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Espedito Seleiro Espedito Seleiro
A encantada fábrica de couro
Mestre Espedito Seleiro é uma referência em todo o Brasil com as suas peças confeccionadas em couro. Peças que já foram exibidas em filmes, novelas, exposições de arte e de moda. São celas, gibões, bolsas, chinelas, cintos, chapéus feitas pela mão de um artistas que, após várias crises porque passou a sua família diante das mudanças ocorridas no sertão, resolveu reinventar o negócio. Foram anos de pesquisa até desenvolver uma técnica única e singular, que saiu da pequena Nova Olinda para todo o País e até para o exterior.
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Com 75 anos, cinco filhos, além de irmãos, primos e sobrinhos, Espedito toca a sua oficina dia e noite. Ele não para. Acorda cedo, às quatro da manhã, às vezes não tem tempo nem para o almoço. Mas não deixa de receber quem o procura. Nesta entrevista, a Memória Kariri, ele refaz um percurso de lembranças – algumas boas, outras nem tanto. Fala da infância, do avô e pai – de quem herdou o ofício. Da sua gente – de vaqueiro, tropeiro, cigano e sertanejo -; do seu processo de trabalho e de um pequeno complexo que está construindo – oficina, loja e museu -, tudo próximo um do outro -, pra ninguém esquecer que ali viveu um dos melhores criadores de selas e gibões do País. Leia a seguir trechos da entrevista.
Quais as melhores memórias de infância que o senhor carrega?
Na minha infância eu não tive tempo de estudar, eu só sei fazer uma conta, uma continha assim pra ninguém me enrolar. Eu ainda faço conta, ninguém me enrola fácil, mas eu não tenho formatura. Ainda estudei um pouquinho. Na época, era difícil para a gente estudar, porque não tinha condição. Me criei mais foi em fazenda, no sítio. Eu gostava muito de jogar bola e andar montado a cavalo, adorava. Uma vez eu fui dar uma carreira no boi, pra ajudar uns vaqueiro colega meu e disse: “eu faço o mesmo trabalho que você faz também, me dê o cavalo, a roupa de couro que eu vou pegar boi aí mais você”. Fui dar uma carreira no boi e caí do cavalo. Nunca mais montei. Agora eu faço só a roupa do vaqueiro, sou vaqueiro de jeito nenhum.
Quando o senhor começou a trabalhar com couro?
Aqui é assim, começou uma família de seleiro, vaqueiro, tropeiro, cigano. E, como eu sou de uma tradição de vaqueiros, seleiros, eu resolvi manter a tradição até hoje. Já passei tempo muito apertado, aperreado pra manter isso, mas Deus me ajudou, e eu venci. Apareceu algumas atrapalhadas, por exemplo, a matéria-prima que eu gostava de trabalhar teve uma época que desapareceu. Porque aqui a gente trabalha com couro e eu gosto de fazer minhas coisas com o melhor couro que existe na região. O melhor couro desapa- receu, quando surgiu outros materiais - o sintético, a borracha, uma facilidade na matéria-prima, sabe? Porque o material já vinha da cor que você quer. A espessura você escolhia o mais grosso, o mais fino, o médio, essas coisa toda. Aí o couro dá muito mais trabalho, é bem difícil tirar o couro. Eu passei uma época que eu corria atrás do material pra trabalhar, pra fazer um gibão, uma sela, uma bolsa, um chapéu. Existia este material, mas não era conveniente.
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Não dava certo pra mim. E aí eu resolvi montar um coturno com meus irmãos.
Isso foi quando?
Isso foi em 71, 72, 73, até 75 eu ‘tava’ nesse sufoco. Comprava um bode lá na roça, ou um boi, matava, vendia a carne e curtia o couro. Fazia qualquer peça. Isso deu um sufoco danado, mas de qualquer maneira, como eu gosto do serviço, pra mim é uma brincadeira. Que deu trabalho, deu. Quando eu precisei vender muito porque além da minha família ter crescido, os meus irmão, o meu pai faleceu. Os irmão ficaram sem pai. E eu que sou o mais velho, peguei essas cruz e botei no meu espinhaço. Botei meus irmãos dentro da oficina, ensinei, ensinei, ainda hoje eu ‘tô’ ensinando. Você nunca para de ensinar, nem para de aprender. Nunca para. E eu venho mantendo isso até hoje, né?!
O senhor é de uma família de boiadeiros. É o primeiro a trabalhar com o couro?
Não. Nós somos cinco gerações que trabalhava, porque os outros já morreram, só tem eu (risos). E agora eu tô criando uma dupla da família, nós somos uma associação familiar. É tanto que o costume é dizer, quem não tem o que fazer venha pro couro aqui. E é isso que a gente tá fazendo. Os meus irmão eu ensinei. Nós era onze, eu sou o mais velho, ensinei a tudim. Até hoje trabalham mais eu. Eu faço o modelo que é o complicado da arte. É você fazer o modelo que o pessoal queira comprar, né? Você faz um modelo que ninguém quer comprar é o azar maior que existe na sua vida. Graças a Deus quando eu faço um modelo o pessoal gosta. É tanto que tem um pessoal que tá copiando por aí a fora. É porque presta, se num prestasse eles não ia copiar.
Quem lhe ensinou foi seu pai?
Nós somos uma tradição de família, era tataravô, meu avô, meu pai, tudo… E eu me criei com couro. Só que não fazia as peças como eu faço hoje. Quando eu me vi numa família grande, que era a minha e a do meu pai, tava sem vender os produtos que eu fazia. Aí eu resolvi mudar.
Como é que o senhor mudou?
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Não foi tendo mais vaqueiro, nem mais tropeiro, não tem mais cigano, não tem mais cangaceiro, que era quem mais usava as peças de couro do sertão. Eu digo agora tá ruim. Mas eu segui. Eu fui pra feira um dia em Nova Olinda, no domingo. E no sábado, em Araripe. Segunda-feira, em Campos Sales. Aí eu dei essas corridas de feira e num vendi nada. Os cabas que batiam na sela, assim que chegava na banca comia um pedaço de bolo com garapa de cana, bem pertinho deu; aí lambia a mão com a língua pra tirar o grude do bolo e pegava uma sela bem alvinha, bonitinha, que eu tinha feito com todo carinho, aí dizia: ô sela boa, mas eu não tenho mais o que fazer com sela. Dava vontade de largar a mão no pé do ouvido: “fí de uma égua”. Sujava minha sela todinha. E eu não vendia nada. Eu disse a minha esposa: “parar eu não vou, porque eu gosto e eu tenho esse horror de gente pra dá de comer. Eu também não tenho outro meio, só que eu vou mudar. Aonde eu chegar com uma peça minha de hoje por diante, se o caba num comprar ele adoece com vontade de comprar”. Eu disse essa brincadeira. Aí eu fiz em quatro horas, que ainda hoje eu faço isso, toda quatro horas, eu ‘tô’ lá fazendo os modelos, os ‘desenhozim’. Quando os meninos chega pra ajudar eu digo: ‘tá’ aqui o seu, ‘tá’ aqui o seu… Aí quatro horas eu fui pra banca, porque eu desenho ruim pra bexiga, mas eu faço o molde. Se eu for fazer uma roupa pra tu, eu meço você todinha, eu faço um molde principal e o desenho. Eu faço em cima, o que o molde me pedir - é que eu ‘tô’ acompanhando ele, sabe? Aí eu fiz isso, eu fiz umas peças de botas, bem bonitas, fiz os coloridos. Corri atrás da matéria-prima que eu precisava pra fazer a peça colorida que não existia. Fui no mercado comprar a tinta, não tinha; ia comprar o couro, não tinha. Então, o que eu fiz?
Entrei na mata, tirei uma ruma de casca de angico, botei pra secar, fiz aquela massinha, fiz a gororoba, passei no couro cru, que é dessas sandálias aí, quando eu passei no couro cru o bicho ficou marrom, sabe? Marrom, bem marrom mesmo.
O senhor começou então a pesquisar tintas para aplicar em suas peças?
Pesquisando! Era o que eu podia fazer pra mudar a cor, pra fazer a peça colorida. Aí quando eu apliquei a goda da casca do angico, o couro ficou um pouquinho marrom. Aí eu caprichei mais a massa, o pó da casca do angico. O bicho ficou marrom mesmo, bonito, tenho a prova, tá lá no museu a primeira sela que eu fiz. Como o meu pai era vaqueiro, ele fazia uma roupa de couro bem bonitinha, bem limpinha e ia pro campo pegar boi no mato com os colegas dele. Às vezes tomava uma chuva lá no cercado, pisava na lama e a lama pegava na roupa que chegava toda pintada. Ele dizia: “isso é uma desgraça, desgracei minha roupa, tá toda suja de lama! Ei, Espedito, vai lavar no açude!” Nós morávamos na beira do açude, bem pertinho. Aí eu ia, pelejava e não largava. Quando eu precisei do couro preto eu enterrei o couro na lama, ficou preto que nem a blusa do meu pai. Só que quando eu tirei, que descarnei ele todim, tirei aqueles pedaço feio mais sujo, deixei só o bonitinho, botei pra secar e ele acabou ficando mais duro que esse balcão. Eu disse: “tem problema não”. Passei óleo, deixei secar, enrolei, dei uma surra igual a que você dá em caba ruim pra ele ficar bom. Aí ficou bom. Aprovou o marrom e o preto. Depois eu precisei do branco pra fazer as costuras. Eu tinha visto meu pai fazer com pedra-ume e a cinza da caatingueira. Ele tem um que chupa o vermelhão do couro e fica tudo branco. Eu peguei a cinza da catingueira, botei numa lata de querosene que chamava “Gás Jacaré”. Lembra dele? A latona grande, assim. Fiz uma gororoba, amarrei, pendurei num pé de pau, furei um buraco no fundo da lata que ficou só pingando, ali era potássio escuro puro, misturei com a pedra hume, botei o couro de molho. Quando tirei e espremi, igual vocês espreme a roupa, o bicho ficando branco, quanto mais eu espremia mais ficava branco. Então deu certo, ficou bem alvinho, pensei. A chama carneira.
Até hoje o senhor utiliza essa técnica?
Eu não. Daí pra cá eu vim brigando com os donos de coturno e eles correram atrás e arrumaram a tinta e pintaram. Hoje eu só faço pedir quando azul, amarelo, branco, vermelho, eles fazem lá. Quando chega aqui eu largo a faca. É uma facilidade.
O senhor faz de tudo - de bolsas bem moldados a chinelos mais simples. Desse traço bem nordestino, o senhor pegou moldes da família ou alguém o ensinou?
Quem me ensinou foi Deus. Eu não devo favor nesse trabalho meu. O meu pai me ensinou a fazer outras coisas como eu já falei, mas era tudo diferente. Esse trabalho que eu tenho só devo a Deus. Mas claro que eu também procurei, fui eu que caprichei, perdi muitas noites de sono, perdi muito horário de festa, de ir pra uma missa só fazendo modelo. Comoéoseucotidianohoje.Aindatrabalhamuito?
Meu dia a dia é a melhor coisa do mundo. Me acordo às quatro horas da manhã. O almoço é na hora que dá certo. Tem dia que eu vou almoçar às três horas da tarde. Tem dia que eu esqueço de almoçar. Só faço jantar, porque o povo não deixa, fica chamando, e eu tenho que atender o pessoal, porque a gente só é gente com gente encostado. Aí fico até oito, nove da noite, enquanto tem gente ‘pra’ conversar eu ‘tô’ por aqui. Quando não tem eu ‘tô’ na oficina fazendo algumas peças, porque a melhor coisa que tem é você inventar alguma coisa escondido, pra ninguém ‘tá’ lhe perturbando.
O senhor passa praticamente o dia na oficina, fazendo seus moldes?
É. Eu acho melhor tá na oficina do que tá na loja vendendo. Eu só vendo as peças com pena. Dá vontade de chorar quando eu faço uma peça no capricho e vou vender. O cliente achando caro e eu com vontade de não vender.
Tem muita gente imitando suas peças. O senhor se preocupa com a concorrência?
Eu não me preocupo porque eu acredito muito em Deus. E quando ele te dá uma coisa é pra sobrar. Não tenho essa besteira. Eu não gosto porque é uma coisa que eu fiz com todo sacrifício e o cara chegar e toma. Não tem que goste. Mas se eu te ensinar a fazer uma peça, você pode continuar fazendo que eu assino embaixo. Sem nenhum problema. Eu hoje sou professor, mas eu gosto de assinar também as peças que eu ensino. Mas se você me roubar um molde, eu não gosto não.
Mestre Espedito reúne sua casa, oficina e museu num só complexo em Nova Olinda
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O senhor tem a fama de cobrar muito caro suas peças… É porque assim. Às vezes tem pessoas que dizem “eu vou comprar uma peça lá em seu Espedito”, outros falam “homi aquele homem é muito é careiro, é careiro demais”. Eu não sou careiro. É porque eu faço o que é bom. O que é bom a gente só faz com material bom e material quando presta não se compra barato. Então, como é que pode vender barato? E o trabalho? E outra coisa: o trabalho que é feito à mão é diferente do trabalho feito à máquina. Cada peça é uma peça. E também eu perco muito tempo fazendo os modelos. Se eu fizer uma dúzia de bolsa hoje, amanhã eu não quero mais esse modelo e já faço outro. Por isso que eu perco muito tempo fazendo modelo e molde. O senhor é criticado?
A crítica é demais. Às vezes, tem gente que faz a peça e diz que fui eu que ensinei. Ou que já trabalhou comigo por muito tempo, ou fui eu que dei a oficina. Dizem que eu só tenho a carestia, que eu não sou essas bondade toda. Mas isso faz parte da vida.
Há dois anos, o senhor tem um projeto de desenvolver selas, tipo proteção pra motos em couro.
Quem te disse isso?
Uma fonte minha?
Eu vou ter que puxar a orelha dela, porque eu disse que era segredo (risos). Ainda hoje eu tô com esse pensamento e aqui e acolá eu dou uma amputada nos moldes pra ver se vai dá certo, porque eu já inventei o cinto de segurança, mas não deu certo, mas a sela eu acredito que vá dar certo. Uma sela bem bonita. É, porque assim, a matéria-prima da sela não é essa mesma que a gente faz, porque a gente que vai andar pega chuva e o couro não é muito é pra levar chuva. Molhado ele resseca. O meu não tem problema, porque eu sei fazer o trato do couro, ele nunca resseca. Então, eu tô tentando descobrir como eu vou fazer, não é sintético, não é plás- tico, não é nada. Eu quero fazer com um material que é segredo, mas eu acho que vai dar certo.
Voltando ao ofício exercido também por sua família. Seu pai desenhava nas selas e nos gibões que confeccionava. O senhor mudou de forma radical ou ainda preserva as linhas criadas por sua família?
É assim, quando meu pai trabalhava com sela, ele já fazia um monte desses desenhos, só que ele não abria o desenho pra botar outra cor, fazia tudo de uma cor só. O desenho que ele fazia, por exemplo, se ele fosse fazer um ‘S’, uma ponta de ‘S’ assim, ele fazia só na costura, mas eu resolvi tirar o pedaço e colocar outra cor pra ficar colorido. Algumas dessas selas, ainda hoje eu tenho peças que meu pai fazia. Ele fazia essas costurinhas, acompanhando esses ‘S’, coraçãozinhos, ele fazia em gibão e sela. Quase tudo ele fazia. Também naquela época isso era muito grosseiro. O caba só queria pra andar no mato. Quando eu precisava de dinheiro, precisei puxar pelas ideias pra ver se o povo comprava, porque a dor é que ensina o caba a gemer. Depois eu fiz a sandália do lampião pra Alemberg Quidins, ali da Casa Grande, só que eu já aproveitei o molde que meu pai tinha deixado. E eu fiz só que do meu estilo. Inovei muitas coisas, a bixa ficou bonita pra caramba. Aí Alemberg colocou no pé, foi fazer reunião até fora do Brasil. Ele chegava lá, sentava, às vezes botava o pé bem em cima da mesa. Que era para o povo ver a sandália que ele ‘tava’ calçado. E o povo só tirando retrato. Quando ele chegava era cheio de encomenda pra eu fazer. Alemberg foi uma pessoa que me ajudou muito, divulgando a sandália do cangaceiro que é a que faz mais sucesso.
Seu pai teve também contato com os cangaceiros. O contato que meu pai teve com o cangaço foi porque ele fez a sandália pro Lampião. A sandália era quadrado que era pra ninguém saber se ele tava indo ou tava voltando. A do Alemberg eu não fiz o solado quadrado, fiz normal mesmo. A peça em cima eu fiz do mesmo estilo, mas eu não fiz o solado quadrado porque é ruim de andar, sabe?
O senhor sabe como era a vida dos cangaceiros? Seu pai lhe contava muitas histórias daquela época?
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Não sei. O que eu sei da história dos cangaceiros, é que meu pai tava trabalhando umas nove da noite numa sela campeira, no alpendre da casa da fazenda com a lamparina acesa, que era para no outro dia ir pegar boi com os colegas. Meu pai tava fazendo uma sela pra não passar vergonha, né? Porque naquela época um vaqueiro tinha inveja da vida do outro. Eu era um vaqueiro, você era um vaqueiro e um outro, somos amigos, nós três se juntava. Mas dentro do mato pra pegar um boi cada um queria pegar primeiro pra ganhar a fama de um bom vaqueiro e é o que eles faziam... E nesse dia, chegou um caba feio, “arrupiado”, o chapéu cheio de estrela e ficou observando ele trabalhando. Aí disse: “como é o nome do senhor? Meu pai disse: “Raimundo Pinho de Carvalho, mas o pessoal só me conhece por Raimundo Seleiro, por causa da profissão”. E o caba perguntou: “Seu Raimundo se eu trouxer um molde de umas alpargatas o senhor faz pra mim?”
Todo dia tem gente, mas tem alguns dias que vem mais do que os outros.
Vem duzentas, trezentas pessoas, vem colégio do Rio de Janeiro, vem de Fortaleza. Esses dias eu tô esperando dois grupos que vem de São Paulo.
O senhor já tinha nascido nessa época?
Eu não tinha nascido ainda, isso foi em 38, eu nasci em 39. Essa história era meu pai que contava pros colegas e eu ficava escutando... E ai o meu pai respondeu: “eu não sou bom em calçado não, mas eu posso arriscar fazer”. Aí ele disse: “Pois, o senhor me espere uma hora, uma hora e pouco, que eu vou buscar o modelo pra você fazer”. E o meu pai ficou esperando... O caba era tão feio e desajeitado que ele disse que deu vontade de fechar a porta e sair simbora... Quando chegou tirou de dentro do patuá um papel rabiscado com o modelo. Meu pai achou estranho porque o solado era quadrado e questionou:“Mas por que isso aqui, esse solado desse calçado?” Ele disse: “Não, seu Raimundo, num pense em nada não, faça do jeito que tá aí e dentro de vinte e nove dias eu venho pegar. Depois disso, ele se foi. Meu pai estudou o modelo porque não era um molde, era só rabiscado, aí fez as alpercatas e com vinte e nove dias ele chegou. Ele recebeu e achou muito bem feita e disse: “se o senhor adivinhar pra quem você fez essa peça aqui, eu vou lhe pagar o valor de dois par”. Aí meu pai disse: “eu fiz foi pra você, você que mandou eu fazer”. E o caba respondeu: “você fez pro coronel Virgulino, e eu não posso demorar muito, diga logo quanto é que eu tô vexado”. E foi metendo logo a mão no bolso. Meu pai disse: “não num foi nada não, pode levar”. E não cobrou. Mas depois ele mandou uns punhal de presente, até hoje eu tenho os punhais guardados.
Só para Lampião mesmo?
Só pra Lampião! Ele não tinha o que fazer, a vida dele era naquela caatinga. Aí depois eu fiz a da Maria Bonita e dei pra Violeta Arraes. Ela colocou no pé e só tirou quando morreu, quando se acabava uma botava outra. Ela adorava.
Como o senhor teve contato com Violeta Arraes?
Ela só vivia aqui brigando com eu. Por que brigando?
Porque eu era desorganizado. Não tinha essa lojinha, não. Eu tinha só a oficina e as peças eram jogadas. Violeta dizia: “um serviço desses, seu Espedito, não faça isso, faça isso não que é um trabalho muito bem feito”. E eu dizia: “não, mas é assim mesmo”. E ela dizia: “não, não faz isso, não”. Ela só vivia aqui, vinha duas, três vez na semana olhar eu trabalhando e comprava pra dar aos amigos, me encomendava muita coisa. Eu tenho que agradecer a Deus e a Violeta Arraes que me ajudou muito, brigou muito comigo e eu peguei a pisada mais aprumada. A amizade com a Violeta foi de quanto tempo?
Rapaz, eu num sei não… Ela morava na França e veio para o Ceará ser secretária de cultura, não foi?
Foi, mas eu peguei esse conhecimento com ela quando ela veio fazer o teatro da Casa Grande, ela só vivia lá. Foi em oitenta!
Depois disso não soltou mais?
Até quando ela morreu ainda veio por aqui, depois de morta cremaram, né? As cinzas dela passaram uma hora na Casa Grande, passou uma hora aqui em seu
Pierre e os dois meninos dele (marido e filhos de Violeta Arraes).
O senhor teve algum contato com os desenhos de Ariano Suassuna?
Aquele homem… Uma vez eu fui pra uma reunião em Brasília e ele tava lá. Conversamos muito, mas eu não me lembro se ele veio aqui, eu não tô lembrado. Nos encontramos numa reunião lá em Brasília. E outra vez na Fenearte, no Recife. Era gente boa demais. O senhor é convidado para vários eventos, o senhor gosta de viajar, sair daqui?
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Não! O que eu gosto é de trazer o pessoal pra aqui, porque eu sou uma pessoa que se eu pudesse eu não via ninguém sofrer perto de mim. Nova Olinda é uma cidade carente, que a gente precisa trazer o povo que tem dinheiro pra gastar aqui. Porque assim, se você vem de Fortaleza pra fazer uma entrevista comigo ou com outra pessoa, você vai ter que dormir, almoçar, merendar, beber cachaça, fumar, você me compra uma bolsa ou uma sela. Vai ali na Casa Grande, almoça, merenda, dorme. Você tá ajudando Espedito Seleiro e tá ajudando o pessoal da região. Por que é que Nova Olinda tá merecendo o nome de Nova Olinda? Porque a gente capricha pra isso. Se a gente não chamasse o pessoal pra dentro de Nova Olinda, esse pessoal ia pra Juazeiro, Crato, pra Santana, ou pra qualquer cidade por aí a fora. E Nova Olinda tava ficando pra trás. Nova Olinda tá precisando de mais melhoramento, mas à vista do que era tá uma beleza, o povo que tem dinheiro vem pra aqui e gasta.
O senhor nunca se meteu com política?
Deus me livre! Nunca foi convidado? Muitas vezes. Os políticos é todo dia.
Quais políticos?
Os políticos daqui! Eu num vou dizer nome, não. Eu num gosto disso (risos). A gente tem as amizades da gente, mas fora de política. Porque eu não quero saber de política assim, eu não sei se fulana é do PT, do PSDB, num sei de onde... Eu não sou de ninguém. Eu tenho o povo que eu voto neles, eles nem acredita porque eu não falo nem o nome deles também.
Muita gente famosa no Brasil já apareceu por aqui?
Agora você me perdoe, porque eu não posso falar. Pra mim todos nós somos igual. Eu não considero ninguém melhor do que ninguém por ser mais famosa. Pra mim, você me comprar uma peça de dez reais e outra pessoa me comprar de cinquenta mil, o dinheiro dela é a mesma coisinha que o seu. Eu não gosto de falar. Mas esse pessoal mais famoso, quando eles não vem aqui eu vou lá, que eles me convida.
O senhor foi até convidado pra participar de programas de televisão...
Eu já fui convidado pros programas, bem uns dois ou foi três. Eu já fiz peça pradesfile,dizemqueéodesfilemais famoso que tem no Brasil, o São Paulo Fashion Week, e eu fiz muitas peças. E depois a gente fez pra outro desfile, pra novela, pra filme, pra um monte de coisa.
Como é o movimento aqui diariamente? Vem mais gente de fora ou mais gente da região?
Rapaz, tem dia que nem se pode comer, porque não deixa. A gente nem pode chamar o pessoal pra almoçar porque é gente demais e o almoço não dá ‘pra’ todos. Todo dia tem gente, mas tem alguns dias que vem mais do que os outros. Vem duzentas, trezentas pessoas, vem colégio do Rio de Janeiro, vem de Fortaleza. Esses dias eu tô esperando dois grupos que vem de São Paulo. Eles agendam?
Agendam. Sabem que espaço é pouco e são educados. Faz os grupos de dez ou de vinte, entram uns e os outros fasta e vem outro...
Quais são as peças que o senhor mais faz, as que dão mais trabalho, e as que o senhor faz com mais carinho?
Essa resposta é a que eu acho melhor de responder, porque se fosse pra eu fazer só o que eu gosto de fazer, eu só fazia sela e gibão de vaqueiro. Tanto que as meninas brigam, que quando elas vão pra um evento representando o Ceará, eu digo que tem que levar uma sela e uma roupa de couro. E aí se danam, porque não querem levar, e eu digo que se não levar num vão de jeito nenhum. Porque é uma coisa que eu comecei fazendo, fui crescendo, fui virando adulto e nunca parei, na idade que eu tô.
Qual idade?
Setenta e sete.
Um garoto.
(Risos) tem dias que eu penso que só tenho dezoito. Tem dias que parece que tenho cento e cinquenta anos.
Tem ainda hoje que compra sela e gibão?
Eu tenho uma sela que a mulher compra, o doutor compra, o padre compra. Porque essa menina aqui, hoje ela pode ser jornalista, mas o pai, o avô, o bisavô já foi vaqueiro, já foi cigano, já foi tropeiro, nasceu no sertão, conhece essa vida de cangaceiro e tudo. Aí quando ela vê uma sela dessa aqui, ela diz: “eu não vou usar essa sela nem a minha família, mas vou comprar pra decorar, se lembrar do meu pai, do meu avô. E acaba comprando o chapéu de couro, sapato de vaqueiro, a sela, o gibão, compra tudo. Ontem veio dois doutor, cada um com- prou um gibão e saiu vestido nele fazendo farra, esse fí de uma égua num vai sair pro mato, num’ vai. Então, as pessoas consomem esses produtos como a memória do antepassado?
Do antepassado, pra se lembrar. Se eu tivesse parado de fazer, o que é que eles ião ver? Uma menina dessa não saberia o que era uma sela, o que era um gibão, um chapéu de vaqueiro, um sapato, uma sandália de Lampião. Como é que sabia, como era? Se eu não tivesse feito a primeira pra mostrar, né?!
Fale um pouco do seu casamento?
Você tocou numa coisa que eu gosto de falar, porque quando eu era solteiro eu dizia: “a mulher pode vir de ouro ou prata, que eu não caso é nunca, porque eu não gosto de casamento”. Mas quando eu vi a mulher que eu sou casado hoje, aí num teve jeito não. Eu tinha outras namoradas, mas em um ano e pouco aconteceu o casamento, foi em sessenta, já tá com cinquenta e tantos anos. Qual o nome da sua mulher?
Francisca de Brito Carvalho. Mas hoje ela é paralítica, deu um tal de AVC, que ô doença infeliz. É uma pena, foi a pessoa que me ajudou muito, porque quando eu começava a trabalhar ela tava no pé, me ajudando em tudo que eu tava precisando. Ela num pode mais fazer nada, mas ainda hoje quando olha assim pras coisas dá vontade de fazer as pecinhas que ela fazia,e ela começa a chorar. Eu digo: “se conforme, porque isso é coisa mandada por Deus, o que você tinha que fazer já fez, pronto”.
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E os filhos?
Ela teve nove, escapou seis e agora tô com cinco. O mais velho morreu tá com dois mês. Quando eu comecei a criar meus menino, junto com meus irmão, eu achava difícil dar de comer e hoje eu acho pouca gente pra trabalhar. Era pra ter nascido bem uns trinta pra eu ter quem ajudasse (risos).
Todos são seleiros?
Todos. É neto, é sobrinho, é primo, é irmão. Tem irmão com a cabeça branca, assim que nem eu, que até hoje trabalha mais eu.
O senhor está montando um complexo de comércio lojas, museu. Como é que é isso?
Eu acho que ainda não tá do jeito que eu quero.
Ainda vou caprichar, porque eu quero deixar isso plantado pra minha família, até o mundo se acabar, eles manter isso. Quando Deus quiser.
O senhor acredita que o mundo vai se acabar?
Só pra quem morre.
E Deus nessa história?
Eu acho que o mundo somos nós. E se acaba sim, pra pessoa que Deus chamar.
O senhor tem medo que Deus chame?
Tem nada (risos). É tanto que eu tô fazendo uma casa lá no cemitério praeu ir morar daqui uns dias.
Qual a maior vaidade do senhor?
Eu já gostei muito de dançar, brincar e farrar, mas eu não posso dizer as outras coisas que eu gostava, mas hoje pra ser santo só falta ir pra igreja (risos).
Qual a maior riqueza do homem?
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A saúde!
E a do sertanejo?
A do sertanejo ou pode ser quem quer que seja, a maior riqueza que nós temos é a saúde, porque senão fosse, você não gastava tudo que tinha pra se livrar de uma doença. O dinheiro é bom, mas não é tudo. A saúde é melhor do que tudo, eu acho.