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Memórias da nossa aldeia Cariri
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O jogo da memória é repleto de nuances, hiatos, lembranças e esquecimentos. A primeira edição da revista “Memórias Kariri” coloca em confronto a história de importantes personagens da região com a sua própria memória, ou seja, por meio dela, a memória, a publicação expõe e registra importantes acontecimentos da região, contados por personalidades que participaram e conviveram durante anos com a história da sua aldeia - da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo (...) Por isso a minha aldeia é tão grande quanto outra qualquer (Fernando Pessoa).
Para contar histórias da nossa aldeia – palavra que também significa povoação habitada por índios – escolhemos como gênero narrativo a entrevista jornalística em profundidade. Como na literatura de testemunho, na história, na etnografia, no memorialismo ou qualquer outra forma de recuperação do passado, a entrevista confronta-se com a decifração do real, este tomado como categoria bem mais geral do que a notícia e seu estrito sentido técnico.
A primeira edição da revista abre com uma entrevista com Padre Ágio. Aos 99 anos, padre Ágio impressiona pela memória privilegiada por lembrar pequenos e grandes acontecimentos da sua vida dedicada à religião e à música. Poliglota, além de músico, formado em filosofia e teologia, ele é uma lenda vida do Cariri.
Entrevistamos também seu Raimundo Batista de Lima sobre o Caldeirão de Santa Cruz do Deserto. Ouvimos atentamente a sua versão do extermínio da comunidade do beato José Lourenço pelas elites do Ceará – governo, latifundiários e parte do clero. Ele recebe diariamente visitantes – pesquisadores, estudantes, professores, turistas, religiosos – para apresentar o local onde viveu José Lourenço e a sua comunidade. Com sua voz tranquila, pausada e com um português que dá gosto de ouvir, ele narra a sua versão, bem diferente da oficial. Marcas do nosso português arcaico, nossa herança Ibérica, talvez hoje em extinção.
A “Memórias Kariri” não poderia deixar de registrar em seu primeiro número a história de Mestre Espedito Seleiro, uma referência em todo o Brasil com as suas peças confeccionadas em couro. Peças que já foram exibidas em filmes, novelas, exposições de arte e moda do Brasil e exterior – celas, gibões, bolsas, chinelas, cintos, chapéus – a tradição da arte nordestina. Ele conta que foram anos de pesquisa
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até desenvolver uma técnica única e singular. Lembra também de tempos brabos, difíceis que passou ao lado da família e da sua gente – de vaqueiro, tropeiro, cigano e sertanejo. E uma inusitada história envolvendo Lampião. Ele refaz um percurso de lembranças – algumas boas, outras nem tanto.
Juazeiro do Norte tem se notabilizado por transformar-se rapidamente em um pólo universitário.
E a Universidade Federal do Cariri – UFCA – tem dado uma contribuição das mais importantes para a região. O professor Raimundo Martins Filho narra parte dessa história, fala das questões e problemas ligados à educação numa universidade ainda muito nova, mas já com um histórico importante para o desenvolvimento do Cariri. Com vasta experiência no campo acadêmico, ele é um obcecado pela área que abraçou desde cedo: a medicina veterinária. O professor aponta problemas e sugere soluções diante do atual quadro vivenciado pelas universidades brasileiras, particularmente a UFCA.
Outra entrevista de destaque é a do médico e escritor cratense, José Flávio Pinheiro Vieira. Zé Flávio tem trinta anos de experiência com a literatura lançando mão de uma diversidade de gêneros. Amante da literatura desde muito novo, se apegou a uma escrita de fácil compreensão. Fez sucesso entre as crianças com “O Mistério das 13 Portas”. O escritor prioriza as suas raízes e o seu lugar em todos os seus trabalhos. “Se o matuto fala assim, assim escrevo. Já imaginou um matuto com escrita difícil?, diz.
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A matéria sobre a Expocrato é a única que não segue a linha da entrevista em profundidade. Faz um mergulho na maior feira agropecuária do Nordeste através de um ensaio fotográfico e de olhares de personagens que viram a exposição nascer, em 1944, como as irmãs Bacurau, Ana e Prisca. Elas lembram do pai, o cratense José Bacurau, que testemunhou durante anos várias fases da exposição. E narram suas vivências durante edições passadas da Expocrato. O jornalista Francisco Humberto Esmeraldo Cabral assinala o processo de desenvolvimento da Expocrato, desde 1944. Memorialista, ele fala de particularidades da feira e de como chegou a ser a primeira feira do gênero do Nordeste brasileiro.
A revista ao lançar mão da memória, em entrevistas em profundidade com personalidades (sejam famosas ou anônimas), resguarda à memória coletiva concernente diretamente a vida de cada um de nós, da nossa aldeia Cariri.
Índice
38 Raimundo Martins 46 58
Expediente
Expediente
Texto e fotografia:
Anna Carla de Morais
Caio Botelho
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José Anderson Sandes
Renata Linard
Sabrina Ribeiro
Professor orientador:
José Anderson Sandes
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Projeto gráfico e diagramação: Isaac Brito Roque
Edição 1
Juazeiro do Norte, Novembro 2017 Revista experimental do projeto “Memórias Kariri” vinculado à Pró-reitoria de Extensão da Universidade Federal do Cariri.
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A fé e a música
movem montanhas
Padre Ágio Padre Ágio
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Padre Ágio Augusto Moreira é a verdadeira figura do contador de histórias do Nordeste. Entrevistá-lo é um desafio. Aos 99 anos, impressiona pela memória privilegiada. Em sua casa, de pijama, sentado em meio a centenas de livros, conta de forma detalhada recortes da sua vida e seus sentimentos em um depoimento que durou quase três horas. Nas vésperas do seu centenário, planeja comemoração e confessa as dificuldades do espírito e do corpo de chegar a velhice “como velho, eu me sinto só. A pessoa fica apegada e quer continuar a ser jovem até o fim, mas não pode, porque a construção física não é duradora”.
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Qual o significado do seu nome, Ágio?
O meu nome Ágio é do grego, meu pai sabia grego e sabe que teve um filho do Crato com meu nome, quando eu nem sonhava em nascer, Padre Ágio Moreira Maia. Porque meu pai conheceu esse padre e era um padre inteligente, era escritor, não sei se era músico, mas já fez pesquisa, agora é difícil e eu não encontrei um retrato dele. (risos) Ágio é do grego significa: santo, bom, honesto, mortal. Na minha memória tem que explicar um pouco e teve esse colega, já pesquisei até na internet eu fui atrás, ele foi vigário de Jacobira, vigário do Rio, de São Paulo, e era do Crato, agora a ligação do Crato era com a família Maia. Padre, qual a maior recordação dos seus pais?
Eu considero meus pais uma graça. Porque a família não foi pequena. Também não foi muito grande não, mas foi regular. Doze filhos. Morreram quatro crianças e oito foram criados. Éramos seis homens e duas mulheres. O meu pai (Augusto Moreira) foi educado por um grande professor e sacerdote Padre Joaquim Sother
de Alencar. Quando o meu pai era bem jovem, ele o convidou para entrar em uma escola de especialização, para se preparar para qualquer vestibular. Ou para padre, ou médico, ou engenheiro, qualquer profissão. Primeiramente, quis ser padre. Porque tudo que o Padre Joaquim Sother sabia ele aproveitou. Estudou francês, latim, grego, português... Ele não falava mas estudou e aprendeu. O Padre Sother sabia muita matemática, física e química e ele também aproveitou muito bem. Como não deu certo ele entrar no Seminário, o Padre aconselhou que ele escolhesse qualquer carreira, contanto que não precisasse fazer vestibular. E ele foi para Fortaleza e foi um dos primeiros alunos da faculdade de farmácia. Ele se formou em farmácia. O patrimônio que o meu pai queria deixar para cada um de nós era o estudo. Ele não tinha fazenda, nem sítio, nem tão pouco era político. Então, achou que o maior prêmio para
Texto e foto: Anna Carla de Moraisos filhos era a formatura. Mas sem determinar o que deveria ser. Porque antigamente, alguns pais de família desejava mais por três profissões: médico, advogado e engenheiro. Ele sempre quis deixar a herança o estudo, mas cada um tinha que resolver o que queria. E assim foi... Três entraram no seminário. Só se ordenaram dois, o terceiro morreu como seminarista.
O senhor fala outras línguas?
Eu estudei línguas não latinas – o inglês, francês e italiano e línguas clássicas estudei grego e latim. Duas clássicas e quatro modernas com o português, né?!
O senhor começou a estudar com quantos anos?
Todos lá em casa começaram cedo. Porque meu pai era o professor e a minha irmã mais velha, que tinha o curso normal completo, no Colégio da Imaculada Conceição, ensinavam aos mais novos. Maria Augusta Moreira é a minha irmã mais velha. Tanto que ela é a minha madrinha de batismo. Foi preciso licença do Bispo porque ela só tinha dez anos. E o Bispo deu. O vigário que me batizou foi Padre Emílio Cabral, parente dos Cabral daqui do Crato. Tio de Humberto Cabral, da rádio.
O senhor sempre foi um bom aluno?
No começo eu não entendia esse negócio de estudar. No começo. Mas diz o provérbio que “prata de casa não tem valor”. Mesmo meu pai estimulando muito eu e o meu irmão para estudar, a gente só queria jogar futebol ou então as brincadeiras da noite, ou circo, não perdia nenhum circo. Mas depois de levar uma pisa bem grande, porque cheguei dez horas da noite em casa, menino, aí óh, a chibata. Mas depois em uma crise muito difícil, pensei... o meu pai para se formar, logo no
começo da vida ainda, encontrou dificuldades, mesmo ele sendo bem preparado. Meu pai começou a negociar o comércio de medicamentos três anos antes de fazer a faculdade. Meu pai só adquiriu a licença provisória do Governo, enquanto ele não recebeu o diploma de farmacêutico formado. O Governo deu um prazo, aí ele resolveu fazer a faculdade e levou para Fortaleza a filha mais velha que se formou como professora normal. Nesse tempo, quem ficou na farmácia foi a minha mãe Raimunda Jorge Moreira, que não sabia nem ler. Era da Serra do Quincuncá. Ela tomava conta da Farmácia mesmo sem saber ler, só pelo que tinha acompanhado o marido junto com o filho mais velho. Quer dizer. mãe e filho trabalhando para sustentar pai e filha. (risos) Durante os três anos da faculdade.
O senhor gosta mais de ler ou de escrever?
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Olhe, para escrever eu tenho que ler. (risos) Mas é melhor ler, escrever dá trabalho, se erra muito. Quantos livros o senhor já escreveu?
Tenho é muitos. Quer anotar aí? Não, eu não decorei não. (risos) Eu só posso dizer certo os que já foram publicados. Os outros que ainda vou fazer, como é que vou dizer? Só para dizer que está no plano? Não está no plano não, está na cabeça. Eu comecei fazendo folhetos.
O primeiro folheto foi “Água Benta”, é um sacramental, porque o padre usa muito a água benta para benzer, só não benze o dinheiro. (risos) Outro livreto foi “Dízimo”, a manutenção da igreja e do padre, o terceiro foi “O mandamento de assistir a missas aos domingos e dia santo”. Pronto. Partindo daí foi o tempo em que eu fundei aqui a escola, então fiz o primeiro livro que foi
“Sonho Realizado”, a história de como fundei a escola aqui, editado em Brasília. Quer dizer, depois que eu me ordenei, depois que eu fui vigário por cinco anos e por último professor do Seminário por treze anos. Aí eu disse: não, não vou morar em cidade não, vou morar no pé da Serra. Sabe quantos anos faz que eu estou morando aqui? Vim morar aqui em julho de 1961. Então, vai completar cinquenta anos que eu moro aqui no pé da Serra. E o segundo volume foi “O Cajueiro: vida uso e história”, tudo sobre o caju. Como nasceu no senhor o desejo de ser padre? O senhor se sentiu chamado?
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Pois é, o chamamento é o seguinte - a criança se impressiona muito com as atitudes e o proceder das pessoas, ninguém sabe disso, mas é verdade. Se por exemplo, a criança é ativa, viva, ver que aquela pessoa é daquele jeito, procura imitar. Mas quando fui para Cariús, cadê padre? Não tinha padre. Eu já estava ficando malandro. Só queria jogar futebol e à noite brincadeiras bem duras como “chicote queimado”, precisava ser muito ágio, muito esperto para não levar lapada de chicote. (risos) O Padre Emílio Cabral, foi o que me batizou em Assaré. Depois de dez anos, ele foi Vigário em Cariús e eu já morava lá. Mas essa é uma outra história. Padre Emílio fazia questão que os meninos do catecismo acompanhassem as cerimônias da Igreja. Ele preferia sempre que eu ajudasse mais a missa e acompanhasse ele nas capelas, para ajudar a batizar, ajudar em casamento. Eu fazia companhia a ele. E aquilo me tocou, principalmente na Semana Santa. Aquilo me impressionou muito. Padre Emílio estava já cansado. Ele durou pouco, seis meses. E foi com ele que fiquei mais seguro da vocação. Por que o senhor saiu de Assaré para morar em Cariús?
Eu fui morar em Cariús com cinco anos de idade. Meu pai deixou Assaré para ir para Cariús, porque lá não tinha nenhum farmacêutico. Ele foi comercialmente, na esperança da farmácia ter melhor desenvolvimento. O pensamento dele também era nos deixar o que ninguém pode roubar e impedir, a herança intelectual de cada um. E isso em Assaré não estava tendo condição, não.
Em Cariús o estudo ficou mais acessível?
Lá eu tive professora de teatro. Eu tinha mais ou menos dez anos de idade e ela tinha quinze.
O nome dela é Diva Pagim. Ela fazia parte do coral do meu pai. Ele nunca deixou de estar presente nas missas dos domingos e nas festas. Ele tocava órgão, e essa menina chamada Diva Pagim, é irmã de cantoras conhecidas pela rapi-
dez em decorar todas as músicas da igreja. Pagim tinha uma voz muito bonita e ela era bonita também. Mas eu só tinha dez anos quando ela me convidou para participar do teatro dela. E eu fui participar. Ela se apresentava de avó. (risos) E eu o neto. Na apresentação, ela sentava nos trajes da vovó, a saia comprida, um bastão, se lamentando que estava muito velha e não podia mais ficar sem ter um companheiro. O pai dela já tinha morrido, ai eu dizia: vovó, a senhora não pode mais pensar em casamento, não. Aí lhe convidava - “vamos jantar”, mas era cantado, e ela cantava a segunda parte da música, aí o povo ria. Porque fazíamos com tanta inocência. Representei pela primeira vez com dez anos, mas eu representei do jeito que ela ensinou. (risos) Ela está viva ainda, com 105 anos, vai completar para o ano, e eu 100 anos. Eu fui lá, dar os parabéns no ano em que ela fez 100 anos, mas não pude ir no dia exato. Portanto,
estão convidados para também assistir ao meu centenário. Ainda não fiz o programa, mas esse é um. Ela vai ser a avó e eu vou ser o neto dela. Ela com 105 anos e eu com 100. (risos) Agora, a propósito, eu sair muito do assunto, o que você queria mais? (risos)
O senhor não voltou mais para Assaré?
Não, não voltei mais. Vou lá só para passear. Mas eu conheci o Patativa. (risos)
O senhor foi amigo do Patativa?
Eu tenho guardada muita coisa do Patativa. Ele era complicado porque ele não aceitava um conselho. O fumo foi quem matou o Patativa. Depois o senhor saiu de Cariús...
Eu tinha doze anos completos, quando fui para Fortaleza com mais seis amigos. De Cariús até Fortaleza, eu fiquei abusado de andar de trem, a vantagem da gente morar em Cairús é que tinha trem e era bem perto de Iguatu. Cheguei em São Paulo em dezembro de 1930, mesmo nas festas de Natal. “Vixi” eu fiquei encantado com São Paulo, mas sofri muito. Tanto na viagem de navio, como na viagem de trem do Rio de Janeiro à São Paulo. Estranhei o clima. Quando saiu do estado do Rio e entrou no Estado de São Paulo eu senti frio como todos os outros. O meu irmão pediu a um rapaz que cuidasse de mim, porque não podia viajar sem autorização e quase que eu não viajava quando cheguei em Fortaleza. Tinha atestado médico, atestado da família. E eu era o mais novo.
O senhor foi para o Seminário de São Paulo com doze anos?
Com doze anos completos. Fiz todo o curso, menos filosofia e teologia, que foi em Fortaleza. Curso superior foi em Fortaleza. Lá era um curso de preparação para padre. Curso ginasial e científico. Por seis anos. Lá era puxado, tinha aula de manhã e de tarde. Agora o meu irmão que ia ser médico, ainda entrou no Seminário, mas deixou logo. Só quis sair de Cariús. Ele só foi para o Seminário para ficar só. (risos) Todo jogo de futebol era eu e ele. Ele tinha já “amizade” com a Pagim. (risos) Mas ela era muito menina, eu acho que ele prometeu algo a ela quando terminasse a faculdade de medicina, quando ele foi estudar no Rio de Janeiro. Mas ele apanhou uma gripe nos pulmões e foi embora. Qual era o nome dele?
Deusdedit Augusto Moreira... Ele era um retrato da minha mãe. Você sabe que a família grande tem isso, uns puxam o pai e outros puxam a mãe, o sentimento e tudo a mesma coisa. Ele era muito apegado a minha mãe, mas quando foi para ir para o Rio de Janeiro ele desobedeceu tanto a minha mãe como também o médico, que avisaram que ele não podia estudar naquele ano. E era porque ela gostava mais dele. Ele já tinha
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feito todo o curso em Fortaleza para o vestibular em medicina no Rio e foi aí que ele perdeu a saúde... Porque tínhamos já, quatro tias morando no Rio de Janeiro, mas ele não quis morar com nenhuma delas. Sabe onde ele foi morar? No asilo dos doidos em Jacarepagua, quando passou no vestibular, lá estava como enfermeiro e assistente do médico dos doidos e eu ia bater lá. Mas quando passei seis anos em São Paulo, minha mãe mandou um recado por ele - “minha mãe disse que você fosse, voltasse que ia ”morrer” e não lhe veria mais”. Eu disse: ah, agora ela tá querendo bem. (risos) Ele me deu o recado, aí eu disse: diga a ela, se eu não passar no último ano aqui eu vou “mim bora”... Porque o colégio lá de Jundiaí, era pesado. A gente estudava o dia inteirinho. Só tinha um dia na semana que a gente ia passear. E era tudo preso. O parente mais próximo a me visitar foi ele. Foi se lamentando que estava doente e achava que não ia terminar o curso de medicina. E realmente ele estava bem magrinho. Eu até estranhei! Fiquei pensando - “mas será que meu irmão, não será meu primo não!?” Não assisti a sua morte, mas assisti a notícia da morte dele. Eu via minha mãe cair no chão e quando eu perguntei o que foi, recebi a notícia de que ele tinha morrido. Olha, ela ficou sentida. E para consolar era difícil. Chegavam padres e outras pessoas: “não, a senhora ainda é rica, já tem tantos filhos, outros poderão ser médicos”, mas o outro que ia ser médico morreu também. Disseram que eu já estava perto de ser padre, mas ela disse: “eu quero muito bem ao meu filho padre, mas a questão é que eu, desde o nascimento à morte dele, minha intensão era de que meu filho fosse médico para cuidar de mim; o padre eu renunciei, ele podia ir para qualquer parte que eu não sentia nada”.
O senhor saiu de São Paulo e voltou para Cariús?
Quando eu voltei de São Paulo meus pais ainda estavam em Cairús, mas eu não cheguei nem a passar férias em Cairiús, não. Eu fui só passear. Achei tudo diferente, não tinha mais a ponde metálica que a gente passava de um lado para outro, os americanos já tinha ido embora. A luz já estava sendo de Paulo Afonso, tudo estava diferente.
Como nasceu a música na vida do senhor?
Dentro de casa! (risos) O padre Joaquim Sóther comprou um órgão unicamente para a Igreja de Quixará (atual Farias Brito), mas colocou no testamento que por morte dele, o órgão ficava para o meu pai e foi este harmônio foi quem fez estimular toda a família para cantar e tocar. O primeiro a aprender foi o mais velho, Padre Davi Augusto Moreira. O primeiro instrumento que aprendi foi o órgão. Tinha o violão também, mas a gente só fazia um “blan blab blan” desafinado. (risos)
Minhas duas irmãs cantavam, a que morava em Forta-
leza trazia todas as novidades quando vinha passar as férias. Aí ela cantava, tocava no órgão. O senhor toca quantos instrumentos?
Os instrumentos tocados por exercício é o órgão, o piano, que precisa de muito exercício, mas eu toco mais o teclado. É a mesma coisa, a estrutura da música para tocar é a mesma coisa. Violino, mas toquei pouco violino, que é outra história do violino, mas não vou contar não. (risos) Meu irmão mais velho era quem sabia música mesmo e fez curso por correspondência, eu fiz a biografia dele. E ele se comunicava com os melhores mestres de São Paulo. Tenho ainda estudo dele aprovado pelo maior seminário da música em São Paulo. Meu irmão mais velho Davi Augusto Moreira. Este foi o primeiro padre, eu sou o segundo na família. Para o senhor qual é o instrumento mais fácil de tocar?
É difícil, é difícil de dizer né!? (risos) Mas pela experiência como professor, é a flauta doce. Não tem instrumento mais fácil não. Ela sendo afinada. O senhor fez faculdade de música?
Bom, eu quando fiz um curso de música em Fortaleza que equivalia a faculdade de música, fiz filosofia e teologia também. Eu comecei sendo professor no Seminário só de canto, mas o Monsenhor Rocha, o reitor e que foi colega meu em Fortaleza no curso superior durante um ano, foi e me convidou “óh eu vou pedir ao Bispo para você se nomeado professor daqui do Seminário, porque eu não sei música e nem tem um padre que tenha assim um amor à música” Aí eu disse “pois não”. E o meu irmão mais velho já estava morando no Ginásio que era da Diocese - “Ginásio Diocesano”. Ele era professor e diretor do Ginásio, ele tinha mais capacidade, foi o primeiro aluno de me pai de música. Quando fui fazer melodia, eu disse “agora eu não sei fazer o acompanhamento colocando os instrumentos que eu tenho aqui no Seminário”. Aí ele colocou. Tem é muita música... O senhor passou um tempo no distrito de Missão Velha, Jamacaru? Isso é verdade?
Quando eu vim como Padre (para o Cariri) a primeira missão que o Bispo Dom Francisco me deu foi andar na visita pastoral com ele. Um ano depois da visita pastoral eu fui nomeado professor de canto no Seminário São José e veio a ideia de fazer a orquestra. A orquestra nasceu foi lá, em Jamacaru. A orquestra e o coral. Mas eu ia lá só passar as férias. (risos)
O senhor tem família lá?
Não, lá era tudo estranho. Era questão do clima para a gente passar as férias. Tinha muita cana, muita fruta, a água abundante, para a gente tomar banho nas bicas. Lá tinham três bicas. Aí eu ouvia os trabalhadores dos sítios cantando na colheita do café. Eram os próprios habitantes de lá. Apanhavam café, e eles não apanhavam calados não! Cada grupo pegava três, quatro pés de café para tirar todo o café, para botar para secar e tudo e vender. E eu achei aquilo fantástico, ainda colhi duas músicas que me agradou, aí eu disse: agora eu vou levar para a minha orquestra. (risos) Nesta época, eu já estava morando em Crato. Ah, eu fiquei impressionadíssimo. Eles fazendo aqueles versos na hora. Aí eu levei, sabe quem? O pai do Abidoral. Aí eu pedi para ele tirar umas fotografias, filmar... Aí pronto, o entusiasmo já foi maior. E depois de muitos anos, eu já tinha a orquestra aqui, eles convidaram para eu tocar a missa da festa da padroeira que é no dia 15 de setembro, Nossa Senhora das Dores, aí fomos lá. E depois o coral e a orquestra daqui, cantaram no fim da missa as duas músicas que eu mais gostava de ouvir de lá. E o povo todo animado que eu estava pensando que a igreja ia cair por cima da gente. (risos)
O quê levou o senhor a morar em Crato?
Primeiro o clima, depois a vegetação. Eu sou Sertanejo, Assaré é o começo do Sertão e no Sertão a gente toma água de açude ou de cacimba, e aqui não (Crato)!
A gente toma água da fonte, da Serra jorrando, tudo isso atraiu eu morar aqui.
O senhor gostaria de morar em outro lugar?
Não! Sabe porquê? Em Assaré, tudo fica muito longe.
O senhor teve a ideia de ensinar música clássica para os agricultores do Belmonte depois do que viu em Jamacaru?
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Eu tive a inspiração. Eu pensei da seguinte maneira: quem foi que ensinou aqueles catadores de arroz, do café? Olhe, esse povo era totalmente analfabeto, lá ou outro que sabiam uma coisinha, na realidade não tinha escola lá, nenhuma, nem do governo, nem do município, só particular mesmo. Aí pronto, eu tirei a conclusão que se lá em Jamacaru, eles não tinham escolas, não sabiam ler e cantavam afinado... Não era desafinado não e as poesias que eles faziam não eram muito folclore não, eram bem interessante, aí todas as férias que eu ia passar, pedia mais coisas para colocar em meu caderno, fui muitas vezes lá, muitas vezes.. todas as férias que tinham no meio do ano no Seminário eu ia passar lá.
Do que o senhor recorda de quando chegou em Belmonte?
Quando eu vim pra cá (crato) os meninos não sabiam ler, eram os meninos todos nos sítios trabalhando nas socas de cana. Você sabe quantos engenhos de rapadura tinha aqui em roda do Belmonte? Dez. Hoje não tem nenhum. E fez muita falta. Porque eles que trabalhavam lá, uns de doze anos acima, era para carregar a cana de lugar para colocar no pé do engenho, outros era para espalhar o bagaço para secar para colocar na fornalha, economizar lenha. Outros eram para tanger os burros,
pol’.. quando o pé sentava no fundo, no cimento, eu dava um pulo e subia e ficava brincando dentro d’água. “Você não disse que ‘véi’ não pode” mas é doidice! Isso sacolejou muito o sistema nervoso da cabeça e eu tive um AVC por causa disso! (risos)
Para o senhor o que é mais gratificante em ser professor?
Quando os alunos se entusiasmam por alguma coisa que eu sei, eles ficam entusiasmados.
Para o senhor, para que serve a arte?
Você já ouviu falar no grande músico brasileiro Heitor Villa-Lobos? Ele era um apaixonado pela música. Ele percorreu de ponta a ponta o Brasil, do Amazonas ao Rio Grande do Sul, ouviu todas as canções populares. Eu tenho, dois volumes dele. Um dia ele foi convidado para percorrer a Europa, ele andou vários países da Europa: Alemanha, França, Bélgica, Portugal... Aí os franceses perguntaram - “você veio aprender a nossa música?” ele disse: “Não! Eu vim mostrar o que faço no Brasil, na minha terra”. Bateram palmas e disseram - “pronto, pode percorrer todos os cursos da França”. Depois perguntaram a ele quase essa mesma pergunta: “para que música no colégio?” Ele disse - “primeiro, para os sentimentos dos alunos serem mais normais, nunca se agitar e fazer o que fazem dentro de casa, é se educar, a educação através da música”.
Para quem o senhor faz música?
A música é para educar o povo!
Para o senhor qual é a coisa mais importante do mundo?
faziam rapadura para os compradores e as meninas todas plantavam verduras aqui nesse pé de serra. Hoje não tem nada. Agora todo mundo quer ser professor, todo mundo quer ser doutor, o ensino está muito fácil. Ora, a escola eu fundei cinquenta anos atrás, completa neste ano, cinquenta anos. E esses alunos tem deles que já foram à Europa e deu show lá. (risos)
O senhor ficou feliz com a entrega da Vila da Música?
Não, não fiquei tão feliz porque não fizeram como eu estava pensando.
E como o senhor pensou?
Mais simples. Um prédio novo, um auditório suplementar, mas coisa simples. Eu não posso muito ir por causa das pernas. O velho pode andar, mas eu fiz muita estripulia quando era novo, as pernas não aguentou mais! (risos) Olha eu jogava futebol com sessenta anos, é loucura! Pulava do trampolim lá do Serrano na altura mais alta. Os meninos diziam “esse aqui não é pra ‘véi’ não”. Deixe de ser besta! Saiam do trampolim eu subia e pulava. Eles pulavam como peixe e saiam lá na frente.
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Aí eu dizia “agora é a minha vez”e pulava em pé, ‘vulp
Bom, o mais importante é a fé. Por quê?
Porque a fé, tá no evangelho: transporta montanhas. Padre, o que é fé?
A fé é acreditar em Deus sem dúvidas. O senhor já duvidou da existência de Deus? Nunca.
Tem alguma coisa que o senhor não concorda no catolicismo?
Não. Quem vive como católico só perde a felicidade de ir para o céu com o pecado. Se ele souber que era pecado e faz, quer dizer, desobedeceu a quem? A lei de Deus. O maior pecado, Jesus Cristo falou, quando perguntaram a ele - “mestre qual é o maior pecado, que não tem salvação?”. Jesus disse: “é não acreditar no divino espírito santo”. Porque tem um mistério, toda religião tem o seu mistério, e qual é o maior mistério da Igreja Católica? É um Deus só em três pessoas: pai, filho e espírito santo.
Qual a maior virtude para o senhor?
Primeiramente a maior virtude é a fé, todas as outras virtudes está dependendo da fé. Agora, para praticar a
“Mestre qual é o maior pecado, que não tem salvação?”. Jesus disse: ‘é não acreditar no Divino Espírito Santo’”Escola de música Solibel fundada por Padre Ágio
virtude não basta a fé. São Paulo disse que é necessário a caridade. A caridade é tudo! Salvo se ele se condenar, se for caridoso. Porque quem é caridoso tem fé! Tá entendendo? Tem fé! Agora quem não faz a caridade é porque não tem fé. E quem não tem fé não se salva!
O senhor está já completando cem anos...
Ah sim, você quer o segredo é? (risos) Eu quero saber se a velhice é um problema...
Grande! A família mora toda distante, é Rio, São Paulo, Fortaleza... Tem deles que eu não sei nem onde é que mora (risos), então eu ando sozinho. E por que a velhice é um problema grande?
É o seguinte, porque se tiver o cuidado e uma pessoa para orientar se vive muito. Primeiro a pessoa se desapegar das coisas da mocidade. Quando a pessoa fica apegada quer continuar a ser jovem até o fim, mas não pode, porque a construção física não é duradora. A tendência é chegar a um ponto, depois só vai diminuindo. Na minha vida de professor fica muito tempo sentado e agora eu estou notando que as pernas enfraqueceram. E eu perguntei ao médico e eles disseram que não fazendo exercício tem que enfraquecer. E o velho não pode mais fazer aquele exercício que fazia. O senhor se sente só?
Como velho, eu sinto, eu não gosto de ficar só, não. Porque eu nunca fiquei só. O senhor se arrepende de alguma coisa?
Não, só me arrependo sabe do que é? É de não ter aproveitado mais. (risos) Eu gostava de brincar. Principalmente o futebol. E eu tinha sorte, os pais davam licença para a gente jogar lá em São Mateus. Tinha os esportistas rapazes que criou o esporte para meninos. Mas tem uma disciplina, oxente, ai é que é bom. Aí eu me dediquei quando era menino ao futebol. Ou só desistir de jogar futebol quando eu vim pra cá. Eu fui brincar com os meninos lá no campo de futebol lá do Serrano e eles me deram uma quebra que até hoje eu sinto. (risos) E o médico dizia: mas o senhor não pode jogar futebol, é violento... (risos) Eu jogava não era só por diversão não, mas para ganhar mesmo. (risos) O senhor sente medo nem de morrer?
Quando eu era menino tinha um medo danado. (risos) Não dormia com a luz apagada, quando eu era criança. Acabou o medo quando eu fui para São Paulo. Aí era interessante, eu estudando a psicologia quando era criança e adolescente eu tinha medo de morrer, mas eu tinha uma vontade de ver uma pessoa morta. “Ige”, eu fazia de tudo para ir a um velório. Curiosidade da transformação da pessoa quando morria. Pois é, mas quando eu fui para São Paulo acabou esse negócio de medo de morte. Quando eu me lembro que andei de navio, que não me dei com a maresia, e o cheiro do mar.
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Quando eu tomei o navio pela primeira vez, em 1930, em dezembro para ir para o Rio de Janeiro para lá pegar um trem para ir para São Paulo, eu tinha que passar lá, tinha uns parentes também lá, uns tios do RJ. Com dois que tinham parentes em Fortaleza se hospedaram, eram do interior, de Russas e de limoeiro, aí juntamos tudo na casa do doutor dos meninos, aí quando foi para dizer é amanhã a nossa viagem de navio.. Fortaleza não tinha porto, você sabe que antes tinha era uma ponte metálica, que ainda hoje existe. Já votei lá, tirei retrato, só me lembrando da primeira viagem que eu fiz de navio. A gente ia até o final da ponte e as embarcações mutuou foram umas lanchas pequenas levar o passageiro da ponte ao navio. Era quase dois quilômetros andando dentro d’água. E esses barquinhos pequenos as ondas levantavam. Eu e outro companheiro, não aguentamos a maresia, o cheiro da água do mar e o balanço, sem a gente querer.. vú aí estava bem alto, vú lá embaixo, aí qual foi o resultado? Botei todo o alimento que eu trouxe antes de tomar o navio. Às sete horas nos tomamos o café na casa do doutor, com tudo que tinha na mesa, reunimos lá os mais novos, os mais velhos não, tinham outros parentes, isso em 1930, Fortaleza era pequenininha, deste tamanho.. (risos) Mas tinha o que conhecer, tinham os bondes que eu não conhecia, andamos dentro da cidade, eu não perdia a oportunidade de andar nos bondes, achava bom (risos). Quando eu vim morar em Fortaleza a gente tinha um dia por mês de ir à praia tomar banho lá no Mucuripe, hoje o Mucuripe é um posto. (risos) E o que é que eu fazia?
Eu entrava magro, mas eu tinha tanto medo, taí.. tanto medo, mas eu já sabia mergulhar e tudo, mas sabe o que é que acontece? Era a água salgada e o sol quente. Agente saía frio, mas com pouco começava a queimar. Ainda hoje eu sinto coceira por causa do mar, Nunca quis entrar no mar. E aí me enjoei, subi a escadaria do navio quase sem força de chegar até o convés, quando a gente ia se hospedar no navio. Aí tive saudade de casa, só nesta hora.(risos) Aí eu disse “pronto, vou vomitar aqui dentro do mar” (risos)..
Do que o senhor sente medo?
Se eu tivesse medo eu já tinha morrido (risos). Quando eu era menino eu tinha medo, mas na medida em que fui crescendo fui procurando a verdade, porque o medo muitas vezes é apenas a imaginação, não é qualidade não, não é virtude não. O medo é falta de conhecimento das coisas.
O que é a morte, Padre Ágio?
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A morte? É a passagem da vida da terra para a eternidade. E só tem três lugares quando a gente tiver de morrer, se estiver em estado de graça vai direto para o céu onde mora Deus, se morre em estado de pecado
”Eu estudei línguas não latinas – inglês, francês e italiano e línguas clássicas estudei grego e latim. Duas clássicas e quatro modernas, com o português, né?”
leve, vai direto para o purgatório, e esse livro eu fiz e contei em fato, de pessoas que vieram do purgatório pedir orações e ir à missa, o meu tio. Ele veio e a neta dele recebeu a mensagem dele, sem saber com quem estava falando, ela não chegou a conhecer não. A família foi quem disse “como foi que ele apareceu” aí disseram os traços “todinhos” e tiraram a conclusão de que era ele pedindo uma missa para poder sair do purgatório para ir logo para o céu.
O que o faz sorrir, Padre?
Olha, alguém que procura qualquer carreira, qualquer estudo, ele não é formado, ele não é educado, mas ele tem um sentimento de atração. Nem todos os padres estudaram música, mas eu conhecia música. O negócio é esse, muitas vezes coisa complicada na vida é muito melhor cantar do que chorar, como se aquilo fosse resolver. (risos)
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Do que o senhor mais gosta além da música e do sacerdócio?
Quando eu era bem jovem, eu saia daqui de madrugada, para fazer o que? Para chegar até o clube do serrano. Pois é, eu me alistei para participar como sócio assim quando eu cheguei aqui. Porque a outra paixão que eu tinha quando eu era jovem, de nadar. Agora eu nadava de todo jeito. Uma vez eu nadei 1.200m sem pegar em canoa, sem pegar em balsa ou qualquer coisa para boiar, só, só de braço, braço cansado, só os pés, os pés dentro d’água, e para mais repouso botava os pés de fora e as banhas que trabalhavam por baixo, como se estivesse remando como uma canoa (risos) ai eu era apaixonado. Se eu fosse atleta, banhista, eu atravessava, é porque eu nunca gostei sabe do que? Foi da agua salgada. E.. Deus me livre!
O que é o amor, padre?
Quem inventou o amor? Tem uma canção muito interessante lá de Portugal... “mas quem inventou a partida não sabia o que era o amor, quem parte, parte sem vida, quem fica, morre de dor”... Tá aí! (risos)
É verdade que o senhor está escrevendo um livro sobre o Padre Cícero?
Um passagem bem interessante... Mestre Pelúncio Macêdo, inventou o relógio de ser tocado nas igrejas e nas praças lá do Juazeiro. Ele vivia com Padre Cícero, era telegrafista, era engenheiro e artista, era músico. Padre Cícero o amparou. Tudo que Padre Cícero queria chamava Mestre Pelúncio. Quando foi para fazer o relógio, o padre Cicero disse:
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-Óh mestre Pelúncio, faça o relógio para o povo ter a noção das horas, para colocar na praça.
Ai o mestre Pelúncio disse:
-Meu padim, não dá para eu fazer não! Eu nunca participei de uma escola técnica de engenharia.
Aí Padre Cícero disse:
-Não, mas é o seguinte, você vai comprar um relógio no comércio, desmonta todinho, aí você com a sua cabeça, fazem o relógio grande que todo ler as horas com facilidade. E ele fez. Comprou o relógio, desmontou e tudo. Mas ele só vivia dizendo:
-Masmeupadim,eutinhamuitavontadedeserpadre.
Aí Padre Cícero disse:
-Não mestre Pelúncio, você não pode ser padre não! O que vale? Um ou quatro?
Aí ele ficou sem saber...
-Como é, meu padim? Que matemática é essa? Então, ele o perguntou se o que tinha ais valor, um ou quatro e explicou que se ele fosse padre ele não teria os quatro primeiros filhos que seriam padres. Padre Cícero profetizou a vida dele. Aí ele não quis mais ser padre e quando casou foi dito e feito. Eu conheci o primeiro, segundo e terceiro, o quarto não conheci não. Assim como foi o caso do meu pai. Ao invés de um foram dois padres, quase três, é que um já morreu. Mas chegou perto.
Cruz do Deserto
Seu Raimundo do Caldeirão Seu Raimundo do Caldeirão de Santa
Seu Raimundo Batista de Lima começou a trabalhar como agricultor com 12 anos de idade. Morava com seus pais vizinho ao Caldeirão dos Jesuítas, onde no início do século passado formou-se uma comunidade messiânica: o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, do beato José Lourenço. Muitos episódios do extermínio da comunidade pelas elites do Ceará – governo, latifundiários e parte da Igreja -, ainda não são explicados em sua totalidade. Mas nada melhor do que ouvir o relato do seu Raimundo Batista de Lima, 75 anos, guia de pesquisadores, estudantes, religiosos e curiosos que viajam até o Caldeirão para entender um pedaço da história do beato José Lourenço.
O local ainda guarda marcas do tempo beato – a Igreja, uma casa, restos de um cemitério e fragmentos da estrutura da casa do beato. A prefeitura do Crato construiu um pequeno museu há 12 anos –praticamente abandonado -, onde são expostas imagens do beato, pequenos artefatos (telhas, tijolos, utensílios do tempo de José Lourenço) e banners narrando cspítulos de uma história ainda mal contada.
Seu Raimundo mora naquele pedaço do Caldeirão há 21 anos, ao lado da sua mulher, Maria. Lá recebe gente do Brasil e exterior para ouvir sua versão da matança dos moradores do Caldeirão. Recebe todos como um bom sertanejo. E reconta histórias que ouviu dos seus pais, dos sobreviventes do Caldeirão e do vaqueiro do beato José Lourenço. Abaixo, parte da entrevista que seu Raimundo concedeu a “Memória Kariri” com a sua fala tranqüila, pausada e seu português que dá gosto de ouvir. Marcas do português arcaico, nossa herança ibérica, talvez hoje em extinção.
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Seu Raimundo, o senhor recebe visitantes de várias partes do País para explicar episódios do Caldeirão. Quando e como o senhor chegou neste espaço do beato José Lourenço e seus seguidores?
Aqui é um cantinho do caldeurão, que a prefeitura do Crato comprou. Tá com 21 anos que a prefeitura botou a gente aqui. Quer dizer que é 21 anos de sofrimento. Está com 21 anos que a prefeitura comprou e me botou aqui.
Sofrimento?
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Porque o senhor sabe, que as prefeitura hoje é que nem a cantiga da pirua - é de pió a pió. Tá entendendo? Tem prefeitura que é pió do que as outras. Vamos supor que é todas, mas tem delas que é mais, né? Rapaz, dá inté vontade do caba achar graça. Que eu com essa chave aqui, dessa igreja e das partes desse museu... aqui toda a semana vem uma carrada de gente. Que eu aqui tomo conta de um patrimônio do Crato. Eu sou o guia. Quer dizer, o senhor vai me dizer uma coisa. Eu
tenho direito de reivindicar um salário aqui ou não tenho. Pois é. Tá dentro de cinco anos que eles me deram um ganho. Isso é uma vergonha. É ou não é?
E quanto é esse ganho?
O caba vai tirar 700, 800 real. Agora o prefeito que saiu agora, agora em janeiro, e entrou o outro. Dos quatro ano dele, ele não pagou quatro mês – desse que entrou agora. O senhor vê isso. Dá idade que tô. Aqui hoje era pra ser uma cidade. Daqui pro Crato já era pra ser uma cidade.
Por que uma cidade?
Eu vou dizer o motivo pro o senhor. Porque o Padim Ciço nasceu no Crato, mas num teve apoio do Crato. Ele passou pro Juazeiro e lá foi bem apoiado. Cada mês que se passa o Juazeiro vai crescendo mais, a respeito do Padim Ciço. Aqui, como era uma fazenda do Padim Ciço, se ele tem nascido no Crato, e morrido dentro do Crato, daqui pro Crato, tava uma cidade só. Tava ou num tava? Aquela riqueza do Juazeiro num era
pra ser pro Crato? O Crato não quis. Quer dizer que aquela riqueza, como o Padim Ciço nasceu no Crato, era pra ser pro Crato. Tudo, todo aquele movimento que foi pro Juazeiro era pra ser pro Crato. Culpa dos prefeitos?
Rapaz, culpa de um bucado de coisa. O senhor acha, então, que o Caldeirão teria outro destino caso o Padre Cícero tivesse vivido e morrido no Crato?
Aqui era uma fazenda do Padim Ciço, O Caudeurão. E quanto ao beato José Lourenço?
O beato José Lourenço, que era da Paraíba, chegou a Juazeiro e pediu ao Padim Ciço para arrumar um cantinho para ele formar uma assuciação, uma cumunidade. O padim arreda um sítio chamado Baixio Dantas. O beato toma de conta. Foi quando o Padim Ciço deu um boi de presente a José Lourenço por nome de Boi Mansim. O beato passou três anos no Baixio dos Dantas. Foi quando eles disseram que o beato tava considerando o boi um boi santo. Como o que aconteceu mesmo. Levaram o beato, o pessoal do beato e o boi pra prisão. Chegou lá na frente da delegacia e mataram o boi e fizeram todo o mundo comer a carne do boi, sem ninguém querer comer a carne do boi. Ainda dizer assim: “ Come aí a carne do Santo de vocês”. Aí o padim Ciço tira o beato da cadeia. Quem prendeu o beato José Lourenço?
O dr. Flávio (Floro) Bartolomeu. E como o beato chegou ao Caldeirão?
O beato chegou para Padim Ciço e disse: “Meu padim, lá no Baixio Dantas não tá dando certo, não”. Padim Ciço disse: “Pois Lourenço, vamos entregar o terreno lá, e você vai para o Caudeurão de Santa Cruz do Deserto, que eu tenho uma fazenda muito grande lá, você vai tomar de conta lá se você gostar de lá”. O beato veio aqui e espiou o Caudeurão de ponta a ponta. Mas chega no Juazeiro e disse: “Meu Padim eu gostei de lá. Só achei difícil uma coisa – água. Com pouco, a gente morre de sede encostado lá. Padim Cíço mandou ele voltar e disse que tinha água lá. Padim Ciço falou certo. Aqui onde nós tamos, nessa Igreja aqui, tem um poço ali, o lugar pegou o nome de Caudeurão a respeito do poço. Não seca nunca. A água é minada e não seca nunca. O Beato toma conta do Caudeurão. Aí vem o pessoal da Paraíba, Maranhão, Pernambuco, Alagoas. Do Ceará era mais pouco. Chegava no Juazeiro, um pai de famía: “ Meu padim me dê uma morada”. “Vá ao Caudeurão da Santa Cruz do Deserto, onde tá o beato Zé Lourenço. Vá lá que você vai ser bem recebido. O beato formou a cumunidade dele aqui. Já tinha 1.200 pessoas. Isso em que ano?
1907, acho. Já tinha 400 Casas de morador, um engenho de fazer rapadura, um aviamento de fazer farinha. Tudo que esse pessoal precisava era produzido aqui. Aí quer dizer, nem os governador hoje faz o que o beato José Lourenço fez no Caudeurão, uma comunidade bem organizada. Aquilo ali tinha pessoas suficiente para aconselhar o pessoal. Se ele precisasse de um pote de barro para botar água tinha gente que fazia. As redes também eram feitas aqui dentro... remédio pro pessoal tomar. Tinha pessoas suficiente para fazer o remédio caseiro aqui. Remédio de casca de pau, de tudo, dos matos que servem de remédio. Aí o beato com esse pessoal... tudo trabalhava satisfeito, tudo era coletivo e todo mundo era dono. Aqui ninguém passava fome, tudo que eles produziam era tudo deles. Aqui só tinha uma coisa que o beato não produzia – era o sal e o gás. Mas ele pegava o cereal que eram produzidos e trocava lá fora, para trazer aqui pra dentro, né. Quais cereais?
Isso era arroz, feijão, o milho, a mandioca pra fazer farinha, era a cana para fazer a rapadura. Era só o que tinha aqui dentro. Não tinha quem desse conhecimento. O senhor vê umas quebradas dessa aí. Parece que não serve pra plantar. Mas o senhor pode plantar arroz na cabeceira desse arto. Vai depender do inverno. Todos nós sabe que sem inverno não vai dar nada.
Como era o cotidiano no Caldeirão. Sei que se criavam animais e se teciam até as roupas dos sertanejos...
Aqui tinha muié suficiente para tecer a rede do pessoal dormir. Aqui tinha pessoas suficiente para fazer remédio para o pessoal tomar. Aqui tinha pessoas suficiente para fazer a ferramenta de trabalho. Tinha professora para ensinar o povo a estudar aqui dentro. Tinha os vaqueiro para cuidar do gado. Tinhas as muié pra cuidar do porco, capote, piru. Tinha todo o tipo de galinha... Além do trabalho, havia festas no Caldeirão?
Rapaz, essas danças do tempo passado, todos nós sabe, era uma coisa comum. Não era que nem hoje. Nós tamo numa era que nós pensa: como pôde existir uma cumunidade como a do beato José Lourenço aqui no caldeurão. Mil e duzentas pessoas dirigidas por ele. Como o beato conseguia dirigir tantas gente?
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A ordem aqui, como diz o outro era segura. Num era dessas ordens que hoje tem, não. A polícia prende um, a justiça solta. E tá uma bagunça na minha opinião. E no tempo que o beato existiu aqui dentro do Caudeurão, havia ordem, respeito. Tinha mil e duzentas pessoa, 400
casa. Cada pai de famía tinha três, dez, onze fios. Todo mundo trabaiava aqui satisfeito. Agora o senhor sabe me dizer o proquê que esse pessoal trabaiava satisfeito? Porque era tudo com barriga cheia. Nós trabaia com a barriga seca, quem é que vai trabaiar satisfeito.
Essa Igreja foi construída quando pelo beato José Lourenço? Ele fazia sermões, obrigava os moradores a rezarem?
Ah. Já foi no final de acabar com o pessoal todo dele. Ele fez essa igreja aqui. Aqui ele não obrigava a ninguém a rezar. Só rezava quem quisesse, só vinha orar mais ele quem quisesse. Agora só tinha uma coisa. Só ficava dentro do Caldeurão quem quisesse trabaiá. Quem não quisesse trabaiá podia voltar para onde vei.
AIgrejafoidedicadaaSantoInáciodeLoyola...
Ele foi buscar esse santo fora do Brasil. Agora eu não sei aonde fora do Brasil, mas foi fora do Brasil. Esse santo foi uma crica contra o beato. Diz que quando o beato foi atrás do santo para botar aqui na Igreja, ele foi mesmo atrás de armamento pra briga. Tudo mentira. Quer dizer, como um home como o beato toma de conta de uma assuciação de 1.200 pessoas num local desse aqui, ele tinha condição de procurar arma pra briga? A arma do trabaiador todo mundo sabe é a enxada. Como o senhor soube de tantas histórias do beato José Lourenço?
Eu nasci, o finado meu pai, a finada minha mãe, nasceu e se criou aqui. Vizim aqui o Calduirão. Conhecia peda por peda. O vaqueiro que era do beato – ele morou na casa de morada do beato – era vizinho a nós. Ele contava tudo que acontecia aqui, ele contava a nós. Pro senhor ver. Aqui tinha ordem. Nós estamos no fim da era, no fim do mundo que o senhor sabe hoje, alguns anos atrás, o caba ajeitava a roça e plantava e num faltava chuva. Os home hoje quer saber mais do que Deus, as coisas tá tudo o contrário de Deus. E Deus tá mudando também. Como assim?
Todomundoeracantandoaínaroçaaí,tudosatisfeito, tudo com a sua barriga cheia, aqui tinha a sua merenda, seu almoço, sua janta no tempo do beato José Lourenço. Como o beato organizava os trabalhadores. Ele não obrigava ninguém a rezar, mas sim a trabalhar...
Bem. Esse pessoal do Maranhão, esse pessoal da Paraíba, esse pessoal de Pernambuco. Ele botava aquele grupo, aquela assuciaçãozinha, tá entendendo? Cada cá – do Maranhão, Pernambuco, Ceará. Cada um
A matança do povo falada mesmo foi lá em cima da serra, da serra do Araripe. Eles num enterraram ninguém não. Os urubus comeu tudo ali.
tinha um coordenador. Cada pessoal tinha o seu grupozinho e a pessoa para dirigir aquele pessoal. Assim Maranhão tinha um grupo, Pernambuco, de qualquer canto... Era uma riqueza.
A riqueza era distribuída coletivamente?
Coletiva. Tinha o armazém, o casarão, armazenava de tudo.
Como era feita a divisão?
Num tinha dividição não. Lá onde toda a alimentação tava num tinha fulano nem sicrano para abrir com chave. As portas era aberta para todos os pais de famia entrar e sair. Num tinha dificuldade.
O beato permitia a cachaça no Caldeirão? O senhor ouviu falar de brigas na comunidade?
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O senhor ouviu dizer que hoje tudo que a pessoa fizer tem uma pessoa pra criticar a pessoa. Tá entendendo. A casa do beato era acolá. Disse que o beato tinha um soton, aí. Disse que ele botava essa mulherada e subia só pra riba e diz que ele ficava debaixo espiando. Mas isso tudo era mentira.
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Ele tinha fama de mulherengo?
Era nada, isso é conversa. Nem bebia?
Bebia não.
Ninguém bebia cachaça no Caldeirão?
Aqui é que nem diz o outro, o senhor sabe que hoje... De primeiro tinha o engenho de fazer a cana para a gente beber. No tempo do beato aqui todo o mundo bebia. Esse negócio de bebida já vem desde o começo do mundo. Agora não tinha briga não. Só trabáio, divertimento e alegria. O beato botava pessoa suficiente para prestar atenção em todo o movimento. E as danças daquele tempo era uma coisa bem organizada. O sertanejo daquele tempo era fornido, comia, tinha rapadura. O beato José Lourenço então só trouxe progresso para a sua comunidade?
Só trouxe coisas boas. E não era comunista como o governo disse que era. Como assim?
Eu acredito que não porque se ele fosse comunista, o Padim Ciço não tinha enviado ele para cá, num ia fazer isso com o trabaiador.
O comunismo é ruim para os trabalhadores?
Rapaz, eu acredito que seja. Muita coisa que não controla o pessoal. O comunista já sabe como é. Eu acredito que não controla o pessoal. Veja. Quantas pessoas no Ceará que já nasceu estudada. Tem ou não tem? Que era igualmente ao beato José Lourenço dentro do Caudeurão; e Patativa formar uma poesia mais ligeiro do que ele, não tinha. O beato comandar 1200
pessoa por dez anos aqui dentro de um deserto desse aqui. Ninguém matava ninguém. Nem ninguém fazia isso. Tinha controle. O padim Ciço avisava como era para fazer. Tinha controle. O senhor vê, que Lampião é um cangaceiro, que ele veio aqui do Inhamus, e ficou aqui três noite. Tinha que ter controle. E o comunismo não tem controle.
Quem contou isso para o senhor?
Quem contou foi o vaqueiro do beato.
Qual era o nome dele?
Era o finado Alipe.
Só Alipe?
Só Alipe. Ele sabia de tudo. Conviveu com o beato José Lourenço.
O beato tinha inimigos?
Não, acredito que não. Mas ele foi acusado de levar para o Caldeirão os trabalhadores dos fazendeiros do Cariri?
Ele não pegava não. Aí é o povo aumentando conversa. É isso. Se o senhor morasse vizim ao Caldeurão.
Se o senhor pagasse uma diária de serviço e essa menina (referindo-se a fotógrafa) pagasse outra. Se hoje eu fosse trabaiá com o senhor e amanha fosse trabaiá mais ela, se o senhor me tratasse mió do que ela, eu já esquecia ela. Quer dizer, ela num ficava com queixa do senhor? Ele tomou meu trabaiador e num sei o que...
Por causa do beato José Lourenço, esses fazendeiros que tinha aqui na vizinhança, os trabaiador correndo pra aqui, quer dizer, eles já ficou com raiva do beato. Que o beato fazia aqui, muitos fazendeiros que tinha aqui, chegava aqui e dizia: beato, tem uma pessoa aí pra fazer meu serviço, dá pra você ir fazer meu serviço? O beato
já arrumava 20, 30, 40 home pra fazer o serviço dele. E depois perguntava. Beato José Lourenço, quanto lhe devo? O beato dizia: você não me deve nada. Circulava dinheiro entre os moradores do Caldeirão?
Tudo era produzido mesmo aqui dentro. Não tinha dinheiro. Só o que não era produzido aqui era o gás, o querosene para alumiar.
Como era a relação do beato com os demais membros da comunidade?
Aqui todo mundo cuidava do beato. Que o beato era isso, era aquilo, mas tudo isso era conversa fiada. O pessoal cuidava dele porque ele cuidava do pessoal. Se ele não cuidasse do pessoal, quem era que ia cuidar dele? Ninguém. Que nem hoje. Só posso conversar com uma pessoa, eu só posso achar graça pro lado do senhor, se o senhor achar graça pro meu lado.
O beato fazia penitencia no Caldeirão?
Tem uma foto dele aqui, com um cruzeiro nas costas. Ele rezava, orava muito. Mas não obrigava ninguém a rezar. Só trabaiá.
O Caldeirão recebe pesquisadores, religiosos, estudantes de todo o País. O que mais eles perguntam sobre o beato José Lourenço?
Porque o senhor vê, o senhor num sabe não, quem sabe sou eu que tô aqui há 21 anos morando. E sei exatamente o tanto de gente que vem aqui, visitar aqui o Caudeurão – até dos Estados Unidos – e nem um visitante fala mal do beato. O que eu tenho pra dizer é isso aí. Quem eu tenho essa certeza. Que nem um presidente, nem um governador fez tudo isso aqui. Tem 12 anos que um padre formou uma romaria. O
senhor pode vir aqui. Aqui dá umas cinco mil pessoas. É gente. Quando ele fez essa igreja aqui que a gente tá conversando já tinha sete, oito anos que formou o Caudeurão, aí depois de dez anos é que houve a prerseguição com o pessoal dele. Mataram todo o pessoal. Ele não tinha saída e foi para a Paraíba.
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O beato era pacífico, mas seus seguidores próximos resistiram às ameaças do governo, dos fazendeiros e até da Igreja de por fim ao Caldeirão...
Não. Foi o Isaias. O Isaias e o Tavares. Eles dois combinado. (Isaias Cordeiro e Assis Tavares, secretários do beato). O beato era pacífico. O finado meu pai dizia que o beato andava no meio do policial e eles não sabiam quem era o beato. Ninguém conhecia, não. Nem o Capitão Zé Bezerra com 150 policial. Também tem a questão do Zé Bezerra . Ele se implantou aqui, né, fingiu ser morador e o beato não sabia que ele era policial,
que ele era um capitão. Ai ele falou para os militares como era aqui. O senhor sabe alguma coisa sobre isso. Não sei. Como foi?
Hoje e que nem eu falei, muita gente conta coisa errada. O capital ele veio passou três dias com o beato, maior amigo do beato. Quando ele chega no Juazeiro, ele manda um portador dizer que era pro beato tirar todo o mundo aqui do Caudeirão. Que se ele não tirasse ele vinha. O beato José Lourenço pelo mesmo portador mandou dizer que ninguém saia não, que ele podia vim, como de fato veio, com 150 policial do exélcito. Aí daí pra frente começou tudo. Ele vinha caçar armamento. Mas todo o mundo sabe que o armamento do trabaiador é uma enxada. Aí na casa de morada do beato tinha um curral muito grande de botar gado. Ele pegou botou os morador dentro do curral. Isso era para fazer medo ao pessoal, para o pessoal deixar o caudeurão. Esse pessoal correu tudo, aí acamparam aqui em cima da serra. O
capitão Zé Bezerra chegou lá e disse: Isaia eu vim aqui pro um acordo. Aí o Isaia disse: qual acordo capitão? O capitão disse. Nóis tem dinheiro e tem transporte para todos os pai de famia ir embora para outro local. Isaia disse: não, nós não quer não. O capital disse: Pois, Isaías vocês num querem acordo, não. Vou mandar matar vocês tudim aí. Ai o Isaías foi e disse: Menino, pega a foice e o facão aí. Cortaram o pescoço dos cinco home lá em cima da serra. Do capitão Zé Bezerra, do filho, do genro e dois dois policial. Aí tinha aí um homem que telefonou para o governo. Aí o governo mandou as ordens de ir avião lá, soltar bomba, e matou todo o mundo lá. A matança foi em riba da serra, né, que eles esperavam para voltar para o Caudeurão. Quer dizer, o beato queria que o pessoal naquele momento deixasse o Caldeirão?
Não foi o beato, não. Porque o beato foi para Pernambuco. E o pessoal do beato já em cima da serra, Baixa dos Cavalos. Lá formou-se a assuciação, acamparam lá para voltar para o Caudeurão. O capitão volta pro Caudeirão e o Isaias diz – menino pega as foice aí. Vamos matar os cinco. Aí foram e mataram. Quando mataram, aí o governo, que era Getúlio Varga, mandou tropas para matar o pessoal lá.
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O governo, fazendeiros e até a Igreja afirmaram que o beato estava criando um sistema comunista, coletivo no Caldeirão, contra a ordem.?
Isso não é verdade não. Mentira. Como disse pro senhor. O beato não era comunista, não. Assim o padim Ciço não tinha deixado. E a prerseguição só começou depois da morte do Padim Ciço.
Todo o caldeirão foi dizimado?
Queimaram as 400 casa, o engenho de fazer rapadura, aviamento de fazer farinha. O beato passou nove, dez ano aqui. Com a morte de Padim Cíço começou a prerseguição.
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Toda essa história o senhor ouviu desde criança?
Eu nasci aqui. E o finado meu pai e o finado minha mãe nasceu e se criou aqui, vizim do Caudeurão. Conheceram o beato demais. Conhecia peda por peda. O vaqueiro que era do beato, morou na casa do beato. Ele morreu vizim a nós. Ele contava tudo o que acontecia aqui.
Na sua opinião, qual o motivo de tanta perseguição ao Beato José Loureço?
A perseguição não era contra o povo. Era contra o beato. Se o beato se apresentasse eles matavam o beato e deixavam o pessoal em paz. Mas como o beato não se
apresentou, eles mataram o pessoal. O beato morreu em Pernambuco num lugarzinho chamado Sítio da União, vizim a Exu. Lá ele tinha formado outra assuciação, uma cumunidade. Lá os trabaiador botaram ele numa rede e trouxeram pro Juazeiro quando ele morreu. Ele foi enterrado lá no Socorro. O túmulo do padim Ciço é é encostado no túmulo do beato José Lourenço. Acho que a perseguição é prorquê o beato só fazia coisa boa. Nunca matratou ninguém. E não era comunista, não. Voltando ao massacre dos seguidores do beato. Foi aqui no Caldeirão ou na serra?
Não. Lá em riba da serra morreu muita gente. A matança do povo falada mesmo foi lá em cima da serra, da serra do Araripe. Logo ali em cima. Que o povo queria era voltar para o Caudeurão. Eles num enterraram ninguém não. Os urubus comeu tudo ali.
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Foi realmente um massacre de pessoas inocentes...
Sabe porque é? O senhor vê quando um governo calquer... um fazendeiro hoje na era que nos tamo, passar por um trabaiador, se ele tiver carro, ele tem vontade de passar por cima. Tá entendendo. E para os governo, prefeito, deputado, senador, governador mandar matar 1200 trabaiador... já estão dizendo quem eles são. Hoje a situação está pior?
Rapaz. O senhor vê o escândio que tá o Brasil, não. Que se o trabaiador rouba uma galinha, ele vai pra cadeia, e vai levar peia por uma galinha. E seu fulano lá fora rouba o Brasil e o Brasil tá afundando e os trabaiador se acabando. E onde nós vamos se socar. Aí esses home que rouba o Brasil, tá roubando o Brasil, aí ele vai preso, mas ele tá num local lá, que aquilo ali não tá faltando nada. Ele tá achando é graça. E num sertão desse aqui, um deserto desse aqui, eu ando todo o dia é chorando.
Chorando?
Sofrendo (risos). Por que?
Por que o senhor vê o caba. Quando o beato existia dento da cumunidade dele, a coisa era muita, muita gente. E eu sozinho aqui dentro, o que eu posso fazer? É chorar.
O senhor disse que trabalha na roça desde os doze anos... Rapaz. Na roça. Trabaiei na roça pra dá de comer a 14 fi. Tem em São Paulo, Pernambuco, Iguatu, Fortaleza. Hoje eu conto com 36 netos e oito bisneto. Trabaiei ou num trabaiei?
Quem é Deus para o Senhor?
Rapaz, graças a Deus só, que o senhor sabe, se eu espero pelo senhor eu canso, se o senhor espera por mim o senhor cansa, mas se nos espera por Deus nos nunca cansa. É a salvação. De todos nos todos. É ou num é? Tem que esperar só por ele mermo.
Aqui tinha muié suficiente para tecer a rede do pessoal dormir. Aqui tinha pessoas suficiente para fazer remédio para o pessoal tomar.
Espedito Seleiro Espedito Seleiro
A encantada fábrica de couro
Mestre Espedito Seleiro é uma referência em todo o Brasil com as suas peças confeccionadas em couro. Peças que já foram exibidas em filmes, novelas, exposições de arte e de moda. São celas, gibões, bolsas, chinelas, cintos, chapéus feitas pela mão de um artistas que, após várias crises porque passou a sua família diante das mudanças ocorridas no sertão, resolveu reinventar o negócio. Foram anos de pesquisa até desenvolver uma técnica única e singular, que saiu da pequena Nova Olinda para todo o País e até para o exterior.
Com 75 anos, cinco filhos, além de irmãos, primos e sobrinhos, Espedito toca a sua oficina dia e noite. Ele não para. Acorda cedo, às quatro da manhã, às vezes não tem tempo nem para o almoço. Mas não deixa de receber quem o procura. Nesta entrevista, a Memória Kariri, ele refaz um percurso de lembranças – algumas boas, outras nem tanto. Fala da infância, do avô e pai – de quem herdou o ofício. Da sua gente – de vaqueiro, tropeiro, cigano e sertanejo -; do seu processo de trabalho e de um pequeno complexo que está construindo – oficina, loja e museu -, tudo próximo um do outro -, pra ninguém esquecer que ali viveu um dos melhores criadores de selas e gibões do País. Leia a seguir trechos da entrevista.
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Quais as melhores memórias de infância que o senhor carrega?
Na minha infância eu não tive tempo de estudar, eu só sei fazer uma conta, uma continha assim pra ninguém me enrolar. Eu ainda faço conta, ninguém me enrola fácil, mas eu não tenho formatura. Ainda estudei um pouquinho. Na época, era difícil para a gente estudar, porque não tinha condição. Me criei mais foi em fazenda, no sítio. Eu gostava muito de jogar bola e andar montado a cavalo, adorava. Uma vez eu fui dar uma carreira no boi, pra ajudar uns vaqueiro colega meu e disse: “eu faço o mesmo trabalho que você faz também, me dê o cavalo, a roupa de couro que eu vou pegar boi aí mais você”. Fui dar uma carreira no boi e caí do cavalo. Nunca mais montei. Agora eu faço só a roupa do vaqueiro, sou vaqueiro de jeito nenhum.
Quando o senhor começou a trabalhar com couro?
Aqui é assim, começou uma família de seleiro, vaqueiro, tropeiro, cigano. E, como eu sou de uma tradição de vaqueiros, seleiros, eu resolvi manter a tradição até hoje. Já passei tempo muito apertado, aperreado pra manter isso, mas Deus me ajudou, e eu venci. Apareceu algumas atrapalhadas, por exemplo, a matéria-prima que eu gostava de trabalhar teve uma época que desapareceu. Porque aqui a gente trabalha com couro e eu gosto de fazer minhas coisas com o melhor couro que existe na região. O melhor couro desapa-
receu, quando surgiu outros materiais - o sintético, a borracha, uma facilidade na matéria-prima, sabe? Porque o material já vinha da cor que você quer. A espessura você escolhia o mais grosso, o mais fino, o médio, essas coisa toda. Aí o couro dá muito mais trabalho, é bem difícil tirar o couro. Eu passei uma época que eu corria atrás do material pra trabalhar, pra fazer um gibão, uma sela, uma bolsa, um chapéu. Existia este material, mas não era conveniente.
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Não dava certo pra mim. E aí eu resolvi montar um coturno com meus irmãos.
Isso foi quando?
Isso foi em 71, 72, 73, até 75 eu ‘tava’ nesse sufoco. Comprava um bode lá na roça, ou um boi, matava, vendia a carne e curtia o couro. Fazia qualquer peça. Isso deu um sufoco danado, mas de qualquer maneira, como eu gosto do serviço, pra mim é uma brincadeira. Que deu trabalho, deu. Quando eu precisei vender muito porque além da minha família ter crescido, os
meus irmão, o meu pai faleceu. Os irmão ficaram sem pai. E eu que sou o mais velho, peguei essas cruz e botei no meu espinhaço. Botei meus irmãos dentro da oficina, ensinei, ensinei, ainda hoje eu ‘tô’ ensinando. Você nunca para de ensinar, nem para de aprender. Nunca para. E eu venho mantendo isso até hoje, né?!
O senhor é de uma família de boiadeiros. É o primeiro a trabalhar com o couro?
Não. Nós somos cinco gerações que trabalhava, porque os outros já morreram, só tem eu (risos). E agora eu tô criando uma dupla da família, nós somos uma associação familiar. É tanto que o costume é dizer, quem não tem o que fazer venha pro couro aqui. E é isso que a gente tá fazendo. Os meus irmão eu ensinei. Nós era onze, eu sou o mais velho, ensinei a tudim. Até hoje trabalham mais eu. Eu faço o modelo que é o complicado da arte. É você fazer o modelo que o pessoal queira comprar, né? Você faz um modelo que ninguém quer comprar é o azar maior que existe na sua vida. Graças a Deus quando eu faço um modelo o pessoal gosta. É tanto que tem um pessoal que tá copiando por aí a fora. É porque presta, se num prestasse eles não ia copiar.
Quem lhe ensinou foi seu pai?
Nós somos uma tradição de família, era tataravô, meu avô, meu pai, tudo… E eu me criei com couro. Só que não fazia as peças como eu faço hoje. Quando eu me vi numa família grande, que era a minha e a do meu pai, tava sem vender os produtos que eu fazia. Aí eu resolvi mudar.
Como é que o senhor mudou?
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Não foi tendo mais vaqueiro, nem mais tropeiro, não tem mais cigano, não tem mais cangaceiro, que era quem mais usava as peças de couro do sertão. Eu digo agora tá ruim. Mas eu segui. Eu fui pra feira um dia em Nova Olinda, no domingo. E no sábado, em Araripe. Segunda-feira, em Campos Sales. Aí eu dei essas corridas de feira e num vendi nada. Os cabas que batiam na sela, assim que chegava na banca comia um pedaço de bolo com garapa de cana, bem pertinho deu; aí lambia a mão com a língua pra tirar o grude do bolo e pegava uma sela bem alvinha, bonitinha, que eu tinha feito com todo carinho, aí dizia: ô sela boa, mas eu não tenho mais o que fazer com sela. Dava vontade de largar a mão no pé do ouvido: “fí de uma égua”. Sujava minha sela todinha. E eu não vendia nada. Eu disse a minha
esposa: “parar eu não vou, porque eu gosto e eu tenho esse horror de gente pra dá de comer. Eu também não tenho outro meio, só que eu vou mudar. Aonde eu chegar com uma peça minha de hoje por diante, se o caba num comprar ele adoece com vontade de comprar”. Eu disse essa brincadeira. Aí eu fiz em quatro horas, que ainda hoje eu faço isso, toda quatro horas, eu ‘tô’ lá fazendo os modelos, os ‘desenhozim’. Quando os meninos chega pra ajudar eu digo: ‘tá’ aqui o seu, ‘tá’ aqui o seu… Aí quatro horas eu fui pra banca, porque eu desenho ruim pra bexiga, mas eu faço o molde. Se eu for fazer uma roupa pra tu, eu meço você todinha, eu faço um molde principal e o desenho. Eu faço em cima, o que o molde me pedir - é que eu ‘tô’ acompanhando ele, sabe? Aí eu fiz isso, eu fiz umas peças de botas, bem bonitas, fiz os coloridos. Corri atrás da matéria-prima que eu precisava pra fazer a peça colorida que não existia. Fui no mercado comprar a tinta, não tinha; ia comprar o couro, não tinha. Então, o que eu fiz?
Entrei na mata, tirei uma ruma de casca de angico, botei pra secar, fiz aquela massinha, fiz a gororoba, passei no couro cru, que é dessas sandálias aí, quando eu passei no couro cru o bicho ficou marrom, sabe? Marrom, bem marrom mesmo.
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O senhor começou então a pesquisar tintas para aplicar em suas peças?
Pesquisando! Era o que eu podia fazer pra mudar a cor, pra fazer a peça colorida. Aí quando eu apliquei a goda da casca do angico, o couro ficou um pouquinho marrom. Aí eu caprichei mais a massa, o pó da casca do angico. O bicho ficou marrom mesmo, bonito, tenho a prova, tá lá no museu a primeira sela que eu fiz. Como o meu pai era vaqueiro, ele fazia uma roupa de couro bem bonitinha, bem limpinha e ia pro campo pegar boi no mato com os colegas dele. Às vezes tomava uma chuva lá no cercado, pisava na lama e a lama pegava na roupa que chegava toda pintada. Ele dizia: “isso é uma desgraça, desgracei minha roupa, tá toda suja de lama! Ei, Espedito, vai lavar no açude!” Nós morávamos na beira do açude, bem pertinho. Aí eu ia, pelejava e não largava. Quando eu precisei do couro preto eu enterrei o couro na lama, ficou preto que nem a blusa do meu pai. Só que quando eu tirei, que descarnei ele todim, tirei aqueles pedaço feio mais sujo, deixei só o bonitinho, botei pra secar e ele acabou ficando mais duro que esse balcão. Eu disse: “tem problema não”. Passei óleo, deixei secar, enrolei, dei uma surra igual a que você dá em caba ruim pra ele ficar bom. Aí ficou bom. Aprovou o marrom e
Botei meus irmãos dentro da oficina, ensinei, ensinei. ainda hoje eu tô ensinando. Você nunca para de ensinar, nem para de aprender.“Alemberg foi uma pessoa que me ajudou muito, divulgando a sandália do cangaceiro que é a que faz mais sucesso”
o preto. Depois eu precisei do branco pra fazer as costuras. Eu tinha visto meu pai fazer com pedra-ume e a cinza da caatingueira. Ele tem um que chupa o vermelhão do couro e fica tudo branco. Eu peguei a cinza da catingueira, botei numa lata de querosene que chamava “Gás Jacaré”. Lembra dele? A latona grande, assim. Fiz uma gororoba, amarrei, pendurei num pé de pau, furei um buraco no fundo da lata que ficou só pingando, ali era potássio escuro puro, misturei com a pedra hume, botei o couro de molho. Quando tirei e espremi, igual vocês espreme a roupa, o bicho ficando branco, quanto mais eu espremia mais ficava branco. Então deu certo, ficou bem alvinho, pensei. A chama carneira.
Até hoje o senhor utiliza essa técnica?
Eu não. Daí pra cá eu vim brigando com os donos de coturno e eles correram atrás e arrumaram a tinta e pintaram. Hoje eu só faço pedir quando azul, amarelo, branco, vermelho, eles fazem lá. Quando chega aqui eu largo a faca. É uma facilidade.
O senhor faz de tudo - de bolsas bem moldados a chinelos mais simples. Desse traço bem nordestino, o senhor pegou moldes da família ou alguém o ensinou?
Quem me ensinou foi Deus. Eu não devo favor nesse trabalho meu. O meu pai me ensinou a fazer outras coisas como eu já falei, mas era tudo diferente. Esse trabalho que eu tenho só devo a Deus. Mas claro que eu também procurei, fui eu que caprichei, perdi muitas
noites de sono, perdi muito horário de festa, de ir pra uma missa só fazendo modelo. Comoéoseucotidianohoje.Aindatrabalhamuito?
Meu dia a dia é a melhor coisa do mundo. Me acordo às quatro horas da manhã. O almoço é na hora que dá certo. Tem dia que eu vou almoçar às três horas da tarde. Tem dia que eu esqueço de almoçar. Só faço jantar, porque o povo não deixa, fica chamando, e eu tenho que atender o pessoal, porque a gente só é gente com gente encostado. Aí fico até oito, nove da noite, enquanto tem gente ‘pra’ conversar eu ‘tô’ por aqui. Quando não tem eu ‘tô’ na oficina fazendo algumas peças, porque a melhor coisa que tem é você inventar alguma coisa escondido, pra ninguém ‘tá’ lhe perturbando.
O senhor passa praticamente o dia na oficina, fazendo seus moldes?
É. Eu acho melhor tá na oficina do que tá na loja vendendo. Eu só vendo as peças com pena. Dá vontade de chorar quando eu faço uma peça no capricho e vou vender. O cliente achando caro e eu com vontade de não vender.
Tem muita gente imitando suas peças. O senhor se preocupa com a concorrência?
Eu não me preocupo porque eu acredito muito em Deus. E quando ele te dá uma coisa é pra sobrar. Não tenho essa besteira. Eu não gosto porque é uma coisa que eu fiz com todo sacrifício e o cara chegar e toma. Não tem que goste. Mas se eu te ensinar a fazer uma peça, você pode continuar fazendo que eu assino embaixo. Sem nenhum problema. Eu hoje sou professor, mas eu gosto de assinar também as peças que eu ensino. Mas se você me roubar um molde, eu não gosto não.
Mestre Espedito reúne sua casa, oficina e museu num só complexo em Nova Olinda
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O senhor tem a fama de cobrar muito caro suas peças… É porque assim. Às vezes tem pessoas que dizem “eu vou comprar uma peça lá em seu Espedito”, outros falam “homi aquele homem é muito é careiro, é careiro demais”. Eu não sou careiro. É porque eu faço o que é bom. O que é bom a gente só faz com material bom e material quando presta não se compra barato. Então, como é que pode vender barato? E o trabalho? E outra coisa: o trabalho que é feito à mão é diferente do trabalho feito à máquina. Cada peça é uma peça. E também eu perco muito tempo fazendo os modelos. Se eu fizer uma dúzia de bolsa hoje, amanhã eu não quero mais esse modelo e já faço outro. Por isso que eu perco muito tempo fazendo modelo e molde. O senhor é criticado?
A crítica é demais. Às vezes, tem gente que faz a peça e diz que fui eu que ensinei. Ou que já trabalhou comigo por muito tempo, ou fui eu que dei a oficina. Dizem que eu só tenho a carestia, que eu não sou essas bondade toda. Mas isso faz parte da vida.
Há dois anos, o senhor tem um projeto de desenvolver selas, tipo proteção pra motos em couro.
Quem te disse isso?
Uma fonte minha?
Eu vou ter que puxar a orelha dela, porque eu disse que era segredo (risos). Ainda hoje eu tô com esse pensamento e aqui e acolá eu dou uma amputada nos moldes pra ver se vai dá certo, porque eu já inventei o cinto de segurança, mas não deu certo, mas a sela eu acredito que vá dar certo. Uma sela bem bonita. É, porque assim, a matéria-prima da sela não é essa mesma que a gente faz, porque a gente que vai andar pega chuva e o couro não é muito é pra levar chuva. Molhado ele resseca. O meu não tem problema, porque eu sei fazer o trato do couro, ele nunca resseca. Então, eu tô tentando descobrir como eu vou fazer, não é sintético, não é plás-
tico, não é nada. Eu quero fazer com um material que é segredo, mas eu acho que vai dar certo.
Voltando ao ofício exercido também por sua família. Seu pai desenhava nas selas e nos gibões que confeccionava. O senhor mudou de forma radical ou ainda preserva as linhas criadas por sua família?
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É assim, quando meu pai trabalhava com sela, ele já fazia um monte desses desenhos, só que ele não abria o desenho pra botar outra cor, fazia tudo de uma cor só. O desenho que ele fazia, por exemplo, se ele fosse fazer um ‘S’, uma ponta de ‘S’ assim, ele fazia só na costura, mas eu resolvi tirar o pedaço e colocar outra cor pra ficar colorido. Algumas dessas selas, ainda hoje eu tenho peças que meu pai fazia. Ele fazia essas costurinhas, acompanhando esses ‘S’, coraçãozinhos, ele fazia em gibão e sela. Quase tudo ele fazia. Também naquela época isso era muito grosseiro. O caba só queria pra andar no mato. Quando eu precisava de dinheiro, precisei puxar pelas ideias pra ver se o povo comprava, porque a dor é que ensina o caba a gemer. Depois eu fiz a sandália do lampião pra Alemberg Quidins, ali da Casa Grande, só que eu já aproveitei o molde que meu pai tinha deixado. E eu fiz só que do meu estilo. Inovei muitas coisas, a bixa ficou bonita pra caramba. Aí Alemberg colocou no pé, foi fazer reunião até fora do Brasil. Ele chegava lá, sentava, às vezes botava o pé bem em cima da mesa. Que era para o povo ver a sandália que ele ‘tava’ calçado. E o povo só tirando retrato. Quando ele chegava era cheio de encomenda pra eu fazer. Alemberg foi uma pessoa que me ajudou muito, divulgando a sandália do cangaceiro que é a que faz mais sucesso.
Seu pai teve também contato com os cangaceiros. O contato que meu pai teve com o cangaço foi porque ele fez a sandália pro Lampião. A sandália era
quadrado que era pra ninguém saber se ele tava indo ou tava voltando. A do Alemberg eu não fiz o solado quadrado, fiz normal mesmo. A peça em cima eu fiz do mesmo estilo, mas eu não fiz o solado quadrado porque é ruim de andar, sabe?
O senhor sabe como era a vida dos cangaceiros? Seu pai lhe contava muitas histórias daquela época?
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Não sei. O que eu sei da história dos cangaceiros, é que meu pai tava trabalhando umas nove da noite numa sela campeira, no alpendre da casa da fazenda com a lamparina acesa, que era para no outro dia ir pegar boi com os colegas. Meu pai tava fazendo uma sela pra não passar vergonha, né? Porque naquela época um vaqueiro tinha inveja da vida do outro. Eu era um vaqueiro, você era um vaqueiro e um outro, somos amigos, nós três se juntava. Mas dentro do mato pra pegar um boi cada um queria pegar primeiro pra ganhar a fama de um bom vaqueiro e é o que eles faziam... E nesse dia, chegou um caba feio, “arrupiado”, o chapéu cheio de estrela e ficou observando ele trabalhando. Aí disse: “como é o nome do senhor? Meu pai disse: “Raimundo Pinho de Carvalho, mas o pessoal só me conhece por Raimundo Seleiro, por causa da profissão”. E o caba perguntou: “Seu Raimundo se eu trouxer um molde de umas alpargatas o senhor faz pra mim?”
Todo dia tem gente, mas tem alguns dias que vem mais do que os outros.
Vem duzentas, trezentas pessoas, vem colégio do Rio de Janeiro, vem de Fortaleza. Esses dias eu tô esperando dois grupos que vem de São Paulo.
O senhor já tinha nascido nessa época?
Eu não tinha nascido ainda, isso foi em 38, eu nasci em 39. Essa história era meu pai que contava pros colegas e eu ficava escutando... E ai o meu pai respondeu: “eu não sou bom em calçado não, mas eu posso arriscar fazer”. Aí ele disse: “Pois, o senhor me espere uma hora, uma hora e pouco, que eu vou buscar o modelo pra você fazer”. E o meu pai ficou esperando... O caba era tão feio e desajeitado que ele disse que deu vontade de fechar a porta e sair simbora... Quando chegou tirou de dentro do patuá um papel rabiscado com o modelo. Meu pai achou estranho porque o solado era quadrado e questionou:“Mas por que isso aqui, esse solado desse calçado?” Ele disse: “Não, seu Raimundo, num pense em nada não, faça do jeito que tá aí e dentro de vinte e nove dias eu venho pegar. Depois disso, ele se foi. Meu pai estudou o modelo porque não era um molde, era só rabiscado, aí fez as alpercatas e com vinte e nove dias ele chegou. Ele recebeu e achou muito bem feita e disse: “se o senhor adivinhar pra quem você fez essa peça aqui, eu vou lhe pagar o valor de dois par”. Aí meu pai disse: “eu fiz foi pra você, você que mandou eu fazer”. E o caba respondeu: “você fez pro coronel Virgulino, e eu não posso demorar muito, diga logo quanto é que eu tô vexado”. E foi metendo logo a mão no bolso. Meu pai disse: “não num foi nada não, pode levar”. E não cobrou. Mas depois ele mandou uns punhal de presente, até hoje eu tenho os punhais guardados.
Só para Lampião mesmo?
Só pra Lampião! Ele não tinha o que fazer, a vida dele era naquela caatinga. Aí depois eu fiz a da Maria Bonita e dei pra Violeta Arraes. Ela colocou no pé e só tirou quando morreu, quando se acabava uma botava outra. Ela adorava.
Como o senhor teve contato com Violeta Arraes?
Ela só vivia aqui brigando com eu. Por que brigando?
Porque eu era desorganizado. Não tinha essa lojinha, não. Eu tinha só a oficina e as peças eram jogadas. Violeta dizia: “um serviço desses, seu Espedito, não faça isso, faça isso não que é um trabalho muito bem feito”. E eu dizia: “não, mas é assim mesmo”. E ela dizia: “não, não faz isso, não”. Ela só vivia aqui, vinha duas, três vez na semana olhar eu trabalhando e comprava pra dar aos amigos, me encomendava muita coisa. Eu tenho que agradecer a Deus e a Violeta Arraes que me ajudou muito, brigou muito comigo e eu peguei a pisada mais aprumada. A amizade com a Violeta foi de quanto tempo?
Rapaz, eu num sei não… Ela morava na França e veio para o Ceará ser secretária de cultura, não foi?
Foi, mas eu peguei esse conhecimento com ela quando ela veio fazer o teatro da Casa Grande, ela só vivia lá. Foi em oitenta!
Depois disso não soltou mais?
Até quando ela morreu ainda veio por aqui, depois de morta cremaram, né? As cinzas dela passaram uma hora na Casa Grande, passou uma hora aqui em seu
Pierre e os dois meninos dele (marido e filhos de Violeta Arraes).
O senhor teve algum contato com os desenhos de Ariano Suassuna?
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Aquele homem… Uma vez eu fui pra uma reunião em Brasília e ele tava lá. Conversamos muito, mas eu não me lembro se ele veio aqui, eu não tô lembrado. Nos encontramos numa reunião lá em Brasília. E outra vez na Fenearte, no Recife. Era gente boa demais. O senhor é convidado para vários eventos, o senhor gosta de viajar, sair daqui?
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Não! O que eu gosto é de trazer o pessoal pra aqui, porque eu sou uma pessoa que se eu pudesse eu não via ninguém sofrer perto de mim. Nova Olinda é uma cidade carente, que a gente precisa trazer o povo que tem dinheiro pra gastar aqui. Porque assim, se você vem de Fortaleza pra fazer uma entrevista comigo ou com outra pessoa, você vai ter que dormir, almoçar, merendar, beber cachaça, fumar, você me compra uma bolsa ou uma sela. Vai ali na Casa Grande, almoça, merenda, dorme. Você tá ajudando Espedito Seleiro e tá ajudando o pessoal da região. Por que é que Nova Olinda tá merecendo o nome de Nova Olinda? Porque a gente capricha pra isso. Se a gente não chamasse o pessoal pra dentro de Nova Olinda, esse pessoal ia pra Juazeiro, Crato, pra Santana, ou pra qualquer cidade por aí a fora. E Nova Olinda tava ficando pra trás. Nova Olinda tá precisando de mais melhoramento, mas à vista do que era tá uma beleza, o povo que tem dinheiro vem pra aqui e gasta.
O senhor nunca se meteu com política?
Deus me livre! Nunca foi convidado? Muitas vezes. Os políticos é todo dia.
Quais políticos?
Os políticos daqui! Eu num vou dizer nome, não. Eu num gosto disso (risos). A gente tem as amizades da gente, mas fora de política. Porque eu não quero saber de política assim, eu não sei se fulana é do PT, do PSDB, num sei de onde... Eu não sou de ninguém. Eu tenho o povo que eu voto neles, eles nem acredita porque eu não falo nem o nome deles também.
Muita gente famosa no Brasil já apareceu por aqui?
Agora você me perdoe, porque eu não posso falar. Pra mim todos nós somos igual. Eu não considero ninguém melhor do que ninguém por ser mais famosa. Pra mim, você me comprar uma peça de dez reais e outra pessoa me comprar de cinquenta mil, o dinheiro dela é a mesma coisinha que o seu. Eu não gosto de falar. Mas esse pessoal mais famoso, quando eles não vem aqui eu vou lá, que eles me convida.
O senhor foi até convidado pra participar de programas de televisão...
Eu já fui convidado pros programas, bem uns dois ou foi três. Eu já fiz peça pradesfile,dizemqueéodesfilemais
famoso que tem no Brasil, o São Paulo Fashion Week, e eu fiz muitas peças. E depois a gente fez pra outro desfile, pra novela, pra filme, pra um monte de coisa.
Como é o movimento aqui diariamente? Vem mais gente de fora ou mais gente da região?
Rapaz, tem dia que nem se pode comer, porque não deixa. A gente nem pode chamar o pessoal pra almoçar porque é gente demais e o almoço não dá ‘pra’ todos. Todo dia tem gente, mas tem alguns dias que vem mais do que os outros. Vem duzentas, trezentas pessoas, vem colégio do Rio de Janeiro, vem de Fortaleza. Esses dias eu tô esperando dois grupos que vem de São Paulo. Eles agendam?
Agendam. Sabem que espaço é pouco e são educados. Faz os grupos de dez ou de vinte, entram uns e os outros fasta e vem outro...
Quais são as peças que o senhor mais faz, as que dão mais trabalho, e as que o senhor faz com mais carinho?
Essa resposta é a que eu acho melhor de responder, porque se fosse pra eu fazer só o que eu gosto de fazer, eu só fazia sela e gibão de vaqueiro. Tanto que as meninas brigam, que quando elas vão pra um evento representando o Ceará, eu digo que tem que levar uma sela e uma roupa de couro. E aí se danam, porque não querem levar, e eu digo que se não levar num vão de jeito nenhum. Porque é uma coisa que eu comecei fazendo, fui crescendo, fui virando adulto e nunca parei, na idade que eu tô.
Qual idade?
Setenta e sete.
Um garoto.
(Risos) tem dias que eu penso que só tenho dezoito. Tem dias que parece que tenho cento e cinquenta anos.
Tem ainda hoje que compra sela e gibão?
Eu tenho uma sela que a mulher compra, o doutor compra, o padre compra. Porque essa menina aqui, hoje ela pode ser jornalista, mas o pai, o avô, o bisavô já foi vaqueiro, já foi cigano, já foi tropeiro, nasceu no sertão, conhece essa vida de cangaceiro e tudo. Aí quando ela vê uma sela dessa aqui, ela diz: “eu não vou usar essa sela nem a minha família, mas vou comprar pra decorar, se lembrar do meu pai, do meu avô. E acaba comprando o chapéu de couro, sapato de vaqueiro, a sela, o gibão, compra tudo. Ontem veio dois doutor, cada um com-
porque a melhor coisa que tem é você inventar alguma coisa escondido, pra ninguém tá lhe perturbando.
prou um gibão e saiu vestido nele fazendo farra, esse fí de uma égua num vai sair pro mato, num’ vai. Então, as pessoas consomem esses produtos como a memória do antepassado?
Do antepassado, pra se lembrar. Se eu tivesse parado de fazer, o que é que eles ião ver? Uma menina dessa não saberia o que era uma sela, o que era um gibão, um chapéu de vaqueiro, um sapato, uma sandália de Lampião. Como é que sabia, como era? Se eu não tivesse feito a primeira pra mostrar, né?!
Fale um pouco do seu casamento?
Você tocou numa coisa que eu gosto de falar, porque quando eu era solteiro eu dizia: “a mulher pode vir de ouro ou prata, que eu não caso é nunca, porque eu não gosto de casamento”. Mas quando eu vi a mulher que eu sou casado hoje, aí num teve jeito não. Eu tinha outras namoradas, mas em um ano e pouco aconteceu o casamento, foi em sessenta, já tá com cinquenta e tantos anos. Qual o nome da sua mulher?
Francisca de Brito Carvalho. Mas hoje ela é paralítica, deu um tal de AVC, que ô doença infeliz. É uma pena, foi a pessoa que me ajudou muito, porque quando eu começava a trabalhar ela tava no pé, me ajudando em tudo que eu tava precisando. Ela num pode mais fazer nada, mas ainda hoje quando olha assim pras coisas dá vontade de fazer as pecinhas que ela fazia,e ela começa a chorar. Eu digo: “se conforme, porque isso é coisa mandada por Deus, o que você tinha que fazer já fez, pronto”.
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E os filhos?
Ela teve nove, escapou seis e agora tô com cinco. O mais velho morreu tá com dois mês. Quando eu comecei a criar meus menino, junto com meus irmão, eu achava difícil dar de comer e hoje eu acho pouca gente pra trabalhar. Era pra ter nascido bem uns trinta pra eu ter quem ajudasse (risos).
Todos são seleiros?
Todos. É neto, é sobrinho, é primo, é irmão. Tem irmão com a cabeça branca, assim que nem eu, que até hoje trabalha mais eu.
O senhor está montando um complexo de comércio lojas, museu. Como é que é isso?
Eu acho que ainda não tá do jeito que eu quero.
Ainda vou caprichar, porque eu quero deixar isso plantado pra minha família, até o mundo se acabar, eles manter isso. Quando Deus quiser.
O senhor acredita que o mundo vai se acabar?
Só pra quem morre.
E Deus nessa história?
Eu acho que o mundo somos nós. E se acaba sim, pra pessoa que Deus chamar.
O senhor tem medo que Deus chame?
Tem nada (risos). É tanto que eu tô fazendo uma casa lá no cemitério praeu ir morar daqui uns dias.
Qual a maior vaidade do senhor?
Eu já gostei muito de dançar, brincar e farrar, mas eu não posso dizer as outras coisas que eu gostava, mas hoje pra ser santo só falta ir pra igreja (risos).
Qual a maior riqueza do homem?
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A saúde!
E a do sertanejo?
A do sertanejo ou pode ser quem quer que seja, a maior riqueza que nós temos é a saúde, porque senão fosse, você não gastava tudo que tinha pra se livrar de uma doença. O dinheiro é bom, mas não é tudo. A saúde é melhor do que tudo, eu acho.
RAIMUNDO MARTINS
Universidade, tradição e Inovação
RAIMUNDO MARTINS
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aimundo Martins Filho, 71 anos, está desde 2010 na Universidade Federal do Cariri como Professor Visitante Nacional Sênior/CAPES/UFC. Com uma vasta experiência no campo acadêmico, Martins Filho é um obcecado pela área que abraçou desde cedo: a medicina veterinária. As pesquisas do professor Martins são voltadas para a área de Zootecnia com ênfase em genética e melhoramento animal. Arguto observador da cena universitária brasileira, ela fala, nesta entrevista, sobre os desafios que superou para atingir suas metas seja como professor, pesquisador ou gestor. Aponta problemas e sugere soluções diante do atual quadro histórico vivenciado pelas universidades brasileiras, particularmente a UFCA. Para o professor uma “oportunidade que não é dada a todo o ser humano. Vocês estão construindo uma universidade nova, pensem nisso”. Ele é um incansável batalhador pela criação do curso de Veterinária na UFCA, curso, segundo ele, de maior importância para a questão da saúde pública na região para combater zoonoses e o controle de alimentos, principalmente. “São mais de duzentas doenças que os animais transmitem para o homem”, assinala. Diz, ainda, que a universidade para ter sucesso tem que aliar a tradição e a inovação. “Não dá para inventar a roda novamente”. Leia a seguir trechos da entrevista concedida por Martins Filho ao Memória Cariri.
Professor, como foram seus primeiros contatos com a aventura acadêmica?
Eu sou literalmente do Século passado. Sou do interior. Meu pai de Pereira e minha mãe de Pacoti. Quer dizer, sempre tive uma ligação com o campo, com questões que hoje podemos chamar de agropecuária. Naquela época, anos 60, já tinha sido criada a Faculdade de Veterinária do Ceará. Eu estudei no Liceu, um ensino médio de excelente nível, e, após concluir, optei por fazer o curso de veterinária. Por circunstâncias políticas daquela época, da ditadura militar, percebi que não tinha muito espaço para trabalhar no Ceará, embora o então governador Virgílio Távora investisse bastante na agricultura. Mas havia participado do Diretório Acadêmico, enfim, da luta contra a ditadura militar. Daí, fui procurar emprego no Piauí.
O senhor foi então banido do Ceará? Não, banido não. Banido eu não digo. Hoje todo o mundo diz que foi preso e torturado. Esse não foi o meu caso. O problema é que como tinha uma atividade na política estudantil, fiquei com o nome indexado. E como naquele tempo as no-
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meações eram realizadas pelo governo, nossas chances eram mínimas.
O início da carreira foi, então, no Piauí...
Totalmente. Comecei trabalhando na Secretaria de Agricultura do Estado do Piauí, numa pequena cidade, São Miguel de Tapuio. Eu era a única pessoa com curso superior. Depois, fui trabalhar em Piripiri; e em seguida em Teresina. Em meados da década de 60, na Universidade Federal do Piauí – UFPI foi criado o Departamento de Ciências Agrárias no qual ingressei como professor. Abracei a causa e me dediquei exclusivamente ao magistério. Fiz o percurso da especialização, depois mestrado na Universidade Federal de Minas Gerais e doutorado na Universidade de São Paulo (USP). O pós-doutorado foi no exterior, na Universidade de Estudos de Florença - Itália.
Como era a universidade naquela época?
Não era muito fácil entrar na academia porque as universidades e as possibilidades eram restritas. Tudo era muito difícil. Mas me envolvi com o ensino. Venho de uma família de professoras. Minha mãe e tias eram professoras. Então, fui criado nesse ambiente, o que me
levou, acredito, à docência. Além disso, meu pai, policial militar, praticamente alfabetizou-se sozinho, mas tinha um gosto muito grande pela leitura. Não tínhamos tevê, com a Internet nem sonhávamos, e nossa maior atividade era ler. De gibis a livros.
Além dos livros, o cinema naquela época –anos 60-70 – era um impulsor cultural, principalmente o da contracultura, com uma linguagem longe dos padrões norte-americanos...
Na minha primeira fase, obviamente eram os filmes de faroeste. Depois, entrei em contato com a famosa fase do cinema francês e italiano. Tínhamos o Cinema de Arte, no Diogo, em Fortaleza. A juventude da época tomava contato com o melhor do cinema europeu. Voltando a sua carreira universitária...
Não imaginava o ingresso na academia de imediato. Ingressei no governo do Estado do Piauí, onde desenvolvi alguns projetos. Nós implantamos um escritório técnico da Associação Brasileira dos Criadores de Zebu, para o registro genealógico e estudo do gado Zebu. Conheci o Piauí inteiro, detalhadamente. Lá morei por 22 anos. Meus filhos nasceram lá. É um Estado com uma agropecuária de bom nível e tem um povo maravilhoso. Já professor, na UFPI, surgiu uma vaga na Universidade Federal do Ceará, para a qual fui convidado a transferir-me, com o propósito de atuar na pós-graduação stricto sensu. Tentei a transferência,
mas meus colegas da UFPI, talvez por generosidade, entenderam que eu era mais necessário lá, no Piauí, e recusaram a minha transferência. A UFC abriu, então, um concurso para o preenchimento da vaga. Fiz o concurso, passei e me demiti da Universidade Federal do Piauí e ingressei na UFC em 1992.
O seu desejo era, então, voltar as suas origens, ao seu Estado?
Não pelas origens, mas por uma questão puramente acadêmica. Eu havia concluído o doutorado e não tínhamos na Universidade Federal do Piauí sequer uma especialização na minha área de atuação. Voltei do doutorado com muitas idéias. Na USP tinha um departamento de genética – comum a todas as espécies com diferença apenas na aplicabilidade - que tinha foco na área animal, no melhoramento genético animal, principalmente de raças. Na Federal do Piauí não havia condições necessárias para continuar minha vida acadêmica de maneira mais produtiva. Foi quando surgiu a possibilidade de ingressa no Departamento de Zootecnia, da Universidade Federal do Ceará. Inclusive para ser professor do mestrado. Vi nisso uma chance profissionais depois de 22 anos no Piauí. Por mais que eu ame Fortaleza, não foram as suas belas praias que me fizeram voltar. Foi uma questão puramente acadêmica. E acertei, pois tive a oportunidade de trabalhar numa universidade mais antiga, mais desenvolvida que
a do Piauí, que, na época, ainda era muito jovem. Enfim, encontrei espaço, oportunidade de firmar convênios, inclusive internacionais, como por exemplo, com um grupo de professores de Florença, na Itália, onde fiz meu pós-doutorado em 2002. Foi uma oportunidade de crescer academicamente.
Como era a pesquisa naquela época. Aliás, qual foi a sua maior contribuição de sua pesquisa de doutorado?
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Havia sido defendida recentemente uma tese na Universidade da Carolina do Norte, com um estudo inédito aplicado às raças de gado europeias, ou seja, a associação entre as características reprodutivas do macho e correlações genéticas que poderiam existir com as suas filhas. Realizamos estudo semelhante com o gado zebu, de origem indiana, também inédita. Ou seja, verificamos se essa possibilidade genética também se manifestaria nas raças zebuínas brasileiras. Desenvolvemos a pesquisa e a publicamos numa revista internacional. Foi o primeiro estudo no mundo em bovinos zebuínos, hoje corriqueiro, que comprovou que reprodutores machos transmitem características de fertilidade e reprodução, limitadas ao sexo, para as suas filhas. A pesquisa foi feita com muita dificuldade. A comunicação entre as universidades era bastante difícil. Digo que pesquisar naquela época era, literalmente, pesquisar. Hoje você acessa tudo num clique.
Quer dizer, naquela época foram muitas as dificuldades para a realização da sua pesquisa...
Eu sempre fui meio afobado com as coisas que faço. Guardo outras coisas, trabalho eu faço logo. Pode ser uma espécie de comodidade para me ver livre. Na verdade, na época não havia limites para o doutorado. Passava - se seis, sete anos pesquisando, mas desenvolvi a pesquisa e conclui o curso em dois anos e quatro meses, até porque trabalhei com dados preexistentes, de criadores organizados, mediante o uso de estatísticas em programas desenvolvidos pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Apliquei os fundamentos da genética, da estatística e da informática e obtive as respostas corretas.
Voltando um pouco para nossa realidade, o semiárido nordestino, diante do insistente drama e da indústria das secas. Como se dão as relações entre a academia e os produtores – grandes e pequenos da região?
A relação entre o produtor e o professor do setor agropecuário é um tanto específica. Contemplamos todas as nossas ações no aspecto de produção desde a familiar, o criador que tem algumas vaquinhas no quintal para alimentar a família, até grandes criadores como temos na região, tanto em produção de leite como de
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carne, como em Barbalha, Crato, Porteira, e Missão Velha, por exemplo. A utilização de tecnologias, algumas até sofisticadas, já chegou aqui, sendo necessário que a universidade trabalhe com essa nova realidade. O que não se pode é ter apenas um foco – nem só no grande, nem só no pequeno produtor. Não podemos formar um profissional limitado.
Quais as dificuldades e paralelos entre essas duas realidades?
Temos atualmente alguns problemas de logística. Os produtores de maior porte, onde as pesquisas seriam feitas com maior facilidade, não têm agenda livre, apenas nos finais de semana e feriados. Ai vem à incompatibilidade com a universidade de hoje – o carro não pode ser usado nem nos finais de
“A comunicação entre as universidades era bastante difícil. Digo que pesquisar naquela época era, literalmente, pesquisar. Hoje você acessa tudo num clique”
semana, nem em feriados para deslocamentos de professores e alunos. Isso é um problema. O criador está cedendo sua propriedade para pesquisa, e quer a contrapartida dele, ou seja, participar dos estudos efetuados. Uma pura questão administrativa atrapalha todo nosso trabalho.
Mas esse deve ser apenas um, entre os muitos problemas, da universidade pública...
São problemas que se arrastam. Fui aluno e professor de universidade pública e sei muito bem como se dão as questões. Na época da ditadura havia muitas ingerências. Hoje também existem muitas ingerências. Ingerências políticas?
Sim, ingerências políticas e administrativas. Não precisa detalhar, todo o mundo sabe disso, faz parte do sistema. O que importa, no entanto, é que na universidade, principalmente uma universidade jovem como a nossa, é que as pessoas assumam o papel de professores e fundadores de uma IES. Então, as pessoas precisam pensar nisso. E também se despirem de vaidades, mesmo sendo a academia um espaço da divergência, o que é comum e natural.
O senhor está falando especificamente da UFCA?
Não só, pois essa questão se estende a qualquer universidade. Trabalhei na Universidade Federal do Ceará, que é uma das melhores universidades do País. Ela passou por uma fase de construção, até hoje tem inúmeros problemas. Na Universidade Federal do Piauí, tive a oportunidade de participar mais diretamente, pois quando entrei era uma universidade muito jovem. O que temos que entender é que existem áreas de inovação que são excepcionalmente bem-vindas. Na me-
dicina humana, por exemplo, você descobre um novo acesso cirúrgico, o que facilita, aperfeiçoa e possibilita resultados positivos para a sobrevivência do homem. Mas isso é feito em cima de profundos conhecimentos de anatomia, fisiologia e com o uso de biotécnicas, certo? Então, não é possível você abolir práticas de ensino de determinada área porque elas são consideradas muito antigas ou tradicionais. As peças vão se justapondo, entre a inovação e a tradição.
Este é um problema da Universidade Federal do Cariri?
Eu não estou me referindo apenas a UFCA. Você está me perguntando sobre a minha experiência de vida. Estou falando de questões que se colocam desde o Século passado até hoje nas universidades públicas. Mas estamos vivendo na UFCA este problema entre inovação e tradição?
Estou aqui como Professor Visitante da CAPES, com uma bolsa que se encerrará no semestre que vem. Estou na UFCA há sete anos e acompanho, sofro e me angustio porque faço parte também desse processo de criação. Eu, agora, aos 71 anos poderia relaxar. Agora, são questões contínuas. Desde que me aposentei, em 2003, nunca fiquei um dia sem trabalhar. E nesse tempo eu já trabalhei
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fora do Ceará, em dois Estados diferentes – no Piauí e em Mato Grosso, onde fui pró-reitor da UNIDERP, uma grande universidade particular. Enfim, tive a possibilidade de conhecer os vários aspectos das IES, tanto públicas como privadas. Quero deixar claro que não se trata de mais conhecimento ou de autoridade intelectual. Na academia a gente só aprende fazendo ou perguntando. Você já viu cursinho para ser reitor? Não.
Ora, isso se aprende na prática. Tem coisas que só se aprende fazendo ou perguntando a quem sabe, quem já fez, pela tentativa do erro e acerto. A gente abraça causas para defender. Eu desde o final de 2010 venho abraçando a causa da criação do curso de Veterinária na Universidade Federal do Cariri. Não por sonho, ideal, romantismo ou vaidade. Já participei da criação desse curso na Federal do Piauí e coordenei as comissões que criaram os cursos de Zootecnia da UFC e da UFPI. Então, o que me move é a importância social da Veterinária. Não estou me referindo apenas ao atendimento dos animais, mas sim a questão da saúde pública, as zoonoses e o controle dos alimentos. Só existe um curso de Veterinária em instituições públicas do Ceará, o da UECE, onde me formei há quase 47 anos. Agora, temos um curso em Sobral, outros em Caucaia, Quixadá e agora em Juazeiro do Norte, mas todos particulares. A UNIFOR de Fortaleza, fez o primeiro vestibular para seu curso de Veterinária no ano passado com cerca de 70 candidatos para uma vaga, com o mensalidades quase iguais as da faculdade de Medicina. Existe demanda, existe mercado. Se nós formos esperar para as coisas estarem cem por cento, tudo pronto, certinho, nunca criaremos esse curso na UFCA. Não conheço na minha trajetória acadêmica nada, ou pelo menos nunca participei da criação de algo, que já estivesse pronto. Participei, sim, de todo o processo de construção. Por que é tão complicada a criação desse curso?
culdade Veterinária do Ceará em 1966 e me formei em 1969. Naquela época já havia a promessa do Hospital Veterinário. Sabe quando foi inaugurado? O ano passado. Eles fizeram duas alas de atendimento clínico –cirúrgico, que supriam as necessidades de um hospital.
Isso não impediu o sucesso do curso, que já há alguns anos tem um doutorado dos melhores do País – o de Reprodução Animal, com nota 6 do Capes.
O senhor já teria um custo estimado para a implantação do Curso de Veterinária da UFCA?
Apenas do ponto de vista da implantação, com cerca de dez milhões de reais, acredito, poderíamos implantar nosso curso. Isso utilizando a estrutura já existente do CCAB, no Crato, inclusive, disciplinas de Laboratórios, salas de aula, etc. Professores dividiriam disciplinas comuns. O curso traria ainda disciplinas comuns à área de Agronomia. Poderíamos aproveitar laboratórios já existentes no curso de Medicina, em Barbalha e do campus de Juazeiro. Mas veja bem, isso que estou fazendo não é uma crítica, mas um esclarecimento. É claro que há ainda a demanda de vagas para servidores professores e técnicos administrativos, além dos custos de manutenção.
As pessoas pensam que se tornam professor quando o nome sai no Diário Oficial. Não é bem assim. Ora, isso é uma coisa contínua. Demorase muito ou quase nunca se chega a ser um bom professor.
Pensou-se também, além do Crato, em Lavras da Mangabeira..
Sim, é complicado. Mas é preciso empenho, teimosia, garra. Eu entendo e respeito à decisão da UFCA, que é de prudência. Mas é preciso desmistificar a questão do curso – laboratórios, hospital veterinário, etc.
Lógico que o curso, como outro qualquer, requer alguma estrutura. Mas o que exige não é a construção imediata do hospital veterinário, mas sim que haja um projeto para ser desenvolvido. Aliás, os projetos já existem. Só para você ter uma idéia – eu ingressei na Fa-
Não, isso é o que se chama de confusão da informação. Com a aprovação do curso de Veterinária pela UFCA, antes de existirem essa série de problemas no Brasil com contingenciamento de verbas para educação, surgiu a idéia de se aproveitar uma escola técnica do Governo em Lavras. Lá poderíamos estabelecer a área de grandes animais e de cursos de formação técnicas e de especialização. O curso de graduação seria sempre aqui, no CCAB, no Crato. Haveria uma junção de interesses comuns. Isso sem falar que estamos situados numa região geograficamente privilegiada entre Ceará, Pernambuco e Paraíba e Piauí. Quero deixar claro que não há nenhuma má vontade da gestão da UFCA em torno do curso de Veterinária. Não existe descaso. O que precisamos agora é fortificar nossas ações.
Mas a UFCA, num certo sentido, privilegiou outros cursos e criou ainda dois campus – de Icó e Brejo Santo...
Longe de querer fomentar divisões – sei que elas existem -, é atentar para alguns problemas das ciências da terra. A questão é não perceber, muitas vezes como é
importante para uma comunidade, o curso de Veterinária. Sei que o investimento é menor nas carreiras sociais, de humanidades e que alguns cursos não exigem equipamentos, laboratórios mais sofisticados, etc. Sei também que muitos imaginam que o espaço da veterinária é apenas para o tratamento de cães e gatos. Você já teve a oportunidade de visitar um matadouro, desses tão comuns espalhados pelos municípios cearenses, sem a mínima condição de higiene? Se você visitar vai preferir ser vegetariano imediatamente. O avanço de animais abandonados cresce em todo o País. Isso é um grande problema. São transmitidas cerca de 200 doenças de animais para os homens. A produção de carne e de leite e suas comercializações não tem controle em muitas regiões no Brasil. A brucelose, tuberculose, raiva, leptospirose, enfim, toda uma extensa relação de doenças que podem ser transmitidas pelo animal. Isso é uma questão grave de saúde pública. Por isso, a importância e o impacto do curso de Veterinária na nossa região.
Qual a situação da profissão no Cariri?
Na região do Cariri existem excelentes veterinários, mas que atuam, em sua maioria , em clínicas particulares, nos pets, o negócio de pequenos animais. Dados de 2015 apontam que esse negócio gerou 12 bilhões de reais no País. Só perde em consumo de ração animal para os Estados Unidos. Estou falando de toda a estrutura do pet – desde a comercialização de animais, passando pelo atendimento clínico, venda de ração até as butiques e festinhas para cães.
Mas a maior parte dos veterinários se volta para esse negócio...
Realmente. E não há como fugir disso, pois a cada ano mais aumenta a demanda por atendimentos e produtos pets. Na Itália, desde 2000, se não me engano, é permite o abatimento de até 20% das despesas com animais de companhia com atendimento veterinário. O problema é que lá existe controle, ao contrário do Brasil. É antipático falar isso, mas lá as pessoas ficam com seus animais até a morte dos mesmos. O que não ocorre no Brasil. Aqui se pega ‘n’ cães e se abandona “n + 1”. Isso é o que cria um dos problemas de saúde pública. Hoje existem programas internos, por exemplo, para castração de cães e gatos. Uma ação coordenada a das prefeituras da região com o Serviço de Controle de Zoonose do Estado e organizações não governamentais sérias, poderia estabilizar o problema. Um trabalho sistemático, ordenado, com um mínimo de condições para o controle da reprodução, seria suficiente para estabilizar a proliferação de animais abandonados. O curso de Veterinária criaria uma estrutura com a ação de estudantes coordenados por professores com o mesmo objetivo. Outra coisa é a conscientização das pesso-
as que se deixam levar pela emoção ao adotar um cão ou gato e, mais tarde, os abandonar. Enfim, seria um leque imenso de cooperação. Professor, mudando um pouco de assunto.
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O senhor trabalha no ramo da genética para melhoramento de animais. Qual a sua relação com a religião?
Não vejo antagonismo nenhum entre ciência e religião. Sou católico por formação e, hoje, mais do que antes. Perdi uma filha ha quatro anos, que me deixou três netos gêmeos. Eu já estava aqui. Foi em 2013 e isso foi muito duro. Tive que conviver com essa realidade, a questão da morte. A perda nos leva para a espiritualidade maior. A ciência é compatível com as religiões. Não estou falando em crendices, exageros, fanatismo.
O fanatismo, na minha concepção, é a negação da inteligência.
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O senhor sempre se dedicou a academia como professor, gestor, organizou cursos de mestrado e doutorado em diversas universidades, enfim, o que resta fazer?
Olha, confesso que o que eu deixei de fazer foi muito mais por limitação minha do que por obstáculos criados pelos outros. Não concordo muito com essa história segundo a qual “não fiz algo porque não permitiram”. Quando realmente a gente quer fazer, a gente faz. Eu não tenho muitas queixas com relação ao mundo restrito da academia. Nela, pelo fato das pessoas terem um nível de formação maior, as vaidades afloram de maneira mais forte. São comuns as divergências, criação de grupos de interesse, etc. Isso permeou toda a minha vida acadêmica. Em todas as instituições têm grupos. Só que estes grupos não podem sobrepor-se à instituição, certo? Sobrepor no sentido de domínio. Não estou me referido a UFCA. Fiz mestrado e doutorado em duas das maiores universidades do país e o pós-doutorado em uma Universidade da Europa e, em todas, percebi que havia grupos antagônicos. Só que em um nível que não afetava de maneira nenhuma a instituição. O senhor citou como exemplo a Europa. E o Brasil?
No Brasil... As pessoas pensam que se tornam professor quando o nome sai no Diário Oficial. Não é bem assim. Ora, isso é uma coisa contínua. Demora-se muito ou quase nunca se chega a ser um bom professor. Aqui existe uma sensação de propriedade, entende. Quando procuro um laboratório, quase sempre alguém me fala que aquele laboratório é de fulano de tal. Ele não tem a escritura daquele laboratório. O que fez foi ocupar espaço através do conhecimento e da capacidade de angariar recursos, o que totalmente elogiável, e instalar aquele laboratório. Mas ele não é dono do espaço, nem
tem esse poder. Lógico, o uso precisa ser controlado. Mas da regulamentação do uso para a posse temos uma diferença enorme. Isso é apenas um exemplo pequeno diante de outros maiores. Faça um paralelo entre o ensino de ontem e o de hoje na universidade?
Até hoje me sinto muito bem dando aula. Comecei a dar aula muito cedo, desde o tempo da cartolina e do quadro negro. Depois, as famosas transparências feitas com pincel, lápis. Era uma coisa muito prazerosa. A comunicação hoje está muito mais fácil. As pessoas dizem que esse negócio de dar aula teórica, expositiva não tem mais sentido. Gente tem coisa que... Você se operaria com um médico que fez um curso de cirurgia via Google? O cara tem que estudar em peças anatômicas de cadáveres, ler muito, estudar muito e ouvir muitas explicações sobre anatomia e fisiologia, antes de operar. Ele tem que estudar cada peça, detalhadamente, ter explicações, orientação e discussão conduzida por professores competentes. O mesmo ocorre com outras áreas do conhecimento. É preciso sempre ponderar. Certas áreas têm o ensino mais tradicionalista por necessidade. Caso contrário, isso implicaria num atraso do ensino. Ninguém pode esquecer a tradição. Agora, tradição não é estagnação. A tradição serve de base para a inovação, para as ousadias tecnológicas, para as belezas e experiências humanas. Agora tem coisas que não se pode inventar novamente como a roda, por exemplo. A universidade que tem a capacidade da tradição associada à inovação alcançará o sucesso.
O que significa a UFCA para o senhor?
É um sonho que nunca tive na minha longa experiência. Participei de tudo, menos da criação de uma universidade. Eu sou professor visitante aqui, mas eu acompanhei e invejo os professores da UFCA. Eles estão tendo a oportunidade de realizar uma coisa que nunca fiz na minha vida acadêmica – a construção de uma universidade nova. Não sei se todos pensam como eu. Mas é uma oportunidade ímpar. Eu diria para os meus colegas – todos os servidores – professores e técnicos: vocês estão tendo a oportunidade que não é dada a todo o ser humano. Vocês estão construindo uma universidade. Pensem nisso.
ZÉ FlÁvio Zé Flávio
Escrevo pra minha tribo
Em seu ambiente de trabalho, dessa vez não sendo o consultório, o médico e escritor cratense, José Flávio Pinheiro Vieira, 64 anos, fala do seu processo de escrita literária. Zé Flávio concedeu esta entrevista na Rádio Educadora, em Crato, lugar onde trabalha com suas leituras de textos semanais. Com trinta anos de experiência na literatura, escreveu para o teatro e encantou a criançada com o “O mistério das 13 portas”. Ele segue com diversidade em suas publicações – textos para teatro, infantil, adulto e até musicou canções sobre personagens baseados em lendas do Cariri. Amante da literatura desde muito novo, se apegou a uma escrita de fácil compreensão. “Se o matuto fala assim, assim escrevo. Já imaginou um matuto com escrita difícil?”. O escritor defende suas raízes e prioriza o seu lugar em todos os segmentos de escritas. Nesta entrevista, você conhecerá um pouco mais da intimidade desse médico-escritor caririense.
Para iniciarmos, queria que nos contasse um pouco como era o José Flávio na infância. Quais eram seus maiores sonhos? Como imaginava seu futuro?
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Era um pouco hiperativo e ainda continuo. Tudo que vou fazer é no sapatinho, como dizem, apertado, aperreado. Tenho uma neta, Maria Cecilia, que é hiperativa. Acompanhando-a percebo claramente como que eu era hiperativo. Tive inclusive dificuldade no primeiro momento na escola, não parava para sentar. Só vim a me aquietar a partir da terceira série do ginasial. Mas essa coisa de vontade de escrever veio desde a primeira série. Me lembro que já no exame de admissão, que acontecia em torno da quinta série, minha redação foi bem escrita. Já escrevia, gostava de escrever. Na adolescência tinha um diário que ainda guardo. Então essa coisa de escrever veio desde o primeiro momento.
Conte um pouco da sua infância.
Apanhei demais, na época o tratamento era assim. Cheguei a conhecer os meus quatro avós ainda na infância, um privilégio, que nem todo mundo tem essa oportunidade. Conheci inclusive minha bisavó. Na infância, era sempre tido como aquele menino terror. Quando ia passar um período das férias na casa dos meus avós, sempre era uma tensão danada por conta da hiperatividade. Eu não parava num canto, desaparecia, subia em telhado. Então, era um pavor.
E hoje, como é o pai José Flávio?
Bom, tenho quatro filhos. Sempre fui muito ligado aos meninos. Passei por um processo de separação, mas nunca me afastei deles.
Quais eram as brincadeiras que o senhor gostava?
Na época, a gente não tinha brinquedos eletrônicos, fazíamos os próprios brinquedos - pião, triângulo, carrinho de rolimã e os caminhõezinhos. O mais interessante é que a rua fazia parte da casa, era uma extensão da casa. Tinham os quintais. De noite as pessoas botavam a cadeira na calçada; os meninos brincavam na rua. Tinha aquela coisa de realmente reunir os meninos. Agora, é diferente. Hoje, meus sobrinhos moram num edifício em Recife, mas as crianças não se reúnem, então é um problema. Os meninos têm que ir para escola cedo para se socializar; se demorou a falar é porque não tem com quem falar, né? Isso não existia na minha época, por conta dessa enormidade de meninos que tinham para as brincadeiras, as mais variadas possíveis - futebol, esconde-esconde, um mundo de brincadeiras no meio da rua. Tanto que a gente só ia pra escola bem tarde. Só fui pra escola praticamente com sete anos. Sobre a gastronomia nordestina, o que não pode faltar?
Têm muitas. Por exemplo, a carne de sol, sou muito ligado, a farofa. Minha comida é muito nordestina e sou também simples na comida. Gosto de várias coisas,
mas a comida é mais regional. Panelada, buchada, só que não é uma coisa que como todo dia, é uma coisa eventual, quando aparece.
Você lida com duas áreas, a medicina e a literatura. Se sente mais à vontade em alguma delas?
Acho que elas se complementam muito, no sentido da medicina se aproximar da morte, do bem-estar, do mal-estar. Boa parte dos contos que escrevi, por exemplo, saíram dessa minha vivência com as pessoas, tanto que têm muitos médicos que são escritores.
Tchekhov, Ronaldo Brito, que é daqui do Crato, Guimarães Rosa e Pedro Nava. Eu comecei a escrever em 1972, dei uma parada e retornei em 1977, ano em que terminei a universidade.
Em 2011, você lançou o livro “Os Mistérios das 13 Portas do Castelo Encantado e a Ponte Fantástica”. Como foi que surgiu essa ideia de escrever para o público infantil?
Em nenhum momento pensei em escrever livro infantil. A ideia surgiu quando notei que aqui no Cariri tem uma mitologia muito forte. Quando a gente vai estudar, vemos que não é história da “carochinha”. O mito é uma coisa que tá profundamente inserida no inconsciente. Então, não é uma historinha de “trancoso”. Temos uma mitologia muito forte no Cariri, como a da pedra da Batateira e a baleia debaixo do altar de Nossa Senhora da Penha. Notei que toda essa mitologia era forte e que estava se perdendo um pouco. Por quê? Porque a mitologia tem uma concorrência muito grande, principalmente para as gerações mais novas, através do DVD, do Smartphone, da Internet e Facebook. Então, tive essa ideia. Mas ela veio mesmo do Jorge Malta, numa das mostras de teatro daqui. Ele é compositor e também estudioso de mito. Conversando comigo, Jorge Malta disse uma coisa que me tocou, sobre o Cariri: “essa região tem uma energia diferente, ela é forte desde a pré-história”.
Isso me tocou no sentido de tentar escrever para criança, que não é uma coisa fácil, é uma linguagem totalmente diferente, tem que ser direto. Os meninos geralmente quando vão ouvir a história de um dos meus personagens, como Tandor ou
o Beato Zé Lourenço, eles vão atrás do pai pra saber “papai o senhor também conheceu?”. Como ocorreu a relação da sua literatura com o cinema, o teatro e a música?
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Pensei em uma peça quando li um livro de Zé Carvalho, escritor cratense que participou da Padaria Espiritual. Zé Carvalho, em seu livro, “O Matuto do Nordeste e o Caboclo do Pará”, de 1930, conta várias histórias daqui e, dentre elas, a história de Zé de Matos, que foi um poeta popular daqui. Entre 2000 ou 2003, veio a ideia de escrever a peça e a trabalhei coletivamente. Eu acho legal isso de trabalhar coletivamente, mas dá trabalho. No infantil “O Mistério das 13 Portas”, por exemplo, tem 15 músicas, tive que fazer a letra de cada uma das músicas dos personagens. O Abidoral Jamacaru falava - “não, vamos fazer um musical, vai ficar legal”. Então começamos a fazer. Abidoral fez a parte musical, que é uma pessoa muito próxima a mim, muito amigo. Então juntou várias pessoas, Luiz Carlos Salatiel, João Nicodemos, o pessoal do Zabumbeiros Cariri. Foi um trabalho emocionante. É um dos que mais me emocionou, foi uma repercussão tão boa, as pessoas gostaram tanto, tivemos mais de quarenta apresentações. Depois a gente teve uma adaptação também de um dos contos do Matozinho pra o cinema. Foi o Jefferson Albuquerque que fez. O que é uma coisa interessante também, porque é uma linguagem diferente. O resultado foi bom, podia ter sido melhor em alguns pontos técnicos.
Como adaptou cada obra nos seus lançamentos?
Não gosto daquela coisa tradicional, fazer uma mesa lá em cima, botar um monte de gente e ficar falando como se fosse uma reunião da maçonaria, uma reunião do Rotary. Não gosto desse formato, acho que é chato pra quem tá assistindo, a pessoa vai por obrigação. No
“O Matozinho Vai à Guerra”, tivemos encenações relacionadas ao personagem, fizemos um palco grande, inclusive com um cenário bem interessante, o Reginaldo Farias que fez. Foi no Cine Moderno. Do infantil, o lançamento foi em formato de uma peça de teatro. Lançamos com uma leitura dramática que depois foi encenada. Fizemos também uma leitura dramática na URCA (Universidade Regional do Cariri), no Salão de Atos. Foi legal porque fizemos a primeira leitura com vários atores no palco, totalmente diferente. Já “A Delicada Trama”, que é o último, foi lançado na RFFSA. Eu, Flávio Queiroz e os meninos do teatro fizemos uma apresentação da leitura de dois textos. Nos seus textos nos deparamos com personagens com características próprias, como você cria os personagens?
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No infantil, os personagens são reais, inclusive eu tentei manter as histórias. É claro que a história é da oralidade, não é uma história assim com muito rigor técnico e histórico, o oral é o que interessa. Então, fiz um levantamento de treze personagens para o livro. No Matozinho, por exemplo, é quase que um livro de memórias da minha família, envolvendo os amigos também. Meu pai era um grande contador de histórias. A maior parte dos personagens na realidade são reais, troquei os nomes, claro, porque não queria identificar fulano. Às vezes a pessoa sai bem no livro, outras vezes a pessoa sai mal. “Matozinho Vai à Guerra” é uma história criada mesmo, relacionada com aquele momento da invasão do Iraque, se não me engano. Já na outra, “A Delicada Trama”, a maior parte dos textos da obra, dividi em três partes. Uma parte inicial, que é uma parte mais poética. Uma parte central, que é uma parte de trama mesmo. E a parte do labirinto, que é uma parte mais reflexiva sobre situações mundiais, situações locais. O infantil é muito indicado em escolas do Município. No Pequeno Príncipe já foi indicado mais de cinco ou seis anos; no colégio Ágape foi indicado durante um período. Outra coisa que eu achei interessante, é que os professores indicam o livro no colégio e os alunos falam que vão comprar das sé-
ries anteriores às suas, mas os colegas das outras salas não querem vender os seus livros.
Qual é o significado da literatura para você, por que você escreve?
Meu pai tinha uma livraria, então a ligação é muito grande com livros. Compro livros que não vai dar para ler nessa encarnação, já disse que tem que comprar tudo na outra novamente. Eu compro como se fosse para o supermercado comprar os alimentos. Essa coisa da livraria foi muito importante, tem a história também que meu pai e minha mãe eram professores. Papai de língua portuguesa, então isso certamente me levou um pouco pra banda da literatura. Mas quando perguntam por que escrever, Clarice Lispector dizia que é pra não morrer. A gente não sabe, tem gente que mesmo escrevendo vai morrer, e também não tenho essa perspectiva, as pessoas sempre fizeram isso, você cria um nome para ver se fica imortal. Não tenho essa perspectiva de dizer que essa é uma maneira de não morrer, de me imortalizar, não tenho de jeito nenhum essa pretensão. Escrever é uma coisa que me faz bem, me sinto bem quando estou escrevendo, acho que por isso escrevo. É importante dar um testemunho do meu tempo, o tempo que eu vivi, isso é interessante para as outras pessoas. Tenho que ser testemunha do meu tempo, não só do
meu tempo, mas de meu lugar. Todo mundo é regional, toda literatura é regional, você escreve a partir da sua realidade. É essa é a maneira que tem se tornar universal. Como Dostoiévski escrevia da Rússia. Machado de Assis, que é o escritor que eu mais gosto, dos brasileiros, certamente era regional, fazia uma literatura do Rio de Janeiro. Guimarães Rosa, regionalíssimo, Érico é regionalíssimo, todo mundo é regional, não tem conversa. Eu tenho que deixar isso aqui, me faz bem, sempre di-
minui minha ansiedade, talvez escreva para não ir para o psicanalista (risos) fica mais barato. Todo leitor carrega em si sensações deixadas pela leitura, como você pensa em atingir seu público a partir de sua escrita?
Penso que a gente não escreve um livro só, você escreve uma parte; e o leitor escreve a outra. É tanto que é muito comum a gente fazer um texto e o leitor interpretar de outra forma. O humor é muito importante, por exemplo. O Matozinho é um livro muito querido, o pessoal gosta muito por ele ser bem-humorado e isso, certamente, é um gancho importante para você ter o leitor. Outra coisa é a poesia, a poesia está no alicerce de qualquer arte, sem poesia não existe nada. Esses são os dois ganchos que eu mais utilizo. Outra característica é a linguagem, quando um ator está falando, ele está falando como ele fala, assim consegue imaginar como um “matuto” está falando. Tento não fugir tanto da língua padrão, mas escrevo o coloquial. Acho isso importante, é uma língua tão rica, talvez uma das mais ricas do mundo todo, então utilizo os recursos que eu tenho na língua, tanto o erudito, quanto o popular. Um dos melhores elogios que eu recebi, é quando a pessoa diz assim “você escreve fácil”, escrever fácil é difícil”.
Quando dizem que escrevo fácil, quer dizer que o texto ficou leve e isso é bom, porque prende. Você gosta de ler uma coisa mais leve, até porque a gente já tem a vida tão atribulada.
Você tem um projeto de lançar um livro na área de medicina...
Esse é um projeto que fala da medicina, aqui do Cariri, de 1800 a 1960. Escrevi o primeiro livro, que é de 1800 a 1900. Deu um trabalho desgra-
çado, tinha muita coisa nesse século sobre a medicina e para escrever, tive que diferenciar a história da ficção. Passei mais de 10 anos mexendo, pesquisando. Fiz uma primeira parte, onde eu conto a história do Ceará, a história do Cariri, da colonização do Cariri. Levantei a história da medicina desde o princípio, porque senão fica difícil de contextualizar. Não adianta falar, por exemplo, na terapia o que se fazia em 1800 sem contextualizar o motivo daquele processo. Você consegue relacionar medicina e literatura como duas formas de salvar vidas?
É interessante essa pergunta. Eu não tenho dúvida. É a coisa mais importante da profissão. Não mede salário, não mede nada. Uma possibilidade de se conseguir reverter os malefícios. Eu acho que a literatura de alguma maneira salva as pessoas. Não só as pessoas, mas salva o escritor também. Ajuda a gente demais e de alguma maneira salva os leitores. Eu tiro por exemplo de Abidoral, que ele tem uma responsabilidade muito grande com a obra de arte dele. Ele não fala em drogas. Ele diz, “eu não posso falar, se eu falar, eu não sei se eu tô incentivando”. Ele tem esse cuidado em tocar em coisas que possam causar o mal das pessoas. Eu não tenho preocupação tão grande assim, só que meus textos não são pesados. Até porque eu não gosto de ler coisa de menino sofrendo. Não gosto muito de ler coisa dramática, talvez eu não escreva muito drama por isso. É melhor fazer rir, é mais difícil, chorar é algo mais fácil. Porque cada pessoa ri de uma maneira diferente, pra chorar é fácil, porque é só você colocar um menino sofrendo de um câncer. E eu sei que todo mundo vai se debulhar em lágrimas, mas, assim, o link pra rir é muito diferente. Então, talvez eu não tenha preocupação maior, por conta disso. Mas acho que é uma coisa importante. Isso que eu falei do Abidoral, por exemplo, se ele tem uma música carregada demais, ele não grava. Ele tem uma música que é da época da ditadura, que se chama “Pipoca sem sal”, que gosto muito, já “pelejei”, mas ele não quer gravar. Ele diz: “Ficou carregada, não quero, não”. Ele acha que vai deixar as outras pessoas “down”, vai deixar as outras pessoas pra baixo, arte não é pra isso.
Como surgiram os temas pra as publicações semanais em seu blog?
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Sou muito desorganizado, tenho que ter regra, porque senão, eu não escrevo. Escrevo nas quintas-feiras para o rádio, os textos são lidos nos sábados. Geralmente, o texto que é escrito para o rádio tem uma linguagem diferente, entra uma questão de periodicidade.
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Entre as histórias, o que é nacional tento levar para o blog Matozinho. Às vezes aparecem histórias, mas geralmente são temas nacionais. Antigamente eu dividia
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mais, fazia uma história, depois eu fazia um tema mais local, depois discutia um tema nacional, ou universal, mas à medida que vão saindo, vou escrevendo. Essa última foi sobre os estudantes de medicina que baixaram as calças pra fazer uma foto. Então, geralmente, tem umas que vão vir do dia a dia, coisas corriqueiras. Mas prefiro escrever as do personagem Matozinho. Acho bom quando escrevo, porque as pessoas gostam. As redes sociais são importantes para a publicação de suas histórias no blog?
Ajuda, claro que ajuda. Hoje ficou difícil, temos que pegar várias coisas pra ter uma ideia mais global. A mídia tá toda direcionada para um lado ou pra outro, fica difícil achar o meio termo. Temos que ler duas versões para encontrar o meio, pra se orientar melhor. As mídias sociais ajudam demais, pelo menos certamente ela orienta. Sai a notícia, para saber mais sobre o assunto você tem que ir atrás. Então, orienta bastante. Embora tome tempo. A gente precisa ter cuidado pra não ficar só no facebook, o bicho toma o dia todinho se você brincar. (risos).
O escritor possui relações com cada obra. Pode contar como cada obra lhe marcou?
Acho que são filhos diferentes, quando a gente bota no mundo já não é mais nosso. No dia em que publico, o livro não me pertence mais. Até porque as pessoas vão ler, cada uma vai interpretar da sua maneira, não é a versão que eu botei no mundo. Isso é uma coisa interessante, a primeira obra, por exemplo, a de Zé de Matos me marcou muito, porque era um projeto de muito tempo, envolveu muitas pessoas, e depois o teatro, uma coisa que eu gosto muito. Matozinho é a segunda. Foi um livro praticamente familiar, ligado a memória do meu pai. O infantil teve esse lado de ter uma ligação com um público que eu não conhecia, um público que eu gosto muito. Muitas crianças mandam bilhetes pra mim dizendo se gostou ou não. Me lembro até de um bilhetinho que recebi no consultório. Uma mulher me entregou um bilhete do seu neto, que tinha assim: “Gostei do livro, tenho oito anos, gostei de fulano, só não gostei do Vicente Finim, porque ele é muito feio”. (risos). O Finim é o personagem do lobisomem. É muito legal esse público. O último é um livro que eu gosto muito, porque são textos escritos de 95 pra cá, dá uma visão muito clara do que eu escrevi, tanto na parte dos textos bem humorados, mais poéticos; e dos textos mais reflexivos, textos mais ligeiros.
Em relação as duas plataformas as quais você produz, os livros e o blog, como você consegue distinguir os públicos diferentes e como funciona a forma de escrever pra cada plataforma?
Os textos que são maiores geralmente não boto no blog. Como o da parte histórica que escrevi por conta da pesquisa para o livro de medicina. Neste livro não posso fazer escrita técnica, não tenho conhecimento, é um texto crônico histórico, que é um texto que transmito melhor. Então, publiquei um texto de fotografia, outro sobre a chegada do carro, o primeiro automóvel; todos eles foram tirados de outra pesquisa que eu estava fazendo na época. Você vai encontrando, vai preparando, para depois escrever. Esses textos são maiores, então esses não vão para o blog. Acho que o blog não é muito bom colocar um texto muito grande, é chato texto grande demais.
Como ocorre a distribuição das suas obras?
Essa coisa da distribuição é o grande problema que a gente tem. Tem sempre um livro que a gente escreve para o nosso público, escrevo para minha tribo. Me perguntam: “Como é que vai ser feito em São Paulo?”, não me interessa não, é pra minha tribo, se quiser aprender minha língua, venha para cá. Sobre a distribuição, geralmente colocamos nas livrarias, nas bancas de revista. O lançamento é importante, onde mais se vende é no lançamento. Na “Delicada Trama”, vendemos 150 livros, que eu achei bom demais, porque é difícil vender tantos livros. A partir daí, o livro começa a sair lentamente. O infantil “O Mistério das 13 Portas” tem um público definido. Todo ano os pais compram, as escolas compram, e vai saindo, não sai em grande quantidade, mas sempre o que me deixa alegre é que não param de vender. O Zé de Matos, as pessoas procuram até hoje, praticamente não tem mais, só tem os últimos lá em casa. O infantil está na 2ª edição, eu fiz outra edição, e “A Delicada Trama” é o mais ranseiro pra sair, mais devagarzinho.
Quais são as suas influências literárias?
Acho que o autor que mais se parece, o mais próximo, é o Machado de Assis, a pessoa que mais me influenciou. É meio difícil perceber isso nos livros, porque, é claro que as linguagens são diferentes, mas por exemplo, o humor, só que o dele era mais fino, e o meu é mais rasgado. Esse humor “machadiano”, essa influência do humor, acho que é uma influência forte. Têm alguns autores que eu gosto muito, internacionais, fora o Machado, como por exemplo, o Ítalo Calvino. Ainda do Guimarães Rosa, aqui do Brasil. Dos nossos daqui, do ciclo nordestino, o que eu mais gosto é José Lins do Rego, que é o mais próximo de mim, até por causa do humor dele. Admiro muito o Graciliano, por exemplo, mas o Graciliano é muito difícil de ler, era depressivo, então ele era muito carregado, acho fabuloso a maneira que ele escreve, porque ele consegue frasesinhas curtas e secas. Mas eu tenho dificuldade de ler, temos isso, ad-
mirar demais um escritor, mas não gostar de ler. Carlos Drummond, admiro demais, ele foi o maior poeta brasileiro, mas eu acho melhor ler Manuel Bandeira. O Vinícius, a poesia dele, é a extensão da vida dele, embora seja menor como poeta, acho que bem menor do que Drummond, mas pelo menos na poesia ele tá mais próximo da gente, porque fala sobre o que ele viveu, então, talvez eu ache que é isso, Machado de Assis eu ache mais próximo de mim.
Tem algum livro que marcou sua vida?
Têm vários livros que marcaram a minha vida. O “Memórias do Brás Cubas” é um livro que marcou minha vida. As pessoas consideram Machado como o melhor escritor da América Latina, difícil colocar isso com tantos escritores, como Júlio Cortázar e Gabriel García Marquez, mas algumas pessoas consideram Machado como o maior autor da América Latina, e esse livro então é fenomenal, uma forma totalmente diferente. Eu gosto muito também da “Servidão Humana”, é um livro de Somerset Maugham, escritor britânico, um escritor da bexiga. Existe outro que eu gosto muito, que teve uma coisa muito forte pra mim, que é o “Fio da navalha”, lindíssimo esse livro, totalmente diferente.
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“Cidades invisíveis”, do Ítalo Calvino, acho que tam-
bém foi um livro que mudou muito as coisas, a gente vai redescobrindo. Agora mesmo eu li um livro, foi até um escritor muito importante dos anos 60, era muito místico, sensacional, é um livro que não é de ficção, é sobre o fenômeno que aconteceu na França, a possessão, mas é lindo esse livro. Então, vai aparecendo, você vai redescobrindo, mas você pergunta: “O que você mais relê?” Machado de Assis é o que eu mais releio, toda vez a gente lê um novo livro, toda vez que a gente lê, a gente não lê o mesmo livro. Um filme que você assiste na infância e vai ver depois não é o mesmo filme. Além do amor pela literatura, e pela medicina, o que mais você ama fazer?
Bom, andar, gosto muito; andar na serra. E de música sou muito eclético, só não gosto dessas novas agora, ainda não, pode ser até que pra adiante, ficar mais doido, eu goste. Gosto de rock pesado, depende do dia, às vezes gosto de reggae, jazz, bossa nova. Tenho variedade, não sou fechado em um tipo de música só. E de ler, sou mais leitor do que escritor. Leio muito, muito, muito, geralmente, não começo num livro só, são 3, 4 de uma vez, a medida que eu vou abusando eu pego outro. Você escrevia no tempo da ditadura?
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Na ditadura eu escrevia menos, mas aconteceu censura nos festivais das canções aqui. Tínhamos um grupo, eu era o letrista, e nós tivemos uma cesura prévia.
Devíamos apresentar as letras antes para a censura, pra aprovar ou não. Várias músicas foram cortadas nessa época, inclusive, eu fui a Recife, na Polícia Federal. Me chamaram pra conversar por causa de uma música, mas não liberaram a letra, eram cheio dessas coisas. Mas a censura que eu sofri foi basicamente essa, tive textos censurados no jornal da universidade, quando eu fazia medicina. Escrevi um texto uma vez para os jornais de 63, por aí, 64. Era um diálogo do prédio da Sudene com o hospital que não terminava. O pessoal do jornal tinha a autocensura, porque tinha muito coxinha, e que ficavam informando, então acabaram censurando. Até no outro jornal, tinha um pessoal que era o cão, só viviam presos. A gente tava começando a faculdade, eles eram do 4º, 5º ano, então era uma prisão danada. Você enxerga a escrita como uma forma de se posicionar contra os fatos cotidianos, ou você tem algum receio quanto a isso?
Acho que toda a escrita tem um papel político. Então, em momentos críticos temos que colocar claramente a nossa posição. Nesse momento, agora, é um momento em que a gente vive colocando esse posicionamento, por conta dessa divisão do país, que sempre teve, tava só quietinha lá no canto. O pessoal não se conformou de o país ter ficado independente em 1822, não se conformou de o país ter virado república em 1889, acabado com a escravidão em 1888, essas pessoas ainda são as mesmas que no passado e hoje estão exercendo sua função exatamente como era antigamente, muda só a maneira, mas elas estão bem presentes no cenário brasileiro.
Então, é claro que quem tá escrevendo tem que colocar a colher nesse angu, não tem como você ficar de fora, não tenho nenhum medo de fazer isso, até porque passei por um período de repressão. No período da ditadura militar, você não podia falar nada, não podia se reunir, era terrível, gente presa, gente morta, horrível, ninguém pode nem pensar numa coisa dessas voltar. Agora com tudo que estamos vivendo, você pode gritar, você pode falar, e antigamente que não podia? Como é que fazia? “Ah, mas não tinha corrupção”. E se tivesse, o que faria? Hoje em dia tem corrupção, sai na televisão, antigamente tinha a mesma coisa, e ninguém podia dizer nada, porque se não morria, ia preso, torturado. É muito simples dizer isso quem não viveu nessa época. Só sabe quem viveu, quem viveu é que sabe direitinho o que foi isso. Horrível!
Mas hoje você tem algum receio de uma grande mudança no governo?
Não, quer dizer, ainda não, né? Eu não sei como vai ser, mas até agora, não tenho receio. E quem viveu essa época sabe disso, não tem época pior, só sabe quem
viveu, sabe direitinho o que é isso. Quando tinham duas pessoas reunidas já era considerado concentração, três pessoas era considerado passeata, não podia dizer nada, toda classe do país tinha um informante, como é que pode isso? Não podia dizer nada, que já informava, outra coisa, imagina a quantidade de gente que foi denunciada. Você tinha raiva de um vizinho era só dizer que ele era comunista, e que ele tava se reunindo, bastava dizer isso. Pra você ter uma ideia, Caetano e Gil foram presos duas vezes, sem acusação, como é que você é preso sem acusação? Como é que você se defende se você não sabe do que tá sendo acusado? “Vocês tão sendo acusados de quê?”, “Não tô sabendo, não, delegado.” Foram pra Londres justamente por isso, o delegado disse que não sabia o motivo que eles estavam sendo acusados, e não podia deixar eles soltos, então era melhor eles irem embora. Foi por isso que eles foram embora, não tinha acusação, já pensou? Era desse jeito, não precisava de acusação. E como é que eu me defendo, se eu não sei pelo o quê que eu estou sendo acusado?
Como é que o escritor, Zé Flávio, enxerga a política no Brasil atualmente?
Eu acho assim, que a gente tá vivendo um momento crítico da política, o país, as forças que antigamente estavam quietinhas, hoje estão claras. Você tem as forças de direita bem claras agora, ficaram mais quietinhas porque viram as desgraças que tinham feito, quer dizer que tem o momento, teve o golpe no sentido de não melhorar nada, o golpe não foi no sentido de acabar com a corrupção. Eles estavam com raiva de ter melhorado a situação, um pouquinho de nada, da classe mais desprivilegiada, tava andando de avião, a classe mais desprivilegiada tava podendo se formar. Então, é só isso. A coisa, na realidade é só uma luta de classe mesmo, uma briga de classe, de pobre contra rico. Quinhentos anos de país e não se tem ideia de país como um todo, o país são eles, que podem fazer o que quiser, roubar, matar, que não vai dar em absolutamente nada. É tanto que agora estão caladinhos, porque o governo tá botando abaixo todos os ganhos sociais que se teve a duras penas com sangue, e com suor, tão botando abaixo. Eles estão caladinhos achando que tá muito bom, só que ninguém sabe até que ponto não mexe no controle remoto. Estamos em um momento crítico, essas forças que estão aí, essas forças reacionárias, as forças que acabaram com Canudos, que bombardearam o Caldeirão. São as
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mesmas forças que se mantiveram contra a abolição da escravidão, que a gente terminou como um dos últimos países a libertar os escravos, e que se esquece disso, porque essas pessoas sofreram quase 400 anos, torturados, estuprados e tudo. Essas pessoas são brasileiros, mas são brasileiros de segunda classe, e não tem direito a nada, não são cidadãos. Essa mesma elite que quando veio melhorar um pouquinho de nada, nada, a condição de consumo, se revoltou, e não quer que exista isso, quer que eles fiquem quietos nos seus cantos, e os ricos do lado de cá, nas suas fortalezas. É uma fase muito triste, mas é um processo, as coisas não mudam de uma hora pra outra, mas também não estamos naqueles tempos. Então, vai ter reação do lado de cá também, eles estão quietinhos, caladinhos, não vai ser fácil assim não, nada acontece sem represália.
O senhor pode contar quais foram as suas melhores memórias do Cariri, as imagens que mais marcaram?
Temos uma coisa importante no Cariri, é que a gente é diferente praticamente de todo o resto do Ceará. Isso historicamente, primeiro a gente teve uma maior ligação com Pernambuco do que o resto do Ceará.
Posso, vou fechar aqui os olhos, de agora?
De qualquer tempo, alguma imagem que lhe marca o Cariri.
Bom... Assim, antigas tem o sítio São Vicente que era o sítio aqui do meu avô, lembro da infância indo pra lá, ali pertinho, não é mais da família, mas ainda está lá. Esse é um local muito especial na minha memória. Existia muito antes, inclusive, dos clubes terem se estabelecido, e faziam parte não só de uma classe, de um clube, fazia parte lá do pé de serra, as pessoas iam lá tomar banho. Eu acho que essa é uma memória muito forte em mim. Então, esse pé de serra, é pra mim a imagem mais forte daqui do Cariri. Quando eu fecho os olhos, penso nelas, e penso no Crato também, no Crato antigo, tinha a memória da cidade, que é tão bonita, e você vê hoje, praticamente a cidade não soube conviver com o progresso. O antigo e o novo que era pra conviver, a parte histórica que era bonita, foi derrubada pra se construir uns monstregos arquitetônicos no lugar, caixas de sapato tudo igual, prédios todos iguais. O prédio aqui, com apartamentos, o banheiro, tudo certinho lá atrás. Isso dói, quando vejo isso, é claro que essa paisagem também fazia parte da memória, da minha juventude. Isso se acabando, tá indo uma parte da minha juventude junto. O turismo religioso, por exemplo, a cidade vizinha cresceu, não temos potencial religiosos, mas temos um potencial ecológico tão gran-
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de e tão mal cuidado, pessoas não tem nenhuma educação ambiental, jogam lixo, sobem com lixo. Quais as formas de cultura caririense mais lhe chamam a atenção?
Temos uma coisa importante no Cariri, é que a gente é diferente praticamente de todo o resto do Ceará. Isso historicamente, primeiro a gente teve uma maior ligação com Pernambuco do que o resto do Ceará; depois o loteamento foi feito por franciscanos, o norte foi feito por jesuítas, depois a colonização daqui foi feita, principalmente por Bahia, Sergipe e Pernambuco, nossos colonizadores brancos, inclusive, e tivemos nossos índios, os índios Kariris.
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Nossa cultura difere da do resto do Ceará - sempre foi voltada pra cana de açúcar e o resto do Ceará foi voltado pra pecuária. Temos essas diferenciações. É claro que a gente levou para cultura todas essas diferenciações. Quando a gente pega, por exemplo, compara a cultura caririense, tem o povo do Inhamuns, que teve uma coisa muito fechada, que foi o ciclo do couro, como o couro do nosso mestre Espedito Seleiro, embora, tenha vindo dos Inhamuns, é uma coisa bem caririense também. Fortaleza é muito perdida no tempo. O Cariri é mais forte nisso, a gente tem não só a nossa cultura de raiz, a cultura popular que é muito diferente da região norte, mas quando a gente pega a nossa música, é muito diferente do resto do Estado. Os nossos compositores,
como Abidoral Jamacaru, caririenses, são totalmente diferentes do resto de qualquer outro, se você pegar e disser que esse é do Cariri, dá pra você ter uma ideia, que tem uma marca caririense, eu acho isso muito forte. O artesanato também foi uma coisa muito importante, quando a gente pega o Juazeiro na questão do artesanato, como de barro, como de madeira, porque aí você tem uma miscigenação muito grande de pessoas que vieram, pela própria formação de Juazeiro, que é uma formação muito eclética, de todo canto. A gente teve um teatro forte, ultimamente temos pouca descendência porque não temos muitas salas de espetáculo; e o cinema foi muito forte aqui, porque a minha geração foi muito do cinema, era o único entretenimento que se tinha. Ronaldo de Brito, que é um literário conhecido nacionalmente, nasceu nos Inhamuns, mas se formou aqui no Crato, só um livro dele conseguiu sair do Cariri, mais de 40 anos, acho que 45 anos e não consegue sair do Cariri. O último livro, romance que ele escreveu agora, foi um romance sobre a ditadura militar, que foi ambientado em Recife, o resto é sobre Cariri. Ele não consegue sair do Cariri. O Cariri é muito forte, é difícil sair daqui, mesmo a pessoa indo pra fora, tentando... (risos). Mas não consegue. Quem é o atual José Flávio Vieira?
Bom... Eu sou avô de quatro netos, diminuí o ritmo da minha profissão, médico nunca deixa de ser, a não
ser quando não tem mais jeito. Uma coisa da minha profissão é que quando eu me aposentar dos meus empregos, pretendo continuar escrevendo, literatura pra mim tem essa coisa do gostar de fazer, e me tomar o tempo, de me fazer útil. Vou continuar escrevendo até os últimos dias, muitos e muitos dias que ainda virão (risos). Espero continuar escrevendo. Os projetos vão aparecendo aí a medida que o tempo vai passando, às vezes um toma à frente do outro; a gente nunca sabe, por exemplo, o primeiro livro que eu pretendia escrever era o do Matozinho e acabou nem sendo, a peça tomou à frente, então a gente nunca sabe como é o destino. É uma coisa interessante, a história às vezes anda por ela mesmo, a gente não controla muito, a gente começa com os personagens e tudo, mas são eles que vão criando vida, pernas próprias, às vezes você quer que ele vá pra um canto e ele vai pra outro, é interessante (risos). É como um filho, a gente quer que vá por uma lado e o menino vai pelo outro lado. Então, é isso aí, a gente vai desenvolver os projetos pra adiante, espero continuar escrevendo por muito e muito tempo, pra deixar sem pretensões maiores de jeito nenhum, eu escrevendo, já lendo é muito importante. Se as pessoas lerem então, já é muito fabuloso. Tá bom, então?
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Expocrato Expocrato
Falar sobre a Expocrato, assim como foi escrever toda a Revista Memórias Kariri, antes de tudo, tem sido para mim um desconforto. Um exercício de desacostumar o olhar. Tenho me esforçado para tornar-me turista na cidade que nasci, na rua do colégio em que quase sempre estudei, nas calçadas que brinquei quando criança – até parei de sentar no mesmo banco da Praça da Sé onde tropecei e cortei-me aos seis ou sete anos, quando conquistei a cicatriz na sobrancelha que carrego até hoje. Descobri nesta experiência de escrever sobre o Cariri que o tempo de convivência em um lugar determina o grau de estranhamento das coisas. Embora vejamos mais, percebemos muito menos, porque passamos a estranhar muito pouco. É como pensar, só que ao contrário, a sensação de estar pela primeira vez em um ponto turístico muito famoso de uma cidade que não é a nossa. Tudo parece fácil de ser notado. Em consequência, voltar ao Parque de Exposição Pedro Felício Cavalcante em época de Expocrato, pela décima oitava vez, nesses meus vinte anos de vida para construir uma pauta de ensaio fotográfico, foi no primeiro contato frustrante.
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Tudo parecia comum, do mesmo jeito. Do que vi, pouco poderia muito descrever. Recorri ao passado. Busquei na memória as minhas imagens da Expocrato e me apeguei a uma lembrança da infância, quando só conseguia ver de baixo para cima a multidão e a mão de minha mãe. Foi o momento que silenciei. Fato e memória, o contraste que necessitava. Reconheci, naquele momento, a dinâmica do tempo no espaço e as singularidades passaram por a ser vista outra vez. Fiz percurso olhando para baixo, fotografando por aquele ângulo que por anos foi meu. Os primeiros passos fediam a estrume e cachorro molhado, depois cheiro de fritura e óleo quente e nos últimos passos pude sentir a quentura do fogão a lenha e o sabor de rapadura na boca. Estava no engenho de cana-de-açúcar e ali comecei a fotografar. A pauta deste ensaio é a ressignificação. É uma crônica que se reproduziu em mim da saturação das mesmices de todos os anos ao reconhecimento do “tudo novo de novo”. Este ensaio está em construção. Por isso, interprete-o.
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A Gênese da Expocrato
Francisco Humberto Esmeraldo Cabral é filho de Crato, condição na qual se orgulha muito. Tem sua vida dedicada ao jornalismo e a preservação da memória do Cariri. A peculiaridade de sua intelectualidade está na sua admirável memória. Neste depoimento, o memoralista lembra do surgimento da Expocrato, feira que cobre desde a primeira edição, em 1944.
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Como e quando surgiu a Expocrato? A Expocrato surgiu no dia primeiro de maio de 1944 às nove horas, em uma conversa entre o prefeito Wilson Gonçalves e o seu cunhado o professor Pedro Felício Cavalcante. Eu assisti a essa conversa no famoso café de Isabel Virgínia - era um café que a sociedade frequentava: os políticos, os intelectuais, encontravam-se duas vezes por dia para lanchar, às nove horas da manhã; e às quinze horas da tarde. Discutiam os assuntos de interesse da cidade na área de política, administração, história e cultura. Seu Wilson disse para Pedro: “nós precisamos criar um evento para o Crato, para movimentá-lo”. E seu Pedro disse: Qual seria, Wilson? “Nós temos que criar uma exposição agropecuária no Crato”. Imediatamente, um grupo que tinha ao lado elogiou e aprovou o projeto. No fim de maio Wilson, prefeito municipal que sucedeu Alexandre Arraes, foi à Fortaleza pedir apoio ao interventor Francisco Menezes Pimentel e ao secretário da agricultura Rui Montes, Ambos aprovaram o projeto. Na volta de trem houve a recepção na estação daqui. Depois Wilson foi à prefeitura e lá concedeu uma entrevista. Repassou as informações mais relevantes e contou do apoio que recebeu do governo. No dia 21 de junho, dia do município, Dr. Wilson nomeou a primeira Comissão Central da Exposição, que teve por doze anos como presidente o professor Pedro Felício Cavalcante - Pedro, era um grande criador da raça Zebu. Em julho, a comissão conseguiu de Dom Francisco de Assis Pires, segundo bispo diocesano, o sítio da Casa de Caridade, onde hoje localiza-se Universidade Regional do Cariri – Urca. Lá se realizou a primeira Exposição Agropecuária do Crato, no período de quatro a sete de dezembro de 1944 com aproximadamente 300 animais. Foi um sucesso. Além de exposição agropecuária, tinha também o comércio e outras instalações. Depois da primeira Exposição, houve um intervalo de nove anos, porque teve a Guerra Mundial e alguma outra coisa. No centenário de elevação do Crato a categoria de cidade, em 17 de outubro de 1953, há 64 anos, o prefeito Dr. Décio Teles Cartaxo reativou a Exposição Agropecuária. Passou a ser onde hoje é Praça Bicentenário - antes era um bosque livre para a cidade – ali ocorreram as exposições de 1953, 1954, 1955, 1956, e 1957. Quando o pre-
feito Ossian Araripe construiu o parque municipal, transferiu a Exposição para o Parque que hoje chamamos de Parque Pedro Felício Cavalcante, lá era o campo de fruticultura do Cariri, era um verdadeiro pomar e lazer paras as crianças. Foi inaugurado no dia da abertura da Exposição e continua até hoje. Depois foi se desenvolvendo muito. Teve uma comissão no Crato que foi de Jeep até Uberaba, para adquirir produtores e subsídios para à Exposição.
Quando a expsição colocou o Crato como o promotor do principal evento de agropecuária do Nordeste?
Em 1960 houve aqui no Crato a reunião dos dez secretários de agricultura do Nordeste, que vieram conhecer e fazer uma análise da Exposição. Por unanimidade, acharam uma fonte de desenvolvimento. De Exposição Agropecuária do Crato passou a ser Centro Nordestino de Animais e Produtos Derivados do Crato, quer dizer ficou sendo um evento de todo Nordeste, antes era mais municipal e regional do Cariri. Foi introduzido o show folclórico ao comando de Elói Teles. Posteriormente ampliaram o Parque na parte inferior, criaram aquele parque de eventos que hoje recebe grandes shows, mega shows. Foi se desenvolvendo a agropecuária, com exposição não somente do gado nos pavilhões, gado de raça e os currais embaixo, mas também com o comércio e indústria participando de todo esse momento. Assim, a exposição se tornou o evento social que ela é hoje, porque criou o reencontro das famílias do Crato, principalmente os que residem fora, além dos turistas. Esse “sistema” de encontro e reencontro social das famílias em grandes exposições foi a Expocrato que introduziu. As grandes exposições como a de Uberaba, a maior exposição de gado Zebu do mundo, são verdadeiras exposições profissionais, eram restritas ao gado bovino de diversas raças. Não tinha esse costume de ter visitação. O Crato foi pioneiro nisso. Hoje a Expocrato tem 73 anos de fundação e de idealização são 64 anos, porque houve o intervalo de nove anos sem acontecer.
O senhor faz a cobertura dela desde a primeira? Desde a primeira. Desde 1944, com a Educadora Cratense lá instalada. Também faço o cerimonial.
EXPOCRATO
O quintal dos Bacurau
Ocratense José Bacurau foi fascinado por pecuária ainda criança. Desde 1944, primeira edição da Exporato, ele testemunhou várias fases da exposição. Logo estabeleceu moradia dentro do parque de exposição, onde viveu com a sua mulher, Maria de Socorro de Carvalho e onze filhos. Nesta entrevista Ana e Prisca, filhas de Bacarau, hoje residente na mesma casa, relembram os tempos do pai, famoso por cuidar do parque de exposição - “quando a festa era mais tranquila, terminando às nove horas da noite”. Elas revelam curiosidades das exposições do passado, que tinham como atração principal bandas locais e de Pernambuco, sendo a maior estrela Luiz Gonzaga. Leia abaixo trechos da entrevista de Ana e Prisca Bacurau.
Qual foi a relação de Seu José Bacurau com a Expocrato?
Ana Bacarau - Meu pai era pecuarista, lutava com o gado. Ele sabia dar vacina quando era preciso, ele tinha um certo entendimento de pecuária e agricultura e também era da organização aqui do Parque, tomava de conta mesmo. Era tudo muito organizado. O povo tinha medo dele, porque as ordens dele tinham que ser obedecidas. Não existiam essas drogas que vive aí dentro. Naquele tempo ele tinha cuidado, vigiava mesmo. Muitas vezes não
tinha vigia e ele do ordenado dele pagava o pessoal para não deixar o Parque abandonado. Hoje em dia isto melhorou muito essa parte de vigilância, tem um rapaz que toma de conta.
Prisca Bacurau - A formação dele era técnico em agropecuária. Papai fazia as viagens pra outras cidades, pra copiar as exposições mais desenvolvidas, e trazer o modelo pra aqui, pro Crato, pra Expocrato.
Ana Bacurau: Nisso ele viajou muito, onde tinha exposições ele fazia parte.
Seu Bacurau era um “cabra bruto”?
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Ana Bacurau: O povo gostava de inventar as coisas com ele, porque ele era muito rigoroso, metido a valente. Tem uma história engraçada, com meu pai na época que mudaram a rede de energia aqui dentro do parque. Uma mulher chegou pra ele e disse: “Seu Zé, mande tirar esse poste de frente da minha barraca, que não tinha não”. Aí ele disse vá buscar a Coelce pra tirar o poste, porque eu não vou poder afastar não (risos).
Prisca Bacurau: Diziam para ele: “Seu Zé, o senhor é tão ignorante.” E ele respondia: “eu não sou ignorante, a pergunta que é besta” (risos).
Quando Seu José chegou no Parque?
Ana Bacurau: Papai começou em 1944, acredita? Tava olhando a entrevista dele com mamãe. Ele sabia tudo que era do Parque de Exposição. Em 1944 ele entrou, foi quando ele começou a mexer aqui por dentro. Já faz muitos anos, muitos anos. Quando papai faleceu a Expocrato tinha 57 anos. Pois é, tem a entrevista dele todinha, que eu acho que quem entrevistou ele na época foi Cabral.
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Humberto Cabral?
Ana Bacurau: Sim. O historiador. Que é uma pessoa que entende de tudo. Que sabe de tudo aqui da Exposição.
E a mãe da senhora?
Ana Bacurau: Mamãe não tinha nada aqui, era só casada com ele, morando aqui também. Qual era o nome dela?
Ana Bacurau: Maria Socorro Bacurau Carvalho.
Vocês moram aqui há quanto tempo?
Prisca Bacurau: Moramos aqui há quarenta anos. Foi assim, quando papai entrou de carteira assinada como técnico de agropecuária, esse parque era abandonado na época. A gente morava no seminário. Papai recebeu um convite pra trazer a família pra dentro do Parque, pra gente olhar o Parque. Nossa primeira casa foi feita ali depois de Maria do Pastel, passamos dez anos lá. No decorrer dos anos, a festa foi crescendo, crescendo, crescendo, e veio a ordem de Fortaleza pra gente sair, porque a casa estava mal centralizada, tava atrapalhando o fluxo, e tivemos que ajeitar as coisas pra sair. Só que Dr. Paulo Élder, presidente da Expocrato na época, muito amigo do meu irmão, que trabalhava com ele e também por consideração a papai e a nós, mandou construir essa casa e viemos pra cá. Agora essa morada nossa aqui é por méritos de papai, o trabalho de papai, ele faleceu com 85 anos, ele tinha 56 anos de Expocrato, uma história.
Ana Bacurau: A nossa casa era no centro, pertinho do picadeiro. Nós nos mudamos para este lado deve tá com uns 27 anos. Agora aqui também tem muita mudança, melhorou muito. Não tinham essas árvores, nem o asfalto, aquele picadeiro teve uma reforma grande, ali era só uma cerquinha.
Querem morar em outro lugar?
Ana Bacurau: Não, minha filha. Eu sou filha do Crato. (Risos). O amor é grande que eu tenho pelo Crato, eu também não tenho vontade de sair dessa casa.
É uma vida mais tranquila, não é?
Prisca Bacurau: Meus dois filhos foram criados aqui dentro, todos. É, bem light. (risos) Tem
Texto e Foto: Anna Carla de Moraisvizinho, mas os vizinhos não incomodam, não tem trânsito de carro. É uma área de lazer bem legal. O portão é fechado, não entra carro, exatamente por proteção ao pedestre que faz caminhada e traz suas crianças pra brincar.
Ana Bacurau: Nós aqui temos a chave do portão, tem tudo aqui.
Prisca Bacurau: A gente tem acesso a tudo aqui, o portão, se chegar uma pessoa aí, uma emergência a gente tem a chave, abre, entra polícia, sai polícia.
Quem mais mora no Parque?
Prisca Bacurau: Bom, aqui tem três residências, essa aqui tem 40 anos, a vizinha se eu não me engano tem 15 anos, se não me falha a memória, e tem o eletricista do parque que mora aqui dentro com a família, tem o escritório da Urca que na semana funciona e o escritório do núcleo gestor do Parque de Exposição, e o Geopark.
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Ana Bacurau: E todo final de semana tem o “forrozão dos véi”. É naquela churrascaria em frente ao palanque, na choupana. Não tem confusão, de jeito nenhum. Não tem briga, não tem nada!
Prisca Bacurau: É no domingo! Começa as quinze horas e termina as vinte. A terceira idade não paga. E tem as carteirinhas do idoso e mesmo se não tiver a carteirinha, com a identidade entra. Qualquer pessoa pode ir, mas se não for idoso, paga uma quantia, eu não tô lembrada agora de quanto, mas paga. Para manter a limpeza do parque.
Ana Bacurau: É uma taxazinha. Parece que só aumenta quando vêm essas bandas de fora.
As senhoras gostam da festa? Não se incomodam com o barulho?
Ana Bacurau: Eu adoro a festa! Não, não me incomoda em nada. Inclusive quando é a hora de eu me deitar, nada me acorda. Nem som, nem festa, nem ninguém. Foi a vida inteira e nunca me incomodou a festa de Exposição.
Prisca Bacurau: Também não me incomodo, o evento, cada ano que passa melhora. No que ainda deixa a desejar?
Ana Bacurau: O parque têm algumas coisas a desejar ó, os banheiros, alojamento.
Prisca Bacurau: Não tem um centro de apoio, falta banheiro, não tem um apartamento.
Ana Bacurau:
E tem um deles que fica hospedado em Barbalha porque não encontra hotel aqui, porque fica tudo lotado.
Prisca Bacurau: Tem deles que dorme na cabine de caminhão . Tem seu Antônio, que é de Campina Grande, a gente chama ele de “Pitoim”. Quando vem da Paraíba ele fica aqui em casa. Uma
amizade todinha com a família de trinta há quarenta anos, é a maior consideração. Dorme aqui e come, às vezes. Quando vai embora, pergunta: “ quanto é que eu devo?”. Respondo: “ A mim você não deve nada”.Pela amizade que ele tem com a gente. Se acontece alguma coisa aqui e a gente não tem a quem correr, se ele souber, ele chega no escritório e diz: “ aconteceu isso e isso, não pode acontecer com os Bacurau, porque elas são pessoas de respeito”.
Vocês tem uma vida aqui, deu para fazer muitas amizades?
Prisca Bacurau: Deu. A gente tem muita amizade de anos. Por exemplo, tem uma criatura, que é nossa amiga há dezesseis anos. É Jany barraqueira, de Recife. Ela bota barraca de lanche todo ano. Por sinal esse ano eu pensei que ela não viesse, porque mataram o filho dela de 22 anos em Caruaru. Quando ela veio tinha feito um mês.
Ana Bacurau: Único filho dela!
Prisca Bacurau: E sem se falar nas outras pessoas, e os boiadeiros, e os vaqueiros, que conhece a gente a anos, as amizades, por causa de papai. Aí, com o andar da carruagem, uns vai morrendo, vai se renovando, renovando as pessoas, a festa vai crescendo, vai se desenvolvendo, e aí a gente se depara com gente nova, com gente antiga, com gente que vai e vem, e a mudança vai acontecendo no o dia a dia.
As senhoras já se depararam com maus tratos de animais?
Não, não.
Teve uma proposta de tirar a Expocrato do Parque Pedro Felício Cavalcante, lembram? O que pensam sobre isso?
Ana Bacurau: Eu acho que o Crato devia crescer, se fizessem uma coisa boa para o Crato, mas já que não vão fazer, deixa aqui mesmo. Aqui fica perto de todo mundo, fica perto de tudo, né?! Mas vai chegar uma época que este espaço não vai comportar mais não.
A Expocrato mudou muito?
Ana Bacurau: Mudou muito a Exposição. Hoje você não conhece mais ninguém. No meu tempo não. Era um encontro e reencontro, às vezes ainda recebo visita, mas de dizer que você conhece esse pessoal que transita aqui por dentro, e roda, e passeia, ninguém conhece mais ninguém. Tá muito grande!
Naquele tempo, era o tempo que você aproveitava a Exposição, hoje não porque o pessoal só liga pra essas festonas. Tinham os desfiles, inclusive continuam, eram no picadeiro, as barraquinhas ‘arrudiando’ o picadeiro, mulher vendendo filhós,
Prisca Bacurau
rolete de cana, amendoim torrado, essas coisas tudo ali. Tudo jovem, tudo brincando, não existia o que existe hoje. Eu achava a festa melhor antigamente, porque também era a nossa época. Tinham as bandeiras aqui em cima no picadeiro, era tudo gratuito, ninguém pagava nada. E tinha uma imensidão de barracas, mas tudo fica moderno. O parque tá todo moderno. Diferente, né?! E agora vão reformar novamente, aí minha filha..
Parecia uma extensão da praça da sé?!
Ana Bacurau: (Risos) exatamente.
Mudou a forma de aproveitar a festa, né?!
Ana Bacurau: Mudou muito, mudou, mas isso é necessário, porque se fosse pra continuar do jeito que era o Crato tava o quê? Regredindo.
Tenho a impressão, não sei se a senhora concorda comigo, mas de que tinham mais artistas regionais, não era?
Ana Bacurau: Exatamente. Tinham muitas. As festas no picadeiro tinha o trio elétrico da Pitú do Pernambuco pra fazer aquele show, na época dos Águias de Barbalha, a festa era no centro. Como era esse Trio Pitú?
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Ana Bacurau: Pitú era um caminhão como um trio elétrico que fazia a propaganda da Pitú. Pitú era uma aguardente pernambucana, aí o cara tinha uma voz, linda a voz dele, e fazia a festa ali. Era a época de Luiz Gonzaga que vinha também.
A senhora lembra de Luiz Gonzaga?
Ana Bacurau: Lembro de Luiz Gonzaga passando por dentro da Exposição. Menina, tem só com vinte e poucos anos que Luiz Gonzaga morreu, eu com 68, lembro demais, era uma maravilha tudo aí dentro. Mas agora muda, os jovens não querem mais saber disso, querem saber de coisa bonita, das bandas que veem de fora, de coisa nova como vocês, né?!
A Expocrato me lembra muito os Irmãos Aniceto.
Também andavam, é porque parece que esqueceram eles, quase não andam mais. Ainda tem aquelas festinhas do picadeiro, as da tarde, ainda tem as apresentações locais, tem ali uma praça do folclore que eles se apresentam.
A senhora sente saudade da festa como era antigamente?
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Sinto exatamente das amizades que não vem mais pra reunir a turma todinha. Hoje você sai para uma barraca dessas e não encontra mais ninguém conhecido. A festa da Exposição é boa, é uma maravilha. Eu já gostei demais, eu já brinquei demais, já me diverti até demais, agora tô deixando para vocês que são tudo jovem (risos). É, o quê é que véi que fazer mais em uma festa dessas?
Que conversa…
É pra vocês curtirem, brincarem as festas da Exposição. (risos).
Como é a rotina de vocês na Expocrato?
Prisca Bacurau: Bom, é assim, todo ano a gente coloca muitos congeladores e mesas aqui, e essa frente aqui eu faço uma churrascaria. A gente acorda de seis e meia da manhã e até uma hora da manhã, a gente tá no ar, vai dormir três, quatro horas, muito cansada e se acorda naquele pique.
É uma fonte de renda boa, não é?!
Prisca Bacurau: Exatamente, exatamente, porque todo ano é onde eu pago minhas contas.
Ana Bacurau: Mas agora com a crise do Brasil, esse ano não foi essas coisas todas não. Muita gente se reclamou, aí o retorno foi pouco.
Tem história de bêbado?
Prisca Bacurau: Tem do ano “trazado”, de um bebo que bebeu aqui, bebeu, bebeu, bebeu, quase uma grade de cerveja e quando foi pagar disse que não tinha dinheiro. Aí eu disse: “como é que? bebe, bebe, bebe, e não tem dinheiro?” E ele dizendo: “Eu não tenho dinheiro pra pagar”. E eu vendo ele todo bem vestido, e dizendo que não tem dinheiro. E perguntou: “Vai chamar a polícia?” Respondi: “ Não. Quem resolve seu caso sou eu e a minha irmã. Aí ele disse: “o que vocês vão fazer?”
Aí minha irmã mandou que ele se levantar e tirar a camisa que esle estava usando da Dudalina. Tirou a camisa da dudalina, umas botas caríssimas. E falou: “só não vou tirar suas calças, porque eu tô vendo que a cueca não vale a pena”. E ficamos com a camisa dele, as botas e pronto. No outro dia ele veio buscar. Pagou e devolvemos. Esses bêbados sem vergonha, que bebe, bebe, visualizou, olhou o movimento. Ver é mulher que é dona e mal sabe eles que tem duas mulheres pior que dez homens.
Aí quebrou a cara, né? Foi bonitinho, tirou a roupinha e vamos pagar a conta (risos).
Expocrato
Maria do Pastel
Maria de Oliveira ou Maria do Pastel: uma mulher que vive e ama; personifica a composição de Milton Nascimento. O som do maquinário dos pastéis, a cor da paisagem na Encosta do Seminário e o suor – o combustível incansável na trajetória de trabalho que já dura trinta anos.
Maria do Pastel e Família. O nome do empreendimento estampado no carro que transporta a barraca também sintetiza a vida dessa mulher pequena de sonhos grandes. A partir das 16h00, de terça a domingo, os filhos, a nora e até as netinhas se reúnem na barraca mais famosa da Encosta do Seminário. É questão de tempo para começar a alegria da comunidade. São pastéis, coxinhas, empadas e sucos por apenas R$ 1,00 cada. “Às vezes o pessoal diz: ‘Maria, esses salgados são baratos demais’. Aí eu digo que na minha barraca come o rico e o pobre; o branco e o preto. Tem gente que muitas vezes não tem sequer um real para se alimentar”, explica, com a voz firme de sempre, o porquê de manter o preço popular.
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Apesar do cenário colorido, Maria já passou por dias cinzas. Grávida aos 18 anos do primeiro filho, viu nos dotes culinários a esperança de alcançar sua independência da forma que mais ama: junto da família. Seu objetivo sempre foi trabalhar com pasteis, mas como na época não tinha condições
de adquirir o maquinário, resolveu vender doces e rifas para se capitalizar. O marido, Seu Francisco, na época era funcionário numa fábrica e com um acordo realizou a compra da primeira máquina.
“Essa máquina é meu xodó. Eu digo aos meus filhos: ‘Ó, vocês chamem essa máquina de mãe, viu’ porque foi primeiro Deus e depois ela que deu nosso sustento”, conta orgulhosa.
O tempo e as marcas da vida não tiraram de Maria a beleza de sonhar. “A coisa melhor do mundo é quando você tem um sonho e você realiza”, fala enquanto olha admirada para sua barraquinha. A primeira barraca posta foi na Expocrato de 1988, quando Ramon, seu primeiro filho, tinha apenas três meses. Depois da experiência, a família se empenhou para trabalhar fazendo entrega em lanchonetes. “Eu ia com um balaio na cabeça. Se o balaio tivesse aqui, vocês iam até tirar foto dele”, relata com olhos nostálgicos.
Maria diz que nunca teve medo de trabalho. Nunca se intimidou com machismo e revela um ritual poderoso. “Eu às vezes paro, olho assim, e digo: ‘eu venci, eu sou uma guerreira’. Às vezes minha mãe dizia: ‘mas, Maria...’ (com tom de reprovação por algum comportamento), aí eu dizia: ‘mãe eu não tenho inveja de certos homens que vestem calças, eu sou mais eu’”, afirma.
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Vaidosa, Maria tem cabelos compridos e pretos. A vida nem sempre sorriu para Maria, mas ela sempre sorriu para a vida. “Quando alguém chega dizendo que tem um sonho, eu digo: ‘pois bote pra frente’”. Devota de Nossa Senhora Aparecida, todo dia 12 de outubro, mobiliza a família e realiza um mutirão de doações. São em média 600 salgados e sucos para a população carente. “São trinta anos de trabalho e nenhuma inimizade”, fala aliviada.
Com honestidade e persistência, foram 16 anos trabalhando no Calçadão de Crato e mais oito entre a cantina do Colégio Externato e as proximidades. “Eu só queria mostrar meu trabalho e aqui na Encosta eu estou conseguindo”, conta otimista. Desistir não é seu forte. Palavra não cogitada. O sonho sempre continua. “Vou me aposentar fazendo o que eu amo, vendendo salgado.”
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