus. Quando chegou a crise financeira global, o déficit orçamental subiu e os investidores exigiram taxas muito mais altas para emprestar dinheiro à Grécia. A crise começou com a difusão de rumores sobre o nível da dívida pública da Grécia e o risco de suspensão de pagamentos pelo governo grego. A crise da dívida grega teria sido iniciada no final de 2009, mas só se tornou pública em 2010. Resultou tanto da crise económica mundial como de factores internos ao próprio país, forte endividamento (cerca de 120% do PIB) e déficit orçamentário superior a 13% do PIB desrespeitando completamente o PEC estabelecido por Bruxelas para os países da Zona Euro como já tivemos a oportunidade de ver anteriormente. A situação foi agravada pela falta de transparência por parte do país na divulgação dos números da sua dívida e do seu déficit. Segundo o economista Jean Pisani-Ferry, nos últimos dez anos, a diferença média entre o déficit orçamentário real e a cifra notificada à Comissão europeia foi de 2.2% do PIB. Diante das sérias dificuldades económicas da Grécia, a União Europeia adoptou um plano de ajuda, incluindo empréstimos e supervisão do Banco Central Europeu. O Conselho Europeu também declarou que a UE realizaria uma operação de resgate o famoso bailout do país, se fosse necessário. A ameaça de extensão da crise a outros países, nomeadamente Portugal e Espanha levou-os a tomar medidas de austeridade. Todos os países da Zona Euro foram afectados pelo impacto que teve a crise sobre a moeda comum europeia. Houve receios de que os problemas gregos nos mercados financeiros internacionais despoletassem um efeito de contágio que fizesse tremer os países com economias menos estáveis da Zona Euro, como Portugal, República da Irlanda, Itália e Espanha que, tal como a Grécia, tiveram que tomar medidas para reajustar as suas contas. A partir de Março de 2010, a Zona Euro e o Fundo Monetário Internacional FMI debateram conjuntamente um pacote de medidas destinadas a resgatar a economia grega, que foi bloqueado durante semanas devido em particular a divergências entre a Alemanha, economia líder da zona, e os outros países membros. Durante essas negociações e perante a incapacidade da Zona Euro de chegar a um acordo, a desconfiança aumentou nos mercados financeiros, enquanto o euro teve uma queda regular e as praças bolsistas apresentavam fortes

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quedas. Finalmente, em 2 de Maio de 2010, a União Europeia e o FMI acordaram um plano de resgate de 750 milhões de euros para evitar que a crise se estendesse por toda a Zona Euro. A essa medida adicionou-se a criação, anunciada a 10 de Maio, de um fundo de estabilização colectivo para a Zona Euro. Ao mesmo tempo, todos os maiores países europeus tiveram que adoptar os seus próprios planos de ajuste das finanças públicas, inaugurando uma era de austeridade. A crise provocou nova discussão sobre a coordenação económica e integração fiscal da zona, sendo apontadas as faltas de um tesouro e de um orçamento consolidado da Zona Euro como problemas mais importantes. Outro país que encontrava-se em situação difícil e que precisou de um resgate foi a Irlanda. Desde os anos 1980, a economia irlandesa deixou de ser predominantemente agrícola e transformou-se em uma economia moderna focada em indústrias de alta tecnologia e serviços. O país adoptou o euro em 2002, juntamente com onze outros Estados-membros da União Europeia. O país é fortemente dependente de investimento estrangeiro directo e tem atraído várias empresas multinacionais, devido a uma força de trabalho altamente qualificada e uma taxa de impostos baixa. Algumas empresas, como a Intel, investiram na Irlanda durante o final dos anos 1980, mais tarde seguida pela Microsoft e pela Google. A Irlanda é classificada como sétima economia mais economicamente livre no mundo, segundo o Índice de Liberdade Económica. Em termos de PIB per capita a Irlanda é um dos países mais ricos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico OCDE e da União Europeia. No entanto, o país está abaixo da média da OCDE em termos de PNB per capita. O PIB é significativamente maior que o PNB devido à grande quantidade de empresas multinacionais com sede na Irlanda. A partir no início dos anos 1990, o país experimentou um crescimento económico sem precedentes que foi alimentado por um aumento dramático em construção, gastos do consumidor e investimento, o que ficou conhecido como o período do Tigre Celta. O ritmo de crescimento abrandou em 2007 e levou à explosão de uma bolha imobiliária que havia se desenvolvido ao longo do tempo. A queda abrupta dos preços das propriedades revelou a sobreexposição da economia sobre a construção e tem contribuído para a manutenção da crise bancária irlandesa. A Irlanda entrou oficialmente em recessão em 2008, após vários meses consecutivos de contracção económica. A economia do país se contraiu -1,7% em 2008, -7,1% em 2009 e -1% em 2010. O país saiu oficialmente da recessão em 2010, quando foi auxiliado por um forte crescimento, de 6,9%, nas exportações do primeiro trimestre. No entanto, devido a um aumento significativo no custo dos empréstimos e recapitalização bancária, a Irlanda aceitou 85 bilhões de euros do programa de assistência da União Europeia, do Fundo Monetário Internacional FMI e de empréstimos bilaterais do Reino Unido, Suécia e Dinamarca. Algumas previsões estimam que a Irlanda irá crescer 0,9% em 2011 e 2,2% no presente ano de 2012.

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Como é do nosso conhecimento, Portugal também recebeu um resgate da Troika composta pelo Banco Central Europeu, Comissão Europeia e FMI. A 16 de Maio de 2011, os ministros das finanças da Zona Euro aprovaram oficialmente o empréstimo de 78 bilhões de euros a Portugal. O empréstimo será dividido igualmente pelo Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira, pelo Fundo Europeu de Estabilidade Financeira e pelo Fundo Monetário Internacional. De acordo com o ex-ministro das finanças português, Teixeira dos Santos, a taxa de juro média do empréstimo deverá rondar os 5,1%. Portugal torna-se assim no terceiro país da Zona Euro, após a Irlanda e a Grécia, a receber apoio financeiro internacional para suplantar dificuldades financeiras. Com esta crise no caso particular de Portugal, estima-se que entre 30 a 70 mil de cidadãos lusos emigrem para Angola e Brasil na procura de melhores condições de vida. Entretanto, esta questão já levantou polémicas serias no parlamento português quando o primeiro-ministro Pedro Passos Coelho sugeriu que os jovens e outros portugueses emigrassem na procura de melhores condições laborais. Conclusão Pelo que pude ver durante a pesquisa para este trabalho, o Euro não trouxe nada de positivo para os países da Zona Euro já que simplesmente unificou os mercados e com isso também unificou as dividas retirando um pouco a soberania de cada Estado. Como tivemos a oportunidade de ver, o Escudo até era uma moeda forte ou pelo menos mais forte que as moedas dos outros países mediterrânicos como a Espanha e a Itália. Com a união monetária, os problemas de uns passaram a ser os problemas de outros ficando se assim sem nenhum ponto positivo. Aqui podemos ver algumas vantagens do Euro: • Facilita a comparação dos preços dos mesmos produtores nos vários países; • Assegura a transparência dos mercados já que o BCE como regulador têm um papel mais amplo na sua acção; • Facilita o turismo, visto que deixa de ser necessário trocar a moeda pela dos outros países da zona Euro. Mesmo que o turista esteja em África ou em qualquer parte do mundo, basta lhe trocar uma vez a moeda e serve para os 27; • Tem maior capacidade para competir no mercado internacional com a moeda dos Estados Unidos da América, o dólar e a do Japão, o iene ou mesmo com o Yuan chinês já que a China representa nos dias de hoje um grande adversário em vários mercados para o consumidor final europeu; • Permite obter empréstimos bancários mais favoráveis porque os juros são mais baixos ou pelo menos forma antes desta ultima grande crise;

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• A economia de cada país torna-se mais estável e essa estabilidade gera confiança e leva as pessoas a investir mais; • Permite o fortalecimento da União Europeia, dando-lhe um maior peso a nível mundial. A meu ver, este exemplo aplica-se para os novos países como a Croácia que promoveu um referendo aonde o sim venceu com larga maioria para a entrada na União Europeia. A Turquia maior potencia da sua região também pretende entrar para a União tendo mesmo nomeado um ministro que trata dos assuntos da adesão. Entretanto, podemos também encontrar algumas desvantagens no Euro: • Custos a nível das empresas com a adaptação dos sistemas de informação e das máquinas para a nova realidade, o que implica em alguns casos a aquisição de software novo, de sistemas contabilísticos, de sistemas de facturação e outros novos equipamentos; • Custos com a formação das pessoas que é fundamental e imprescindível para que as empresas possam integrar o euro; • Custos com o período de transição das moedas nacionais para o euro; • Perda de emissões cambiais relativas às moedas da UEM; • Perda de soberania sobre a taxa de câmbio e a taxa de juro, como instrumentos autónomos de política económica; • Aumento da concorrência entre as empresas e os sectores, resultante da maior integração dos mercados e de maior transparência de preços. Este ultimo factor por exemplo para o caso prático de Portugal é sempre apontado pelos empresários locais já que os empresários espanhóis com maior capacidade conseguem ser mais competitivos levando consigo os clientes portugueses. Vejamos o exemplo da indústria dos combustíveis aonde mais de 40% das bombas de estações de serviço existentes nas fronteiras do lado de Portugal com a Espanha desapareceram porque os empresários espanhóis conseguem colocar o combustível mais barato nas suas bombas levando com eles os clientes do lado português. Verdade seja dita, eu não sou muito a favor do Euro porque não existe um verdadeiro mecanismo para obrigar os Estados a cumprirem com as metas de Maastricht ou pelo menos não existiu. Se realmente existisse, hoje não se vivia a crise que se vive. Para tentar ultrapassar esta crise e este sentimento de incumprimento, os líderes europeus já se reuniram inúmeras vezes mas sem conclusões concretas. Na última reunião do Conselho Europeu de 2011, o Reino Unido não aceitou assinar a declaração já que considerava as medidas propostas contra as suas ideias. Entretanto, na segundafeira, 30 de Janeiro de 2012, os dirigentes europeus decidiram de um conjunto de medidas para ajudar a promover o crescimento e o emprego na União Europeia, assegurando ao mesmo tempo a estabilidade financeira e a consolidação orçamental. Durante a reunião, os dirigentes centraramse nos domínios em que se impõem medidas mais urgentes

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para impulsionar o crescimento económico e a competitividade e criar mais oportunidades de emprego, em particular para os jovens. Mereceram consenso as três áreas que requerem atenção imediata: estimular o emprego, especialmente o emprego dos jovens; completar o Mercado Único; impulsionar o financiamento da economia, em especial das Pequenas e Médias Empresas. Sempre que possível, os esforços envidados a nível nacional serão apoiados pela acção da UE, nomeadamente canalizando melhor os fundos disponíveis da UE para o crescimento e o emprego. Nesta reunião, 25 EstadosMembros ultimaram e aprovaram o pacto orçamental: um novo Tratado sobre a Estabilidade, a Coordenação e a Governação. O Tratado visa reforçar a disciplina orçamental e instituir sanções mais automáticas e uma supervisão mais rigorosa, designadamente através da introdução da regra do orçamento equilibrado (ou travão à dívida). Os dirigentes também aprovaram o Tratado que cria o Mecanismo Europeu de Estabilidade, um dispositivo de segurança permanente, dotado de uma ampla gama de instrumentos e de uma base financeira sólida, para salvaguardar a estabilidade financeira. Esta reunião foi assombrada pelo apelo que Alemanha fez para que a Grécia perdesse a sua soberania financeira passando-a para um comissário com poderes de veto. Portugal também não escapou já que o receio de incumprimento torna-se cada vez maior. A 24 de Janeiro, o Wall Street Journal de Nova Iorque dizia que o risco de default português era quase total. O artigo publicado pelo jornal norte-americano cita um relatório do Instituto de Finanças Internacional, segundo o qual a viabilidade de Portugal regressar aos mercados financeiros no próximo ano de 2013 é considerada problemática. O documento refere que as taxas de juro sobre as obrigações do tesouro português se mantêm acima dos 12 por cento o que é preocupante. Assim sendo, acredito que a Alemanha e a França não vão poder suportar por muito mais tempo os países ditos periféricos acabando por cada um sair da moeda única o Euro que no meu ponto de vista trouxe mais desvantagens que vantagens para o cidadão comum da Zona Euro. Outra questão é a divisão que a Europa vive como podemos ver acima, dos 27 Estados membros da União Europeia, só 25 é que aprovaram o pacto orçamental já que o Reino Unido e a Republica Checa recusam-se a ir contra políticas que presumem serem negativas. Perante estas crises e divisões só me resta deixar uma questão que não se quer calar: União Europeia, Quo Vadis? Referências bibliográficas: Caetano, João Augusto - Textos de Relações Económicas Internacionais. Editora Nzila, Luanda 2002, pp 45, 188; de Medeiros, Eduardo Raposo - O Sistema Comercial Internacional: Factores e Técnicas de intervenção (um quadro metodológico geral). Instituto Superior de

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António Luvualu de Carvalho

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Pedro Miguel Amakasu Raposo de Medeiros Carvalho Doutorado em Economia e Estudos Políticos, professor auxiliar na Universidade Lusíada do Porto. email: amakasuraposo@gmail.com

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Resumo: Este artigo analisa a política externa económica japonesa de 1945 até 2005. O principal argumento, é que ontem como hoje a política externa do Japão assenta sobre três premissas. Primeiro, a obtenção de segurança como fim dominante para evitar o controle ou a invasão por outra potência. Segundo, o bem-estar e crescimento económico para diminuir a sua dependência externa, e terceiro, o aumento da capacidade política através da projecção do seu poder económico em organizações internacionais. Na tentativa de obter a sua independência económica, política, e militar, o Japão de 1895 a 1945, quebrou este objectivo estratégico, o que constituiu uma catástrofe para o país. No pós-guerra, o Japão renunciou à guerra, e não teve outra opção senão delinear uma estratégia de política externa o mais realista possível (teoria realista), mas suficientemente ampla do ponto de vista comercial e económico com outros parceiros (teoria da interdependência) e, simultaneamente, independente e pacífica (teoria liberal) tendo em conta a sua inserção numa das regiões mais conflituosas do mundo. Neste contexto, o objecto principal deste estudo, é analisar a política externa económica japonesa nas suas várias faces e fases, desde 1945 até 2005/06. Palavras-Chave: Política externa / segurança / desenvolvimento / teoria / poder / economia Abstract: This paper examines Japanese economic foreign policy from 1945 to 2005. It argues that in the past as in the present Japanese economic policy is based on three premises. First, the need of security as dominant end to prevent the control or the invasion from another power. Second, the need of development and economic growth to diminish Japan’s economic dependence. Third, to increase the capacity of its politics through the economic power and the use of international institutions. In the attempt to get its economic, political, and military independence, Japan committed a strategic mistake with its militaristic and imperalist policy between 1895 and 1945, and broke its first strategically goal – security, which constituted a catastrophe to Japan. After the war, Japan renounced war forever and began a pragmatic strategy that combined both the realist, interdependence and liberal theories of international relations to attain security, development, political and economic power. In this light, the prime objective of this article is to analyze Japan’s Foreign Policy in some of its faces

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and phases, paying special attention to the economic, historical, and political aspects as well since 1945 until 2005/06. Key-Words: Foreign policy / security / development / theory / power / economy

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Introdução: O paradigma do Japão: força, fraqueza ou pacificador O Japão é apontado como um país internacionalmente fraco e dependente de terceiros para a sua segurança. Geograficamente, o Japão está situado numa área geopoliticamente instável face à probabilidade de conflito entre as Coreias ou entre a República Popular da China (RPC) e Taiwan. Os recursos naturais Japoneses são praticamente inexistentes; tem uma alta dependência energética, estratégica, e comercial. Verdadeiramente, só possui um aliado — os EUA. Mas, o oposto também é verdade. O Japão é a base de segurança estratégica dos EUA na região asiática. A aliança Japão/EUA já atingiu um estádio natural onde as duas nações são de tal modo interdependentes que um desequilíbrio assimétrico das variáveis economia, segurança, e poder militar terá consequências estratégicas para ambos (Kamo 1999, p.18-9). No pós-guerra fria o Japão já não aceita ser o delfim da potência hegemónica — EUA. O Japão é pelas razões apontadas uma nação muito diferente das outras potências industriais e democráticas. E, à excepção de Israel, são poucos os países que não estão rodeados de fortes parceiros comerciais, potências aliadas, e amigos fronteiriços (Pempel 1977, p.726-27). Poder-se-ia pensar que estas vulnerabilidades afectaram a decisão da política externa económica Japonesa. Mas, não. Surpreendentemente, a política externa Japonesa, que durante a Guerra Fria foi duramente criticada pela sua passividade ou reactividade (Levin 1993, p.202) face a pressões externas (gaiatsu) existentes, no pós-guerra fria, aparenta um activismo sem precedentes na procura de segurança para lá de motivos puramente económicos (Llewelyn 2010, p. 46). O paradigma da fraqueza face à subordinação dos seus interesses em prol do seu aliado, os EUA (Boissou 1999, p.9-11, 18) perde força. Senão vejamos: O Japão é uma potência regional, senão mundial. E, se de 1921-1931 possuía alguma inferioridade em termos de superioridade naval, no Sistema de Washington, entre 1931 e 1945, Tóquio impôs como sabemos o paradigma da força com todas as consequências sobejamente conhecidas. Derrotado na II Guerra Mundial, o Japão superou-se e expôs ao mundo um novo paradigma: Pacificador e arquitecto/ motor do desenvolvimento primeiro na Ásia (Boissou 1999, p.27) e, actualmente para África através da Conferência de Tóquio para o Desenvolvimento Africano, mais conhecida pela sua sigla inglesa TICAD (Tokyo International Conference on

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African Development). Esta Conferência internacional para o desenvolvimento africano teve início em 1993 e desde ai realiza-se todos os cinco anos i.e. em 1998, 2000, 2003, e 2008. Tendo em conta que para o Japão o fim dominante é a sua segurança, o que é partilhado pelos realistas (Nye 2002, p.226); que o arquipélago tem um poder militar real para fazer face a qualquer ameaça, dispõe de um poder nuclear encoberto derivado da segurança garantida pelos EUA, mas sobretudo detém a opção e a capacidade de ter armas nucleares; então, a política externa japonesa situa-se entre um realismo político oculto e um realismo/mercantilismo económico levado às últimas consequências. Esta visão realista das relações internacionais, a partir da década de 1980, perdeu algum peso para o governo japonês, em detrimento da teoria de interdependência complexa de Robert Keohane e Joseph Nye (2002, p. 224-27) mas com o fim da Guerra-fria ganhou preponderância expressa nas novas linhas directrizes da Aliança Nipo-Americana, adoptadas a 23 de Setembro de 1997, por exemplo face a possíveis conflitos na região. Num mundo cada vez mais interdependente, a política externa económica passou a ter um papel tão ou mais relevante que a segurança militar, não havendo ordem de prioridades na agenda (Ballon 1999, p.12). No pós-11 de Setembro como em 1951, a primeira premissa – segurança nacional expressa no Tratado de Segurança Mútua com os EUA permanece o pilar principal da política externa japonesa. A contribuição do Japão primeiro na guerra contra o comunismo e presentemente contra o terrorismo é significativa e distanciou-se da diplomacia do cheque tão criticada pelos aliados na Guerra do Golfo (1991) para uma contribuição activa na operação enduring freedom no pós-11 de Setembro. Mas, a guerra do terrorismo pôs a descoberto o anti-militarismo japonês, senão realista defensivo visível na tentativa de Tóquio evitar ser visto como uma ameaça por terceiros, reconhecimento que é consistente com o dilema de segurança, e a tendência doutros Estados terem de responder à ameaça japonesa (Midford 2011, p. 183). Desde o século XIX, que o Japão se caracteriza por ser um Estado forte com uma nação homogénea. No período moderno, o Japão não tem tido conflitos sejam eles de ordem religiosa, social, ou política. Para travar o domínio económico por outras potências ocidentais, o código comercial japonês (1899), baseado na experiência alemã, permitiu a fusão de empresas japonesas. Para desenvolver os recursos humanos, a partir de 1872, o Japão tornou a educação obrigatória à frente da maior parte dos países ocidentais (Ballon 1999, p.12). Uma máquina governamental e burocrática instalou-se obrigatoriamente desde meados da Era Meiji (1868-1912), na qual os poderes do Parlamento e de partidos políticos eram consideravelmente fracos. A Era Meiji testemunhou o desenvolvimento industrial do Japão no qual o arquipélago elaborou o seu modelo económico num contexto de isolamento desfavorável visto não poder usufruir das sinergias dinâmicas com os países vizinhos. Esta situação é radicalmente diferente pois que os países asiáticos são hoje uma das zonas de crescimento mais dinâmicas

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do Mundo o que em grande parte fica a dever-se ao Japão. Actualmente, o Japão tenta exportar o seu modelo de desenvolvimento económico (através de ajuda pública para o desenvolvimento) para os países em vias de desenvolvimento, particularmente Africanos. Mas na Era Meiji, os poderes constitucionais e direitos políticos dos cidadãos eram bem mais fracos que os deveres e obrigações para com o Imperador que de acordo com a Constituição de 1899, era definido como a autoridade suprema, situação que se manteve até 1945 (Hayes 2001, p.16-17). A democracia ou certos direitos de expressão ou opiniões legítimas reivindicativas podiam a curto ou médio prazo originar conflitos e compromissos. Logo esses direitos eram encarados como uma ameaça ao establishment e eram considerados sentimentos egoístas e intoleráveis para uma sociedade que se alicerça na harmonia social, peça essencial ao interesse e soberania nacional, ao desenvolvimento e bem-estar. A indústria e a banca era dominada pela elite económica (Zaibatsu) cujo domínio se prolongou pela II Guerra Mundial. Na Era Meiji (1868-1912) o objectivo principal de Tóquio era desenvolver um Japão independente militarmente e economicamente à semelhança das potências ocidentais que lhe permitisse ocupar o seu lugar na Ásia, de preferência numa posição de superioridade relativamente à China. Em 1912, quando a Era Meiji terminou a Era Taisho (imperador Taisho) teve início. Nesta altura, o Japão já era um país ocidentalizado, moderno e, politicamente destacado na comunidade internacional (Susumu 2001, p. 20-22). Durante as décadas de 1930/40, a autonomia industrial do sector privado foi fortemente reduzida em função da política colonial japonesa. O mesmo aconteceu no período de ocupação do Japão pelos EUA (Stockwin 1999, p.109). No pós-guerra o Governo Japonês apoiou-se num núcleo político forte e consistente e, após a recuperação da sua independência (a ocupação durou de 3 de Setembro de 1945 a Abril de 1952 — Tratado de São Francisco), pôs em prática uma diplomacia expressa numa política comercial apoiada numa estratégia de exportações para aceder aos principais mercados mundiais. O capital estrangeiro, assim como as importações que constituíssem uma ameaça aos produtos japoneses foram banidos. Simultaneamente, o Japão pôs em prática um sistema de educação altamente competitivo, igualitário e eficaz, adquiriu e produziu tecnologia para melhorar os seus produtos e torná-los competitivos à escala mundial. Este modelo caracterizou-se também pela maximização da psicologia organizacional ou industrial aliada a uma flexibilidade de gestão e organização (Feer 1997, p.57, 58). O domínio económico total contrastava, por vezes com a inércia na acção diplomática. A desvalorização da política externa foi aceite como uma forma de evitar qualquer comprometimento ou responsabilidade internacional (Guillan, 1970: 243, 248). Terminada a ocupação aliada e, com a nação arrasada o Primeiro ministro Shigeru Yoshida (1948-1954), colocava a diplomacia económica no corredor estreito do alinhamento automático com os EUA, que passaram a garantir

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a segurança do Japão, isento por sua vez, de despesas militares graças à Constituição pacifista e democraticamente social redigida sob as ordens do General MacArthur. Esta estratégia de concentrar recursos para o crescimento e desenvolvimento do Japão, mesmo se à custa de maior preponderância política na política internacional provou ser um sucesso. Depois, uma coligação financeira orquestrada pelo MITI (Ministério Internacional do Comércio e Indústria) a partir de 1949, punha em prática uma política comercial altamente proteccionista. Para proteger a reconstrução económica, o MITI agrupou as maiores indústrias, as empresas de trading filiadas (sogo shosha), através de um elevado nível de burocracia inerente à liderança do Partido Democrático Conservador (LDP), a partir de Outubro de 1955. Entre outros meios, praticou-se a sistemática exclusão de sindicatos evitando assim o excesso de despesas com a segurança social. Esta estratégia permitiu ao Japão criar as infra-estruturas políticas e económicas para que o País pudesse ser autónomo nos seus comportamentos económicos internacionais (Pangetsu 1983, p.21). Finalmente, o Japão utilizou até às últimas consequências a capacidade de exportação sem causar impacto na balança de pagamentos proibindo também a saída de capital de forma a reter divisas para pagar as matérias-primas que importava assim como as importações. No período 1960/70, o Japão olhava para o Sudeste Asiático como a Sua Esfera de Co-Prosperidade já não com intentos imperialistas, mas como uma fonte de recursos naturais e um mercado para os seus produtos (Martin 1995, p.96) Até 1972, a ajuda pública para o desenvolvimento (APD) japonesa estava colada à aquisição pelos países receptores de produtos japoneses, o que era criticado pela OCDE e o Comité de Assistência para o Desenvolvimento (Pempel, 1993, p. 111). Neste contexto, o Japão foi talvez o país que após a II Guerra Mundial que com mais sucesso pôs em pratica uma realpolitik macroeconómica de forma a recuperar a sua soberania económica visto que não tinha espaço político para ser uma potência hegemónica ou imperialista (Kamo 1999, p.24). O resultado foi francamente positivo. O Japão tornou-se uma potência industrial em meados da década de 70, uma superpotência económica em fins da década de 80, e um bloco económico concorrente aos EUA e à Comunidade Europeia já nos anos 90. De facto, o Japão adiantou-se no tempo ao aperceber-se da importância do poder económico para conduzir a sua diplomacia na política internacional. Mas, o país do milagre económico dos anos 1960/70 transformou-se num pesadelo financeiro no fim da década de 1990 incapaz de contornar os desafios da globalização. A dimensão interna deste processo é dada pelas sequelas da bolha económica (1986/91), cujo rompimento deu início à década perdida, a maior recessão da economia nipónica desde a guerra do pacífico. A componente externa desta recessão foi dada pela globalização, que veio abalar os pilares do i.e. dos conglomerados empresariais (keiretsu) aliada a um

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corporativismo centralista entre trabalhadores e empresa na qual a cooperação entre ambos é legendária. O sistema japonês meio caminho entre o capitalismo e o socialismo, começou a degenerar, e o Japão rendeu-se às necessidades da reestruturação económica, abriu-se ao investimento directo estrangeiro (IDE) e às fusões globais (Reis 2001/2002, p.155). O Japão viu-se forçado a alterar os seus hábitos e a ter de assumir riscos políticos, económicos ou financeiros, mas sobretudo a actuar mais como um líder do que um seguidor do líder. O povo japonês viu no actual primeiro Ministro Koizumi o líder arrojado e destemido que há muito esperavam para levar a cabo as reformas estruturais só comparáveis à da Era Meiji em 1868, que abriu o país ao Ocidente num princípio de transparência e modernização favorecedor da estabilidade num ambiente globalizado (Takafusa 1994). 1. Rendição e reconstrução (1945-1951) A economia japonesa tinha ficado devastada após a II Guerra Mundial. As infra-estruturas industriais estavam praticamente destruídas. A produtividade no trabalho e no avanço tecnológico tinha estagnado, mais de metade da população estava na agricultura. No estrangeiro, a maioria dos investimentos japoneses foram congelados ou transferidos para as nações aliadas durante a guerra, e a grande parte das empresas japonesas cessou a sua actividade. Em Setembro de 1945, foi emitido o primeiro documento chamado Política Inicial de Rendição Americana para o Japão, e seguido por outro em Novembro, intitulado Directiva Básica de Rendição Inicial do Comando Supremo das Potências Aliadas para a Ocupação e Controlo do Japão. Na generalidade, estes dois documentos deveriam assegurar que o Japão não representaria nunca mais uma ameaça para os EUA ou para a paz e segurança no mundo. Todos os resquícios da economia militar japonesa deveriam ser destruídos e a produção de armamento seria proibida, assim como seriam impostas limitações à produção de indústria pesada e indústria naval de acordo com a Declaração de Postdam. No período exactamente a seguir à Guerra, dois factores cruciais influenciaram a expansão das actividades das empresas industriais no Japão: a necessidade de recursos financeiros para levar a cabo investimentos em capacidade produtiva e a necessidade de gerar divisas via exportação para pagar a importação de matérias primas e tecnologia. Neste contexto, o primeiro Ministro Shigeru Yoshida (1948-1954), que antes como diplomata tinha encorajado a invasão da Manchúria (Martin 1995, p.95), rapidamente percebeu a comodidade da situação e aceitou suportar o insuportável (Reis 2001/2002, p. 153) i.e. as imposições da Declaração de Potsdam. Assim, optou por uma política externa assente em critérios económicos e rejeitou uma

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política belicista o que trouxe imensas vantagens, principalmente no contexto da bipolaridade da Guerra-fria. O Japão tornou-se num aliado privilegiado dos EUA, independente militarmente, e beneficiava ainda do SMI do pós-guerra para além da economia de mercado que os EUA estavam a construir. A crescente fragmentação e segmentação dos mercados internacionais no período pós-guerra aumentou consideravelmente a complexidade da gestão nas empresas industriais. No Japão, a escassez de recursos financeiros e humanos necessários ao desenvolvimento económico motivou a procura de novas formas de estruturação organizacional que viabilizassem as estratégias de crescimento sustentado. Dada a natureza familiar da cultura empresarial nipónica, fusões e aquisições não constituíam soluções viáveis a longo prazo. Por outro lado, a impossibilidade legal de estabelecer empresas holding, por decisão da administração militar americana no final dos anos 40, dificultava a reestruturação das unidades empresariais. Para competir a nível externo, a via organizacional adoptada consistiu na criação de agrupamentos de empresas com actividades complementares, conhecidos como kigyo shudan (grupos empresariais horizontais) ou keiretsu (grupos empresariais verticais). A origem deste grupo de empresas remonta ao início do século XX, quando a economia japonesa era virtualmente dominada por um pequeno grupo de conglomerados financeiros, os zaibatsu de controlo familiar i.e. organizações com características feudais. De resto a empresa japonesa era por si só uma instituição económica e social ao serviço do imperador, mais tarde da nação (Freire 1995, p. 86-111). Assim, no início de 1946, uma das primeiras directivas do Comando Supremo das Potências Aliadas (Supreme Commander for the Allied Powers – SCAP), para o restabelecimento da Democracia no Japão, foi o desmantelamento dos Quatro principais zaibatsu (grupos de empresas) (Mitsui, Mitsubishi, Sumitomo, e Yasuda) junto com outros sete que em 1937 controlavam quase 25% das acções em empresas japonesas foram dissolvidos. Em 1947, a dissolução da trading filial da Mitsubishi e da Mitsui foi ordenada. Foi também decretada por instigação dos EUA, a Lei Anti-Monopólio, em Abril de 1947, que proibia a formação de cartéis, holdings, carteiras de acções em empresas por outras empresas, ou até a participação em cartéis internacionais. Porém, em 1949, a lei de participação em cartéis internacionais foi revogada pois foi considerado um obstáculo ao investimento internacional no Japão (IDE). No final dos anos 1950, grandes bancos comerciais estiveram na origem de três novos grupos empresariais horizontais, os kigyo shudan: Os bancos Fuji Ginko, Dai-Ichi Kangyo Ginko, e Sanwa Ginko. Uma vez mais o factor financeiro assumiu um papel determinante na constituição destes grupos. As empresas dos Kigyo shudan passaram a ser geridas com maior autonomia estratégica e operacional que os membros dos grupos ex.zaibatsu, até porque tinham menor experiência de colaboração industrial ou comercial. Inicialmente, o Comando Supremo das Potências Aliadas (SCAP) tinha a intenção de punir o Japão e de obrigar à sua desmilitarização e democratização. Se o Japão queria reconstruir a sua economia,

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teria que o fazer sozinho. No entanto, o início e intensificação da Guerra Fria com o perigo de uma guerra civil entre os nacionalistas e os comunistas na China em 1947, levou George Kennan a concluir que seria do interesse nacional americano promover a reconstrução económica japonesa. Em Maio de 1949, o Conselho de Segurança Nacional adoptou a directiva NSC 13/3 na qual abandonava a intenção de exigir as reparações de guerra ao Japão. Em Dezembro de 1948, o Presidente Truman enviou ao Japão Joseph Dodge, Presidente do banco de Detroit para relançar a reconstrução económica do Japão através da eliminação do controlo económico, o restabelecimento da economia de mercado e do mercado cambial. O dólar passaria a valer 360 ienes, e assim deveria permanecer nos próximos 22 anos. Esta era uma das formas de libertar a economia japonesa da dependência de ajudas e subsídios internacionais para a tornar competitiva. O Programa Dodge foi anunciada em Março de 1949. De acordo com o Programa Dodge, os Caminhos de Ferro, assim como o Telefone e Telégrafo deixaram de depender directamente do governo e foram nacionalizados. A eclosão da guerra da Coreia em 1950 deu um impulso à balança comercial do Japão que tinham um défice de $400 milhões de dólares, com exportações no valor de $500 milhões e importações no valor de $900 milhões em 1949. Os Americanos levantaram parcialmente ao Japão a proibição de fabrico de armas e fornecimento de equipamento militar. A Guerra da Coreia assim o exigia. Em suma, no início da década de 50 o resultado da ocupação americana e das políticas de democratização tinham sido positivas. O nível de vida no Japão era agora muito melhor do que no fim da guerra, a economia de mercado e a concorrência entre as empresas estava em andamento. A indústria, teoricamente, já não era pelos Zaibatsu. Os fundamentos para a industrialização no pós-guerra estavam estabelecidos. 2. Desenvolvimento económico e início dos conflitos comerciais (1952-1972) Em 1947, o governo Japonês através do MITI lançou o primeiro plano para a modernização da indústria, a promoção do comércio externo e a redução das importações. Por outras palavras, o governo recusava-se a aceitar a lógica de uma economia num país de recursos limitados. O Japão pretendia aproveitar e retirar todas as vantagens de uma força laboral bem treinada e disposta a cometer sacrifícios em prol da nação e do desenvolvimento económico. Também não havia sinais do governo pretender abrir o país ao capital estrangeiro ou deixar as indústrias nascentes sem protecção contra as importações indesejadas (Saito 2000, p. 69 e sgs). Com a criação do Acto de Exportação e Importação, em Agosto de 1952, o governo japonês delegou poderes aos exportadores para negociarem tarifas nas exportações relativamente ao preço, design, qualidade e quantidade dos produtos

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de exportação. Em 1952, o Ministério do Comércio Internacional e Indústria (MITI, actualmente METI) lançou a Lei da Aceleração e Racionalização das Empresas. Foram concedidos subsídios para desenvolver tecnologia própria; empréstimos governamentais para equipamento e maquinaria, instalações, e depreciação dos preços que podiam ir até aos 50% do preço nos mercados (Takafusa 1994). O ex. Primeiro-ministro Hayato Ikeda assim como o seu substituto Ichiro Hatoyama (depois de 1954) reconheceram claramente o primado dos interesses económicos na recuperação do país, ao conceber o Plano de Duplicação do Rendimento Nacional em Dezembro de 1960. Sob a sua orientação, entre 1961 e 1970, o produto nacional bruto cresceu a uma taxa média anual próxima dos 11%. Paralelamente a esta política, nos anos 60, quotas de divisas estrangeiras eram atribuídas pelo MITI por forma a controlar as importações de bens de consumo, e proporcionar aos fabricantes domésticos a oportunidade de suprir a procura ainda não satisfeita. De igual modo, as tarifas alfandegárias eram definidas com vista a preservar a competitividade dos preços dos concorrentes japoneses, pese embora o relatório do MITI para os anos 1960-1970 anunciar a abertura do mercado japonês (Faure 1997, pp. 44-5). Para obter divisas para as matérias primas necessárias ao desenvolvimento da indústria naval, de carvão ou do aço, o IDE era desaconselhado à excepção dos investimentos na extracção mineral e outros recursos naturais. A Lei de Investimento Estrangeiro e a Lei de Controlo do Comércio Externo de 1949 impôs restrições ao investimentos em sectores ditos chave para a economia japonesa. Em 1968, somente 51 firmas estrangeiras detinham mais de 50% em firmas japonesas. Apesar da importância do IDE para o desenvolvimento tecnológico do Japão, entre 1951 e 1971, o Japão tinha recebido somente 18 biliões de dólares, dos quais somente 6% eram controlados por firmas estrangeiras. Os bancos receberam autorização do Ministério das Finanças (MOF) para conceder empréstimos e investir. Foi o caso dos banco Fuji e Teikoku. Em 1952, o banco de Tóquio obteve autorização para abrir filiais em Londres. A internacionalização das empresas japonesas iniciou-se tardiamente i.e. após 1970. O objectivo das empresas era obter matérias primas para produzir e exportar ajudando assim a equilibrar a balança de pagamentos do Japão. Se havia investimento, todas as actividades teriam de estar obrigatoriamente relacionadas com a promoção das exportações e a política monetária do governo. Também deve ser referido que este período de rápido crescimento económico era favorecido por um clima internacional favorável, no qual entre 1950 e 1965, o crescimento económico mundial evoluiu a uma média de 5% do GDP. A adesão do Japão ao FMI (1952), ao GATT (1955), à Agência Internacional da Energia Atómica (1957), e à OCDE (1964) tinha como objectivo promover o livre comércio e intercâmbio entre o Japão e as restantes nações. No entanto, Tóquio, antes utilizou-as para poder beneficiar do acesso aos mercados sem ter necessariamente de fazer concessões, com a vantagem de ocupar o seu lugar à mesa das grandes organizações internacionais e das grandes potências (Mendl 1995, pp. 30-1).

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Em 1960 já era visível a preocupação do governo Japonês face à criação da EFTA e CEE, e do perigo que estas organizações representavam para as suas exportações. Assim, em 1962, o Primeiro Ministro Hayato Ikeda face à relutância dos EUA em rever o Tratado de Segurança com o Japão, lança em Londres uma ofensiva diplomática baseada na teoria dos três pilares a qual preconizava que para a construção de um mundo livre teria de estar apoiado no contributo conjunto dos EUA, da Europa e do Japão. Hayato Ikeda respondia às pressões dos aliados. Em 1964, o Japão organizou em Tóquio os Jogos Olímpicos. Em 1963, já todos os Estados membros da CEE tinham concedido a cláusula da nação mais favorecida ao Japão, e a Comissão Europeia declarava não existirem mais impedimentos à negociação de um Tratado de Comércio entre o Japão e a CEE. Em 1964, o Japão realiza os Jogos Olímpicos em Tóquio. Com este evento, o Japão provava ao Mundo que era uma nação próspera e pacífica e devolvia aos Japoneses o prestígio outrora perdido (Weinstein 1972, p. 71). O Japão aproveita este evento para fazer da Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD), um dos seus principais instrumentos de política externa, principalmente para a promoção das exportações japonesas. Com efeito, a APD japonesa durante a década de 60, torna-se a raizon d´être da ajuda japonesa, usando-a para cobrir a vulnerabilidade geopolítica e económica japonesa. A guerra de Yom Kippur (1973) e a imposição do embargo de petróleo, levou o Japão a aproximar-se aos países árabes da OPEC exercendo alguma influência através da APD. Esta política deu excelentes resultados, pois o embargo foi levantado para o Japão. Consequentemente, estava dado o primeiro passo na globalização da instrumentalização diplomática da APD japonesa que foi estendida aos países africanos ricos em recursos naturais (Orr 1993, p.2). Durante a década de 70 surgiram outros problemas. Por um lado, o défice bilateral americano e, por outro lado, o conflito comercial do Japão com a EFTA e CEE. O nascimento de um acordo comercial comum entre os dois parceiros não veria a luz do dia antes de 1 de Janeiro de 1970. Os países da OCDE, incluindo os EUA, começaram a pressionar o Japão para liberalizar o mercado interno. Estas pressões estavam directamente relacionadas com o crescimento das exportações japonesas para os países industrializados. Mas, enquanto a Guerra-fria durasse e, em troca do apoio à política global americana, o Japão poderia capitalizar os interesses estratégicos dos EUA na região para o seu desenvolvimento económico (Gilson 2000, pp. 15-28). 3. A importância da estabilidade macroeconómica para o crescimento (19731983) De acordo com Hellmann (1972, p. 136), o sucesso da paz e prosperidade japonesa teve um preço. O Japão ao separar política da economia abdicou do poder e prestígio na politica internacional, abandonou a dimensão militar da

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diplomacia, e adoptou uma politica externa mais parecida com uma empresa do que com um Estado-nação. A nível macro, a balança entre a poupança e o investimento, as contas públicas e, o saldo positivo das trocas comerciais com o exterior foi fundamental. Mas, as opiniões dividem-se face ás virtudes do sistema japonês. Para uns, um modelo alternativo de capitalismo que conduziu as grandes unidades industriais, a ter um diferencial do valor acrescentado de produtividade no Japão, já em 1977, superior ao americano. Para outros, o modelo é excessivamente mercantilista devido à baixa originalidade processual e tecnológica conseguida à custa de uma situação macroeconómica vantajosa, baseado numa taxa de câmbio muito favorável e, com situações excessivas de proteccionismo defensivo (Canavarro 1992, p 32). Na década de 60, os investimentos privados excederam continuamente o nível das poupanças domésticas. Nas décadas subsequentes, a desaceleração do crescimento económico internacional resultou na diminuição relativa dos montantes investidos. Em consequência, as empresas japonesas tiveram de absorver a totalidade das poupanças líquidas das famílias e obter recursos adicionais no sector público. O Governo adoptou ainda uma política económica conservadora, para evitar défices nas contas públicas. Apesar dos cortes orçamentais, o Japão durante a década de 1960 manteve fortes investimentos públicos, nomeadamente em indústria pesada, centrais eléctricas, maquinaria, complexos químicos, refinarias de petróleo, nas quais a capacidade de expansão económica pudesse gerar riqueza para o país. Nos anos 70, os choques de Nixon conjugados com os choques petrolíferos aumentaram o custo das importações energéticas e baixaram a competitividade internacional da indústria nipónica, enquanto a apreciação do iene em mais de 50% em relação ao dólar afectou a capacidade de exportação do sector empresarial privado. O Primeiro-ministro Sato na tentativa de evitar a recessão na economia baixou os juros, aumentou o crédito e expandiu o orçamento dando prioridade ao investimento público. Mas, a inflação disparou. Para a controlar em Dezembro de 1973, o governo diminuiu o crédito e impôs restrições e racionamento no uso de petróleo tal como no pós-guerra. O Japão entrava na pior recessão desde a II Guerra Mundial. Para contrariar o desequilíbrio da balança de pagamentos, o Japão lançou a doutrina Fukuda em 1977, na qual Tóquio assumiu uma diplomacia nãomilitarista e de cooperação com países socialistas asiáticos e comunistas como o Vietname, Coreia do Norte, e Mongólia (Arase 1995, p. 213). Esta doutrina, preconizava uma mudança duma diplomacia económica exclusivamente centrada no seu interesse económico Japonês, donde os países ASEAN serviam somente como um conveniente fornecedor de matérias primas e um potencial mercado para os seus produtos, para uma política externa mais solidária, não só para se reabilitar politicamente perante os seus vizinhos, como também para continuar a assegurar os mercados asiáticos.. Uma das

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manifestações desta doutrina foi a deslocalização da produção para esses países menos desenvolvidos, na forma de investimento directo estrangeiro (IDE) e maior ajuda para o seu desenvolvimento através de APD (Morrison 1994, p.146). No entanto, a incapacidade Japonesa para adaptar o seu modelo económico do pós-guerra à realidade global económica internacional, e às reestruturações do sector público já em curso nos países mais desenvolvidos era notória. No entanto, o aumento de comércio mas especialmente o início da vaga de IDE japonês para os países vizinhos ajudou a criar uma política regional económica. Neste contexto, o Japão foi uma fonte de riqueza e de divisão internacional de trabalho iniciando um embrionário regionalismo económico benéfico para o crescimento e desenvolvimento dos Novos Países Industrializados e, uma convergência mais rápida entre o Japão, Hong-Kong, Singapura, Coreia do Sul, Taiwan, Malásia, Filipinas, Tailândia e China. 4. A importância dos keiretsu na globalização económica do Japão (1984-1990) Vimos que ao longo de mais de três décadas, a orientação macroeconómica do Governo japonês possibilitou o crescimento sustentado da economia sem grandes tensões inflacionistas nem crises de desemprego persistentes. Mas, as crises petrolíferas deixaram marcas o que obrigou à transferência de trabalhadores de umas firmas para outras dentro do grupo (keiretsu). O objectivo, evitar despedimentos e aproveitar toda a flexibilidade da mão-de-obra disponível. A visão da política externa para a década de 80 desenvolveu-se segundo dois eixos: a reorientação do crescimento num sentido mais qualitativo em detrimento dum crescimento quantitativo e a globalização da economia japonesa (Itoh 2000, p.95). Desde os anos 80, a posição competitiva das empresas japonesas filiadas nos kigyo shudan (grupos empresariais verticais), as sogo shosha começou a diminuir progressivamente (Susumu 2001, p.20). As sinergias financeiras e comerciais perderam gradualmente peso para a complementaridade tecnológica e a internacionalização das operações. A diversificação deu lugar à especialização. O declínio dos kigyo shudan e a ascensão dos keiretsu japoneses é a consequência natural da dinâmica competitiva dos anos 80 e 90 (Freire 1995, pp. 178 e sgs). A abertura gradual do mercado doméstico e a valorização do iene para promover as importações de componentes estrangeiras, ajudou a reduzir a manipulação do mercado pelos keiretsu que controlavam os fornecedores subcontratados em diferentes fases do processo produtivo. Em meados de 1980, o Japão superou os EUA como líder no sector bancário, tecnológico e de manufacturas. Tóquio internacionalizava a sua economia e entrava assim numa nova fase de política externa. A afirmação do seu poder económico global traduziu-se de várias formas. O Japão superou os EUA, pela primeira vez na história do pós-guerra, como o maior fornecedor de ajuda

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oficial (ou pública) para o desenvolvimento (APD), e tornou-se ainda o principal fornecedor de capital e tecnologia aos países em desenvolvimento, especialmente, aqueles que anteriormente tinham sido por ele ocupados, tais como Burma (1954), as Filipinas (1954), a Indonésia (1958), e o Vietname do Sul; todos estes receberam reparações de guerra do Japão em forma de APD (Feer 1997, p. 59, 60). O Japão utilizava os meios económicos por todos os meios, não só para se afirmar como potência regional, mas também como suporte da política norteamericana na Ásia para conter o comunismo. Antes de 1986, as exportações Japonesas totalizaram US$130 biliões, mas de 1986 a 1990, atingiram US$250 biliões, em meados de 1990, US$420 biliões e, em 1997, US$800 biliões (Ballon and Honda 2000, p.179). Para pôr termo à queda do dólar o Japão no Acordo do Louvre (1987), concordou na conversão de 150 ienes para 1 dólar. Em consequência, as exportações em ienes caíram e as importações aumentaram em termos de quantidade até 1992. Para superar estes problemas, o IDE japonês para o sudeste asiático, afirmou-se como a nova estratégia na política externa económica japonesa. De facto, se até à década de 70 as Sogo Shosa tinham sido o instrumento para a implementação da estratégia de exportação, na década de 1980 o IDE tornou-se o elemento vital na reestruturação da economia japonesa (Maricourt 1995, p.199-203). Por outro lado, o IDE era uma oportunidade para as novas pequenas e médias empresas, fora do grupo keiretsu, e como tal sem acesso ao capital, poderem entrar no mercado (Helweg 2000, p.31). Mas, para além da valorização do iene, que provocou a reorientação geográfica do IDE Japonês em direcção aos EUA e à Europa (CEE), o factor principal para os massivos investimentos japoneses em direcção à Europa foi o medo da fortaleza europeia como reacção à construção Mercado Único que deveria estar completo até 1991. Por isso, a taxa japonesa de dependência nas exportações (total anual das exportações/produto nacional bruto) que tinha sido de 13,3% em meados da década de 80, desceu para menos de 10% nos anos 90 (Otake 1999, p.383-84). Para os países em vias de desenvolvimento, os principais motivos para a internacionalização das firmas japonesas através de IDE foi a perda das vantagens comparativas japonesas. Terminava assim o ciclo de produto de desenvolvimento descrito por Akamatsu Kaname durante a década de 40 na economia japonesa desde a importação até à exportação do produto acabado (Hook 2001, p. 42-3). A partir da década de 1990, o sistema de financiamento indirecto construído e apoiado nas relações entre os membros do keiretsu e o banco principal, com as ligações entre as empresas e as suas subcontratadas estava desgastado. Os escândalos políticos e as situações de corrupção multiplicaram-se afectando grandemente a classe política, as instituições e a democracia. Era o prenúncio da bolha económica (António 1998, p.68-9).

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5. A explosão da bolha (1991-2000) O boom económico no Japão em fins da década de 80, continha já em si as sementes da crise. A década perdida afundou o Japão numa crise sem precedentes. A nível interno o excesso das exportações em relação às importações, a especulação desmesurada dos preços no sector imobiliário e financeiro, o crédito fácil ao sector empresarial e empréstimos sem garantias que desde a década de 80 cresciam 12% ao ano e, a falta de competitividade e inacção por parte do governo para levar a cabo as reformas necessárias no sistema de emprego vitalício lifetime employment, proporcionando garantia de emprego desde a contratação até à data da reforma. As empresas japonesas auto-sustentavam-se através de um desenvolvimento permanente das suas vantagens comparativas traduzidas quer na obtenção de financiamentos, quer no desenvolvimento e obtenção de novas tecnologias e formação contínua. Em certa medida, a desregulamentação do sistema financeiro japonês personalizado no sistema bancário japonês era inerente ao processo de internacionalização da economia japonesa e visava a diversificação dos instrumentos financeiros à disposição das empresas. A captação de investimentos externos aumentou o que por sua vez diminuiu a dependência das empresas japonesas em relação ao mercado bancário interno. Consequentemente, houve uma mudança das carteiras de empréstimos dos bancos japoneses para outras empresas o que elevou o risco, além de que a sua capacidade de auto-financiamento foi posta em causa. Os grandes bancos que já antes da crise estavam subcapitalizados em relação às exigências de fundos próprios ficaram numa situação pior devido à baixa inoportuna do valor dos seus activos (Suzuki 1990, p.151). No plano externo, a valorização do iene (Acordo Plaza de 1985) em mais de 50% em relação ao dólar, provocou em menos de um ano uma variação na taxa de câmbio e, consequentemente um forte ajuste na economia japonesa. A economia japonesa enfrentava não só a recuperação da indústria americana como também o espectacular crescimento das economias asiáticas, pelo menos até à crise asiática que eclodiu no verão de 1997. A recuperação da indústria norte-americana devese à introdução do modelo de gestão japonês, principalmente das técnicas do justin-time, espírito de equipa, descentralização do processo de decisão, e resposta mais eficaz às exigências dos consumidores. Os sindicatos aprenderam com as suas congéneres japonesas a ter uma atitude mais cooperativa e uniram esforços para evitar despedimentos. Mas, enquanto os Americanos recuperavam da sua bolha económica de fins da década de 80, a classe empresarial japonesa apregoava a superioridade do seu modelo ao invés de fazer as reformas necessárias. Estimase que nas empresas japonesas antes da bolha explodir havia 2 a 3 milhões de empregados supérfluos num total da população activa que rondava os 62 milhões no início dos anos 90 (Pangetsu 1983, p.23). Por sua vez, as economias asiáticas, pelo menos até à crise asiática em 1997, estavam a competir com as indústrias japonesas com recursos humanos

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e materiais tão qualificados e com custos mais baixos que as suas congéneres japonesas nos mesmos sectores. O IDE japonês no sudeste asiático apelidado de flying geese simboliza a nova posição do Japão e explicava o sucesso dos NIE (New Industrializing Economies, i.e. Coreia, Taiwan, Singapura e Hong-Kong) que durante os anos 80 desenvolveram as suas infra-estruturas e uma indústria para competir com o Japão. A incapacidade governamental para reformar o modelo de senioridade e de emprego vitalício que estava ultrapassado no Japão levou bancos e pequenas e médias empresas (PMEs) a estabeleceram planos de reforma para os seus trabalhadores em idade de reforma e, recrutaram novos trabalhadores na tentativa de adiar o inadiável. Os sectores da agricultura, da distribuição, dos transportes aéreos, de caminhos de ferro, mas igualmente dos táxis, correios e telefones também já não eram competitivos à escala mundial. O elevado custo de vida era insustentável para sustentar trabalhadores improdutivos. A ideia do company man que tinha prevalecido desde a II Guerra Mundial terminou. Um novo modelo de gestão criativo e empreendedor com novas ideias e produtos era necessário para relançar as exportações japonesas. O governo japonês tentou evitar a explosão da bolha económica através de várias medidas, a saber: uma política de restrito controlo orçamental por forma a acumular provisões para suportar o gradual envelhecimento da população; estimular a economia através de uma política de obras públicas com a construção de infra-estruturas habitacionais; e reduzir os impostos para apoiar a recuperação económica; no entanto, só aumentou ainda mais o défice público. Face à presença do excesso de liquidez ou pelo menos na eminência desta houve uma contracção excessiva de crédito por parte dos bancos e a economia entrou num longo período de estagnação económica. Os empréstimos tornaram-se impagáveis. Simultaneamente, o valor das garantias oferecidas sob a forma de activos imobiliários correspondia agora a uma fracção dos montantes tomados como empréstimo. O Banco do Japão tentou reagir diminuindo ainda mais a taxa de juro e aperfeiçoando o regime de supervisão bancária. Mas nada disto parecia funcionar para estimular a retoma económica (Feer 1997, p.59, 60). A crise de confiança que se abateu sobre o Japão pôs em causa o modelo Toyotista existente em que a procura guia a produção impondo uma lógica de diferenciação de produtos face ao gosto dos consumidores. No modelo americano ou fordista, a oferta impõe a lógica do produto standard com processos de fabrico mais cómodos e ao mais baixo custo. O modelo toyotista dá prioridade ao consumidor o que confere às empresas japonesas uma capacidade de adaptação inigualável no mercado interno e externo consoante a conjuntura o que exige uma contínua reconversão dos produtos com recurso às novas tecnologias (António 1998, p. 68-9). Todavia, a crise de confiança que se abateu na sociedade, onde os ganhos de produtividade das empresas eram repartidos com os trabalhadores aumentando o seu poder de compra e o consumo privado condenou de alguma forma o modelo produtivo japonês (Maricourt 1995, p.199-203).

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Com efeito, as componentes da procura agregada relacionadas com os gastos das famílias e das empresas paralisaram na década de 90. Para mais, a recusa dos japoneses em consumir numa economia onde os gastos individuais chegam a atingir 60% do PIB, conduziu a uma onda de pessimismo entre os agentes económicos, com os preços a caírem, o desemprego a aumentar, e o rendimento disponível a contrair-se. Tudo isto, provocou uma espiral deflacionista (preços baixos/recessão), paralisando a economia e o investimento que caiu face à retracção do consumo privado. Simultaneamente, a deterioração das contas públicas, a diminuição do superavit na balança comercial, a deflação piorou ainda mais a situação económica do País. A agravar estes problemas financeiros, houve um obstáculo adicional que é de natureza política. Os Primeiros ministros ao longo da década de 1990, Murayama, mas principalmente o Primeiro-ministro Hashimoto não deram a devida importância que o problema suscitava. De facto, só por altura da eleição da Câmara Alta do Parlamento é que Hashimoto aceitou, embora com grande relutância, as propostas do antigo Primeiro-ministro Miyazawa com a adopção de uma política de cariz keynesiano através dum pacote financeiro de 17 triliões de ienes às companhias de seguros e uns adicionais 13 triliões de ienes aos bancos para aumentar o seu capital (Tonooka 2004, p. 37-9). Tudo confluiu para a explosão da bolha, e até ao colapso da economia e do sistema financeiro foi um desastre perfeitamente natural. 6. A Era Koizumi (2001-2005) Desde a Era Meiji, que o país não enfrentava uma crise económica, política, e social tão grave. Podemos afirmar que o Japão atravessa uma crise existencial. Vencido o síndroma de inferioridade e insegurança que conduziu o Japão à II Guerra Mundial, ultrapassado o trauma de Hiroxima e Nagasaki, superado o sentimento da derrota e da humilhação, atingido o cume económico, igualado os EUA e a Europa, o Japão já não tem nada a provar a ninguém senão a eles mesmos. Mas, o Japão tal como no fim da guerra, apercebeu-se que foi ultrapassado pelas actuais e novas armas (novas tecnologias) que estão ao acesso de todos, haja génio criativo e risco individual; precisamente duas qualidades difíceis de encontrar numa cultura baseada num código ético de princípios morais dos samurais (Bushido), prontos a sacrificar-se pela nação, animam ainda o espírito do povo japonês. O samurai (one who serves) nunca deixou de existir, mas temse transformado, adaptado ao longo dos séculos. É essa a sua virtude, a sua maior arma (Feer 1997, p. 60-1). Nos sete pontos do programa da reforma estrutural, aprovados pelo governo Koizumi, a 26 de Junho de 2001, um mês após se ter tornado Primeiro ministro, dois deles proclamavam a necessidade de criar na sociedade japonesa

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o encorajamento do esforço individual e o desenvolvimento do capital humano através da livre escolha individual. A visão Koizumi espelhada nas reformas de 2001 assentam em quatro eixos: resolução do problema da insolvência da dívida; programa da reforma estrutural em sete pontos; adopção de um processo de decisão mais transparente em matéria de política económica; e por último, uma política económica e fiscal a médio e longo prazo para melhorar a situação orçamental do Estado (António 1998, p. 67). Se por um lado, estas reformas permitiram a Koizumi restaurar o brilho, o talento e a erudição da cultura nipónica, por outro lado, demonstram a coragem política e determinação do Primeiro ministro em tornar o Japão numa potência política, moderna e economicamente competitiva à escala global. Estas reformas só são comparáveis àquelas empreendidas durante a Era Meiji, em que o desenvolvimento tecnológico estava estreitamente ligado às capacidades militares, ontem para projectar o seu poder além do arquipélago, hoje para readquirir pacificamente o prestígio na comunidade internacional por exemplo, através da prevenção das novas ameaças do século XXI como o terrorismo. A conjuntura actual chama atenção, tanto pelo crescimento económico registado nos últimos meses, como pela permanência do actual Primeiroministro no cargo. Koizumi, o actual primeiro ministro japonês, assumiu o cargo em Abril de 2001 e dentre os vinte e oito primeiros-ministros após a Segunda guerra mundial, ele é o quinto com mais tempo no cargo, atrás apenas de Eisaku Sato (sete anos e oito meses), Shigeru Yoshida (seis anos e dois meses), Yasuhiro Nakasone (cinco anos) e Hayato Ikeda (quatro anos e cinco meses). Esta marca destaca-se também porque, logo após a explosão da bolha em 1991 e da consequente crise económica japonesa, o país do sol nascente passou por um período de grande movimentação política, incluindo reformas de partidos, do sistema eleitoral, a saída do (PLD) do governo, ainda que por um período relativamente curto e várias trocas de primeiros-ministros (Otake 1999, p. 392-93). No entanto, devemos lembrar que o país não esteve parado. Por exemplo, para facilitar o acesso de firmas estrangeiras ao arquipélago, o Japão pôs em prática um longo programa de desregulamentação para o período 19982001. O objectivo principal, era melhorar a transparência dos procedimentos de acesso ao mercado e simplificar e harmonizar ao nível internacional os processos de certificação e certos tipos de operações, especificamente de IDE. Na verdade, já desde 1982, que esta desregulamentação tinha tido início; no entanto, o crescimento de investimento directo estrangeiro por firmas estrangeiras no Japão, é particularmente forte a partir da segunda metade da década de 1990. Para este facto, contribuiu não só a recessão do Japão como a necessidade de encontrar soluções para ela (Carter e Suchi 1998, p. 33, 41). O factor Koizumi potenciou e acelerou as reformas de desregulamentação, liberalização e privatização no Japão, respondendo assim ao desafio da globalização de uma forma total e absoluta. Por isso, subir no ranking de popularidade dos japoneses, desde que foi eleito, em 20 de Setembro de 2003,

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presidente do PLD por mais três anos, e depois reeleito nas eleições de 11 de Setembro de 2005, após ele próprio ter convocado eleições depois que alguns membros de seu partido se uniram a parlamentares da oposição para derrotar a sua proposta de privatização do correio que, no Japão, também funciona como banco. O que explica esta longa permanência de Koizumi no governo? Duas razões principais podem ser apontadas. Em primeiro, o carisma do primeiroministro está ligado ás reformas que vem desenvolvendo no Japão. Em segundo, a ausência de um político que possa substitui-lo, tanto dentro do próprio PLD, como entre os partidos de oposição, pois a população não confia na experiência do Partido Democrático do Japão (PDJ), maior partido de oposição. Com relação à pessoa de Koizumi, pode-se destacar a sua popularidade como elemento importante para a sua manutenção no governo, uma vez que as expectativas e as esperanças da população por uma recuperação do Japão foram nele depositadas. O actual primeiro-ministro tem tido uma imagem, que tem conseguido defender, de que é um político diferente no Japão, que está acima das relações tradicionais de poder e que, por isso, pode levar avante as reformas domésticas necessárias ao país. Essa imagem tem-se sustentado e permitido a manutenção da sua popularidade. Adicionalmente, a audácia e coragem de Koizumi com alterações na legislação japonesa para que as Forças de Auto Defesa do país possam actuar no exterior e com isso, revitalizar também o status internacional do país, enfraquecido após a Guerra do Golfo (1990/91), e assim posicionar-se como uma potência à escala mundial. Esta concepção repousa numa estratégia de visão industrial global do METI para o século XXI na qual o Japão só conseguirá manter-se no pelotão da frente se cooperar no desenvolvimento das tecnologias do futuro que já dominam mas que sozinhos i.e. sem a cooperação dos EUA e da União Europeia mas também da China não conseguirão desenvolver para lá de 2012 (Kaji 2002, p. 75-6). Politicamente, esta cooperação passa por uma partilha de poder (powersharing) com os EUA em detrimento da partilha do fardo (burden-sharing) pelos EUA (Kitera 2002, p. 43). Actualmente, as responsabilidades internacionais do Japão já não são as mesmas que há 50 anos atrás. O Japão é membro dos G8, um dos maiores contribuintes em matéria de Ajuda Pública para o Desenvolvimento, o segundo maior contribuinte da ONU, e um participante em Operações de Manutenção de Paz (OMP). A Guerra do Golfo serviu para retirar as seguintes ilações. A probabilidade dos conflitos entre Estados aumentou mas a sociedade japonesa não estava ainda preparada para uma maior intervenção internacional, mas ficou patente que sem uma efectiva participação militar, o poder político do Japão será sempre limitado, e pior ainda, nunca será visto como uma verdadeira potência. Esta opinião é partilhada por Ichiro Ozawa, um dos grandes impulsionadores das reformas políticas durante a década de 90. Ele acreditava que o Japão precisava de normalizar a sua política de segurança para não ficar isolado perante

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a comunidade internacional. Nesta altura havia já um consenso em quase todos os partidos que o Japão precisava de expandir a sua contribuição para a unidade e paz internacional num contexto multilateral. O sentido de oportunidade de Koizumi após os ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001, não poderiam ter sido mais convenientes e aprovou uma Lei autorizando o envio de Forças Marítimas de Autodefesa Japonesas para o Oceano Índico para dar apoio logístico à marinha de guerra norte-americana no combate ao terrorismo no Afeganistão. É este burden-sharing que os EUA desejam do Japão. O Primeiro-ministro Koizumi sabe que a revitalização económica do Japão é um elemento fundamental da política externa para que o país recupere a sua posição internacional de acordo com a preposição realista. Desde o pós-guerra que a inserção do Japão tem-se baseado mais na pujança económica, tanto pelo status-quo que a posição de segunda economia mundial lhe confere através da instrumentalização de recursos económicos como ferramentas de diplomacia. Para tal, Koizumi, tem tentado mudar o sentimento de desconfiança do povo japonês acerca da legitimidade do uso de poder militar como instrumento de política externa, até porque as soluções militares para solucionar problemas de segurança económica interna (dependência energética) e paz internacional são vistos como estando em contradição com as normas antimilitaristas da Constituição Japonesa (Courtinet e Barbet 2001, p. 449-53). O Japão já demonstrou que em tempos de paz o poder económico pode ser convertido em poder político. A sua maior autonomia diplomática em relação a Washington, ou o facto de ter sido o país que mais vezes foi eleito para membro não permanente do Conselho de Segurança da ONU, demonstram a sua maior independência política em relação a pressões externas (Faure 1997, p.49). No entanto, a ascensão económica Chinesa e o problema nuclear coreano são problemas que exigem o redireccionamento das capacidades económicas para uma estratégia político-militar (Miyagi 2009, p.351). Em resposta, desde 2002, que Koizumi através do METI propôs a criação de uma comunidade do sudeste asiático como plataforma para uma cooperação regional de forma por um lado, contrabalançar o poder económico chinês, e por outro lado, integrar a China nesta comunidade económica (Sohn 2010, p. 507-11). As duas guerras mundiais e o pós-guerra fria já provaram que sem capacidade económica a médio longo prazo não é possível manter uma sustentabilidade militar e política no sistema internacional. Veja-se o caso da crise económica que afectou os EUA no fim da década de 80. Só a sua capacidade militar e política permitiu manter o seu status internacional em relação aos seus mais directos concorrentes, o Japão e à CEE. No caso do Japão a perda de poder económico não encontrou um elemento que permitisse sustentar a sua política externa nos anos 90. A ênfase que Koizumi colocou nas suas reformas estruturais expressaram o desejo de maior autonomia em relação aos EUA. A nível externo, as OMP, ou a Conferência para o Desenvolvimento Africano em Tóquio são exemplos

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disso. A nível interno, a privatização dos correios é a mais importante reforma empreendida desde a Era Meiji (1868), quando o Japão se abriu ao Ocidente e enveredou pela industrialização, tudo em prol da manutenção da independência política e económica (Susumu, 2001: 21). 7. Conclusão Em política externa as opções económicas dos sucessivos governos japoneses no pós-guerra tiveram sempre preponderância ante as opções políticas. No entanto, apósa década de 80, o peso estratégico e político passou a ter um maior peso, mas os objectivos foram sempre económicos. Com o fim da Guerra-fria, particularmente, no pós-11 de Setembro é nítida a inversão desta tendência, mas a segurança económica continua a ter um papel preponderante na tomada de decisão. É nesta escolha que reside a chave do sucesso para o crescimento e desenvolvimento económico do Japão. Paradoxalmente, é precisamente nessa opção política que reside, pelo menos em parte, a causa para o falhanço do modelo japonês. Mas, o facto é que o Japão em menos de 30 anos tornou-se num país próspero, apesar de ter ficado completamente destruído no fim da II Guerra Mundial, sem recursos naturais, com uma falta de capital e tecnologia, com um mercado pequeno e pior ainda rodeado por países hostis às suas políticas. Porém, não é menos verdade que no início da década de 90, o Japão passou de aluno modelo, universalmente admirado e estudado em todas as universidades do mundo ao exemplo de pior aluno dos G7. Em fins da década de 90, o Japão já era acusado de provocar uma crise económica mundial. Até 2001, os governos tentaram gerir a crise sem atacar o problema pela raiz. E porquê? Não é fácil um paradigma económico principalmente numa sociedade - arquétipo da harmonia e do consenso. A Guerra-fria possibilitou ao Japão não só segurança estratégica e política como económica. Se a diplomacia for medida pelos resultados, o Japão obteve segurança sem ter de pagar por ela, pelo menos em sangue, garantiu acesso aos mercados, sem necessariamente ter de abrir os seus, e atingiu a prosperidade económica com custos mínimos. Foi assim durante 50 anos. Mas, no pós-guerra fria, particularmente após o 11 de Setembro a política externa Japonesa distanciouse da Doutrina Yoshida no pós-guerra centrada unicamente na segurança económica pois os EUA asseguravam a defesa do Japão. A questão é que no pósguerra fria houve uma reorientação da filosofia de segurança no Japão para lá da segurança económica centrada em aspectos políticos e militares. Reflexo desta mudança foi o debate para alterar o artigo 9 da Constituição devido à confluência de pressões internas e externas para o Japão desempenhar um papel mais activo na segurança global. Depois, o modelo económico japonês, outrora considerado um exemplo seja para os países desenvolvidos seja para os países em vias de desenvolvimento,

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deixou de o ser. O sistema protector e regulamentado provocou uma distribuição ineficaz dos recursos, aumentou a corrupção e a manipulação num país que tinha dos salários mais elevados do mundo, mas que pouco a pouco, tem perdido competitividade à escala internacional. O Fim da Guerra Fria acelerou a globalização. Será que o modelo económico japonês após um sucesso de mais de 40 anos, terminou? A questão é que o modelo sénior no ambiente económico actual já não é viável. As relações de longo termo entre as empresas e as instituições financeiras já não é exequível. Hoje, a interdependência dos mercados financeiros é tal que a teoria que os mercados tendem a equilibrar-se já não é aceite como tal e portanto, o risco é inerente à política externa (Soros 2009, pp. 160-61). A desregulamentação e privatização alcançada no Consenso de Washington nos anos 90 conduziu à ideia que as economias de mercado deveriam ficar mais dependentes dos mercados financeiros por forma a beneficiar de uma maior concorrência. O aumento de liquidez internacional conduziu à expansão de crédito no Japão e à bolha imobiliária resultado do carry-trade. Este fenómeno foi o resultado de empréstimos aos bancos e às empresas baseados em motivos que não os economicamente viáveis. Por sua vez, as instituições financeiras pediram ienes emprestados às famílias japonesas e outros agentes económicos que usaram as suas poupanças para especular noutras moedas mais rentáveis, muitas vezes com alavancagem financeira. Todas as economias enfrentam este problema, que é a preservação do bem comum dos menos produtivos utilizando os rendimentos criados pelos mais produtivos. Actualmente, o problema do Japão reside no dualismo da economia i.e. sector exportador competitivo mas uma economia doméstica (onde se incluem bancos, agricultura, distribuição, e, construção) altamente protegida (Cerny 2001, p.109-10). As reformas estruturais de Koizumi que continuaram com Shinzo Abe em Setembro 2006, visam acabar com esta dualidade. Koizumi fortaleceu a politica externa do Japão em três frentes. Politicamente, fortaleceu a aliança com os EUA. Militarmente, tornou o Japão mais activo na resolução dos conflitos internacionais e, economicamente, fortaleceu as relações económicas com a RPC, respondendo ao apelo dos restantes países asiáticos para contrabalançar a ascensão desta no continente asiático. Desta forma, o Japão assume-se como líder regional. O poder sem a bomba resume o Japão i.e. ser uma grande potência sem parecer que o é (Guillan 1970, p. 269). Mas, no século XXI, não basta só parecer, é preciso ser, sobretudo agir. A comunidade internacional exige um maior envolvimento do Japão nos assuntos internacionais. O Japão tem de ser um entre os seus pares, um gigante económico e político, o que não quer dizer que seja igual. Não pensemos que foi a Europa ou os EUA que influenciaram ou ensinaram o Japão. Não, o Japão é que escolheu aprender os métodos de organização civis e militares europeus e americanos, adaptá-los à sua forma de estar e de viver e, eventualmente, suplantando-os.

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Filosofia, cristianismo e democracia. A importância da sintonia cristã entre razão e fé para a vitalidade das democracias e para o reencontro do Ocidente consigo mesmo e com o mundo

Abel Diogo Morais Sarmento Xavier Madureira Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa email: diogomadureira@hotmail.com

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Resumo: Nesta breve reflexão, procuro defender a ideia de que o encontro entre razão e fé defendido por Bento XVI, Maritain e, em geral, pela teologia política cristã inspirada em Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, é condição indispensável para o sucesso da aproximação entre o Ocidente e o resto do mundo. No presente contexto, pode aliás ser a via a seguir para ajudar a que os recentes movimentos sociais e políticos no mundo árabe resultem, efectivamente, numa primavera. O facto de o mundo olhar a realidade política actual pelo prisma de uma reflexão filosófica profunda acerca da relação entre a razão, a fé e os fundamentos da democracia, seria já de si um feito assinalável numa era dominada pelo discurso hermético tanto da tecnocracia económica como das ciências sociais em geral. Mas, na eventualidade de se tornar efectivamente um guia para a acção política nas relações internacionais de hoje, nomeadamente para a concretização de uma primavera árabe, então, o diálogo de Bento XVI em Munique com Habermas, em 2004, bem como o recente discurso de Setembro de 2011, em Berlim, no Bundestag, afirmar-se-iam como a sequência de outras reflexões igualmente paradigmáticas enquanto chave de leitura da realidade contemporânea: a do fim da história de Fukuyama, pouco tempo antes do colapso do comunismo, e a do choque de civilizações de Huntington, anos antes do 11 de Setembro de 2001. Palavras-Chave: Cristianismo / filosofia política / democracia / razão / relativismo / pós-modernidade Abstract: In this brief reflection, I try to defend the idea that the sinthony between reason and faith sustained by Benedict XVI and Maritain, is a fundamental condition for a successful approach between the West and the rest of the world. In broad terms, this is the perspective of the political theology inspired in Saint Augustine and Saint Thomas Aquinas. In the present context, it can actually be the path to follow in order to turn the recent social and political events of the Arab world into a true spring. In an era ruled by the hermetic language of economic technocracy or by that of social sciences, the fact of looking today’s political reality through a deep philosophical reflection on the connection between reason, faith and the fundamentals of democracy, would be a remarkable achievement by itself. In the case it becomes an effective guide to political action

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in foreign affairs, namely by helping the Arab spring, then, Benedict XVI’s recent speech at the Bundestag, in Berlin as well as his dialogue with Habermas in 2004, would be a key element to understand our time. It would assert itself as the sequence of other paradigmatic reflections: Fukuyama’s End of History, before the collapse of communism, and Huntington’s Clash of Civilizations, few years before 9/11/2001. Key-Words: Christianity / political philosophy / democracy / reason / relativism / post-modernity

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Introdução Em Setembro de 2011, no Bundestag, em Berlim, Bento XVI acrescentou ao seu legado intelectual mais uma reflexão sobre as bases morais pré-políticas do Estado.1 Para o simbolismo deste discurso contribuiu certamente o local onde foi proferido mas também o facto de reforçar o lugar da religião na política. Inserese, por exemplo, na linha da reflexão que deu origem a um diálogo histórico com Habermas.2 Em 2004, em Munique, enquanto proeminentes representantes de correntes filosóficas matriciais do mundo ocidental contemporâneo, respectivamente a de inspiração cristã e a de inspiração laica ou racionalista, ambos criticaram a concepção do progresso assente numa antítese entre fé e razão, entre religião e ciência, entre filosofia e teologia. A filosofia ou, indo à raíz do termo, o amor pelo saber, a sabedoria, é, para ambos, muito mais do que conhecimento científico, tal como a razão é muito mais do que a racionalidade instrumental assente no método empírico de conjectura e refutação, de verificação prática da teoria. Nesse sentido, o amor pelo saber deve muito mais a uma tradição de pensamento baseada no encontro entre razão e fé, do que à tradição positivista que reduz o espectro do intelecto humano ao limitá-lo aos horizontes de uma razão discursiva feita exclusivamente da síntese entre abstracção e observação empírica; aquilo a que Bento XVI chama a estrutura matemática da matéria.3 No fim da década de 80 do século XX, pensou-se que o colapso iminente do comunismo e a emergência dos EUA a hiperpotência, consagraria o liberalismo democrático como o ideal político triunfante em todo o mundo. Esta foi, muito resumidamente, a principal tese de Fukuyama4, refutada logo no início dos anos Bento XVI, Visita ao Parlamento Federal da Alemanha, Berlim, 22/09/2011. Disponível no sítio do Vaticano em http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/speeches/2011/september/ documents/hf_ben-xvi_spe_20110922_reichstag-berlin_po.html. Acedido a 19/11/2011 2 Ratzinger, Joseph e Habermas, Jurgen, The Dialectics of Secularization: on Reason and Religion, Ignatius Press (Libreria Editrice Vaticana, 2006), São Francisco, 2007 3 Bento XVI, Fé, Razão e Universidade: Recordações e Reflexões, Discurso na Universidade de Ratisbona, 12/09/2006. Disponível no sítio do Vaticano em http://www.vatican.va/holy_father/ benedict_xvi/speeches/2006/september/documents/hf_ben-xvi_spe_20060912_universityregensburg_po.html. Acedido a 19/11/2011 4 Fukuyama, Francis, O Fim da História e o Último Homem, trad. port. Maria Goes, Gradiva, Lisboa, 1999. 1

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90 pelo choque de civilizações de Huntington5, naquele que se pode considerar o debate de referência acerca da nova ordem mundial surgida com o fim da Guerra Fria. Em termos gerais, Huntington entendia que o fim do bloco soviético daria origem ao ressurgir da religião, conferindo-lhe novo protagonismo no domínio das relações internacionais. Um protagonismo negativo para o autor, dado que a afirmação do islão mas também do cristianismo com o fim da repressão religiosa em todo o império soviético, sem esquecer o conflito israelo-palestiniano, agravaria as tensões do mundo islâmico com todo o Ocidente e o seu modo de vida. À luz desta teoria, Fukuyama estaria, portanto, errado, ao perspectivar um consenso pacífico sobre o modelo demo-liberal à escala global. Para que tal fosse possível, defendia Huntington, era necessário superar também as tensões religiosas estabelecendo compromissos acima delas, independentemente delas. Para muitos, os atentados de 11 de Setembro de 2001 consagraram, de forma trágica, o diagnóstico de Huntington anos antes e, não obstante as tentativas das mais variadas autoridades mundiais em dissociar a religião do terrorismo, a verdade é que o choque daqueles atentados foi para muitos o sinal evidente de um choque de civilizações. A tese de Huntington acerca da inevitável incompatibilidade entre as certezas das religiões, via-se reforçada graças aos fanatismos religiosos assentes no binómio infiel/inimigo mas também do lado dos fanatismos seculares, à medida que a percepção da fé como principal causa da destruição e da miséria humana bem como a ideia de que as religiões são todas iguais, se ia propagando dos círculos académicos para as tertúlias nos cafés e nos metros de todo o mundo ocidental. O choque de civilizações plasmado no 11 de Setembro foi, para os fanatismos religiosos, o choque entre a verdade de uma religião civilizada e a barbárie da outra; para os fanatismos seculares, por outro lado, foi o choque entre a verdade da civilização laica e a barbárie da religião, de todas as religiões. Chegados a 2011, os povos árabes oferecem ao Ocidente uma oportunidade única de aproximação mútua que talvez pudesse significar o fim do paradigma do choque de civilizações. No plano político, o sucesso de uma primavera árabe - e aqui deve notar-se que por primavera se entende o progresso na direcção dos direitos e liberdades que legitimam a democracia -, para além de inaugurar um novo momento nas relações internacionais, de ajudar à melhoria das condições de vida dos povos árabes e de dar um golpe importante na luta contra o terrorismo, ajudaria o Ocidente e, particularmente, a Europa, a valorizar um património civilizacional matricial. Isto porque o encontro com o outro implica sempre uma incursão prévia sobre as nossas origens. Neste caso, trata-se de uma introspecção da Europa sobre os fundamentos filosóficos e teológicos do humanismo que define a estatura moral da democracia. O Ocidente deve compreender que a primavera árabe representa, antes de mais nada, um desafio de natureza filosófica. Ao 5

Huntington, Samuel, O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, tradução portuguesa de Henrique Lages Ribeiro, Gradiva, Lisboa, 2ª Edição, 2001.

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implicar a abordagem de uma realidade histórica, cultural e religiosa distinta, a primavera árabe obriga o Ocidente a identificar-se, a definir os elementos que configuram a sua singularidade e o distinguem de outros ambientes culturais sem prejuízo do diálogo intercultural. Embora, certamente, não em exclusivo, o êxito das soluções políticas e económicas a adoptar, dependerá sempre da força das respostas que a filosofia política for capaz de dar acerca do que é e para que serve a democracia. E aí, inevitavelmente, a religião, em particular o cristianismo, tem uma palavra a dizer. A chave do retorno da Europa a si mesma reside precisamente na concepção que ela for capaz de desenvolver acerca do que é e o que implica uma primavera política. Não é rara no Ocidente, a ideia de que a chegada da primavera democrática e do progresso civilizacional implica a renúncia aos conhecimentos provenientes da tradição histórico-cultural da fé, designadamente do cristianismo. Para Bento XVI, essa é a principal característica de um secularismo agressivo que prevaleceu até hoje,sobretudo, na Europa. É geralmente aceite que os fanatismos religiosos são, efectivamente, incompatíveis com os fundamentos da democracia mas já não parece ser tão comum a convicção de que o mesmo se passa com os fanatismos seculares. Bento XVI defende que se é difícil construir uma democracia na base de uma religião doente, não o é menos construi-la na base do positivismo, isto é, de uma razão doente, uma hybris da razão que ignora a religião.6 Foi sobre esse conceito de uma razão fechada à fé e à tradição que se estruturou o mito moderno do Estado-neutro. Este mito, formatado na convicção absoluta de Comte de que tudo é relativo, criou o vazio relativista ideal ao florescimento das ideologias totalitárias do século XX e, paradoxalmente, sobreviveu-lhes, tal como assinalaram já nessa altura, homens como Strauss, Voegelin ou Maritain.7 Na mesma linha, Bento XVI considera que no nosso tempo, continua a ser a racionalidade do Estado neutro que se propõe, não apenas para superar o choque de civilizações com o islão mas enquanto ideal democrático de relacionamento entre o Estado e a sociedade no Ocidente: um poder que se instale acima das religiões e que eleve o pluralismo a fim último, rejeitando qualquer compromisso com uma concepção particular do bem e do mal. Na parte final desta reflexão tratamos as consequências da abordagem Bento XVI, Europa. Os Seus Fundamentos Hoje e Amanhã, tradução portuguesa António Maia da Rocha, Paulus Editora, Lisboa, 2005, p. 88-89 7 Maritain, Jacques, Humanismo Integral. Uma Visão Nova da Ordem Cristã, tradução portuguesa de Alfredo Coutinho, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1942, p. 102 e 154; Também em O Camponês de Garona, de 1967, Maritain deixa claro que a civilização não seguiu as linhas da revelação que suportam a razão clássica mas uma linha que a separa das tradições filosóficas e revelacionais; ver Le Paysan de la Garonne, em MARITAIN, Jacques et Raïssa, Oeuvres Complètes, 15 Vols., Éditions Saint Paul, Paris / Éditions Universitaires Fribourg, Suisse, 1990, Vol. XII (19611967) , p. 1263; Schall, Maritain: The Philosopher in Society, Rowman & Littlefield, Lanham, Maryland, 1998, p. 16, 37 e 95-97. Strauss, Leo, Direito Natural e História, tradução portuguesa de Miguel Morgado, Edições 70, Lisboa, 2009, p. 25-27. 6

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relativista assente no mito positivista do Estado neutro para o diálogo entre os povos. Por enquanto, debruçamo-nos sobre as suas consequências para o próprio Ocidente, nomeadamente para a filosofia, para o conhecimento de um património que nos é particularmente caro: a democracia e os direitos humanos. Dentro deste último ponto, referimo-nos às duas faces de uma mesma moeda: o relativismo. A face autoritária, associada às tiranias modernas e a face libertária, associada aos individualismos radicais pós-modernos. A face autoritária do relativismo A apologia dos direitos individuais e do pluralismo que caracteriza as democracias, não resiste à evidência de que só pode existir pluralidade se houver um consenso de base favorável à convivência de visões diversas da vida e do mundo. O grande desafio à sobrevivência da comunidade política radica, pois, na reconciliação do pluralismo com a unidade, porque independentemente da incompatiblidade das verdades abrangentes em presença, tem de haver verdades reconhecidas em comum sobre proposições fundamentais.8 Quais são essas proposições? Eis a questão. A preferência pelo critério maioritário enquanto mecanismo ideal de apuramento da vontade colectiva, traduz, só por si, o compromisso da política com um primeiro princípio: a concepção democrática do poder. No entanto, embora a fórmula democrática de obtenção do consenso pareça ser, de facto, aquela que mais respeita os direitos e liberdades individuais, nela não se esgota o conceito de bem comum enquanto serviço da paz e da justiça. Na medida em que fundamento moral da democracia consiste, precisamente, na força da justiça e não na justiça do mais forte, é preciso que o bem comum assente num consenso moral de jure para além do consenso sobre o principio da maioria, de modo a evitar que a democracia fique refém da moda do momento.9 Isto exige da parte 8

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Raymond Dennehy, Can Jacques Maritain Save Liberal Democracy from itself?, in Truth Matters: essays in honor of Jacques Maritain, coord. John G. Trapani Jr., Catholic University of America Press, Washington D.C., 2004, p. 258 - 259 Bento XVI, homilia na Missa Pro Eligendo Romano Pontifice de 18/04/2005. Disponível no sítio do Vaticano em: http://www.vatican.va/gpII/documents/homily-pro-eligendopontifice_20050418_po.html Acedido a 15/03/201; Visita ao Parlamento Fedral da Alemanha, op cit.; Europa, Os Seus Fundamentos Hoje e Amanhã, p.71-72Olavo de Carvalho afirma: Viktor Frankl por exemplo, o nunca assás louvado psiquiatra judeu, que no inferno dos campos de concentração descobriu que um sentido da vida é mais necessário ao homem do que a liberdade mesma, disse um dia: ‘Não foram apenas alguns ministérios de Berlim que inventaram as câmaras de gás de Maidanek, Auschwitz, Treblinka: elas foram preparadas nos escritórios e salas de aula de cientistas e filósofos niilistas, entre os quais se contavam e contam alguns pensadores anglosaxónicos laureados com o Prémio Nobel. É que, se a vida humana não passa do insignificante produto acidental de umas moléculas de proteina, pouco importa que um psicopata seja eliminado como inútil e que ao psicopata se acrescentem mais uns quantos povos inferiores: tudo isto não é senão raciocínio lógico e consequente. Viktor Frankl, Sede de Sentido, trad. Henrique Elfes, São Paulo, Quadrante, 1989, p. 45.; cit. em Olavo de Carvalho, Rorty e os Animais, O Imbecil Coletivo, É Realizações, São Paulo, 5ª ed., pp. 60-67.

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do Estado o compromisso com ideais concretos de verdade, do bom e do justo, insusceptíveis de serem alterados pela vontade maioritária e que, inclusivamente, a vinculam. Caso contrário, o vazio criado será ocupado por holismos tanto mais fortes quanto mais convencidos da sua racionalidade histórica ou científica. Maritain defende que a anarquia gerada pela desorientação relativista é o terreno mais fértil ao florescimento da escatologia revolucionária típica das tiranias seculares modernas, apostadas em garantir o assentimento da vontade individual que invejam nas religiões.10 Ao contrário destas, não o fazem através do apelo moral interior dirigido o espírito mas a partir de fora, recorrendo a todos os meios de força que o progresso técnico-científico coloca ao serviço da ambicionada estandardização cultural e espiritual colectiva. Por isso, muitos, de Toynbee a Voegelin passando por Arendt ou Kolakowski, não hesitaram em chamar-lhes religiões seculares – as teocracias ateias, como as definiu Maritain.11 Maritain e Bento XVI convergem num retrato tripartido sobre a evolução da filosofia moderna em que a subordinação do espiritual ao temporal se foi agravando na mesma medida da concepção da política como técnica desvinculada de uma ordem especulativa que a estrutura e orienta. Com base numa perspectiva antropocêntrica, o homem eleva-se gradualmente a formulador dos seus próprios direitos e não reconhece nenhuma outra dimensão da realidade, como a natureza, a história ou a religião, enquanto fonte independente de conhecimento e de razão.12 As ideologias totalitárias do século XX foram a expressão mais trágica daquilo em que se pode tornar o relativismo nascido de uma filosofia racionalista que depois de erguer a razão humana a única fonte da moral e do conhecimento, acabou a negar a razão e a própria possibilidade do conhecimento. Com a escatologia revolucionária secular moderna inscrita nas ambições messiânicas e transformadoras das ideologias totalitárias, rompe-se totalmente com a complementaridade da filosofia política clássica e da teologia política tomista entre a ordem contemplativa do sagrado e a ordem prática do profano. A partir daí, há como que uma profanação do sagrado que se traduz, inevitavelmente, numa sacralização do profano, numa hybris em que o próprio mundo e a história terrena passam a ser encarados como o domínio de concretização dos Maritain, Humanismo Integral, op. cit., p. 71-90 e 153 e 154 Ibidem, p. 101-103 e 125-126; Maritain, Art et Scolastique, em Oeuvres Complètes, op. cit., Vol. I (1906-1920), pp. 41-656; Schall, Maritain: the philosopher in society, op. cit., p. 37. A visão do comunismo como uma religião que deturpa o ecumenismo e o messianismo cristão sistematizando-os numa apocalíptica de violência universal entre as classes rumo à sociedade perfeita na terra e cujo profeta é Marx, é um legado do pensamento de Toynbee. Ver A Study of History, op. cit., pp. 178-189 e anexo pp. 581-587; Em boa medida, podemos encontrá-la também em Voegelin, Eric, The New Science of Politics, The University of Chicago Press, Chicago, 1952, 1987; em Arendt, Hannah, As Origens do Totalitarismo, Dom Quixote, Lisboa, 2006 ou em Kolakowski, Leszek, If There Is No God, St. Augustine, South Bend, Indiana, 2001 12 Schall, James V., Reason, Revelation and the Foundations of Political Philosophy, Louisiana University Press, Baton Rouge e Londres, 1987, p. 59-63; Bento XVI, Visita ao Parlamento Federal da Alemanha, op. cit.; Bento XVI, Europa…, op. cit., p. 82-85 10 11

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derradeiros sonhos do homem. A realização do Reino de Deus, estaria assim ao alcance do homem. A consciência histórica representa a chegada à última etapa do conhecimento racional e, motivado pelo progresso técnico e científico, o horizonte dos possíveis do homem contempla agora tudo aquilo que as religiões atribuem à vida eterna. Entendidas todas as formulações éticas e morais como produtos materiais ou convenções culturais circunscritas ao seu contexto histórico e desprovidas de qualquer autoridade transcendente, o poder totalitário procurou a sanção moral no seu próprio sucesso histórico segundo um critério meramente intrumental. Tornava-se, pois, um dever colocar o progresso técnico e científico ao serviço de todo o paranóico aparelho de extermínio e de perseguição em massa dos totalitarismos revolucionários nazi e comunista. A História, divinizada na raça ou na classe, absolvê-los-ia. A face pós-moderna do relativismo Depois da II Guerra Mundial, a declaração universal de 1948 consagrou a teoria geral dos direitos humanos como fundamento de todo o Estado de direito democrático e das relações internacionais. Para Maritain, tratou-se, no fundo, do reconhecimento da autoridade moral de uma imagem da pessoa humana tributária das grandes tradições filosóficas e teológicas ocidentais, nomeadamente do humanismo cristão construído sobre a noção de pessoa e de bem comum de São Tomás de Aquino. A consagração da teoria geral dos direitos humanos representou um grande impulso para a paz e para o progresso das condições económicas, sociais e políticas da vida de muitos povos. Todavia, Bento XVI defende que, gradualmente, todos os agentes políticos – do Estado aos indivíduos – passaram a ver nela um instrumento transversal de legitimação de condutas contraditórias entre si.13 Bento XVI defende que tal acontece porque a teoria geral dos direitos humanos deriva de uma imagem da dignidade sagrada da pessoa humana nada óbvia e, por isso mesmo, carente de uma racionalidade aberta à discussão sobre o ser. A discussão sobre o ser é a discusão sobre as essências como a própria etimologia da palavra indica (essência, esse, ser). E a discussão das essências não se faz, ou faz-se muito deficientemente, na base de uma filosofia que, em nome de um suposto pragmatismo, se limita a encará-las como um produto da existência 13

Bento XVI, Europa…, op. cit., p.71-73; Bento XVI lembra que na linha da encíclica Humanæ vitæ como da mais recente Evangelium vitæ de João Paulo II, a Igreja propõe a ligação entre ética da vida e ética social, ciente de que não pode ter sólidas bases uma sociedade que afirma valores como a dignidade da pessoa, a justiça e a paz, mas contradiz-se radicalmente aceitando e tolerando as mais diversas formas de desprezo e violação da vida humana, sobretudo se débil e marginalizada , Caritas in Veritate, cap. 1, pto. 15. Disponível no sítio do Vaticano em: http://www.vatican.va/ holy_father/benedict_xvi/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate_ po.html. Acedido a 12/12/2010

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material, como uma invenção humana que se situa no domínio da superstição e não da razão. Como afirma Maritain, para uma filosofia que só reconhece o facto, a noção de Valor – quero dizer, Valor objectivamente verdadeiro em si mesmo – é inconcebível.14 Aos olhos de Maritain e de Bento XVI, entre outros, a filosofia que se cristalizou sobre a cultura ocidental em reacção à tragédia totalitária na segunda metade do século XX, consistiu precisamente nessa atitude. O anúncio do fim das grandes narrativas sobre o mundo, a vida e a história, foi a forma que essa filosofia encontrou para anunciar o fim da modernidade e a entrada na era da pós-modernidade onde vinga o mesmo relativismo que vinha de trás. A diferença é que agora, esse relativismo não se funda no optimismo exacerbado e antropocêntrico que encara a razão humana como única fonte de verdade mas no pessimismo acerca da razão e consequente negação da possibilidade do conhecimento.15 À luz do pensamento de Maritain e de Bento XVI, dir-se-ia que o pensamento pós-moderno vai ao encontro da filosofia aristotélico-tomista ao colaborar na denúncia do ideal positivista do progresso, mais concretamente, do potencial transformador do Estado construído sobre os adquiridos da razão técnica e científica que vendeu caras as suas promessas de futuro. Aquilo que os afasta, contudo, resume-se, para Valadier, numa palavra: Esperança.16 Toda a filosofia política fundada na aspiração platónica à descoberta daquilo que existe em si e por si, admite a impossibilidade de saber em definitivo se as noções do bem e do justo inerentes à afirmação da dignidade da pessoa são, de facto, princípios objectivos. Todavia, daí não conclui a sua irracionalidade nem lhes recusa qualquer potencial de inteligibilidade enquanto normas universalizáveis e ordenadoras do político. A era pós-moderna, pelo contrário, herda do positivismo a convicção na força irresistível da contingência material sobre as ideias e é nessa base que critica o próprio ideal positivista do progresso baseado nas certezas científicas. Em vez de proceder a uma reapreciação da razão em benefício da própria democracia, Maritain, L’Homme et l’État, em Oeuvres Complètes, op. cit., Vol. IX, (1947-1951), p. 593; ver cap. IV, parte III, especialmente pp. 590-600. 15 Na encíclica Fides et Ratio, João Paulo II resume este retrato da seguinte forma: A filosofia moderna, esquecendo-se de orientar a sua pesquisa para o ser, concentrou a própria investigação sobre o conhecimento humano. Em vez de se apoiar sobre a capacidade que o homem tem de conhecer a verdade, preferiu sublinhar as suas limitações e condicionalismos. Daí provieram várias formas de agnosticismo e relativismo, que levaram a investigação filosófica a perder-se nas areias movediças dum cepticismo geral. E, mais recentemente, ganharam relevo diversas doutrinas que tendem a desvalorizar até mesmo aquelas verdades que o homem estava certo de ter alcançado. A legítima pluralidade de posições cedeu o lugar a um pluralismo indefinido, fundado no pressuposto de que todas as posições são equivalentes: trata-se de um dos sintomas mais difusos, no contexto actual, de desconfiança na verdade. João Paulo II, Fides et Ratio. Disponível no sítio do Vaticano em http://www.vatican.va/edocs/POR0064/_INDEX.HTM. Acedido a 19/11/2011 16 VALADIER, Paul, Um Cristianismo de Futuro. Para uma nova aliança entre razão e fé, tradução portuguesa de Ana Rabaça, Instituto Piaget, Lisboa, 2000 14

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aceitando o convite da filosofia política clássica e da teologia política cristã para uma reflexão sobre o direito natural com vista à legitimação dos fundamentos éticos da ordem política, a filosofia do pós-guerra caiu gradualmente num voluntarismo individualista motivado pelo cepticismo profundo sobre a razão. Em reacção aos totalitarismos, não moderou mas, pelo contrário, levou até ao fim a convicção de que a existência precede a essência e, consequentemente, caiu numa dúvida profunda sobre a própria existência.17 Convicta de que a razão não pode conceber ou construir o absoluto porque o seu saber é relativo, a filosofia pós-moderna passou de um cepticismo construtivo, instrumento imprescindível para as respostas da filosofia e da teologia às questões ontológicas fundamentais sobre o sentido da vida - de onde vimos? Para onde vamos? -, para um cepticismo antropológico, isto é, para um niilismo que nega a autoridade de toda e qualquer resposta.18 Desta descrença na razão, surge a convicção pós-moderna de que é impossível dizer alguma coisa de essencial sobre o homem e a vida. A pósmodernidade rejeita a ambição universalista de qualquer narrativa, seja ela de matriz socrática e aristotélica ou cristã, seja moderna, de inspiração positivista ou historicista. Na linha da crítica de Nietzsche ao historicismo de Hegel, entende que não há nem coisas nem verdades eternas e denuncia a presunção de que, ou por inspiração da fé ou por se ter chegado ao momento do zénite da história, a consciência histórica possa servir o presente.19

O Estado neutro como expressão do relativismo pós-moderno À excepção dos casos em que se resignou à inconsequência prática da pura Ocupada a investigar de maneira unilateral o homem como objecto, parece ter-se esquecido de que este é sempre chamado a voltar-se também para uma realidade que o transcende. Sem referência a esta, cada um fica ao sabor do livre arbítrio, e a sua condição de pessoa acaba por ser avaliada com critérios pragmáticos baseados essencialmente sobre o dado experimental, na errada convicção de que tudo deve ser dominado pela técnica. Foi assim que a razão, sob o peso de tanto saber, em vez de exprimir melhor a tensão para a verdade, curvou-se sobre si mesma, tornando-se incapaz, com o passar do tempo, de levantar o olhar para o alto e de ousar atingir a verdade do ser. João Paulo II, Fides et Ratio, op. cit. 18 Schall, James, V., Maritain: The Philosopher in Society, op. cit., p. 16 19 A linguagem do passado é sempre oracular. No comentário a esta citação de Nietzsche, Dannhauser afirma: o historiador objectivo não é um homem criativo e não enfrenta o futuro. Dannhauser, Werner J., Friedrich Nietzsche, em History of Political Philosophy Strauss, Leo e Cropsey, Joseph (coord.), University of Chicago Press, Chicago, 3ª Edição, 1987 [1963], p. 834; ver pp. 830-832. Dannhauser acrescenta que em Nietzsche, A doutrina da vontade de poder conduz necessariamente a uma revisão das noções tradicionais de virtude, ibidem., p. 844; ver também pp. 834-842. Para um breve apontamento sobre as semelhanças entre a crítica de Nietzsche ao historicismo de Hegel e a apologia romântica da emancipação do indivíduo presente na crítica pós-moderna ao modelo demo-liberal capitalista, ver Madureira, Diogo, A Cidade Cristã na Moderidade: O Humanismo Integral de Maritain e Bento XVI Contra o Relativismo, capítulo III, pto. 3.1: A pós-modernidade enquanto expressão contemporânea da dialética da cultura moderna, op. cit., p. 120-136 17

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negação de toda e qualquer autoridade segundo a máxima de 1968 é proibido proibir, o anúncio do fim das grandes narrativas que caracterizou a reacção pósmoderna aos totalitarismos do século XX, traduziu-se na afirmação dos direitos e liberdades individuais. No entanto, esta afirmação não advém da crença na autoridade substantiva da teoria geral dos direitos humanos mas justamente da rejeição dessa crença em nome de um alegado pragmatismo: é impossível justificar numa base objectiva a imagem da pessoa humana de onde derivam os direitos e liberdades individuais, logo, todas as perspectivas são igualmente válidas na sua subjectividade. Nesse sentido, o Estado deve assegurar a coexistência de todas elas através de um compromisso cujo único vínculo é a liberdade de opiniões. O Estado está obrigado à defesa dos direitos e liberdades individuais por um imperativo pragmático e não por um imperativo filosófico ou cristão, que defende a autoridade universal do humanismo forjado no eixo Atenas-Roma-Jerusalém.20 As teorias pós-modernas da democracia ergueram, assim, a bandeira dos direitos humanos em nome do primado da vontade onde o pluralismo aparece como princípio político absoluto e a moral como matéria privada, de acordo com a convicção na subjectividade equivalente de todos os modos de vida. Na linha do positivismo, a pós-modernidade não concebe normas mas apenas factos depositários de uma importância relativa ao contexto em que se inserem e desprovidos de qualquer significado transcendente ou autoridade filosófica para além desse contexto. O homem nada pode dizer de essencial acerca da vida porque todas as formulações metafísicas existem apenas enquanto factos, enquanto ideias motivadas e limitadas pela sua própria contingência material. A afirmação de Rorty de que a democracia precede a filosofia, por exemplo, é sintomática desta proibição imposta pela desconfiança pós-moderna sobre a razão.21 Rorty não acredita na autoridade de uma defesa filosófica ou substantiva da democracia nem no correlativo esforço de fundamentação e explicitação dos direitos humanos. Daí a necessidade de proteger a democracia dos filósofos.22 Bento XVI, Visita ao Parlamento Federal da Alemanha, Berlim, 22/11/2011, op. cit.; Também Strauss se refere ao eixo Atenas-Jerusalém como metáfora para representar o legado filosófico e civilizacional do Ocidente. Ver, por exemplo, The Three Waves of Modernity, in An Introduction to Political Philosophy: Ten Essays by Leo Strauss, Hilail Gildin (coord.), Wayne State University Press, Detroit, 1989 21 Rorty, Richard, Philosophical Pappers, vol. I: Objectivity, Relativism and Truth, Cambridge University Press, Cambridge, 1991, p. 175 e seguintes; 22 Rorty defende que a melhor defesa da democracia é afastar a contemplação filosófica do domínio da acção política ou da esfera pública, daí a afirmação Always try to excel, but only on weekends, em Philosophical Papers, parte II: Contingency, Irony and Solidarity, Cambridge, Cambridge University Press, 1989; Em sintonia com a posição de Rorty, escreve Rafael del Águila Todo lo que nos queda en esta época posmetafísica es la conversación con otros y ese es nuestro único acceso al mundo: un acceso intersubjetivo. De ahí la primacía de la democracia sobre la filosofía, de la libertad sobre la verdad, de los procesos comunicativos sobre las esencias., Aguila, Rafael del, Ironia, Verdad y Democracia. Richard Rorty, in memoriam, Revista de Libros, Fundación Caja Madrid, nº131, Noviembre de 2007. Disponível em http://www.revistadelibros.com/articulos/ ironia-verdad-y-democracia-richard-rorty-in-memoriam. Acedido a 19/11/2011. Ver também 20

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Como afirma a pluralidade de visões mas lhes nega qualquer transcendência, esta concepção alegadamente pragmática da democracia é um sintoma daquela crise de esperança que Valadier considera ser o caracter mais típico da pósmodernidade. Uma crise que radica num profundo pessimismo acerca do alcance da razão e da inteligibilidade da verdade mas que, perante a certeza da finitude da vida e de que provavelmente Deus não existe, tende a resvalar para o elogio romântico da vontade do homem e para a apologia individualista da liberdade entendida como emancipação quase gnóstica de toda a convenção e tradição filosófica ou religiosa.23 Herdeira da convicção positivista de que tudo é relativo, a afirmação pósmoderna do pluralismo resume-se, assim, a uma constatação de facto sobre a pluralidade de visões, pois qualquer exercício de legitimação moral do mesmo requer a imersão num universo de significados objectivos que o pragmatismo da consciência pós-moderna proíbe. Trata-se de uma abordagem que esclarece a forma do pluralismo mas não propriamente o conteúdo: diz como o pluralismo é e eleva-o a fim político último ignorando as perspectivas que o encaram como um meio político e que consideram pertinente saber o que é ou para que serve o pluralismo. Para Maritain e Bento XVI, esta postura tem consequências políticas graves, em primeiro lugar, para a vitalidade das democracias ocidentais contemporâneas, porque promove o esbatimento – quando não o desprezo e a aversão - da sua identidade civilizacional. Internas e externas, ambas as consequências resultam de uma ameaça à flosofia, nomeadamente à autoridade do conhecimento acumulado pela humanidade segundo a convicção platónica na inteligibilidade da distinção entre bem e mal, certo e errado. Na medida em que nega a autoridade do juízo filosófico, o qual passa pelo reconhecimento de uma razão comum capaz de ascender ao que Aristóteles chamava os primeiros princípios e transcendendo a própria circunstância, as consequêncas de um Estado neutro são, antes de mais, fruto da ameaça que ele representa para as ideias, para o conhecimento do homem, para o amor ao saber (filos/sofia). Sintoma maior da ditadura do relativismo, este vazio gerado pelo complexo do Ocidente contra si próprio, este medo da casa - a oikophobia, como lhe chamou Scruton(p.NOTA) - é também prejudicial para o posicionamento do Ocidente no diálogo com outros ambientes culturais e religiosos.

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Woldring, Henk E. S., The Quest for Truth and Human Fellowship in a Pluralist Society, in Truth Matters…, op. cit., p. 295; Para Fossati, Maritain procurou oferecer uma alternativa ao existencialismo nay-sayer de Sartre, Simone de Beauvoir ou Camus através do existencialismo autêntico tomista, fundado na denúncia dos mesmos males que encontrava nalguns reformadores da modernidade como Nietzsche ou Freud. Fossati, William J., Maritain and Mounier on America: Two Catholic Views, Truth Matters…, op. cit., p. 271; O que eles pedem na realidade não é a liberdade da razão ou a liberdade para a razão. É libertação da razão, a liberdade da razão sem regra ou medida, a liberdade para decidirem eles próprios como quiserem, tanto quanto quiserem e onde quer que queiram sem nenhum controlo deles mesmos., Maritain, Antimoderne, citado em Fossati, ibidem, p. 280.

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Consequências para a filosofia política. A oikophobia e o vazio do Ocidente Como um olhar pragmático desautoriza todo o juízo moral substantivo, a defesa da democracia na era da pós-modernidade passa assim pela afirmação da equivalência de todas as formulações de bem que há na cidade. Desconstruir todos os preconceitos culturais, sociais e religiosos, apresentando-os como factos relativos cuja intangibilidade os torna redundantes, é a fórmula pósmoderna de os reduzir à indiferença e de os tornar inofensivos para o convívio democrático. Assim, a concepção de pluralismo inscrita no ideal pós-moderno do Estado neutro, abrange o convite de Derrida à desconstrução de todo o discurso fundado sobre a aspiração da universalidade bem como o relativismo subjacente ao pragmatismo de Rorty.24 Ao negar-se a aceitar a autoridade de perspectivas filosóficas e religiosas particulares na procura das respostas primordiais da filosofia política – qual o melhor regime? Qual a melhor vida para o homem? – o mito pós-moderno do Estado neutro obriga-a a um compromisso tremendo de abstracção que exige ao cidadão que prescinda de ser homem, um ser com ideias convicções, concepções de bem, religião e por aí adiante.25 A sublimação pós-moderna do pluralismo a princípio absoluto, compromete a viabilidade de uma filosofia política que seja autêntica filosofia porque encerra uma defesa ideológica dos direitos humanos que se fecha à discussão sobre o que são, qual a hierarquia e do que precisam esses direitos. Como afirma Morgado, em contraste com a perspectiva clássica da filosofia política que tendia a ver no debate político uma reprodução do diálogo racional constitutivo da vida filosófica, as várias teorias políticas democráticas dos pluralismos afirmam-se como políticas sem se atreverem a inspeccionar os diversos conteúdos de vida que animam a cidade.26 Face à exclusão como redundantes de todos os ensinamentos metafísicos, a política pós-moderna fica refém da razão empírica das ciências naturais e sociais e, no domínio do agir – individual ou político -, não parece oferecer alternativa consistente ao critério da utilidade prática. Ao contrário do eudemonismo clássico e cristão, a perspectiva consequencialista de filósofos como Singer, Rorty ou Sloterdijk não remete para

Habermas conta que Rorty o avisou da doença de que padecia do seguinte modo: tenho a mesma doença que matou Derrida. A minha filha diz que este tipo de câncro se deve ao facto de ler demasiado Heidegger., Habermas, Jurgen, Richard Rorty: Philosopher, Poet and Friend, http:// www.signandsight.com/features/1386.html. Acedido a 19/11/2011. Simbolicamente, estas palavras não deixam de remeter para uma certa leitura sobre a relação entre a filosofia de Rorty e Derrida. Sobre a ideia de desconstrução, ver Derrida, Jacques, Writing and Difference, Taylor and Francis, 2001 ou Dissemination, Continuum International, Londres, 2004 25 Morgado, Miguel, Filosofia Política e Democracia, in Análise Social, vol. XLV (196), 2010, p. 478 26 Ibidem., p. 482-484 24

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o transcendente.27 Nas projecções que fazem do que deve ser o pluralismo, a democracia ou a ordem mundial, o denominador comum é uma razão imanente que aparece sempre como categoria epistemológica mensurante e nunca como categoria mensurada. Para Bento XVI, nelas prevalece a lógica instrumental de uma racionalidade apurada exclusivamente pelas experiências de produção técnica em bases científicas (…) que está na linha da funcionalidade, da eficácia e da qualidade de vida. Perante isto, não surpreende que o Admirável Mundo Novo de que falava Huxley, feito de homens não gerados irracionalmente mas produzidos racionalmente, surja cada vez menos como uma mera visão e cada vez mais como desígnio utilitário. É isto que Singer sugere quando afirma: um recém-nascido com graves deficiências deve ser morto.28 Para Bento XVI, o ideal pós-moderno do Estado neutro, embora tenha rompido com o marxismo, cuja escatologia rejeitou em nome da revolta contra as certezas da razão, tem em comum com ele a ideia evolucionista de um mundo nascido de um acaso irracional e das suas regras internas que, portanto – diferentemente de tudo quanto a antiga ideia de natureza previa – não pode conter em si nenhuma indicação ética.29 Apoiado nessa filosofia da história rigidamente materialista e ateísta que sobreviveu ao colapso do comunismo em 1989, o pluralismo pós-moderno é incapaz de pensar em termos de essências, pelo que qualquer validação ou condenação pela razão humana reveste um carácter puramente sociológico, sem qualquer autoridade além da de um ambiente específico. Não existem valores independentes dos objectivos – o que em absoluto é sempre mau e é sempre bom - e é lícito ao homem fazer tudo aquilo que é capaz de fazer (…) bastando para tal que o bem esperado pareça suficientemente grande.30 Antes pelo Estado, hoje pelos indivíduos, os direitos formulam-se segundo a adequação aos respectivos interesses; não se descobrem pela razão, são um produto da vontade. No domínio moral, o voluntarismo pósmoderno eleva a consciência subjectiva do sujeito a última instância ética, de tal modo que a possibilidade se torna um critério de per si suficiente.31 A neutralidade do Estado significa, portanto, desacreditar a amplitude pública da reflexão filosófica e teológica remetendo-as para o âmbito privado: a filosofia moral e religiosa é matéria subjectiva imperscrutável; constitui-se como narrativa susceptível de uma abordagem puramente descritiva enquanto facto social a ter em conta pelos agentes políticos mas desprovida de qualquer autoridade do ponto de vista normativo, daí que indiferente para o debate público. Mas então, pergunta Maritain, Como é que podemos reclamar direitos se não acreditamos em valores? Se a afirmação do intrínseco valor e dignidade Bento XVI, Europa…, op. cit., p. 45; Rorty, Richard, Philosophical Papers, vol. I: Objectivity…, op. cit. 28 Bento XVI, ibidem, p. 46; Singer, Peter e Kuhse, Helga, Should The Baby Live?, Oxford University Press, 1985, cit em Dennehy, Truth…, op. cit., p. 266 29 Bento XVI, ibidem, p. 45 30 Bento XVI, ibidem., p. 46. 31 Idem. Maritain, Humanismo Integral, op. cit., p. 205 27

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do homem não tem sentido, a afirmação dos direitos naturais do homem é igualmente absurda.32 Ao negar alcance público à filosofia e à religião no domínio da acção política, o Estado neutro prescinde da visão complementar – que não alternativa - à das ciências sociais; aquela que fornece indicações de sentido sobre o conhecimento empírico e essencialmente analítico e descritivo da história, da sociologia, da economia, da antropologia, etc. Ignorar esse saber é olhar os factos como meras contingências e negar a possibilidade de neles se encontrarem normas e ensinamentos de natureza ética apreensíveis pela razão de todos os homens de todos os tempos. Precisamente pela sua própria natureza, a ciência não produz conclusões éticas, não gera o ethos.33 Aliás, a capacidade de se abstrair das influências socioculturais e dos juízos de valor é o desafio básico do investigador social, como o historiador ou o sociólogo, por exemplo. É à filosofia e à teologia que cabe a reflexão moral ordenadora das descobertas científicas, pelo que uma política que só concebe factos e fechada à metafísica, nunca encontrará os fundamentos que ajudam a fortalecer o edifício democrático. Para Bento XVI, um ideal de progresso exclusivamente baseado numa racionalidade limitada às certezas científicas, que recusa à realidade natural e histórica uma dimensão axiológica susceptível de promover o discernimento sobre o certo e o errado, redunda numa lógica que encara a utilidade como condição da moralidade e não o inverso. Reflecte, em grande medida, o extremo grau de indeterminação que a teoria geral dos direitos humanos exibe quando se que substituir à política34 e, consequentemente, a necessidade de uma filosofia empenhada em perscrutar as origens desses direitos por forma a esclarecer a política das responsabilidades que lhes são inerentes. Um Estado laico pode e, até, deve apoiar-se nas raízes morais inspiradoras que o constituíram (…) e sem os quais não teria nascido nem poderia sobreviver. Não pode existir um Estado da razão abstracta ou a-histórica.35 Disso mesmo se apercebeu o homem moderno quando, por exemplo, a partir da segunda metade do século XX, a delapidação acelerada dos recursos naturais despertou nele a urgência de uma consciência ecológica. Afinal, um pouco paradoxalmente, descobrira-se que a apologia da vontade e da maximização do bem estar tinha de ser moderada pela responsabilização individual e colectiva com vista à preservação do meio ambiente.36 É a esta ética de responsabilidade que Bento XVI apela quando defende a idêntica urgência de uma consciência política sobre a ecologia do homem, como afirmou em Berlim.37 Tal como a preservação Maritain, L’Homme et l’État, em Oeuvres Complètes, op. cit., Vol. IX, (1947-1951), p. 593; ver cap. IV, parte III, especialmente pp. 590-600. 33 Parece-me óbvio que a ciência enquanto tal não pode gerar o ethos, isto é, uma renovada consciência ética não pode ser produto do debate científico., Bento XVI, Europa…, op. cit., p. 76-77 34 Morgado, op. cit., p. 487 35 Bento XVI, Europa…, op. cit., p. 109 36 Bento XVI, Europa…, op. cit., p. 42 37 Bento XVI, Visita ao Parlamento Federal da Alemanha, op. cit. 32

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ambiente, também a ecologia do homem exige reflexões políticas de fundo sobre os problemas da vida moderna que evitem as sistemáticas intervenções correctivas e profiláticas características de uma abordagem meramente empírica ou quantitativa. Neste sentido, as grandes conferências internacionais sobre o desenvolvimento, como as do Cairo e de Pequim, não devem resumir-se à definição de políticas cujo cerne é o numerus clausus da população mundial e os meios técnicos predispostos para tal objectivo. Tanto neste como noutros aspectos com implicações para a vida das sociedades, como o papel da família, por exemplo, é preciso articular a política de negação ou concessão de ajudas económicas com os ensinamentos das antigas normas éticas da relação entre os sexos, como vigoravam em África na forma das tradições tribais, nas grandes culturas asiáticas como derivadas das regras de ordem cósmica e nas religiões monoteístas a partir do critério dos dez mandamentos.38 Para Bento XVI, só assim aquelas conferências podem afirmar-se como expressões dessa busca de critérios comuns para o agir; como uma espécie de concílios da cultura mundial, durante os quais deveriam formular-se certezas comuns depois elevadas a normas para a existência da humanidade. Tal só possível a partir de uma razão aberta ao intelecto, isto é, à vocação espiritual do homem e não circunscrita à razão discursiva do positivismo, respeitando assim a distinção etimológica entre ratio e intelectus para a qual Bento XVI chama a atenção.39 Nessa distinção vive, aliás, uma outra entre episteme e sofia, que se poderia traduzir em conhecimento e sabedoria. Na medida em que condenou ao silêncio o debate cívico, arrastando também consigo um esvaziamento moral da própria filosofia política40, a neutralidade do Estado promove a mistificação unilateral dos valores e não a sua defesa efectiva sustentada por uma autêntica curiosidade filosófica.41 No fundo, é o reflexo da posição de Pirro: dado o nosso desconhecimento acerca da natureza das coisas, a atitude correcta consiste em suspender o julgamento como se nada pudesse ser dito acerca delas.42 Foi esta postura que Bento XVI identificou como a ditadura do relativismo.43 Para contrastá-la, invocou em Ratisbona a resposta de Sócrates a Fédon: Seria facilmente compreensivel que alguém, irritado por causa de tantas coisa erradas, detestasse pelo resto da sua vida todo e qualquer discurso sobre o ser e o denegrisse. Mas, desta forma, perderia a verdade do ser e sofreria um grande dano.44 A ditadura do relativismo é este grande dano que paira sobre o mito pós-moderno da neutralidade do Estado: ao censurar qualquer tentativa de Bento XVI, Europa…, op. cit., p. 42-43 Bento XVI, Europa…, op. cit., p. 103-104 40 Morgado, op. cit., p. p. 478 41 Bento XVI, Europa…, op. cit., p. 69 42 Schall, Reason…, op. cit., p. 66-68 e seguintes 43 Bento XVI, homilia na Missa Pro Eligendo Romano Pontifice, op. cit. 44 Bento XVI, Razão, Fé…, op. cit. 38 39

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hierarquizar princípios no âmbito da discussão pública sobre a teoria geral dos direitos humanos, promove a falta de clareza dos conteúdos que pode transformar-se novamente em ameaças à liberdade do pensamento e da fé. O desespero relativista sobre a razão, encara a impossibilidade de sabermos as respostas definitivas às perguntas de onde venho?, para onde vou?, qual o melhor regime?, Qual a melhor vida para o homem?, como um bom motivo para justificar a aversão e o desprezo por quem ainda acredita na validade e na pertinência daquelas perguntas para o debate público. Dos limites antropológicos do conhecimento, conclui a redundância da ontologia, de um discurso sobre o ser. Nesse sentido, não é só do desprezo pela religião e pela teologia que se trata mas, nessa mesma medida, do desprezo pelo que é e deve ser a filosofia política.45 Consequências para a tolerância e o pluralismo democráticos Uma vez que a natureza democrática de um regime se funda num consenso moral pré-político que estipula os direitos e deveres inerentes à dignidade inviolável da pessoa, a noção de um Estado neutro perante todas as concepções de vida em presença é uma ameaça tanto à filosofia política como à própria democracia. Erigido a objectivo último do bem comum; não a meio mas a fim em si mesmo da política, o relativismo subjacente à ideia de um Estado neutro é perigoso, desde logo, pela sua inconsistência: como notou Strauss na crítica a Berlin, a afirmação da equivalência moral de todas opções de vida traduz-se na sua própria negação.46 Quando a filosofia se converte na negação da própria possibilidade do conhecimento filosófico e num exercício de desconstrução simbólica, segundo a convicção pragmática de que as verdades metafísicas são equivalentes porque intangíveis, é natural que o filósofo sinta a necessidade de proteger a democracia da própria filosofia, como defende Rorty.47 Essa protecção faz-se à custa da religião, da filosofia e, consequentemente, da vitalidade da cidade democrática: assumida a incomensurabilidade das verdades subjacentes às diversas concepções de vida que coexistem nas sociedades modernas e a irracionalidade epistemológica de qualquer juízo acerca delas, não surpreende, portanto, que a tolerância do pragmatismo pós-moderno se traduza em recusar-lhes amplitude pública e acantoná-las na esfera privada. Do ponto de vista prático, a presunção de neutralidade do Estado pósSchall, Reason…, op. cit., p. 66- 74; Strauss, Leo, Relativism, in The Rebirth of Classical Political Rationalism, An Introduction to the Thought of Leo Strauss, Pangle, Thomas L. (coord.), The University of Chicago Press, Chicago, 1989, p. 17-18 47 Schall sugere que a incapacidade para compreender o corte do pensamento cristão com a filosofia pós-aristotélica que serviria de base ao naturalismo e ao racionalismo modernos, levou muitos autores a negligenciar o verdadeiro impacto da revelação sobre a filosofia política e, nessa medida, a negligenciar a própria natureza da filosofia política.Schall, Reason…, op. cit., p. 66- 74; ver resto do cap. 3, pp. 76-94 e cap. 4. 45 46

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moderno esconde a assim, a respectiva intolerância. Já não se trata de uma censura física mas latente, expressa no constrangimento social ou psicológico que projecta a educação e o progresso intelectual como dissociação de qualquer tradição recebida e de qualquer conformidade a respeito da sociedade.48 Esta é a consequências política de um pluralismo que desconfia da aspiração filosófica e religiosa à verdade porque, em grande medida, ignora o ensinamento clássico de Sócrates de que o filósofo é também um educador e, nesse sentido, tem uma responsabilidade ambivalente não apenas dirigida à verdade mas também à cidade. Um ensinamento acerca da interrelação entre a ordem temporal ou política e a ordem contemplativa ou espiritual que, na tradição apostólica do cristianismo, encontra a expressão mais nobre no martírio de Cristo,49 e se revela também no amor cristão aos fracos e aos humildes que Maritain enfatizou para moderar a exaltação platónica do rei filósofo.50 Independentemente de ser motivada ou por um laicismo agressivo que encara a religião como um perigo para a liberdade do homem, como na generalidade da crítica neo-marxista mas também na tese do choque de civilizações de Huntington, ou por um relativismo para o qual a essencial intangibilidade das verdades metafísicas lhes veda qualquer protagonismo na discussão política, como no caso de Rorty, a natureza hermética do Estado neutro manifesta-se na exigência de que a política opere à margem ou acima de todas as tradições religiosas da cidade. As soluções pós-modernas do pluralismo oscilam assim entre a aspiração unificadora para além das religiões estabelecidas, ou até mesmo o desaparecimento destes disparates [Rorty] (…) e a ideia de que, sendo o que são, as religiões só podem ser hostis umas às outras e ‘inimigas do género humano’[Huntington].51 Muito crítico desta assepção de neutralidade, Valadier considera que o ideal de decomposição das tradições em que o próprio homem é capaz de se arrancar Valadier, Um cristianismo…, op. cit., pp. 131-135; pp. 147-153. Sobre o pathos da resistência cristã e as suas distâncias relativamente ao pathos da revolução e às ambições transformadoras dos secularismos modernos e pós-modernos, Bento XVI sublinha: A resposta de Cristo a Pilatos, na qual o Senhor, precisamente diante do juiz injusto, reconhece que o poder para o exercício do papel de juíz, do serviço ao direito, só pode ser dado do alto, está na linha da delimitação evangélica entre o que é de César e que é de Deus (Mc, 13, 12-17). Precisamente porque vêem os limites do Estado, que não é Deus nem se pode apresentar como Deus [Pedro e Paulo] reconhecem as funções das sua leis e o seu valor moral; O Estado deve ser respeitado, justamente na sua profanidade, a partir da essência do homem como animale sociale et politicum, Bento XVI, Europa…, op. cit., pp. 63-64 e 66-68. 50 Segundo Schall, através da evocação do testemunho de Cristo que escolheu ser carpinteiro como José, Maritain ajudou a filosofia política a perceber que a a vida filosófica é necessária para justificar o valor da vida não filosófica. Este é, para Schall, um exemplo do inegável benefício que a Revelação encerra para a compreensão do entendimento clássico sobre o que é a filosofía política, nomeadamente para a recuperação de um lugar apropriado para a vida filosófica., Schall, Maritain…, op. cit., pp. 39-47 e Reason…, op. cit., pp. 127-128; Sobre este argumento, Madureira, Diogo, op. cit, pto 4, A importancia da ‘consciência evangélica’ e do amor cristão para a vitalidade de uma filosofía política comprometida com a verdade e a liberdade, pp. 163-173. 51 Valadier, Um cristianismo de futuro…, op. cit., p. 221 48 49

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a tudo o que seja de uma ordem ou tradição particular e aceder por si só (e por milagre?) à razão, depende mais do enigma do que de outra coisa. Fruto do sorridente dogmatismo da razão posto na conta da modernidade, a neutralidade do Estado é afinal o estereótipo não discutido e aliás considerado indiscutível da razão desencarnada, como lhe chamou Taylor.52 As suas consequências são tanto mais graves quanto mais a indiferença do Estado perante as religiões se arvora o estatuto de neutralidade e tenta disfarçar o facto de ser, inexoravelmente, uma visão particular do todo motivada por critérios que não podem ser subtraídos à existência nem à história das ideias. A opção pela neutralidade do Estado perante todas as mundivisões religiosas ou filosóficas não é neutra: funda-se na concepção positivista da vida e do mundo que se arroga a racionalidade universal ao mesmo tempo que a nega às religiões, hostilizando assim as tradições culturais e religiosas dos povos. Um autêntico pragmatismo obrigaria, portanto, à conclusão de que a neutralidade do Estado é impossível, o que não invalida a possibilidade de um Estado pluralista e respeitador das liberdades individuais. Pelo contrário, à luz do pensamento cristão aqui exposto, é a condição desse respeito. Em nome de uma metafísica do progresso para a qual se todo o progresso é mudança, nem toda a mudança é progresso53, Maritain defende que o crescimento da consciência sobre uma dignidade humana humilhada e ofendida é um ganho histórico só possível transcendendo as condenações puramente sociológicas e encarando o mal com uma inteligência propriamente cristã.54 Contra a perspectiva equívoca onde o conhecimento consiste na negação da verdade objectiva e na desconstrução de toda a ontologia fundada nessa possibilidade, como se o auge da civilização estivesse no retorno a um estádio pré-social ou pré-burguês, Maritain afirma a perspectiva analógica de São Tomás de Aquino. Em estrita conexão com Aristóteles e a afirmação do homem enquanto zoon politikon (ser vivo social e político)55, São Tomás encara o desenvolvimento como algo que só se processa em sociedade e não é mais do que o progresso da consciência sobre as verdades evangélicas. Sendo imutáveis e universais, estas verdades expressam-se de modo diverso no tempo e no espaço em função do conhecimento acumulado pelas tradições filosóficas e religiosas acerca dos direitos e deveres associados à concepção cristã da pessoa - um todo que vincula o próprio Estado.56 Ibidem, p. 131 Dennehy, Truth…, op. cit., p. 260 54 Maritain, Humanismo Integral, p. 212-213 55 Para Aristóteles, a cidade é, por natureza, anterior à família e a cada um de nós, individualmente considerado. Política, Livro I, 2, 1253ª15. Não resulta, pois, de uma soma arbitrária de indivíduos mas funda-se na irredutível dimensão relacional, solidária e comunicacional do ser humano que é, por esta razão, um ‘ser vivo político’ (zoon ekhon politikon). Nota nº3 a Aristóteles, Política, Livro I, 1252ª25, op. cit., p. 594. 56 Na sua reflexão sobre a essencial imutabilidade e universalidade dos primeiros princípios da lei natural, São Tomás não ignorou a diversidade dos povos, das culturas e dos regimes, defendendo a distinção entre o direito civil e o direito das gentes em que se divide a lei humana como derivações respectivamente por determinação e por conclusão dos primeiros princípios da lei natural. Assim, fica claro que a aplicação da lei natural obriga à observância da contingência particular, de tal 52 53

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O Ocidente e o resto do mundo: interculturalismo em vez de multiculturalismo Bento XVI não tem dúvidas de que, embora possam sê-lo de jure, nem a racionalidade laica nem a mensagem cristã são de factum universais: a ética mundial não passa de uma abstracção.57 No entanto, tal como sugere o princípio da analogia de São Tomás e como prova a influência cultural da Europa no mundo, isto não significa que, mantendo intacta a sua identidade, os diversos ambientes culturais do mundo não sejam interpelados nem possam assimilar de maneiras diferentes essa aspiração da racionalidade ocidental na qual a compreensão cristã da realidade continua a manter o seu peso.58 Para que tal seja possível, é antes de mais necessário que o Ocidente corresponda à expectativa natural dos seus interlocutores e se defina, empenhando-se na defesa daquilo que o seu respectivo património civilizacional tem para oferecer ao mundo, como a imagem cristã da Pessoa, da igualdade entre os sexos, da separação entre Igreja e o Estado, etc. Para Bento XVI, esse exercício passa inevitavelmente por uma filosofia política aberta à relevância e amplitude da teologia. Afinal de contas, defende, a questão de saber se existe ou não uma razão da natureza, um direito de razão para o homem que acrescenta à doutrina dos direitos uma doutrina dos deveres, é enfrentada a nível intercultural. Para os cristãos tem a ver com a criação e com o Criador. No mundo indiano, corresponde ao conceito de Dharma, à normatividade interna do ser; na tradição chinesa às ideias e aos mandamentos celestes.59 É essa abertura que Bento XVI propõe ao Ocidente mediante o apelo à abordagem intercultural enquanto verdadeiro multiculturalismo. Ao multiculturalismo altivo e relativista associa as perspectivas que encaram todas as mundivisões religiosas como equivalentes e procuram um consenso à margem delas. Essa é, segundo Bento XVI, a maior prova da intolerância de um pluralismo meramente formal ou relativista que não concebe a diferença na igualdade e parece furtar-se a qualquer discernimento. Ao contrário do que aparenta, o relativismo não consiste na ideia de que todas as culturas são diferentes mas precisamente na de que são todas iguais. Daí a sua intolerância. Traduzindo este argumento para a linguagem dos sentidos, diríamos que um pluralismo que se limita a olhar a diferença não a ouve e vê-a tanto pior quanto mais a olhar desde a altivez do relativismo secular. Mais incapaz é, portanto, de forma forma que, como S. Tomás admite, a rectidão de princípio pode assumir várias formas à medida que se aproxima da realidade contingente. Ver S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, op. cit., Vol. IV, Ia IIae Q. 94, a. 4-6, e Q. 95, a. 2-4. Para Maritain, todo o homem que aja de acordo com a lei natural se empenhará na construção da sociedade cristã, ou seja, na subordinação do bem comum à Pessoa. Cristanismo e Democracia, tradução portuguesa de Alceu Amoroso Lima, Agir, Rio de Janeiro, 4ª Edição, 1957, p. 63. 57 Bento XVI; Europa…, op. cit., p. 88 58 Ibidem, p. 84 59 Ibidem, p. 85

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distinguir a diferença e de absorver a riqueza da diversidade cultural e religiosa. Sempre que se resumir a uma mera constatação de facto, a afirmação de que as culturas são todas diferentes assemelha-se uma forma subreptícia de dissimular a ignorância acerca delas e, consequentemente, a convicção de que são todas iguais. O reconhecimento efectivo e a tolerância da diferença pressupõe, pelo contrário, o interculturalismo, ou seja, a imersão do político no diálogo com as culturas e este, por sua vez, o encontro entre a razão e a fé. Bento XVI questiona como pode ser tolerante uma razão que nega a dignidade das religiões ao remetê-las para o âmbito das subculturas e não lhes reconhece sequer estatuto para as ouvir e se envolver no diálogo com elas. Nesse sentido, defende que o Ocidente não pode promover o encontro com ambientes culturais distintos se é surdo perante a metafísica religiosa. Faz parte do multiculturalismo ir ao encontro com respeito pelos seus elementos sagrados; mas só podemos fazer isto se o sagrado, Deus, não nos for estranho. (…) Para as culturas do mundo, a profanidade absoluta que se foi formando no Ocidente é algo de profundamente estranho. Portanto, precisamente o multiculturalismo chama-nos a reentrar novamente em nós mesmos.60 No mesmo sentido, Woldring defende que para Maritain, é precisamente o facto de as visões do mundo serem determinadas por ambientes culturais específicos que torna absurda a apiração pós-moderna ao consenso neutro de uma tal coisa como a filosofia das filosofias acima das religiões. O que pode ocorrer é uma convergência entre valores semelhantes que operam na direcção dos mesmos resultados práticos mas isso pressupõe um diálogo assente no reconhecimento de verdades objectivas e não o relativismo neutro baseado na indiferença da intersubjectividade moral como, por exemplo, sugere Rorty.61 O desafio primordial das democracias ocidentais na sua relação consigo próprias e com o resto do mundo é, pois, rejeitar o relativismo de modo a preservar este equilíbrio entre pluralidade e unidade ou, por outras palavras, entre liberdade e verdade, que as caracteriza. Nesse equilíbrio, inscreve-se um pluralismo que não se resume à condescendência passiva da pluralidade de visões nem a uma neutralidade tão ilusória quão altiva mas que, pelo contrário, prova a sua tolerância na predisposição para aceitar a autoridade da religião e, em particular, da mensagem cristã, para a configuração dos debates concretos da vida política pública. A este propósito, Maritain sugere que a noção de Estado neutro consiste numa perversão da noção de Estado laico. Na linha da teologia política de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino, Maritain defende que a separação entre o Estado e a Igreja que caracteriza o Estado laico, se refere exclusivamente à fórmula de relacionamento entre as instituições políticas e religiosas dentro da comunidade política, a qual impõe o respeito mútuo pela autonomia de ambas. 60 61

Bento XVI, Europa…, op. cit., p. 36 Woldring, Truth…, op. cit., p. 287

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Não significa ou, pelo menos, não deve significar, a bem da sua sobrevivência ética e mesmo política, uma indiferença radical do Estado perante as concepções do homem, da vida e do mundo que os conhecimentos acumulados pelas tradições religiosas legaram à humanidade.62 Em consonância com a tese agostiniana de que a Cidade de Deus e a Cidade dos homens são autónomas mas interdependentes, Maritain defende a subordinação do temporal ao espiritual ou, se quisermos, da democracia ao cristianismo, não porque pretenda um governo político da Igreja ou uma teocracia que, como já foi dito, considera uma heresia contrária à vontade de Deus expressa no Evangelho, mas porque entende que os fundamentos da democracia são intrínsecos à noção cristã da pessoa e à correlativa concepção do Estado. Bem comum é, para Maritain, o bonnum honnestum ou coisa eticamente boa, formatada pela noção cristã da Pessoa herdada de São Tomás de Aquino e onde se funde a dimensão microcósmica do indivíduo - que enquanto animal eminentemente social e político (zoon politikon) deve obediência ao Estado - e a dimensão macrocósmica da Pessoa - que enquanto substância racional e espiritual está acima do Estado. Na medida em que aspira ao compromisso do político com um humanismo integral que encare o homem não apenas na sua condição individual ou de parte do corpo social mas também na condição de pessoa como um todo que vincula outra parte - o Estado63 -, o personalismo cristão funciona como critério sine quo non da relação ideal que Aristóteles propõe entre a polis e os princípios de bem e de justiça. A insistência de uma nova cristandade na autonomia da ordem temporal é concomitante à defesa da ‘extraterritorialidade’ da pessoa em relação aos meios temporais e políticos. É esse o verdadeiro significado da laicidade para o cristianismo que, segundo Maritain, está contido na noção da cidade leiga vitalmente cristã ou na do Estado leigo vitalmente cristão.64 Na linha da Populorium Progressio de Paulo VI, para a qual muito contribuiu o humanismo integral da tradição apostólica que Maritain recuperou para o século XX, também Bento XVI defende que o critério aferidor do discernimento imprescindível ao interculturalismo e a um pluralismo autêntico 62

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Bento XVI invoca o exemplo de homens como Churchill, Adenauer, Schumman ou De Gasperi para mostrar que, na sua busca da paz e da justiça para o mundo saído da II Guerra Mundial, não queriam construir um Estado confessional mas um Estado plasmado por uma razão ética. A sua fé tinha-os ajudado a revitalizar uma razão subjugada pela trania ideológica. (…) o seu cristianismo não os tinha afastado da razão mas tinha-lha iluminado. Bento XVI, Europa…, p. 95-96 Maritain insistiu sempre na distinção tomista entre Estado e corpo social, vital, segundo ele para evitar as perigosas associações do Estado com o todo, como se ele próprio fose uma pessoa. Embora, pela sua autoridade, esteja no plano mais elevado do corpo social, dada a precedência do bem colectvo sobre o individual, o Estado é, ainda assim, uma parte desse todo. L’Homme et l’Etat, Oeuvres Completes, op. cit. Maritain, Humanismo Integral, op. cit. No mesmo sentido, Bento XVI defende que o Estado laico é resultado da opção cristã original embora tenha precisado de longos esforços para se compreenderem todas as suas consequências. Assente no equilíbrio entre razão e religião, o Estado laico recusa tanto a teocracia política como o laicismo como ideologia que gostaria de edificar um Estado da razão pura, separado de toda a raiz histórica. Bento XVI, Europa…, pp. 108-109

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é o do desenvolvimento do homem todo e de todo o homem: se é verdade, por um lado, que o desenvolvimento tem necessidade das religiões e das culturas dos diversos povos, por outro, não o é menos a necessidade de um adequado discernimento. A liberdade religiosa não significa indiferentismo religioso, nem implica que todas as religiões sejam iguais. Para a construção da comunidade social no respeito do bem comum, torna-se necessário, sobretudo para quem exerce o poder político, o discernimento sobre o contributo das culturas e das religiões.65 Conclusão A afirmação do homem como ser depositário de uma dignidade sagrada e inviolável que serve de pano de fundo ao pluralismo democrático, reveste uma natureza puramente metafísica que não é comprovável nem assegurável a partir de um pragmatismo empírico e antropocêntrico. A partir da leitura de Maritain e de Bento XVI, dir-se-ia que aquela visão do homem é indiscutivelmente enriquecida pelo conhecimento da ciência mas convoca, simultaneamente, uma sabedoria que abarca o problema não estritamente científico – mas certamente não irracional nem a-científico – de Deus e do sentido da vida.66 A sua autoridade enquanto princípio normativo e regulador da vontade individual e colectiva decorre, portanto, de juízos filosóficos e teológicos que lhe conferem o valor de verdade objectiva e que em função disso estipulam um critério comum da moral. Para Bento XVI, é aliás difícil perceber como pode advir de um pragmatismo neutro ou das certezas sociológicas que afirmam a irresistivel contingência e subjectividade de todas as formulações da virtude, do bem e do justo. Um Estado ao qual só resta o critério positivista do princípio maioritário, tem como consequência o declínio de um direito governado pela estatística.67 Neste contexto, a questão fundamental para o Ocidente consiste em saber se pode contribuir para a primavera árabe, isto é, buscar consensos acerca dos direitos e deveres imprescindíveis à vitalidade da ordem política democrática, na base de um discurso que se fecha à explicação filosófica e teológica dos fundamentos morais da democracia e que eleva o pluralismo a único princípio absoluto, como se todas as crenças e mundivisões fossem equivalentes. A expressão primavera árabe é em si mesma uma metonímia do encontro de civilizações: os povos árabes procuram a primavera da liberdade e da Bento XVI, Caritas in Veritate, op. cit., cap1, pto18 e cap 5, pto 55 A ciência tem uma responsabilidade para com o homem e a filosofia tem a responsabilidade de acompanhar criticamente o desenvolvimento das ciências (…) de depurar os resultados científicos do elemento não-científico que, frequentemente, se lhes mistura, de modo a manter o olhar aberto para as ulteriores dimensões da realidade do homem, da qual na ciência só se podem mostrar aspectos particulares. Bento XVI, Europa…, op. cit., pp.76/77 67 Bento XVI, Europa…, op. cit., p. 109 65 66

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democracia que caracteriza as sociedades ocidentais e que, na sua essência, é fruto de um percurso civilizacional feito de fé e de razão assente no eixo AtenasRoma-Jerusalém. Mas, naturalmente, fazem-no sem deixarem de ser árabes, sem abdicarem da sua identidade religiosa e cultural, portanto, qualquer expectativa de construir pontes ou reconstruir Estados à luz de um laicismo indiferente às particularidades dos povos é ilusória. Inscreve-se na ambição positivista de dissolução das mundivisões religiosas numa ética universal que as despreza. Nesta perspectiva, se o Ocidente e, em particular, a Europa conseguir renunciar aos fanatismos tanto religiosos como seculares na abordagem das transformações iniciadas no mundo árabe, dir-se-ia que a primavera não ficou apenas a sul do mediterrâneo. No plano teórico, marcaria a vitória da leitura simbolizada pelo encontro de Bento XVI e Habermas sobre o paradigma do choque de civilizações tipificado em Huntington, do mesmo modo que o ressurgimento do elemento religioso na política no pós Guerra Fria marcou um corte com a leitura do fim da história personalizada em Fukuyama. Para Bento XVI, na linha da tradição tomista corporizada, de um modo especial, pela teologia política de Maritain, a terceira via é essa a sintonia entre razão e fé, entre filosofia e teologia que permitirá ao Ocidente e, em particular à Europa, o encontro consigo mesma. Em poucas palavras, o Ocidente poderia agradecer aos povos árabes a oportunidade que lhe deram ao promover a consagração de uma alternativa ao modo de se pensar a si mesmo e ao resto do mundo, sem esquecer que, em boa medida, o sucesso de uma primavera árabe depende também daquele reencontro da Europa. À afirmação de Hans Kung nenhuma paz no mundo sem a paz das religiões, Bento XVI acrescenta que não há paz no mundo sem a paz entre a razão e a fé porque sem ela secam-se as nascentes da moral e do direito.68 Esta é a proposta do cristianismo para o diálogo intercultural que Bento XVI justifica com a ajuda de Kurt Hübner69: Poder-se-á evitar o choque com as culturas que hoje nos são hostis, se, finalmente, conseguirmos refutar a dura acusação de termos esquecido Deus, voltarmos a ter plena consciência do profundo enraizamento da nossa cultura no cristianismo. Embora seja verdade que ele não basta para apagar o ressentimento suscitado pela preponderância do Ocidente em muitos campos decisivos para a vida de hoje, poderia, no entanto, ser um importante contributo para apagar a labareda religiosa que principalmente aí alimenta a sua chama. Bibliografia ARISTÓTELES, Política, tradução portuguesa de António Campelo Amaral e Carlos Gomes, Vega, Edição bilingue, Lisboa, 2000 68 69

Bento XVI, Europa…, op. cit., p. 102 Hübner, Kurt, Das Christendum im der Weltreligionen, Mohr Siebeck, Tubinga, 2003, p. 148, citado em Bento XVI, Europa…, op. cit., p.110

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Rui Faro Saraiva Phd Student, Osaka School of International Public Policy, Osaka University. email: ruifarosaraiva@gmail.com

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Resumo: O derrube da monarquia secular do Xá Reza Pahlavi em 1979, permitiu a emergência de um regime híbrido com traços teocráticos, onde imperam os preceitos e as normas clericais do xiismo duodecimano sobre as instituições republicanas. O novo regime político incorporou uma nova ordem interna dotada de instituições electivas e não-electivas, onde muitas vezes não se distingue a fronteira entre o secular e o religioso. A questão que se coloca ao nível da política externa iraniana consiste em compreender se a mesma é construída com base em interesses puramente geopolíticos e geoestratégicos, através de um paradigma realista, ou se existe também, um elemento idealista conotado com o Islão. É assim legítimo questionar se existe um modo islâmico de fazer política externa e sobre o que distingue o Irão da actuação dos Estados seculares na política internacional. O equilíbrio entre a ideologia e o pragmatismo tem sido o elemento mais persistente e uma das questões mais complexas ao nível da política externa iraniana. Este é um aspecto fundamental no desenvolvimento de um quadro analítico e conceptual que permita explicar os dois elementos aparentemente em conflito na política externa iraniana. Palavras-Chave: idealismo / interesse nacional / irão / pan-islamismo / política externa / realismo / secularismo / teocracia / xiismo duodecimano Abstract: The overthrow of the Shah Reza Pahlavi’s monarchy in1979, allowed the emergence of a hybrid regime where the precepts and standards of 12th Imam Shiite Muslim clerics prevail along with republican institutions. The new political regime incorporated a new internal order endowed with elective and non-elective institutions, where often the boundary between the secular and the religious cannot be distinguished. Explaining Iran’s Foreign Policy raises an immediate question: is Iran’s Foreign Policy based on purely geopolitical and geostrategic interests, through a realist paradigm, or is it, simultaneously or distinctively, shaped by an idealistic element related to Islam. It is legitimate to question whether there is an Islamic way of conducting a foreign policy and what distinguishes Iran’s actions from secular states in international politics. The balance of ideology and pragmatism seems to be one of the most persistent and intricate elements of the Islamic Republic foreign policy. This is one of the most important features to take on board when developing a conceptual and analytical

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framework to explain two apparently conflicting elements in the Iranian Foreign Policy. Key-Words: foreign policy / idealism / iran / national interest / panislamism / realism / secularism / theocracy / 12th imam shi’ism

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1. As Raízes da Política Externa Iraniana 1.1. O Contexto Geopolítico A Geopolítica encontra a sua origem na escola realista das Relações Internacionais, em que o Estado é o principal actor num sistema internacional anárquico. A procura de um nexo causal entre os factores geográficos e o seu impacto sobre a política remonta ao mundo antigo. Foi com Aristóteles, na Grécia Antiga, que se encontrou o estudo entre a relação entre o meio físico e social e as unidades políticas. Estudar a política externa de um Estado poderá assim implicar a observação sobre como certas representações do espaço geográfico são incorporadas na sua execução. A identificação de um espaço geográfico e o labeling do mesmo, origina diversas ideias e visões sobre o lugar e as políticas que aí são prosseguidas. Assim, por exemplo, caracterizar uma determinada área geográfica como Islâmica ou Ocidental implica que o Estado que queira actuar sobre essas áreas terá certas ideias sobre a sua política externa relativamente a essas regiões1. Os actores das Relações Internacionais legitimam a sua política externa através da apresentação de certas ideias ou pressupostos acerca dos Estados e das regiões para além das suas fronteiras. Estas ideias podem ser chamadas de Visões Geopolíticas, que consistem em qualquer ideia a respeito da relação entre a localização geográfica de um Estado e outros lugares, e que envolva ideias de (in) segurança, (des) vantagem e/ou a invocação de ideias sobre uma missão colectiva ou uma estratégia de política externa.2 Os referidos pressupostos emergem das elites políticas de uma determinada sociedade. As sociedades são na grande maioria pluralistas, incluindo as ditaduras. Não existe apenas uma facção das elites que determina o que é o Estado e qual o seu papel no mundo. O Estado é uma construção social, pelo que a sua actuação, interna e externa está sujeita a diferentes interpretações/visões. Nem sempre esse pluralismo é evidente na formulação da política externa, sendo que a vontade de uma facção 1

2

AGNEW, John; CORBRIDGE, Stuart, Mastering Space – Hegemony, Territory, and International Political Economy, London: Routledge, 1995, p. 47-48 DIJKINK, G. J., National Identity and Geopolitical Visions: Maps of Pride and Pain, New York: Routledge, 1996, p. 10

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pode impor-se às demais. Mais ainda, por vezes, a definição de uma linha de acção externa está limitada por um padrão de actuação pré-determinado por decisões/opções tomadas no passado – path dependence – o que acaba por se impor aos actores, limitando a sua capacidade de escolha e de decisão. O que Campbell chamou de Imaginação Geográfica. A imaginação geográfica (…) pode ser definida como o modo no qual os grupos de influência na vida cultural de um Estado definem esse Estado e a nação no interior do mundo. Aborda os actos primários da identificação e formação de fronteiras nos quais os grupos da população no interior de um Estado se empenham3. A imaginação geográfica é a base da cultura geopolítica de um Estado. Esta é o produto dos processos organizacionais e culturais que moldam a política externa desse mesmo Estado. Porém a cultura geopolítica, dentro do próprio Estado, não é homogénea e baseia-se em diferentes interesses políticos e económicos, que resultam de diferentes visões que emergem das elites políticas desse mesmo Estado. A cultura geopolítica é também caracterizada pelas tradições geopolíticas, que são um cânone histórico de pensamento no âmbito da identidade do Estado, da política externa, e do interesse nacional4. Durante os últimos 200 anos as visões geopolíticas iranianas têm sido influenciadas pelas diversas experiências que resultaram de consecutivas intervenções do exterior. No século XIX, a Revolta do Tabaco (1881-1882) seguiu-se ao facto dos Qajars terem feito concessões ao Reino Unido no sector da indústria tabaqueira. Mirza Hassan Shirazi, o marja-e taqlid ou grand ayatollah, emitiu um édito que proibia qualquer muçulmano xiita de fumar tabaco no Irão. Assim devido à forte pressão da população, o governo retirou finalmente as referidas concessões.5 Porém, da influência externa observada durante este período, e devido às concessões da dinastia Qajar a potências exteriores, resultou a Revolução Constitucional de 1905-1911.6 Posteriormente no início dos anos 1950, o PrimeiroMinistro Mohammad Mosaddeq criou o Movimento da Nacionalização do Petróleo, nacionalizando as petrolíferas britânicas e controlando as companhias anglo-iranianas. Mosaddeq foi depois removido do poder através de um golpe em 1953 orquestrado por Mohammad Reza Shah, em cooperação com a intelligence britânica e americana.7 Finalmente, a Revolução Islâmica Iraniana de 1979, pode também ser explicada através da reacção do Irão à dominação pelas potências estrangeiras e a consequente exploração da sua riqueza e recursos. CAMPBELL, David, in Ó’TUATHAIL, G., Dalby, S., Rethinking Geopolitics, London: Routledge, 1998, p. 80 4 Ó’TUATHAIL, Gearóid, Geopolitical Structure and Cultures: Towards Conceptual Clarity in the Critical Study of Geopolitics, in Geopolitics: Global Problems and Regional Concerns, The Center for Defense and Security Studies, Bison, Paper 4, January 2004, p. 88 5 KEDDIE, N. R., Religion and Rebellion in Iran: The Tobacco Protest of 1881-1882, London: Frank Cass, 1966 6 AFARI, Janet, The Iranian constitutional revolution, 1906-1911: grassroots democracy, social democracy, & the origins of feminism, New York: Columbia University Press, 1996 7 KATOUZIAN, H., Musaddeq and the Struggle for Power in Iran, London : IB Tauris, 1990 3

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Estes eventos estão também relacionados com a experiência histórica iraniana de influências e penetrações do exterior. Em primeiro lugar, através da rivalidade com outros impérios, e.g. o Império Otomano. Em segundo, a interferência de potências estrangeiras nos seus assuntos internos, durante os últimos 200 anos (Rússia, a França, o Reino Unido e os EUA).8 Os Iranianos foram também permeáveis por diversas tentativas de modernização, começando no século XIX com Qajar Shah e depois da desintegração do império persa, com os dois Pahlavi Shahs (Reza Shah 1921-41 e Mohammad Reza Shah 1941-79)9. Além disso, a cultura geopolítica no Irão tem sido influenciada pela questão da dualidade entre a comunidade islâmica e o Estado-nação. A questão que se coloca é se os iranianos se devem identificar com a umma (comunidade islâmica), assim como foi proclamada por Ayatollah Khomeini, ou com o Irão enquanto Estado-nação, como o viam os antigos presidentes Rafsanjani e Khatami. Estas duas visões fazem parte da referida imaginação geopolítica das elites políticas iranianas10. As visões geopolíticas de Khomeini manifestam-se essencialmente através de dois princípios ideológicos da Revolução Islâmica relativos à política externa: nem o Ocidente, nem o Oriente (não-alinhamento) e a exportação da Revolução. Estes princípios implicam o esfriamento das relações com os países ocidentais e o apoio aos muçulmanos em qualquer parte do globo. Ao contrário, aqueles que percepcionam o Irão como um Estado-nação, vêem também o mesmo como um actor fundamental das Relações Internacionais, e advogam boas relações com o Ocidente e com os Estados vizinhos. A definição de Estado-nação no Irão está intimamente ligada com a definição das fronteiras do território iraniano e dos países vizinhos, o que originou conflitos frequentes.11 A permeabilidade das suas fronteiras poderá explicar o carácter intervencionista do artigo 152º da constituição iraniana, assim como a prioridade da dimensão regional sobre a internacional. O Irão tem uma localização geográfica única. De todos os países no mundo, é o que tem maior número de fronteiras com países vizinhos (actualmente 15). Este facto influenciou significativamente as relações diplomáticas e económicas com os países adjacentes. Um exemplo recente consiste na disputa quanto ao regime legal do Mar Cáspio. Os países envolvidos, para além do Irão, são a Rússia, o Azerbaijão, o Cazaquistão e o Turquemenistão. Outro exemplo é a contenda pela ilha de Abu Musa, e pelas ilhas Tunb, com os Emirados Árabes Unidos (EAU)12. O facto de estar situado numa região de grande instabilidade tem sido difícil para o Irão. Essa condição generalizada de instabilidade ainda hoje persiste, seja ESHRAGHI, F., Anglo-Soviet Occupation of Iran in August 1941, Middle Eastern Studies, 20 (1), January 1984, pp. 27-52 9 BAMANI, Amin., The Modernization of Iran (1921-1941), Stanford, University Press, 1961 10 RAKEL, Eva Patricia, Power, Islam and Political Elite in Iran – A Study on the Iranian Political Elite from Khomeini to Ahmadinejad, Leiden: Brill, 2009, p. 22 11 IDEM, Ibidem, p. 22-23 12 MOJTAHED-ZADEH, Pirouz, Boundary Politics and International Boundaries of Iran, Boca Raton: Universal Publishers, 2006, p. 90 8

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através do conflito sectário no flanco ocidental do Irão, o Iraque, ou dos Estados frágeis na fronteira leste, o Afeganistão e o Paquistão. Existem também Estados ao longo da fronteira norte do Irão, cujas transformações políticas, sociais e económicas originam um clima de instabilidade e insegurança, na Ásia Central e no Cáucaso. A segurança regional depende de regimes autoritários que se encontram ao sul, sujeitos a mudanças político-sociais no futuro. Tal ambiente de insegurança alimenta as rivalidades regionais, as crises ou conflitos militares, e ao mesmo tempo, promovendo uma maior presença e intervenção directa das grandes potências estrangeiras. A maior parte do capital político e económico do Irão está a ser gasto no combate a estas ameaças. A determinação da liderança iraniana de manter um exército capacitado reflecte as preocupações de segurança nacional, decorrentes deste contexto geopolítico13. A política externa do Irão fica reduzida a uma dimensão regional. Considerando entre a liderança da região, o status quo ou a autarquia. Assim a cultura geopolítica na República Islâmica do Irão é o resultado de experiências do passado, como a intervenção de potências exteriores, de questões de identidade e fronteiras territoriais. Depois da Revolução Islâmica, a cultura geopolítica do Irão manifestou-se na institucionalização do Velayat-e Faqih, como foi desenvolvido por Ayatollah Khomeini nos anos 1960. A rivalidade entre as diferentes facções políticas na luta pelo poder influenciou também as práticas relativas à política externa iraniana. Cada facção política tem uma visão própria sobre a política, a economia e os assuntos sócio-culturais. Estas visões e interesses mudaram ao longo do tempo e consequentemente cada facção desenvolveu diferentes visões acerca do lugar do Irão no mundo e no âmbito das relações internacionais14. Desde a revolução, a elite política iraniana tem enfrentado o desafio de equilibrar o idealismo com o pragmatismo, duas abordagens quanto à política externa do Irão. Gradualmente, a liderança iraniana tem vindo a salientar o factor geopolítico na condução da política externa. Desde o advento da revolução islâmica, as políticas regionais do Irão têm sido impulsionadas pela ideologia, mas também pela geopolítica. No entanto, o factor geopolítico parece, por vezes, predominar na gestão das suas relações com os outros Estados da região. A principal razão para a importância da geopolítica na definição da política externa iraniana reside na natureza das questões que o Irão enfrenta. Estas são marcadas por múltiplas fontes de insegurança, incluindo a ameaça militar norte-americana ou israelita. Estas condições exigem que o Irão consiga conceber alianças estratégicas, sendo que a realidade geopolítica iraniana, as suas características culturais, religiosas e étnicas, ligam indubitavelmente a segurança nacional

BARZEGAR, Kayahan, The Geopolitical Factor in Iran’s Foreign Policy, in The Middle East Institute Viewpoints: The Iranian Revolution at 30, [http://www.mei.edu/Portals/0/Publications/ Iran_ Final.pdf], Consultado em 08 de Junho de 2010, p. 134 14 RAKEL, op. cit., p. 24 13

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iraniana à da restante região15. 1.2. O Contexto Cultural e Identitário Para compreender a política externa do Irão será necessário acima de tudo, uma análise mais profunda da cultura e do contexto identitário do comportamento da política externa iraniana. Relativamente ao Irão, o passado está sempre presente. Podemos observar uma combinação paradoxal de orgulho na cultura iraniana e um sentimento de vitimização, que criou um sentimento feroz de independência e uma cultura de resistência à dominação por qualquer poder estrangeiro. A política externa iraniana está assim profundamente enraizada e amplamente realizada nestes sentimentos16. No amanhecer da Revolução Iraniana, o Ayatollah Ruhollah Khomeini apelou pela independência, liberdade e pela República Islâmica. Assim eram declarados os seus direitos inalienáveis, da mesma forma o tinham feito os americanos, com a vida, a liberdade, e a busca da felicidade, ou os franceses com o compromisso com a liberdade, a igualdade e fraternidade. A declaração de princípios de Khomeini dura até ao presente, embora o não-alinhamento tenha deixado de fazer sentido no post Guerra Fria. Estes princípios estão aliás incorporados na constituição iraniana, e diversos líderes iranianos os têm invocado. Khatami declarou-os eternos (Javidan), durante a sua presidência.17 Estes princípios poderão ter raízes profundas na cultura e história iraniana, apesar de algumas transformações, desde há 2000 anos atrás. O estudo destes princípios, bem como o seu contexto cultural e histórico, poderão aprofundar a nossa compreensão das interacções entre o plano interno e externo das políticas iranianas desde a revolução. Os iranianos valorizam a influência que a sua antiga religião, o zoroastrismo, teve sobre o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Orgulham-se de trinta séculos de arte e artefactos e na continuidade da sua identidade cultural ao longo de milénios, nos quais se criou o primeiro Estado do mundo, há mais de 2500 anos atrás. Foi a partir do Irão que se organizou a primeira sociedade internacional, em que eram respeitadas as religiões e as culturas dos povos sob seu domínio. Os iranianos orgulham-se também por ter libertado os judeus do cativeiro babilónico, e de ter influenciado os gregos, os árabes, os mongóis, e os turcos, isto para não mencionar a influência sob a cultura ocidental, de forma indirecta, através de contribuições para a civilização islâmica. Ao mesmo tempo, os iranianos sentemse oprimidos por potências estrangeiras ao longo da sua história. São lembrados BARZEGAR, op. cit., p. 145 RAMAZANI, R. K., Understanding Iranian Foreign Policy, in The Middle East Institute Viewpoints: The Iranian Revolution at 30, [http://www.mei.edu/Portals/0/Publications/Iran_Final.pdf], Consultado em 08 de Junho de 2010, p. 12 17 RAMAZANI, R. K., Iran’s Foreign Policy: Independence, Freedom and the Islamic Republic, in EHSTESHAMI, A. (ed.), MAHJOOB, Zweiri (ed.), Iran’s Foreign Policy From Khatami to Ahmadinejad, Reading: Ithaca Press, 2008, p. 1 15 16

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os gregos, os árabes, os mongóis, os turcos e mais recentemente, as forças de Saddam Hussein que invadiram o Irão. Os iranianos também se recordam que o império britânico e o russo exploraram economicamente e subjugaram politicamente, invadindo e ocupando o país durante as duas guerras mundiais. O facto de os Estados Unidos terem abortado as aspirações democráticas iranianas em 1953, derrubando o governo do Primeiro-Ministro Muhammad Musaddeq, devolvendo a autocracia do Xá ao trono e, que posteriormente, dominou o país durante um quarto de século, está profundamente gravado na memória colectiva iraniana. Da mesma forma, assim como o derrube americano de Musaddeq ficou gravado na consciência do Irão, a tomada de reféns americanos no Irão em 1979, ficou gravado na consciência americana. As relações entre Teerão e Washington têm sido assim moldadas não só por um trauma psicológico mútuo, mas também pela memória colectiva do lado iraniano de 70 anos de relações amigáveis entre Irão e EUA18. Podemos então afirmar que os acontecimentos históricos influenciam a percepção e o carácter psicológico dos iranianos, o que depois se irá reflectir na formulação da política externa do país. A procura da independência e da liberdade na sua progressiva metamorfose em ideais e princípios fundamentais na visão do mundo foi iniciada por Ciro, o Grande (558-530 a.c.). O Estado que nascia pelas suas mãos expandiuse durante 30 anos, formando o império persa ou Aqueménida. A identidade cultural iraniana está assim enraizada na consciência de uma origem comum, numa religião partilhada e numa língua, que sobreviveu às invasões árabes e a outras ocupações, assim como devastações materiais e humanas, e a conversão ao Islão que se seguiu. Passados 300 anos sobre as invasões árabes, esse sentido de identidade foi expressado de forma eloquente, através dos épicos heróicos do poeta iraniano Ferdowsi, que salientou o facto de ter passado 30 anos a purgar o árabe da língua persa19. A era islâmica em território persa surgiu com o Império Safávida, substituindo o Zoroastrismo pelo Xiismo como religião do império. Assim como se observou no passado, com os Sassânidas e o Zoroastrismo, observouse também uma relação próxima entre o poder político e o poder religioso (o trono e o altar), com os Safávidas e o Xiismo. Na prática, os Safávidas utilizaram o Xiismo para legitimar e consolidar o poder e justificar guerras incessantes contra inimigos então percepcionados como tal, e.g. o Império Otomano Sunita. O resultado dessas guerras juntamente com problemas antigos e a incoerência social, a corrupção na casa real, e as interpretações erradas da religião culminou com a queda do império em 1722.20 O Estado iraniano só conseguiu reerguer-se no princípio do século XIX, estando no entanto, agora envolto na competição das potências europeias RAMAZANI, op. cit. (2010), p. 12 RAMAZANI, op. cit. (2008), pp. 2-4 20 IDEM, Ibidem, p. 3 18 19

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pelo seu território. Os processos históricos do século XIX e início do século XX revolucionaram as ideias pré-modernas de independência e liberdade no Irão. Três factores em particular desencadearam esta metamorfose histórica: 1) a imposição da redução das fronteiras internacionais pelas potências estrangeiras, 2) a semi-colonização do Estado e da sociedade, e 3) a disseminação do pensamento democrático e nacionalista, reformista e modernista. No entanto, em resposta a este movimento surgiram os governos anti-democráticos de Reza Shah e Mohammad Reza Shah. Os monarcas Pahlavi tentaram juntar aos seus regimes autocráticos, concepções pré-islâmicas e uma aura de secularismo moderno. Com a ligação do Xá às potências estrangeiras, os opositores no exílio, prometiam uma revolução. Um dos slogans favoritos de Khomeini e também um dos mais populares era o Xá Americano21. De Khomeini, surgiram os princípios revolucionários e uma dimensão islâmica nos princípios base dos iranianos. Este rejeitou o que chamou de idolatrar a nação e rejeitou o prefixo democrática para a República Islâmica, com base no pensamento que a democracia islâmica é superior às outras democracias existentes no mundo. De facto, rejeitou também a visão post Vestefaliana de sistema internacional, porque considerava que o sistema de Estados-nação era uma criação da mente humana e não de Deus. Na teoria das relações internacionais de Khomeini, todas as outras visões do mundo, especialmente a capitalista e a socialista, eram defuntas. Quando escreveu ao líder soviético Mikhail Gorbachev, sublinhou o vácuo ideológico existente no Ocidente e no Oriente. Sugeriu-lhe o estudo da visão islâmica, através dos filósofos e pensadores religiosos islâmicos. No entanto, a essa visão islâmica nunca se sobrepôs aos interesses do Estado Iraniano Islâmico (ummul qara). É exemplo disso, a compra de armas ao Grande Satã, os EUA, durante a Guerra com o Iraque, ou a aceitação da resolução das Nações Unidas que exigia o cessar-fogo com os iraquianos em 1988. Khomeini declarou assim, que fez o necessário para o interesse e sobrevivência (baqa’) da revolução22. Ao contrário da representação ocidental e israelita da política externa iraniana como irracional, o Irão tem uma tradição de estadismo prudente que foi desenvolvida através de séculos de experiência em assuntos internacionais, começando com Ciro, o Grande, há mais de 2.000 anos. O Irão cometeu muitos erros na sua longa história diplomática, que podem servir como uma lição histórica para as actuais elites políticas iranianas. No período pós-revolucionário, especialmente nos primeiros anos da revolução islâmica, a política externa do Irão foi muitas vezes caracterizada pela provocação, a agitação, a subversão, a tomada de reféns e o terrorismo. Mais recentemente, a imagem internacional do Irão foi manchada por uma retórica imprudente do presidente Mahmoud Ahmadinejad sobre Israel e o Holocausto, ignorando a importância da 21 22

IDEM, Ibidem, p. 4-7 IDEM, Ibidem, p. 8

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legitimidade internacional e do dictum Islâmico do Irão, a Hekmat (sabedoria)23. Depois deste olhar que caminhou do passado até ao presente, no âmbito do carácter cultural e identitário dos iranianos, e por ordem de razão, também das elites políticas iranianas, podemos afirmar que existem três princípios fundamentais: da independência, da liberdade e da República Islâmica. Quanto à independência do Irão, não existe qualquer dúvida que os policy makers iranianos têm adoptado uma visão geopolítica ao nível regional e global quando está em causa os interesses de segurança e defesa nacionais. Deste facto se presume, que os decisores políticos estão conscientes dos limites da independência iraniana. A tendência isolacionista da fase inicial da história iraniana, não se repetiu, e os decisores políticos tentam racionalizar o pragmatismo da política externa, através de alguns discursos e ensinamentos de Khomeini. Por exemplo aquele em que afirma que estabelecer relações com outros Estados é compatível com a tradição profética islâmica e simultaneamente com o interesse nacional. Estas necessidades geopolíticas, muitas vezes sobrevalorizaram a necessidade da segurança nacional e da defesa em prol da independência. Estando em segundo plano a promoção da liberdade, apesar de em todas as constituições iranianas, esta se encontrar salvaguardada. A necessidade de liberdade dos iranianos é actualmente um problema com repercussões políticas e sociais e poderão colocar em causa o processo de islamização do país que se assistiu desde a revolução. O princípio da República Islâmica continua ainda em consideração, devido ao deficit de liberdade dos iranianos e o crescente cepticismo relativamente ao papel do Islão na política24. Uma abordagem histórica permite conhecer os desígnios e os princípios estruturantes que formam o contexto cultural e psicológico em que é formulado o processo de decisão ao nível da política externa de um Estado. Como Cícero referiu, Permanecer ignorante acerca do que aconteceu antes de nascer, é como permanecer sempre como uma criança.25 Winston Churchill, também afirmou, The further you look backward, the further forward you can see26. Da mesma forma, ao olharmos para o passado do Irão, a forma como moldou a cultura do país e o carácter dos iranianos, conseguiremos também perceber algumas das tendências dos policy makers iranianos ao nível da formulação da política externa. 2. O Dilema do Interesse Nacional na República Islâmica do Irão O Interesse Nacional enquanto conceito das Ciências Sociais não é aplicado de forma extensiva e interdisciplinar, quando comparado com conceitos como Identidade, Segurança ou Racionalidade. É utilizado na Ciência Política em RAMAZANI, op. cit. (2010), p. 13 RAMAZANI, op. cit. (2008), p. 13-15 25 CICERO, in RAMAZANI, op. cit. (2008), p. 2 26 CHURCHILL, Winston, in RAMAZANI, op. cit. (2008), p. 2 23 24

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geral, e nas Relações Internacionais enquanto sub-disciplina da anterior. Embora o conceito não tenha aparecido em publicações políticas e históricas antes dos anos 50, ganhou entretanto popularidade através da escola realista das relações internacionais, na sequência da II Guerra Mundial.27 Foi Hans Morgenthau quem popularizou o conceito, quando estabeleceu o interesse nacional como o segundo dos seis princípios do realismo28. Comparando com outras questões ou conceitos, como a democracia, a sociedade civil, o desenvolvimento, a identidade, as ideias políticas e as ideologias, no âmbito do contexto islâmico ou iraniano, não tem havido um debate aprofundado acerca do interesse nacional, quer numa dimensão conceptual e teórica ou como um estudo de caso na política externa iraniana. Algumas das suas causas estão no fraco desenvolvimento da Ciência Política no Irão29. Durante a era pré-revolucionária podemos afirmar, que o Estado Pahlavi procurou orientar a sua política externa com base no interesse nacional, quer ao nível regional, quer ao nível global, não consistindo assim uma problemática que a comunidade académica ou intelectual achasse que teria de a examinar. Existia outra razão para a falta de debate sobre esta temática durante as primeiras duas décadas pós Revolucionárias: o governo com pendor idealista que chegou ao poder depois da saída do Primeiro-Ministro Mehdi Barzagan em 1980 considerou anti-islâmico o termo nacional. Esta tendência surgiu com base numa interpretação fundamentalista do regime e do conceito de Umma, ou comunidade islâmica. Foi através da contestação da Frente Nacional à lei das Qesas (Retribuição), defendida pelo clero Xiita, que o termo nacional, foi considerado como anti-islâmico e o seu uso seria interpretado como um acto de oposição ao Islão e ao novo regime iraniano. O Nacionalismo era então descrito por Ayatollah Khomeini como um princípio contra o Islão. Nos seus discursos em vez de interesse nacional, Khomeini e outros decisores políticos utilizavam a expressão, interesses da Ummat-e Islami (da Comunidade Islâmica). Era assim advogado o internacionalismo islâmico e criticado o nacionalismo em muitos dos livros e artigos escritos no momento post revolução30. O problema do interesse nacional não poderá ser totalmente compreendido sem olhar para os princípios orientadores da Constituição da República Islâmica do Irão, no que diz respeito à política externa do país. Observando o artigo 152º, este será uma das maiores manifestações do Idealismo Islâmico ao nível da política internacional. A constituição iraniana, no âmbito da política externa, parece resultar num paradoxo: por um lado, subscreve parcialmente os WHITTLESLEY, Charles Raymond, National Interest and International Cartels, New York, 1946 MORGENTHAU, Hans J., Politics Among Nations: The Struggle for Power and Peace, New York: Alfred A. Knopf, 1978, pp. 4-15 29 RAMAZANI, R. K., The Foreign Policy of Iran: a developing nation in World Affairs, 1500-1941, Charlottesville: Virginia University Press, 1966, p. 257 30 AHMADI, Hamid, The Dilemma of National Interest in the Islamic Republic, in KATOUZIAN, Homa (ed.), SHAHDI, Hossein, Iran in the 21st Century: Politics, Economics & Conflict, London: Routledge, 2008, pp. 30-31 27 28

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princípios da ordem internacional no que concerne a sua capacidade soberana de preservação. Isto é baseia-se na convicção de que a República Islâmica do Irão deve pugnar pela sua independência, considerando-se igual aos demais Estados soberanos a nível internacional, não estando por isso obrigada ou sujeita a nenhuma autoridade supranacional; por outro lado, reclama o direito de intervir na defesa dos direitos de todos os muçulmanos, leia-se com ou sem Estado, rejeitando deste modo os princípios da não intervenção e da não ingerência assentes num conceito de integridade territorial. O recurso à violência nas relações externas da República Islâmica do Irão fica assim ideologicamente justificado como uma questão de auto-preservação ou de auto-determinação dos povos muçulmanos. A constituição assume por um lado uma visão realista da política externa (self-help ou auto-preservação), e por outro, uma visão idealista assente numa ideia de Internacionalismo Islâmico. Até que ponto as duas dimensões são indissociáveis? O Irão procurou assumir uma relevância externa e liderança no mundo muçulmano através da exportação dos princípios fundadores da República Islâmica e da defesa dos direitos de todos os muçulmanos. Esta vocação pan-islamista, contrária aos princípios vestefalianos de não ingerência e não intervenção, explica muitos dos apoios militares facultados pelo Irão a outros grupos de reivindicação islâmica como o Hamas, o Hezbollah, a Jihad islâmica, Al-Qaeda, etc. As diferentes oscilações e orientações na política externa da República Islâmica, indicam a existência de tendências que se contradizem no que diz respeito ao interesse nacional. Foi em períodos nos quais se observou uma orientação realista ou pragmática da política externa, que se manifestou também uma maior preocupação com este conceito. É a dicotomia Realismo-Idealismo, que parece proporcionar o melhor quadro teórico para uma análise do dilema do interesse nacional na República Islâmica. A referida dicotomia quando analisada por autores com E. H. Carr, Hans Morgenthau ou Kenneth Waltz, parece chegar à conclusão que o interesse nacional é melhor assegurado através de uma política externa que siga os princípios realistas31. À partida a política externa iraniana pós revolucionária poderá parecer essencialmente idealista. O termo interesse nacional não aparece, de facto, na constituição, embora esteja presente o princípio da auto-preservação. Os princípios estabelecidos na constituição de 1979 são um reflexo do equilíbrio entre o Idealismo e o Realismo na política externa iraniana. Porém até que ponto o conceito de nação assume uma conotação igual à praticada no mundo ocidental? Nação para os países islâmicos tende a ser um conceito representativo de uma comunidade religiosa transnacional. Os Estados são tidos como meras divisões organizacionais territoriais, sem qualquer significado no domínio das identidades. No entanto, a existência ou não do Estado, não é uma questão menor no mundo islâmico. O princípio intervencionista presente na constituição do Irão é uma forma de 31

CARR, Edward H. The Twenty Years Crisis, New York: Palmgrave Macmillan, 2001

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legitimar uma política externa assente na ingerência e intervenção na vida interna dos Estados vizinhos. Na prática, a política externa do Irão resume-se a uma tentativa de assumir uma liderança regional, esse parece ser um objectivo claro da República Islâmica. Apesar da política externa iraniana defender os interesses do mundo islâmico e alguns dos seus movimentos, existiram diversos momentos onde se observou um processo de tomada de decisão realista. É o caso da política de Teerão em relação à insurreição islâmica na Síria em 1982 e da guerra da Chechénia no final dos anos 1990 e início de 2000, o que originou diversas críticas por parte de alguns movimentos islâmicos. No entanto, ao contrário de outros regimes revolucionários do século XX, como a URSS ou a China, que observavam uma política coerente de transformação do idealismo em realismo através do conceito de interesse nacional, no caso da República Islâmica do Irão, parece ter havido oscilações entre uma abordagem idealista e a realista, nos últimos trinta anos. Depois do ímpeto inicial revolucionário e quando se sucedeu a Guerra IrãoIraque, parecia ser o momento ideal para o realismo tornar-se preponderante na política externa iraniana32. O dilema do interesse nacional na política externa da República Islâmica indica períodos de ascensão e queda das tendências idealista e realista no processo de tomada de decisão política. O dualismo estrutural presente no sistema político iraniano opõe o idealismo versus realismo no âmbito da política externa. Esta dicotomia pode ser observada desde o momento post revolucionário no Irão. Podemos assim afirmar que existem três abordagens quanto à questão do interesse nacional na República Islâmica do Irão: 1) Os que rejeitam o conceito de interesse nacional, porque contradiz os princípios básicos da Constituição e do Islão; 2) Os que defendem que uma política externa idealista é aquela que satisfaz da melhor forma o interesse nacional; 3) Aqueles que seguem o interesse nacional e uma política realista por um lado, mas por outro enfatizam a importância da manutenção da natureza islâmica do regime33. A história recente do Irão tem mostrado que em momentos críticos, em que a sobrevivência do regime está ameaçada, a questão do interesse nacional tornase de máxima importância. Quando foi aceite a resolução da crise dos reféns de 1981, ou quando o Irão aceitou a resolução do Conselho de Segurança que obrigava ao cessar-fogo da Guerra Irão-Iraque em 1988, a questão do interesse nacional esteve directamente relacionada com a sobrevivência do regime. Assim o interesse nacional pode também ser visto como o interesse do sistema político34. Enquanto o sistema político híbrido iraniano permanecer, o dilema do interesse nacional no Irão, continuará também por resolver. AHMADI, Hamid, The Dilemma of National Interest in the Islamic Republic, in KATOUZIAN, Homa (ed.), SHAHDI, Hossein, Iran in the 21st Century: Politics, Economics & Conflict, London: Routledge, 2008, pp. 33-36. 33 IDEM, Ibidem, p. 37 34 IDEM, Ibidem, p. 38 32

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3. A Dimensão Religiosa: A Influência do Xiismo Duodecimano na Política Externa Iraniana Actual A base do sistema político da República Islâmica do Irão é o sistema do Velayat-e Faqih, que encontra a sua origem na tradição Xiita, dentro do Islão. Originalmente, no Islão, não existia a distinção entre o poder do Estado e o pensamento religioso.35 O Profeta Maomé era simultaneamente o líder temporal e espiritual do Islão, e estabeleceu os princípios essenciais da religião. Depois da morte de Maomé, a legitimidade do seu sucessor, passou a constituir uma disputa entre os ramos Xiita e Sunita do Islão36. O Xiismo tornou-se politicamente institucionalizado no Irão, quando, em 1501, o Xá Ismail I fundou o Império Safávida e adoptou o Xiismo como a religião oficial do Estado. Este facto separou o Império e identificou-o com a oposição ao Império Otomano Sunita. Assim, desde o Império Safávida, o Xiismo tem servido a construção da identidade nacional e o state building iraniano37. A politização do Xiismo pode ser traçada a partir de quatro desenvolvimentos: 1) o triunfo do usuli sobre o akhbari; 2) ijtihad; 3) marja-e taqlid; 4) os khums. Durante os séculos XVII e XVIII, emergiu um debate teológico entre o clero xiita sobre o direito da interpretação da lei, a ijtihad. Duas escolas desenvolveramse a partir deste debate, a akhbari e a usuli. A escola akhbari acredita que desde o desaparecimento do 12º Imam, não poderia ser concedido o direito à interpretação, e as hadiths (tradição das palavras e acções de Maomé) eram uma fonte legal correcta para a jurisprudência islâmica. Assim não seria necessário seguir as interpretações da mojtahed, o alto clero versado nas escrituras. Em contraste com a akhbari, a escola usuli acredita na ijtihad e na interpretação da mojtahed. Foram os usuli que ganharam a disputa entre as duas escolas e assim legitimaram a formulação de políticas no âmbito do Xiismo.38 A vitória da escola usuli sobre a akhbari abriu o caminho para a modernização do clero xiita e a formação de um corpo clerical autónomo do Estado. Só a mojtahed ou ayatollah, e mais tarde no século XIX, a liderança centralizada do marja-e taqlid, tinham o direito à ijtihad39.

LAMBTON, A. K., Theory and Practice in Medieval Persian Government, London: Variorum Peprints, 1980, p. 404 36 AMINEH, M. P.; EISENSTADT, S. N., The Iranian Revolution – The Multiple Contexts of Iranian Revolution, in AMINEH, M. P. (ed.), The Greater Middle East in Global Politics: Social Science Perspectives on the Changing Geography of the World Politics, Boston: Brill Academic Publishers, 2007, pp. 353-375 37 THUAL, F., Géopolitique du Chiisme, Paris: Arléa, 2002, p. 33 38 KEDDIE, N. R., Iran and the Muslim World, London: Macmillan Press Ltd, 1995, pp. 97-98 39 ROY, O., The Failure of Political Islam, Cambridge: Harvard University Press, 1996/1999, p. 557 35

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A centralização do poder entre o clero foi acompanhada da centralização financeira, e autonomia financeira do clero em relação ao Estado, através da concentração dos khums e zakat (impostos religiosos) nas mãos do marja-e taqlid. Os khums são um exclusivo do Xiismo. Originalmente, os khums (que representa 1/5 do rendimento liquido anual de um muçulmano xiita) eram pagos pelos iranianos aos ulamas (representantes do clero) a nível local ou provincial. Com a emergência do marja-e taqlid, os khums concentraram-se nas suas mãos. Os khums fizeram com que o clero tomasse contacto directo com a população em geral, e os membros do sector económico tradicional, os bazaari, têm usado os khums para aumentar a sua influência política40. A dependência financeira parcial do clero em relação aos bazaari tem, ao mesmo tempo, impedido que o clero xiita não apoie políticas que possam ir contra os interesses deste grupo económico iraniano. No entanto, a independência do clero em relação ao Estado que resulta dos khums, tem sido particularmente importante durante alguns períodos de crise política, como é o caso da Revolta do Tabaco, a Revolução Constitucional, o Movimento de Nacionalização de Petróleo levado a cabo por Mosadeqq, e finalmente durante a Revolução Islâmica.41 A politização do Xiismo culminou nos anos 1960 e 1970, ainda durante a monarquia iraniana, com a Revolução Constitucional e o clero post constitucional a ser altamente criticado por intelectuais religiosos, nos quais Ayatollah Khomeini e Ali Shari’ati são as duas figuras proeminentes42. Khomeini revolucionou o dogma xiita tradicional relativo ao poder político mundano, com as suas ideias inovadoras acerca do sistema do Velayat-e Faqih. As origens deste sistema podem se encontrar nos debates entre a escola usuli e akhbari no século XVIII. Foi, no entanto, Khomeini que desenvolveu o conceito e tornou-o num projecto político, institucionalizando-o na República Islâmica do Irão, quebrando assim o dogma do clero xiita em relação ao poder político. Khomeini não só restaurou algumas tradições xiitas, mas também iniciou uma revolução ideológica dentro do próprio xiismo. De acordo com a teoria do Velayat-e Faqih, o Líder Supremo é o legítimo líder de toda a comunidade muçulmana, umma. Em 1988, a Constituição de 1979 foi alterada conferindo poderes ao faqih, maiores que o do imam. Este facto é também apelidado como Velayat-e Faqih Motlaqah-e Faqih, o governo absoluto do jurista supremo. Conferindo assim maiores poderes ao Líder Supremo sobre todos os muçulmanos. Desde a revolução islâmica este sistema e os seus princípios básicos têm sido a estrutura de poder da República Islâmica do Irão, e é ao mesmo tempo um dos maiores obstáculos à democratização e concretização de reformas no país. Depois de três décadas desde a Revolução Islâmica, tem existido algum debate entre religiosos e intelectuais sobre qual deveria ser o papel da religião na política. Estas questões tocam a essência do xiismo. Algumas respostas poderão ter consequências ao nível da legitimidade ENAYAT, H., Modern Islamic Political Thought, Austen: University of Texas Press, 1982 MIRBAGHARI, F., Shi’ism and Iran’s Foreign Policy, The Muslim World, (94), 2004, p. 557 42 RAKEL, op. cit. pp. 25-26 40 41

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do sistema político iraniano, e não deve ser esquecido que o Islão continua a desempenhar um importante papel na vida da maioria dos iranianos43. A formulação e execução da política externa requerem a identificação das metas e os meios pelos quais está a ser implementada. Ambos, os objectivos e os meios, no entanto, emanam de uma fonte, da qual a política se origina. No Ocidente, ou nas democracias liberais, a fonte é geralmente considerada como uma emanação da vontade do povo. Os governos derivam o seu mandato do povo que representam. Teoricamente, pelo menos, cada política externa, de uma forma ou de outra, diz respeito ao mandato do governo que representa a vontade da maioria. No Islão xiita, no entanto, a fonte da tomada de decisão política é Deus. Esta diferença entre o Ocidente e o Islão Xiita pode ser vista nas origens das palavras política e siasat. Enquanto a primeira refere-se à preocupação em manter as pessoas felizes, a segunda esforça-se para trazer a evolução e o desenvolvimento à população, mesmo que isso signifique ir contra a sua vontade. A maioria dos intelectuais xiitas concordam com esta premissa básica, há no entanto, grandes disparidades entre as diversas interpretações, no que diz respeito aos objectivos e aos meios pelos quais se concretiza a política. De acordo com uma interpretação mais radical (conservadora), a vontade do povo terá de respeitar a vontade de Deus, sendo esta interpretada pelos juristas religiosos. As metas são fixadas e definidas pela ideologia. O quadro político ocidental define, na generalidade, os objectivos de política externa em termos de interesse nacional, os conservadores xiitas definem as suas metas de política externa de acordo com os termos da sua doutrina, como é entendida e interpretada pelo jurista. Este facto poderá ajudar a explicar o objectivo fixado pelo Xá Ismail I na tentativa de derrotar os otomanos. Mais recentemente, poderá lançar uma luz sobre a política iraniana em relação à questão palestiniana. Existem poucas dúvidas sobre os objectivos iranianos em relação ao conflito israelo-árabe terem sido largamente influenciados pela orientação religiosa44. Embora Deus seja a fonte da política para todos os xiitas, a orientação da política externa, varia de acordo com diferentes interpretações. Quanto aos meios e instrumentos com os quais a política deve ser implementada, há novamente uma diferença substancial entre os xiitas e o ocidente. A Diplomacia baseia-se na racionalidade e é a ferramenta mais comum no que toca à implementação da política externa. Até os revolucionários soviéticos substituíram gradualmente a sua abordagem revolucionária radical pela diplomacia convencional, na sequência da Revolução de Outubro de 1917. Uma marca conservadora do xiismo é, porém, a jurisprudência que substitui a racionalidade como um meio de concretizar a política. Mesmo que o processo de decisão política não deixe de ser racional, o ponto de referência permanecerá a jurisprudência45. A questão central aqui é saber se a doutrina xiita é inerentemente compatível IDEM, Ibidem, 26-27 MIRBAGHARI, op. cit., p. 558-560 45 IDEM, Ibidem, p. 560-562 43 44

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com o interesse nacional. O Xiismo segue a vontade de Deus, da jurisprudência e da ideologia. A diferença é clara em relação à sabedoria convencional ocidental da adopção da vontade do povo, a racionalidade e os interesses nacionais, como fonte, meios e objectivos da política externa. A racionalidade é utilizada no xiismo, mas geralmente a favor da doutrina e da ideologia. A experiência histórica tem demonstrado que o xiismo, acredita que a melhor maneira de servir a causa que representa, está na preservação e sobrevivência do país, assim como a maximização do seu poder. Como tal, a política interna e externa do Irão é muitas vezes direccionada para esse objectivo46. 4. O equilíbrio entre a tendência Idealista e Pragmática na Política Externa Iraniana Uma das formas possíveis de análise e explicação da política externa iraniana, poderá ser realizada através de uma abordagem teórica das Relações Internacionais (RI). Os debates académicos sobre teoria das RI desde a II Guerra Mundial, têm na generalidade, fornecido os instrumentos necessários para a observação dos acontecimentos internacionais, incluindo aqueles que se passam no Médio Oriente ou os que dizem respeito à República Islâmica. Embora o estudo da política externa tenha sido incluído no campo científico das Relações Internacionais, começou a emergir como uma sub-disciplina através de Richard Snyder, H. W. Bruck e Burton Sapin, os pais fundadores da análise da política externa. Apesar de ter recebido importantes contribuições do campo das RI, a análise da política externa desafia ainda as grandes teorias, como o Idealismo ou o Realismo. A necessidade de uma abordagem específica e apropriada e as contradições entre as teorias existentes, e outros factores, fizeram emergir este problema. Assim, os analistas da política externa não poderão afirmar com certeza o que se passa na caixa negra dos Estados e as relativas políticas externas47. Embora não seja expectável uma análise madura da política externa de um Estado, a tentativa de o fazer é por si só aceitável numa área académica em evolução. A política externa iraniana, talvez seja um dos casos de estudo mais complexos e o debate sobre a sua análise, assim como a dos outros Estados com o mesmo nível de importância e complexidade, poderá constituir uma ajuda ao nível do desenvolvimento da Análise da Política Externa, enquanto uma sub-disciplina das Relações Internacionais. As Revoluções, embora sejam essencialmente assuntos internos dos Estados, causam um rasgo no tecido do sistema internacional vigente, rompendo com o status quo e o fluxo normal da diplomacia. A revolução de inspiração religiosa no Irão não foi excepção. Por um lado desfez a intrincada rede de relações que tinham sustentado a monarquia Pahlavi, e por outro, trouxe uma série de prioridades mais consistentes com as percepções e os valores da nova elite e do regime islâmico que 46 47

IDEM, Ibidem, p. 563 Vide SNYDER, R. C., BRUCK, W., SAPIN, B. (eds), Foreign Policy Decision-Making: An Approach to the Study of International Politics, Glencoe: IL Free Press, 1962

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a revolução tinha gerado. A revolução iraniana encerrou o reinado de um regime secular e pró Ocidental, estrategicamente importante para a região do Médio Oriente. Inevitavelmente, portanto, as ondas que resultaram desta Revolução foram sentidas em toda a região, apesar do facto de ter ocorrido num país nãoárabe e xiita. Como outros regimes revolucionários, Teerão estava determinado a incentivar o crescimento da sua ideologia e exportá-la, sempre que possível. Este regime, aliás, surgiu e consolidou-se em plena Guerra Fria, encontrando assim um novo lugar na rigidez e inflexibilidade do sistema internacional bipolar. No entanto, passados dez anos do seu nascimento, abandonou o slogan nem o Oriente, nem o Ocidente, ao testemunhar o fim da Guerra Fria. O seu novo lugar encontrava a unipolaridade dos Estados Unidos, a Rússia como exsuperpotência, redefinindo assim a sua presença estratégica e geopolítica numa Nova Ordem Mundial. Logo, a política externa iraniana, e a definição das suas relações internacionais, reflectem não apenas as complexidades de um Estado revolucionário emergente num ambiente altamente dinâmico e numa das mais importantes regiões do mundo a nível estratégico, mas reflectindo também, a complexidade e as contradições da nova república islâmica revolucionária e da própria política interna do país48. Na prática, a política externa do Irão tem evoluído em direcção a uma série de decisões pragmáticas, em conjunto com algumas abordagens de carácter ideológico. Na verdade, as relações internacionais do país não têm sido notavelmente controversas, apesar da retórica anti-ocidente. O Irão Revolucionário, apesar dos traços teocráticos, continua a ser um estado relativamente normal no âmbito da definição da sua política externa. Permaneceu um membro fiel de quase todas as organizações internacionais de que a monarquia Pahlavi também havia sido parte, e, nesse sentido, pelo menos, tem actuado mais como uma potência de status quo, do que uma potência revolucionária49. Na verdade, até o final dos anos 1990, o Irão tinha também mantido um padrão comercial similar ao do antigo regime (com excepção dos padrões comerciais com os Estados Unidos). As relações comerciais com o Ocidente dominaram até meados do século XXI. Estas relações enfraqueceram apenas com a gradual imposição de uma série de sanções da ONU, desde Dezembro de 2006. A posição do Irão em relação ao mundo muçulmano, teoricamente, mais próximo da sua circunscrição regional, tem sido também irregular. A ironia da década de 1980 salientava as boas relações do Irão com alguns estados muçulmanos de tendência secular, como a Argélia, a Líbia, e a Síria. Podemos afirmar que não houve um Muslim World first na política externa iraniana, apesar do tom e da retórica abertamente islâmica de Teerão. Ainda assim, a postura internacional do Irão, continua a preocupar a comunidade internacional. A mistura de um nacionalismo religioso EHTESHAMI, Anoush, Iran’s International Relations: Pragmatism in a Revolutionary Bottle, in The Middle East Institute Viewpoints: The Iranian Revolution at 30, [http://www.mei.edu/Portals/0/ Publications/Iran_Final.pdf], Consultado em 08 de Junho de 2010, pp. 127-128 49 IDEM, Ibidem, p. 128 48

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e uma propaganda populista revolucionária, uma política de oportunismo, e o anti-americanismo e anti-sionismo da retórica de Teerão, continuam a envolver a política externa iraniana numa aura de difícil compreensão50. As relações internacionais da República Islâmica do Irão podem ser divididas em quatro períodos distintos: um período de confronto (1980-1989), um período de acomodação (1989-1997), um período de détente (1997-2005) e um período de rejeição (pós-2005). Esta classificação temporal das diferentes fases da política externa está directamente associada às várias lideranças/presidências: Khomeini (1980-1989), Rafsanjani (1989-1997), Khatami (1997-2005), e Ahmadinejad (2005). Esta demarcação não deve disfarçar os diversos elementos de continuidade da política externa iraniana, mesmo em relação às políticas da era Pahlavi. Da mesma forma, não deve também disfarçar a natureza errante da política externa do Irão. Neste sentido o The Economist escrevia em 29 de Março de 2008: A política externa do país parece errante. O Irão condenou o terrorismo jihadista, mas abrigou fugitivos da Al-Qaeda. Apoiou o governo do primeiro-ministro do Iraque, Nuri al-Maliki, mas instigou as milícias iraquianas contra ele. Defende a unidade muçulmana, mas cria a divisão ao difamar os governantes muçulmanos pró-ocidentais, apoiando as facções xiitas e esperando que os Xiitas em todo mundo se curvem perante a autoridade de Khamenei51. A política externa iraniana sofreu assim diversas oscilações durante os últimos 30 anos. Durante este período o regime revolucionário desenvolveu a sua política externa num equilíbrio entre as visões idealista e pragmática das relações internacionais. Qualquer governo revolucionário, nos seus primeiros dias, desenvolve a tendência para seguir uma abordagem ideológica ao nível da política externa. Porém, depois de um período de amadurecimento, são desenvolvidas considerações pragmáticas, já que a sobrevivência do Estado depende em grande parte das realidades do mundo exterior. Isso pode explicar a cooperação entre os EUA e o Irão, quanto ao Afeganistão e depois no Iraque. Os líderes iranianos viam a estabilidade nestes dois países, como um factor vital para o interesse nacional. O pragmatismo tem prevalecido sobre a ideologia em outros casos, por exemplo, quando o Irão adoptou uma política de neutralidade no conflito de Nagorno-Karabakh entre a Arménia, um Estado cristão, e a República do Azerbaijão, um Estado islâmico com uma maioria xiita. É também um facto, que não foi o fervor ideológico do regime a validar a aspiração do Irão em tornar-se uma grande potência regional. Ao contrário, o nível educacional dos seus 70 milhões de habitantes e os seus recursos naturais transformam o país num candidato natural à preeminência regional, tentando reforçar assim a sua capacidade para desempenhar um papel de liderança, reflexo do seu peso geopolítico. Em contraste com a percepção geral do Irão enquanto um país 50 51

IDEM, Ibidem, pp. 128-29 THE ECONOMIST, Smoke and Mirrors: Iran makes it hard even for benevolent outsiders to understand it, May 24-30, 2008, in The Economist online, [http://www.economist.com/ node/11465517# login], Consultado em 10 de Julho de 2010

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revolucionário, a sua política externa é dirigida e em grande parte com base no seu património cultural de moderação e nos estreitos laços regionais. A santidade da soberania e a integridade territorial dos Estados tem sido repetidamente sublinhada em declarações ao nível da política externa iraniana. Especialmente quando essa soberania é ameaçada pela presença norte-americana na região52. Para explicar algumas irregularidades na política externa iraniana, alguns académicos assumiram uma posição racionalista, que defende que a política externa iraniana se tornou crescentemente prudente desde a revolução, através de uma maturação gradual e da reconsideração do interesse nacional iraniano. Porém esta abordagem acerca da natureza da política externa do Irão Revolucionário, não consegue explicar porque a mesma não é, segundo Ramazani, linear ou dialéctica, mas caleidoscópica. Este importante ponto de reflexão acerca da política iraniana, mostra que os idealistas de hoje, poderão ser os realistas de amanhã, e vice-versa. A observação desta natureza fluida na política externa iraniana parece ser um importante passo conceptual para explicar os elementos em conflito na política externa do país53. A análise do processo de tomada de decisão e os seus elementos tem sido uma das questões centrais das teorias de análise da política externa. Alguns analistas tentam explicar as características contraditórias da política externa iraniana através da complexidade e do caos aparente do sistema político iraniano. No entanto, todo este processo é supervisionado pelo Líder Supremo, e muitas vezes existe o apelo ao consenso. O resultado é uma política externa inconstante onde por vezes domina o imperativo revolucionário, e outras vezes considerações mais pragmáticas ou realistas.54 Desta forma, como afirma Ramazani, no Irão, o equilíbrio entre a ideologia e o pragmatismo no processo de tomada de decisão ao nível da política externa, tem sido o elemento mais persistente, e uma das questões mais complexas e difíceis de toda a história iraniana, desde o século VI a.C., quando nasceu o Estado Iraniano, até ao presente55. Bibliografia AFARI, Janet, The Iranian constitutional revolution, 1906-1911: grassroots democracy, social democracy, & the origins of feminism, New York: Columbia University Press, 1996 SAGHAFI-AMERI, Nasser, Iranian Foreign Policy: Concurrence of Ideology and Pragmatism, , in The Middle East Institute Viewpoints: The Iranian Revolution at 30, [http://www.mei.edu/ Portals/0/ Publications/Iran_Final.pdf], Consultado em 08 de Junho de 2010, pp.136-138 53 RAMAZANI, R., in EHSTESHAMI, A. (ed.), MAHJOOB, Zweiri (ed.), Iran’s Foreign Policy From Khatami to Ahmadinejad, Reading: Ithaca Press, 2008, p. 28 54 REZAEI, Ali A., Foreign Policy Theories: Implications for the Foreign Policy Analysis of Iran, in EHSTESHAMI, A. (ed.), MAHJOOB, Zweiri (ed.), Iran’s Foreign Policy From Khatami to Ahmadinejad, Reading: Ithaca Press, 2008, p. 28 55 RAMAZANI, R., in REZAEI, op. cit., p. 29 52

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A Política Externa Iraniana Post 1979, pág. 229-252

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O Novo Grande Jogo da Energia na Ásia

Manuel Martins Lopes Docente da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Lusíada de Lisboa 13000267@lis.ulusiada.pt

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US vs China1

Resumo: O Novo Grande Jogo da Energia na Ásia é uma competição nas rotas das condutas de energia de acesso ao petróleo e gás natural) do Mar Cáspio e Ásia Central.É um jogo geopolítico e geoeconómico que começou com a dissolução da União Soviética e a independência dos países do Cáucaso (Geórgia, Azerbeijão e Arménia) e das cinco ex- repúblicas soviéticas da Ásia Central. Palavras-Chave: Novo Grande Jogo / Energia / Petróleo / Gás / Oleodutos Abstract: New Great Game of Energy in Asia (NGGE) is a competition for pipeline routes to access energy resources (oil and gas) in Caspian Sea region and Central Asia. It is a geopolitical and geoeconomic game that has begun after the Soviet Union broke up and the Transcaucasian countries (Georgia, Armenia and Azerbaijan) and the five Stans of Central Asia became independent. Key-Words: New Great Game / Energy / Oil / Gas / Pipeline 1

Imagem em: http://fightthelaw.org/worldatwar/u-s-vs-china-the-great-game/ US vs China: Rivals or Partners by Miss Zahra Zafar Chohan

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*** O presnte trabalho desenvolve-se, tendo em consideração, as principais sub-regiões asiáticas produtoras de Energia (Petróleo e gás) e as restantes subregiões, mais consumidoras que produtoras. No primeiro grupo de sub-regiões encontram-se, por ordem de análise: - Próximo e Médio Oriente; - Transcaucásia; - Ásia Central; - Ásia Setentrional. No segundo grupo de sub-regiões encontram-se, por ordem de análise: - Espaço Chinês; - Nordeste asiático; - Sudeste asiático; - Ásia meridional. O trabalho é antecedido na sua parte introdutória com uma análise sobre o Estatuto jurídico do Mar/lago Cáspio. concluindo-se com uma análise da conjuntura internacional na qual se inserem os principais actores e as suas manifestações potenciais de conflito e de cooperação. ***


O Novo Grande Jogo da Energia na Ásia, pág. 253-339

Introdução A actual designação Novo Grande Jogo da Energia (NGJE) está intimamente ligada à do escritor britânico Rudyard Kipling, que no século XIX designou de Great Game toda a teia de relações e conflitos que opunham britânicos a russos, centrado na Ásia Central, na tentativa destes últimos chegarem ao Índico rompendo o bloqueio britânico. O actual Novo Grande Jogo da Energia, está centrado no Mar Cáspio, tem por objectivo a produção, acesso, controle e escoamento da Energia (Gás e petróleo) e envolve uma teia de interesses extraordinariamente vasta e complexa, da área governamental à não-governamental (multinacionais da energia, …), do espaço regional ao internacional. É a luta pelos recursos energéticos, controle da produção e o seu escoamento em segurança, intrinsecamente ligada ao grau de dependência que as actuais formas de crescimento e desenvolvimento económicas têm em relação à energia.

Elipse estratégica2 2

http://www.exploringgeopolitics.org/Publication_Boon_von_Ochssee_Timothy_Mackinder_and_ Spykman_and_the_new_world_energy_order.html http://www.consumerenergyreport.com/2010/09/02/leaked-study-peak-oil-warns-severeglobal-energy-crisis/

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Se até ao final dos anos 80 e durante todo o período da guerra fria a OPEP enquanto entidade inter-governamental, qual cartel petrolífero, controlou directa ou indirectamente a produção da energia, o fim do conflito ideológico Leste-Oeste e o desmembramento da URSS alteraram drasticamente esta situação. Surgiram novos actores libertos da influência soviética com capacidade de produção de energia, três deles ribeirinhos do Mar Cáspio. A própria Federação russa, herdeira da ex-URSS adquiriu uma nova capacidade de manobra e influência que extravasa para além das anteriores fronteiras da Comunidade socialista. Por isso o Cáspio é o centro do Novo Grande Jogo, não só pelas suas enormes jazidas energéticas, mas pelo facto dos novos actores produtores que aqui se concentram, se encontrarem no todo ou em parte libertos de compromissos inter-governamentais e por isso predispostos a potenciar as regras de mercado da oferta e da procura e bem assim das suas poderosas influências económicas, políticas e culturais. O NGJE tem a sua génese numa conjuntura de marcantes ambiguidades marcadas pelo fim da guerra fria e pelo 11 de Setembro; pela emergência de novos poderes (Azerbeijão, Turquemenistão, Cazaquistão, Uzbequistão, …) e pela reemergência de outros (Rússia, China, Índia, …). O NGJE na Ásia faz ressaltar a existência de duas Ásias, uma como fonte de irradiação de energia resumida a quatro eixos de escoamento ( centrada no Cáspio e englobando: Próximo e Médio Oriente; Transcaucásia; Ásia central e Ásia setentrional) e outra carente de energia (Espaço chinês, Nordeste asiático, Sudeste asiático e Ásia meridional).

Eixos de escoamento de energia (Oeste, Este, Norte e Sul) O NGJE passa pela análise obrigatória da reavaliação e consideração de diferentes interesses geopolíticos, presentes em todas as situações resultantes de vazios significativos de poder nomeadamente na Transcaucásia, Cáspio e Ásia central. ***

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1. Estatuto jurídico do Cáspio O primeiro desafio que se colocou aos actores que iriam partilhar os recursos do Cáspio estava relacionado com o seu próprio estatuto, gerido no passado por dois países (União Soviética e Irão) e alterado para cinco com a presença soberana nas suas margens, do Azerbeijão (na Transcaucásia), do Cazaquistão e Turquemenistão (na Ásia central). Este desafio extravasou para além do âmbito dos cinco actores, numa demonstração de que, no quadro da nova conjuntura internacional, outros interesses se poderiam vir a manifestar.

Cáspio3 a. Características do Cáspio Com os seus 1.200km de comprimento e 450km de largura, o Cáspio é o mais importante lago do mundo. A profundidade média é de 180m, com a cota máxima de 1025m e a extensão costeira atinge quase 7000km. O Cáspio possui grandes reservas de petróleo e gás natural. A região do Cáspio ainda apenas representa 2% da produção mundial desses combustíveis, devido à falta de acordo para a sua exploração.

3

http://en.wikipedia.org/wiki/Caspian_Sea

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Reservas petrolíferas do Cáspio4 O Instituto de Pesquisas Estratégicas do Cazaquistão calculou as reservas do Cáspio em cerca de 30 biliões de barris de petróleo, além de cinco triliões de metros cúbicos de gás.

Reservas de gás5 Estes números transformariam o Cáspio na alternativa ideal para o Médio Oriente, em especial para países completamente dependentes do escoamento energético pelo Estreito de Ormuz, situados na Ásia meridional (India), Nordeste asiático (Japão e Coreia do Sul) e Espaço chinês (RPC e RC).

4 5

http://www.thedossier.info/maps_charts.htm http://www.cges.co.uk/resources/articles/2001/10/01/prospects-for-caspian-gas

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b. O Cáspio no período soviético O Cáspio no período soviético era um condomínio de dois actores, a URSS e o Irão, dividido entre eles nos termos do Acordo Soviético-iraniano de 1940, o qual substituiu o Tratado de Amizade de 1921. c. O Cáspio em tempo de mudança Com o desmembramento da URSS e independência dos países da Transcaucásia e da Ásia central, ao ser equacionado o futuro do Cáspio, fundamentalmente emergiram duas posições: o Cáspio como lago; o Cáspio como mar. (1). O Cáspio como lago A tese do lago internacional, sujeito portanto a um regime de condomínio com a exploração comum dos bens e dos recursos energéticos (petróleo e gás natural) ou a divisão em sectores nacionais iguais entre os cinco estados ribeirinhos. (2). O Cáspio como mar A tese do mar interno, adentro da Convenção da ONU sobre o Direito do Mar e a sua divisão conforme esta legislação internacional. d. Evolução da discussão sobre o Cáspio (1). Países ribeirinhos Os países ribeirinhos não conseguiram entrar em acordo sobre o estatuto jurídico do Mar Cáspio. Num extenso memorandum, a Federação russa solicitou à Assembleia Geral da ONU em 1994 para se ocupar do assunto, lembrando a sua posição de que o Cáspio, sendo um espaço líquido fechado, não se lhe podia aplicar o Direito do Mar, de 1982. Num estudo apresentado em 1999 na 7ª Conferência Internacional sobre a Ásia central e o Cáucaso, revelando a prática dos Estados através de documentos publicados pela Nações Unidas, se revela que o Cáspio é, no plano jurídico um lago e não um mar, apesar de ao longo do tempo se terem revelado posições ambiguas pelos Estados ribeirinhos, de acordo com diversos interesses.6 O estudo deixava no entanto em aberto a questão da partilha dos recursos do Cáspio ou a sua gestão comum, chamando a atenção para os riscos da incerteza do regime jurídico sobre operadores económicos e em particular sobre sociedades petrolíferas, e bem assim da progressiva degradação ambiental.

6

LE STATUT JURIDIQUE DE LA MER CASPIENNE: MER OU LAC ? La pratique des États vue à travers les documents publiés par les Nations Unies, par Paul TAVERNIER, Professeur à l’Université de Paris XI (Paris-Sud), Faculté Jean Monnet à Sceaux, Directeur du CREDHO - Paris Sud (http://www.ridi.org/adi/199910a1.htm)

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O Cáspio foi colocado nas mãos dos dirigentes dos cinco países costeiros, que regularmente se reúnem para concertar posições sobre o futuro do Lago e dos seus recursos. Na última reunião em Moscovo (Julho de 2011) do Grupo de Trabalho Ad Hoc sobre a Convenção do estatuto jurídico do Mar Cáspio, os cinco países litorais do Mar Cáspio acentuaram que eram capazes de decidir eles próprios o destino do Cáspio, sem interferência de países terceiros, continuando o processo de negociação entre todas as partes prontas para chegar a acordos práticos.

Divisão de acordo a extensão da costa7 O Irão chegou a propor a divisão do Cáspio em partes iguais, 20% para cada Estado sem levar em conta a tradição. Baku e Astana discordaram. Por sua vez a Federação russa defendeu que cada Estado deveria receber uma porção do Cáspio de acordo com a extensão da sua costa (neste caso o Irão receberia de 12 a 14% das águas e do leito do Cáspio). Mas a inter-acção está em desenvolvimento. As partes conseguiram chegar a acordo sobre a maioria das questões relacionadas com a pesca, com o movimento de navios mercantes, com aviação civil e meio ambiente no Mar Cáspio. Em Novembro de 2010, numa cimeira em Baku, os chefes dos cinco países assinaram um acordo de cooperação e segurança do Mar Cáspio, relembrando o representante especial do presidente da Rússia para o Mar Cáspio, Alexander Golovín:

7

http://www.offshorenet.com/

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A importância da linha mediana no estudo da repartição dos recursos do Cáspio8 Todos os cinco estados concordaram e decidiram que somente os estados costeiros têm direitos soberanos no Mar Cáspio, e que só eles resolvem questões relacionadas com este mar. Não podemos proibir a outros países de mostrarem interesse à região, de procurarem influenciar qualquer país da região. Mas concordámos que as decisões sobre questões fundamentais – sobre o estatuto jurídico, sobre as reservas, sobre a pesca e transporte - são tomadas apenas pelos estados costeiros. O acordo assinado em Moscovo é um documento-quadro que demonstra 8

http://www.heritage.org/research/reports/2002/09/irans-claim-over-caspian-sea-resources-threatenenergy-security http://www.payvand.com/news/01/mar/1112.html http://azer.com/aiweb/categories/magazine/83_folder/83_articles/83_yusifzade.html

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a responsabilidade colectiva dos estados costeiros na tarefa de combater o terrorismo, o tráfico de drogas e outros problemas no Mar Cáspio. Especialistas notam que, se os cinco países foram capazes de chegar a acordo sobre uma questão tão complexa, é possível que em breve também serão capazes de assinar um acordo geral sobre o Mar Cáspio. As conversações vão continuar. O texto da Convenção ficou previsto ser assinado no Irão, no decorrer de 2012. Sem ele é impossível iniciar a implementação de projectos de energia, o único problema grave que impede o pleno desenvolvimento da exploração dos recursos energétocos. (2). Outros Países A tese do mar interno, para o Cáspio, adentro da Convenção da ONU sobre o Direito do Mar e a sua divisão conforme esta legislação internacional foi desde muito cedo abertamente defendida pelos EUA9 que sentiram ter chegado a oportunidade de disputar as reservas energéticas anteriormente sob a soberania soviético-iraniana.10

O Cáspio, centro de projecções geopolíticas Os EUA com 5% da população mundial são responsáveis pelo consumo de 25% da produção mundial de petróleo. 10 This is about America’s energy security. It’s also about preventing strategic inroads by those who don’t share our values. We’re trying to move these newly independent countries toward the west. We would like to see them reliant on western commercial and political interests rather than going another way. We’ve made a substantial political investment in the Caspian, and it’s very important to us that both the pipeline map and the politics come out right. Bill Richardson 1998, US energy secretary, on US policy on the extraction and transport of Caspian oil ‘A discreet deal in the pipeline - Nato mocked those who claimed there was a plan for Caspian oil’ Guardian, 15 February 2001 (http://forums.bharat-rakshak.com/viewtopic.php?f=2&t=3577&start=40) EUA na região do Mar Cáspio e a posição da Rússia 03.05.2005 | Fonte de informações: Pravda.ru (http://port.pravda.ru/news/unknown/03-05-2005/7790-0/) 9

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Em 1999, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a Silk Road Strategy (SRS), renovando o Foreign Assistance Act of 1961, com o objectivo de dar maior assistência e apoio económico e independência política aos países do sul do Cáucaso e da Ásia Central, avançar seus interesses geoestratégicos na região e opor-se à crescente influência política de potências regionais como a China, Rússia e Irã. Conforme explicitado na Silk Road Strategy, esta região sul do Cáucaso e Ásia Central podia produzir petróleo e gás em suficientes quantidades para reduzir a dependência dos Estados Unidos em relação às voláteis fontes de energia do Golfo Pérsico. Alguns cálculos indicavam que, por volta de 2050, a landlocked Ásia Central proveria mais do que 80% do petróleo importado pelos Estados Unidos e daí a premente necessidade de controlar as reservas de petróleo da região e os oleodutos através do Afeganistão e da Turquia, principal objectivo da invasão do Afeganistão em 2001.11 Alguns países passaram então a ser sensíveis à posição e aos compromissos assumidos pelos EUA como Guardião do Cáspio, com o objectivo de colocar em causa a influência russa e iraniana, apoiando a sua estratégia adentro do NGJE. *** 2. O Próximo e Médio Oriente no NGJE O Próximo e Médio Oriente desempenham uma posição sui generis no NGJE. Atente-se numa análise comparativa a nível de produção e reservas energéticas com os restantes actores situados: - na Transcaucásia (Azerbeijão); - na Ásia central (Cazaquistão, Turquemenistão e Uzbequistão); - na Ásia setentrional (Federação russa). 12 Produção de petróleo - 2008

Luiz Alberto Moniz Bandeira, Dimensão estratégica e política externa dos Estados Unidos. (http://www.espacoacademico.com.br/090/90bandeira.htm) Azerbeijão: acordo petroleiro com a BP favorece a expansão dos Estados Unidos e OTAN no Mar Cáspio http://www.diogenes.jex.com.br/toques/azerbaijao+acordo+petroleiro+com+a+bp+favorece+a +expansao+dos+estados+unidos+e+otan+no+mar+caspio 12 John Roberts, Struggle for Central Asian energy riches, 1 Junho 2010 http://www.digitalhen.co.uk/news/10185429 11

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Reservas de petróleo - 2008

Se no que diz respeito à produção de petróleo a concepção do NGJE não se aplica aos seus principais actores, englobados na OPEP e como tal sujeitos às suas próprias regras de cartel energético, o mesmo não acontece a nível de produção de gás, em que os actores podem entrar livremente no NGJE. Produção de gás - 2008

Reservas de gás - 2008 Acresce ainda o facto de o seu espaço ter visto valorizada a sua posição estratégica com o fim da guerra fria, face aos principais poderes mundiais consumidores de energia, passando a desempenhar um importante papel a nível da diversificação dos escoamentos energéticos provenientes do Cáucaso, do Cáspio ou da Ásia Central. Aqui cabe destacar o factor multiplicador constituído pela Turquia, qual ponte entre o Mediterrâneo e a Transcaucásia e Ásia Central, favorecendo iniciativas que libertam a Europa e o Ocidente em geral da hegemonia russa a nível dos fluxos de escoamento de gás.

Turquia, corredor e terminal energético Este-Oeste13

13

http://www.eia.gov/cabs/Turkey/Full.html

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No entanto, a chegada do NGJE ao Próximo e Médio Oriente tem lugar num tempo mais propício ao conflito que à cooperação e por isso, o NGJE ficou desde muito cedo enredado no próprio conflito regional israelo-palestiniano e nos conflitos que se seguiram: guerra Irão-Iraque (1ª guerra do Golfo), invasão do Koweit pelo Iraque (2ª guerra do Golfo), derrube do regime de Saddam Hussein no Iraque (3ª guerra do Golfo) e a ameaça da opção nuclear iraniana. O agudizar de posições entre russos e europeus (mais EUA) levantou de novo o conceito de guerra fria, agora já não por motivos ideológicos, mas pelo controle dos recursos energéticos. a. Produção O Próximo e Médio Oriente participa com as seguintes formas de energia no NGJE: (1)- Gás Country

Gás Production*

Gás Reserves**

Bahrain Iran Iraq Kuwait Oman Qatar Saudia Arabia United Arab Emirates Yemen Other Middle East1 Total Middle East % of World Total *In billion cubic meters **In trillion cubic feet

8.9 60.6 9.5 13.4 32.5 53.7 41.3 8.1 228 9.3

3.2 812.3 109.8 52.7 29.3 393.8 213.8 212.1 16.9 10.2 1,974.6 36.1

SOURCE: British Petroleum Review of World Gas; United States Energy Information Administration.

Reservas de gás no Médio Oriente14

(2)- Petróleo: actualmente não há países a participar com esta forma de energia, uma vez que todos os produtores de petróleo do Médio Oriente estão integrados na estrutura da OPEP, como cartel petrolífero e como tal arredados do NGJE.

14

http://www.answers.com/topic/middle-east-reserves-of-natural-gas

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Médio Oriente a maior fonte energética mundial15 b. Escoamento Todos os países do Pr/Médio Oriente são potenciais candidatos ao escoamento da energia (petróleo ou gás) vinda da Transcaucásia, do Cáspio e da Ásia Central, adentro dos seguintes eixos: (1) - Eixo Oeste Via Turquia, garantindo a ligação ao Mediterrâneo e a chegada da energia da Transcaucásia (Azerbeijão e Cáspio) ao Ocidente com boas garantias de segurança. Referências mais importantes: - Baku–Tbilisi–Ceyhan (BTC) pipeline (oleoduto) É o mais recente oleoduto, construído em 2005 com tecnologia e engenharia europeia e norte-americana. Atravessa a Geórgia e termina no porto turco de Ceyhan, no Mediterrâneo. Constitui uma boa alternativa às passagens pelo Mar Negro e é a melhor forma de fugir simultaneamente à dependência do petróleo do Golfo Pérsico e à dependência do escoamento russo.

15

http://s3.amazonaws.com/zanran_storage/www1.eere.energy.gov/ContentPages/4259631.pdf#page=5

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BTC16 É propriedade de empresas ocidentais mas também da empresa nacional turca e azeri. Alguns dos accionistas são: ENI (Itália), UNICAL (EUA), STABIL, ITUSHU (Japão). Para o construir, a Turquia, a Geórgia e o Azerbeijão tiveram que hipotecar elevados investimentos. Os recursos usados são nomeadamente a receita da venda de petróleo, os fundos do FMI e empréstimos dos EUA. Este oleoduto está operacional desde 28 de Maio de 2006. - Nabucco pipeline (Turkey–Austria gás pipeline (projecto) O Gasoduto Nabucco é um projecto da União Europeia (com o apoio dos EUA) para transporte de gás natural entre a Turquia e a Áustria, passando pela Bulgária, Roménia e Hungria. Um dos seus objectivos é diversificar as fontes de fornecimentos energéticos que abastecem a Europa, diminuindo a sua dependência da Rússia. Nabucco começou a ser preparado em 2002 mas só foi assinado pelos cinco países de escoamento da energia, em 2005, com a designação, Corredor Sul, a nova Rota da Seda.17 O projecto Nabucco faz parte do Southern Gás Corridor a que estão também ligados o Interconnector Turkey-Greece-Italy (ITGI) e o Trans-Adriatic Pipeline (TAP).

http://when-did-reason-die.blogspot.com/2011/06/imagine-gods-one-eyed-squint-with-tip.html http://en.wikipedia.org/wiki/Baku%E2%80%93Tbilisi%E2%80%93Ceyhan_pipeline 17 O projecto é desenvolvido pela joint venture Nabucco Gás Pipeline International GmbH. Tem como sócios as seguintes empresas: OMV (Áustria), MOL (Hungria), Transgaz (Roménia), Bulgargaz (Bulgária), BOTAŞ (Turquia) e RWE (Alemanha). 16

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Nabucco: fita do tempo18 Estavam previstas inicialmente três fontes de abastecimento de gás para o Nabucco: o Azerbeijão, o Iraque e o Irão. Apesar deste último chegar a manifestar disponibilidade para negociar o fornecimento de gás (2º produtor mundial), razões políticas que se relacionam com as dificuldades de relacionamento com a UE e os EUA por causa da sua opção nuclear, adiaram sine die a sua ligação ao projecto.

As três previstas fontes de abastecimento reunidas na Turquia19 O projecto tem enfrentado desde início a competição directa do South Stream (uma iniciativa da Gazprom para levar o gás russo através do mar Negro).20 http://www.nabucco-pipeline.com/portal/page/portal/en http://en.wikipedia.org/wiki/Nabucco_pipeline 19 http://www.anthropower.com/eu-seeks-powers-to-speed-up-pipelines-and-power-grids 20 http://www.europeanenergyreview.eu/site/pagina.php?id=510 The Great Game Enters the Mediterranean: Gas, Oil, War, and Geo-Politics 18

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Outra dificuldade residiu nas condições que a Turquia quis impor. Dos 3.300 quilómetros do gasoduto, aproximadamente 2.000 passam pelo território turco, e Ankara exigiu vir a receber 60 por cento dos impostos de trânsito, ou seja o valor de 450 milhões de euros por ano.

Nabucco: competição do South Stream21 Além disso, a Turquia exigia para si 15 por cento do gás em trânsito para uso próprio ou exportação, o que foi considerado inaceitável pela UE.22

O Nabbuco e os Streams em presença23

by Mahdi Darius Nazemroaya (http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=6862). Nabucco pipeline conference ends with EU support, but no cash by Bruce Pannier (http://www. europeanenergyreview.eu/site/pagina.php?id=510). http://www.businessinsider.com/the-15-oiland-gas-pipelines-changing-the-worlds-strategic-map-2010-3?op=1 21 http://www.novinite.com/view_news.php?id=125422 http://www.cisoilgas.com/article/europes-natural-gas-futures/ 22 http://www.naturalgaseurope.com/south-stream-consent-provides-turkey-with-gas-discount-4248 23 http://www.sigurantaenergetica.ro/azerbaijan-will-decide-the-shape-of-the-southern-gas-corridor.html

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O ano de 2012 é também crucial para o Nabucco. Apesar de algumas análises pessimistas quanto ao seu futuro24, no final de 2011 (28 de Dezembro) foi anunciado que a Nabucco Gás Pipeline International GmbH will start the prequalification of potential EPC contractors in the first quarter of 2012.25 - South East Europe Pipeline (SEEP) É uma proposta da BP, apresentada em 24 de Setembro de 2011, para a construção de uma alternativa aos projectos do Corredor de Gás do Sul (no qual estão o Nabucco, o TAP e o ITGI), tendo em vista libertar a Europa da dependência energética russa. O comprimento do gasoduto ronda os 3.800 quilómetros, apoiando-se em 2/3 da sua extensão nos pipelines já existentes. A principal fonte de fornecimento de gás estaria localizada no Azerbeijão, no Shah Deniz gás field. A proposta da BP resultante do entendimento azeri-turco relançaria o Trans-Anatolian gás pipeline. - Trans-Anatolian gás pipeline, TAGP (projecto) Visa a chegada de gás do Azerbeijão à Turquia e desta para a Europa.26 - Trans-Caspian Gás (projecto) Visa fazer chegar o gás da Ásia central ao Mediterrâneo, atravessando inicialmente o Cáspio, seguindo depois o trajecto do BTC. Tem tido a oposição da Federação russa que dissuadiu já o Turquemenistão e o Cazaquistão de se associarem ao projecto.27 - Persian Pipeline (também conhecido por Pars Pipeline e Irão–Europa pipeline) Projecto de gasoduto com conclusão prevista para 2014, partindo de South Pars, no Irão, passando pelo Iraque e Síria com possibilidade de ligação ao gasoduto árabe.28 A opção nuclear iraniana não ajuda na concretização deste projecto, que poderia ficar associado ao Nabucco.

Nabucco is Dead http://blogs.euobserver.com/petersen/2011/11/17/nabucco-is-dead/ 25 http://www.nabucco-pipeline.com/portal/page/portal/en/press/NewsText?p_item_id=B52556 8A5C5E0136E040A8C001011BD0 26 Assinatura de acordo em Ancara em 26 de Dezembro de 2011, entre representantes do governo turco e azeri. Previsto vir a associar-se ao Nabucco. 27 Previsto vir a associar-se ao Nabucco. 28 O Irão assinou no final de Julho de 2011 um acordo com a Síria e o Iraque para a concretização do projecto. 24

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Pars pipeline29 - Arab gás pipeline Encontra-se em actividade a ligação do Egipto à Jordânia e Síria. A expansão do gasoduto árabe na direcção da Turquia, permitiria a ligação ao Nabucco e ao gasoduto iraniano.

Gasoduto árabe30

http://www.graphicnews.com/search/search.php?alertno=8700 http://www.businessinsider.com/the-15-oil-and-gas-pipelines-changing-the-worlds-strategicmap-2010-3?op=1 30 http://pipelinesinternational.com/news/gazprom_may_join_arabian_gas_pipeline/040698/# http://temi.repubblica.it/limes/lattentato-al-gasdotto-egiziano/19814?printpage=undefined 29

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- Blue Stream Pipeline de fornecimento de gás russo à Turquia.31 - South Stream32 Ai cair do pano de 2011 (29 de Dezembro), chega a notícia de que Rússia e Turquia acertaram os ponteiros sobre o gigantesco gasoduto South Stream, que levará energia russa ao sul da Europa, autorizando o trânsito pelo seu território.33 - White Stream O Irão como espaço de trânsito para o escoamento do gás vindo do Turquemenistão, com destino à Ucrânia.

White stream34 (2) - Eixo Norte Com origem no Irão, no fornecimento à Arménia e na expectativa de ligação à Ásia Central e Ásia Setentrional. Referências mais importantes: - Irão -Armenia gás pipeline 35 Inaugurado em 19 de Março de 2007. (3) - Eixo Leste Com origem no Irão, na expectativa de ligação à Ásia Central e China. Referências mais importantes: - Irão-Turquemenistão gasoduto (gasoduto Dauletabad-SarakhsKhangiran). O gasoduto de 182 quilómetros começou a bombear no início de 2010 Ver Ásia Setentrional no NGJE. Ver Ásia Setentrional no NGJE. 33 http://af.reuters.com/article/commoditiesNews/idAFL6E7NS0LU20111228 http://www.vermelho.org.br/go/noticia.php?id_secao=9&id_noticia=172370 34 http://wdict.net/gallery/white+stream/ 35 http://en.wikipedia.org/wiki/Iran-Armenia_Natural_Gas_Pipeline 31 32

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modestos 8 biliões de metros cúbicos (bmc) de gás turcomeno. Mas tem capacidade para bombear anualmente 20 bmc – com o que serão atendidas todas as necessidades da região do Cáspio iraniano.

Ligação energética Irão-Turquemenistão36 Os interesses dos dois lados estão em perfeita harmonia: Ashgabat consegue um mercado cativo, na porta ao lado; o norte do Irão pode consumir sem medo de racionamentos de inverno. Teerão passa a gerar excedentes para exportar; o Turquemenistão pode buscar vias de exportação para o mercado mundial, via Irão e este pode aspirar a extrair vantagens da sua excelente localização geográfica, como eixo para as exportações turcomenas.37 (4) - Eixo Sul Com origem no Irão ou noutros actores produtores de gás do Próximo/Médio Oriente na expectativa de ligação à Ásia meridional e à China (via Irão-Paquistão). Alguns dos projectos para este eixo que privilegia a saída pelo Estreito de Ormuz no Golfo Pérsico pode oferecer transportes mais económicos para o trânsito do gás. Referências mais importantes: - Irão-Paquistão-Índia, IPI (gasoduto) Este projecto está sob forte pressão dos EUA e seus aliados ocidentais face à situação de hostilidade existente com o Irão, objecto de sanções económicas. 36 37

http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16317 Os novos caminhos da seda na Ásia http://geopoliticadopetroleo.wordpress.com/2010/08/13/geopolitica-da-asiacentral-das-disputas-tradicionais-aos-projetos-de-integracao-regional/

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IPI38 internacionais de natureza política e económica. Em alternativa é apresentado e apoiado o projecto TAPI (TurquemenistãoAfeganistão-Paquistão-India). - Irão-Paquistão-China (gasoduto)39 - Encontra-se em estudo.

Potenciais escoamentos de gás natural40 http://www.businessinsider.com/the-15-oil-and-gas-pipelines-changing-the-worlds-strategic-map2010-3?op=1 http://blogofbao.wordpress.com/category/guerre/ http://neftegaz.ru/en/news/view/100859 http://www.eoearth.org/article/Energy_profile_of_Iran http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=16932 39 Também está em estudo a ligação Irão-Afeganistão-China. 40 http://geopoliticadopetroleo.wordpress.com/2010/08/13/geopolitica-da-asia-central-das-disputastradicionais-aos-projetos-de-integracao-regional/ 38

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- Irão-Turquia (gasoduto) - Irão-Arménia (gasoduto) Em funcionamento desde 2008. - Irão-Arménia (oleoduto) Em estudo. c. Potencialidades O Próximo e Médio Oriente tem como potencialidades no NGJE as que derivam da valorização do território turco para o escoamento da energia para o Mediterrâneo e para a Europa do Sul e bem assim as garantias de segurança energéticas oferecidas pelo dispositivo da OTAN, em situação de crise. Apesar da estratégia ocidental privilegiar o corredor turco para chegar ao Mediterrâneo e à Europa do Sul, o mesmo objectivo está presente nas iniciativas russas, antecipando-se à fita do tempo da energia da União Europeia. No balanceamento energético, o Próximo e Médio Oriente o NGJE trouxe a abertura de um corredor de petróleo (TBC) para o Mediterrâneo e Sul da Europa e o equacionamento para o mesmo espaço da abertura de um corredor de gás (Nabucco), para o qual também concorre a própria Federação russa (via South Stream). Não menores potencialidades são as que tem por protagonista o Irão desde que liberto do seu enredo nuclear e, bem assim o Qatar, no Golfo Pérsico. O Próximo e Médio Oriente através do NGJE surge como um terminal da Transcaucásia e da Ásia Central, numa forma de balanceamento de poder energético Leste-Oeste e também Norte-Sul. d. Vulnerabilidades No NGJE são consideradas vulnerabilidades: - todas as situações propícias à erupção de instabilidade que têm origem no tempo da guerra fria (conflito israelo-palestiniano) e no pós-guerra fria (conflito iraquiano); - a situação de instabilidade política que se tem vindo a acentuar depois da eclosão da revolução islâmica de 1979, no Irão, agravada com a desconfiança acumulada em relação à sua opção nuclear; - o congestionamento e insegurança do tráfego pelos Estreitos do Bósforo e Dardanelos;

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No Bósforo41 - igualmente crítica a passagem pelo Estreito de Ormuz, entre outros.

Estreito de Ormuz42 -exteriorização de jogos de guerra e de ameaças recíprocas; -… ***

41 42

http://www.eia.gov/cabs/World_Oil_Transit_Chokepoints/Full.html http://www.eia.gov/cabs/World_Oil_Transit_Chokepoints/Full.html Ver a ameaça iraniana sobre o Estreito de Ormuz em: http://www.businessweek.com/news/2011-12-28/oil-declines-from-six-week-high-as-iraniansupply-concerns-ease.html As receitas das exportações de energia representam cerca de 80% a 90% do PNB. Igualmente o orçamento iraniano vive de 50% das receitas da energia.

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3. A Transcaucásia no NGJE É bem diferente o papel desempenhado pelos três actores principais da Transcaucásia no NGJE: o Azerbeijão, ribeirinho do Mar Cáspio como produtor energético de gás e petróleo; a Geórgia, como espaço de escoamento da energia do Azerbeijão para o Mar Negro (e Mediterrâneo) ou para a Turquia (e Mediterrâneo); a Arménia, enclausurada entre o Azerbeijão, a Geórgia, o Irão e a Turquia, refém de conflitos históricos ainda não ultrapassados, especialmente com a Turquia (genocídio arménio em 1915) e Azerbeijão (conflito de Nagorno Karabakh). Passam pela Transcaucásia as iniciativas europeias e dos EUA de libertar a própria Europa de uma dependência exclusiva do escoamento energético via Gazprom(Federação russa), ao mesmo tempo que a Federação russa não prescinde de afirmar a influência no seu estrangeiro próximo e de recuperar algum peso do tempo soviético. a. Produção A Transcaucásia participa com as seguintes formas de energia no NGJE: (1) - Gás: Azerbeijão (2) - Petróleo: Azerbeijão A principal origem da produção situa-se actualmente em Baku e suas imediações, donde partem quatro pipelines. b. Escoamento São potenciais candidatos para o escoamento da energia do Azerbeijão, adentro dos quatro principais eixos de referência indicados: (1) - Eixo Oeste

Pipelines com origem em Baku43 43

http://en.wikipedia.org/wiki/File:Baku_pipelines.svg

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(a). Via Geórgia e Federação russa, na direcção do Mar Negro. Referências mais importantes: - Baku–Novorossiysk (oleoduto) Este oleoduto vai de Baku a Novorossisk, porto russo no Mar Negro. Construído em 1997 sempre funcionou irregularmente por causa de problemas nos pagamentos e porque atravessa áreas instáveis politicamente. - Baku–Supsa (oleoduto) Este oleoduto liga Baku a Supsa, porto georgiano no Mar Negro, passando por Tbilissi, capital da Geórgia. Foi construído em 1999. O crude é transportado em petroleiros tendo duas vias para chegar à Europa: via marítima, passando pelos estreitos do Bósforo e Dardanelos ou via terrestre, com início nos portos romenos, ucranianos ou búlgaros do Mar Negro. A via marítima tem a desvantagem de dar muito peso à Turquia, aliado ao facto de o trânsito nos Estreitos se encontrar muito sobrecarregado e não ser isento de perigos de acidentes (ambientais ou terroristas). (b). Via Geórgia-Turquia, na direcção do Mediterrâneo. Referências mais importantes: - Baku–Tbilisi–Ceyhan (oleoduto) - Baku-Tbilisi-Erzurum ou South Caucasus Pipeline (gasoduto)44 - Trans-Caspian Gás (projecto)45 - Trans-Anatolian gás pipeline (projecto)46 - Nabucco (gasoduto)47 Neste projecto da iniciativa da UE, visando uma alternativa à dependência do fornecimento russo à Europa, a Transcaucásia está presente através dos fluxos energéticos do Azerbeijão e da sua eventual ligação à Ásia central. (c). Via Geórgia, Ucrânia, Europa Proposta da Ucrânia, em 2005, de construção de um gasoduto, apresentandose também como alternativa aos escoamentos do Cáspio. Expectativa de entrar em funcionamento em 2012 (1ªfase) e na totalidade (2ªfase) em 2015, com a expectativa de escoar também gás do Irão e do Turquemenistão. Referência mais importante: - White Stream Geórgia-Ukraine-EU gás pipeline

Encerrado em 13 de Agosto de 2008, por razões de segurança. Ver Próximo e Médio Oriente no NGJE. 46 Ver Próximo e Médio Oriente no NGJE. 47 Ver Próximo e Médio Oriente no NGJE. 44 45

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Whitestream48 (2) - Eixo Norte Via Federação russa, na direcção do Norte da Europa, apoiando-se na rede de escoamento do gás do tempo da Ex-URSS. Esta via seria mais uma forma da Federação russa absorver o controle do gás do Cáspio. Referências mais importantes: - Baku-Novo-Filya gás pipeline Ao logo do Mar Cáspio para as Repúblicas russas do Norte do Cáucaso. Em actividade desde 1 de Janeiro de 2010. (3) - Eixo Leste Via países da Ásia Central (Cazaquistão, Turquemenistão, Uzbequistão) na direcção da China e Pacífico. Projecto em estudo. (4) - Eixo Sul Para o abastecimento de energia à Arménia. Referências mais importantes: - Rússia-Geórgia-Armenia (North-south gás pipeline) No passado provinham da Rússia os fornecimentos de petróleo, utilizando o caminho-de-ferro via Azerbeijão. O embargo imposto pelo Azerbeijão à Arménia em virtude do conflito de Nagorno-Karabakh interrompeu o seu fornecimento, 48

http://pipelinesinternational.com/news/white_stream_considers_georgian_link/040569/# http://wdict.net/gallery/white+stream/

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situação agravada pela instabilidade na fronteira russo-georgiana. A alternativa de fornecimento, quer em gás, quer em petróleo vem do Irão, competindo com a Gazprom. O Azerbeijão e a Arménia são também vias de escoamento na direcção do Irão, Golfo Pérsico e Índico (fase de projectos). c. Potencialidades O espaço da Transcaucásia está na mira dos principais consumidores energéticos mundiais, numa disputa de influências que permite aos seus actores diversificarem e rentabilizarem quer a produção, quer o espaço de escoamento da energia. Aqui se centram as estratégias ocidentais (EUA, UE, …) de retirar protagonismo e liderança à Federação russa a nível do escoamento do gás (Nabucco, White Stream, …), seguindo a bem sucedida iniciativa a nível do escoamento do petróleo (via BTC). d. Vulnerabilidades Resultantes das situações de instabilidade que têm origem no próprio desmembramento da URSS, com o apoio da Federação russa a tendências separatistas na Geórgia; idem situação de conflito entre a Arménia e o Azerbeijão, a que não são alheios os enclaves de cada um deles no território do outro. A inserção dos actores regionais num enredo geopolítico e geoeconómico que os ultrapassa, com contornos de nova guerra fria.49 A hostilidade da Rússia face a qualquer pretensão de isolamento do seu vizinho próximo, em especial a sua influência sobre Yerevan, dados os laços históricos entre russos e arménios e a sua herança cristã ortodoxa. ***

49

O corredor euroasiático: A geopolítica dos pipelines e a nova guerra fria por Michel Chossudovsky (http://resistir.info/chossudovsky/geopolitica_pipelines_p.html)

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4. A Ásia central no NGJE A Ásia central está presente no NGJE enquanto espaço de irradiação e de passagem obrigatória para a maior parte dos pipelines energéticos e enquanto produtora de gás e petróleo.50 O facto de dois dos seus actores principais terem fronteiras com o Mar Cáspio (Cazaquistão e Turquemenistão), com todas as suas potencialidades que daí decorrem, confere à Ásia central um papel de pivot fundamental, qual heartland da energia51. a. Produção A Ásia Central participa com as seguintes formas de energia no NGJE: (1) - Gás: Cazaquistão, Uzbequistão e Turquemenistão.52 (2) - Petróleo: Cazaquistão e Uzbequistão Central Asia and the Trans-Caucasus: Proven Oil Reserves, 2003 Country Kazakhstan Turkmenistan Uzbekistan

Reserves (bn bbl) 9.0 0.6 0.6

Reserves Remaining (years) 24 8 10

Central Asia and the Trans-Caucasus: Proven Gas Reserves, 2003 Country Reserves Reserves Remaining (trillion cf) (years) Kazakhstan 65.0 133 Turkmenistan 71.0 34 Uzbekistan 66.2 32 Source: OET Annual Statistical Review, 2003

Reservas em petróleo e gás53

b. Escoamento O escoamento da energia dos países da Ásia central está completamente dependente de terceiros, uma vez que se trata de actores encravados sem ligação directa ao exterior. Acresce que herdaram uma total dependência das infraestruturas russas canalizadas para a ex-Europa soviética ou para a Europa de Leste. Apesar da liberdade de acção dos actores ter passado a ser maior, os custos da procura de alternativas não são menores, a par da forte competição de que passaram a ser alvos. http://www.emergingmarketsforum.org/papers/pdf/2010_EMF_Eurasia_Olcott_Oil_and_Gas_ Reserves.pdf 51 http://www.lesmanantsduroi.com/articles2/article32398.php 52 Quirguizistão e Tajiquistão, em menor quantidades. 53 http://www.oilandenergytrends.com/ger/ger_asia.asp#1 50

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Os pipelines para o escoamento do petróleo partem todos do Cazaquistão e são principalmente seis. Os gasodutos são três e partem do Turquemenistão. (1) - Eixo Oeste Na direcção da Federação russa, Mar Cáspio, Mar Negro, Mar Mediterrâneo e Europa. Referências mais importantes: - Cazaquistão- Novorossisk oleoduto

Tengiz – Novorossiysk pipeline 54 Apoio na rede russa da Gazprom. Em actividade desde 2001.55 - Turquemenistão-Azerbeijão gasoduto - Trans-Caspian Gás Pipeline (TCGP) Projecto de oleoduto (sob o Cáspio), que garantiria a ligação ao gasoduto BTC. Teve a oposição da Federação russa.56

http://energetyka.com.ua/kaspijskij-truboprovidnij-konsorcium.html http://pipelinesinternational.com/news/tengiz_novorossiysk_pipeline_expansion_works_ commence_this_month/011785/# 55 The founding governments of the CPC are Russia (24%), Kazakhstan (19%), and Oman Sultanate (7%). Private shareholders of the CPC are Chevron Caspian Pipeline Consortium Company (15%), LUKARCO B.V. (12,5%), Rosneft-Shell Caspian Ventures Ltd (7,5%), Mobil Caspian Pipeline Company (7,5%), Agip International N.V. (2%), BG Overseas Holding Ltd (2%), Kazakstan Pipeline Ventures LLC (1.75%) and Oryx Caspian Pipeline LLC (1,75%).(http://www.azerbaijantoday.az/ ARCHIVE/13/economics6.html) 56 http://www.upstreamonline.com/live/article123733.ece Com a assinatura de um acordo em 12 de Maio de 2007 entre a Rússia, o Cazaquistão e o Turquemenistão para o escoamento do gás através da Rússia, o TCGP ficou ultrapassado. 54

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TCGP57 - White Stream (gasoduto)58

White Stream com ligação à Ásia central59 (2) - Eixo Norte Na direcção da Federação russa. Referências mais importantes: - Cazaquistão-Samara oleoduto60 Inserção na rede russa da Gazprom. (3) - Eixo Leste Na direcção da China (RPC) e Pacífico. Esta via apoiada especialmente pela China, que deseja diminuir a sua dependência do Médio Oriente e de África, pode vir também a beneficiar todo o nordeste asiático. Permite também aliviar a dependência directa da RPC em relação à Rússia. http://eurasianenergyanalysis.blogspot.com/ Ver Próximo e Médio Oriente, eixo oeste. 59 http://wdict.net/gallery/white+stream/ 60 http://www.condensat.kz/our-region.html?&L=2 57 58

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Referências mais importantes: - Turquemenistão- Uzbequistão- Cazaquistão- China (gasoduto) Tem a sua génese no acordo de fornecimento de gás à China assinado e ratificado em 2007 pelo Cazaquistão e Turquemenistão. O pipeline tem a extensão de 200 km no Turquemenistão, 550 km no Uzbequistão, 1 300 km no Cazaquistão e 8 000 km na China. Mais tarde, em Setembro de 2011, a China assinou um novo acordo com

A Ásia central na ligação à China61 o Cazaquistão para aumentar em 80% o fornecimento de gás previsto nas negociações de 2007. Um acordo do mesmo tipo envolveu o Turquemenistão, que já tinha feito os primeiros fornecimentos de gás à China em 2009. O pipeline da Ásia central para a China está previsto estar em pleno funcionamento em 2014.62 - Cazaquistão–China oleoduto63 Este oleoduto leva a energia do Cáspio até à China numa extensão de cerca de 3.000 km, tendo começado a ser estudado em 1997.

http://mergersandacquisitionreviewcom.blogspot.com/2011_02_24_archive.html http://www.businessnewskazakhstan.com/2011/09/china-and-kazakhstan-signed-gaspipeline-agreement/ http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=9907 62 http://www.istockanalyst.com/article/viewiStockNews/articleid/3695920 http://www.businessnewskazakhstan.com/2011/09/china-and-kazakhstan-signed-gaspipeline-agreement/ http://www.naturalgasasia.com/new-great-game-in-old-central-asia-3925 63 http://en.wikipedia.org/wiki/Kazakhstan%E2%80%93China_oil_pipeline 61

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Oleoduto Cazaquistão-China A construção da primeira secção foi completada em 2003 e em 1 de Janeiro de 2006, depois da construção de 1000 km de pipelines, chegavam os primeiros fornecimentos à rede energética chinesa.64 (4) - Eixo Sul Na direcção do Irão, Afeganistão, Paquistão e Índia. Qualquer das referências indicadas estão envoltas pela conjuntura regional da ameaça nuclear iraniana e das sanções internacionais que têm vindo a aumentar por pressão dos EUA (AIEA, UE, Israel, …), com reflexo nas iniciativas económicas iranianas. Referências mais importantes: - Turquemenistão-Irão (gasoduto) Entrou em actividade em 2010, para fornecimento de gás ao Irão65, numa demonstração de capacidade de manobra do regime iraniano na sua ligação à Ásia central. - Cazaquistão-Turquemenistão-Irão (oleoduto) Como projecto sob a iniciativa do Irão. - Turquemenistão-Afeganistão-Paquistão-Índia ou Trans-afegão gasoduto (gasoduto).

http://en.wikipedia.org/wiki/File:Kazakh-China_Pipeline.PNG http://www.sras.org/geopolitics_of_oil_pipelines_in_central_asia http://www.chinapage.com/transportation/pipeline/pipeline.html 65 http://www.irantracker.org/foreign-relations/turkmenistan-iran-foreign-relations http://www.jamestown.org/programs/edm/single/?tx_ttnews%5Btt_news%5D=35892&tx_ ttnews%5BbackPid%5D=484&no_cache=1 64

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TAP/TAPI66 As opções entre os pipelines TAP/TAPI (Turquemenistão, Afeganistão, Paquistão e Índia) e o IPI (Irão Paquistão Índia) decorrem do conflito com o Irão e da sua opção nuclear. c. Potencialidades São consideradas potencialidades a possibilidade dos actores produtores de energia estarem presentes igualmente em todos os eixos de escoamento, aumentando assim a sua capacidade de manobra face à procura externa. São regimes com economias em expansão favoráveis ao investimento, com projectos em execução ou planeados para todos os eixos de escoamento, em especial para sul e para leste (aqui com elevadíssimos índices de crescimento, China, Coreia do sul e Japão). A garantia de segurança presente na SCO (Shanghai Cooperation Organization) a que os países da Ásia central pertencem, juntamente com a China e Rússia. d. Vulnerabilidades O facto de a independência política destes actores saídos do desmoronar da URSS não se traduzir em independência económica. Apesar da sua riqueza, dependem muito do exterior a nível de infraestruturas e de investimento para a exploração das suas jazidas. São países encravados, e como tal dependem de terceiros para ter acesso 66

Em 30 de Maio de 2002 os presidentes do Turquemenistão, Afeganistão e Paquistão chegaram a acordo para levar à prática o TAP. Como o Irão também tinha um projecto de fornecimento de gás para os mesmos países, inicia-se uma feroz competição entre ambos os projectos, a que não é alheia a oposição dos EUA a qualquer apoio ao projecto do Irão. http://tapister.wordpress. com/2011/11/25/the-politics-of-gas-pipelines-in-asia/ http://www.policyalternatives.ca/doc...ubled_Land.pdf

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ao mar, ao exterior, aos principais mercados. As dificuldades de estratégias de cooperação entre todos os actores estão evidenciadas no desaparecimento progressivo do mar Aral, servido por redes hidrográficas que envolvem todos os países da Ásia Central. Apontados ainda deficits democráticos, com democracias pouco consolidadas e as acções de células terroristas pouco controladas, pelo que actos de sabotagem são um perigo constante. Países como o Tadjiquistão (muito pouco desenvolvido e com ligações estreitas com o Irão em virtude da influência xiita) e o Uzbequistão (um melting pot de etnias e religiões) não são considerados actores fiáveis. A sua inserção na luta contra o terrorismo internacional está longe de trazer a pacificação regional. *** 5. A Ásia setentrional no NGJE A Federação russa pela sua dimensão é o maior país do mundo e tem a 6ª maior população. É herdeira da URSS e como tal tem a responsabilidade de fazer a transição pacífica e económica do país, garantindo as suas zonas de influência, o seu estrangeiro próximo. Continua a ser uma potência nuclear e a ter um poder significativo a nível internacional. É responsável pela transição de uma economia planificada para uma economia de mercado; é responsável pela consolidação democrática do país. Enfrenta os desafios da sua própria identidade. É ainda um país instável, ao ritmo dos avanços e recuos das suas transições política, económica e das flutuações da sua própria identidade cultural. A Rússia encontra-se numa situação de privilégio no NGJE67. Por isso mesmo e apesar de algumas vulnerabilidades do próprio regime de cariz acentuadamente autoritário, tenderá a continuar a usar o factor energia para a cobrança evidente de dividendos políticos. O fim da guerra fria representou para a Rússia o fim do conflito ideológico mas também um aumento do espaço de manobra quer a nível de espaço internacional, quer na capacidade de acesso ao exterior. A Rússia destaca-se no NGJE, assumindo-se como o pivot do NGJE pela importância dos seus recursos naturais a nível mundial. A Rússia é não só um jogador fundamental na região pelas suas dimensões e pelo potencial de abastecimento a outros blocos económicos como também é o maior produtor mundial de gás natural.

67

http://www.eoearth.org/article/Energy_profile_of_Russia

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a. Produção A Ásia Setentrional participa no NGJE com a oferta de gás e petróleo para os mercados, em duas áreas: - Sibéria:

Reservas de gás e petróleo68 - Ilha Sacalina

Ilha Sacalina69 http://www.gazprom.com/production/reserves/ http://eng.gazpromquestions.ru/?id=9 69 http://www.gazprom.com/production/projects/pipelines/shvg/ 68

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(1)- Gás A Rússia tem actualmente a maior reserva mundial de gás natural.70 A sua produção está dispersa por todo o território, ainda que as maiores jazidas se encontrem na zona da Sibéria/Montes Urais e a norte do mar Cáspio. O mercado global de gás natural inclui também a rede de pipelines (gasodutos) e o Gás Natural Liquefeito (LNG).

O mercado global de gás natural71 A Federação russa lidera a defesa dos países exportadores de gás através do Gás Exporting Countries Forum (GECF)72 criado em 2001. (2) - Petróleo A Rússia é o segundo exportador de petróleo a seguir à Arábia saudita, encontrando-se fora do âmbito da OPEP, com quem assinou apenas um memorandum de cooperação. A sua produção está dispersa por todo o território, ainda que as maiores jazidas se encontrem na zona da Sibéria/Montes Urais e a norte do mar Cáspio.

http://eng.gazpromquestions.ru/?id=9 http://en.rian.ru/infographics/20100426/158748785.html 72 http://news.windowstorussia.com/friends-in-gas.html 70 71

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b. Escoamento A Rússia dispõe da mais vasta rede de infra-estruturas de pipelines do mundo, ligando o espaço euro-asiático e interligando as sub-regiões asiáticas (de este a oeste, de norte a sul). De salientar que apesar desta vasta rede de infra-estruturas repousar no velho espaço soviético, a Rússia, mercê da acrescida capacidade de manobra dispõe de outras alternativas como aquela que se insere na construção de uma ligação ao Báltico para tornear eventuais dificuldades de alguns países ao escoamento da sua energia (Ucrânia ou Bielorrússia). O enorme espaço euro-asiático da Rússia é de enorme importância na diversificação das suas relações com o exterior, potenciando assim o negócio da distribuição da energia. (a) - Eixo Oeste Escoamento energético na direcção do Mar Negro, Mar Mediterrâneo e Europa do Sul. Referências mais importantes: - Blue Stream Também denominado Gasoduto do Mar Negro. Encontra-se activo desde 2010, suprindo as necessidades em gás da Turquia e evitando a influência do trânsito por outros países.

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Gasoduto do Mar Negro73 - South Stream

Projecto do South Stream74 O South Stream é um gasoduto proposto em 2007 para o transporte de gás natural da Rússia até ao Mar Negro, atravessando a Bulgária até Itália e Áustria. O projecto, em parte substituirá a prevista ampliação do Blue Stream que vai da Turquia através da Bulgária e Servia até à Hungria e Áustria, é visto como rival do Gasoduto Nabucco. Previsto estar concluído em 2015. 75 In http://en.wikipedia.org/wiki/Blue_Stream http://en.wikipedia.org/wiki/File:Southstream.png http://www.businessinsider.com/the-15-oil-and-gas-pipelines-changing-the-worlds-strategicmap-2010-3?op=1 http://www.naturalgaseurope.com/south-stream-consent-provides-turkey-with-gasdiscount-4248 75 Atendendo à competição que se verifica nesta região do Mar Negro envolvendo outras iniciativas de escoamento de gás (White Stream e Nabucco) o governo russo ordenou à Gazprom a antecipação de um ano para o início da construção do novo gasoduto, ou seja, até final de 2012. A Ucrânia é também uma grande opositora do projecto por verificar que existe uma estratégia da Federação russa em tornear o seu território no acesso à Europa, quer a norte (via North Stream), quer a sul (via south Stream). 73 74

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Ai cair do pano de 2011 (29 de Dezembro), Rússia e Turquia acertaram os ponteiros sobre o gigantesco gasoduto South Stream, que levará energia russa ao sul da Europa, autorizando o trânsito nas suas águas territoriais.76 - Oleoduto Baku-Novorossiysk77 Levanta problemas de segurança na passagem pela Chechénia e Daguestão. (b) - Eixo Norte Escoamento energético na direcção do Norte da Europa, evitando o trânsito por outros países. Referências mais importantes: - North Stream

Northstream78

(c) - Eixo Leste Referências mais importantes:

ESPO pipeline para o Espaço chinês e Nordeste asiático79 (http://www.naturalgaseurope.com/putin-orders-south-stream-construction-to-startin-2012-4245) 76 http://af.reuters.com/article/commoditiesNews/idAFL6E7NS0LU20111228 http://www.vermelho.org.br/go/noticia.php?id_secao=9&id_noticia=172370 77 A Federação russa presente através da Transneft, empresa estatal russa de petróleo. 78 http://en.wikipedia.org/wiki/Nord_Stream 79 http://garizo.blogspot.com/2009/04/russian-oil-pipeline-to-reach-chinese.html

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Na direcção da península coreana, Japão, Taiwan, Pacífico - East Siberia-Pacific Ocean (ESPO) pipeline80

ESPO pipeline para a península coreana81 A descoberta de vastas reservas de petróleo e de gás na Ilha Sacalina e a sua exploração a partir de 2005, veio ainda aumentar mais as expectativas russas de projecção de poder para o Pacífico. Também o Árctico cria enormes expectativas de exploração das jazidas energéticas ali existentes para as quais já se disponibilizam os cinco países 80

81

A extensão do oleoduto Sibéria-Pacífico até agora é de 2.757 km. Mas, em 2013, quando a sua construção estiver totalmente concluída, aumentará para 4.070 km, tornando-se o maior oleoduto do mundo. E dos portos russos do Pacífico, o governo de Moscovo poderá entregar petróleo praticamente na porta ao Japão e à Coreia do Sul, além da China, enquanto, paralelamente, terá acesso aos mercados do Sudeste Asiático (Vietname, Tailândia, Malásia e outros). A construção de um oleoduto de 4.070 km como o Espo é uma obra caríssima. O custo total é calculado em torno de US$ 25 bilhões, financiado totalmente pelo governo russo, a exemplo de todos os demais oleodutos e gasodutos operados e administrados pela gigantesca empresa estatal russa Transneft. Obviamente, trata-se de investimento de elevado lucro. Em troca do prolongado acordo de fornecimento para China de 300 milhões de toneladas de petróleo durante os próximos 20 anos, o governo chinês concederá à Transneft e à igualmente empresa estatal russa Rosneft empréstimos totalizando US$ 25 bilhões, pagando praticamente adiantado o petróleo que receberá ao longo de 20 anos. O excelente clima de cooperação sino-russa por causa do início do fornecimento de petróleo fez com que, China e Rússia iniciassem negociações para entrega de gigantescos volumes de gás natural russo à China. Está já em negociação a entrega para China, durante os próximos oito anos, de 70 biliões de metros cúbicos de gás natural anualmente, volume que representa a metade do gás natural exportado pela Rússia à Europa. http://news.windowstorussia.com/russia-is-tying-the-korea%E2%80%99s-by-gas%E2%80%A6.html

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ribeirinhos, através de sucessivas reuniões inter-governamentais82. - Na direcção da RPC - East Siberia-Pacific Ocean (ESPO) pipeline, com um ramal da refinaria russa de Skovorodino para Mohe County (Mòhé Xiàn) e refinaria de Daqing, na província chinesa de Heilongjiang. A Rússia espera ganhar anualmente 57 biliões de rublos ($1.8 bln) com a exportação de petróleo para a China. O oleoduto lançado em 1 de Janeiro de 2011, transporta 300 mil barris de petróleo por dia para a China, enquanto outros 300 mil barris são levados via linha ferroviária para o porto russo de Kozimo83.

ESPO pipeline84 A Rússia, através do gasoduto Sibéria-Pacífico, já detém o mercado da Ásia, reduzindo a sua dependência dos mercados consumidores da Europa. Também a China promove, metodicamente, a sua independência do petróleo do Médio Oriente, o qual é controlado politica e militarmente pelos EUA. Já o Irão, sob a pressão do bloqueio norte-americano, desliga-se, gradualmente, dos mercados do Ocidente e promove o seu petróleo cada vez mais para a Ásia China, Japão, Paquistão e outros - operação esta que garante o abastecimento da Ásia por fontes não controláveis pelo Ocidente. (d) - Eixo Sul Participação das empresas estatais russas (Gazprom e da Transneft) nas iniciativas para o escoamento energético para o Golfo Pérsico e Índico. Apoio à Arménia com quem mantem ligações históricas. Uma comissão da ONU está a analisar as questões de soberania no Árctico e espera-se que apresente as suas conclusões até 2020. Cinco países com costas no oceano Árctico (Canadá, Dinamarca, Noruega, Rússia e Estados Unidos) disputam a soberania destas águas. 83 Acordo a vigorar durante 20 anos. 84 http://seekingalpha.com/article/181963-russia-s-new-energy-economy-looks-east http://windowonheartland.blogspot.com/2011_01_01_archive.html 82

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Referências mais importantes: - Rússia-Geórgia-Arménia (North-south gás pipeline) (e) - A Federação russa e o Sudeste asiático A Federação russa pode chegar ao Sudeste asiático não só a sua própria energia como também os seus próprios investimentos via Gazprom.85 c. Potencialidades A vasta rede de pipelines e gasodutos. A nível da sua balança comercial, a Rússia tem mostrado grande capacidade exportadora, tendo tido resultados significativos dessa sua actividade através do NGJE, tendo paralelamente o seu próprio consumo energético interno vindo a aumentar e a diversificar-se. As capacidades da Rússia estão presentes na assinatura de novos acordos com o Cazaquistão, com o Turquemenistão e com o Uzbequistão. Especialmente importantes são as relações entre a Rússia e o Cazaquistão que vão muito para lá da área energética (Cosmódromo de Baikonur!...). Surge também como potencialidade o projecto apresentado por Putin de tornar o rublo convertível em outras moedas de importância como o euro e usar assim o rublo nas suas transacções de petróleo a nível internacional e neste sentido transferir parte das suas consideráveis reservas em dólares para outras moedas. A Rússia só depende dela própria relativamente à gestão dos seus próprios recursos, relativamente à defesa dos seus interesses vitais e até na ponderação dos interesses vitais dos outros actores. Através da capacidade de diversificação da sua rede de distribuição de energia ao exterior a Rússia pode facilmente libertar-se da dependência do fornecimento numa única direcção. Também a dependência de terceiros do seu território é notável, em especial as Ex-Repúblicas soviéticas da Ásia central que retribuem na mesma moeda ao colocarem os seus territórios à sua disposição para a exportação de energia soviética para o Sul da Ásia. O apoio privilegiado no Cazaquistão para ponte para a Ásia central e/ou China. … d. Vulnerabilidades A elevada dependência das receitas provenientes das vendas das suas matérias-primas energéticas. A economia russa sofre de uma forte dependência das exportações de gás natural e de petróleo, tornando-se vulnerável às flutuações dos preços do 85

Desde agosto de 2007 a Gazprom tem celebrado contratos com empresas estatais vietnamitas para a exploração, produção e a comercialização de hidrocarbonetos no offshore do Vietname. (http://eng.gazpromquestions.ru/?id=2#c540)

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mercado da energia (As receitas provenientes da energia correspondem a 40% do PNB). Vulnerabilidades na Ciscaucásia, na fronteira do Cáucaso devido à crise chechena, situação do Daguestão e às difíceis relações com a Geórgia. A concorrência ocidental não só no Médio Oriente, mas também na Transcaucásia e na Ásia Central concorrem para fragilizar o anterior predomínio vindo da herança soviética. A estratégia dos EUA e a reboque a OTAN e a UE contribuíram para alterar os equilíbrios geopolíticos e geoeconómicos anteriores, especialmente depois do 11 de Setembro. A drástica alteração política no espaço russo não foi acompanhada no entanto de imediatas alternativas de natureza económica, pelo que as antigas estruturas de escoamento energético continuaram a valorizar o espaço russo e o controle dos pipelines. Paulatinamente a situação tem vindo a mudar por iniciativa dos novos actores, adentro das enormes mudanças proporcionadas pela independência dos actores da Transcaucásia e Ásia Central. Os acontecimentos do 11 de Setembro com a projecção de novos poderes e influências para estas regiões contribuíram para a aceleração das grandes mudanças em curso de natureza geopolítica ou geoeconómica. *** 6. O Espaço chinês no NGJE O Espaço chinês não foi beneficiado a nível de recursos energéticos fósseis na proporção das suas necessidades e em especial do ritmo de crescimento que se tem verificado no período contemporâneo. Um dos maiores desafios de natureza económica da RPC relaciona-se com a sua carência em recursos energéticos o que a obriga a entrar no Novo Grande Jogo da Energia, no espaço da antiga Rota da seda terrestre, agora transformada em Rota do gás e petróleo. Não menos significativa é a sua actividade ao longo da Rota da seda marítima para garantia da segurança dos fornecimentos energéticos. No Novo Grande Jogo da Energia a China quererá inserir-se também na estratégia de fornecimento de energia ao Nordeste asiático e países da ÁsiaPacífico, beneficiando do escoamento do gás e petróleo através do seu território. O espaço chinês é extraordinariamente carente de energia a que não é alheio o seu elevado ritmo de crescimento económico, especialmente na RPC. Apesar de a RPC poder encontrar alguns dos recursos energéticos de que necessita em África e na América Latina, é no entanto na Ásia que concentra a sua atenção, no Médio Oriente em geral e, em particular, no espaço dos produtores

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ligados ao NGJE.86 Quanto à RC (Taiwan), o seu grau de dependência dos fornecimentos energéticos, ainda é mais significativo, compensado pela sua capacidade transformadora e com o recurso à energia nuclear. a. Produção/Consumo A capacidade de produção energética é cada vez mais deficitária face ao seu continuado ritmo de crescimento económico. (1) - Gás87 Uma das principais fontes de produção de gás natural da RPC encontra-se em Xinjiang, na bacia de Tarim, chegando ao litoral através de um gasoduto com 4.000 quilómetros de extensão88. A produção está muito aquém das necessidades de consumo89, pelo que tem de ser colmatada pelo recurso à importação nas suas principais modalidades de oferta: - via gasoduto, das fontes de produção até ao território chinês;

China: Its geostrategy and energy needs Testimony presented to: The US-China Economic and Security Review Commission By Dr. Constantine C. Menges Senior Fellow, Hudson Institute, October 30, 2003 (http://www.uscc.gov/hearings/2003hearings/written_testimonies/031030bios/ mengesremarkscontents.htm) 87 Em 29 de Dezembro de 2011 teve já início na RPC a exploração de uma nova fonte de produção de gás não convencional, o gás de xisto (shale gás), prevendo-se estar operacional dentro de 4 a 5 anos. 88 Chinese On shore Gás Reserves: Songliao basin, Sichuan basin, Junggar basin, Tarim basin and Ordos basin. Chinese Offshore Gas Reserves: Bohai bay, Yinggehai basin, East China Sea basin and Sichuan basin. The Sichuan basin, which was discovered in 2007, has gas reserves of 3.8 trillion cubic meters. To meet the increasing demand at home, the construction of the connection of the Central Asia gas pipeline and the second east-west gas pipeline was started in 2008 and is slated to be completed by the end of 2009. The annual capacity of these pipelines will be 30bcm. Gas giant CNPC expects to start another gas pipeline of 21,000 kms by 2015. The pipeline will cover the major regions of the country. Moreover, two more gas pipelines will be in operation by 2011, according to the 2006 Russia-China deal, signed by Gazprom and CNPC. In http://www.economywatch.com/world_economy/china/gas.html 89 China has more than 550 oil and gas fields. (http://hslu.wordpress.com/2009/09/08/status-of-oil-industry-in-china-and-taiwan-part-ii/) 86

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Oeste-Este pipelines90 - através do transporte de gás natural liquefeito (LNG).

O Espaço chinês na importação de LNG91 90 91

http://sinomania.blogspot.com/2009_12_01_archive.html http://www.arcticgas.gov/Asia-tight-link-between-oil-gas-prices

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(2) - Petróleo Até à década de 90 a produção interna na RPC chegava para o seu próprio consumo. Mas a situação mudou drasticamente após aquela data, passando a não corresponder às suas próprias necessidades de principal poder emergente a nível mundial. 92

A RPC tornou-se o 2º maior consumidor de petróleo pelo que o recurso à importação é cada vez mais exigente.

Importações de petróleo em 201093 http://www.resourceinvestor.com/News/2011/5/Pages/Why-Asia-is-the-Epicenter-of-Oil-DemandGrowth.aspx 93 http://www.washingtonpost.com/world/asia_pacific/oil-interests-push92

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Mais de 60% das importações energéticas chinesas passam pelo Estreito de Malaca, o que tem subjacente problemas de segurança. b. Escoamento/fornecimento de energia A RPC está presente em todas as regiões do NGJE que são fonte de produção e escoamento de energia, tentando garantir a satisfação das suas prementes necessidades. Se com o Próximo e Médio Oriente e Transcaucásia o Espaço chinês não tem fronteira, tal não sucede com a Ásia central e Ásia setentrional, o que se traduz em menor ou maior dificuldade no acesso à energia de que necessita. (1) -Do Próximo e Médio Oriente O fornecimento de petróleo à RPC por parte de alguns países do Médio Oriente encontra-se assegurado e enquadrado a nível da OPEP. Já o mesmo não acontece quanto à aquisição de gás natural, por parte dos principais fornecedores, o Qatar e o Irão. Quer num caso, quer noutro as distâncias a percorrer são elevadas e as questões de segurança do seu transporte terão de ser devidamente tidas em consideração. Referências mais importantes: (a) - Gás Iraniano94 O Irão, o 2º produtor mundial de gás natural, está em condições de perspectivar o fornecimento à China por diversas vias, todas elas igualmente equacionadas, tanto mais quanto o Irão se encontra sob o efeito de sanções internacionais lideradas pelos EUA: - Via marítima, contornando o Sudeste asiático - Via terrestre: - Através da Ásia central, Turquemenistão, … - Através do Afeganistão - Através do Paquistão - Através de Myanmar (b) - Gás do Qatar Em estudo o trânsito pelo porto paquistanês de Gwadar, no Baluchistão (melhorado com o investimento chinês), seguindo para a China ao longo do Rio Indo pela auto-estrada Karakorum via já denominada white oil pipeline. Esta opção entronca no apoio da RPC ao gasoduto IPI (Irão, Paquistão, Índia) em detrimento do TAPI (Turquemenistão, Afeganistão, Paquistão, Índia).

94

china-into-sudanese-mire/2011/12/19/gIQANkzGGP_story.html Ver Médio Oriente no NGJE, eixo sul.

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Gás do Qatar95 (2) - Da Transcaucásia O Azerbeijão é um potencial candidato ao fornecimento de energia à China, seja a nível de petróleo, seja a nível de gás, ligando-se aos países da Ásia central no seu trânsito para Leste. A concretização do projecto transcaspiano poderá facilitar a movimentação de energia através do Cáspio.

Azerbeijão no extremo da Nova Rota da Seda energética96 (3) - Ásia central97 A RPC procurou nos produtores energéticos da Ásia central uma alternativa aos fornecimentos russos via Sibéria. No NGJE estão já em actividade na ligação energética à RPC, o Turquemenistão, Cazaquistão e Uzbequistão. http://www.chinapage.com/transportation/pipeline/pipeline-qatar.html http://www.chinapage.com/map/kazakh-oil-2006.jpg 97 Ver Ásia central no NGJE, eixo leste. 95 96

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Referências mais importantes: (a) - Central Asia–China (CAC) pipeline (gasoduto) Gasoduto com origem no Turquemenistão, atravessando o Uzbequistão e o Cazaquistão, entrando na China pela província de Xinjiang.

CAC98 O projecto concretizou-se num prazo record desde o início da sua construção (2005) até o início da sua entrada em actividade (Dezembro de 2009). O fornecimento de gás à China viria a ser assinado e ratificado em 2007 pelo Cazaquistão e Turquemenistão.99 O pipeline tem a extensão de 200 km no Turquemenistão, 550 km no Uzbequistão, 1 300 km no Cazaquistão e 8 000 km na China. Foi também um marco para a China, pois foi a primeira vez que o gás da Ásia central chegou ao território chinês sem passar pelo território russo. Foi também uma rara oportunidade para a China aumentar a sua visibilidade política na região da velha Rota da Seda. (b) - Cazaquistão-China (oleoduto)100 Activo desde 1 de Janeiro de 2006. (4) - Ásia setentrional101 A Federação russa, através da sua fronteira siberiana com a RPC pode potenciar ao máximo o fornecimento de energia, gás ou petróleo. http://menasassociates.blogspot.com/2011/09/central-asiachina-pipeline-to-double.html http://www.naturalgasasia.com/new-great-game-in-old-central-asia-3925 99 http://www.istockanalyst.com/article/viewiStockNews/articleid/3695920 http://sinomania.blogspot.com/2009_12_01_archive.html 100 Ver Ásia central NGJE, eixo leste. 101 Ver Ásia Setentrional, eixo leste. 98

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Infra-estrutura de gás chinesa e russa Referências mais importantes: (a)- E.S.P.O. (East Sibéria Pacific Ocean) oil pipeline

ESPO oleoduto102 Pela primeira vez desde os anos 50 e 60 a Rússia forneceu petróleo para o norte da China através de um oleoduto de 2.385 km que levou menos de dezasseis meses a construir (desde Maio de 2009 a Setembro de 2010), entrando em plena actividade em Janeiro de 2011. Tal facto demonstra o elevado significado estratégico que tem para ambas as partes. 102

http://www.telegraph.co.uk/sponsored/russianow/business/8097658/ Russia-turning-to-Chinas-huge-energy-thirst.html; http://rbth.ru/articles/2010/10/26/slaking_chinas_huge_energy_thirst05060.html; Opening the Orient: What does the Commissioning of the Russian-Chinese ESPO Pipeline Mean for Europe? Friday, 07 January 2011 09:13 (http://www.ekemeuroenergy.org/en/index.php?option=com_content&view=article&id=154:o pening-the-orient-what-does-the-commissioning-of-the-russian-chinese-espo-pipeline-mean-foreurope&catid=35:analyses&Itemid=57)

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(b) - Altai gás pipeline Protocolo assinado em 2 de Março de 2006 entre a Gazprom e a CNPC, para o fornecimento de gás à RPC.

Altai-China (gasoduto)103 Os primeiros fornecimentos estão previstos para 2015 e o contrato é válido por 30 anos. (c) - Sakhalin – Khabarovsk – Vladivostok (gasoduto) A entrada em actividade deste gasoduto, associado à produção de LNG será mais uma via a explorar pela RPC no seu relacionamento energético com a Rússia. (5) - Da Ásia meridional A sede de petróleo revelou em 28 de Dezembro de 2011 um evento que colheu de surpresa os mais diversos analistas e politólogos, a assinatura de um acordo entre a Empresa chinesa CNPC e o governo afegão, com vista à exploração e extracção de petróleo na zona de petróleo do Rio Amu Darya, no norte do Afeganistão, a ter início nos próximos dois anos.104

http://www.culturalsurvival.org/take-action/russia/2/maps http://www.businessinsider.com/the-15-oil-and-gas-pipelines-changing-the-worlds-strategicmap-2010-3?op=1 http://www.gazprom.com/production/projects/pipelines/altai/ 104 http://www.vermelho.org.br/go/noticia.php?id_secao=9&id_noticia=172370 http://english.peopledaily.com.cn/90778/7690732.html# 103

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Amu Darya, na fronteira norte afegã (6) - O espaço chinês e o Sudeste asiático a nível energético As relações entre os dois espaços estão baseadas na complexa questão das reivindicações territoriais de actores de ambos os lados, sobre as Ilhas Spratly no Mar do sul da China e no relacionamento privilegiado da RPC com Myanmar. - A disputa territorial no Mar do Sul da China105 Nesta disputa estão presentes reivindicações da RPC, RC e países do Sudeste asiático a que não é a alheia a existência de recursos energéticos. - O relacionamento RPC-Myanmar A nível energético, o relacionamento estreito entre os dois países permite à RPC diminuir o trânsito energético pelo Estreito de Malaca, através da construção de pipelines em ligação directa do seu território à Baía de Bengala, no Indico.

China-Myanmar pipelines106 105 106

Ver Sudeste asiático no NGJE. http://endthelie.com/2011/06/18/overthrow-inc/#axzz1jKWnCo1T

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Está em curso a realização de um projecto de 2 806 km de extensão de pipelines, com a conclusão prevista para 2013.107 c. Potencialidades São consideradas potencialidades numa análise geopolítica, geoeconómica ou geoestratégica o facto das vastas fronteiras terrestres do Espaço chinês, e da RPC em particular, serem contíguas com fornecedores (Federação russa e Cazaquistão) dos recursos energéticos de que necessita, podendo diversificar fornecimentos e diminuir eventuais interferências externas nos seus assuntos internos. Tem sido notória a capacidade de competição das suas empresas energéticas estatais fora do seu espaço para assegurarem bons contractos de fornecimento e aquisição de energia, a que não é alheia a capacidade de atracção de investimento externo que se verifica no Espaço chinês.

A Rota da seda revisitada pela RPC, quer a nível terrestre, quer a nível marítimo108 Nas ligações energéticas do Cáspio ao litoral chinês estão também a ser recuperados os patrimónios culturais que consolidaram durante cerca de mil anos a Rota da Seda terrestre, constituindo um factor positivo no inter-relacionamento dos actores asiáticos envolvidos. Também a segurança energética nesta Rota Energética Terrestre se encontra assegurada através da cooperação SCO-CSTO109 e a assinatura de uma parceria estratégica entre a RPC e a Federação russa. http://colouredjournal.blogspot.com/2010/09/bangladesh-riding-dragon.html http://www.newsworld.co.kr/cont/0203/45.html 109 Shanghai Cooperation Organization-Collective Security Treaty Organization. 107 108

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As potencialidades da cooperação a nível energético entre Beijing e Taipei estão presentes na cooperação em curso para a exploração de recursos existentes no Estreito da Formosa.110 d. Vulnerabilidades São vulnerabilidades as que decorrem do longo trajecto marítimo a que os seus meios de transporte estão sujeitos para se abastecerem quer de petróleo, quer de gás (LNG), situação que poderá ainda tornar-se mais crítica no caso de conflito nos pontos de passagem obrigatória (Estreito de Ormuz, Estreito de Malaca, …). Carece de instrumentos de segurança todo o percurso marítimo da sua ExRota da Seda. *** 7. O Nordeste asiático no NGJE Os atores do nordeste asiático estão totalmente dependentes da energia que recebem do exterior, principalmente do Médio Oriente, a sete mil milhas de distância. A sobrevivência do seu crescimento e/ou desenvolvimento está totalmente dependente da segurança das rotas de gás e petróleo. Se até ao princípio da década de noventa a via de fornecimento privilegiada era a marítima, através do Estreito de Malaca (caso do Japão e Coreia do Sul), com o fim da guerra fria novas alternativas surgiram no complexo xadrez energético que têm levado a considerar também a via de fornecimento terrestre, com origem no interior do continente asiático (no Mar Cáspio, Ásia central ou Ásia Setentrional).111 a. Produção/Consumo O Nordeste asiático caracteriza-se pela ausência de produção energética de origem fóssil (gás e petróleo). (1) - Gás Perante a não ligação a qualquer de rede de pipelines, o Japão e a Coreia do Sul são os maiores importadores de LNG.112

http://www.energy-pedia.com/news/taiwan/cpc-and-cnooc-in-taiwan-strait-oil-exploration-talks Ver Global Energy Strategy toward 2030 in 040428.ppt 112 http://205.254.135.7/countries/country-data.cfm?fips=JA 110 111

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Fontes de energia do Japão referentes a 2010113 (2) - Petróleo O Japão é o segundo maior importador mundial de petróleo, atrás dos EUA. As ilhas nipónicas não têm petróleo, por isso tem de importar 100% do seu petróleo, a maior parte proveniente do Médio Oriente. AQuanto à Coreia do Sul é o nono maior país consumidor mundial e o quinto maior importador.

Maiores consumidores mundiais (ref. 2005)114 Os riscos da passagem dos seus petroleiros pelos Estreitos de Ormuz e de Malaca são evidentes pelo que necessitam de diversificar as suas fontes de abastecimento. 115 b. Escoamento/fornecimento de energia Os dois principais actores do Nordeste asiático (Japão e Coreia do Sul) têm estado totalmente dependentes dos fornecimentos energéticos que transitam pelo Estreito de Malaca, tendo por fonte principal o Médio Oriente. http://www.arcticgas.gov/Asia-tight-link-between-oil-gas-prices http://www.eoearth.org/article/Energy_profile_of_Japan 115 http://205.254.135.7/countries/country-data.cfm?fips=JA 113 114

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Aumentam actualmente as expectativas de fornecimento provenientes da Federação russa (Sibéria e Ilha Sacalina) e do interior asiático, em trânsito pela RPC, inter-relacionando todos os actores do nordeste asiático. (1) -Do Próximo e Médio Oriente São fornecedores energéticos dos principais actores do Nordeste asiático os países ligados à OPEP e os produtores de LNG.116 (2) - Da Transcaucásia O Azerbeijão é um potencial candidato ao fornecimento de energia para o Nordeste asiático, seja a nível de petróleo, seja a nível de gás, ligando-se aos países da Ásia central no seu trânsito para Leste, via RPC. (3) - Da Ásia central117 São potenciais fornecedores energéticos o Turquemenistão e o Cazaquistão, que já se encontram ligados à RPC no fornecimento de gás e petróleo. (4) - Da Ásia setentrional118 A ligação do nordeste asiático aos enormes recursos energéticos da Federação russa pode solucionar muitos dos problemas energéticos dos seus principais países, seja a nível de gás, seja a nível de petróleo.

Rússia e a ligação energética à Ásia-Pacífico119 Apesar de não faltarem os projectos de ambas as partes, questões de natureza política ainda continuam a dificultar a sua realização.

Por razões políticas o Irão não está incluído nos fornecimentos ao Japão e Coreia do Sul, apesar de ser o 2º produtor mundial de gás natural. 117 Ver NGJE no espaço chinês, eixo leste. 118 Ver NGJE na Ásia setentrional, eixo leste. 119 http://eng.gazpromquestions.ru/index.php?id=7 116

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Referências mais importantes: (a) - Sistema de transmissão de gás Sakhalin - Khabarovsk – Vladivostok Baseado nas significativas reservas descobertas na região da ilha de Sacalina, o sistema de produção envolve a construção de um pipeline ligado ao continente (através de Vladivostoque) e a produção de LNG.

Sacalina-Vladivostoque gasoduto120 O sistema que entrou em actividade em Setembro de 2011 está pronto a alargar a sua influência para toda a área da Ásia-Pacífico, e, em especial, os principais países do Nordeste asiático.

Projecto Sacalina II121 120 121

http://www.itar-tass.com/en/g44/1087.html http://www.ngsms.ru/eng/projects/page531/ http://www.gazprom.com/production/projects/pipelines/shvg/

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Em 2009 mais de metade dos fornecimentos em LNG foram para clientes no Japão e o restante para a Coreia do Sul, RPC e Taiwan.122 (b) - Rússia- Coreia do Sul gás pipeline Em Agosto de 2011 o Presidente russo Dmitry Medvedev, confirmou, após contactos com os líderes das duas Coreias que tinham chegado a um acordo para a construção de um gasoduto de ligação da Rússia à Coreia do Sul.

Gasoduto Rússia-Coreia do Sul A Coreia do norte, que serve de trânsito a este fornecimento de gás, ainda não é considerado um parceiro suficientemente credível

A perspectiva da interrupção de gás para o sul123 Parceiros internacionais da Gazprom responsável pelo projecto Sacalina: Kogas (Coreia do Sul), Mitsui, Mitsubishi Corporation (Japão). 123 http://www.nkeconwatch.com/2011/11/17/russia-korea-gas-pipeline-compendium/ http://latimesblogs.latimes.com/world_now/2011/11/russian-gas-pipeline-through-northkorea-and-south-korea-six-arty-talks-cold-war-alliance-between-ru.html 122

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No esquema acima apresentado está previsto que em caso de corte do gás à Coreia do Sul, automaticamente Pyongyang ficaria também sem gás. Estão previstos chegar os primeiros fornecimentos à Coreia do Sul em 2017. (c) Rússia - Japão gasoduto (proposta) As propostas de fornecimento energético da Rússia ao Japão tiveram naturalmente em consideração não só os recursos energéticos siberianos, mas em especial aqueles que se descobriram mais recentemente na vizinha ilha de Sacalina.

Projecto de gasoduto russo-nipónico124 No entanto, um perturbador conflito territorial entre a Federação russa e o Japão sobre a soberania não só da Ilha Sacalina, como também dos territórios do Norte (quatro ilhas do Sul do arquipélago das Curilas) tem impedido uma maior aproximação e o aprofundamento da cooperação a nível da energia.125

http://www.energytribune.com/articles.cfm/276/Kovykta-Hamstrung-by-Infrastructure http://www.brookings.edu/papers/2001/09globaleconomics_hill.aspx 125 O Japão ocupou o Sul da Ilha de Sacalina na sequência da guerra sino-russa de 1905, mas a URSS retomou-a em 1945, o mesmo acontecendo com os territórios do norte (quatro ilhas a sul do arquipélago das Curilas) ocupados pela URSS no final da II GM. O Japão continua a manter esta situação de conflito em aberto. 124

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As disputas territoriais nipo-russas no Mar de Okhotsk126 (d) - Gasoduto circular (projecto) O projecto de criação do pipeline circular e do Sub pipeline permite perspectivar um futuro diferente para esta região a nível de integração pela via energética. Yakutsk

North Sakhalin

Irkutsk

Khabarovsk Changchun Shenyang

Sapporo

Beijing Pyongyang

Circular Pipeline Sub Pipeline

Seoul Tarim (and Central Asia)

Gas Flow

Shanghai

Demand Zone C Mitsubishi Research Institute.Inc

Pipeline circular127 É um desafio transregional colocado a todos os actores. c. Potencialidades São potencialidades dos principais actores do nordeste asiático: - A sua ligação directa às rotas marítimas e a capacidade de investimento das suas empresas; 126 127

http://www.russiablog.org/energy/ In Transkorea península pipeline in Asakura.ppt

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- A proximidade de enormes fontes energéticas localizadas na Sibéria oriental e na região de Sacalina; - A proximidade da rota do Árctico; -… d. Vulnerabilidades São muitas as vulnerabilidades que se detectam no nordeste asiático a nível energético: - A sua dependência das importações energéticas e o custo acrescido que as mesmas acarretam pela distância às principais fontes tradicionais de fornecimento (Médio Oriente); - A insegurança das rotas marítimas de fornecimento energético; - As situações de conflito que prevalecem no relacionamento intra-regional (Coreia do norte versus Coreia do sul; Coreia do norte versus Japão) e interregional (nordeste asiático versus espaço chinês; nordeste asiático versus Ásia setentrional); -… *** 8. O Sudeste asiático no NGJE O papel do sudeste asiático no Novo Grande Jogo da Energia128 é extraordinariamente diversificado, envolvendo a produção, o escoamento e o consumo. No entanto, é a sua excepcional posição geoestratégica, ponte entre o Índico e o Pacífico, zona de passagem obrigatória para os enormes fluxos energéticas dos grandes consumidores da Ásia-Pacífico, que lhe confere maior importância.

Fluxos energéticos via Sudeste asiático (In balce.ppt) 128

NGJE Sudeste asiático (In http://www.eco-business.com/features/growing-energy-demandkey-challenge-for-asean/

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Rivalizando com o Estreito de Ormuz à saída do Golfo Pérsico, também o Estreito de Malaca é fonte de preocupação, não só devido ao congestionamento do tráfego marítimo, mas por questões de segurança marítima. a. Produção/Consumo Não menos importante é o consumo dos atores desta região que aumenta na proporção do seu ritmo de crescimento, não encontrando resposta na região para as suas próprias necessidades. O Sudeste asiático é uma região com recursos energéticos, especialmente Indonésia129, Malásia e Brunei.

Recursos energéticos dos países da ASEAN130 Indonésia, Malásia e Brunei são exportadores de crude, mas os outros países têm de importar produtos petrolíferos ou crude. A Indonésia tem as maiores reservas de petróleo e gás natural. No Golfo da Tailândia e na Baía de Bengala existem também importantes jazidas energéticas que beneficiam em especial a Tailândia e Burma, respectivamente. Fora ainda do quadro orgânico da ASEAN encontra-se Timor Leste com significativas reservas energéticas no Mar de Timor. A exploração do Mar da China meridional rico também em recursos energéticos ainda está na fase inicial a que não são alheias as disputas territoriais entre diversos atores entre os quais a RPC.

A Indonésia produziu petróleo durante mais de um século e aderiu à OPEP em 1962. No entanto, a procura interna, as reservas em declínio e o alegado fraco registo de investimento nesta indústria acabaram por fazer com que este país asiático se tornasse nos últimos anos num importador de crude. A OPEP quer preços elevados do petróleo, ao passo que a Indonésia, como importadora, quer que estejam baixos, comentou Subroto, ex-ministro indonésio do Petróleo e antigo secretário-geral do cartel (Setembro de 2008). 130 http://talkenergy.wordpress.com/2011/02/28/energy-situation-in-asean-an-overview/ 129

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Recursos energéticos no Mar do Sul da China131 Desde 2005 que a China (via China National Offshore Oil Corporation, CNOOC), Filipinas (via The Philippine National Oil Company) e Vietname (via PetroVietnam) têm trabalhado em conjunto fazendo investigações sísmicas numa área de 80 km2 incluindo as Ilhas Spratly, com custos partilhados pelas três companhias.

131

http://205.254.135.7/countries/regions-topics.cfm?fips=SCS

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Country

South China Sea

Spratly Islands

Paracel Islands Gulf of Thailand

Brunei Cambodia China Indonesia Malaysia Philippines Taiwan Thailand Vietnam

UNCLOS not applicable (n/a) all UNCLOS UNCLOS significant portions all n/a all

no formal claim n/a all no 3 islands 8 islands all n/a all

no n/a all no no no all n/a all

n/a UNCLOS n/a n/a UNCLOS n/a n/a UNCLOS UNCLOS

Reclamações no Mar do Sul da China132 (UNCLOS, United Nations Convention Law of Sea)

Demonstrando uma notável capacidade de integração regional através dos mecanismos da ASEAN e para responder aos desafios de carácter energético do seu próprio crescimento foi criado o Trans-ASEAN Gás Pipeline (TAGP).

TAGP133 O projecto, actualizado em 2000, tem como objectivo a concretização de uma malha intra-regional de gasodutos até 2020, numa extensão de 4.500 km, reunindo todos os membros da ASEAN.134 b. Escoamento/fornecimento energético http://205.254.135.7/countries/regions-topics.cfm?fips=SCS http://talkenergy.wordpress.com/2011/09/16/asean-economic-community-2015-integration-ofenergy-infrastructure/ http://theenergycollective.com/benisuryadi/65418/asean-economic-community-2015integration-energy-infrastructure 134 Em 2008 já estavam criados 2.300 km de gasodutos. 132 133

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Passam pelos principais estreitos do Sudeste asiático (Malaca, Sunda e Lombock) os grandes fluxos energéticos vindos do Médio Oriente em trânsito para a Ásia Pacífico, especialmente com destino à Ásia oriental. A segurança do escoamento da energia que produz, aquela que importa e aquela que passa pela região assume uma importância cada vez maior, em virtude das vulnerabilidades da passagem pelos principais Estreitos. (1) - Do Próximo e Médio Oriente135 São fornecedores energéticos dos principais actores do Sudeste asiático os países do Médio Oriente ligados à OPEP e os produtores de LNG. (2) - Da Transcaucásia136 O Azerbeijão é um potencial candidato ao fornecimento de energia para o Sudeste asiático, seja a nível de petróleo, seja a nível de gás (via Canal de Suez ou Golfo Pérsico). (3) - Da Ásia central137 São potenciais fornecedores energéticos o Turquemenistão e o Cazaquistão, que já se encontram ligados à Ásia-Pacífico via RPC no fornecimento de gás e petróleo. No eixo meridional de escoamento de energia da Ásia central para o Indico (via Golfo Pérsico, Irão, Afeganistão, Paquistão e Índia) também se podem colocar iguais expectativas. (4) - Da Ásia setentrional138 Como principal fornecedora energética no NGJE, a Federação russa também oferece ao Sudeste asiático condições de acesso às suas fontes de produção no Extremo oriente siberiano (via Vladivostoque) e, em especial às suas reservas na Ilha de Sacalina (petróleo e LNG). Da Federação russa pode chegar ao Sudeste asiático não só a sua própria energia como também os seus próprios investimentos via Gazprom. (5) - DoEspaço chinês139 A importância do relacionamento do Sudeste asiático com o Espaço chinês, no âmbito energético, está relacionada com: - a localização dos Estreitos de Malaca, Sonda e Lombok, pontos de passagem obrigatória do Indico para o Pacífico; - a questão das disputas pelos recursos do Mar do sul da China; Ver Próximo e Médio Oriente, eixo sul. Ver Transcaucásia no NGJE, eixo sul. 137 Ver Ásia central no NGJE, eixos leste e sul. 138 Ver Ásia setentrional, eixo leste e Sudeste asiático. 139 Ver Espaço chinês no NGJE, ligação ao Sudeste asiático. 135 136

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- a construção de pipelines, via Myanmar, para a RPC. c. Potencialidades São potencialidades do Sudeste asiático no âmbito do desafio energético: - a sua importância geoestratégica; - a existência desde 1967 da ASEAN com uma dinâmica muito sui generis, não só a nível regional, mas também transregional (modelo denominado aseanização), responsável pela concretização até 2020 do Trans-ASEAN gás Pipeline (TAGP), adentro da realização da AEC (Asean Economic Community) até 2015; - a existência de reservas energéticas, algumas ainda dependentes de reclamações territoriais (mar do sul da China); - o recurso ao LNG como forma de garantir a diversificação do fornecimento energético, ajustando-o à realidade geográfica do Sudeste asiático marítimo, insular; -… d. Vulnerabilidades São vulnerabilidades do Sudeste asiático a nível energético: - a sua incapacidade de garantir a segurança do tráfego marítimo pejado de incidentes de pirataria; - a carência de investimentos para as infra-estruturas do TAGP; - a persistência de reclamações territoriais em áreas com potencialidades energéticas (Mar do Sul da China); -… *** 9. A Ásia meridional no NGJE A importância da Ásia meridional no Novo Grande Jogo da Energia deriva do seu crescente envolvimento a nível de consumo para satisfazer as necessidades do seu galopante crescimento económico, em especial da Índia.140 Para aqui se orienta actualmente o eixo sul do NGJE, nas suas diversas formas. A problemática da dependência do fornecimento de energia assume especial acuidade na Ásia meridional, pois para além do tradicional fornecimento de energia do Médio Oriente, via marítima, novas alternativas têm vindo a ser 140

GAS PIPELINE PROJECTS IN SOUTH ASIA EDITOR DR NOOR UL HAQ ASSISTANT EDITOR ASIFA HASAN (http://ipripak.org/factfiles/ff64.pdf)

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equacionadas após o fim da guerra fria, explorando o fornecimento via terrestre, via construção de pipelines ou gasodutos provenientes da Ásia central ou do Mar Cáspio, com passagem obrigatória pelo Afeganistão e Paquistão até chegarem à Índia (Projecto do TAPI para entrar em funcionamento em 2014) ou com origem no Irão, com passagem pelo Paquistão. Apesar de todos os actores meridionais se encontrarem integrados na Associação de Cooperação Regional da Ásia do Sul, as suas relações estão longe de seguir o modelo de integração e pacificação daquele verificado em torno da ASEAN, a que não são alheios os conflitos de Jammu Caxemira (Índia e Paquistão), da Linha Durand (Paquistão e Afeganistão) e do Afeganistão.

Afeganistão, retomando o seu papel históricono NGJE141 O Afeganistão, que no passado identificou o significado do Grande Jogo, no presente continua a ser ponto de passagem obrigatória para uma nova arquitectura inter-regional, na qual é valorizada a importância geopolítica e geoestratégica do seu território para o escoamento da energia da Ásia Central142, para a Ásia meridional. http://geopoliticadopetroleo.wordpress.com/2010/08/13/geopolitica-da-asia-central-das-disputastradicionais-aos-projetos-de-integracao-regional/novas-rotas-da-seda-o-afeganistao-na-encruzilhadado-mundo-3/ http://blogofbao.wordpress.com/category/guerre/ http://bengalunderattack.blogspot.com/2010_05_01_archive.html 142 Le Grand Échiquier d’Asie Centrale Publié dans AfPak, Asie Centrale, États-Unis, Chine, Géopolitique, Géostratégie, Guerre, Guerre contre le Terrorisme, International par Bao le 27 février 2010 par Saïd Ahmiri (http://blogofbao.wordpress.com/category/guerre/) 141

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a. Produção/Consumo A Ásia meridional, com um quinto da população mundial, é extraordinariamente carente de recursos energéticos, quer a nível de gás, quer de petróleo. É total a sua dependência das importações, quer dos produtores da OPEP, quer de todos aqueles que orbitam no NGJE da Ásia. (1) - Gás São extremamente reduzidas as percentagens a nível mundial das reservas de gás dos oito países da Ásia meridional143: - Afeganistão: 0,03%; - Bangladesh: 0,22%; - Índia: 0,61%; - Paquistão: 0,45%. (2)- Petróleo144 As reservas de petróleo reduzem-se a dois países: - Índia: 0,43%; - Paquistão: 0,02%. Por isso as percentagens de importações são elevadíssimas: - Afeganistão: 100%; - Bangladesh: 94%; - Butão: 100%; - Índia: 69%; - Maldivas: 100%; - Nepal: 100%; - Paquistão: 80%; - Sri Lanka: 100%. b. Escoamento/fornecimento (1) - Do Próximo e Médio Oriente145 São fornecedores energéticos dos principais actores da Ásia meridional, os países do Médio Oriente ligados à OPEP e os produtores de gás natural e de LNG (Irão, Qatar e Oman). (a) - Via Irão Com a descoberta das segundas reservas mundiais de gás no próprio Source: Oil & Gas Journal, Energy Information Administration, BP Statistical Review of World Energy – Junho 2008 (http://www.sari-energy.org/Energy_Security_Quarterlies/ESQ1_January_08.pdf) 144 Idem, ibidem. 145 Ver Próximo e Médio Oriente, eixo sul. 143

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Golfo Pérsico, o Irão está em boas condições de oferecer o seu gás (via gasoduto) ou LNG aos países da Ásia meridional, competindo com outros projectos, em especial o TAPI apoiado pelos EUA. A prolongada situação de conflito IrãoEUA, agravado com a opção nuclear iraniana, confere à competição energética na Ásia meridional, uma nova dimensão na escalada do conflito. Referências mais importantes: - Irão-Paquistão-India gasoduto (IPI) O IPI, também denominado gasoduto da paz, com uma extensão de 2 775 km foi projectado para fornecer gás de South Pars, na parte iraniana do Golfo Pérsico, atravessando o Irão (1 100 km), Paquistão (Via Balochistão e Sindh. Em Khuzdar, um ramo seguiria para Karachi, enquanto o pipeline principal seguiria para Multan, a partir do qual poderia ser estendido à India). A sua concepção data de 1993.

IPI146 Os EUA nunca esconderam a sua oposição ao fornecimento de gás ao Paquistão pelo Irão, procurando que aquele encontrasse outras alternativas nomeadamente as implícitas no TAPI. Em Janeiro de 2010 ofereceram-lhe ainda a possibilidade de prestarem assistência na construção de um terminal de LNG e na importação de electricidade do Tajiquistão, através do corredor afegão de Wakhan. Desde início, a pressão dos EUA, englobando também a Índia, visava o abandono do programa nuclear por parte do Irão. No entanto, o Irão, numa corrida contra o tempo e de acordo com os compromissos assumidos com o Paquistão, anunciou em 12 de Abril de 2010 que já tinha construído 1000 km dos 1 100 previstos para o IPI em solo iraniano, perspectivando o final de 2011, para a sua conclusão147. 146 147

http://tapister.wordpress.com/2011/11/25/the-politics-of-gas-pipelines-in-asia/ Na ocasião o Embaixador iraniano para o Paquistão declarou: Iran has done her job and it now depends on Pakistan.

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A desistência da Índia148 não afectou a continuação do cumprimento do programa do gasoduto, reduzido ao âmbito dos dois países. Em Julho de 2011, já com a parte iraniana concluída, o Ministro paquistanês para o petróleo e recursos naturais anunciou que o seu país iria começar os seus trabalhos de construção do gasoduto no prazo de seis meses, alimentando a expectativa de apoiar ambos os projectos, TAPI e IP (Irão-Paquistão).

TAPI versus IPI149 À semelhança do TAPI, também o IP(I) tem a sua inauguração prevista para 2014. (b) - Via Qatar - Gulf-South Asia Gas Project (GUSA)150

GUSA Com contrapartidas por parte dos EUA a nível da cooperação a nível de energia nuclear e o levantamento das sanções impostas pelo Congresso como resultado do teste nuclear realizado pela India em 1998. 149 http://en.wikipedia.org/wiki/Iran-Pakistan-India_gas_pipeline IPI/TAPI http://www.greenprophet.com/2011/10/iran-pakistan-peace-pipeline/ 150 http://www.crescent.ae/html/gusa.html http://www.chinapage.com/transportation/pipeline/pipeline-qatar.html 148

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Até Gwadar um pipeline submarino de 1186 km. A partir de Gwadar existem projectos para o escoamento da energia para o Paquistão, Índia e … China. (c) - Via Oman Estudo de um projecto de ligação directa de Oman à India.

A vantagem para a Índia da energia fluir directamente para o seu território, não dependendo de outros actores para o seu escoamento.151 (2) - Da Transcaucásia152 O Azerbeijão é um potencial candidato ao fornecimento de energia para a Ásia meridional, seja a nível de petróleo, seja a nível de gás. (3) - Da Ásia central153 Os fornecedores energéticos da Ásia central, como países encravados, só têm duas possibilidades de atingir a Ásia meridional por duas vias inter-relacionadas: - através do Afeganistão (continuando depois pelo Paquistão, até chegar à Índia); - através do Irão (continuando depois via terrestre ou via marítima). Quer num caso, quer noutro, tão importante como a disponibilidade de reservas energéticas na Ásia central é a situação de conflito que em ambas as vias poderá dificultar a sua exploração. (a) - A via afegã Explora a contiguidade do Afeganistão com a Ásia central produtora de gás (Turquemenistão e Uzbequistão) http://www.defence.pk/forums/strategic-geopolitical-issues/135478-iran-will-provide-gas-chinathrough-pakistan-2.html 152 Ver Transcaucásia, eixo sul ou eixo oeste (neste caso via Suez). 153 Ver Ásia central, eixo sul. 151

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Referências mais importantes: - Trans-afeganistão-pipeline (TAP) Tem a sua origem na Empresa californiana Unocal, interessada no Afeganistão desde 1993, oferecendo o seu apoio aos Taliban durante a guerra civil contra a Aliança do Norte. O projecto foi abandonado em 1998 face às reservas de Washington em relação ao novo regime de Cabul. - Turquemenistão-Afeganistão-Paquistão gasoduto (TAP) Após o 11 de Setembro de 2001 o TAP foi reactivado adentro de uma estratégia de pacificação e consolidação da situação afegã adentro da luta contra o terrorismo, contemplando dois terminais, o paquistanês e o indiano:

TAP154 - Turquemenistão-Afeganistão-Paquistão-India gasoduto (TAPI) O gasoduto de 1 680km segue a antiga rota comercial da Ásia central para o sul da Ásia, do Turquemenistão a Fazilka, na Índia. O acordo entre os quatro países foi assinado em 11 de Dezembro de 2010, fazendo parte da estratégia dos EUA para a Ásia central.

154

http://mariangelaberquo.blogspot.com/2011/07/afeganistao-galinha-esqualida-mas-de.html http://blogofbao.wordpress.com/category/guerre/

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TAPI155 O TAPI tem garantido o financiamento do Asian Development Bank, com sede em Manila, ainda que os maiores apoios venham dos EUA e do Japão. Os seus membros incluem vários países com tropas no Afeganistão. O projecto TAPI deverá estar concluído em 2014 coincidindo com o fim da intervenção militar da ISAF. (b) - A via iraniana Entronca na contiguidade do Turquemenistão com o Irão e na possibilidade da diversificação do escoamento na fase seguinte via marítima (através do Golfo Pérsico) ou via terrestre (ligando-se ao IPI). (4) - Da Ásia setentrional156 Como principal fornecedora energética no NGJE, a Federação russa também pode oferecer à Ásia meridional condições de acesso às suas fontes de produção na Sibéria ocidental e central (via Ásia central) e no Extremo oriente (via Vladivostoque) e, em especial às suas reservas na Ilha de Sacalina (petróleo e LNG). Da Federação russa pode chegar não só a sua energia como também os seus próprios investimentos via Gazprom.157

http://axisoflogic.com/artman/publish/Article_61707.shtml http://www.twf.org/News/Y2010/1213-TAPI.html http://www.businessinsider.com/the-15-oil-and-gas-pipelines-changing-the-worlds-strategicmap-2010-3?op=1 156 Ver Ásia setentrional, eixo sul. 157 Desde Outubro de 2000 a Gazprom tem celebrado contratos com o governo indiano para a prospecção de gás e petróleo na Baía de Bengala. (http://eng.gazpromquestions.ru/?id=2#c540) 155

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(5) - Do Espaço chinês158 A Ásia meridional ao não actuar de forma integrada a nível da sua política energética, ao contrário do que sucede com os países do Sudeste asiático, permite aos seus actores diversificar o seu relacionamento energético como sucedeu com a assinatura em 28 de Dezembro de 2011 de um acordo entre a Empresa chinesa CNPC e o governo afegão, com vista à exploração e extracção de petróleo na zona de petróleo do Rio Amu Darya, no norte do Afeganistão, a ter início nos dois anos seguintes. c. Potencialidades São consideradas potencialidades na Ásia meridional: - o seu dinamismo económico, com a Índia como motor de toda a região; - a relativa proximidade das principais fontes energéticas do Médio Oriente; - desenvolvimento dos recursos regionais por forma atenuar a dependência do exterior; - a sua ligação a outros espaços asiáticos, nomeadamente o look east da Índia159; -… d. Vulnerabilidades A Ásia meridional apresenta as seguintes vulnerabilidades: - apesar de ter todos os seus actores reunidos na SAARC (South Asia Association for Regional Cooperation) carece de políticas energéticas regionais o que torna os seus actores isolados mais dependentes de influências externas; - grande dependência das fontes de energia, especialmente de petróleo, da volatilidade e riscos dos preços da energia; - carência de políticas regionais energéticas; - incertezas políticas no relacionamento entre países; - influência das crises no Médio Oriente, quer a nível económico, quer a nível da emigração sul-asiática; -… ***

158 159

Ver NGJE, espaço chinês, Ásia meridional. http://www.vifindia.org/article/2011/september/16/Revitalising-India-s-Look-East-Policy

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Conclusões O NGJE insere-se no quadro de uma nova conjuntura internacional na qual os principais actores manifestam os seus potenciais de conflito e cooperação, com consequências a nível regional e global. 1. Conjuntura internacional O NGJE é fruto da nova conjuntura internacional que emerge com o fim da guerra fria. A oferta de energia até então centrada no Médio Oriente (via OPEP) deslocaliza-se também para o Cáspio e para o centro da Ásia, em virtude dos vazios de poder criados com a dissolução da União Soviética e a independência de novos actores, produtores de energia. Por outro lado o NGJE confirma a existência de dois grandes sorvedouros de energia, o da Ásia oriental centrado na China e o da Ásia meridional, centrado na Índia. Através do NGJE descortinam-se as mudanças que estão a ocorrer no sistema internacional e na Ásia em particular: - aumento da concentração de poder na Ásia-Pacífico, em detrimento da Europa e dos EUA;160 - a competição sino-indiana;

Competição sino-indiana161 - a procura de novos alinhamentos geopolíticos ou geoestratégicos em consonância directa ou indirecta com as mudanças de interesses dos principais actores (caso das ex-Repúblicas soviéticas); - as iniciativas norte-americanas, apoiadas pela UE e Israel, de contenção de 160 161

http://newasiaforum.org/News_January2005.htm#twentyfirstcenturytobelongtoasia http://blogofbao.wordpress.com/category/guerre/

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iniciativas russas, chinesas e iranianas e, de aproximação à Índia; - as iniciativas russas de recuperação do espaço de influência soviético no Cáspio e Ásia central; - as iniciativas chinesas de garantir o acesso terrestre às novas fontes energéticas; - as iniciativas indianas de favorecer a opção norte-americana em relação à opção do TAPI; - as iniciativas iranianas de contrariar a pressão internacional e em especial a norte-americana, liderando um vasto quadro de sanções onusianas; - o reforço da posição geopolítica e geoestratégica da Turquia; - a pretensão do Irão a potência regional; - ... 2. Actores É vasto e muito diversificado o número e qualidade dos actores em presença no NGJE, em especial aqueles que se encontram na Linha da Frente. Aquém dessa linha encontram-se naturalmente todos os restantes actores do sistema internacional, governamentais e não-governamentais, para quem o objecto do Grande Jogo não é indiferente, a Energia, sobre a qual tem repousado o modelo de desenvolvimento e crescimento económico da Humanidade após a Revolução Industrial e a sobrevivência dos próprios actores. Por isso, os mecanismos de soft power e hard power estão prontos para entrar em acção, graduados de acordo com a evolução do próprio Jogo. a. EUA As iniciativas dos EUA enquadram-se no seguimento de políticas já afirmadas e praticadas durante a guerra fria: The Middle East, site of most of the world’s oil, is of vital interest to the United States. With the Carter Doctrine of 1980, Washington affirmed that it will use military force, if necessary, to defend its national interests in the region. The Middle East, Turkmenistan and Afghanistan all fall within the military umbrella of U.S. Central Command. U.S. military bases in Afghanistan provide a bridgehead close to the region’s energy resources. Canada and other donors are being supportive. At the donors’ conference in Kabul in July, participants agreed to promote integrated regional infrastructure projects. Within the Afghanistan National Development Strategy, that includes plans for a natural gas pipeline from Turkmenistan through Afghanistan to Pakistan and India (TAPI). This pipeline has been promoted by the U.S. since the mid-1990s. Pipelines are more than commercial ventures. They are geopolitically important because they connect trading partners, and influence the regional balance of power. Turkmenistan’s natural gas can only get to market through pipelines. The Russians have a pipeline north to connect with a network serving Europe. The Chinese have a pipeline east, connecting with their network and going all the way to Shanghai. The U.S. and

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European Union are moving to gain access or control. Former U.S. national security adviser Zbigniew Brzezinski called such geopolitical jockeying the grand chessboard.162 A manutenção da posição de liderança dos EUA no sistema internacional, depende cada vez mais do acesso e controle das fontes de energia espalhadas pelo Mundo, mas em especial das maiores jazidas do Médio Oriente e sobretudo da região do Golfo Pérsico. O sorvedouro de energia por parte dos países emergentes entretanto verificado veio colocar um verdadeiro desafio aos EUA face ao previsível esgotamento das reservas energéticas. A emergência da China e a recuperação progressiva da Rússia veio exigir mais protagonismo e mais hard power por parte dos EUA, verificado na alteração do seu dispositivo para a Ásia e para a elipse estratégica em particular.

O teatro de Guerra no Oriente Médio Fonte: Centre for Research on Globalisation163 As concepções geopolíticas de Mackinder são recuperadas, com a necessidade de controle e domínio do heartland. http://www.theglobeandmail.com/news/opinions/the-disconnect-between-pipelines-and-transparency/ article1694258/print/ 163 http://www.espacoacademico.com.br/090/90bandeira.htm 162

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b. UE A União Europeia tem a sua própria política energética (projecto Nabucco, como exemplo) ainda que não possa dispensar no domínio da segurança, a sua ligação privilegiada com os EUA. Fundamentalmente, procura a diversificação de fornecimentos evitando ficar dependente da preponderância de uma única fonte (caso do gás russo). c. Federação Russa As iniciativas russas estão relacionadas com a mais-valia que as suas reservas energéticas representam, em especial no espaço euro-asiático, permitindo-lhe assumir um maior protagonismo no sistema internacional. A Federação Russa, que se encontra numa situação de privilégio no xadrez energético, quer continuar a afirmar-se, esgrimindo vantagens que derivam da sua presença recente nas regiões em disputa (Transcaucásia e Ásia central) e da existência de estruturas económicas para as quais não se apresentam alternativas imediatas. A Federação Russa é o actor melhor colocado no complexo Novo Grande Jogo da Energia, podendo estar presente em todos os eixos de produção e escoamento energéticos, daí retirando evidentes dividendos políticos.164 d. RPChina As iniciativas chinesas enquadram-se nas expectativas de se afirmar e consolidar como poder emergente, tentando recuperar a antiga ideia de Centro do Mundo ou Poder do Centro (中国, Zhong guo). A procura de ligações terrestres sob a forma de construção de gasodutos ou oleodutos (na direcção do Cáspio, via Ásia central; na direcção da Ásia setentrional, via Federação russa; na direcção da Ásia meridional, via Afeganistão ou Paquistão; na direcção do Sudeste asiático, via Myanmar), é a resposta às vulnerabilidades do seu trânsito energético pelos Estreitos de Malaca e de Ormuz. A estabilidade internacional é essencial, tanto mais quanto o seu poder naval não garante a segurança dos seus fornecimentos energéticos. e. Índia As iniciativas indianas, que têm também em consideração as suas enormes carências energéticas, balançam entre a procura de soluções energéticas panasiáticas e o alinhamento com os EUA, nomeadamente na contenção das iniciativas energéticas do Irão para a Ásia meridional. f. Irão O Irão encontra-se enredado no NGJE numa posição de hostilidade em 164

Países europeus têm acusado Moscovo de usar a energia como instrumento político, como arma. Moscovo replica falando de mútua responsabilidade na cadeia energética, gás, petróleo e nuclear. Ver: http://japanfocus.org/-Leonid-Petrov/2835

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relação aos EUA e Israel, tendo a sua génese na implantação do regime islâmico em 1979, passando pela opção nuclear, apresentada como sendo pacífica, objecto de sucessivas sanções internacionais cada vez mais gravosas. A aposta na sobrevivência do regime surge tão fundamentalista quanto o seu radicalismo em relação à existência do estado de Israel. g. Turquia Ao oferecer o seu território para o trânsito energético de gás e petróleo do Cáspio e Ásia central para o Mediterrâneo, evitando a estreitíssima passagem do Bósforo, a Turquia tornou-se um dos grandes vencedores do NGJE, apesar da sua fraca produção energética. h. Afeganistão Continua a ser reservado um papel especial ao Afeganistão no NGJE à semelhança do que já tinha acontecido no século XIX. A sua posição geográfica e o facto de poder ser uma rota de escoamento energético do Cáspio ou da Ásia central, para sul, tornam este país um elemento muito importante na estratégia global da gestão e controle dos recursos energéticos. 3. O NGJE como potencial de conflito As posições dos principais actores no NGJE encerram um potencial de conflito que legitimam alguns analistas a defender que já nos encontramos na antecâmara da Terceira guerra mundial, na teia de um conflito politico global que reúne circunstancialmente numa competição flexível Rússia-China-Irão versus EUA-UE-Israel-GCC (Gulf Cooperation Council), assente em algumas heranças não sublimadas da guerra fria tais como o conflito israelo-palestiniano e a própria dissolução da URSS.

Oil Pipelines of Central Asia and Caucasus165 165

Lenin’s Epitaph: Lessons from the Russia – Georgia War http://leftwrite.wordpress.com/2008/08/19/lenins-epitaph-lessons-from-the-russia-georgia-war/

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A intervenção norte-americana no Iraque, a intervenção internacional no Afeganistão, a guerra entre a Geórgia e a Rússia seriam as demonstrações da existência da aplicação do hard power, tendo por justificação razões de controle de recursos energéticos ou o seu escoamento.

Global Zone of percolating violence166 Envolve uma zona que se sobrepõe à elipse energética, denominada Global Zone of percolating violence. So expect even more feverish moves by the angel of history. Eurasian actors Turkey, Iran, Russia and China will be ever more active in the Mediterranean and Central Asia the key geostrategic battleground in a 21st century New Great Game that might even be pitting Washington against Eurasia itself.167 A inevitabilidade de um conflito entre os principais actores está relacionada também com a previsão da chegada do peak oil, ano de 2012, data a partir da qual se prevê que a energia petrolífera comece a sua trajectória descendente.

166 167

http://www.takeoverworld.info/grandchessboard.html Idem, ibidem.

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Influência do peak oil nos cenários de conflito168 Os jogos de guerra em curso, sob a forma de ameaças (exportações energéticas iranianas, trânsito no Estreito de Ormuz) ou de manobras militares (iranianas, norte-americanas, russas e israelitas) alimentam a perspectiva de evolução violenta do conflito.169

168 169

http://www.oftwominds.com/blogoct10/great-game10-10.html Estreito de Ormuz, jogos de guerra http://www.payvand.com/news/12/jan/1058.html Caso de bloqueio http://portuguese.ruvr.ru/2012/01/07/63493782.html Manobras EUA-Israel http://portuguese.ruvr.ru/2012/01/07/63459282.html Irão anuncia novos exercícios em Fevereiro http://portuguese.ruvr.ru/2012/01/06/63457019.html Manobras russas no Mediterrâneo http://portuguese.ruvr.ru/2012/01/02/63305306.html Emirats : un oléoduc pour éviter le détroit d’Ormuz, bientôt opérationnel http://www.egaliteetreconciliation.fr/Emirats-un-oleoduc-pour-eviter-le-detroit-d-Ormuzbientot-operationnel-9888.html

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4. O NGJE como potencial de cooperação O NGJE encerra também um significativo potencial de cooperação que deriva da análise e comportamento dos actores, mais pacífica e pragmática que conflituosa. Decorre fundamentalmente da percepção de desafios que sendo globais, exigem respostas concertadas também globais, antecâmara para as mais alargadas formas de cooperação ou parcerias globais. Alguns destes desafios globais potenciadores da cooperação internacional são: a criação de redes energéticas (regionais ou inter-regionais), a segurança energética e o esgotamento das reservas fósseis (procura de energias alternativas). - Redes energéticas Autênticos túneis de infiltração que não conhecem barreiras, as vastíssimas redes de pipelines energéticos constituem os maiores veículos de interdependência entre os actores. A criação de redes energéticas anda a par do regionalismo, passando a um âmbito inter-regional ou transregional, devido à distância, a que na maior parte dos casos se encontram as fontes de produção. Também como já se verifica em algumas redes de escoamento, verifica-se a utilização de várias fontes energéticas para alimentar o caudal de escoamento energético (O projecto Nabucco prevê cinco fontes de produção). Quer num caso, quer noutro, a nota dominante é a complementaridade dos actores, condição sine qua non de uma cooperação internacional, como se verifica em diferentes espaços: no espaço chinês a cooperação entre a RPC e a RC para a exploração energética no Estreito da Formosa; no Nordeste asiático, em ligação com o Espaço chinês, tendo como fonte principal de fornecimento energético a Federação russa, é um bom exemplo da cooperação via energia (A própria península coreana dividida pelo paralelo 38 passa pela perspectiva de união através de um gasoduto proveniente da Federação russa); no Sudeste asiático com a criação de uma Rede energética de gás, confirma as potencialidades da ligação em rede e a aproximação entre os actores, ainda que insulares; entre o espaço chinês e o sudeste asiático em relação à exploração dos recursos energéticos do Mar do Sul da China;… O próprio traçado dos pipelines, pressupondo uma rota de escoamento segura, exige estabilidade, contribuindo para a resolução de conflitos violentos (no Afeganistão, com o traçado do TAPI; em Myanmar, com o traçado do pipeline de ligação à RPC; …) - Segurança energética A garantia da segurança energética tem de estar presente desde a fonte de produção ao local de consumo, passando pelo seu escoamento (curto ou longo), meios de transporte ou locais de passagem obrigatória.

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A utilização criteriosa do hard power está associada ao NGJE, através de dispositivos internacionais de segurança que façam face a novas fontes de ameaça como aquelas que estão presentes nas formas de pirataria ao longo do percurso marítimo do escoamento da energia (em especial no percurso do Indico e nas suas ligações ao Atlântico e Pacífico). A primeira mesa redonda ministerial asiática dedicada à cooperação económica regional relacionada com a produção e consumo do petróleo e do gás reflectia entre outras as preocupações de segurança: The Ministers at the Roundtable unanimously agreed that the Asian oil economy is integral to, and inseparable from, the global oil economy. They further stressed that with Asian destinations emerging as the principal consumers for Asian production, and the share of Asia in global production and consumption likely to progressively increase, cooperation between Asian producers and Asian consumers is crucial to ensuring Stability, Security and Sustainability through mutual interdependence in the Asian oil and gas economy.170 - Esgotamento das reservas fósseis e a procura de novas fontes de energia As reservas energéticas fósseis não são eternas. O seu esgotamento é previsível no curto e longo prazo de acordo com as potencialidades de cada jazida ou de cada região. A chegada de novos avanços tecnológicos, permitindo a produção de gás de xisto, veio colocar em causa cenários catastrofistas e contribuir para aligeirar a pressão sobre os combustíveis fósseis convencionais e com isso diminuir a espiral de conflito subjacente à competição que está presente no NGJE. O peak oil está longe de ser encarado unanimemente como o gérmen de potenciais conflitos mas sim motivo para procurar gerir criteriosamente as jazidas existentes e encetar atempadamente a procura de energias renováveis ou alternativas, menos poluentes e mais saudáveis para um desenvolvimento sustentado a nível planetário. Lisboa, Universidade Lusiada, 12 de Janeiro de 2012 ***

170

http://newasiaforum.org/News_January2005.htm#firstroundtables

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António Cayolla email: cayolla@netcabo.pt António Coito Joaquim Santos

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Resumo: O presente trabalho pretende sistematizar as matérias que se encontram directamente relacionadas com a figura jurídica do director de segurança, contribuindo assim para a sua melhor compreensão e alcance, especialmente por todos aqueles que têm que dar os primeiros passos no exercício desta nobre função. Para uma melhor compreensão das funções exercidas pelo director de segurança, tentou-se fazer uma síntese da diversa legislação existente, bem como o aprofundar de alguns conceitos cujo conteúdo e alcance prático ainda não se encontram bem definidos, tais como, subordinação directa à administração ou gerência, incidentes, factos ilícitos, etc. No capítulo das Conclusões Finais apresentam-se algumas sugestões, de jure constituendo, que visam dar uma maior clarificação ao Estatuto Profissional do director de segurança. (…) Assim, sugerimos que nas futuras reformas legais será aconselhável destacar a necessária autonomia técnica do Director de Segurança, por forma a atender à necessidade urgente de auto-regulação, quer quanto às situações de possíveis conflitos de interesses no que toca ao desempenho das suas funções e dos seus deveres, quer ainda quanto ao segredo profissional e dispensa de sigilo, a qual deverá ser tutelada por uma organismo profissional dos Directores de Segurança a criar. Palavras-Chave: Director de Segurança / Segurança privada / Gestão de Segurança / Security / Vigilância Abstract: The purpose of this Paper is to review and summarize all legal issues directly related to the job description of Security Director. We, thus, hope to contribute for a better understanding of the role and scope of functions of the Security Director, especially for those whom are taking the first steps in this noble profession. In order to clarify the functions and duties attributed to the Security Director we have highlighted several legislation currently in force. In addition we have analyzed in some detail some key legal concepts which definition and scope for practical law enforcement purposes remain unclear, such as the direct subordination of the Security Director to the board of directors or management of the security companies, incidents and unlawful or illegal facts reporting

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obligations, amongst others. In the Final Conclusions Chapter of this Paper we have drawn some suggestions de jure constituendo aiming a further clarification of the Professional Status of the Security Director. We have suggested that in subsequent law reforms, it would be advisable to stress the necessary technical autonomy of the Security Director, to meet the urgent need for self-regulation of its functions and duties in terms of conflict of interests, professional secrecy and exceptions to such confidentiality obligations which could be provided by a professional association of Security Directors that we would deem necessary to be created. Key-Words: Security Director / Private Security / Risk management / Security / Safety


Contributos para a Problemática da Segurança Privada em Portugal ..., pág. 341-376

1. Introdução O Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de Fevereiro, que regula o exercício das actividades de segurança privada, introduziu a possibilidade das entidades que prestam serviços de segurança ou organizam serviços de autoprotecção poderem ser obrigadas a dispor de um director de segurança como entidade responsável pela preparação, treino e actuação do pessoal de vigilância1, em condições a definir por portaria do Ministro da Administração Interna. As entidades já detentoras de alvará ou licença e que passem a ficar sujeitas a esta nova obrigação, beneficiam de um prazo de um ano, a contar da data da entrada em vigor da referida portaria, para se adaptarem à nova condição legal2. Ainda de acordo com este diploma, foi definido como requisito específico de admissão e permanência na profissão de director de segurança, a frequência, com aproveitamento, de cursos de conteúdo programático e duração fixados em portaria do Ministro da Administração Interna ou de cursos equivalentes ministrados e reconhecidos noutro Estado membro da União Europeia (artº 8º, nº 9 do citado DL). Somente em 2009, através da publicação da Portaria do Ministro da Administração Interna nº 1142/2009, de 2 de Outubro, veio o Governo fixar as condições em que as entidades titulares de alvará para o exercício de segurança privada são obrigadas a dispor de um director de segurança, bem como o respectivo conteúdo funcional do cargo e os requisitos de acesso à profissão3. Todavia, fê-lo sem regulamentar exaustivamente o regime jurídico aplicável4, antes deixando ao intérprete, e em última instância ao julgador, a árdua tarefa de É a seguinte a redacção do artº 7º da Lei nº 35/2004, de 21 de Fevereiro, com a epígrafe Director de segurança: 1 - As entidades que prestem serviços de segurança ou organizem serviços de autoprotecção podem ser obrigadas a dispor de um director de segurança, nas condições previstas em portaria do Ministro da Administração Interna. 2 - O director de segurança tem como funções ser responsável pela preparação, treino e actuação do pessoal de vigilância. 2 Cfr. artº 38º, nº 3 do Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de Fevereiro. 3 Cfr. artº 2º, 3º e 5º da Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro. 4 Veja-se, comparativamente, o regime jurídico estabelecido para os técnicos de segurança e higiene do trabalho, instituído pelo Decreto-Lei nº 110/2000, de 30 de Junho, onde o legislador estabeleceu, desde logo (cfr. artº 4º), em atenção à independência técnica de que estes profissionais devem gozar, uma série de princípios deontológicos aos quais devem subordinar a sua actividade. 1

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tentar delimitar, com algum rigor, o seu conteúdo e alcance prático e jurídico, no contexto da actividade de segurança privada em que se insere. 1.1. Breve resenha histórica O Decreto-Lei n.º 282/86, de 5 de Setembro que regulamentou pela primeira vez a actividade de segurança privada, visou dar um primeiro passo na definição de um quadro normativo para o sector, até então inexistente. A necessidade de tal regulamentação assentava, por um lado, no reconhecimento de que a actividade de segurança privada, desde que desenvolvida em áreas precisamente definidas e sujeita a condições que assegurem a idoneidade e licitude dos serviços oferecidos aos utilizadores e o respeito pelas competências e atribuições dos serviços e forças de segurança podia contribuir de modo relevante para a prevenção da criminalidade, e por outro, na necessidade de criar, para as empresas do sector, um estatuto especifico que as tornasse colaborantes das forças de segurança pública, em posição de subsidiariedade e agindo segundo parâmetros de legalidade e de estrita responsabilidade5. Nesta primeira regulamentação apenas existe, como referência às estruturas orgânicas das empresas de segurança privada, a menção, por um lado, para efeitos de licenciamento, aos directores e responsáveis pela administração6, e por outro, para definição dos requisitos mínimos de admissão, ao pessoal de segurança privada7, onde se inserem, indiscriminadamente, todos os profissionais de segurança. Com o Decreto-Lei nº 276/93, de 10 de Agosto aproveitou-se o momento de reestruturação das forças de segurança pública para se proceder a nova regulamentação do sector, aumentando-se a responsabilidade das empresas prestadoras do serviço e do pessoal a elas afecto e reconhecendo-se a complementaridade necessária que a segurança privada desempenha nas sociedades modernas, em relação ao objectivo de melhorar a segurança dos cidadãos. Em termos orgânicos e funcionais este diploma distingue, entre o pessoal de segurança privada8, aqueles que asseguram a direcção efectiva de uma empresa de segurança privada, que fazem parte do seu conselho de administração, os responsáveis e directores em exercício dos serviços de autoprotecção (…) por um lado e, por outro, todo o pessoal de apoio técnico ou de vigilância envolvido nas actividades de segurança privada (…), para o qual delimitou, pela primeira vez, um conteúdo funcional9. Vide, neste sentido, Preâmbulo do Decreto-Lei nº 282/86, de 5 de Setembro. A referência legal aparece feita a propósito da necessidade de identificação dos titulares dos órgãos responsáveis pela gestão das actividades de prestação de serviços de segurança a terceiros. 7 Cfr. artº 10º, Decreto-Lei n.º 282/86, de 5 de Setembro. 8 Cfr. artº 8º, nº 1, Secção II (Pessoal e meios de segurança privada), Decreto-Lei nº 276/93, de 10 de Agosto. 9 Nos termos do nº 3 do artº 8º do citado Decreto-Lei, considerava-se: a) Pessoal de apoio técnico – Todo aquele que se encontra ao serviço das organizações de segurança privada e que exerça qualquer das actividades descritas nas alíneas a) a d) do nº 2 do artº 1º b) Pessoal de vigilância – todo aquele que se encontra ao serviço das organizações de segurança privada e que 5 6

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O Decreto-Lei nº 231/98, de 22 de Julho veio operar nova reforma no regime jurídico do sector. Em termos de conteúdo funcional da actividade, passou-se a permitir à segurança privada o exercício da actividade de protecção e acompanhamento de pessoas, sem prejuízo das competências específicas das forças de segurança na matéria, eliminando-se o regime de exclusividade quanto ao exercício de actividades meramente instrumentais de segurança, como a elaboração de estudos de segurança e a formação do pessoal de vigilância, definindo-se com maior rigor a fronteira entre os domínios público e privado da segurança. Ao nível da estrutura orgânica e funcional dos diversos operadores de segurança privada, este diploma manteve, para o pessoal de segurança privada10, a anterior dicotomia entre os administradores ou gerentes de entidades que desenvolvam a actividade de segurança privada, os responsáveis pelos serviços de auto-protecção e o pessoal de vigilância e de acompanhamento, defesa e protecção de pessoas. Todavia, passou-se a exigir, para o pessoal de vigilância, a subordinação jurídica obrigatória, através da vinculação por contrato individual de trabalho, ás entidades licenciadas para a actividade de segurança privada11. Criou-se ainda o cartão profissional individual do vigilante, certificado pela Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna, de uso obrigatório, que garante que o seu portador deu cumprimento a todos os requisitos legais, entre os quais o de aprovação em provas de conhecimentos e de capacidade física, de conteúdo e duração legalmente fixados pelo Ministério da Administração Interna, dando-se, desta forma, um passo decisivo e da maior relevância para a dignificação do sector. No domínio desta legislação foi publicada a Portaria nº 969/98, de 16 de Novembro, a qual veio reflectir, pela primeira vez, a preocupação do legislador em garantir uma adequação dos meios logísticos materiais, técnicos e humanos necessários à prestação dos serviços e exercício das actividades de segurança privada, definindo-se, também pela primeira vez, os meios mínimos necessários em função dos diversos tipos de serviços previstos no artº 2, nº 1, do Decreto-Lei nº 231/98. A primeira referência legal à figura do director de segurança aparece com a Lei de Autorização Legislativa da Assembleia da Republica nº 29/2003, de 22.0812, exerça qualquer das actividades descritas nas alíneas e), f) e g) do nº 2º do artigo 1º. Cfr. artº 8º, nº 1, Secção II (Pessoal e meios de segurança privada), Decreto-Lei nº 276/93, de 10 de Agosto. 11 O artº 7º, nº 3 deste diploma legal refere expressamente que considera-se pessoal de vigilância os trabalhadores de sociedades de segurança privada, a elas vinculados por contrato individual de trabalho, e os trabalhadores afectos a serviços de autoprotecção que exerçam as suas funções no âmbito da actividade de segurança privada definida no nº 3 do artº 1º, sendo que, quanto aos serviços de autoprotecção, a exigência de vinculação por contrato individual de trabalho resulta também expressamente do seu artº 4º, onde se refere recurso exclusivo a trabalhadores a elas vinculados por contrato individual de trabalho. 12 Doravante designada apenas por Lei de Autorização da AR, para maior facilidade de exposição. 10

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que autorizou o Governo a alterar o regime jurídico do exercício da actividade de segurança privada. Pretendia-se então, com a criação desta figura, garantir que as entidades que prestam serviços de segurança dispõem de um elemento com conhecimentos efectivos nesta área., reforçando-se assim as garantias de qualidade e qualificação da prestação da actividade13. Assim, de acordo com esta lei de Autorização da AR ficou o Governo, no que diz respeito à figura do director de segurança, autorizado a: a) Definir os requisitos gerais de acesso e permanência no exercício de funções de director de segurança, com o objectivo de salvaguardar o interesse público e garantir a idoneidade moral e cívica dos intervenientes na actividade de segurança privada enquanto subsidiária e complementar da actividade das forças e dos serviços de segurança pública do Estado14, (cfr. artº 2º, alínea a) da Lei 29/2003), b) Definir o regime de incompatibilidades (cfr. artº 2º, alínea c) da Lei nº 29/2003); c) Definir os requisitos específicos de admissão à profissão (cfr. artº 2º, alínea e) da Lei nº 29/2003); d) Aperfeiçoar e adaptar o regime de segurança privada em matéria de formação do respectivo pessoal e de deveres especiais das entidades que prestam serviços de segurança (cfr. artº 2º, alínea i) da Lei nº 29/2003). O Decreto-Lei nº 35/2004, de 21 de Fevereiro, veio dar cumprimento à Lei de autorização da AR, criando figura do director de segurança. Desta forma, com o objectivo de aumentar a eficácia da actuação das empresas e o nível de preparação e treino do pessoal de vigilância, introduziu-se a possibilidade de as entidades que exercem a actividade de segurança privada poderem ser obrigadas a dispor de um director de segurança, como responsável pela preparação, treino e actuação do pessoal de vigilância. Definiu-se ainda, como requisito específico de admissão e permanência na profissão, a frequência, com aprovação, de formação específica especialmente dirigida à obtenção dos conhecimentos teóricos e práticos necessários para que o pessoal de vigilância desempenhe cabalmente as suas funções. Também pela primeira vez foi definido um conteúdo funcional para os vigilantes de segurança privada, considerando os diversos tipos de serviços que integram a actividade15. Com o novo quadro de competências assim desenhado, as sociedades de segurança privada e os serviços de autoprotecção passaram a ter que adaptar, obrigatoriamente, a uma nova estrutura funcional tripartida, em que as actividades de segurança privada se passam a reconduzir, em termos Vide proposta de Lei nº 70/IX e discussão da mesma na generalidade, DAR II série nº 138/IX/1 2003.06.28 (pág. 4297 a 4299). 14 Cfr. artº 2º, alínea a), Lei de Autorização da AR. 15 Vide, neste sentido, artºs 6º e 7º do DL. nº 35/2004, de 21 de Fevereiro. 13

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profissionais, ao exercício das seguintes funções: a) Funções de administrador e gerente das sociedades de segurança privada ou responsável pelos serviços de autoprotecção; b) Funções de director de segurança16. c) Funções de vigilância. Posteriormente, a Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro veio fixar as condições em que as entidades titulares de alvará para o exercício de segurança privada são obrigadas a dispor de um director de segurança, bem como o respectivo conteúdo funcional do cargo e os requisitos de acesso à profissão. 2. O regime de obrigatoriedade do director de segurança As condições em que as entidades que prestam serviços de segurança, ou organizam serviços de autoprotecção, estão obrigadas a dispor de um director de segurança como entidade responsável pela preparação, treino e actuação do pessoal de vigilância, foram definidas pela Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro. Neste diploma o legislador fixou tais condições, exclusivamente, com base no número de vigilantes ao serviço das entidades titulares de alvará ou licença17. Assim: 2.1. Entidades titulares de alvará: a) De 15 a 99 vigilantes - Um director de segurança, podendo ser em regime de contrato a tempo parcial por um período mínimo de quinze horas semanais (cfr. artº 2º, nº 1 alínea a)18; b) De 100 a 499 vigilantes – Um director de segurança, o qual pode acumular as suas funções com outras na própria empresa (cfr. artº 2º, nº 1 alínea b); c) 500 ou mais vigilantes - Um director de segurança em regime de exclusividade (cfr. artº 2º, nº 1 alínea c). 2.2. Titulares de licença para serviços de autoprotecção: a) Um director de segurança, quando tenham 100 ou mais vigilantes ao seu serviço (cfr. artº 2º, nº 2);

Em termos orgânicos e funcionais a figura do director de segurança aparece como um tertium genus, situado hierarquicamente a meio caminho entre o pessoal de vigilância e os administradores ou gerentes de sociedades que exerçam a actividade ou o responsável pelo serviço de autoprotecção. 17 Cfr. artºs 1º e 2º da Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro. 18 Por facilidade de exposição, a indicação de disposições legais sem referência ao respectivo diploma deve considerar-se feita para o decreto-lei nº 35/2004, de 21 de Fevereiro. 16

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3. O director de segurança como uma condição para a constituição das empresas de segurança privada ou organização dos serviços de autoprotecção O Decreto-Lei nº 35/2004, de 21 de Fevereiro veio obrigar as entidades de segurança privada a possuírem instalações e meios materiais e humanos adequados ao exercício da sua actividade19. A obrigatoriedade do director de segurança insere-se, assim, neste contexto de adequação dos meios humanos ao exercício da actividade. Desta forma, a existência do director de segurança, quando obrigatório, passou a ser uma condição sine qua non para a própria emissão do alvará ou atribuição de licença. Tal facto resulta, desde logo, do artº 22º, nº 1 e 2, do Decreto-Lei nº 35/2004, o qual refere expressamente que a actividade de segurança privada (…) só pode ser exercida com a autorização do Ministro da Administração Interna, titulada por alvará e após cumpridos todos os requisitos e condições estabelecidos no presente diploma, sendo que entre esse requisitos e condições está a comprovação da existência de director de segurança, quando obrigatório (cfr. artº 26º, nº 2, alínea c) e artº 27º, nº 2 alínea c)). Assim e em qualquer dos casos, i.e., atribuição de alvará ou concessão de licença, o início do exercício da actividade de segurança privada fica condicionado à comprovação pelo requerente, no prazo de 90 dias a contar da notificação do despacho de autorização do Ministro da Administração Interna20, da existência do director de segurança (cfr. artº 26º, nº 2, alínea c) e artº 27º, nº 2 alínea c)). Sendo uma condição para o exercício legítimo da actividade, a perda superveniente do director de segurança por uma entidade poderá acarretar, em última instância, a suspensão ou cancelamento do alvará ou da licença. Nestes casos, sempre que uma entidade titular de alvará ou licença deixe de possuir um director de segurança nos seus quadros, deverá comunicar este facto, no prazo de 48 horas, ao Departamento de Segurança Privada (cfr. artº 7º, nº 1 da Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro). Decorridos que sejam 60 dias sem que se encontre nomeado um novo director de segurança, poderá verifica-se a suspensão imediata do alvará ou da licença, ex vi do disposto no artº 29º, nº 1, uma vez que se deixou de verificar uma condição necessária ao exercício da actividade21. Não sendo suprida a falta no prazo de seis meses, pode, em última instância, ser cancelado o alvará ou a licença emitida, por incumprimento reiterado das normas previstas no Decreto-Lei nº 35/2004 (cfr. artº 29º, nº 2 alínea c)).

Neste sentido, cfr. artº 2, nº 2, do citado diploma legal. O prazo pode ser prorrogado por igual período, mediante pedido devidamente fundamentado (cfr. artº 26º, nº 3 e artº 27º, nº 3). 21 Tal facto integra ainda uma contra-ordenação muito grave, nos termos do artº 33, nº 1, alínea d). 19 20

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4. Requisitos para admissão à profissão e exercício de funções do director de segurança Como se referiu já, o Decreto-Lei nº 35/2004, dando cumprimento à lei de autorização da AR, visou definir os requisitos gerais de acesso e permanência no exercício de funções do director de segurança, bem como os requisitos específicos de admissão à profissão. Os nacionais de outro Estado membro da União Europeia legalmente habilitados e autorizados a exercer a actividade de segurança privada nesse Estado podem desempenhar essas funções em Portugal nos termos estabelecidos no presente diploma desde que demonstrem que foram cumpridos os seguintes requisitos: a) Para desempenhar as funções de director de segurança, os requisitos previstos nos n. 3 e 7; 4.1. Requisitos gerais de acesso e permanência no exercício de funções. Os requisitos gerais de acesso ao exercício de funções do director de segurança são as condições mínimas e legalmente impostas que um determinado candidato ao cargo deve preencher, para se poder candidatar e exercer a respectiva função. Visam, sobretudo, garantir a idoneidade moral e cívica dos diversos intervenientes na actividade de segurança privada, enquanto subsidiária e complementar da actividade das forças e dos serviços de segurança pública do Estado, reforçando, assim, a salvaguarda do interesse público. Os requisitos gerais de acesso legalmente definidos devem ainda ser preenchidos permanente e cumulativamente, constituindo, assim, verdadeiros requisitos de permanência no exercício de funções. Desta forma, incumbe às entidades titulares de alvará ou de licença verificar, a todo o tempo, o cumprimento destes requisitos, comunicando à Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna todas as ocorrências que impliquem a perda de capacidade para o exercício de funções (artº 18, nº 1 alínea f). Assim, são requisitos gerais de acesso e permanência no exercício de funções do director de segurança: a) Ser cidadão português, de um Estado membro da União Europeia22, de um Estado parte do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu ou, em condições de reciprocidade, de um Estado de língua oficial portuguesa (cfr. artº 8º, nº 1, alínea a), ex vi do nº 3); b) Possuir plena capacidade civil (cfr. artº 8º, nº 1, alínea c), ex vi do nº 3);

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Os nacionais de outro Estado membro da União Europeia que estejam legalmente habilitados e autorizados a exercer a actividade de segurança privada nesse Estado podem desempenhar as funções de director de segurança em Portugal, desde que demonstrem cumprir os requisitos previstos nos n. 3 e 7 do artº 8º, ex vi do nº 6 da mesma disposição legal.

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c) Não ter sido condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de crime doloso contra a vida, a integridade física ou a reserva da vida privada, contra o património, de falsificação, contra a segurança das telecomunicações, contra a ordem e tranquilidade públicas, de resistência ou desobediência à autoridade pública, de detenção ilegal de armas ou por qualquer outro crime doloso punível com pena de prisão superior a 3 anos, sem prejuízo da reabilitação judicial (cfr. artº 8º, nº 1, alínea d), ex vi do nº 3); 4.2. Requisitos específicos de admissão à profissão. Os requisitos específicos de admissão à profissão de director de segurança correspondem à formação escolar e profissional mínima obrigatória23, que a lei impõe apenas aos candidatos que pretendam exercer as funções de director de segurança. O Decreto-Lei nº 35/2004 definiu os seguintes requisitos específicos de admissão à profissão de director de segurança: a) Ter concluído o ensino secundário24 25; b) a frequência, com aproveitamento, de cursos de conteúdo programático e duração fixados em portaria do Ministro da Administração Interna ou de cursos equivalentes ministrados e reconhecidos noutro Estado membro da União Europeia26. Esta formação específica deverá ser especialmente dirigida à obtenção dos conhecimentos teóricos e práticos necessários para que o pessoal de vigilância, cuja actuação é agora da sua responsabilidade, desempenhe cabalmente as suas funções. 4.2.1. Conclusão do ensino secundário Para que se possa candidatar à frequência dos cursos fixados na portaria do Ministro da Administração Interna, o candidato a director de segurança deverá ter concluído o ensino secundário. A conclusão do ensino secundário tem as seguintes equivalências, definidas em função da data em que o mesmo terá sido frequentado pelo candidato: a) Até 1978 - Curso complementar dos liceus (6º e 7º anos) com regime de equiparação ao 12º ano ou curso complementar técnico com regime de Neste sentido, vide artº 5º da Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro. cfr. artº 8º, nº 3, in fine. 25 Embora a lei considere este requisito mais como um requisito geral de acesso à actividade de segurança privada – pois caso contrário tê-lo-ia incluído expressamente no elenco dos requisitos específicos previstos no nº 7 do artº 8º - a verdade é que no caso do director de segurança é de um verdadeiro requisito especifico de admissão à profissão que se trata, uma vez que é imposto, única e exclusivamente, para o exercício desta função, na qual o acesso à actividade se identifica e confunde com a admissão à profissão. 26 Cfr. artº 8º, nº 9. 23 24

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equiparação ao 12º ano. b) 1979/1980 - 10º e 11º ano para o período diurno e curso complementar dos liceus (6º e 7º anos) para o período nocturno, ambos com o regime de equiparação ao 12º ano. c) A partir de 1980 – 12º ano do ensino secundário. 4.2.2. Frequência, com aproveitamento, de cursos de conteúdo programático e duração fixados em portaria do Ministro da Administração Interna ou de cursos equivalentes ministrados e reconhecidos noutro Estado membro da União Europeia. A formação específica do director de segurança deve ser ministrada em estabelecimentos de ensino superior oficialmente reconhecidos, cujo curso de director de segurança tenha sido aprovado por despacho do Ministro da Administração Interna27. A duração do curso e o seu conteúdo programático foram definidos pela Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro. De acordo com esta Portaria, o programa do curso a ministrar deverá ter a duração mínima de 180 horas e ter por base as seguintes matérias28: a) Regime jurídico da segurança privada; b) Segurança física; c) Segurança electrónica; d) Segurança das pessoas; e) Segurança da informação; f) Prevenção e protecção contra incêndios; g) Planeamento e gestão da segurança privada. Pode igualmente ser reconhecida a formação, com aproveitamento, ministrada em estabelecimento de ensino superior oficialmente reconhecido, em curso de pós-graduação na área da segurança, desde que inclua as matérias e tenha a duração mínima previstas no número anterior29. Assim, analisados os requisitos impostos por lei, podemos concluir que formação obrigatória imposta ao director de segurança deve ser classificada ou equiparada, em termos curriculares, ao grau de técnico superior de segurança, porquanto: a) O conteúdo programático da formação do director de segurança tem um carácter técnico-profissional; b) A formação deve ser sempre ministrada por estabelecimentos de ensino superior que sejam oficialmente reconhecidos, o que, para efeitos de classificação e grau profissional, lhe deverá conferir o grau superior. Cfr. artº 6º, nº 1 da Portaria 1142/2009, de 2 de Outubro. Cfr. artº 6º, nº 4 da Portaria 1142/2009, de 2 de Outubro. 29 Cfr. artº 6º, nº 5 da Portaria 1142/2009, de 2 de Outubro. 27 28

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5. Regime de incompactibilidades O Decreto-Lei nº 35/2004 definiu ainda um regime de incompatibilidades para o exercício de funções como director de segurança. Este regime pretende garantir a total isenção, independência e idoneidade moral para o exercício do cargo, através da imposição de condições objectivas de conteúdo negativo30, que o candidato deverá preencher, cumulativamente, e que se deverão verificar no momento da sua admissão. São as seguintes as incompatibilidade definidas pelo Decreto-Lei nº 35/200431: a) Não exercer, nem ter exercido, nos três anos precedentes, qualquer cargo ou função de fiscalização do exercício da actividade de segurança privada (condição objectiva de conteúdo positivo) – cfr artº 8º, nº 1 alínea f); b) Não ter sido sancionado, por decisão transitada em julgado, com a pena de separação de serviço ou pena de natureza expulsiva, das Forças Armadas, dos serviços que integram o sistema de informações da República ou das forças e serviços de segurança – cfr artº 8º, nº 1 alínea g). 6. O conteúdo funcional A posição do trabalhador na organização em que se integra define-se a partir daquilo que lhe cabe fazer, isto é, pelo conjunto de serviços e tarefas que formam o objecto da prestação do trabalho32 e corresponde à sua categoria profissional, a qual se identifica normalmente através de uma designação sintética ou abreviada33, que neste caso é director de segurança. 6.1. A delimitação normativa do conteúdo funcional. O legislador definiu o director de segurança como a pessoa responsável pela preparação, treino e actuação do respectivo pessoal de vigilância (…)34. O conteúdo funcional correspondente à categoria profissional de director de segurança apresenta-se, assim, pré-determinado legalmente, condicionando o arbítrio patronal na atribuição destas funções dentro da estrutura organizativa da O conteúdo negativo da imposição traduz-se na obrigação de não se verificar, em relação à pessoa do candidato, nenhum dos factos tipificados na lei como incompatíveis. 31 O Decreto-Lei nº 35/2004 limita-se a referir no seu artº 8º, nº 1 os requisitos e incompatibilidades aplicáveis ao exercício da função, embora sem os distinguir. Todavia, tal distinção resulta, desde logo, da própria lei de autorização da AR, onde se indicam expressamente quais as incompatibilidades que o Governo ficou autorizado a criar para o director de segurança (cfr. artº 2º alínea c), da lei de autorização da AR.). 32 B. Lobo Xavier, A determinação qualitativa da prestação de trabalho, separata E.S.C. 10, pag. 18. 33 V.g., Vigilante, Operador de Central de Comunicações, Supervisor, etc. 34 Cfr. artº 7º, nº 2 do Decreto-Lei nº 35/2004 e artº 3º, nº1 da Portaria nº 1142/2009. 30

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empresa. Tal significa que o nomen juris (director de segurança) atribuído à função é um factor decisivo, e não apenas indiciário, para o estabelecimento da concreta posição funcional do trabalhador na organização técnico-laboral da empresa35. 6.2. A delimitação normativa da posição hierárquica na estrutura da empresa. O legislador, ao referir expressamente que o director de segurança exerce as suas funções em subordinação directa à administração ou gerência da entidade que exerce a segurança privada36, criou um nexo de dependência hierárquica obrigatório na regulamentação estrutural da empresa, atribuindo assim à categoria profissional do director de segurança também um conteúdo funcional organizativo. Desta forma, a determinação legal das funções do director de segurança apresenta-se como um critério normativo pré-estabelecido, não só para a qualificação, mas também para o escalonamento dessa mesmas funções dentro da hierarquia da empresa, critério esse ao qual não poderá substituir-se o da entidade empregadora37. 6.3. A subordinação directa como uma subordinação jurídica decorrente de celebração de um contrato individual de trabalho. A subordinação directa à administração ou gerência da entidade que exerce a segurança privada tem ainda que ser entendida como uma subordinação jurídica decorrente de celebração de um contrato individual de trabalho. Tal facto resulta, desde logo, das próprias condições fixadas para a obrigatoriedade do director de segurança, em que legislador graduou directamente essa vinculação, da seguinte forma: a) 500 ou mais vigilantes - Regime de exclusividade38; b) 100 a 499 vigilantes – Pode acumular as suas funções com outras na própria empresa39; c) 15 a 99 vigilantes - Regime de contrato a tempo parcial por um período mínimo de quinze horas semanais40;.

A categoria profissional assume, desta forma, a natureza de conceito normativo - no sentido de que circunscreve positiva e negativamente as funções a exercer em concreto pelo trabalhador - estabelecendo uma relação de necessidade entre o exercício da função e a titularidade da categoria profissional (Monteiro Fernandes, Noções Fundamentais de Direito do Trabalho, 12ª Edição, Vol. 1º - Pág. 192). 36 Cfr. artº 3º, nº1 da Portaria nº 1142/2009. 37 Neste sentido, vide Monteiro Fernandes, Noções Fundamentais de Direito do Trabalho, 12ª Edição, Vol. 1º - Pág. 201. 38 Cfr. artº 2º, nº 1 alínea a), Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro. 39 Cfr. artº 2º, nº 1 alínea b), Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro. 40 Cfr. artº 2º, nº 1 alínea c), Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro. 35

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A referência do legislador ao regime de exclusividade tem pois, de ser entendida aqui nas suas duas vertentes, ou seja: a) Como referência à celebração de um contrato de trabalho a tempo completo, por contraposição ao contrato a tempo parcial por um período mínimo de quinze horas semanais previsto para as empresas com menos de 100 vigilantes; b) Como referência a uma exclusividade funcional obrigatória ou dedicação exclusiva à função, por contraposição à possibilidade de acumular as suas funções com outras na própria empresa prevista para as empresas com mais de 100 mas menos de 500 vigilantes. 6.4. Funções O artº 7º, nº 2 do Decreto-Lei nº 35/2004 e a Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro vieram elencar um conjunto de funções ou tarefas que formam o objecto da prestação do trabalho do director de segurança, bem como impor alguns deveres específicos. São as seguintes as funções do director de segurança: 6.4.1. Preparação do pessoal de vigilância O director de segurança é o responsável pela preparação do pessoal de vigilância. No âmbito desta função, a Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro veio impor ao director de segurança a obrigação41 de Controlar a formação contínua do pessoal de vigilância e propor à direcção da entidade de segurança privada a adopção de iniciativas adequadas para atingir a constante preparação do pessoal de vigilância 42. 6.4.1.1. A preparação do vigilante A responsabilidade que a lei põe a cargo do director de segurança pela preparação do pessoal de segurança não se esgota no controle do processo a formação contínua dos vigilantes. O vigilante deve estar preparado, desde o seu primeiro momento, para o correcto exercício das suas funções. Essa preparação tem como pressuposto que o vigilante frequentou, com aproveitamento, o curso de formação profissional com o conteúdo e duração previsto na Portaria nº 1325/2001, de 4 de Dezembro, requisito especifico de admissão à profissão de vigilante43. Desta forma, o director de segurança deve ter um papel activo junto do departamento de recursos humanos da empresa durante o processo de selecção e Ou dever geral, por contraposição aos deveres específicos previsto no artº 4º do mesmo diploma. Cfr artº 2º, nº 1 alínea d), Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro. 43 Cfr artº 8º, nº 5 alínea b) do Decreto-Lei nº 35/2004, de 21 de Fevereiro. 41 42

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contratação dos futuros vigilantes, por forma a garantir que a sua formação, quer seja ministrada44 ou a ministrar, está de acordo com a legislação em vigor e que estes têm efectivamente os conhecimentos necessários ao correcto desempenho da sua função e cabal cumprimento das suas obrigações. Só assim se pode garantir que o pessoal que exerce funções de vigilância se encontra efectivamente preparado para a missão que lhe vier a ser confiada desde o seu primeiro momento, pois a formação continua não substituí, nem pode substituir, uma boa formação base, essa sim, habilitante em termos de conhecimento teóricos, técnicos e práticos para um capaz desempenho das funções45. Relativamente aquelas empresas de segurança privada que possuem o próprio centro de formação46, o director de segurança deve ter um papel fiscalizador junto do mesmo, nomeadamente, garantindo que a formação tem a qualidade necessária e esperada, cumpre os conteúdos e duração legalmente estabelecidos e que o aproveitamento do vigilante se traduz efectivamente numa preparação para o inicio das funções. 6.4.1.2. A formação contínua Ao director de segurança compete, designadamente, controlar a formação contínua do pessoal de vigilância e propor à direcção da entidade de segurança privada a adopção Infelizmente a desadequação da formação que se encontra legalmente prevista relativamente ás actuais necessidades da segurança privada, aliada à falta de controlo e fiscalização sobre a duração e conteúdo dos cursos de formação especifica para vigilantes que são efectivamente ministrados – que em alguns casos chegam a ter apenas a duração de 24 horas - em nada têm contribuído para a dignificação do sector e para a qualificação profissional dos vigilantes. 45 Só a criação de verdadeiros centros de excelência capazes de proporcionar uma formação adequada, fazendo a ligação com o mercado de trabalho, garantindo aos seus formandos colocação nas empresas do sector e dando garantias quanto à qualidade dos mesmos poderão transformar a profissão de vigilante numa carreira atractiva para os jovens que buscam uma via profissionalizante para a sua integração na vida activa, dignificando-se assim a profissão e o sector. Na verdade, … as organizações de trabalho são parte cada vez mais interessada nos resultados dos processos de aprendizagem – uma aprendizagem que se deseja a mais completa possível englobando um vasto conjunto de saberes e competências. Do ponto de vista político, ideológico e económico, o investimento no capital humano ressurge como um imperativo fundamental para o bem-estar e desenvolvimento das organizações, num contexto marcado por constantes transformações do mercado de trabalho, de alcance cada vez mais globalizado. Prolifera uma extensa variedade de alternativas para os jovens que optem pelo prosseguimento de estudos no nível secundário, cada uma delas possuindo enquadramentos normativos e regulamentares distintos que definem as suas naturezas e finalidades. A oferta educativa e formativa, a este nível, tenta responder, de múltiplas formas, a diferentes projectos vocacionais esforçando-se por conciliá-los com as necessidades do mercado de trabalho. A panóplia de oportunidades formativas situa-se num continuum entre a teoria (perfis formativos de índole mais académica) e a prática (perfis formativos de natureza mais profissionalizante) ou ainda, entre o que comummente se entende por educação e formação... – Leonor Maria Lima Torres e Marcelo Machado Araújo, Estudo do CIED da Universidade do Minho). 46 No que concerne propriamente aos centros de formação para vigilantes, entende-se que estes deveriam ser sempre autónomos das empresas de segurança privada, evitando-se assim um possível conflito de interesses entre a qualidade da formação e as necessidades operacionais da própria empresa, que pode conduzir a uma formação mais apressada dos futuros agentes de segurança privada. 44

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de iniciativas adequadas para atingir a constante preparação do pessoal de vigilância 47. Assim, no cumprimento desta obrigação, é da responsabilidade do director de segurança: a) Assegurar a formação contínua aos vigilantes, no seu local de trabalho e como um reforço permanente da formação base, nos termos e condições do artº 131º do Código do Trabalho; b) Promover as acções de formação em SCIE, sob a forma de acções destinadas a todos os vigilantes, ou de formação específica, destinada aos vigilantes que lidam com situações de maior risco de incêndio (artº 21º, nº1, alínea d), Decreto-Lei nº 220/2008, de 12 de Novembro e 206º, nº 2, Portaria 1532/2008, de 29 de Dezembro - Regulamento Técnico de SCIE); c) Propor à direcção da entidade de segurança privada a adopção de iniciativas adequadas a promover a informação, consulta e formação adequada que habilite os trabalhadores a prevenir os riscos associados à respectiva actividade (artº 282º, nº 1 e 3 do Código do Trabalho) d) Determinar as áreas e conteúdo da formação contínua de acordo com a política48 e a necessidade da empresa (artº 133, nº1 Código do Trabalho). e) Propor à direcção da entidade de segurança privada a adopção de planos de formação para o pessoal de vigilância. 6.4.2. Treino do pessoal de vigilância A expressão treino refere-se à aquisição de conhecimento, habilidades e competências como resultado de formação profissional ou do ensino de habilidades práticas relacionadas a competências úteis específicas. O treino forma o núcleo da aprendizagem e fornece a espinha dorsal de conteúdo em escolas politécnicas. Além do treino básico exigido por um ofício, ocupação ou profissão, os avanços tecnológicos e a competitividade do mundo moderno exigem que os trabalhadores actualizem constantemente as suas habilidades, ao longo de toda sua vida profissional49. O treino embora se confunda com a formação contínua, distingue-se, todavia, por dirigir a sua eficácia, regra geral, para um horizonte de curto/médio prazo. Por outro lado o treino a que o legislador se quis referir não é o treino físico do pessoal de segurança, porque esse só pode ser da responsabilidade do próprio vigilante, que se deve manter fisicamente apto para o exercício da sua profissão. Cfr artº 2º, nº 1 alínea d), Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro. Deverá haver uma constante incidência no modulo referente à deontologia profissional, nomeadamente quanto ao padrão ético, deveres, funções, atitudes e comportamentos no serviço, bem como o modulo de técnicas de vigilância, o qual deve ter uma forte componente prática - com especial incidência no capitulo das buscas e revistas - atento o melindre das situações envolvidas ao nível dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, nos casos previstos no artº 6º, nº 6 e 7 do Decreto-Lei nº 35/2004, de 21 de Fevereiro, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 38/2008, de 8 de Agosto e no artº 12º, nº 1 da Lei nº 16/2004, de 11 de Maio. 49 Cfr. http://pt.wikipedia.org/wiki/Treinamento. 47 48

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Assim, incumbe ao director de segurança, enquanto responsável pelo treino do pessoal de vigilância: a) Promover o treino dos vigilantes com vista a criação de rotinas de comportamento e aperfeiçoamento de procedimentos de segurança, em especial em casos de emergência e evacuação, testando os planos de segurança e planos de emergência internos, nomeadamente, através da realização de acções de formação especifica no respectivos locais de trabalho e a realização de eventuais simulacros50; b) Promover o treino do pessoal na utilização de novas ferramentas tecnológicas (v.g. novos programas informáticos; centrais de recepção de monitorização de alarmes; novas tecnologias de detecção de intrusão e CCTV; monitorização via GPS; etc), através de acções específicas de formação, externas ou internas, de forma a garantir uma constante actualização profissional. c) Propor à direcção da entidade de segurança privada a adopção de planos de treino para o pessoal de vigilância. 6.4.3. Actuação do pessoal de vigilância 6.4.3.1. Proibições No âmbito dos diversos serviços que as actividades de segurança privada estão autorizadas a desenvolver51, o director de segurança, como responsável pela actuação do pessoal de vigilância, tem a obrigação de assegurar que a actividade se exerce sempre dentro dos limites previstos na lei, em especial no que respeita ao exercício de práticas proibidas na actividade. Nos termos do artº 5º, do Decreto-Lei, nº 35/2004, de 21 de Fevereiro É proibido, no exercício da actividade de segurança privada: a) A prática de actividades que tenham por objecto a prossecução de objectivos ou o desempenho de funções correspondentes a competências exclusivas das autoridades judiciárias ou policiais; b) Ameaçar, inibir ou restringir o exercício de direitos, liberdades e garantias ou outros direitos fundamentais, sem prejuízo do estabelecido nos nºs 5 e 6 do artigo v.g. para efeito das medidas de autoprotecção previstas para efeitos de SCIE (vide, artº 21º, nº1, alínea e), Decreto-Lei nº 220/2008, de 12 de Novembro). Sobre as condições em que os simulacros devem ser realizados, vide artº 207º da Portaria nº 1532/2008, de 29 de Dezembro. 51 Nos termos do artº 2º, nº 1 do Decreto-Lei nº 35/2004, de 21 de Fevereiro, A actividade de segurança privada compreende os seguintes serviços: a) A vigilância de bens móveis e imóveis e o controlo de entrada, presença e saída de pessoas, bem como a prevenção da entrada de armas, substâncias e artigos de uso e porte proibidos ou susceptíveis de provocar actos de violência no interior de edifícios ou locais de acesso vedado ou condicionado ao público, designadamente estabelecimentos, certames, espectáculos e convenções; b) A protecção pessoal, sem prejuízo das competências exclusivas atribuídas às forças de segurança; c) A exploração e a gestão de centrais de recepção e monitorização de alarmes; d) O transporte, a guarda, o tratamento e a distribuição de valores. 50

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seguinte; c) A protecção de bens, serviços ou pessoas envolvidas em actividades ilícitas. Assim, exige-se ao director de segurança que seja um profundo conhecedor da legislação sobre organização e regime jurídico da segurança privada, bem como sobre direitos, liberdades e garantias e outros direitos fundamentais52, pois só assim poderá garantir que a actuação do pessoal de vigilância se exerce sempre dentro dos seus respectivos limites de competência (considerando a sua função subsidiaria e complementar da actividade das forças e dos serviços de segurança publica do Estado), e se exerce licitamente, com pleno respeito pelos direitos, liberdades e garantias ou outro direitos fundamentais.53 6.4.3.2. Deveres gerais ao nível da actuação do pessoal A Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro, veio impor ao director de segurança algumas obrigações ao nível da responsabilidade pela actuação do pessoal de vigilância. Assim, são obrigações do director de segurança: 6.4.3.2.1. Analisar as situações de risco, planificar e programar as actuações concretas a implementar na realização dos serviços de segurança contratados54 O director de segurança deve ser um perito em análise e avaliação de riscos. Deve planificar e programar sempre a actuação concreta do pessoal de segurança em função das ameaças ou vulnerabilidades concretas de cada cliente ou serviço. 6.4.3.2.2. Inspeccionar o pessoal bem como os serviços de segurança privada prestados pela respectiva entidade de segurança privada55 O director de segurança deve promover a fiscalização e controlo da actuação do pessoal de vigilância, nomeadamente, através da realização regular de inspecções e auditorias aos respectivos serviços. Deve ainda elaborar as medidas correctivas/preventivas que se vierem a mostrar necessárias para corrigir as eventuais falhas ou quebras de segurança detectadas, bem como acompanhar a sua implementação.

Sobre esta questão, vide ponto ….infra. Deve haver um especial dever de cuidado por parte do director de segurança, atenta a restrição legal aos direitos fundamentais que representa, quando a actividade exercida se enquadre nas situação excepcionais consagradas na lei para os casos das buscas ou revistas, previstos no artº 6º, nº 6 e 7 do Decreto-Lei nº 35/2004, de 21 de Fevereiro, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 38/2008, de 8 de Agosto e no artº 12º, nº 1 da Lei nº 16/2004, de 11 de Maio. 54 Cfr. artº 3º, nº 2, alínea a), Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro. 55 Cfr. artº 3º, nº 2, alínea b), Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro. 52 53

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6.4.3.2.3. Propor a adopção de sistemas de segurança adequados e supervisionar a sua aplicação56 O director de segurança deve ter amplos conhecimentos de segurança, ao nível das diversas matérias que foram ministradas na formação específica para admissão à profissão57. O director de segurança, entre outros, pode elaborar: - Plano Global de Segurança e planos de segurança; - Planos de emergência internos; - Planos de contingência; - NEP’s; - Procedimentos de serviço e instruções de carácter técnico. Assim, exige-se que o director de segurança tenha amplos conhecimentos, permanentemente actualizados, sobre os meios técnicos de protecção existentes, nomeadamente os meios activos e passivos para protecção de informação/ matérias classificadas; para controlo de acesso e intrusão; contra incêndio; de segurança laboral; pois só assim poderá estar em condições de elaborar um plano de segurança global e eficaz. O director de segurança deve ainda conhecer, saber gerir e dirigir os serviços de segurança, nomeadamente, das matérias/informações classificadas; sistemas de controlo de acessos; exploração e gestão de centrais de recepção e monitorização de alarmes; transporte, guarda e tratamento e distribuição de valores; protecção pessoal; instalação e manutenção de sistemas de segurança e vigilância, etc., pois só assim poderá estar em condições de propor a adopção de sistemas que sejam efectivamente adequados ao riscos concretos de cada serviço. 6.4.3.2.4. Assegurar, sempre que necessário ou quando solicitado, a ligação e a colaboração com as forças e serviços de segurança, sendo o principal responsável por esse contacto e colaboração58. A actividade de segurança privada tem uma função subsidiária e complementar da actividade das forças e dos serviços de segurança pública do Estado. Desta forma, no âmbito dos deveres de colaboração a que estão sujeitas, as entidades titulares de alvará ou de licença, bem como o respectivo pessoal, devem prestar às autoridades públicas toda a colaboração que lhes for solicitada59. Em caso de Cfr. artº 3º, nº 2, alínea c), Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro. Vide, sobre esta matéria, ponto 3.2.2. supra. 58 Cfr. artº 3º, nº 2, alínea e), Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro. 59 Incluindo em situações de grave crise ou calamidade nacional e estado de sitio, atento os poderes atribuídos aos Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna em matéria de coordenação das diversas forças e serviços de segurança, para efeitos de garantir a articulação e coordenação das mesmas com o Sistema Integrado de Operações de Protecção e Socorro; os serviços de emergência médica, segurança rodoviária e transporte e segurança ambiental, no âmbito da definição e execução de planos de segurança e gestão de crises e o Sistema de Segurança Interna e o planeamento civil de emergência (cfr. artº 16º, nº 3, 56 57

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intervenção das forças ou serviços de segurança em locais onde também actuem entidades de segurança privada, estas devem colocar os seus meios humanos e materiais à disposição e sob a direcção do comando daquelas forças 60. Não raras são as vezes em que as empresas que exercem a actividade de segurança privada realizam serviços em estreita colaboração com as forças ou serviços de segurança pública do Estado, nomeadamente, na realização de grandes eventos, nos serviços em instalações aeroportuárias e portuárias, em acontecimentos desportivos, festas populares, etc. Compete pois ao director de segurança assegurar, enquanto responsável pela actuação do pessoal de vigilância e sempre que necessário ou quando solicitado, a ligação e a colaboração com as forças e serviços de segurança, sendo o principal responsável por esse contacto e colaboração61. 6.4.3.2.5. Velar pelo integral cumprimento das normas e regulamentos de segurança privada. Ainda no âmbito da actuação do pessoal de vigilância, a lei impõe ao director de segurança o dever de velar pelo integral cumprimento das normas e regulamentos de segurança privada, colocando-o assim numa posição de garante quanto à legalidade e adequação dessa mesma actuação. Todavia, tal obrigação apenas abrange aquelas normas ou regulamentos que disponham directamente sobre a segurança privada. As normas ou regulamentos de segurança privada devem ser entendidas como o conjunto de boas práticas ou procedimentos de segurança, quer tenham carácter legal ou não, que se encontrem previamente definidos e que devam, de alguma forma, ser considerados para a execução específico de um determinado serviço. São assim normas ou regulamentos de segurança privada, para além dos diplomas legais aplicáveis, os procedimentos definidos no plano global de segurança e planos de segurança, planos de emergência internos, planos de contingência, normas de execução permanente, procedimentos de serviço e instruções de carácter técnico, usos e costumes de segurança, etc. São normas e regulamentos de segurança privada, entre outros, os seguintes diplomas legais: Regime jurídico de Segurança Privada: - Decreto -Lei nº 35/2004, de 21 de Fevereiro – Lei da Segurança Privada. - Lei nº 38/2008, de 8 de Agosto - Procede à segunda alteração ao Decreto-Lei n.º 35/2004 de 21 de Fevereiro, que altera o regime jurídico do exercício da actividade de segurança privada. - Portaria nº 786/2004, de 9 de Julho – Estabelece os requisitos essenciais para a obtenção do alvará e de licença pelas entidades que requerem alíneas b), d) e) e g), da Lei nº 83/2008 (Lei de Segurança Interna). Cfr. artº 17º, nº 1 e 2 do Decreto-Lei nº 35/2004, de 21 de Fevereiro. 61 Cfr. artº 3º, nº 2, alínea e), Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro. 60

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autorização para exercer a actividade de segurança privada, bem como os elementos que devem constar do registo de actividades. - Segurança da Informação/Matérias Classificadas, Segurança Física e Industrial: - Resolução do Conselho de Ministros nº 50/88, de 3 de Dezembro – Instruções para a Segurança Nacional, salvaguarda e defesa das matérias classificadas – SEGNAC 1. - Resolução do Conselho de Ministros nº 37/89, de 24 de Outubro – Normas para a Segurança Nacional, salvaguarda e defesa das matérias classificadas, segurança industrial, tecnológica e de investigação – SEGNAC 2. - Resolução do Conselho de Ministros nº 5/90, de 28 de Fevereiro – Normas para a Segurança Nacional, salvaguarda e defesa das matérias classificadas, segurança informática – SEGNAC 4. - Resolução do Conselho de Ministros nº 16/94, de 22 de Março – Instruções para a Segurança Nacional – Segurança das Telecomunicações – SEGNAC 3. Recintos desportivos: - Portaria nº 1522-B/2002, de 20 de Dezembro - Introduz a figura do assistente de recinto desportivo e define as suas funções específicas e fixa a duração, conteúdo do curso de formação e sistema de avaliação. - Portaria n.º 1522-C/2002, de 20 de Dezembro - Fixa as situações em que é obrigatório o recurso à segurança privada nos recintos desportivos, bem como as condições do exercício de funções pelos assistentes de recinto desportivo. - Lei nº 39/2009, de 30 de Julho - Estabelece o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espectáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança. Estabelecimentos de restauração e bebidas: - Decreto-Lei nº 101/2008, de 16 de Junho - Estabelece as condições objectivas em que os estabelecimentos de restauração e bebidas são obrigados a dispor de um sistema de segurança privada, bem como os meios, humanos e técnicos, considerados indispensáveis ao normal funcionamento desses meios de segurança. Transporte de valores: - Portaria nº 247/2008, de 27 de Março - Estabelece as condições de segurança que devem possuir os veículos afectos ao transporte, guarda, tratamento e distribuição de valores.

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Centrais de recepção e monitorização de alarmes de roubo e intrusão, sistemas de segurança: - Lei nº 67/98, de 26 de Outubro – Lei sobre a protecção de dados pessoais. - Portaria nº 135/99, de 26 de Fevereiro - Regula as condições de exploração e gestão de centrais de recepção e monitorização de alarmes de roubo e intrusão, bem como da instalação, gestão, manutenção e exploração de sistemas de segurança. - Decreto-Lei nº 297/99, de 4 de Agosto - Regula a ligação às forças de segurança, Guarda Nacional e PSP de equipamento de segurança contra roubo ou intrusão que possuam ou não sistemas sonoros de alarme instalados em edifícios ou imóveis de qualquer natureza - Autorização de Isenção nº 5/99 CNPD - Isenta de notificação à CNPD os tratamentos automatizados que tenham por finalidade exclusiva o registo de entradas e saídas de pessoas em edifícios. - Lei nº 1/2005, de 10 de Janeiro - Regula a utilização de Câmara de vídeo pelas forças e serviços de segurança em locais públicos de utilização comum. Formação do pessoal de vigilância: - Portaria nº 64/2001, de 31 de Janeiro - Estabelece normas relativas ao conteúdo e duração dos cursos de formação inicial e de actualização profissional do pessoal de vigilância e de acompanhamento, defesa e protecção de pessoas. - Portaria nº 1325/2001, de 4 de Dezembro - Redefine alguns princípios referentes à formação profissional inicial do pessoal de vigilância, bem como à forma de avaliação dos correspondentes conhecimentos. - Despacho Conjunto nº 370/2002, de 20 de Março - Redefine alguns princípios relativos à formação profissional inicial do pessoal de vigilância e de acompanhamento, defesa e protecção de pessoas, bem como a forma de avaliação dos respectivos conhecimentos. - Portaria nº 1084/2009, de 21 de Fevereiro – Aprova o modelo oficial e exclusivo do cartão profissional do pessoal de vigilância previsto no artº 6º do Decreto -Lei n.º 35/2004, de 21 de Fevereiro, com a redacção introduzida pela Lei nº 38/2008, de 8 de Agosto e define os aspectos relacionados com a sua emissão. - Portaria nº 1124/2009, de 1 de Outubro – Fixa as taxas para a emissão ou substituição dos cartões profissionais de vigilante de segurança privada. - Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro - Regulamenta as condições de acesso e funções do Director de segurança, previsto no artº 7º do DL nº 35/2004, de 21.02. - Código do Trabalho - Artº 130º (Objectivos da formação profissional); artº 131º (Formação contínua); Artº 132º (Crédito de horas e subsídio para formação contínua); artº 133º (Conteúdo da formação contínua).

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Segurança Contra Incêndios em Edifícios (SCIE): - Decreto-Lei nº 220/2008, de 12 de Novembro – Estabelece o regime de segurança contra incêndios em edifícios, abreviadamente designado pró SCIE. - Portaria nº 1532/2008, de 29 de Dezembro – Aprova o Regulamente Técnico de Segurança contra Incêndio em Edifícios (SCIE). Direitos, Liberdade e garantias e outros direitos fundamentais: Constituição da República Portuguesa – Com especial incidência na Parte I (Direito e Deveres Fundamentais – artº 12º e sgts) e nas as disposições constantes do Título II, Capitulo I (Direito, Liberdades e Garantias Pessoais – artºs 24º a 47º). Lei nº 44/86, de 30 de Setembro – Regime do estado de sitio e do estado de emergência. Código Penal Português – Com especial relevo para as matérias que constam do Livro II (Parte especial – artº 131º e sgts), nomeadamente, Título I, Capítulo I (Crimes contra a vida), Capítulo III (Crimes contra a integridade física); Capítulo IV (Crimes contra a liberdade pessoal); Capítulo VII (Dos crimes contra a reserva da vida privada); Título II (Crimes contra o Património), Capítulo II (Crimes contra a propriedade). Código de Processo Penal – artº 242º e seguintes. Atenta a função de subsidiariedade e complementaridade, o director de segurança deve ainda conhecer a seguinte legislação em matéria de Segurança Interna e Politica Criminal: - Lei nº 6/94, de 7 de Abril – Segredo de Estado. - Lei nº 9/2007, de 19 de Fevereiro - Estabelece a orgânica do SecretárioGeral do Sistema de Informações da República Portuguesa, do Serviço de Informações Estratégicas de Defesa e do Serviço de Informações de Segurança. - Decreto-Lei nº 170/2007, de 3 de Maio – Aprova a orgânica do Gabinete Nacional de Segurança. - Lei nº 53/2008, de 29 de Agosto – Aprova a Lei de Segurança Interna. - Lei nº 17/2006, de 23 de Maio – Aprova a Lei-Quadro de Politica Criminal. - Lei nº 38/2009, de 20 de Julho - Define os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2009-2011, em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio (Lei Quadro da Política Criminal).

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6.4.4. Funções Administrativas Considerando que o director de segurança é o responsável pela actuação do pessoal de vigilância62 e que, nesse âmbito, lhe compete efectuar a ligação e a colaboração com as forças e serviços de segurança63, o legislador atribuiu-lhe ainda, a par das funções de âmbito operacional, a execução de tarefas de carácter meramente administrativo, que se encontram intimamente relacionadas com a actuação do pessoal e a própria actividade de segurança privada desenvolvida. São funções administrativas do director de segurança, entre outras: a) Organizar e manter actualizado o registo de actividades, nos termos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 18.º do Decreto -Lei n.º 35/2004, de 21 de Fevereiro;64 b) Organizar e manter actualizado um registo dos incidentes e actos ilícitos ocorridos no interior das instalações da empresa de segurança privada ou em qualquer local onde esta preste serviço, que inclua o tipo de incidente ou acto ilícito ocorrido, o local, a data e a hora, bem como as acções tomadas.65 c) Remeter, trimestralmente (bem como quando solicitado expressamente), por meio seguro, o registo dos incidentes e actos ilícitos de que tenham tido conhecimento ao Departamento de Segurança Privada da Direcção Nacional da Polícia de Segurança Pública.66 d) Elaborar e manter actualizado o registo do crédito de horas para efeitos de formação continua, a que se refere o artº 132º do CT. 6.4.4.1. O registo de actividades As entidades titulares de alvará ou de licença, têm o dever especial de organizar e manter actualizado um registo de actividades permanentemente disponível para consulta das entidades fiscalizadoras,67 sendo que a sua falta integra uma contraordenação grave68. A Portaria nº 786/2004, de 9 de Julho veio regulamentar directamente os requisitos formais a que deve obedecer o registo de actividade. Assim, o registo de actividade deve ser organizado em suporte papel, permanentemente actualizado e disponível, onde constem os seguintes elementos:69 a) Designação e número de identificação fiscal do cliente; b) Número de contrato; Vide, ponto 7.4.3. supra. Vide, ponto 7.4.3.2.4. supra. 64 Cfr. artº 3º, nº 2, alínea g), Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro. 65 Cfr. artº 3º, nº 2, alínea h), Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro. 66 Cfr. artº 3º, nº3, da Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro. 67 Cfr. artº 18º, nº 1, alínea c), do Decreto -Lei n.º 35/2004, de 21 de Fevereiro. 68 Cfr. artº 33º, nº 2, alínea b), do Decreto -Lei n.º 35/2004, de 21 de Fevereiro. 69 Cfr. artº 8º, da Portaria nº 786/2004, de 9 de Julho. 62 63

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c) Tipo de serviço prestado; d) Data de início e termo do contrato; e) Local ou locais onde o serviço é prestado; f) Horário de prestação dos serviços; g) Meios humanos utilizados; h) Meios materiais e características técnicas desses meios. No caso das entidades titulares de licença o registo de actividades deve incluir os elementos previstos nas alíneas f) a h) supra.70 6.4.4.2. O registo dos incidentes e actos ilícitos ocorridos no interior das instalações da empresa de segurança privada ou em qualquer local onde esta preste serviço O director de segurança tem ainda a obrigação de elaborar um registo dos incidentes e actos ilícitos que se tenham verificado no interior das instalações da empresa de segurança privada ou em qualquer local onde esta preste serviço, que inclua o tipo de incidente ou acto ilícito ocorrido, o local, a data e a hora, bem como as acções tomadas. O legislador não definiu o conceito de incidente nem o conceito de acto ilícito, antes deixou ao cuidado do intérprete tal tarefa. Importa, pois, proceder a uma prévia delimitação de tais conceitos, para que se possa compreender bem o conteúdo e alcance desta obrigação. 6.4.4.2.1. A vinculação temática dos incidentes e actos ilícitos às questões da segurança Em termos de senso comum parece manifesto que nem todos os incidentes ou actos ilícitos deverão ser dignos de registo. Na verdade, se por um lado não se dúvida que uma troca de insultos entre vigilantes, ocorrida no interior das instalações da empresa de segurança privada após o seu turno de serviço, constitui um acto ilícito71, pode tal facto não constituir sequer um incidente digno de registo, por não ter qualquer significado no âmbito das actividades de segurança desenvolvidas pela empresa e das funções desempenhadas pelo director de segurança, devendo-se deixar na disponibilidade dos respectivos interveniente a possibilidade de apresentar, ou não, a respectiva queixa crime. Assim, não pode entender-se que o legislador pretendeu impor ao director de segurança uma obrigação de participar, indiscriminadamente, todos os incidentes e factos ocorridos no interior das instalações da empresa de segurança privada ou em qualquer local onde esta preste serviço, apenas pelo simples facto 70 71

Cfr. artº 8º, nº 2, da Portaria nº 786/2004, de 9 de Julho. Crime de Injuria, p.p. no artº 181º do Código Penal.

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de que teve conhecimento dos mesmos no exercício das suas funções. Antes se deve exigir uma relação temática entre os incidentes e factos ilícitos e as actividades de segurança desenvolvidas pela empresa, sob pena de se pretender instituir, sob a égide do director de segurança, um garante da legalidade com contornos muito mais para além daquilo que o legislador pretendeu, ao prever que o mesmo exerce as suas funções com subordinação directa à administração ou gerência da entidade que exerce a segurança privada. Assim, tendo em conta a necessária vinculação temática dos factos relevantes à actividade exercida resulta, como uma primeira conclusão, que apenas deverão ser considerados dignos de registo aqueles incidentes ou factos ilícitos que estejam relacionados com questões de segurança e que se insiram no âmbito das actividades de segurança privada desenvolvidas pela empresa. 6.4.4.2.2. Os incidentes Tomando como ponto de partida a definição apresentada pelo Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea – Academia das Ciências de Lisboa, é o seguinte o conceito de incidente: Incidente – substantivo masculino (do lat. Incidens, part. Presente de incidere cair) 1. Acontecimento ou facto de pouca importância que sobrevém no decurso de uma acção, de um empreendimento, de um negócio…e que pode perturbar o seu desenvolvimento. 2. Acontecimento ou facto de pouca importância em si mesmo mas que pode ter consequências graves. 3. Desordem pública, desacato. 72 Podemos assim, distinguir, como elementos típicos de um incidente: a) Acontecimento ou facto de pouca importância em si mesmo; b) Que sobrevém no decurso de uma acção; c) Pode perturbar o desenvolvimento da mesma; d) Pode ter consequências graves. Ora, transpondo para o âmbito da segurança privada, ou seja, considerando a necessária vinculação temática, temos, como elementos típicos de um incidente: a) Acontecimento ou facto de pouca importância em si mesmo relacionados com questões de segurança; b) Que sobrevém no decurso de uma actividade de segurança privada; c) Pode perturbar o desenvolvimento da mesma; d) Pode ter consequências graves.

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Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea – Academia das Ciências de Lisboa, II Volume, Ed. 2001.

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Face aos elementos assim descritos, podemos concluir que apenas deverão ser dignos de registo aqueles incidentes que tenham efectivamente perturbado o desenvolvimento da actividade ou tido consequências graves, uma vez que, sendo o incidente um facto pouco relevante por natureza, a sua falta de consequências retira-lhe, por maioria e razão, qualquer importância digna de registo. Só assim se pode compreender também que o registo do incidente deva mencionar, para além do tipo de incidente, local, data e a hora, as acções tomadas. Podemos, assim, definir incidente, para efeitos de funções administrativas do director de segurança73, como todos os acontecimentos ou factos de pouca importância em si mesmo, relacionados com questões de segurança e ocorridos ou verificados no âmbito da actividade de segurança privada prosseguida pela empresa, que tenham perturbado o normal desenvolvimento dessa mesma actividade ou tido consequências graves. 6.4.4.2.3. Os actos ilícitos Desde há muito que se reconhece que a actividade de segurança privada contribui de modo relevante para a prevenção da criminalidade, nomeadamente, no que toca aos crimes contra a vida e a integridade física, crimes contra a liberdade pessoal, crimes contra a reserva da vida privada, contra a propriedade e contra a segurança das comunicações, atribuindo-se actualmente à mesma uma função subsidiária e complementar da actividade das forças e dos serviços de segurança pública do Estado. Assim, no que respeita aos actos ilícitos que sejam simultaneamente crimes não se levantam dúvidas quanto à obrigatoriedade de proceder ao seu registo, uma vez que constitui um dever especial das entidades titulares de alvará ou de licença comunicar, de imediato, à autoridade judiciária ou policial competente a prática de qualquer crime de que tenham conhecimento no exercício das suas actividades74. O problema coloca-se com maior acuidade relativamente aos actos que, não sendo embora crime, sejam actos ilícitos, ainda para mais se considerarmos que o legislador impôs tal obrigação mesmo relativamente aos actos ilícitos ocorridos no interior das instalações da empresa de segurança privada. Ora, como se referiu já75, o legislador, ao impor ao director de segurança o dever de velar pelo integral cumprimento das normas e regulamentos de segurança privada, acabou por lhe atribuir um papel fiscalizador da própria actividade, colocando-o numa posição de garante quanto à legalidade em que a mesma decorre e se desenvolve.76 Assim, devem ser actos ilícitos, para efeito desta disposição legal, todos aqueles que, não constituindo crime (pois esses devem ser imediatamente Cfr. artº artº 3º, nº 2, alínea h), Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro. Cfr. artº 18º, nº 1, alínea a), do Decreto -Lei n.º 35/2004, de 21 de Fevereiro. 75 Vide, ponto 5.4.3.1. supra. 76 Independentemente das questões que isso possa suscitar ao nível da isenção e independência que se deve exigir ao director de segurança, quando exerce a sua actividade em subordinação directa à administração ou gerência da entidade que exerce a segurança privada 73 74

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comunicados), violem as disposições legais directamente aplicáveis às actividades de segurança privada77, pois só a fiscalização dessas disposições se integra no dever de velar pelo integral cumprimento das normas e regulamentos de segurança privada, a cargo do director de segurança. Por outro lado, só serão de registo obrigatório aqueles actos ilícitos que os directores de segurança tomarem conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas, aplicando-se aqui, mutatis mutandis, a limitação imposta quanto aos crimes de denúncia obrigatória.78 Desta forma, sempre que o director de segurança, no decurso do exercício das suas funções e por causa delas, se depare com a realização de actos ilícitos - entendendose aqui apenas aqueles em relação aos quais exista a necessária relação ou ligação temática79 com as actividades de segurança privada desenvolvidas pela empresa – está obrigado a registar a ocorrência dos mesmos, quer se tenham verificado no interior das instalações da empresa de segurança privada ou em qualquer local onde esta preste serviço. Esse registo deve ainda incluir o tipo de ilícito ocorrido, o local, a data e a hora, bem como as acções tomadas. 6.4.4.3. Envio do registo dos incidentes e actos ilícitos ao Departamento de Segurança Privada da Direcção Nacional da Polícia de Segurança Pública O directo de segurança deve remeter, trimestralmente, por meio seguro, o registo dos incidentes e actos ilícitos de que tenham tido conhecimento ao Departamento de Segurança Privada da Direcção Nacional da Polícia de Segurança Pública, bem como quando solicitado expressamente. 6.4.4.4. Elaborar e manter actualizado o registo do crédito de horas para efeitos de formação continua, a que se refere o artº 132º do CT. Considerando as responsabilidades do director de segurança ao nível da formação contínua, este deverá ser igualmente responsável por elaborar e manter actualizado o registo do crédito de horas obrigatório para o efeito, referido no artº 132º do CT. Vide, ponto 7.4.3.2.5. supra. Vale aqui, por maioria de razão, a aplicação do princípio contido no artº 242º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal, a propósito da denúncia obrigatória de crimes. De acordo com esta disposição legal a denúncia é obrigatória, ainda que os agentes do crime não sejam conhecidos: b) Para os funcionários, na acepção do artigo 386.º do Código Penal, quanto a crimes de que tomarem conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas. Nos termos do artº 386º do Código Penal, o conceito de funcionário, para efeito de lei penal, abrange: c) Quem, mesmo provisória ou temporariamente, mediante remuneração ou a título gratuito, voluntária ou obrigatoriamente, tiver sido chamado a desempenhar ou a participar no desempenho de uma actividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, ou, nas mesmas circunstâncias, desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar. 79 Vide, ponto 7.4.4.2.1. supra. 77 78

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7. DEVERES 7.1. O segredo profissional ou dever geral de sigilo O directo de segurança está ainda obrigado a segredo profissional80. O legislador não definiu um regime específico para o segredo profissional do director de segurança, nomeadamente quanto ás matérias abrangidas pelo mesmo e aos casos em que é possível proceder à sua dispensa. Desta forma, e tratando-se de uma matéria tão sensível como as actividades de segurança privada, deve-se entender o segredo profissional na sua vertente mais ampla, ou seja, como um dever geral de sigilo relativamente a toda e qualquer informação, seja ou não classificada, de que tenha tomado conhecimento ou que lhe tenha sido confiada no exercício das suas funções, ou ainda cujo conhecimento lhe tenha sido facilitado pelo cargo que exerce.81 A quebra do segredo profissional apenas pode ser determinada nos termos da legislação penal e processual penal82. 7.2. Deveres específicos O director de segurança tem ainda os seguintes deveres específicos: 7.2.1. Comunicar às forças e serviços de segurança todos os elementos que cheguem ao conhecimento das entidades onde presta serviço e que possam concorrer para a prevenção da prática de crimes83 As actividades de segurança privada têm fundamentalmente em vista à protecção de pessoas e bens, bem como à prevenção da prática de crimes.84Assim, em atenção ao carácter eminentemente preventivo da actividade, o legislador impôs ainda ao director de segurança a obrigação de comunicar às forças e serviços de segurança todos os elementos que cheguem ao conhecimento das entidades onde presta serviço e que possam concorrer para a prevenção da prática de crimes. Por os elementos que cheguem ao conhecimento das entidades onde presta serviço e que possam concorrer para a prevenção da prática de crimes devemos entender aqueles actos preparatórios ou actos de execução de um crime que ainda não se verificou, pois relativamente ao crimes de que tenha tido conhecimento, a obrigação é de

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Integra o crime de violação de segredo por funcionário a divulgação não autorizada de matéria sujeita a segredo profissional, nos termos do artº 383º do Código Penal, por força do disposto no artº 383º, nº 1, alínea d), do mesmo diploma. 82 Sobre esta matéria, vide artºs 134º (escusa de depoimento); 135º(segredo profissional); 136º (segredo por funcionários), todos do Código de Processo Penal. 83 Cfr. artº artº 4º, alínea a), Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro. 84 Cfr. artº 1º, nº 3, do Decreto -Lei n.º 35/2004, de 21 de Fevereiro. 81

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comunicação imediata.85 Os actos preparatórios de um crime são já actos externos que preparam ou facilitam a execução, mas ainda não são actos de execução86. O seu conceito delimita-se, aliás, pela definição dos actos de execução do crime. Assim, o critério legal para a distinção entre actos preparatórios e actos de execução é um critério objectivo. Os actos de execução hão-de conter já, eles próprios, um momento de ilicitude, pois ainda que não produzam a lesão do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora do crime consumado, produzem já uma situação de perigo para esse bem. O legislador definiu no artº 22º do Código Penal, a propósito da tentativa87, o que são acto de execução de um crime. De acordo com esta disposição legal, são acto de execução de um crime: a) os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime; d) os que forem idóneos a produzirem o resultado típico; e) os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicados nas alíneas anteriores. Actos de execução de um crime são, portanto, aqueles actos dotados de idoneidade (capacidade potencial de produção do evento) e de inequivocidade. E acto preparatório é o acto que, além de inidóneo, deverá apresentar-se como equívoco, isto é, ambíguo. 7.2.2. Participar às entidades competentes qualquer facto que indicie a prática de crime. Por definição, indícios são sinais, marcas, indicações de ocorrência de um crime, são circunstâncias que têm conexão verosímil com o facto incerto de que se pretende a prova;88 são factos que embora não demonstrando a existência histórica do factum probandum, demonstram outros factos, os quais, de acordo com as regras da lógica Cfr. artº 18º, nº 1, alínea a), do Decreto -Lei n.º 35/2004, de 21 de Fevereiro. Germano Marques da Silva - Direito Penal, II, 1998, pág. 232. 87 É frequente dizer-se que a tentativa constitui um crime imperfeito, o que é verdade quando se reporta a tentativa ao crime que o agente decidiu cometer e que fica incompleto. Nessa medida, a tentativa é um crime incompleto, um minus relativamente ao crime consumado, mas, do ponto de vista estrutural, a tentativa é um crime perfeito porque apresenta todos os elementos da estrutura essencial do crime em geral. Assim, no plano normativo, a tentativa constitui um título autónomo de crime, caracterizado pelo evento ofensivo que lhe é próprio (perigo), embora conservando o mesmo nomen juris do crime consumado (tipo) a que se refere e de que constitui execução incompleta. A configuração da tentativa como ilícito autónomo nasce da conjugação das duas normas: a da parte especial que incrimina determinado facto e a do art. 22º que estende a incriminação a actos que não representam ainda a consumação do crime a que se referem. Há, pois, fusão de duas normas: a da parte especial que prevê determinado tipo de crime que o agente queria cometer e a da parte geral que estende a punição ao comportamento que o agente efectivamente comete (cfr. neste sentido e entre outros, Ac. TRL, de 30.1.2008, Proc. nº 0714132; Ac. TRP, de 21.01.2009, Porc. nº 0845984, ambos em www.dgsi.pt). 88 Manuel José Caetano Pereira e Sousa, in Primeiras Linhas sobre o Processo Criminal, pg. 43. 85 86

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e da experiência comum, permitem tirar ilações quanto ao facto que se visa demonstrar.89 A palavra indício usa-se também, para designar não só o facto indiciante90, mas também o facto indiciado e acontece que também o facto indiciante pode ser por sua vez indiciado por outro91 (daí a sua equivocidade). O director de segurança está, desta forma, obrigado a participar todos os factos que constituam indícios da ocorrência de um crime, devendo considerar como indícios de um crime, todas os sinais, marcas ou outras indicações ou circunstâncias que apontem para a sua provável verificação. 8. O problema da responsabilidade O Legislador impôs ao director de segurança grande responsabilidade em funções tão vitais como a preparação, treino e actuação do pessoal de vigilância. De entre estas responsabilidades, destaca-se a função de garante e fiscal do cumprimento das normas e regulamentos em vigor em matéria de segurança. Todavia, embora tenha definido o conteúdo funcional dessa responsabilidade, não previu a lei para o director de segurança uma única sanção específica para o incumprimento dessas obrigações. Antes pelo contrário, apenas lhe impôs que exerça a sua actividade em subordinação directa à administração ou gerência da entidade que exerce a segurança privada, o que acabou por esvaziar de conteúdo a responsabilidade que se quis impor. Também a responsabilidade de zelar pelo cumprimento das normas e regulamentos de segurança em vigor irá colocar sérios problemas ao director de segurança em matéria de independência e isenção, pois não se pode pretender que este fiscalize eficazmente o exercício da sua própria actividade, ainda para mais quando a exerce em subordinação directa à administração ou gerência da entidade que exerce a segurança privada. Por outro lado, em matérias tão vitais como a elaboração de um plano global de segurança ou de um plano de emergência interno, em que o director de segurança actua como um verdadeiro perito, com especiais conhecimentos científicos decorrentes da sua formação académica obrigatória, o legislador acabou por lhe retirar toda e qualquer responsabilidade pelos prejuízos decorrentes de erros ou omissões de projecto, ao lhe ter retirado a necessária autonomia e independência técnica (uma vez que só pode propor a adopção de sistemas de segurança adequados e supervisionar a sua aplicação), para que se possa efectivar essa mesma responsabilização92. Paulo Saragoça da Matta, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, pg. 227 Os elementos bastantes para estabelecerem no julgador a convicção, maior ou menor, da existência do facto delituoso e da participação nele do arguido em termos de se presumir a sua condenação (Cfr. Ac. TRP, de 22.10.2008, Proc. nº 4910/08, em www.dgsi.pt). 91 Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II vol., pg. 97. 92 Ao contrário do que se passa na grande maioria das profissões cuja actividade compreende a elaboração de projectos de carácter técnico, como os engenheiros ou os arquitectos, em que a sua 89 90

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9. Conclusões finais O Decreto-Lei n.º 35/2004, de 21 de Fevereiro e a Portaria nº 1142/2009, de 2 de Outubro vieram criar um estatuto profissional para o director de segurança. Contudo a definição dos contornos exactos dessa profissão ao nível das obrigações instituídas e a sua correcta articulação com os níveis de responsabilidade pretendidos, não é isenta das maiores dúvidas interpretativas, como se viu. Assim, considerando a importância indubitável que a função irá desempenhar no sector, seria de todo conveniente, de jure constituendo, que se procedesse, por um lado, a uma clarificação do estatuto profissional, por outro, a um reforço das competências atribuídas, nomeadamente: 9.1. Autonomia técnica O director de segurança actua como um verdadeiro perito, com especiais conhecimentos científicos decorrentes da sua formação académica obrigatória, em matérias tão vitais como a elaboração de um plano global de segurança ou de um plano de emergência interno. Desta forma, torna-se imperioso atribuir-lhe a necessária autonomia e independência técnica em função dos seus especiais conhecimentos, só possível através da criação de um código deontológico. 9.2. O Código Deontológico A consagração da autonomia e independência técnica do director de segurança deve ser acompanhada da criação de um forte código de conduta e deontologia profissional, a impor por uma entidade que seja representativa de todos os profissionais da classe.93. Só assim se poderá garantir e salvaguardar uma total isenção e independência do director de segurança, ainda que actuando em subordinação directa à administração ou gerência da entidade que exerce a segurança privada. 9.3. A responsabilidade civil Consagrando-se autonomia técnica dos directores de segurança promovese a sua responsabilidade civil como técnicos superiores de segurança, nomeadamente, pelos danos decorrentes de erros, omissões ou deficiente responsabilização por erros ou omissões de projecto provem precisamente do facto de se encontrar sempre salvaguardada, i.e., mesmo naqueles casos em que existe uma subordinação jurídica decorrente de um contrato de trabalho, a sua autonomia técnica. 93 Neste sentido, veja-se o caso dos técnicos de segurança e higiene do trabalho, cujo estatuto profissional (Decreto-Lei nº 110/2000, de 30 de Junho) consagra, desde logo, um código deontológico (artº 4º) que salvaguarda a sua autonomia técnica.

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execução de quaisquer projectos de segurança que sejam da sua autoria ou cuja implementação esteja a seu cargo. Atento aos níveis elevados de responsabilidade que as empresas de segurança privada têm a seu cargo, o legislador deveria impor ao director de segurança a obrigatoriedade de possuir um seguro de responsabilidade civil profissional, para os riscos próprios da actividade. 9.4. A existência de um organismo representativo de todos os profissionais da classe94. A importância que a função do director de segurança ira desempenhar no exercício das actividades de segurança privada é inquestionável. A necessidade de instituir um organismo - quer seja sobre a forma de associação, câmara ou ordem profissional - que seja representativo de todos os profissionais da classe, é inevitável, uma vez que só através de uma representação forte e eficaz poderão os directores de segurança contribuir para dignificar e moralizar o sector. Tal organismo representativo da classe deveria ter, entre outras, as seguintes atribuições: - Aplicar as sanções disciplinares pelas infracções ao Código Deontológico da profissão; - Dispor sobre o regime de segredo e os casos de escusa e de dispensa de sigilo. - Negociar Seguros de Grupo para o seguro de responsabilidade civil profissional dos directores de segurança, com cobertura dos riscos próprios da actividade. 9.5. A representação dos directores de segurança no Conselho de Segurança Privada Por último, e atenta a importância da função em matéria de ligação e coordenação com as forças de segurança publica do Estado, seria de todo conveniente que os directores de segurança passassem a ter representação no Conselho de Segurança Privada, a par com outros intervenientes na actividade de segurança privada, nomeadamente através de um organismo representativo de todos os profissionais da classe. 10. Bibliografia Fernandes, António Monteiro. Noções Fundamentais de Direito do Trabalho. 12ª ed., Almedina Editora. 94

Nomeadamente a Associação dos Directores de Segurança.

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Veiga, António Jorge da Motta. Lições de Direito do Trabalho. 7ª ed., Universidade Lusíada Editora. Xavier, Bernardo da Gama Lobo. Direito do Trabalho. Universidade Católica Editora. Henriques, Manuel de Oliveira Leal, Santos, Manuel José Carrilho De Simas. Código Penal Anotado. 3ª ed., Rei dos Livros Editora. Gonçalves, Manuel Lopes Maia. Código de Processo Penal Anotado. 17ª ed., Almedina Editora. Silva, Germano Marques da. Direito Penal. Vol II, 1998. Sousa, Manuel José Caetano Pereira e. Primeiras Linhas Sobre O Processo Criminal. Matta, Paulo Saragoça da. Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais. Miranda, Jorge, Medeiros Rui. Constituição Portuguesa Anotada. Coimbra Editora. Prata, Ana. Dicionário Jurídico 4ª ed., Almedina Editora. Academia das ciências de Lisboa. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea. Vol II, Verbo Editora, Ano 2001. Vivas, Francisco Xavier Illán. Monografia Director de Seguridad. Coellho, Fernando Da Cruz. Analise da Politica Institucional de Segurança Privada. Um Estudo Comparado, Ano 2006. Torres, Leonor Maria Lima, Araújo, Marcelo Machado. Estudo do CIED da Universidade do Minho.

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