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RAIMUNDO MARTINS
aimundo Martins Filho, 71 anos, está desde 2010 na Universidade Federal do Cariri como Professor Visitante Nacional Sênior/CAPES/UFC. Com uma vasta experiência no campo acadêmico, Martins Filho é um obcecado pela área que abraçou desde cedo: a medicina veterinária. As pesquisas do professor Martins são voltadas para a área de Zootecnia com ênfase em genética e melhoramento animal. Arguto observador da cena universitária brasileira, ela fala, nesta entrevista, sobre os desafios que superou para atingir suas metas seja como professor, pesquisador ou gestor. Aponta problemas e sugere soluções diante do atual quadro histórico vivenciado pelas universidades brasileiras, particularmente a UFCA. Para o professor uma “oportunidade que não é dada a todo o ser humano. Vocês estão construindo uma universidade nova, pensem nisso”. Ele é um incansável batalhador pela criação do curso de Veterinária na UFCA, curso, segundo ele, de maior importância para a questão da saúde pública na região para combater zoonoses e o controle de alimentos, principalmente. “São mais de duzentas doenças que os animais transmitem para o homem”, assinala. Diz, ainda, que a universidade para ter sucesso tem que aliar a tradição e a inovação. “Não dá para inventar a roda novamente”. Leia a seguir trechos da entrevista concedida por Martins Filho ao Memória Cariri.
Professor, como foram seus primeiros contatos com a aventura acadêmica?
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Eu sou literalmente do Século passado. Sou do interior. Meu pai de Pereira e minha mãe de Pacoti. Quer dizer, sempre tive uma ligação com o campo, com questões que hoje podemos chamar de agropecuária. Naquela época, anos 60, já tinha sido criada a Faculdade de Veterinária do Ceará. Eu estudei no Liceu, um ensino médio de excelente nível, e, após concluir, optei por fazer o curso de veterinária. Por circunstâncias políticas daquela época, da ditadura militar, percebi que não tinha muito espaço para trabalhar no Ceará, embora o então governador Virgílio Távora investisse bastante na agricultura. Mas havia participado do Diretório Acadêmico, enfim, da luta contra a ditadura militar. Daí, fui procurar emprego no Piauí.
O senhor foi então banido do Ceará? Não, banido não. Banido eu não digo. Hoje todo o mundo diz que foi preso e torturado. Esse não foi o meu caso. O problema é que como tinha uma atividade na política estudantil, fiquei com o nome indexado. E como naquele tempo as no- meações eram realizadas pelo governo, nossas chances eram mínimas.
O início da carreira foi, então, no Piauí...
Totalmente. Comecei trabalhando na Secretaria de Agricultura do Estado do Piauí, numa pequena cidade, São Miguel de Tapuio. Eu era a única pessoa com curso superior. Depois, fui trabalhar em Piripiri; e em seguida em Teresina. Em meados da década de 60, na Universidade Federal do Piauí – UFPI foi criado o Departamento de Ciências Agrárias no qual ingressei como professor. Abracei a causa e me dediquei exclusivamente ao magistério. Fiz o percurso da especialização, depois mestrado na Universidade Federal de Minas Gerais e doutorado na Universidade de São Paulo (USP). O pós-doutorado foi no exterior, na Universidade de Estudos de Florença - Itália.
Como era a universidade naquela época?
Não era muito fácil entrar na academia porque as universidades e as possibilidades eram restritas. Tudo era muito difícil. Mas me envolvi com o ensino. Venho de uma família de professoras. Minha mãe e tias eram professoras. Então, fui criado nesse ambiente, o que me levou, acredito, à docência. Além disso, meu pai, policial militar, praticamente alfabetizou-se sozinho, mas tinha um gosto muito grande pela leitura. Não tínhamos tevê, com a Internet nem sonhávamos, e nossa maior atividade era ler. De gibis a livros.
Além dos livros, o cinema naquela época –anos 60-70 – era um impulsor cultural, principalmente o da contracultura, com uma linguagem longe dos padrões norte-americanos...
Na minha primeira fase, obviamente eram os filmes de faroeste. Depois, entrei em contato com a famosa fase do cinema francês e italiano. Tínhamos o Cinema de Arte, no Diogo, em Fortaleza. A juventude da época tomava contato com o melhor do cinema europeu. Voltando a sua carreira universitária...
Não imaginava o ingresso na academia de imediato. Ingressei no governo do Estado do Piauí, onde desenvolvi alguns projetos. Nós implantamos um escritório técnico da Associação Brasileira dos Criadores de Zebu, para o registro genealógico e estudo do gado Zebu. Conheci o Piauí inteiro, detalhadamente. Lá morei por 22 anos. Meus filhos nasceram lá. É um Estado com uma agropecuária de bom nível e tem um povo maravilhoso. Já professor, na UFPI, surgiu uma vaga na Universidade Federal do Ceará, para a qual fui convidado a transferir-me, com o propósito de atuar na pós-graduação stricto sensu. Tentei a transferência, mas meus colegas da UFPI, talvez por generosidade, entenderam que eu era mais necessário lá, no Piauí, e recusaram a minha transferência. A UFC abriu, então, um concurso para o preenchimento da vaga. Fiz o concurso, passei e me demiti da Universidade Federal do Piauí e ingressei na UFC em 1992.
O seu desejo era, então, voltar as suas origens, ao seu Estado?
Não pelas origens, mas por uma questão puramente acadêmica. Eu havia concluído o doutorado e não tínhamos na Universidade Federal do Piauí sequer uma especialização na minha área de atuação. Voltei do doutorado com muitas idéias. Na USP tinha um departamento de genética – comum a todas as espécies com diferença apenas na aplicabilidade - que tinha foco na área animal, no melhoramento genético animal, principalmente de raças. Na Federal do Piauí não havia condições necessárias para continuar minha vida acadêmica de maneira mais produtiva. Foi quando surgiu a possibilidade de ingressa no Departamento de Zootecnia, da Universidade Federal do Ceará. Inclusive para ser professor do mestrado. Vi nisso uma chance profissionais depois de 22 anos no Piauí. Por mais que eu ame Fortaleza, não foram as suas belas praias que me fizeram voltar. Foi uma questão puramente acadêmica. E acertei, pois tive a oportunidade de trabalhar numa universidade mais antiga, mais desenvolvida que a do Piauí, que, na época, ainda era muito jovem. Enfim, encontrei espaço, oportunidade de firmar convênios, inclusive internacionais, como por exemplo, com um grupo de professores de Florença, na Itália, onde fiz meu pós-doutorado em 2002. Foi uma oportunidade de crescer academicamente.
Como era a pesquisa naquela época. Aliás, qual foi a sua maior contribuição de sua pesquisa de doutorado?
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Havia sido defendida recentemente uma tese na Universidade da Carolina do Norte, com um estudo inédito aplicado às raças de gado europeias, ou seja, a associação entre as características reprodutivas do macho e correlações genéticas que poderiam existir com as suas filhas. Realizamos estudo semelhante com o gado zebu, de origem indiana, também inédita. Ou seja, verificamos se essa possibilidade genética também se manifestaria nas raças zebuínas brasileiras. Desenvolvemos a pesquisa e a publicamos numa revista internacional. Foi o primeiro estudo no mundo em bovinos zebuínos, hoje corriqueiro, que comprovou que reprodutores machos transmitem características de fertilidade e reprodução, limitadas ao sexo, para as suas filhas. A pesquisa foi feita com muita dificuldade. A comunicação entre as universidades era bastante difícil. Digo que pesquisar naquela época era, literalmente, pesquisar. Hoje você acessa tudo num clique.
Quer dizer, naquela época foram muitas as dificuldades para a realização da sua pesquisa...
Eu sempre fui meio afobado com as coisas que faço. Guardo outras coisas, trabalho eu faço logo. Pode ser uma espécie de comodidade para me ver livre. Na verdade, na época não havia limites para o doutorado. Passava - se seis, sete anos pesquisando, mas desenvolvi a pesquisa e conclui o curso em dois anos e quatro meses, até porque trabalhei com dados preexistentes, de criadores organizados, mediante o uso de estatísticas em programas desenvolvidos pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Apliquei os fundamentos da genética, da estatística e da informática e obtive as respostas corretas.
Voltando um pouco para nossa realidade, o semiárido nordestino, diante do insistente drama e da indústria das secas. Como se dão as relações entre a academia e os produtores – grandes e pequenos da região?
A relação entre o produtor e o professor do setor agropecuário é um tanto específica. Contemplamos todas as nossas ações no aspecto de produção desde a familiar, o criador que tem algumas vaquinhas no quintal para alimentar a família, até grandes criadores como temos na região, tanto em produção de leite como de carne, como em Barbalha, Crato, Porteira, e Missão Velha, por exemplo. A utilização de tecnologias, algumas até sofisticadas, já chegou aqui, sendo necessário que a universidade trabalhe com essa nova realidade. O que não se pode é ter apenas um foco – nem só no grande, nem só no pequeno produtor. Não podemos formar um profissional limitado.
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Quais as dificuldades e paralelos entre essas duas realidades?
Temos atualmente alguns problemas de logística. Os produtores de maior porte, onde as pesquisas seriam feitas com maior facilidade, não têm agenda livre, apenas nos finais de semana e feriados. Ai vem à incompatibilidade com a universidade de hoje – o carro não pode ser usado nem nos finais de semana, nem em feriados para deslocamentos de professores e alunos. Isso é um problema. O criador está cedendo sua propriedade para pesquisa, e quer a contrapartida dele, ou seja, participar dos estudos efetuados. Uma pura questão administrativa atrapalha todo nosso trabalho.
Mas esse deve ser apenas um, entre os muitos problemas, da universidade pública...
São problemas que se arrastam. Fui aluno e professor de universidade pública e sei muito bem como se dão as questões. Na época da ditadura havia muitas ingerências. Hoje também existem muitas ingerências. Ingerências políticas?
Sim, ingerências políticas e administrativas. Não precisa detalhar, todo o mundo sabe disso, faz parte do sistema. O que importa, no entanto, é que na universidade, principalmente uma universidade jovem como a nossa, é que as pessoas assumam o papel de professores e fundadores de uma IES. Então, as pessoas precisam pensar nisso. E também se despirem de vaidades, mesmo sendo a academia um espaço da divergência, o que é comum e natural.
O senhor está falando especificamente da UFCA?
Não só, pois essa questão se estende a qualquer universidade. Trabalhei na Universidade Federal do Ceará, que é uma das melhores universidades do País. Ela passou por uma fase de construção, até hoje tem inúmeros problemas. Na Universidade Federal do Piauí, tive a oportunidade de participar mais diretamente, pois quando entrei era uma universidade muito jovem. O que temos que entender é que existem áreas de inovação que são excepcionalmente bem-vindas. Na me- dicina humana, por exemplo, você descobre um novo acesso cirúrgico, o que facilita, aperfeiçoa e possibilita resultados positivos para a sobrevivência do homem. Mas isso é feito em cima de profundos conhecimentos de anatomia, fisiologia e com o uso de biotécnicas, certo? Então, não é possível você abolir práticas de ensino de determinada área porque elas são consideradas muito antigas ou tradicionais. As peças vão se justapondo, entre a inovação e a tradição.
Este é um problema da Universidade Federal do Cariri?
Eu não estou me referindo apenas a UFCA. Você está me perguntando sobre a minha experiência de vida. Estou falando de questões que se colocam desde o Século passado até hoje nas universidades públicas. Mas estamos vivendo na UFCA este problema entre inovação e tradição?
Estou aqui como Professor Visitante da CAPES, com uma bolsa que se encerrará no semestre que vem. Estou na UFCA há sete anos e acompanho, sofro e me angustio porque faço parte também desse processo de criação. Eu, agora, aos 71 anos poderia relaxar. Agora, são questões contínuas. Desde que me aposentei, em 2003, nunca fiquei um dia sem trabalhar. E nesse tempo eu já trabalhei fora do Ceará, em dois Estados diferentes – no Piauí e em Mato Grosso, onde fui pró-reitor da UNIDERP, uma grande universidade particular. Enfim, tive a possibilidade de conhecer os vários aspectos das IES, tanto públicas como privadas. Quero deixar claro que não se trata de mais conhecimento ou de autoridade intelectual. Na academia a gente só aprende fazendo ou perguntando. Você já viu cursinho para ser reitor? Não. culdade Veterinária do Ceará em 1966 e me formei em 1969. Naquela época já havia a promessa do Hospital Veterinário. Sabe quando foi inaugurado? O ano passado. Eles fizeram duas alas de atendimento clínico –cirúrgico, que supriam as necessidades de um hospital.
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Ora, isso se aprende na prática. Tem coisas que só se aprende fazendo ou perguntando a quem sabe, quem já fez, pela tentativa do erro e acerto. A gente abraça causas para defender. Eu desde o final de 2010 venho abraçando a causa da criação do curso de Veterinária na Universidade Federal do Cariri. Não por sonho, ideal, romantismo ou vaidade. Já participei da criação desse curso na Federal do Piauí e coordenei as comissões que criaram os cursos de Zootecnia da UFC e da UFPI. Então, o que me move é a importância social da Veterinária. Não estou me referindo apenas ao atendimento dos animais, mas sim a questão da saúde pública, as zoonoses e o controle dos alimentos. Só existe um curso de Veterinária em instituições públicas do Ceará, o da UECE, onde me formei há quase 47 anos. Agora, temos um curso em Sobral, outros em Caucaia, Quixadá e agora em Juazeiro do Norte, mas todos particulares. A UNIFOR de Fortaleza, fez o primeiro vestibular para seu curso de Veterinária no ano passado com cerca de 70 candidatos para uma vaga, com o mensalidades quase iguais as da faculdade de Medicina. Existe demanda, existe mercado. Se nós formos esperar para as coisas estarem cem por cento, tudo pronto, certinho, nunca criaremos esse curso na UFCA. Não conheço na minha trajetória acadêmica nada, ou pelo menos nunca participei da criação de algo, que já estivesse pronto. Participei, sim, de todo o processo de construção. Por que é tão complicada a criação desse curso?
Isso não impediu o sucesso do curso, que já há alguns anos tem um doutorado dos melhores do País – o de Reprodução Animal, com nota 6 do Capes.
O senhor já teria um custo estimado para a implantação do Curso de Veterinária da UFCA?
Apenas do ponto de vista da implantação, com cerca de dez milhões de reais, acredito, poderíamos implantar nosso curso. Isso utilizando a estrutura já existente do CCAB, no Crato, inclusive, disciplinas de Laboratórios, salas de aula, etc. Professores dividiriam disciplinas comuns. O curso traria ainda disciplinas comuns à área de Agronomia. Poderíamos aproveitar laboratórios já existentes no curso de Medicina, em Barbalha e do campus de Juazeiro. Mas veja bem, isso que estou fazendo não é uma crítica, mas um esclarecimento. É claro que há ainda a demanda de vagas para servidores professores e técnicos administrativos, além dos custos de manutenção.
As pessoas pensam que se tornam professor quando o nome sai no Diário Oficial. Não é bem assim. Ora, isso é uma coisa contínua. Demorase muito ou quase nunca se chega a ser um bom professor.
Pensou-se também, além do Crato, em Lavras da Mangabeira..
Sim, é complicado. Mas é preciso empenho, teimosia, garra. Eu entendo e respeito à decisão da UFCA, que é de prudência. Mas é preciso desmistificar a questão do curso – laboratórios, hospital veterinário, etc.
Lógico que o curso, como outro qualquer, requer alguma estrutura. Mas o que exige não é a construção imediata do hospital veterinário, mas sim que haja um projeto para ser desenvolvido. Aliás, os projetos já existem. Só para você ter uma idéia – eu ingressei na Fa-
Não, isso é o que se chama de confusão da informação. Com a aprovação do curso de Veterinária pela UFCA, antes de existirem essa série de problemas no Brasil com contingenciamento de verbas para educação, surgiu a idéia de se aproveitar uma escola técnica do Governo em Lavras. Lá poderíamos estabelecer a área de grandes animais e de cursos de formação técnicas e de especialização. O curso de graduação seria sempre aqui, no CCAB, no Crato. Haveria uma junção de interesses comuns. Isso sem falar que estamos situados numa região geograficamente privilegiada entre Ceará, Pernambuco e Paraíba e Piauí. Quero deixar claro que não há nenhuma má vontade da gestão da UFCA em torno do curso de Veterinária. Não existe descaso. O que precisamos agora é fortificar nossas ações.
Mas a UFCA, num certo sentido, privilegiou outros cursos e criou ainda dois campus – de Icó e Brejo Santo...
Longe de querer fomentar divisões – sei que elas existem -, é atentar para alguns problemas das ciências da terra. A questão é não perceber, muitas vezes como é importante para uma comunidade, o curso de Veterinária. Sei que o investimento é menor nas carreiras sociais, de humanidades e que alguns cursos não exigem equipamentos, laboratórios mais sofisticados, etc. Sei também que muitos imaginam que o espaço da veterinária é apenas para o tratamento de cães e gatos. Você já teve a oportunidade de visitar um matadouro, desses tão comuns espalhados pelos municípios cearenses, sem a mínima condição de higiene? Se você visitar vai preferir ser vegetariano imediatamente. O avanço de animais abandonados cresce em todo o País. Isso é um grande problema. São transmitidas cerca de 200 doenças de animais para os homens. A produção de carne e de leite e suas comercializações não tem controle em muitas regiões no Brasil. A brucelose, tuberculose, raiva, leptospirose, enfim, toda uma extensa relação de doenças que podem ser transmitidas pelo animal. Isso é uma questão grave de saúde pública. Por isso, a importância e o impacto do curso de Veterinária na nossa região.
Qual a situação da profissão no Cariri?
Na região do Cariri existem excelentes veterinários, mas que atuam, em sua maioria , em clínicas particulares, nos pets, o negócio de pequenos animais. Dados de 2015 apontam que esse negócio gerou 12 bilhões de reais no País. Só perde em consumo de ração animal para os Estados Unidos. Estou falando de toda a estrutura do pet – desde a comercialização de animais, passando pelo atendimento clínico, venda de ração até as butiques e festinhas para cães.
Mas a maior parte dos veterinários se volta para esse negócio...
Realmente. E não há como fugir disso, pois a cada ano mais aumenta a demanda por atendimentos e produtos pets. Na Itália, desde 2000, se não me engano, é permite o abatimento de até 20% das despesas com animais de companhia com atendimento veterinário. O problema é que lá existe controle, ao contrário do Brasil. É antipático falar isso, mas lá as pessoas ficam com seus animais até a morte dos mesmos. O que não ocorre no Brasil. Aqui se pega ‘n’ cães e se abandona “n + 1”. Isso é o que cria um dos problemas de saúde pública. Hoje existem programas internos, por exemplo, para castração de cães e gatos. Uma ação coordenada a das prefeituras da região com o Serviço de Controle de Zoonose do Estado e organizações não governamentais sérias, poderia estabilizar o problema. Um trabalho sistemático, ordenado, com um mínimo de condições para o controle da reprodução, seria suficiente para estabilizar a proliferação de animais abandonados. O curso de Veterinária criaria uma estrutura com a ação de estudantes coordenados por professores com o mesmo objetivo. Outra coisa é a conscientização das pesso- as que se deixam levar pela emoção ao adotar um cão ou gato e, mais tarde, os abandonar. Enfim, seria um leque imenso de cooperação. Professor, mudando um pouco de assunto.
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O senhor trabalha no ramo da genética para melhoramento de animais. Qual a sua relação com a religião?
Não vejo antagonismo nenhum entre ciência e religião. Sou católico por formação e, hoje, mais do que antes. Perdi uma filha ha quatro anos, que me deixou três netos gêmeos. Eu já estava aqui. Foi em 2013 e isso foi muito duro. Tive que conviver com essa realidade, a questão da morte. A perda nos leva para a espiritualidade maior. A ciência é compatível com as religiões. Não estou falando em crendices, exageros, fanatismo.
O fanatismo, na minha concepção, é a negação da inteligência.
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O senhor sempre se dedicou a academia como professor, gestor, organizou cursos de mestrado e doutorado em diversas universidades, enfim, o que resta fazer?
Olha, confesso que o que eu deixei de fazer foi muito mais por limitação minha do que por obstáculos criados pelos outros. Não concordo muito com essa história segundo a qual “não fiz algo porque não permitiram”. Quando realmente a gente quer fazer, a gente faz. Eu não tenho muitas queixas com relação ao mundo restrito da academia. Nela, pelo fato das pessoas terem um nível de formação maior, as vaidades afloram de maneira mais forte. São comuns as divergências, criação de grupos de interesse, etc. Isso permeou toda a minha vida acadêmica. Em todas as instituições têm grupos. Só que estes grupos não podem sobrepor-se à instituição, certo? Sobrepor no sentido de domínio. Não estou me referido a UFCA. Fiz mestrado e doutorado em duas das maiores universidades do país e o pós-doutorado em uma Universidade da Europa e, em todas, percebi que havia grupos antagônicos. Só que em um nível que não afetava de maneira nenhuma a instituição. O senhor citou como exemplo a Europa. E o Brasil?
No Brasil... As pessoas pensam que se tornam professor quando o nome sai no Diário Oficial. Não é bem assim. Ora, isso é uma coisa contínua. Demora-se muito ou quase nunca se chega a ser um bom professor. Aqui existe uma sensação de propriedade, entende. Quando procuro um laboratório, quase sempre alguém me fala que aquele laboratório é de fulano de tal. Ele não tem a escritura daquele laboratório. O que fez foi ocupar espaço através do conhecimento e da capacidade de angariar recursos, o que totalmente elogiável, e instalar aquele laboratório. Mas ele não é dono do espaço, nem tem esse poder. Lógico, o uso precisa ser controlado. Mas da regulamentação do uso para a posse temos uma diferença enorme. Isso é apenas um exemplo pequeno diante de outros maiores. Faça um paralelo entre o ensino de ontem e o de hoje na universidade?
Até hoje me sinto muito bem dando aula. Comecei a dar aula muito cedo, desde o tempo da cartolina e do quadro negro. Depois, as famosas transparências feitas com pincel, lápis. Era uma coisa muito prazerosa. A comunicação hoje está muito mais fácil. As pessoas dizem que esse negócio de dar aula teórica, expositiva não tem mais sentido. Gente tem coisa que... Você se operaria com um médico que fez um curso de cirurgia via Google? O cara tem que estudar em peças anatômicas de cadáveres, ler muito, estudar muito e ouvir muitas explicações sobre anatomia e fisiologia, antes de operar. Ele tem que estudar cada peça, detalhadamente, ter explicações, orientação e discussão conduzida por professores competentes. O mesmo ocorre com outras áreas do conhecimento. É preciso sempre ponderar. Certas áreas têm o ensino mais tradicionalista por necessidade. Caso contrário, isso implicaria num atraso do ensino. Ninguém pode esquecer a tradição. Agora, tradição não é estagnação. A tradição serve de base para a inovação, para as ousadias tecnológicas, para as belezas e experiências humanas. Agora tem coisas que não se pode inventar novamente como a roda, por exemplo. A universidade que tem a capacidade da tradição associada à inovação alcançará o sucesso.
O que significa a UFCA para o senhor?
É um sonho que nunca tive na minha longa experiência. Participei de tudo, menos da criação de uma universidade. Eu sou professor visitante aqui, mas eu acompanhei e invejo os professores da UFCA. Eles estão tendo a oportunidade de realizar uma coisa que nunca fiz na minha vida acadêmica – a construção de uma universidade nova. Não sei se todos pensam como eu. Mas é uma oportunidade ímpar. Eu diria para os meus colegas – todos os servidores – professores e técnicos: vocês estão tendo a oportunidade que não é dada a todo o ser humano. Vocês estão construindo uma universidade. Pensem nisso.