CARNAVAL DE Várzea
Alegre - Brejo Santo
Edição n º 7Ano 4
Expediente
Edição
7
Juazeiro do Norte, novembro de 2021
Repórteres: Aline Fiuza
Amanda Nobre
Andressa Yare
Guilherme Figueiredo
Sarah Frutuoso
Wesley Vasconcelos
Colaboração: Asafilm
Família Karimai
Instituto Karimai
Margarida Costa
Pâmela Queiroz
Rauan Leite
Ruy Eudes
Samuel Macêdo
William Guedes
Ilustração e colagem digital: Júlia Marques
Sarah Frutuoso
Capa: Asafilm
Revisão: Aline Fiuza
José Anderson
Sandes
Wesley Vasconcelos
Projeto gráfico e diagramação: Paulo Anaximandro
Tavares
Professor Orientador: José Anderson Sandes
Revista experimental do projeto Memórias Kariri, vinculado à Pró-Reitoria de Cultura e à Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Cariri
Quantas histórias fazem o Cariri?
Há uma diversidade de Cariris dentro da nossa região. São narrativas que constroem nossa identidade e que estão presentes além das cidades metropolitanas. Riquezas espalhadas por todos os municípios que integram esse lugar que exala cultura. Por isso, nos perguntamos: Quantas histórias fazem o Cariri e onde estão localizadas?
Na sétima edição da Memórias Kariri, buscamos apresentar o balaio de narrativas que tem por toda a região. Através dos caminhos que estão interligados, viajamos pelo Cariri para conhecermos histórias que estão resguardadas em Assaré, Várzea Alegre, Tarrafas, Potengi, Juazeiro do Norte e Brejo Santo. Assim, trazemos uma palinha dos tantos Cariris que encontramos nessa caminhada de memórias.
Em Assaré, a repórter Amanda Nobre nos leva ao Memorial Patativa do Assaré para conhecermos os mistérios do prédio onde são guardados os pertences de um dos maiores poetas do Brasil. Ela ainda nos apresenta ao Museu de Hugo, um espaço dedicado à memória nordestina que fica localizado na loja de bicicletas do professor Hugo Carvalho.
De lá, partimos para Várzea Alegre, onde eu conto a história da Escola de Samba Unidos do Roçado de Dentro, que há 58 anos mantém viva sua tradição de levar alegria para o carnaval da cidade. São memórias carregadas ao longo do tempo através das fantasias e dos carros alegóricos que preservam a cultura carnavalesca regional.
O repórter Wesley Vasconcelos nos guia até Tarrafas para conhecermos Maria das Dores, uma professora, tabeliã, compositora e memorialista que escreveu em seus cadernos a história da sua cidade e de pessoas que nela viveram, deixando de herança para o mundo.
No texto “Os quilombos de Potengi: Das estradas encantadas aos movimentos de terreiro”, a repórter Andressa Yare mostra como as comunidades quilombolas do Catolé, Carcará e Sassaré demarcam a identidade e a raiz ancestral do berço que constitui a história do município de Potengi.
Sobre as artes, Guilherme Carvalho conta a história de Luís Karimai, o artista que chegou a Juazeiro do Norte e ajudou a moldar o cenário artístico do Cariri, demonstrando em suas obras a sensibilidade do mais simples cotidiano do nosso sertão.
Também sobre o carnaval caririense, a repórter Sarah Frutuoso apresenta o bloco O Cabeção, de Brejo Santo, que teve início como uma brincadeira de rua e se tornou uma das representações carnavalescas mais importantes da cidade. Hermano Cavalcante e Ruy Eudeus, integrantes da diretoria do bloco, narram suas memórias da folia.
É assim que vamos transitando pelas memórias do Cariri. E ainda temos muitas histórias para conhecer e contar.
Boa leitura.
Aline Fiuza
Memorial Patativa do Assaré ESURD Da roça à avenida A trajetória de uma contadora de histórias Território quilombola de Potengi As cores de Luís Karimai O Museu de Hugo Entre bicicletas e memórias História e carnaval de Brejo Santo 04 36 46 14 28 36 46 56 64 04
MEMORIAL PATATIVA DO ASSARÉ
Um prédio, muitas histórias
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Memórias Kariri Novembro 2021
Quem visita Assaré, no interior caririense, tem como passagem obrigatória o Memorial Patativa do Assaré. Apesar de carregar Patativa no nome, o prédio representa muito mais do que um espaço onde são guardados os pertences de um dos maiores poetas do Brasil. Localizado na rua Coronel Francisco Gomes, n° 82, esquina com a rua Vicente Liberalino, está situado em frente à lateral da Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores. O casarão já foi um pouco de tudo: delegacia e cadeia, escola, hotel, casa de prostituição e a primeira sede do sindicato dos trabalhadores rurais. Lá ocorreu um misterioso suicídio cercado por muito misticismo, assombrações, lendas e fenômenos.
Texto: Amanda Nobre
Fotos: Rauan Leite
Construído em 1885 pelo major Camapum com a finalidade de ser uma residência, hoje faz parte da história da cidade. Por ser um prédio histórico, bonito e bem localizado, em 1999 foi comprado pelo governo do Estado para tornar-se sede do memorial Patativa do Assaré. Atualmente, conta com oito cômodos, sendo a recepção um local de acolhida, com uma vitrine de produtos à venda – souvenirs, livros e cordéis.
Na primeira sala, encontra-se um pouco da biografia de Patativa, desde o seu nascimento, a viagem ao Pará, o Patativa repentista, as particularidades do Poeta, a família e o Patativa escritor; na segunda sala, percebe-se a influência do rádio na vida do Poeta, com os programas de tevê e as fotografias de eventos, os escritores famosos que falaram sobre o Poeta, rima e métrica; na terceira sala, estão expostos troféus e homenagens que Patativa recebeu na sua trajetória poética; na quarta sala, estão as medalhas e honrarias de Patativa; na quinta sala, temos a distinção entre Patativa Poeta e Patativa Cordelista, também é relatado nessa sala a literatura de cordel e a influência na vida do Poeta; na sexta sala, há um telecentro, espaço disponibilizado de maneira gratuita para todos que queiram acessar a internet, para trabalhos, pesquisas e arquivos virtuais; na sétima sala, há a religiosidade do Patativa, contendo pertences como: oratórios, terços, rosários e imagens sacras.
O Casarão
Para contar a história do casarão, a Memórias Kariri conversou com Daniel Gonçalves –neto de Patativa e atual responsável pelo memorial – e com o professor Antônio Crispim,
pesquisador da memória local e autor do livro “História do Assaré” (2019).
O prédio foi construído para ser uma residência de luxo, apenas pessoas ricas tinham condições de erguê-lo. O major Camapum era membro da guarda nacional, a construção custou quatro contos de réis, uma fortuna para a época. A arquitetura do prédio é bem caraterística do século XIX, estilo colonial, com três pavimentos - piso, portas e janelas de madeira.
O professor de matemática, Antônio Crispim de Melo, 71 anos, estuda e se interessa pela história do Assaré desde jovem.
“Quando fiz o curso de matemática, paguei uma cadeira chamada História e Filosofia da Matemática, comecei a pesquisar sobre os matemáticos antigos, principalmente os gregos, e isso me fez gostar da pesquisa. Discutia muito nas escolas com os professores de história que conheciam a fundo a história da Grécia antiga, Roma antiga, de tudo e desconheciam o quintal da própria casa. Muitas vezes você pergunta: ‘Quem é teu avô? Quem é teu bisavô?’ Já não se sabe. Até hoje é desse jeito, e isso me fez com que me interessasse por buscar as minhas raízes, só que para buscar as minhas raízes, do meu pai, o pessoal sempre estudou e tinha os arquivos, mas já da parte da minha mãe foi muito mais difícil. Tive que pesquisar tudo, aí com isso surgiu o interesse pela história do Assaré”.
Nas memórias de Crispim, o casarão tem um significado – ao explicar,
“Quando eu era menino, vi uma placa escrito ‘exposto à venda’, fiquei horrorizado com aquela informação, aquilo ficou encucado na minha mente, daí fui perguntar ao meu pai o que significava. Ele me disse que significava que os donos querem vender. Eu não entendi, pois uma casa que é construída para criar filhos, netos, não podia ser vendida, fazia parte da família”
Prof. Crispim
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ele parafraseia com uma crônica do médico e escritor Moacyr Scliar.
“Quando eu era menino, vi uma placa escrito ‘exposto à venda’, fiquei horrorizado com aquela informação, aquilo ficou encucado na minha mente, daí fui perguntar ao meu pai o que significava. Ele me disse que significava que os donos querem vender. Eu não entendi, pois uma casa que é construída para criar filhos, netos, não podia ser vendida, fazia par-
estava no campo de futebol, quando chegou a notícia que seu Cartaxo tinha se suicidado a gente correu para lá. A polícia já estava no local e não queria deixar ninguém entrar. Então, eu disse que ele é filho do seu Cartaxo, aí foi que deixaram ele entrar. Era uma segunda-feira, meio-dia”.
O poeta Daniel Gonçalves, 34 anos, neto de Patativa e responsável pelo Memorial, também relata aos visitantes do casarão muitas histórias
no último andar do prédio. Socorreu as pessoas naquele momento de necessidade, houve um período em que as pessoas não tinham o que comer em casa, os filhos passavam fome e o povo se reunia em mutirão para saquear as feiras, em 1976. Se minha memória não me falha também na década de 1980, em 1983. O Cartaxo evitou que coisas desse gênero acontecessem. Prejudicava quem estava em casa, e quem saía, a todos. Lógico que depois os agricultores honestos pagavam para ele, muitas vezes ele perdoava. Ninguém entendia muito porque aquele homem cometeu suicídio, um neto dele falou pra mim que o dinheiro que ele deixou dos bens, dava de sobra, sobrava em torno de 30% à 40%, era suficiente pra pagar os débitos que ele tinha”.
Lendas e Mitos
“Socorreu as pessoas naquele momento de necessidade, houve um período em que as pessoas não tinham o que comer em casa, os filhos passavam fome e o povo se reunia em mutirão para saquear as feiras, em 1976”
te da família. Muitos anos depois eu encontrei uma crônica de Moacyr Scliar, que tinha o pensamento semelhante ao meu sobre uma casa em Vitória da Conquista.
Suicídio
Neste prédio, ocorreu o suicídio do então delegado José Cartaxo Rolim, em 25 de outubro de 1966, que até hoje gera dúvidas. Crispim presenciou este acontecimento e conta:
“Ele suicidou-se no quarto do segundo andar. Nesta época, eu era muito menino, amigo de Leocácio, filho de seu Cartaxo, e a gente
sobre o prédio, além do acervo, vida e obra do seu avô. Sobre a morte do delegado Cartaxo, ele relembra:
“Esse suicídio foi misterioso porque na época ele tinha sido delegado. Num período em que só havia três autoridades na cidade: o padre, o prefeito e o delegado. Depois, muito tempo depois, uma outra figura de respeito era o gerente do banco. O Cartaxo foi delegado mais de uma vez e era muito respeitado. Numa das secas, inclusive, entre as décadas de 1950 e 1960, houve uma seca muito forte e ele ajudou o povo do Assaré com legumes que guardava
O poeta Daniel opina sobre a existência de assombrações e fantasmas no casarão. “Dizem que aqui tem assombrações, porque, além do suicídio do delegado, ele foi utilizado como bordel. Uma vez um senhor aqui da cidade me desmentiu na frente de um repórter dizendo que era mentira, que isso não tinha acontecido. Eu fiquei triste, mas daí fui pesquisar, passei um ano com anotações, falei com seu Djacir, Crispim, Chagas, Tio Mundim,
os mais antigos. A maior prova que a gente tem é a testemunha ocular e naquele momento eu descobri a verdade, depois de tanto pesquisar. Na época do coronelismo era comum os homens frequentarem bordéis, durante o período em que a mulher estivesse menstruada, todos faziam vista grossa. Só que era inadmissível um bordel ao lado da Igreja, isso não podia em hipótese alguma. Daí o memorial foi utilizado como bordel, mas era uma coisa insignificante, a dona ficava na recepção, o homem chegava e se interessava
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A igreja é refletida de cabeça para baixo no quarto em que ocorreu o suicídio do Sr. Cartaxo, na década de 1960. A imagem é espelhada durante todo o ano
Daniel do Assaré
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A Torre da Igreja Matriz de Nossa Senhora Das Dores é símbolo da cidade e uma das construções mais antigas, datada de 1838
pela menina e dizia ‘quero me hospedar’, e ‘se hospedar’ era de maneira mascarada no mesmo quarto que o coronel, isso foi pouquíssimas vezes, até porque o machismo era mais forte do que é hoje, ela tinha que sair de madrugada antes do coronel. A rua do bordel era a rua Vicente Liberalino, esse bequinho de baixo, conhecido como beco do pecado, e o prédio ficava na travessa do beco do pecado”.
Outra peculiaridade que acontece exclusivamente no quarto do suicídio de seu Cartaxo é o fenômeno de refletir a imagem da igreja de cabeça para baixo. O fenômeno é chamado câmara escura e é explicado pelo princípio físico da propagação retilínea da luz. Esse evento permite que os raios luminosos atinjam o objeto, passando pelo orifício da câmara. Assim, projetando a imagem na parede paralela ao orifício. Esta projeção produz uma imagem real invertida do objeto na superfície fotossensível. Quanto menor o orifício, mais nítida é a imagem formada, pois a incidência de raios luminosos vindos de outras direções é bem menor.
“Nosso olho vê tudo de cabeça para baixo e nosso cérebro corrige, o que acontece no memorial é basicamente isso, penso que seja. A igreja reflete de cabeça para baixo na sala em que o finado Cartaxo cometeu suicídio, durante todo o ano, só vai mudar a posição. Alguns acreditam no misticismo que ali é algo mais espiritual, porque foi lá que ele cometeu suicídio, mas a gente não acredita, uma vez já fechamos todas as frestas possíveis, e a imagem não saiu, ela continuou ali”, explica Daniel.
que afeta o piso de madeira, ou então algum gato no andar de cima.
Igreja Matriz
A imagem que é projetada de cabeça para baixo no memorial é da Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores. Assim como o memorial, também é uma construção histórica, datada de 1838, no topo de uma colina para que pudesse ser vista de todos os lugares. Em 1842, foi destruída porque já não comportava mais a demanda da população, e então foi reconstruída poucos metros acima. Em 1912, houve outra ampliação, a cargo do mestre Joaquim, foram acrescentados os estulques (acabamentos) da Igreja.
“Ele disse que vinha de cabeça baixa e quando levantou pensou que era Santa Joana D´arc, ela de branco, de chapéu, alva que tava vermelha porque tava um sol quente, aí disse que quase que caía de costas.”
Prof. Crispim
Crispim relata, “Você já viu duas pessoas brigarem por dinheiro? Já? Mas uma querendo o da outra, né isso? Mas uma querendo dar e a outra sem querer receber, muito difícil né? Quando o padre Agamenon chegou em Assaré achou a torre muito baixinha, feia, em comparação ao tamanho da Igreja, uma igrejona enorme, ampla, bem construída com uma torrezinha pequena que não condizia com a igreja. Aí ele (o padre) conversando com o Mestre Zezinho, que não perdia uma missa, depois da missa de domingo, convidou o Mestre Zezinho pra tomar um café e conversar sobre a construção da torre. Aí ele fez as medições, o orçamento, aí fizeram a empeleita. Recomendou que o padre Agamenon encomendasse a cal na localidade do Taboleiro, localizado aproximadamente 6,5 km do centro do município de Antonina do Norte-CE”.
Outros fenômenos estranhos também ocorrem no casarão, mas, conforme Daniel relata, são todos acontecimentos que a ciência é capaz de explicar. A exemplo disso, portas batendo por conta do vento, rangidos e barulhos acontecem por conta da mudança de clima
A partir dessa encomenda surgiu uma história de amor entre Zé Ferreira e Margarida Arrais, um dos casais mais unidos da história do Assaré. Crispim relembra, “E então o Pe. Agamenon mandou Zé Ferreira ir buscar essa cal lá, quando ele vinha voltando encontrou Dona
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Daniel apresenta com carinho a vida, obra e curiosidades sobre o avô, Patativa do Assaré
Margarida Arrais que ia pra Antonina para a casa de uma irmã dela. E eles não se conheciam, apesar de morarem bem pertinho. Ele disse que vinha de cabeça baixa e quando levantou pensou que era Santa Joana D´arc, ela de branco, de chapéu, alva que tava vermelha porque tava um sol quente, aí disse que quase que caía de costas. Eles sempre foram muito apaixonados, até ela falecer”.
A construção terminou, mas o Mestre Zezinho não queria ficar com o dinheiro que havia sobrado. “O padre disse que o dinheiro era dele, mas ele não queria receber, pois era o dinheiro de Nossa Senhora. Discussão vai, discussão vem, daí o Mestre Zezinho disse que ia procurar algo pra gastar o dinheiro, com esse dinheiro ele construiu os minaretes em volta da Igreja”, diz Crispim.
Memorial
O espaço do casarão é duplamente histórico, hoje abriga os pertences de Patativa do Assaré e quem o visita aprende tanto sobre a
trajetória do Poeta quanto sobre a história local. Daniel relata esse papel de ter uma dupla responsabilidade, perpassando pelas memórias do avô, bem como as da cidade:
“Quando o prédio é vendido para alguém da tecnologia ou algum empresário, o que acontece com o prédio? Ele vira loja. A gente já viu aqui na cidade alguns exemplos disso, e a história da cidade vai se acabando. Por outro lado é bom pra gente, porque o prédio tem um pedaço de Assaré e um pedaço de Patativa junto, então esse prédio que a gente tá dentro já foi hotel, sindicato, correios, escola, delegacia, tudo isso é parte da história de Assaré. Não adianta falar só sobre Patativa, quero falar também sobre a história da minha cidade, que era uma das coisas que Patativa também fazia em vida”.
Além disso, vale ressaltar que visitar o casarão é algo importante, para conhecer a história de Patativa diretamente das fontes oficiais, contada pelos funcionários e familiares dele,
“É diferente um poeta declamar, porque eu nasci com essa habilidade do que uma pessoa declamar porque tentou e estudou para aquilo.”
Daniel do Assaré
diferentemente das informações distorcidas, por vezes encontradas na internet. Conhecer e diferenciar o Patativa homem, poeta e agricultor é algo que só se pode fazer numa visita ao memorial. Outro atrativo importante é a questão da poesia, o poeta Daniel diz: “É diferente um poeta declamar, porque eu nasci com essa habilidade do que uma pessoa declamar porque tentou e estudou para aquilo. E também de certa forma estou falando da minha vida, então é tranquilo demais receber visitas”.
Dentre os pontos turísticos de Assaré, as visitas realizadas no memorial são as mais completas, e contam com guias turísticos. “Aqui você não fica limitado nem preso só ao memorial, se você disser eu quero visitar a casa de Patativa (Serra de Santana, aproximadamente 15km do centro da cidade), o guia vai até lá em cima, o guia leva ao mercado, à Igreja, tudo a gente faz nesse segmento”, conta Daniel. Outras atrações como oficinas de cordel, saraus,
apresentações de viola também são gratuitos, ministrados pelo próprio Poeta Daniel e outros artistas locais. Todas as atrações do memorial são gratuitas, não há taxa de entrada. “Quando foi para o memorial ser fundado, o meu avô (Patativa) já tinha a visão de que se a gente tivesse que vender materiais ou cobrar entrada seria contra a vontade dele. Ele acharia injusto, supomos um exemplo, comparado com outros museus, a entrada seria R$10,00 ou R$8,00 tudo bem uma escola classe média, classe média alta iria visitar tranquilamente, mas aquela escola bem pobre mesmo não viria, seria mais um degrau pra ela não vir”, diz Daniel. O memorial está aberto de terça a sábado, das 8h às 16h, além disso, no período de pandemia, está funcionando com visitas virtuais, através de transmissões pela plataforma Google Meet
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Da roça à avenida
Escola de Samba Unidos do Roçado de Dentro
No Sítio Roçado de Dentro, zona rural de Várzea Alegre, agricultores todos os anos durante o carnaval trocam suas enxadas por instrumentos musicais e fantasias para realizar o desfile da Escola de Samba Unidos do Roçado de Dentro (ESURD). A tradição é repassada entre gerações há 58 anos, envolvendo crianças, jovens, adultos e idosos. A escola de samba transformou a realidade da comunidade, permitindo a superação de barreiras sociais impostas pelo paradigma de que o “matuto” da roça não pode ir além do campo. Com as raízes fincadas na terra fértil e no ritmo, eles mostraram que são capazes de fazer um carnaval que remodelou a identidade do sítio e da cidade. A música e o samba correm nas veias dos filhos do sítio Roçado.
Texto: Aline Fiuza
Foto: Asafilm
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VÁRZEA ALEGRE
AEsurd é considerada a primeira agremiação carnavalesca rural do Brasil, surgida a partir de uma brincadeira dos moradores do Roçado de Dentro. Em 1963, um grupo de aproximadamente doze agricultores decidiu brincar o carnaval na cidade. Na época, havia um abismo social entre a zona urbana e a zona rural, em que os moradores dos sítios eram excluídos da sociedade. Mas, foi com os rostos pintados por carvão e tocando os instrumentos musicais emprestados da banda cabaçal, que os moradores do Roçado fizeram o percurso até o centro da cidade, dispostos a enfrentar com música e sorrisos os preconceitos existentes.
Ao longo desse caminho de dois quilômetros, os foliões convidavam mais pessoas para juntar-se ao grupo que, com animação, tocavam, cantavam e dançavam as marchinhas de carnaval aprendidas de tanto ouvir o músico Pedro Souza cantar enquanto trabalhavam na roça, no intuito de amenizar o cansaço do trabalho rural. Durante o trajeto, encararam alguns momentos de hesitação, com receio da reação da classe alta ao ver os agricultores saindo do campo e invadindo a cidade. Por isso, paravam em bares para tomar cachaça e, assim, motivados pelo álcool,
perdiam a vergonha e o medo de serem ridicularizados.
O Bloco dos Sujos, como o grupo ficou conhecido no início, com sua animação atraiu os olhares da população da zona urbana que, no ano seguinte, decidiu se juntar à festa dos agricultores. Assim, são considerados cerca de dez fundadores entre moradores do Roçado e da sede, com Pedro Souza e Mestre Tim sendo os principais nomes de liderança. O bloco surgiu para inverter os atores e juntar as classes sociais de Várzea Alegre, tornando-se uma ponte para que os mais pobres pudessem participar do carnaval dos mais ricos, esquecendo a realidade da exclusão pelo menos naqueles dias de festividade.
Antonia Sousa, conhecida como Tonha, 71, agricultora e irmã do Mestre Tim, acompanhou de perto todo o desenvolvimento da Esurd e relembra os primeiros anos da escola. “O começo foi bem simples, mas era muito animado. Eles tinham muito entusiasmo para cantar, mesmo sem caixa de som. Era eles cantando, com poucos instrumentos, mas dava para ouvir. Não era melhor do que é hoje, mas já era bem bonito e as despesas eram muito poucas. Era uma coisa que não tinha, era uma novidade. O começo foi
aqui”. Sentada na sala de sua casa, Tonha conta com os olhos brilhando que os ensaios inicialmente aconteciam lá, com uma grande reunião que fazia a sala ferver com o pessoal sambando enquanto o terreiro ficava cheio com os integrantes da bateria tocando.
Nos anos seguintes, o número de pessoas interessadas em participar do desfile aumentou expressivamente e muitos elementos das escolas de samba do eixo Rio-São Paulo foram agregados pelos agricultores. O grupo foi se estruturando e ganhando samba-enredo, alas e fantasias. Na década de 1980, foi formada a primeira diretoria, que comprou novos instrumentos para a bateria e também deu início a criação da identidade visual da escola, aderindo às cores preto e amarelo. Com um desfile organizado, o carnaval de Várzea Alegre tornou-se atração para visitantes e ganhou uma grande centralidade na economia da cidade. O carnaval estabeleceu-se como uma das principais atividades culturais do município que, posteriormente, viria a se tornar um polo carnavalesco.
Quando os agricultores entenderam a importância da escola de samba para a cultura da cidade, decidiram transformar o grupo em uma associação legítima. Com a iniciativa, seria possí-
“Além de fortalecer, ela mantém a chama acesa. Aqui é um ponto de cultura, temos uma certificação de ponto de cultura que é reconhecida no estado inteiro, uma referência super importante para o município” Neném
vel participar de projetos de incentivo financeiro, visto que o grupo passava por dificuldades econômicas para manter os avanços das produções do carnaval, com as fantasias mais elaboradas e um número de participantes sempre em crescente. O estatuto da associação do Roçado de Dentro foi escrito a muitas mãos e, em 1997, a história jurídica da escola de samba foi legitimada. O grupo assumia oficialmente o nome de Escola de Samba Unidos do Roçado de Dentro.
Desfile da Esurd em 1964, segundo ano em que a escola de samba saiu pelas ruas de Várzea Alegre
Foto: Asafilm
VÁRZEA ALEGRE
A Esurd se desenvolveu com o objetivo de integrar a comunidade, contribuir com a cultura varzealegrense e manter a tradição dos desfiles da escola de samba. Hoje possui uma sede localizada no sítio, construída pelo povo, após campanhas de arrecadação de dinheiro e com muito trabalho e esforço dos moradores da comunidade. A sede é composta por uma cozinha, uma sala de computadores e um pavilhão, onde são realizados eventos e os ensaios da bateria. Além disso, reúne instrumentos musicais, computadores, câmera fotográfica, mesas e cadeiras disponíveis para o uso da população. Muitos dos equipamentos foram conquistados por meio de recursos derivados de projetos de incentivo à cultura.
Maria da Conceição, conhecida como Neném, 42, é a atual presidente da escola de samba. Moradora da comunidade vizinha, conheceu seu marido, Valdir, filho do Mestre Tim, no Roçado de Dentro, onde juntos construíram sua família. Ela conta que enquanto presidente pretende agregar as novas gerações para manter o carnaval do Roçado vivo. “Um objetivo que eu almejo é ter mais envolvimento das novas gerações, das minhas filhas mesmo que são netas do Mestre Tim, um dos fundadores. Envolver mais esses jovens para que eles percebam como a cultura é importante para vida da gente, como a cultura humaniza, fortalece vínculos e pode ajudar em dimensões que a gente sequer imagina”.
Mulheres na Esurd
A Esurd demorou anos para acolher as toadas femininas. No início, as mulheres participavam apenas dos bastidores, costurando as roupas do bloco. Elas nem acompanhavam o cortejo pela cidade, apenas assistiam à saída do grupo do sítio tocando o frevo. As mulheres começaram a ter suas primeiras participações compondo o desfile na década de 80, quando o grupo passou a assumir as características e estruturação de escola de samba. Elas atuaram na produção e também na avenida em algumas alas, como passistas e porta-bandeiras.
Mas na bateria, considerado o principal setor da escola, as mulheres demoraram a ocupar espaço. Fundamentado em princípios machistas presentes na sociedade na época e persistentes até hoje, as mulheres precisaram conquistar a confiança e a admiração dos agricultores para
O tema do desfile de 2018 foi “Na imaginação de uma criança”. Os integrantes da bateria saíram fantasiados de soldadinho de chumbo
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Foto: Asafilm
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Memórias Kariri
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Rainha da bateria no desfile de 2019, que teve como tema “Ritmos Musicais”. A ala da bateria representava o Olodum
provarem que eram capazes de tocar os instrumentos. Foi em 1991 que o primeiro grupo de meninas desfilou tocando na bateria. A participação feminina na ala dividiu a opinião dos integrantes, com alguns acreditando que elas iriam atrapalhar a tocada.
Mas, o Mestre Tim, líder da bateria por dezesseis anos, insistiu na participação das jovens que, com chocalhos e tamborins, protagonizaram um momento histórico para o Roçado. Tonha relembra a insistência do Mestre Tim para permitir a inserção das mulheres no grupo da bateria. “Tim tanto conhecia que as meninas não iam atrapalhar como tinha confiança nos cabras que eram seguros. Sabia que não era pouquinha coisa que atrapalhava eles. Ele garantiu que elas não iam atrapalhar. E eu me lembro da admiração que uns tiveram ao ver as meninas tocando bem”.
A escola de samba contribui com o desenvolvimento de competências pessoais dos participantes. Na bateria, aprendem a tocar uma diversidade de instrumentos. Na fabricação das fantasias, desenvolvem as técnicas do desenho e da costura. Nas coreografias das alas e blocos, dedicam-se à dança. Desse modo, estão sempre motivados a desenvolver o lado artístico que corre nas veias de quem é do Roçado. A Esurd funciona como uma grande escola para aqueles que se envolvem e participam do processo de construção dos desfiles e também para aqueles que assistem.
Primeiro samba-enredo da ESURD, composto por Pedro Sousa
Em 1963 em uma simples Brincadeira pela estrada Se uniram todos de uma vez Fazendo aquela batucada
Brincando, tocando, cantando Pulando, sambando. Mostrando talento, foi quando Nasceu a escola de samba Unidos do Roçado de Dentro
O tempo rolando crescendo Fazendo uma nova geração legal Lutando fazendo crescer uma escola de samba tradicional Mantendo os unidos do samba Roçado de Dentro em carnaval.
Após a estreia, com a novidade ainda incomodando os valores de alguns homens, as mulheres demoraram dez anos para integrar a bateria pela segunda vez. A partir dos anos 2000, quando a participação feminina já era presente inclusive em cargos da diretoria da instituição, as mulheres ganharam um lugar fixo na bateria. Hoje, cerca de vinte mulheres levam seu talento através dos instrumentos para a avenida nos carnavais, mostrando que o ritmo e a música do Roçado está presente no sangue e não no gênero.
“Ela é conhecida até fora do Brasil e parece que a maior admiração é por ser de agricultores”
Além do carnaval, a instituição também atua em outras frentes de manifestação cultural, como banda cabaçal, dança do maneiro-pau, dança do coco, reisado e grupo de caretas, realizando apresentações nos eventos culturais de Várzea Alegre e das cidades vizinhas. Em 2000, a escola formou uma quadrilha junina, com todos os integrantes pertencentes ao Roçado e participaram do festival municipal. Em todas essas atividades, a escola de samba demonstra seu potencial enquanto manifestação cultural e sua riqueza em contribuir com a preservação das tradições.
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Projetos sociais
Nessa longa caminhada de quase sessenta anos, além de tornar-se uma forte manifestação cultural, a Esurd transformou a realidade do Roçado de Dentro. A instituição conquistou projetos governamentais de água e de melhoria das estradas do sítio, possibilitando melhores condições de vida. Além disso, muitos projetos sociais para a comunidade foram desenvolvidos, como aulas de percussão e aulas de violão para comunidades carentes. Os instrumentos da escola estão disponíveis para serem utilizados para cursos e atividades voluntárias. A escola também dispõe de um acervo de livros e de computadores para o uso de toda a população do sítio.
No âmbito social, as raízes não são esquecidas.
A cultura também é promovida dentro da própria comunidade do Roçado de Dentro. A escola realiza festas comemorativas, como dia das mães, dia dos pais e dia das crianças, voltadas para os moradores com o intuito de reuni-los e promover um momento de lazer. É uma forma de agradecer às pessoas que sempre contribuem com a escola e retribuir todo o esforço e dedicação de quem faz parte da Esurd. Os eventos contam com apresentação de peças, gincanas, músicas e dança.
Em 2021, a Esurd ganhou um projeto sobre gênero e sexualidade, recebendo vinte e três livros sobre temáticas de feminicídio, violência contra a mulher e masculinidade. Com o conteúdo, pretendem produzir um documentário chamado “Unidas do Roçado”, para dar um protagonismo para as mulheres, que muitas vezes são esquecidas nas narrativas sobre a história da escola.
Foto: Asafilm
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“Falou na Esurd, está falando em mim. Falou da Esurd, me pertence. Se não me conhecem, mas a Esurd tá conhecida, pois tá bom, eu tô dentro. Eu tô dentro desse conhecimento. Vai comigo quando eu for”
Tonha
Ademais, a instituição pretende realizar, assim que possível, novas atividades voltadas para a sociedade, como aulas de música, contação de histórias, etc.
Marta Alves, 34, agricultora e filha do Mestre Tim, acredita que com um maior engajamento da população, os recursos da Esurd poderiam realizar ainda mais projetos sociais. “Um dos intuitos seria exatamente conseguir o projeto e aqui sustentar a cultura como também dar apoio a toda a população. Como a gente é mais próximo da Varjota, um bairro mais carente, a gente sempre visa trazer o pessoal de lá para cá. Mas tudo isso precisava de alguém para liderar. Porque a gente se dedica muito ao carnaval e às vezes esquece dessa parte de projetos sociais. Já que tem um espaço desse e tem a possibilidade de muitas pessoas aprenderem, era só ter alguém disponível para organizar”.
Neném argumenta que se fosse possível uma pessoa se dedicar especificamente à realização dos projetos, a escola poderia contribuir ainda mais com a sociedade. A dificuldade é encon-
trada porque as pessoas engajadas também realizam outros trabalhos e acabam não tendo muito tempo para contribuir exclusivamente com a escola. Ela ressalta que a instituição tem toda a estrutura, com o espaço e os instrumentos, mas falta uma organização com pessoas que realmente tenham compromisso para desenvolver projetos e contemplar muitas pessoas.
O desfile
Durante o ano inteiro são realizados eventos de arrecadação de dinheiro para a construção do desfile, como gincanas, apresentações culturais, domingueiras e forrós. Além disso, a escola também conta com a contribuição de patrocinadores e com um incentivo financeiro da prefeitura. Outras atividades promovidas para a arrecadação da verba são a venda das camisas dos desfiles e de bebidas e comidas durante os ensaios na sede. Para diminuir as despesas, algumas alas são custeadas pelos seus integrantes, que pagam o valor de suas fantasias e dos aparatos decorativos para o setor. Porém, as alas principais como as baianas, comissão de frente, bateria, rainha, porta-bandeira, são bancadas pela escola.
A preparação para o desfile tem início cerca de dois meses antes do carnaval, com a compra do material das fantasias e os ensaios das alas e
da bateria. Marta conta que geralmente a diretoria tenta se planejar para começar a organização do desfile com mais antecedência mas, na maioria das vezes, acontecem imprevistos. Entretanto, ela ressalta que a preparação acontece ao longo do ano inteiro, com a organização dos eventos de arrecadação.
Apesar de ter surgido em uma época de segregação entre a sociedade, toda a população pode participar do desfile, basta apenas demonstrar o interesse e engajar-se. A Esurd nasceu no Roçado de Dentro mas pertence a todos os varzealegrenses e visitantes que se encantam Brasil afora. Crianças, jovens, adultos e idosos, todos são bem-vindos na escola de samba, que apresenta alas infantis e destinadas para a terceira idade e para famílias inteiras. Entretanto, para participar da bateria é necessário passar por alguns testes, já que o setor exige a técnica dos instrumentos.
A quantidade de alas e participantes varia a cada desfile, dependendo muito do tema escolhido. Mas, em média, a escola apresenta vinte alas e conta com a participação de trezentas pessoas, nos blocos, na segurança e na organização. Neném relembra que já tiveram alguns desfiles que foi preciso limitar a quantidade de pessoas porque estava em um número muito grande e o som da bateria não iria dar conta
Francisco Alexandre de Meneses (Mestre Chiquinho) e Francisco Alves de Menezes (Mestre Tim), fundadores da Esurd
Foto: Arquivo pessoal
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Memórias Kariri
Asafilm
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Carro alegórico do desfile da Esurd de 2017, com o tema “Façam suas apostas pois a sorte está lançada” Foto:
Novembro 2021
VÁRZEA ALEGRE
para ficar presente durante todo o percurso. Mas ela ressalta que sempre tentam engajar a maior quantidade de pessoas possível nos desfiles.
Em alguns anos de crise financeira no país, a Esurd se viu impossibilitada da realização do desfile como é de costume, visto que os gastos para a organização de todas as fantasias são altos. Assim, nos carnavais mais difíceis, a escola decidiu sair na avenida apenas com a bateria, carro-chefe do desfile, e umas poucas alas, como a comissão de frente, porta-bandeira e mestre sala e o bloco das pessoas com as camisas da escola. Como diz Tonha, “o importante é a tocada da bateria”, e se o som da Esurd está na avenida, a população está satisfeita.
Em 2021, por conta da pandemia de Covid-19 que o mundo enfrenta, o desfile de carnaval não foi realizado, seguindo as orientações de segurança estabelecidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que proíbe eventos de aglo-
sociação sem fins lucrativos e não há verba para pagar todos os serviços. Assim, a escola precisa de pessoas dispostas a se envolver e dar apoio, visto que com o passar do tempo a equipe está ficando cada vez mais reduzida.
“Tem que ter uma equipe para trabalhar na arrecadação do financeiro e na organização. O engajamento é difícil porque tem que saber trabalhar bem direitinho com outras pessoas. É trabalhar com ovos. Muitas pessoas não entendem a hora que a pessoa está estressada e já ficam chateadas. A dificuldade é engajar e a pessoa saber que aquilo ali é um trabalho social, apresenta o carnaval mas também outras coisas na comunidade. Você poder contar com pessoas que têm responsabilidade e que tenham a iniciativa de ajudar”, analisa Marta.
Para Neném, outro desafio é mostrar às pessoas a importância da cultura e como ela é algo maior do que apenas associar pessoas: “A cultu-
“se precisarem do cabaçal, dança do maneiro pau, do reisado, dos caretas, do carnaval, tem tudo aqui. Não é à toa que o carnaval que saiu na Globo, no Jornal Nacional, foi o desfile do Roçado de Dentro”
Marta
meração de pessoas. Mas para não passar em branco, a prefeitura realizou uma live sobre a história da Esurd. Foi a primeira vez ao longo dos 58 anos de história, que as ruas de Várzea Alegre não foram ocupadas pela escola de samba. Contudo, a fé sempre foi um dos alicerces da Esurd e é com ela que esperam os dias melhores. A expectativa e o desejo é de que no próximo ano as belezas e os encantos do Roçado voltem a ser admirados na avenida.
Dificuldades
Além das dificuldades financeiras, por ser dependente da contribuição da população, outro obstáculo que tem sido encontrado para a manutenção das atividades da escola de samba é a falta de engajamento. Para a realização do desfile de carnaval é necessária a contribuição e participação de voluntários, já que é uma as-
ra é muito maior do que um interesse pessoal. A cultura serve para a evolução espiritual, pessoal e para trabalhar em grupo. As pessoas foram educadas cada vez mais para ser individualistas. Hoje, viver em comunidade é uma coisa muito complicada e que está muito entrelaçada com a cultura. Porque a cultura é isso, um conjunto de experiências e práticas vivenciadas no dia a dia que vai se modificando de acordo com as nossas vivências”, diz.
Visibilidade nacional e tradições
Com seu crescimento, a Esurd ultrapassou os limites geográficos não só entre as zonas urbana e rural, mas levou sua alegria e animação para todo o país. Através da escola de samba, o Roçado de Dentro ganhou evidência no Brasil, tornando-se um símbolo de cultura e sendo tema de matérias nos principais jornais brasileiros, como
o Jornal Nacional e o El País. Tirou do anonimato a história desse povo humilde, persistente e alegre, que também foi estampado em páginas de um livro, o “Unidos do Roçado”. Levou o nome do Roçado de Dentro para a mídia, contando a história da única escola de samba formada por agricultores do país. Hoje Roçado de Dentro é sinônimo de Esurd. “Ela é conhecida até fora do Brasil e parece que a maior admiração é por ser de agricultores”, observa Tonha com um sorriso no rosto.
A tradição da Esurd se mantém viva até hoje. O percurso nunca mudou: o desfile sai da estrada de terra batida do Roçado até chegar ao asfalto da cidade, que aguarda ansiosa o som das batidas dos tambores. E não só essa tradição permanece intacta, até hoje existem agricultores que moram na comunidade, saem da roça e vão para os ensaios da escola de samba. De fato, a Esurd é um patrimônio de Várzea Alegre e sua história é uma prova viva de resistência aos tempos difíceis. A escola de samba entrelaça vidas, música e cultura de uma gente humilde e feliz, que tem amor à sua terra e que carrega no enredo da sua trajetória a luta para manter viva as tradições do Roçado de Dentro.
Importância para a cultura local Símbolo de persistência, a Esurd quebrou paradigmas preconceituosos e provou que o povo da roça também é cultura. Foi responsável por fortalecer a cultura de Várzea Alegre, movimentando toda a cidade na época do carnaval e preservando as tradições populares. Levou não só o seu nome, mas o da cidade e o do estado para os grandes noticiários. Hoje, se fala em cultura varzealegrense, automaticamente se lembra da escola de samba do Roçado de Dentro. E é através da participação e ajuda de toda a população que as manifestações permanecem vivas no município, que tanto tem a oferecer culturalmente, seja com o carnaval, com o São João ou com outras atividades.
A Esurd tornou-se um ponto de cultura do Ceará, introduzindo Várzea Alegre nesta lista importante no cenário estadual. Segundo Neném, a escola é essencial para a cultura de Várzea Alegre. “Além de fortalecer, ela mantém a chama acesa. Aqui é um ponto de cultura, temos uma certificação de ponto de cultura que é reconhecida no estado inteiro, uma referência super importante para o município. E também é uma fonte de pesquisa para os alunos conhecerem
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Memórias Kariri
Foto: Arquivo pessoal Novembro 2021 25
Em média, a escola apresenta vinte alas e conta com a participação de trezentas pessoas, nos blocos, na segurança e na organização
mais a cultura varzealegrense. Isso tudo é importante para a cultura ser cada vez mais valorizada”, complementa.
Marta ressalta a importância da Esurd em ter sido pioneira no carnaval da cidade, assim, incentivando a cultura carnavalesca no município. Ela destaca que a Secretaria de Cultura de Várzea Alegre reconhece o serviço prestado pela Esurd e sempre tenta trabalhar e incentivar as atividades. “Eles sabem que tem um trabalho feito aqui e tem uma visibilidade maior. Aqui é um ponto de cultura, se precisarem do cabaçal, dança do maneiro pau, do reisado, dos caretas, do carnaval, tem tudo aqui. Não é à toa que o carnaval que saiu na Globo, no Jornal Nacional, foi o desfile do Roçado de Dentro”, conta a agricultora.
Resistência entre gerações
Sobre os desejos e sonhos para o futuro da escola de samba, a resposta é unanimidade: continuar a história da Esurd. Por isso, as novas gerações do Roçado sempre são incentivadas por suas famílias a participarem do desfile, para manter viva a trajetória da instituição. “Aquilo que hoje eu tenho gosto de contar, daqui a alguns anos serão os mais novos contando para os que
vem. E espero que eles tenham vivido também para contar. Cada época vai acompanhando as transformações da sociedade. Sempre mudando e graças a Deus até hoje não teve mudanças para pior”, observa Tonha.
Neném ressalta a importância de continuar incentivando a participação dos jovens na Esurd, para não deixar essa história ser esquecida: “Muitas coisas passaram e não foram recontadas, não foram vivenciadas por essa nova geração porque alguma coisa ficou no tempo. A vida, a correria ou outros atrativos, mas não justifica hoje a gente deixar para trás e a história ficar só em uma caixa de álbum de fotos. E um envolvimento maior dos jovens, das novas gerações do Roçado e de outras pessoas que participam é essencial para que a história não se apague”.
O que se percebe é que a escola de samba só resiste a tanto tempo porque é motivada pelo amor. Amor pelo Roçado de Dentro, pela tradição do carnaval e pelos fundadores. Amor pela história escrita por agricultores que viria a transformar toda a realidade do sítio. “Você só fica porque ama aquilo ali. Eu sei que papai tinha muito amor pela escola, resistiu até no dia que pôde e eu sou do mesmo jeito”, garante Marta
com orgulho na voz. Um orgulho de saber que, assim como seu pai, tem o nome grifado na jornada da Esurd, sentimento carregado por todos aqueles que integram o grupo.
Transformou vidas
A Esurd, com toda sua força cultural, proporcionou muitos ensinamentos para seus integrantes, que enfrentaram preconceitos e dificuldades durante esse percurso. Todos os anos centenas de pessoas são tocadas pelos encantos do carnaval oferecidos pelos desfiles, assim, a escola de samba deixa sua marca nos corações daqueles que participam e também daqueles que assistem com seus olhos brilhando. A Esurd passa na avenida carregando consigo a energia de uma história que é uma prova de amor.
Neném recorda que a Esurd mudou sua visão sobre a cultura e conta que o projeto contribuiu na sua formação enquanto pessoa humana e a fez entender a importância da cultura para uma comunidade, que é capaz de transformar a vida de qualquer pessoa. Marta complementa afirmando que “uma comunidade sem cultura é uma vida morta” e aponta que na escola existe uma cultura viva e atuante, em que as pessoas estão sempre se relacionando e contribuindo uma na vida das outras.
Tonha completa de forma sucinta: “Falou na Esurd, está falando em mim. Falou da Esurd, me pertence. Se não me conhecem, mas a Esurd tá conhecida, pois tá bom, eu tô dentro. Eu tô dentro desse conhecimento. Vai comigo quando eu for”.
Depoimentos de amor
Neném relata todo o seu amor e gratidão por ter sido acolhida pelo Roçado e fazer parte da Esurd: “Eu me sinto muito feliz, orgulhosa e envaidecida. Me sinto muito importante por fazer parte de uma história que tem 58 anos de cultura. Eu não sou filha de fundador, não sou do Roçado de Dentro, e fazer parte dessa história é um privilégio que eu não tenho nem como explicar. É uma sensação tão boa que eu acredito que é isso que faz parte da cultura, estar participando e se envolvendo”.
Já Marta demonstra sua felicidade em ver pessoas de fora da comunidade se engajando no projeto: “Eu sou muito feliz e muito honrada
por participar da Esurd e poder trabalhar e ganhar um conhecimento maior. E uma das minhas felicidades é exatamente uma pessoa como Neném, que não é do Roçado, não é filha de fundador, ser engajada e ter o gosto de estar com a gente. E como ela tem muitos outros que não são daqui, mas que ajudam e gostam de fazer parte e de fazer a história, porque a gente tá fazendo a história agora”.
Tonha compartilha do mesmo sentimento e demonstra todo seu orgulho em contribuir com a trajetória da escola: “Eu sinto muito amor. Me sinto feliz e tenho muita saudade. Desejo que muitos jovens queiram participar e gostem como eu gostei e ainda gosto. A gente tem orgulho de fazer parte dessa história. Sempre quando fazem reportagens sobre a Esurd, quando dizem o nome Escola de Samba Unidos do Roçado de Dentro, aquilo enche o meu coração de alegria e assim continua até hoje”.
Preparação para o desfile em comemoração aos 40 anos da fundação da Esurd, em 2003
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Foto: Arquivo pessoal
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Maria das Dores
A trajetória de uma contadora de histórias
Professora, tabeliã, compositora e memorialista. Uma mulher que viu, ouviu e escreveu tudo o que se passava, Maria das Dores deixou de herança para o mundo o seu caderno de anotar a vida.
Texto: Wesley Vasconcelos
Talvez, a parte mais difícil de escrever em um texto, é o seu início. Pensar quais palavras vão compor as primeiras linhas gera tensão, porque serão as primeiras coisas que você, leitor, vai ler.
As primeiras linhas de um perfil então Como começar? Quais aspectos da vida da nossa personagem merecem vir primeiro? Devo começar em ordem cronológica? Blocar o texto em temas? Fiquei por muito tempo me questionando.
Pensei numa forma diferente. Aqui eu conto a história de uma personagem muito interessante. Com uma memória de elefante e talento para contá-las em seus registros. Mas antes, acho que é importante dizer algumas coisas.
Nossa personagem viveu durante quase toda a vida no município de Tarrafas, interior do Ceará. Na fronteira da região do Cariri com o Centro-Sul cearense.
Aqui, se procurar direitinho, todo mundo é família.
Maria das Dores era prima do meu avô paterno, usei o “era” porque ela já faleceu, ele também, mas acho que o parentesco permanece, né? Então é isso, eles são primos, mesmo que a gente já não possa mais usar o verbo no tempo presente para falar sobre eles.
Uma coisa curiosa é que ela era aquele tipo de pessoa que é amiga de todos os seus amigos, vocês possuem os mesmos círculos de contatos, e só vocês dois não
Foto: Margarida Costa
se conhecem, sabe? Sempre ouvi falar dela, nas conversas com tias, primos e pessoas de gerações anteriores à minha. Maria das Dores para lá e pra cá. Mas quem é essa mulher, afinal de contas?
Até que uma coisa levou a outra, e de história em história, cheguei até ela.
Vamos conhecer, então, nossa memorialista.
Maria das Dores Leite Vasconcelos nasceu no então distrito de Tarrafas, em 1928. Na época, o distrito pertencia ao município de Assaré, e só veio a conseguir sua tão sonhada emancipação na segunda tentativa, em 21 de outubro de 1987. Mas essa é outra história.
Nossa personagem era filha de Abel Leite Araújo Vasconcelos e Joana Pereira Leite Vasconcelos, primos, cujas mães eram irmãs. Filha caçula, Maria das Dores tinha seis irmãos e irmãs: Marieta, Milcides, Nilsa, João (apelidado de Miduda), Antônia e Luiza. Seu avô paterno merece destaque também. Se Rogério Francisco Araújo Vasconcelos não houvesse voltado atrás numa certa escolha, toda uma árvore genealógica seria apagada, afetando até o autor deste texto. Rogério foi estudante em um lugar muito conhecido na história caririense, mesmo não se localizando no Cariri. Ele estudou no Seminário da Prainha. Lembra alguém? Ele mesmo, Padre Cícero Romão Batista. Foram colegas de seminário até bem próximo da ordenação de ambos.
1915. Conceição era a encarregada de cuidar de tudo na igreja. Abel foi o pai de Maria das Dores e Francisco foi meu bisavô. Foi ele quem brigou pela elevação de Tarrafas para distrito, sendo o primeiro vereador representando os tarrafenses.
Mas, voltando à nossa estrela.
Maria das Dores participou da história da cidade de diversas formas, e sua história, bem como a de sua família, se entrelaçam com a história do lugar. Ela também se deu ao trabalho de fazer algo que, até então, ninguém havia feito: pescou suas memórias de episódios vividos, conversas que ouviu do pai e avô, histórias que contaram para ela, e registrou tudo em diversos cadernos. Queria preservar uma memória que ela sentia que estaria correndo perigo de se perder. Ao final, dedicouos para os jovens do futuro.
A sensação ao ler o caderno, é de passar a tarde numa calçada, tomando café e ouvindo uma sábia veterana da vida contar suas memórias
“Essa é a história da fundação de Tarrafas, como foi e quando. Daqui pra frente é para os jovens de hoje”, escreveu na contracapa. O caderno data de outubro de 1998.
Contudo, ela só começou a escrever no caderno quando já estava aposentada. Ainda há uma vida inteira a ser contada.
Independente e inquieta. Ou iluminada, como ela mesma dizia. Maria das Dores ocupou muitas funções durante a vida.
A mudança de ideia aconteceu quando Rogério, em suas visitações ao povoado de Aroeiras, futura Tarrafas, nas quais vinha pedir a benção de sua mãe e participar dos festejos de Nossa Senhora das Dores, conheceu alguém que o fez repensar sua vocação. Abandonou a batina e veio de vez para Tarrafas, pois era com Antonia Leite de Alencar que seu coração estava. Com ela teve quatro filhos: duas meninas, Sifronia e Conceição, e dois meninos, Abel e Francisco. Sifronia foi a primeira pessoa a chegar mais próximo do cargo de professora da vila, sendo uma das únicas até
Seu avô conseguiu um emprego de tabelião em Saboeiro. Lá já havia escolas, onde seus tios foram alfabetizados. Sifronia, tia de Maria das Dores, foi quem a ensinou a ler. No pequeno povoado sem escolas, as aulas aconteciam na casa de Sifronia, e o nível mais alto era a alfabetização. Quem se alfabetizava, seguia alfabetizando os outros, e assim começou um processo em cadeia. Algumas décadas depois, havia mais de 100 casas-escolas funcionando dessa forma.
Maria das Dores foi tabeliã do primeiro cartório de Tarrafas. Registrava os nascidos, ajudava nos casamentos, escrituras e outros afazeres durante muitos anos. Também se dividia nos
TARRAFAS
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Foto: Wesley Vasconcelos 31
Capa do caderno onde Maria das Dores registrou a história de Tarrafas
trabalhos da igreja, auxiliava o padre Agamenon, e organizava os festejos da padroeira, que desde 1919 passou a ser Nossa Senhora das Angústias.
Foi também professora, informalmente, porque o povoado só veio a ter escola em 1970. E foi dela o primeiro contrato municipal, foi professora formal por um bom tempo, até que as inconstâncias da política do interior a tiraram do emprego.
Naquela década, começou o seu período de maiores dificuldades. Maria das Dores nunca casou. Ela dizia que “meu grande amor foi o Luiz Bantim, mas ele casou com outra, então desencantei com o amor”, relembra Aldizio Leite, seu sobrinho. Durante quase dez anos, esteve desempregada, sendo ajudada por parentes e alguns amigos, que mandavam comida, e a ajudavam a sobreviver. Sempre teve uma conexão forte com a família, e quase diariamente, visitava a todos, percorrendo a pé cerca de 10 km para isso.
Mesmo assim, esteve sempre ativa na igreja. A paróquia de
Nossa Senhora das Angústias foi sua grande paixão e o devotamento de sua vida.
E novas personagens entram em cena.
Desde a morte de sua irmã Luiza, que também nunca casou e era sua companheira, Maria vivia sozinha, numa casa que ganhou de herança do pai. Margarida Costa era uma jovem mãe solteira, que também morava no distrito, estava sozinha no mundo e correndo o risco de ser posta na rua com sua bebê. Duas solitárias que não se conheciam e cujos caminhos, inusitadamente, se encontraram.
As duas ficaram amigas em meados dos anos 1980.
“Eu não conhecia ela, e ela não me conhecia. Então, duas amigas minhas fizeram uma carta e mandaram para Maria das Dores, como se fosse eu, pedindo para morar com ela, e no outro dia veio a resposta. Ela disse que eu podia ir”, recorda Margarida, que tinha 24 anos na época.
“Quando eu fui para lá, ela tinha deixado a chave com a
vizinha, porque havia ido com o irmão para Assaré, a pé, para ver o Adauto Bezerra chegar”. Margarida entrou, armou a rede e, nela, pôs sua filha, Mônica, que tinha pouco mais de um mês de nascida.
E aí passaram anos juntas, as três, trabalhando, lavando roupas no rio Bastiões, costurando, muitas vezes em troca de uma refeição, porque, às vezes, nem isso conseguiam. Margarida também conta que “muitas vezes a gente só almoçava. O Luizinho, comerciante e amigo, sempre gostou muito de Maria das Dores e ajudou a criar a Mônica, nunca deixou faltar massa e leite para fazer o mingau dela”.
E, durante muito tempo, somente o azul do manto de Nossa Senhora dava cor à vida de Maria das Dores. Solidão, trabalho e sofrimento, eram suavizados pela fé e devotamento.
Até a chegada de Mônica. Desencantada com o amor, ela experienciou a pureza do amor maternal, ajudando a criar aquela criança. Para quem tinha um mundo na cor azul, a
A MEMORIALISTA DE TARRAFAS
Aqui estão os fatos que Maria das Dores listou, as primeiras coisas que chegaram em Tarrafas. Junto disso, estão outras primeiras coisas que ela menciona no decorrer da escrita do caderno.
Foto: acervo pessoal de Margarida Costa 32 Memórias Kariri
Maria das Dores, na Igreja Matriz de Tarrafas, tocando o manto de Nossa Senhora das Angústias, padroeira da cidade. Foto tirada por volta dos anos 2000
TARRAFAS Infográfico: Sarah Frutuoso
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relação com Mônica foi um caleidoscópio com todas as cores do amor.
Sem nunca ter sido mãe, aos 57 anos, virou avó - como Mônica a chamava. Experimentou o amor incondicional e todas as dificuldades amaciaram. Foram os melhores anos de sua vida.
Depois de um tempo, chegou a hora de se aposentar por idade. “Ela disse que Mônica pedisse a Deus, que por ela ser um anjinho, era mais fácil que Ele escutasse. Pouco tempo depois, chegou uma carta avisando da aposentadoria. Ela conseguiu”, conta Margarida.
O primeiro gasto com o dinheiro que recebeu da aposentadoria foi com a compra de uma bicicleta para Mônica. Depois as dificuldades passaram, o tempo da bonança chegou.
Na monotonia da vida de aposentada, resolveu escrever suas memórias. Os cadernos nasceram. Por estresses com políticos, queimou quase todos, deixando somente um caderno sobrevivente.
Nas páginas hoje amareladas pela ação do tempo, a tinta azul da caneta narra as memórias de gerações, sobre um povoado que virou distrito, e depois se transformou em cidade. Nele, ela registrou a contagem de casas, que observara durante 4 décadas. Apresenta a genealogia de padres, causos como a troca da santa, a fundação, documenta a quantidade de missas, casamentos e batismos feitos pelo Padre Agamenon Coelho. E, numa narrativa fluida, faz do livro de memórias uma rica conversa com o leitor. Fazendo uso de termos como “como você sabe”, “você deve conhecer”, “como já havia lhe dito”, entre outros, a sensação ao ler o caderno, é de passar a tarde numa calçada, tomando café e ouvindo uma sábia veterana da vida contar suas memórias.
Mônica cresceu muito. Tornou-se uma jovem mulher, com quase dois metros de altura, longos cabelos escuros, educada e simpática. O brilho dos olhos da “vovó das Dores”.
Aos 20 anos, teve um filho, Herbert, que trouxe ainda mais alegria ao lar.
O coração de Maria das Dores estava em êxtase. Desencantada com o amor, nunca imaginou que pudesse ser tão feliz e amar tanto as pessoas que estavam ao seu redor. A alegria parecia não ter fim.
Mas tinha.
E o fim não tardou a chegar, sobre as duas rodas de uma moto.
Em alta velocidade, um acidente acontece. Mônica foi jogada da garupa da moto de seu namorado, quebrando o pescoço logo que atingiu o chão, na rodovia entre Tarrafas e Cariús.
Tinha 22 anos.
Morreu, levando junto todas as cores do mundo de Maria das Dores.
A dor de Margarida, ao receber a notícia, foi grande. Mas não se comparou a de Maria das Dores, que assim como nossa senhora, sentiu como se sete espadas transpassassem seu coração.
“Ela queria tanto bem a Mônica que foi o fim da vida dela”, lembra Margarida. Nem mesmo a presença do filho de Mônica foram suficientes para fazer Maria sair do grande fosso de tristeza em que se encontrava. Nossa memorialista ainda passou pela vida por mais dois anos. Porque viver, já não vivia mais. Morreu de tristeza, em 20 de junho de 2009, aos 81 anos.
34 Ilustração: Sarah Frutuoso Novembro 2021 35
TARRAFAS
Território quilombola de Potengi
Conhecida popularmente como “cidade que não dorme” pela familiarização do som da produção do ferro desde o início da madrugada, realizada nas oficinas de ferreiros, Potengi possui uma extensa área rural, na qual se concentra a maior parte da população. É estimada em 11.106 habitantes de acordo com os números do IBGE do ano de 2020.
No limite dos municípios de Araripe, Assaré, Santana do Cariri e Nova Olinda, as ruas do centro de Potengi levam ao acesso que percorre diretamente pela Vila Central e a Vila Marrocos. À direita, um novo caminho, aquele que direciona a um dos encantamentos de quilombo e a instiga sobre a história da ancestralidade em meio ao repetitivo questionamento: “No Ceará tem negro?”. Onde se encontram as famílias rurais negras? Por que pouco se fala delas? A longa estrada leva diretamente ao bojo da história que ninguém ainda foi capaz de descobrir por completo.
Nacional de Vacinação, ao todo foram 258 famílias imunizadas, de 601 pessoas organizadas em associação comunitária, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde.
A moradora Vanessa Parente, de 28 anos, ressalta a tranquilidade de Carcará, e diz ter orgulho em ser remanescente de quilombo, por herança de sua árvore genealógica. “Minha família é toda descendente de quilombola, todos, desde a geração passada, e só me dá forças pra fincar minhas raízes cada vez mais aqui”, ressaltava, enquanto esperava para ser vacinada com a dose de Astrazeneca, em meio à vitória do reconhecimento do grupo prioritário.
abaixo de Deus”, expressou dona Maria.
A quilombola Maria Bento da Cruz, 58 anos, também foi uma das primeiras pessoas a receber a dose. Disse que não via a hora de chegar a sua vez. “Me sentindo muito aliviada de ter tomado a primeira dose, tô satisfeita, foi ótimo”. Ao final, Maria agradeceu aos profissionais de saúde, demonstrou orgulho em fazer parte do quilombo de Carcará e a importância de se reconhecer na raiz quilombola.
O caminho que cruza
Batizado inicialmente de Xique-Xique, o município de Potengi, localizado no Cariri oeste, é um ventre ancestral, o princípio do terreiro de firmar o pé descalço na terra quente, encruzilhada e quilombo em passagem de (re)conhecimento, incluindo as comunidades quilombolas de Catolé, Carcará e Sassaré. Foi daí que o município foi parido, dos laços que transcorrem como água e comunicam exclusivos assim como as entidades.
Texto: Andressa Yare
Em todo o estado do Ceará, 80 quilombos foram mapeados em 42 municípios e contemplados para a vacinação contra a Covid-19. No final de março deste ano, Potengi recebeu lote com 1.290 doses, destinadas às comunidades quilombolas de Sassaré, Catolé e Carcará, reconhecidas pela Comissão Estadual dos Quilombolas Rurais do Ceará (Cequirce), com apoio da Secretaria de Desenvolvimento Agrário do Ceará (SDA). O município foi o primeiro da região do Cariri a vacinar o grupo reconhecido pelo Plano
A necessidade de uma política de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais trouxe a inclusão das comunidades quilombolas no Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19. Uma conquista para as populações originárias de Potengi, os quilombolas demarcam a identidade e a raiz ancestral do berço que constitui a história do município.
Das raízes familiares, Carcará é um pássaro que guia em direção aos ensinamentos repassados de geração em geração. A moradora Maria Luiza da Silva, 76 anos, foi a primeira idosa a receber a vacina, com o rosto coberto parcialmente pela máscara branca, esbanjando felicidade.
“Eu tô morta de alegre! Isso é uma benção para Deus e o mundo. Minha mãezinha! O jeito é correr atrás do que é bom, de alegria, guardando nós
Na passagem, a zona rural leva ao encontro com o sítio Sassaré, que só agora está sendo reconhecido pelo Estado como comunidade quilombola. A maior figura de Sassaré é o Mestre de Cultura Antônio Luiz de Souza e seu museu-casa, fundado em 18 de setembro do ano de 2018, através do projeto realizado pela Fundação Casa Grande (Nova Olinda) e o Sistema Fecomércio. Em práticas que revivem o berço afetivo, mestre Antônio Luiz conheceu o reisado através de sua mãe, Neuza Francisca de Souza, que lhe repassou as histórias que ouvia de seu bisavô, Benedito de Souza Lima, que brincava na Lagoa Sassaré, dando início ao reisado na década de 30, hoje chamado de Reisado de Caretas/Reisado de Couro.
Carcará é um caminho da encruzilhada, cerca de 18 km do centro do município, onde tudo se inventa. “Carcará, pega, mata e come”, canção do maranhense João do Vale, é um verso recorrente que batuca nos dedos e na cabeça
Foto: William Guedes
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de quem percorre os caminhos abertos da estrada que leva à comunidade quilombola, localizada no distrito de Barreiros. Em processo de reconhecimento de quilombo desde 2005, a população é a única comunidade entre todas a possuir certificado pela Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conac); Carcará “sai voando e cantando” habitando a terra.
Após o portal que dá acesso ao sítio Baraúnas, o caminho leva à comunidade quilombola de Catolé, que é articulada na Associação dos Remanescentes de Quilombolas da Comunidade de Catolé. Longos minutos, entre o percurso das águas e da mata, o movimento leva ao quilombo que possui nome do fruto que nutre a vida.
Nas travessias, a região do Cariri é conectada por 29 municípios que contam, sob diferentes óticas, a história de povos através de suas culturas e memórias. Do mito da democracia racial à linguagem que insere pessoas negras e indígenas na eterna condição de escravizadas, o quilombo hoje, por meio de pesquisadores e moradores, é visto como conceito para além da fuga, mas um fio condutor entre a descoberta e a recuperação da identidade.
Carcará: fé e vacina
Das violências cotidianas à possibilidade de reconstruir a imagem através do encontro com o próprio reflexo, o quilombo de Carcará foi analisado indiretamente por olhares atentos que permeiam o discurso sobre o que é ser negro no Cariri. Em 2009, o quilombo realizou sua emissão na Fundação Cultural de Palmares (FCP), responsável por declarar a certificação através do reconhecimento do governo federal. Por esse reconhecimento, Carcará é a única comunidade entre os quilombos a possuir certificação.
A comunidade Carcará se firma com a herança do toré; a terreirada é um ensinamento repassado por gerações, com suas festas e comemorações. As renovações, como prática da fé popular, também são manifestações da comunidade, que em meio às terreiradas se juntam com o movimento que transcende o reisado.
Os moradores do Carcará narram suas lembranças a partir de seus familiares, antepassados que se instalaram naquela região.
Os remanescentes dialogam com a história do período escravocrata, entre a fuga e o refúgio, onde os escravizados chegaram da Casa Grande do Infincado, que pertenceu ao Barão de Aquiraz, localizado no sítio Infincado, distrito de Genezaré, no município de Assaré (CE).
A grande concentração de tons de melanina da comunidade foi percebida, inicialmente pelo Coordenador da Defesa Civil Municipal de Potengi e Agente de Desenvolvimento do Sebrae, Mauro Filho, responsável por organizar a Associação Quilombola daquele espaço entre 2005 e 2007 com entrevistas informais. Mauro enxergou o Carcará, enquanto quilombo, depois de participar de algumas reuniões com outras comunidades quilombolas e comparar as tradições dos espaços. O processo de documentação iniciou depois de diálogos com remanescentes em Fortaleza, o que instigou mais perguntas aos residentes de Carcará, que falaram sobre os seus ancestrais.
“Eu descobri que os antepassados deles, os bisavós, tataravós, vieram de outros países para
a Serra de Baturité. No início eles não queriam ser chamados de negros, quilombolas, indígenas ou remanescentes, eles não aceitavam a ideia, mas fomos dialogando em amadurecimento, e, depois de algumas reuniões, os convenci que eles possuíam direito. Foi daí onde demos o primeiro passo em reunião para a criação da associação, em seguida convidamos pessoas do governo do Ceará e o Ministério de Brasília, em passo a passo, depois o prefeito da época (conhecido como Titico) assinou o documento, que foi submetido e enviado à capital para oficializar”, diz.
Apesar do relato dos remanescentes quilombolas, não existem documentações ou fotografias de suas vidas que comprovem esse deslocamento histórico. A oralidade é um caminho para compreender o percurso, mas não é uma concretização que fecha todas as perguntas, não somente na comunidade de Carcará, mas no contexto geral de todas as pessoas escravizadas. Para o Mestre dos Pássaros, que também esteve no processo de descoberta de Carcará ao lado de seu pai Mauro Filho, Jefferson Bob afirma que
“Eles achavam que o governo ia era tomar as terras pra dá a gente, pra comunidade, e nós sabemos que não é dessa forma, a terra não é tomada, né?”
de todos os lados narrados, pela geografia, a proximidade de Assaré e Potengi fazem com que a versão do Casarão do Infincado (Assaré) seja de maior probabilidade.
A região de Carcará já é demarcada pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), órgão vinculado ao governo federal com objetivo de realizar demarcação da comunidade enquanto quilombola. Portanto, ainda não existe nenhuma previsão para efetivação da compra das terras. Há um conflito agrário territorial e o não reconhecimento das propriedades impede ao Estado de repassá-la aos verdadeiros donos, ancestrais de um povo, os quilombolas, direito assegurado pela Constituição de 1988.
A estrutura do racismo está presente nas comunidades rurais negras, mesmo com a invisibilidade do fato histórico que faz com que os parentes oriundos continuem o legado das populações originárias. Como resquício racista, o quilombo Carcará sofre com a divisão de “parte branca” e “parte negra”, a maior parte do local onde se concentra a maior vivência de pessoas pretas é também nomeada como favela de modo pejorativo pelas pessoas fora da sede.
Conflito nas demarcações
Quem veio antes? Quem criou? O que é ser quilombola? A fuga é também um encontro? Foram os questionamentos do mestrando em Educação, Culturas e Identidades na UFRPE/ Fundaj, Francisco Ytalo de Lima Silva, 27 anos, natural de Potengi em sua pesquisa “Um Panorama Histórico sobre a comunidade quilombola de Carcará, em Potengi, no Ceará”. O pesquisador
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POTENGI 38
Sebastião Silva
Maria Luiza da Silva, de 76 anos, foi a primeira quilombola a tomar a vacina contra a Covid-19 na comunidade de Carcará
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Foto: William Guedes
“Eu disse assim: ‘menina, vamos inventar a brincadeira do toré? Porque toda noite a gente brincava com tia Joana!’, e elas disseram ‘vamo!’, aí toda noite a gente brincava, com o jeitinho dela, dançando, tocando”
Bizunga
percebeu o quilombo como um espaço que se transforma diariamente na cultura e na educação. Carcará, como conta Ytalo, foi visto por muitos anos como um espaço rural como os outros, mas hoje é necessário que os moradores contem suas próprias narrativas.
O pesquisador acredita que a comunidade será referência para o surgimento e o reconhecimento de outras comunidades quilombolas. “Carcará é uma referência regional, tendo contribuído na realização de inúmeras pesquisas e intercâmbios, regional, nacional e internacionalmente. Ou seja, Carcará tem uma relação direta com essas novas comunidades que emergem e que se sentem encorajadas a afirmarem suas raízes quilombolas. E Carcará, com certeza será a fonte de inspiração para elas, sejam em Potengi ou noutras cidades de nossa região”, afirma.
O desafio do direito à terra para as comunidades rurais quilombolas resulta em perseguição, exploração e desigualdade quando o discurso se volta para a invasão, ao invés de um direito assegurado. Ytalo em sua pesquisa disponibiliza trecho de partes da entrevista em que a Coordenadora do Toré, Antônia
Oliveira da Silva Carvalho, 56 anos, conhecida como Bizunga, e Sebastião Vieira da Silva, uma das lideranças da Associação Remanescentes de Quilombos do Sítio Carcará (Arquicará), revelam ataques que sofreram inicialmente por conta da demarcação de terras, com ameaças de morte e dificuldade de trabalho, quando a principal fonte de renda é voltada para a agricultura.
Sobre a resistência de pequenos empresários, o líder Sebastião afirma: “Fui ameaçado de morte, não só por uma pessoa, mas por mais de uma, através dessa ameaça a gente ainda recebeu uma intimação do Ministério Público. (...) O rapaz pediu desculpa, porque ele alegou que não sabia do que se tratava, como que eram os procedimentos do governo. Eles achavam que o governo ia era tomar as terras pra dá a gente, pra comunidade, e nós sabemos que não é dessa forma, a terra não é tomada, né?”. Bizunga, em complemento, afirma: “Nessa época, nós tínhamos roça lá no sítio Lobo, saímos de lá por causa que seu Dedé (um dos empresários) botou nós pra sair. Nós foi mais de oito anos sem botar roça, nós ficamos sem andar no Lobo, porque não queriam dar roça nem a mim, nem ao compadre Bastião”.
O toré
O toré é uma herança do quilombo, o encontro entre a cultura negra e indígena, que volta para o ensinamento que a ancestralidade ensina entre o molejo do corpo e as raízes. Na comunidade de Carcará, o toré desde os primeiros
ancestrais é um dos principais meios de demonstração de aquilombamento cultural do espaço. As mulheres movem o quilombo, dos encontros à organização das terreiradas. As reuniões de articulação da comunidade ocorrem todo primeiro domingo de cada mês, e são carregadas com a presença das mulheres com frequência, os homens não participam pelo risco de perder seus empregos.
Os elementos na dança do toré mantêm até hoje a herança repassada de geração em geração. Na coordenação do Toré, Bizunga, de 56 anos, fala sobre os ensinamentos que foram repassados para ela, e que hoje, ela repassa para os mais novos da comunidade.
“Começou com minha tia, chamada Joana de Couro, quando éramos pequenininhas ela fazia a roda no meio do terreiro, e ficou ensinando nós a brincar, ensinava as cantigas, os versos, a gente. Entre 70
e 80 anos, ela faleceu. Com muitos anos, o Maurinho andou por aqui dizendo que éramos descendentes de quilombo, fomos perguntar e entender como era. Depois de um tempo eu disse assim: ‘menina, vamos inventar a brincadeira do toré? Porque toda noite a gente brincava com tia Joana!’, e elas disseram ‘vamo!’, aí toda noite a gente brincava, com o jeitinho dela, dançando, tocando. De primeiro, quando ela ensinou a nós, era o par de homem com mulher, aí depois eu fiquei procurando o par para as meninas dançarem, mas uns rapazinhos queriam, outros não. Aí depois desmanchou e ficou só as mulheres”, diz.
O quilombo vive em harmonia e relembra sempre os ancestrais. Bizunga detalha como são os diálogos com a juventude:
“Vamo brincar a brincadeira do toré? Que vai passando de geração para geração, que todos que vierem que ficarem
comigo, os mais velhos e as crianças mais novas, se um dia faltar, as crianças vão ficar na responsabilidade. As crianças dizem assim: ‘eu fico, tia Bizunga, no lugar se um dia Tia Bizunga morrer, eu fico no lugar da senhora’, pondera.”
O toré-carcará é uma junção de versos improvisados (ou não) que seguem o som do pife, triângulo e bumbo. A dança foi ensinada por Raimunda Marçal, uma das anciãs da comunidade, já falecida.
“Eu nasci no Piauí Me criei no Ceará Namorei e me casei Com um rapaz do Carcará ” (Verso improvisado e interpretado na voz de Bizunga)
Educação Quilombola
As mulheres da comunidade carregam os ensinamentos que hoje revivem nas cantigas, nos movimentos e, principalmente, na educação de toda a população. O quilombo possui a Escola Municipal de Ensino
Fotografia registrada na monografia “Cariri retinto: imagem e (re)construção dos corpos negros na comunidade quilombola de Catolé em Potengi?”, da jornalista Pâmela Queiroz, com Nauane Nascimento
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Foto: Pâmela Queiroz
Mestre Antônio Luiz, de 64 anos, foi nomeado Mestre de Cultura do Ceará pelo Reisado de Caretas no ano de 2009
Guedes Novembro 2021 41
Foto: William
Fundamental Maria Virgem da Silva, desde o ano de 2012. O nome foi dado em homenagem à conhecida moradora da localidade, Maria Virgem da Silva, filha de Raimunda Marçal.
A escola de ensino fundamental, inserida dentro da zona rural, foi necessária para evitar o deslocamento dos alunos para a zona urbana, evitando o cansaço dos estudantes por causa da viagem e até acidentes. A escola Maria Virgem da Silva é exemplo no município de Potengi e, com seu bom desenvolvimento e alto índice de aprendizado em avaliações, foi concebida com o título do ano de Escola Nota 10, o que a diferencia quando comparada às escolas da mesma faixa de ensino.
Apesar de funcionar há nove anos, o ensino escolar quilombola só passou a se tornar uma necessidade alguns anos depois. No ano de 2017, a Universidade Regional do Cariri (URCA) e a Universidade Federal do Ceará (UFC) se articularam juntamente com movimentos sociais e a comunidade de Carcará para a realização do I Encontro de Educação Escolar Quilombola do Cariri Cearense. Compreendendo o quilombo como a preservação da memória, o geógrafo e natural de Potengi, Jonas Gonçalves Almeida, 25 anos, pesquisou geograficamente Carcará com intuito de relacionar território e ancestralidade.
O pesquisador também esteve presente no encontro educativo, o que o impulsionou a viver dentro de sua pesquisa. “O quilombo (de Carcará) é uma materialização de uma história passada nos dias atuais; pesquiso com o objetivo de compreender as dinâmicas territoriais existentes nesses espaços”.
O imaginário social das crianças hoje é direcionado para a história do Infincado e o retorno de suas raízes. Apesar da mudança no reconhecimento de tratar esses aspectos étnicos-raciais como uma medida de ensino para contribuir com a identidade, o assunto é limitado às apresentações para o Dia da Consciência Negra. A professora de história, Flaviana Rodrigues, 40 anos, comenta sobre o desejo de fazer da educação escolar quilombola uma prática constante: “Nossa escola é localizada em um território remanescente de quilombos. Uma riqueza cultural vasta. O que me entristece é que isso ainda não é tão praticado na escola de uma forma mais cotidiana. Infelizmente esses estudos
quilombolas são restritos apenas a alguns capítulos no livro didático do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e durante o dia 20 de novembro”, afirma.
Apesar da necessidade de compreender a própria imagem para além do olhar colonizador, a professora conta que sempre existiu escola na comunidade de Carcará, mas era restrita ao “lado branco”. “A comunidade do Carcará está bem avançada no processo de regulamentação das terras, existem documentos legais que foram criados, a luta do povo é histórica. Nós, professores da escola, estamos em constante formação na questão dos estudos da educação escolar quilombola e com certeza precisamos colocar em prática”, pondera a professora de língua portuguesa.
Comunidades mapeadas pelo Grunec
Em busca de quebrar o discurso que invisibiliza a existência de populações negras na região do Cariri Cearense, bem como pautas da juventude, diversidade, LGBTQI, cuidado e bem viver, o Grupo de Valorização Negra do Cariri (Grunec), celebrou 20 anos de acolhimento e diálogo antirracista, no dia 21 de abril deste ano. O coletivo surge do questionamento de professores, donas de casa, alunos (as, es) e de um padre chamado Roserlândio, sobre a negritude na região a partir da Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, em Durban, na África do Sul, em 2001.
Se existem negros no Cariri, onde estão, o que fazem e como falam sobre si? Como uma das respostas, o Grunec realizou um projeto de mapeamento de dois anos que reconheceu 21 comunidades rurais negras e quilombolas por meio de visitas e atividades divididas em 25 comunidades de 15 municípios.
Com muito esforço, diálogo e compreensão da fala, o Grunec colocou os negros no mapa, e em fevereiro de 2011, elaborou a cartilha Caminhos: Mapeamento das Comunidades Negras e Quilombolas do Cariri Cearense, com o Cáritas Diocesana do Crato, em parceria com o MISEREOR, entidade da Alemanha para cooperação do desenvolvimento e comprometida com a luta contra a pobreza na África, Ásia e América Latina. Desde então, o grupo reafirma
quantas vezes necessário: “SIM, nós temos negros no Cariri, e muitos!”.
O Grunec já havia mapeado em todo o Cariri quilombos nos limites de municípios de Aurora, Crato, Missão Velha, Jardim, Jati, Porteiras, Mauriti, Milagres, Araripe, Várzea Alegre, Potengi, Assaré e Salitre, a partir de suas distintas perspectivas, religiosidades, educação contextualizada, juventude, cultura, acesso à terra e identidade.
O mapeamento também surgiu com o objetivo de agrupamentos rurais, através do curso
os sindicatos de trabalhadores e trabalhadoras rurais, Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Ceará - FETRAECE e igrejas como a finalidade de que estas organizações apontassem grupos que se organizassem de maneira diferenciada e que tivessem identidade negra. Assim, chegamos a 13 municípios e aproximadamente 25 comunidades. Algumas se identificavam logo como negras, outras ao longo de um trabalho de dois anos iam se percebendo negras e se auto afirmando. Foi um trabalho intenso e lindo”, concluiu Verônica.
“Iniciativas negras: trocando experiências”, gerado pela Universidade Federal do Cariri (UFCA), com a professora Joselina Silva. Para a membro do coletivo, Verônica Neves, 63, o quilombo é uma história que reinventa trajetos: “Tanto o quilombo como os terreiros de matriz africana dão concretude a tudo que se diz, entendemos que é a terra que forja a nossa identidade”, afirma.
Em relato sobre o período de elaboração, ela diz:
“Após a formação fizemos uma articulação com
Dialogar sobre a negritude é confirmar ainda mais a necessidade básica de direitos e reconhecer a dimensão de vidas que, na vivência da terra, cultivam sua árvore. Os quilombos estão inseridos na linha de desatenção de cuidados, no mapeamento, o Grunec analisa como problemas recorrentes de saneamento básico ou cuidados da atenção primária à saúde educativa. Em meio à imersão do racismo, as comunidades não sucumbem ao sistema de hierarquias (re)
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Memórias Kariri
Semente da comunidade quilombola de Carcará, as meninas do toré cantam versos que seguem o som do pife, triângulo e bumbo
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Foto: Samuel Macêdo
construindo caminhadas. “Como em tudo, penso que tem comunidades quilombolas com muitas conquistas no quesito memória. Umas têm orgulho da sua ancestralidade, da sua cultura, da sua cor de ébano. Outras, precisam de um tempo a mais para estas reflexões. São comunidades distantes, com problemas, inclusive de mobilidade, falta de apoio por parte das políticas públicas. Tem comunidades que ainda lutam por água para consumo humano, imagine aí o resto. A escola reproduz um modelo de educação descontextualizada, o que em nada ajuda neste processo identitário. Ainda mais, vivemos numa sociedade machista,
eles estão “apagando fogo”, enquanto escrevem projetos e cruzamentos de parcerias para colocar pão na mesa de quem não tem acesso. O objetivo do grupo é trazer em pauta tudo que dá dignidade para o ser humano, seja a identidade, o acesso à terra, à água, ao trabalho e às cotas. “Quilombo, seja ele qual for, é o que dá concretude à luta. Nós acreditamos que os quilombos e os terreiros dão continuidade à luta”, diz Valéria.
As irmãs contribuem com o dialeto caririense, mas estão ao lado de aproximadamente 45 pessoas que abordam em conjunto sobre políticas afirmativas, territorialidade
conhece, que já tem essa identidade. A relação de memória e ancestralidade é o que há de mais importante, acrescido à questão da terra, não tem terra mas vive da terra, pertence à terra. Essa questão de pertencimento faz com que a memória, a ancestralidade e o respeito continuem”, reafirma Valéria Carvalho.
Os saberes de quilombos são atentados por olhares coloniais ainda nos dias de hoje; olhares que transformam narrativas negras e indígenas como “coisa” a ser apossada, um resquício racista. “Os professores que dizem que estudam questões étnicoraciais, eles vão no chão do
“Eita! Eu fico tão feliz quando chego em um quilombo, eu digo: Tô em casa, tô com os meus”
Valéria Carvalho
O quilombo não é e não deve ser lembrado apenas no seu conceito histórico de fuga, mas como um espaço geográfico que insere grandezas e riquezas do solo sagrado. No quilombo, a vida é o princípio, assim como o contato com o chão, que traz humildade e possibilidade de reinventar histórias, fazendo delas uma continuidade recorrente. A memória vem de Orí (cabeça, no Yorubá), o ensinamento primordial nas religiões de matriz africana, cultuar a cabeça é também encontrar o sensível e mirar flechas, compreender (ou chegar perto da compreensão) da encruzilhada e fazer das águas, um encontro. O quilombo é aqui, o quilombo é agora.
Das estradas encantadas aos movimentos de terreiro, a ilustração segue o caminho de localidade das comunidades quilombolas de Carcará, Sassaré e Catolé, em Potengi
racista... As comunidades não estão isentas dessas mazelas”, diz Verônica, do Grunec. Verônica completa ainda que a pandemia é um fator que deixa ainda mais visível as desigualdades sociais, colocando o racismo enquanto estruturante, concluindo que as violências possuem cor e gênero, não apenas classe social.
Nesse ano de pandemia, fincar os pés no chão se tornou um ato ainda mais necessário, olhar para o outro também é uma atividade de olhar para si mesmo. O Grunec tem realizado trabalho de solidariedade e, como definido por uma das criadoras e educadora, Valéria Carvalho, 63 anos,
negra, cultura negra, política nacional de saúde da população negra, controle social das políticas públicas, dentre outros.
A crise global na saúde se alastra desde março do ano passado, mas quem são as populações mais expostas ao vírus e renegados ao acesso econômico do alimento?
A indagação surge da necessidade de uma visão anticolonial.
“Hoje nós temos os quilombos na contemporaneidade, estamos no tempo de pandemia sanitária, mas o que antecede, o que vem há séculos é a pandemia do racismo, que a gente não consegue debelar.
Os quilombos geralmente são afastados, o que a gente
quilombo? Não vou dizer nem dois anos como nós ficamos, talvez três dias observando, contribuindo ou então se juntando a nós que vamos para compartilhar o saber acadêmico, uma vez que a gente tá tentando trazer esse saber do quilombo, fazendo com que esse povo fale. A gente vê muitos pesquisadores que vai, bebe, mas não volta nem pra devolver, muitos também que malha o jeito de ser e fazer de muitos movimentos, inclusive o nosso (Grunec), mas foi com esse nosso jeito de se relacionar com o sujeito da nossa ação que tem dado certo. Eita! Eu fico tão feliz quando chego em um quilombo, eu digo: Tô em casa, tô com os meus”, finaliza Valéria.
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Memórias Kariri
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Ilustração: Júlia Marques
SONHO E REALIDADE AS CORES DE LUÍS KARIMAI
Karimai fez de sua passagem pela terra um atelier repleto de arte e espiritualidade. Suas obras carregam uma pluralidade ímpar, ora manifestando cenas surrealistas com ambientes, cores e personagens fascinantes, e ora demonstrando a sensibilidade do mais simples cotidiano do sertão caririense.
Texto: Guilherme Carvalho
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PERFIL
Memórias Kariri
Luís Karimai nasceu na cidade de Lavínia, interior de São Paulo, em 25 de Janeiro de 1947. Sua família era formada por imigrantes do Japão que vieram para o Brasil em busca de trabalho. Logo na infância, identificou-se com os rabiscos que fazia no colégio. Sua mãe, Yosh Takahashi Karimai, foi uma das primeiras admiradoras de sua arte, incentivando-o ainda nos primeiros anos de escola.
Na juventude, Karimai mudou-se para a cidade de São Paulo, onde ingressou em três faculdades: cinema, engenharia e sociologia. Foi na última, entretanto, que o artista encontrou sua vocação. Na Universidade de São Paulo (USP), Karimai entrou em contato com inúmeros artistas, intelectuais e líderes populares. Nisso, surgiu no artista uma vontade de conhecer as diferentes realidades do povo brasileiro. Assim, Karimai alçou voo em direção ao Nordeste através de projetos da universidade.
Seu companheiro de viagem foi o amigo da USP e fotógrafo Gilberto Morimitsu. Juntos, percorreram algumas cidades do Nordeste, passan-
do pela Bahia e chegando em Juazeiro do Norte na década de 70. As viagens tinham como objetivo coletar dados e fotografias para a conclusão de um estudo acadêmico. Porém, ao chegar no Cariri, Karimai encontrou um alento nas terras ao redor da Chapada do Araripe.
O contato com Juazeiro do Norte foi amor à primeira vista. Como em água para o vinho, Karimai viu os incontáveis prédios monótonos da Grande São Paulo serem substituídos por um conjunto de serras embaixo de um céu azul. O silêncio e a vastidão das terras do Cariri, em contraste com a caoticidade da cidade grande, o fizeram refletir sobre o tempo, a vida e a dimensão do universo.
Karimai retorna à Juazeiro do Norte dois anos depois, em 1977, de forma definitiva. “Uma vontade de, além de conhecer outras culturas, interiorizar-se. Tanto espiritualmente quanto fisicamente. Ele sempre se sentiu meio inquieto na cidade grande. Não gostava muito, não era o perfil dele. Essa vinda dele impacta muito no co-
meço da vida artística”, lembra Clara Karimai, filha do artista.
Com residência fixada no Cariri, firmou-se como professor de arte e passou a trabalhar com a venda de suas obras. Foi nesta época, também, que conheceu Penha Karimai, com quem compartilharia sua vida como esposa. A união do casal gerou seis filhos.
O reconhecimento de seu trabalho artístico não tardou. Com exposições que adentravam o Brasil e conquistavam o exterior, o nome de Karimai destacava-se pela peculiaridade da obra e do artista. No Cariri, o reconhecimento o levou a assumir a gestão da Secretaria de Cultura de Juazeiro do Norte, feito que foi possível após um abaixo-assinado de artistas da região.
Clara Karimai é jornalista, natural de Juazeiro do Norte e filha de Luís Karimai. Segundo ela, o dia a dia de seu pai carregava um espírito de coletividade que ajudou a moldar o cenário artístico do Cariri: “Ele era um artista que acreditava muito nele mesmo, em outros artistas e no poder transformador da arte. Ele não era uma pessoa de ficar falando sobre seus feitos e talvez, por isso, tenha ganhado tanto destaque, por ter sempre essa simplicidade e humildade. Eu acho que
muitos artistas hoje trabalham na arte por influência dele”.
A formação de Karimai, tanto como homem quanto como artista, foi marcada por uma forte espiritualidade. No contexto familiar, o artista herdou de seus pais ensinamentos da filosofia oriental. Seu pai, Kenji Karimai, era adepto da crença xintoísta e prezava pelo conhecimento e
“
O contato com a natureza, o contato com a bondade humana, e a justiça social: era assim que ele era”
Clara Karimai
Obra sem título (2009). A arte de Karimai tinha como característica a mistura de cores e elementos místicos
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Foto: Instituto Karimai
Memórias Kariri
Foto: Instituto Karimai Novembro 2021 49
A Rua do Horto, em Juazeiro do Norte, era um local recorrente nos quadros de Karimai
respeito à natureza. Já sua mãe, Yosh Takahashi Karimai, ensinou aos filhos sobre a consciência física e espiritual através do Budismo.
“É muito importante que o artista seja disciplinado. Essa disciplina oriental, o contato com a natureza, o contato com a bondade humana, e a justiça social - era assim que ele era. O discurso e a ação dele não eram distantes uma da outra. Nós crescemos entendendo a importância da fraternidade, do amor ao próximo e tendo contato com a natureza. Era uma pessoa muito
calma, muito tranquila e muito amorosa”, conta Clara Karimai.
Além da influência no campo das artes, Karimai teve um papel fundamental na inserção da doutrina espírita na região do Cariri. Na década de 90, fundou o Grupo Espírita da Fraternidade Irmã Sheilla, situado em Juazeiro do Norte. Através disto, Karimai consolidou-se como uma das principais vozes ativas de divulgação dos ensinamentos e ideias de Allan Kardec.
Após quase 40 anos dedicados à produção artística, Karimai morreu vítima de câncer em julho de 2010. Segundo familiares, o pincel permaneceu nas mãos de Karimai até os últimos dias de vida. O tratamento da quimioterapia o impediu de finalizar algumas de suas obras. Entretanto, a doença não foi capaz de apagar seu nome da história do Cariri, fazendo-se presente nas lembranças de estudiosos, artistas e intelectuais da região. O legado deixado pelo mestre respira e voa solto pelas montanhas do Cariri afora.
Sede de arte
Ninguém sabe com exatidão o número de obras de Luís Karimai. Ao longo da sua trajetória artística, o mestre assinou mais de 500 produções entre telas, desenhos e cartas assinadas com rabiscos. Sua família conta que, durante suas viagens pelo Brasil afora, era costume do artista presentear com obras os amigos que fazia pelo caminho. Por conta disso, parte das composições tem um paradeiro desconhecido.
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Em seus quadros era comum abordagens de locais abertos e paisagens ao horizonte
Foto: Instituto Karimai Novembro 2021 51
Ao todo, foram mais de 30 anos de vida dedicados à arte. Suas obras passearam por uma infinidade de temas e exploraram técnicas diversas, como colagem, aquarela, nanquim, giz de cera e lápis de cor. Personagens da fé caririense, como o Padre Cícero e Nossa Senhora das Dores, são comuns em cenários que bebem de fontes surrealistas.
Foi sobre a vida e a obra de Karimai que a professora da Universidade Regional do Cariri (URCA), Eneide Feitosa, escreveu a tese de doutorado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), “Vida, encaixes e sonhos: um olhar sobre a produção artística de Luís Karimai”. Amigos de longa data, Eneide compartilhou de diversos momentos da vida pessoal do artista.
“Karimai tinha um olhar bem perspicaz para as manifestações populares. Uma vez ele me contou que foi tragado pela Rua do Horto, aquela arquitetura das casas, que era uma coisa bem simples. O olho dele brilhava quando ele via o processo de massificação que acontecia pelas
“Eu transformo Karimai em duas palavras: Serenidade e lucidez.
Eneida Feitosa
ruas de Juazeiro. Ele captava a necessidade que o ser humano tem de transbordo através da arte”, conta Eneide.
Suas narrativas densas carregam uma complexidade que faz a quem as consome duvidar sobre o que era sonho e o que era realidade no Cariri pintado por Karimai.
Quem visitava seu atelier falava sobre um tom místico que pairava pelo ar. Amigos e conhecidos relatam que o artista parecia ter uma aura ao redor do seu corpo e os seus dias eram rodeados de sorrisos, afetos, conselhos e poesia. O ambiente amistoso atraía artistas e entusiastas da cultura popular interessados em ver de perto
a execução das obras de Karimai. Os visitantes não limitavam-se apenas ao papel de espectadores. Foi observando as obras de Luís Karimai que crianças e jovens caririenses, por exemplo, deram seus primeiros passos no mundo da arte.
O carinho de Karimai transbordava por onde ele passava. Eneide Feitosa conta a vez que, ao voltar de um compromisso médico, o artista quis entrar no Mercado Central de Juazeiro a fim de rever velhos amigos. Era costume do artista fazer compras semanais, hábito que foi interrompido pelo tratamento de câncer.
“Nós entramos no Mercado e parecia um político entrando em um comício. Daí veio um carregador da feira livre, muito grande, um homem musculoso, e ele [Karimai] já estava muito fraco, muito magrinho. O homem colocou as duas mãos na cabeça de Karimai e disse: ‘Seu Luís, o senhor sempre me recebeu com palavras bonitas, eu não tenho palavras bonitas para dizer para o senhor, mas Nossa Senhora lhe proteja’. Ainda hoje eu choro”, lembra Eneide, com lágrimas nos olhos.
Procura-se Karimai
Ao fim de sua vida, ganhou forças em Karimai um desejo de catalogar e registrar todo seu acervo. A missão era reunir fotografias das produções feitas por ele. Com a ajuda da família do artista, Eneide iniciou um trabalho de pesquisa e investigação que alcançou centenas de amigos de Karimai espalhados pelo país e pelo exterior.
A tarefa de reunir a coletânea de Karimai foi o pontapé inicial para um projeto maior: o Instituto Karimai. Liderada por Clara Karimai, Penha Karimai e pela professora Eneide Feitosa, a iniciativa busca manter viva a memória e a trajetória de Luís Karimai pelas terras do Cariri, além de preservar o seu legado na arte e na espiritualidade.
Em memória aos 10 anos do falecimento de Luís Karimai, o Instituto Karimai lançou, em julho de 2020, a exposição virtual “(In) Possibilidades”.
A mostra expõe parte do catálogo do mestre e traz reflexões sobre narrativas e diálogos distintos intrínsecos na obra de Karimai. Durante a exposição, que pode ser acessada pelo site oficial do instituto, o visitante contempla, também, uma
”
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Mestre Karimai em seu ateliê
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Foto: Acervo familiar
JUAZEIRO DO NORTE
trilha sonora instrumental assinada pelo músico DiFreitas.
A busca por Karimai, no entanto, nunca cessou. Com o auxílio das redes sociais, Clara continua o rastreio incessável de obras perdidas de seu pai. Através do Instagram @institutoluiskarimai, e pelo Facebook @acervodekarimai, ela mantém contato com amigos artistas do mestre que informam sobre obras espalhadas pelo Brasil afora.
Luís Karimai e a filha Clara Karimai em um momento de descontração no quintal da casa deles
Foto: Rafael Vilarouca
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O Museu de Hugo
Entre bicicletas e memórias
O professor de educação física aposentado Francisco Hugo Carvalho Brilhante, 69 anos, tem em sua loja de bicicletas um espaço dedicado à memória nordestina. A loja localizada em Assaré, na Avenida São Francisco, n 2, esquina com a rua Padre Emílio Cabral, reúne diversas fotografias de pessoas marcadas na memória do Nordeste. Descendente de um dos fundadores da cidade, o Padre José Tavares Teixeira, Hugo preserva a memória local e regional, com uma visão única e peculiar dos feitos desses personagens. Na parede da sua loja, as fotografias de militares (Castelo Branco), artistas (Patativa do Assaré, Luiz Gonzaga), políticos (João Pessoa), religiosos (Padre Cícero, Irmã Dulce, Frei Damião e Padre Ibiapina), revolucionários (Bárbara de Alencar, Beato José Lourenço, Antônio Conselheiro) e outras figuras dividem o mesmo espaço.
Texto: Amanda Nobre
Fotos: Rauan Leite
A loja de bicicletas de Hugo é a única da cidade. O professor que sempre gostou de esportes, ressalta a importância de praticálos para prevenir as doenças e ter uma vida saudável. “Andar de bicicleta é uma das práticas principais no mundo; primeiramente nadar e depois é andar de bicicleta, são os esportes mais completos”, diz. Mas para além dos apetrechos esportivos e peças de bicicletas, a loja se torna única por ser um espaço de memória, em uma cidade em que pouco se fala de sua história. Hugo lembra: “eu sempre gostei do passado, sempre estudei, desde adolescente, com a história de Assaré, a história do Nordeste, conheço bem a
região. Conheço ela de ponta a ponta. Conheço de São Luís a Salvador-BA, já fiz excursão com estudantes. Ultimamente me envolvi muito sobre a história do cangaço”.
Hugo assinala que poucas pessoas se interessam pela memória ou buscam entender a importância de preservá-la.
“Em relação à história de Assaré, as pessoas que fizeram e que construíram, infelizmente sempre foram desprezadas. Pra você ter uma ideia, tá aqui, só personalidade do Nordeste, quem é que não conhece o Padre Cícero, Luiz Gonzaga, Patativa? A maioria das pessoas que entram aqui, não só do Assaré, de Fortaleza, caminhoneiro que para aqui aí pergunta: quem é esse povo?
esse povo já morreu? se esse povo é da minha família? Só perguntas esdrúxulas que não tem nenhum cabimento. É tanto que eu nem respondo, não adianta. Não adianta explicar pra uma pessoa que não vai entender, eu nem entro em detalhes. Todos os assareenses foram importantes pro Assaré, do juiz ao agricultor. Como por exemplo a Igreja matriz, toda feita por pessoas do Assaré, uma obra de arte”, declara.
Em meio aos artistas, militares e outras figuras importantes, na parede há a fotografia dos seus pais, Tereza Paiva Brilhante e Gilson Carvalho. Hugo guarda a memória deles com carinho e tem o projeto de fazer a sua árvore genealógica. “Naquela foto tem eles dois (os pais),
A loja de bicicletas abriga mais memórias do que peças do veículo. Cada fotografia exposta conta uma história peculiar sobre a vida dos personagens. A história oficial se mistura com o ponto de vista único do professor de educação física, que contextualiza a importância do personagem com a história local
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Deus está dentro de você e dentro de mim, logo quando Ele fez a humanidade, Ele entrou em todos os seres humanos. Se você pensar positivo, fizer o bem, praticar o bem, isso é você estar no céu
Alguns desses prédios do banner nem sequer existem mais. Em 156 anos, Assaré já passou por muitas mudanças e sua história é de difícil acesso. Hugo é uma das poucas pessoas que buscam preservá-la
quando eram jovens. Minha mãe morreu jovem com câncer de mama. Até que Dr. Gentil avisou pra ela, mas naquela época ela não dizia pra ninguém, quando estourou já foi de vez. Se ela tivesse feito o tratamento tinha dado certo”, conta.
Além dos pais, ele expõe a fotografia do seu tio, José Roris Arrais de Carvalho, assareense que lutou na Segunda Guerra Mundial. O Major foi para o Rio de Janeiro nos anos 1930 e ingressou no Exército, combateu na Itália e lá foi ferido. “Em determinado momento eles (os soldados) estavam no rancho, e lançaram uma granada, matou dois colegas e deixou meu tio e outro colega feridos. As costas dele tinham marcas que a granada deixou. Morreu como Major do Exército, mas não voltou a morar no Assaré”, relembra Hugo.
Em Assaré, as escolas quase não ensinam sobre a história do município. O professor enfatiza medidas que poderiam ser tomadas para que a história pudesse manter-se viva, sendo repassada para a juventude. “Eu acho que a Coordenadoria Regional de Desenvolvimento da Educação (CREDE) deveria, todos os meses, colocar uma aula sobre a região, porque a única coisa que se sabe foi que quem fundou o Assaré, o fazendeiro Alexandre da Silva Pereira, mas qual foi o motivo? Porque foi que ele veio fundar? Tem que saber”, diz Hugo.
Hugo tem uma visão de mundo única, ele estabelece conexões entre eventos importantes da história do Nordeste, como é o caso de alguns movimentos messiânicos, como o Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, liderado pelo beato José Lourenço, o Arraial de Canudos, liderado por
ASSARÉ 58
Personalidades de várias épocas e contextos diferentes estão na parede da loja de Hugo
Antônio Conselheiro, e a sedição de Juazeiro, tendo como figura principal o Padre Cícero. Hugo fala:
“A própria Igreja Católica fez coisas horríveis, na inquisição matou muita gente. Por exemplo, quem queria ser Papa, matava pessoas para chegar ao poder. Os maiores exemplos são Antônio Conselheiro e Pe. Cícero. O Padre Cícero foi muito perseguido pela Igreja Católica, aquilo ali que falam sobre ele, a maioria é inventado. O Caldeirão do beato José Lourenço, foi o maior sistema de reforma agrária do mundo, ele de repente com aquele povo dele, o que um tinha o outro tinha também, e a fartura era muita, dinheiro tinha. Ele era um cara que emprestava tudo o que tinha, daí inveja dos ricos do Crato e da Igreja Católica. Quando Pe. Cícero chegou de Roma que o Papa o liberou para celebrar a missa, Dom Joaquim (Prainha), engavetou o processo que veio de Roma, e passou muito tempo. Eu tenho um livro do Pe. Cícero que quem escreveu foi Lira Neto, que é perfeito, lá você sabe a verdade o que aconteceu”, afirma.
O Padre Cícero foi uma figura controversa, apesar de muitos o considerarem santo, outros o veem como político. Quando a Memórias Kariri questionou a santidade de Padre Cícero, Hugo respondeu:
“Não só ele, mas como por exemplo, os outros santos como São Francisco de Assis, tem muita
coisa que não entra na minha cabeça não. O Padre Cícero foi uma pessoa muito virtuosa, muito caridosa, ele só praticou o bem, o que ele tinha era do povo. Na guerra da sedição de Juazeiro, em 1914, contra o governo de Franco Rabelo, se não fosse por ele ia morrer gente inocente ali como em Canudos. Foi que Floro Bartolomeu, que era um baiano que comandava tudo, convocou o Nordeste todinho. De repente, pintou gente de todo Nordeste lá e o governo perdeu. Eu já andei no Nordeste todo, pra onde eu fui o pessoal conhecia Pe. Cícero. Pra você ter uma ideia, naquela época, João Pessoa era longe, mas quando tinha um problema entre famílias vinham todas resolver com o Padre Cícero”, assinala.
Sobre a fé, Hugo explicita sua visão da religião, de questões do bem e do mal e de sua percepção de mundo:
“Eu respeito todas as religiões, sou católico, não pratico, mas a minha religião sou eu quem faço e tem muitas coisas que eu não acredito. Eu acredito em Deus, mas não é esse Deus transcendental, já conversei muito com padres, já até estudei em seminário de padres. Não acredito que Deus esteja no céu, ou que exista inferno, isso é ficção. Deus está dentro de você e dentro de mim, logo quando Ele fez a humanidade, Ele entrou em todos os seres humanos. Se você pensar positivo, fizer o bem, praticar o bem, isso é você estar no céu. Olhe, você nunca deve fazer mal tão próximo, outra coisa, horrível é inveja, se você puder ajudar alguém, ajude. Esse negócio de você se preocupar com a vida alheia não dá em nada, porque enquanto eu tô preocupado com a sua vida, eu tô esquecendo da minha”.
“Não pensar coisas negativas, você tem que pensar positivo, amanhecer todos os dias pensando positivo, aí é onde existe Deus dentro de você. Se você quiser ir pro caminho errado, aí você vai pro inferno né. A Bíblia tem muitas coisas boas, mas tem muita ficção nela, muita coisa que não tem sentido. Os apóstolos são importantes, mas tem coisas que não, por exemplo, Moisés no mar vermelho, disse que ele bateu com a vara na água e o mar se abriu. Existe uma época de maré baixa lá no mar vermelho em que ele abria. Às vezes as pessoas dizem: ‘foi Deus quem quis’. Se eu tô vendo que ali tem perigo, claro que não vou”.
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Hugo relata que já fez muitas viagens pelo Nordeste, mas que a busca pela história do cangaço lhe desperta o interesse no momento
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Hugo expõe com orgulho sua visão sobre a história e a memória dos personagens em sua loja de bicicletas
PERSONAGENS E MEMÓRIAS
Hugo Brilhante tem em seu acervo diversas personalidades, veja abaixo uma breve descrição de seis das principais personagens - de Bárbara de Alencar a Irmã Dulce.
Delmiro Gouveia
Delmiro Gouveia (18631917), nasceu em Ipu-CE. Foi um empreendedor, pioneiro na instalação de uma fábrica nacional independente no Nordeste brasileiro. Explorou o potencial energético da Cachoeira de Paulo Afonso com a construção da primeira usina hidrelétrica de Paulo Afonso. Delmiro foi assassinado com três tiros em 10 de outubro de 1917, na varanda de seu chalé no município de Pedras, Alagoas.
Padre Ibiapina
José Antônio de Maria Ibiapina (1806-1883), nasceu em Sobral-CE. Foi um deputado, advogado e juiz, aos 47 anos decidiu mudar de vida e tornar-se padre. Peregrinou todo o Nordeste, evangelizando e promovendo obras de educação e ação social. Suas ações de caridade foram muito importantes para acolher os sertanejos em tempos de seca. Ele construiu igrejas, cemitérios, hospitais, açudes, além das casas de caridade que abrigavam enfermos, crianças órfãs e mulheres, vítimas da fome e das epidemias.
Beato José Lourenço
J osé Lourenço Gomes da Silva (1872-1946), mais conhecido como beato José Lourenço, foi um líder da comunidade Caldeirão de Santa Cruz do Deserto. O Caldeirão era uma comunidade que abrigava famílias de agricultores que fugiam da exploração dos latifundiários. O Massacre do Caldeirão é comparado à Canudos. Após o trágico fim do Caldeirão, o beato fugiu para Exu, onde morreu de peste bubônica, sendo sepultado em Juazeiro do Norte.
Bárbara de Alencar
Bárbara Pereira de Alencar (1760-1832), nasceu em ExúPE. Foi uma comerciante, revolucionária e a primeira presa política do Brasil. Participou da Revolução Pernambucana (1817) e também da Confederação do Equador (1824). Também conhecida como Dona Bárbara do Crato, ela era fazendeira de famílias ricas do Cariri. Foi perseguida pelos monarquistas por participar da Revolução Pernambucana e conseguiu escapar da pena de morte, mas não da prisão. Bárbara cumpriu pena de três anos em Fortaleza e após ser liberada, sua sede pela justiça só aumentou, participando ainda da Confederação do Equador. Faleceu no município de Fronteiras–PI, mas foi sepultada em Campos Sales- CE.
Jovita Feitosa
Antônia Alves Feitosa (1848-1867), mais conhecida como Jovita Feitosa, nasceu em Tauá–CE. Com apenas 17 anos de idade, disfarçou-se de homem, para alistar-se na Guerra do Paraguai: cortou os cabelos, disfarçou os seios e colocou roupas masculinas. Não conseguiu disfarçar por muito tempo, mas o seu gesto teve repercussão nacional e foi alvo de manifestações, pelos estados em que passava foi homenageada como heroína. Ao chegar no Rio de Janeiro, o Ministro da Guerra negou seu embarque. Assim, Jovita permaneceu na então capital imperial, mas sofreu com depressão, e aos 19 anos cometeu suicidio com uma punhalada no coração.
Irmã Dulce
Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes (1914-1992), nasceu em Salvador-BA. Foi canonizada como Santa Dulce dos Pobres, e é a primeira santa que é genuinamente brasileira. Praticou muitas ações de amor e assistência aos pobres e desfavorecidos, recebendo a alcunha de “Anjo bom da Bahia”. Esteve lado a lado com o Papa João Paulo II que lhe presenteou com um terço. Em 2010, o Vaticano confirmou um milagre atribuído a ela e em 2011 foi beatificada.
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Cabeção, história e carnaval de Brejo Santo
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BREJO SANTO
Em meados de 1960, nascia um pequeno bloco de carnaval, fruto de brincadeiras nas ruas da cidade de Brejo Santo. Os amigos Zé Quarenta, Pascoal Estropelio e Brasil criaram o bloco Cabeção para levar a alegria à criançada e, posteriormente, à cidade. O bloco existe até hoje, com muita raiz e muita história para contar. Brejo Santo sempre teve uma presença cativante nos carnavais. Todos participavam, desde a criança até o velho, e não faltava ninguém, pois o carnaval dessa cidade é democrático, é como um coração de mãe que sempre cabe mais um. Entre as crianças que corriam dos caretas nos primeiros blocos da cidade estavam Hermano Cavalcante e Ruy Eudes, dois amantes da folia, que nesta entrevista narram a história do principal bloco de carnaval da cidade de Brejo Santo.
Texto e colagens: Sarah Frutuoso
Hermano Cavalcante hoje está com 55 anos, é natural de Brejo Santo e atua como servidor público. Desde a infância carrega uma grande paixão pelo carnaval e por sua alegria. Quando pequeno, corria pelas ruas acompanhando o bloco Cabeção, hoje, faz parte da equipe administrativa, gerenciando instrumentos, gasolina, caixa de som e bebida. Antes, Hermano corria pelos carnavais com um sorriso no rosto, hoje corre para garantir o sorriso no rosto da garotada.
Não muito distante de Brejo Santo, no estado de Pernambuco, havia um outro amante da folia, Ruy Eudes. Sempre teve um apreço pela música, cantava e tocava desde a infância e, no carnaval, encontrou seu lugar para brilhar como músico. Depois de muitas aventuras em sua terra natal resolveu se mudar para Brejo Santo em 2005, foi aí que conheceu o bloco Cabeção e se envolveu pela trajetória do bloco, que na época estava parado, mas seu gosto pela música e pela folia ajudou a reerguer o histórico bloco da cidade. Hoje, Ruy tem 60 anos, é comerciante em uma padaria e um mercantil, e é um dos músicos e compositores do Cabeção.
Memórias - Como começou a história do bloco Cabeção?
Hermano - Começou com o bloco “Os Cão”, quando o folião pintava o rosto de carvão e saía na
rua vestido de saco de estopa. Depois Meu Bu, um pintor de geladeira, de carro, essas coisas, criou um boneco (atual símbolo do bloco) com outro amigo, o Estropélio. Foi aparecendo patrocínio das Casas Pernambucanas, charangas e o bloco foi ficando mais organizado. O bloco passou um tempo no anonimato, caiu no esquecimento. Aí os amigos Rato, Valdênio e Tomé decidiram retomar o bloco. Eu entrei no segundo ou terceiro ano dessa retomada, meados de 2008. O Brejo foi crescendo, mudando, até a chegada de Ruy, de Pernambuco, e Raí Neto, de São Paulo, quando retomamos o bloco. Começamos a fazer música e relançamos o bloco em 2005 com apenas uma caixinha de som, um cavaquinho e um violão. Isso tomou proporção. Veio gente até de outros estados pra brincar no carnaval de rua.
Ruy - Eu entrei em 2005 com cavaquinho; Paulinho com o violão e Raí Neto com o microfone. Tínhamos um carro de som e atrás seguia a batucada - eram 18 instrumentos, 8 de metais e 10 de percussão. Quando começou a sair na rua era só a ‘macharada’, não tinha mulher no meio, não, eram só os homens.
Hermano - As únicas mulheres que participavam eram a minha esposa e a minha irmã, que preparavam o caldo. Elas iam servindo caldo pros ‘bebos’. Teve uma época em que as mulheres disseram que iam fazer outro bloco com o nome de cabecinhas, né?
Ruy - Sim, eu até cheguei a compor a música desse bloco, mas aí minha esposa disse: ‘Você já tá metido demais com esse bloco das cabecinhas, e as mulheres só vão correr atrás de você, pode acabar com esse negócio’. As mulheres terminaram por se integrar ao Cabeção. Como a maioria ainda era solteira, as casadas se incomodaram e começaram a acompanhar também os maridos no bloco. E com quem deixar os meninos? Elas trouxeram também as crianças e pronto - o bloco só foi aumentando.
se tiver que trabalhar, dentro do bloco não tem distinção. E todo mundo, por incrível que pareça, faz é ajudar.
Ruy - É um bloco sem fins lucrativos, né? Teve um ano em que algumas pessoas criaram bloquinhos de 10 a 30 pessoas com incentivo da prefeitura, mas todos se juntaram a um bloco só, o nosso. Teve até patrocínio da prefeitura. O Cabeção com charanga e carro de som tomou à frente. Tanto que hoje tem muita gente com camisas diferentes do nosso bloco, só que a
Eram homens, mulheres e crianças. Tem gente que faz até brincadeira de roda acompanhando o bloco.
Existiam outros blocos ou o Cabeção foi o primeiro?
Hermano - Tinha o União e o bloco do Clube. Brejo Santo sempre foi forte nessa questão de carnaval de rua. No caso da gente, o bloco tomou uma grande dimensão. Como diz uma parte da nossa música ‘O Cabeção é do povo, ele não é de ninguém’. Tem gente que pergunta, quando se aproxima o carnaval: ‘mas, Hermano, não vai ter esse ano?’. Isso porque nós nunca proibimos o cara de colocar o carrinho de bombom, picolé ou o isopor com cerveja, todo mundo brinca e,
camisa predominante é a do Cabeção, feita em maior quantidade.
Por que o nome Cabeção?
Ruy - O que era o Cabeção? Era uma bacia de água que o pessoal botava na cabeça com uma caveira de boi, aquela carcaça com um chifre e um pano, para assustar os meninos durante o carnaval. Apareceu uma armação de alumínio de Milagres (município a 22 Km de Brejo), uma cabeça humana bem grande. Nela, foi criado um corpo pequenininho. Uma desproporçãocabeça grande e corpo pequeno. Vestiram com o paletó do professor José Teles, fundador da escola Padre Viana, a mais antiga de Brejo Santo.
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A partir desse passado, foi criado o bloco com o nome “Cabeção”.
Esse boneco sempre foi o mesmo?
Hermano - Não, anualmente mudamos. Um ano a gente sai com chifre (estandarte do bloco), outro ano sai com uma cartola. Teve ano que Rato homenageou o deputado Wellington Landim, depois da morte dele, e fez uma caricatura do político. A gente tá mudando, tá igual esse vírus da COVID, o bloco é muito mutável.
Ruy - Tem uma música nossa que fala sobre isso. Tem ano que a cabeça sai com uma coroa, tem a cartola também e tem os chifres. Como no ano passado. O Cabeção de 2020 é uma homenagem a Caldeira do Inferno (bar famoso
de Brejo Santo), que estava completando 60 anos, então aproveitamos o chifre (símbolo do inferno).
Qual é a quantidade de pessoas que acompanham o bloco?
Ruy - Quando a gente recomeçou em 2005, saíam de 100 a 200 pessoas, hoje a gente calcula seis mil pessoas. O Cabeção não tem CPF nem CNPJ, ele é um bloco informal até hoje, não é uma pessoa física e nem jurídica, não tem documento nem herança. É incrível quando você vê a quantidade de pessoas a cada virada de rua. O bloco evoluiu muito, tanto na parte musical, como na parte de som.
Como é a divisão do bloco Cabeção?
Hermano - Músico só tem Ruy, Raí Neto e Paulinho, que inclusive sempre fizeram parte da banda.
Ruy - Eram nós três, eu, Paulinho e Raí Neto. Eu de um lado com o cavaquinho, Paulinho do outro lado com o violão e Raí Neto com o microfone. Hoje a banda se resume assim: eu vou tocando no cavaquinho, Samuel no contrabaixo, Regis na guitarra. Cantores tem eu, David, que é o secretário de cultura atual do município, e Paulinho. Metais - o maestro Adir Neto e Luquinhas no trompete, Jean no saxofone e Agledson também no saxofone. E a batucada são dois surdos, um é Michel e outro, e Idel Fontes, Sinhô, Gil Bila e William nos pratos, em torno de 13 a 15 componentes.
Vocês tem alguma composição sobre a pandemia?
Ruy - Tem uma música que eu fiz sobre o Coronavírus, ela fala assim:
“Corona que eu sabia era marca de chuveiro/ surgiu outro na China e se espalhou no mundo inteiro/ ninguém sai mais de casa nem se cumprimenta não/ e agora proibiram/ beijo e abraço e até aperto de mão/ cuidado com as criançascomosidososmuitomais/cumprimentar de longe prevenir nunca é demais/ tomando esses cuidados e seguindo as instruções o mal será vencido salvaremos multidões/ na cara máscara/ na cara máscara// Tá tudo cancelado jogo, festa, reunião/ fronteiras estão fechadas/ trem metrô e avião/ e tome álcool em gel e
“O Cabeção não tem CPF nem CNPJ, ele é um bloco informal até hoje, não é uma pessoa física e nem jurídica, não tem documento nem herança. É incrível quando você vê a quantidade de pessoas a cada virada de rua”
Ruy Eudes
tome água e sabão/ vacina agora temos só nos chega a prestação/ na cara máscara/ na cara máscara...”.
Aí outro dia eu estava na caminhada e pensando - ‘mas rapaz o que eu vou fazer pra 2021 ou para 2022?’. Uma música você não faz na hora que você quer não, vem aquela melodia, às vezes eu estou tomando banho e tenho que correr ligeiro pra anotar. Aí eu vinha da caminhada, veio aquela luzinha e eu fiz essa aqui:
“Eu vou no sopro da massa Nas asas dessa multidão
Eu sigo sinal de fumaça o rastro que fica no chão
Já faz parte da minha vida com essa alegria eu vou Brincar no Cabeção é uma festa é frevo Baião xote e seresta Mistura que é pra dar mais calor
Pule pule pule
Tire os pés desse chão
Cante cante dance agite levante as mãos
Que o Cabeção chegou com toda sua força Devidamente vacinado
Pro Cabeção festejar, foliar...”
Como o bloco Cabeção influenciou a cultura de Brejo Santo?
Hermano - Dentro do bloco, já fomos convidados para falar em escolas. A prefeitura investe, mostra que tem preocupação, procura estruturar a rua,
Carnaval de 2016, Bloco Cabeção, homenagem ao Deputado Wellington Landim, falecido em 2015
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Foto: acervo pessoal
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policiamento, tem todo um apoio dentro das normas. Tanto que fazem outros blocos dentro do nosso bloco, o povo se organiza pra fazer e tenta ser igual, mas não consegue, porque não é fácil gerenciar uma coisa dessa, pra botar na rua tem uma série de coisas por trás, a gente trabalha uns seis meses antes. O carnaval não começa no sábado, temos os ensaios e várias reuniões, se alguém está trabalhando, corre meia horinha, duas horinhas e vai no comércio para pedir patrocínio. A gente leva muito “não”, mas vamos mostrando que a coisa é séria e sem fins lucrativos, o que a gente tem, investe no bloco. E pra você Ruy, como se dá essa influência?
Ruy - Hoje o Cabeção sintetiza o carnaval de Brejo Santo. Houve uma época que existia o carnaval na praça; o Cabeção saía pela manhã do Bar Karnal, fazia o trajeto e chegava à praça. Lá acontecia o “Banho do Folião”, já tinha uma banda esperando e o pessoal que vinha no Cabeção tomava banho, por volta do meio dia, e ficava por lá até a noite. Haja fígado e canela para aguentar.
anos de idade, eu já cantava e já tocava, mas a vida não é do jeito que a gente quer. Inclusive agora estou completando 58 anos, estou quase ficando “sexy”... sexagenário. Estou ficando novo.
Hermano - Desde criança eu acompanhei o Cabeção, era o prazer de todo menino. Quando terminava a matinê do clube nos domingos e nas terças-feiras de carnaval, ia à tarde pras ruas ficar esperando o Cabeção passar. Eu achava bom acompanhar, sempre fui folião e sempre gostei, nunca troquei meu Carnaval de Brejo Santo. Eu como folião, gosto do Carnaval, o Cabeção é uma realização. Diferente da de Ruy, de tocar e cantar, a minha é botando o bloco na rua pra fazer a alegria do povo e a minha também, e em fazer parte da direção de um bloco renomado desse.
Qual a mensagem que vocês deixariam pra quem gosta do carnaval?
Hermano - A esperança que eu tenho é que esse pessoal mais jovem encoste na gente, venha participar, pra gente ir passando o bastão.
“A esperança que eu tenho é que esse pessoal mais jovem encoste na gente, venha participar, pra gente ir passando o bastão. Tem que ver a coisa com amor pra fazer crescer mais do que a gente já deixou”
Hermano Cavalcante
O que o bloco Cabeção representa pra vocês?
Ruy - Olha, o Cabeção faz parte da minha vida. Eu cheguei aqui (Brejo Santo) em 1991, e, em 2005, entrei no bloco, de lá pra cá eu já tenho 16 anos de Cabeção. No Cabeção me realizo como cantor e compositor. Tenho várias composições gravadas, canto forró, canto MPB; com o Cabeção eu tenho sete CDs gravados. A música pra mim é uma realização de vida. Se eu pudesse viver e ganhar dinheiro com a música, já teria abandonado a minha padaria e o mercantil, mas infelizmente não é desse jeito. Desde os 15
Daqui a pouco nós estamos parando, a gente cansa. Eu queria é que chegasse gente nova, com responsabilidade, não é só querer brincar, a gente mais trabalha do que brinca, mas faz o que gosta. Tem que ver a coisa com amor pra fazer crescer mais do que a gente já deixou.
Ruy - Do jeito que ele está, com o acervo que ele tem hoje de músicas e equipamentos, o Cabeção não se acabará nunca. Muitas histórias eu quero deixar documentadas no livro que eu estou preparando, tem todas as músicas do Cabeção e todas as partituras. A gente está deixando a história.
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