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movem montanhas Padre Ágio Padre Ágio
Padre Ágio Augusto Moreira é a verdadeira figura do contador de histórias do Nordeste. Entrevistá-lo é um desafio. Aos 99 anos, impressiona pela memória privilegiada. Em sua casa, de pijama, sentado em meio a centenas de livros, conta de forma detalhada recortes da sua vida e seus sentimentos em um depoimento que durou quase três horas. Nas vésperas do seu centenário, planeja comemoração e confessa as dificuldades do espírito e do corpo de chegar a velhice “como velho, eu me sinto só. A pessoa fica apegada e quer continuar a ser jovem até o fim, mas não pode, porque a construção física não é duradora”.

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Qual o significado do seu nome, Ágio?
O meu nome Ágio é do grego, meu pai sabia grego e sabe que teve um filho do Crato com meu nome, quando eu nem sonhava em nascer, Padre Ágio Moreira Maia. Porque meu pai conheceu esse padre e era um padre inteligente, era escritor, não sei se era músico, mas já fez pesquisa, agora é difícil e eu não encontrei um retrato dele. (risos) Ágio é do grego significa: santo, bom, honesto, mortal. Na minha memória tem que explicar um pouco e teve esse colega, já pesquisei até na internet eu fui atrás, ele foi vigário de Jacobira, vigário do Rio, de São Paulo, e era do Crato, agora a ligação do Crato era com a família Maia. Padre, qual a maior recordação dos seus pais?
Eu considero meus pais uma graça. Porque a família não foi pequena. Também não foi muito grande não, mas foi regular. Doze filhos. Morreram quatro crianças e oito foram criados. Éramos seis homens e duas mulheres. O meu pai (Augusto Moreira) foi educado por um grande professor e sacerdote Padre Joaquim Sother de Alencar. Quando o meu pai era bem jovem, ele o convidou para entrar em uma escola de especialização, para se preparar para qualquer vestibular. Ou para padre, ou médico, ou engenheiro, qualquer profissão. Primeiramente, quis ser padre. Porque tudo que o Padre Joaquim Sother sabia ele aproveitou. Estudou francês, latim, grego, português... Ele não falava mas estudou e aprendeu. O Padre Sother sabia muita matemática, física e química e ele também aproveitou muito bem. Como não deu certo ele entrar no Seminário, o Padre aconselhou que ele escolhesse qualquer carreira, contanto que não precisasse fazer vestibular. E ele foi para Fortaleza e foi um dos primeiros alunos da faculdade de farmácia. Ele se formou em farmácia. O patrimônio que o meu pai queria deixar para cada um de nós era o estudo. Ele não tinha fazenda, nem sítio, nem tão pouco era político. Então, achou que o maior prêmio para os filhos era a formatura. Mas sem determinar o que deveria ser. Porque antigamente, alguns pais de família desejava mais por três profissões: médico, advogado e engenheiro. Ele sempre quis deixar a herança o estudo, mas cada um tinha que resolver o que queria. E assim foi... Três entraram no seminário. Só se ordenaram dois, o terceiro morreu como seminarista.
O senhor fala outras línguas?
Eu estudei línguas não latinas – o inglês, francês e italiano e línguas clássicas estudei grego e latim. Duas clássicas e quatro modernas com o português, né?!
O senhor começou a estudar com quantos anos?
Todos lá em casa começaram cedo. Porque meu pai era o professor e a minha irmã mais velha, que tinha o curso normal completo, no Colégio da Imaculada Conceição, ensinavam aos mais novos. Maria Augusta Moreira é a minha irmã mais velha. Tanto que ela é a minha madrinha de batismo. Foi preciso licença do Bispo porque ela só tinha dez anos. E o Bispo deu. O vigário que me batizou foi Padre Emílio Cabral, parente dos Cabral daqui do Crato. Tio de Humberto Cabral, da rádio.
O senhor sempre foi um bom aluno?
No começo eu não entendia esse negócio de estudar. No começo. Mas diz o provérbio que “prata de casa não tem valor”. Mesmo meu pai estimulando muito eu e o meu irmão para estudar, a gente só queria jogar futebol ou então as brincadeiras da noite, ou circo, não perdia nenhum circo. Mas depois de levar uma pisa bem grande, porque cheguei dez horas da noite em casa, menino, aí óh, a chibata. Mas depois em uma crise muito difícil, pensei... o meu pai para se formar, logo no começo da vida ainda, encontrou dificuldades, mesmo ele sendo bem preparado. Meu pai começou a negociar o comércio de medicamentos três anos antes de fazer a faculdade. Meu pai só adquiriu a licença provisória do Governo, enquanto ele não recebeu o diploma de farmacêutico formado. O Governo deu um prazo, aí ele resolveu fazer a faculdade e levou para Fortaleza a filha mais velha que se formou como professora normal. Nesse tempo, quem ficou na farmácia foi a minha mãe Raimunda Jorge Moreira, que não sabia nem ler. Era da Serra do Quincuncá. Ela tomava conta da Farmácia mesmo sem saber ler, só pelo que tinha acompanhado o marido junto com o filho mais velho. Quer dizer. mãe e filho trabalhando para sustentar pai e filha. (risos) Durante os três anos da faculdade.
O senhor gosta mais de ler ou de escrever?

Olhe, para escrever eu tenho que ler. (risos) Mas é melhor ler, escrever dá trabalho, se erra muito. Quantos livros o senhor já escreveu?
Tenho é muitos. Quer anotar aí? Não, eu não decorei não. (risos) Eu só posso dizer certo os que já foram publicados. Os outros que ainda vou fazer, como é que vou dizer? Só para dizer que está no plano? Não está no plano não, está na cabeça. Eu comecei fazendo folhetos.
O primeiro folheto foi “Água Benta”, é um sacramental, porque o padre usa muito a água benta para benzer, só não benze o dinheiro. (risos) Outro livreto foi “Dízimo”, a manutenção da igreja e do padre, o terceiro foi “O mandamento de assistir a missas aos domingos e dia santo”. Pronto. Partindo daí foi o tempo em que eu fundei aqui a escola, então fiz o primeiro livro que foi
“Sonho Realizado”, a história de como fundei a escola aqui, editado em Brasília. Quer dizer, depois que eu me ordenei, depois que eu fui vigário por cinco anos e por último professor do Seminário por treze anos. Aí eu disse: não, não vou morar em cidade não, vou morar no pé da Serra. Sabe quantos anos faz que eu estou morando aqui? Vim morar aqui em julho de 1961. Então, vai completar cinquenta anos que eu moro aqui no pé da Serra. E o segundo volume foi “O Cajueiro: vida uso e história”, tudo sobre o caju. Como nasceu no senhor o desejo de ser padre? O senhor se sentiu chamado?

Pois é, o chamamento é o seguinte - a criança se impressiona muito com as atitudes e o proceder das pessoas, ninguém sabe disso, mas é verdade. Se por exemplo, a criança é ativa, viva, ver que aquela pessoa é daquele jeito, procura imitar. Mas quando fui para Cariús, cadê padre? Não tinha padre. Eu já estava ficando malandro. Só queria jogar futebol e à noite brincadeiras bem duras como “chicote queimado”, precisava ser muito ágio, muito esperto para não levar lapada de chicote. (risos) O Padre Emílio Cabral, foi o que me batizou em Assaré. Depois de dez anos, ele foi Vigário em Cariús e eu já morava lá. Mas essa é uma outra história. Padre Emílio fazia questão que os meninos do catecismo acompanhassem as cerimônias da Igreja. Ele preferia sempre que eu ajudasse mais a missa e acompanhasse ele nas capelas, para ajudar a batizar, ajudar em casamento. Eu fazia companhia a ele. E aquilo me tocou, principalmente na Semana Santa. Aquilo me impressionou muito. Padre Emílio estava já cansado. Ele durou pouco, seis meses. E foi com ele que fiquei mais seguro da vocação. Por que o senhor saiu de Assaré para morar em Cariús?
Eu fui morar em Cariús com cinco anos de idade. Meu pai deixou Assaré para ir para Cariús, porque lá não tinha nenhum farmacêutico. Ele foi comercialmente, na esperança da farmácia ter melhor desenvolvimento. O pensamento dele também era nos deixar o que ninguém pode roubar e impedir, a herança intelectual de cada um. E isso em Assaré não estava tendo condição, não.
Em Cariús o estudo ficou mais acessível?
Lá eu tive professora de teatro. Eu tinha mais ou menos dez anos de idade e ela tinha quinze.
O nome dela é Diva Pagim. Ela fazia parte do coral do meu pai. Ele nunca deixou de estar presente nas missas dos domingos e nas festas. Ele tocava órgão, e essa menina chamada Diva Pagim, é irmã de cantoras conhecidas pela rapi- dez em decorar todas as músicas da igreja. Pagim tinha uma voz muito bonita e ela era bonita também. Mas eu só tinha dez anos quando ela me convidou para participar do teatro dela. E eu fui participar. Ela se apresentava de avó. (risos) E eu o neto. Na apresentação, ela sentava nos trajes da vovó, a saia comprida, um bastão, se lamentando que estava muito velha e não podia mais ficar sem ter um companheiro. O pai dela já tinha morrido, ai eu dizia: vovó, a senhora não pode mais pensar em casamento, não. Aí lhe convidava - “vamos jantar”, mas era cantado, e ela cantava a segunda parte da música, aí o povo ria. Porque fazíamos com tanta inocência. Representei pela primeira vez com dez anos, mas eu representei do jeito que ela ensinou. (risos) Ela está viva ainda, com 105 anos, vai completar para o ano, e eu 100 anos. Eu fui lá, dar os parabéns no ano em que ela fez 100 anos, mas não pude ir no dia exato. Portanto, estão convidados para também assistir ao meu centenário. Ainda não fiz o programa, mas esse é um. Ela vai ser a avó e eu vou ser o neto dela. Ela com 105 anos e eu com 100. (risos) Agora, a propósito, eu sair muito do assunto, o que você queria mais? (risos)
O senhor não voltou mais para Assaré?
Não, não voltei mais. Vou lá só para passear. Mas eu conheci o Patativa. (risos)
O senhor foi amigo do Patativa?
Eu tenho guardada muita coisa do Patativa. Ele era complicado porque ele não aceitava um conselho. O fumo foi quem matou o Patativa. Depois o senhor saiu de Cariús...
Eu tinha doze anos completos, quando fui para Fortaleza com mais seis amigos. De Cariús até Fortaleza, eu fiquei abusado de andar de trem, a vantagem da gente morar em Cairús é que tinha trem e era bem perto de Iguatu. Cheguei em São Paulo em dezembro de 1930, mesmo nas festas de Natal. “Vixi” eu fiquei encantado com São Paulo, mas sofri muito. Tanto na viagem de navio, como na viagem de trem do Rio de Janeiro à São Paulo. Estranhei o clima. Quando saiu do estado do Rio e entrou no Estado de São Paulo eu senti frio como todos os outros. O meu irmão pediu a um rapaz que cuidasse de mim, porque não podia viajar sem autorização e quase que eu não viajava quando cheguei em Fortaleza. Tinha atestado médico, atestado da família. E eu era o mais novo.
O senhor foi para o Seminário de São Paulo com doze anos?
Com doze anos completos. Fiz todo o curso, menos filosofia e teologia, que foi em Fortaleza. Curso superior foi em Fortaleza. Lá era um curso de preparação para padre. Curso ginasial e científico. Por seis anos. Lá era puxado, tinha aula de manhã e de tarde. Agora o meu irmão que ia ser médico, ainda entrou no Seminário, mas deixou logo. Só quis sair de Cariús. Ele só foi para o Seminário para ficar só. (risos) Todo jogo de futebol era eu e ele. Ele tinha já “amizade” com a Pagim. (risos) Mas ela era muito menina, eu acho que ele prometeu algo a ela quando terminasse a faculdade de medicina, quando ele foi estudar no Rio de Janeiro. Mas ele apanhou uma gripe nos pulmões e foi embora. Qual era o nome dele?
Deusdedit Augusto Moreira... Ele era um retrato da minha mãe. Você sabe que a família grande tem isso, uns puxam o pai e outros puxam a mãe, o sentimento e tudo a mesma coisa. Ele era muito apegado a minha mãe, mas quando foi para ir para o Rio de Janeiro ele desobedeceu tanto a minha mãe como também o médico, que avisaram que ele não podia estudar naquele ano. E era porque ela gostava mais dele. Ele já tinha feito todo o curso em Fortaleza para o vestibular em medicina no Rio e foi aí que ele perdeu a saúde... Porque tínhamos já, quatro tias morando no Rio de Janeiro, mas ele não quis morar com nenhuma delas. Sabe onde ele foi morar? No asilo dos doidos em Jacarepagua, quando passou no vestibular, lá estava como enfermeiro e assistente do médico dos doidos e eu ia bater lá. Mas quando passei seis anos em São Paulo, minha mãe mandou um recado por ele - “minha mãe disse que você fosse, voltasse que ia ”morrer” e não lhe veria mais”. Eu disse: ah, agora ela tá querendo bem. (risos) Ele me deu o recado, aí eu disse: diga a ela, se eu não passar no último ano aqui eu vou “mim bora”... Porque o colégio lá de Jundiaí, era pesado. A gente estudava o dia inteirinho. Só tinha um dia na semana que a gente ia passear. E era tudo preso. O parente mais próximo a me visitar foi ele. Foi se lamentando que estava doente e achava que não ia terminar o curso de medicina. E realmente ele estava bem magrinho. Eu até estranhei! Fiquei pensando - “mas será que meu irmão, não será meu primo não!?” Não assisti a sua morte, mas assisti a notícia da morte dele. Eu via minha mãe cair no chão e quando eu perguntei o que foi, recebi a notícia de que ele tinha morrido. Olha, ela ficou sentida. E para consolar era difícil. Chegavam padres e outras pessoas: “não, a senhora ainda é rica, já tem tantos filhos, outros poderão ser médicos”, mas o outro que ia ser médico morreu também. Disseram que eu já estava perto de ser padre, mas ela disse: “eu quero muito bem ao meu filho padre, mas a questão é que eu, desde o nascimento à morte dele, minha intensão era de que meu filho fosse médico para cuidar de mim; o padre eu renunciei, ele podia ir para qualquer parte que eu não sentia nada”.

O senhor saiu de São Paulo e voltou para Cariús?
Quando eu voltei de São Paulo meus pais ainda estavam em Cairús, mas eu não cheguei nem a passar férias em Cairiús, não. Eu fui só passear. Achei tudo diferente, não tinha mais a ponde metálica que a gente passava de um lado para outro, os americanos já tinha ido embora. A luz já estava sendo de Paulo Afonso, tudo estava diferente.
Como nasceu a música na vida do senhor?
Dentro de casa! (risos) O padre Joaquim Sóther comprou um órgão unicamente para a Igreja de Quixará (atual Farias Brito), mas colocou no testamento que por morte dele, o órgão ficava para o meu pai e foi este harmônio foi quem fez estimular toda a família para cantar e tocar. O primeiro a aprender foi o mais velho, Padre Davi Augusto Moreira. O primeiro instrumento que aprendi foi o órgão. Tinha o violão também, mas a gente só fazia um “blan blab blan” desafinado. (risos)
Minhas duas irmãs cantavam, a que morava em Forta- leza trazia todas as novidades quando vinha passar as férias. Aí ela cantava, tocava no órgão. O senhor toca quantos instrumentos?
Os instrumentos tocados por exercício é o órgão, o piano, que precisa de muito exercício, mas eu toco mais o teclado. É a mesma coisa, a estrutura da música para tocar é a mesma coisa. Violino, mas toquei pouco violino, que é outra história do violino, mas não vou contar não. (risos) Meu irmão mais velho era quem sabia música mesmo e fez curso por correspondência, eu fiz a biografia dele. E ele se comunicava com os melhores mestres de São Paulo. Tenho ainda estudo dele aprovado pelo maior seminário da música em São Paulo. Meu irmão mais velho Davi Augusto Moreira. Este foi o primeiro padre, eu sou o segundo na família. Para o senhor qual é o instrumento mais fácil de tocar?
É difícil, é difícil de dizer né!? (risos) Mas pela experiência como professor, é a flauta doce. Não tem instrumento mais fácil não. Ela sendo afinada. O senhor fez faculdade de música?
Bom, eu quando fiz um curso de música em Fortaleza que equivalia a faculdade de música, fiz filosofia e teologia também. Eu comecei sendo professor no Seminário só de canto, mas o Monsenhor Rocha, o reitor e que foi colega meu em Fortaleza no curso superior durante um ano, foi e me convidou “óh eu vou pedir ao Bispo para você se nomeado professor daqui do Seminário, porque eu não sei música e nem tem um padre que tenha assim um amor à música” Aí eu disse “pois não”. E o meu irmão mais velho já estava morando no Ginásio que era da Diocese - “Ginásio Diocesano”. Ele era professor e diretor do Ginásio, ele tinha mais capacidade, foi o primeiro aluno de me pai de música. Quando fui fazer melodia, eu disse “agora eu não sei fazer o acompanhamento colocando os instrumentos que eu tenho aqui no Seminário”. Aí ele colocou. Tem é muita música... O senhor passou um tempo no distrito de Missão Velha, Jamacaru? Isso é verdade?
Quando eu vim como Padre (para o Cariri) a primeira missão que o Bispo Dom Francisco me deu foi andar na visita pastoral com ele. Um ano depois da visita pastoral eu fui nomeado professor de canto no Seminário São José e veio a ideia de fazer a orquestra. A orquestra nasceu foi lá, em Jamacaru. A orquestra e o coral. Mas eu ia lá só passar as férias. (risos)
O senhor tem família lá?
Não, lá era tudo estranho. Era questão do clima para a gente passar as férias. Tinha muita cana, muita fruta, a água abundante, para a gente tomar banho nas bicas. Lá tinham três bicas. Aí eu ouvia os trabalhadores dos sítios cantando na colheita do café. Eram os próprios habitantes de lá. Apanhavam café, e eles não apanhavam calados não! Cada grupo pegava três, quatro pés de café para tirar todo o café, para botar para secar e tudo e vender. E eu achei aquilo fantástico, ainda colhi duas músicas que me agradou, aí eu disse: agora eu vou levar para a minha orquestra. (risos) Nesta época, eu já estava morando em Crato. Ah, eu fiquei impressionadíssimo. Eles fazendo aqueles versos na hora. Aí eu levei, sabe quem? O pai do Abidoral. Aí eu pedi para ele tirar umas fotografias, filmar... Aí pronto, o entusiasmo já foi maior. E depois de muitos anos, eu já tinha a orquestra aqui, eles convidaram para eu tocar a missa da festa da padroeira que é no dia 15 de setembro, Nossa Senhora das Dores, aí fomos lá. E depois o coral e a orquestra daqui, cantaram no fim da missa as duas músicas que eu mais gostava de ouvir de lá. E o povo todo animado que eu estava pensando que a igreja ia cair por cima da gente. (risos)
O quê levou o senhor a morar em Crato?
Primeiro o clima, depois a vegetação. Eu sou Sertanejo, Assaré é o começo do Sertão e no Sertão a gente toma água de açude ou de cacimba, e aqui não (Crato)!
A gente toma água da fonte, da Serra jorrando, tudo isso atraiu eu morar aqui.
O senhor gostaria de morar em outro lugar?
Não! Sabe porquê? Em Assaré, tudo fica muito longe.
O senhor teve a ideia de ensinar música clássica para os agricultores do Belmonte depois do que viu em Jamacaru?

Eu tive a inspiração. Eu pensei da seguinte maneira: quem foi que ensinou aqueles catadores de arroz, do café? Olhe, esse povo era totalmente analfabeto, lá ou outro que sabiam uma coisinha, na realidade não tinha escola lá, nenhuma, nem do governo, nem do município, só particular mesmo. Aí pronto, eu tirei a conclusão que se lá em Jamacaru, eles não tinham escolas, não sabiam ler e cantavam afinado... Não era desafinado não e as poesias que eles faziam não eram muito folclore não, eram bem interessante, aí todas as férias que eu ia passar, pedia mais coisas para colocar em meu caderno, fui muitas vezes lá, muitas vezes.. todas as férias que tinham no meio do ano no Seminário eu ia passar lá.
Do que o senhor recorda de quando chegou em Belmonte?
Quando eu vim pra cá (crato) os meninos não sabiam ler, eram os meninos todos nos sítios trabalhando nas socas de cana. Você sabe quantos engenhos de rapadura tinha aqui em roda do Belmonte? Dez. Hoje não tem nenhum. E fez muita falta. Porque eles que trabalhavam lá, uns de doze anos acima, era para carregar a cana de lugar para colocar no pé do engenho, outros era para espalhar o bagaço para secar para colocar na fornalha, economizar lenha. Outros eram para tanger os burros, pol’.. quando o pé sentava no fundo, no cimento, eu dava um pulo e subia e ficava brincando dentro d’água. “Você não disse que ‘véi’ não pode” mas é doidice! Isso sacolejou muito o sistema nervoso da cabeça e eu tive um AVC por causa disso! (risos) faziam rapadura para os compradores e as meninas todas plantavam verduras aqui nesse pé de serra. Hoje não tem nada. Agora todo mundo quer ser professor, todo mundo quer ser doutor, o ensino está muito fácil. Ora, a escola eu fundei cinquenta anos atrás, completa neste ano, cinquenta anos. E esses alunos tem deles que já foram à Europa e deu show lá. (risos)
Para o senhor o que é mais gratificante em ser professor?
Quando os alunos se entusiasmam por alguma coisa que eu sei, eles ficam entusiasmados.
Para o senhor, para que serve a arte?
Você já ouviu falar no grande músico brasileiro Heitor Villa-Lobos? Ele era um apaixonado pela música. Ele percorreu de ponta a ponta o Brasil, do Amazonas ao Rio Grande do Sul, ouviu todas as canções populares. Eu tenho, dois volumes dele. Um dia ele foi convidado para percorrer a Europa, ele andou vários países da Europa: Alemanha, França, Bélgica, Portugal... Aí os franceses perguntaram - “você veio aprender a nossa música?” ele disse: “Não! Eu vim mostrar o que faço no Brasil, na minha terra”. Bateram palmas e disseram - “pronto, pode percorrer todos os cursos da França”. Depois perguntaram a ele quase essa mesma pergunta: “para que música no colégio?” Ele disse - “primeiro, para os sentimentos dos alunos serem mais normais, nunca se agitar e fazer o que fazem dentro de casa, é se educar, a educação através da música”.
Para quem o senhor faz música?
A música é para educar o povo!
Para o senhor qual é a coisa mais importante do mundo?
O senhor ficou feliz com a entrega da Vila da Música?
Não, não fiquei tão feliz porque não fizeram como eu estava pensando.
E como o senhor pensou?
Mais simples. Um prédio novo, um auditório suplementar, mas coisa simples. Eu não posso muito ir por causa das pernas. O velho pode andar, mas eu fiz muita estripulia quando era novo, as pernas não aguentou mais! (risos) Olha eu jogava futebol com sessenta anos, é loucura! Pulava do trampolim lá do Serrano na altura mais alta. Os meninos diziam “esse aqui não é pra ‘véi’ não”. Deixe de ser besta! Saiam do trampolim eu subia e pulava. Eles pulavam como peixe e saiam lá na frente.
Aí eu dizia “agora é a minha vez”e pulava em pé, ‘vulp
Bom, o mais importante é a fé. Por quê?
Porque a fé, tá no evangelho: transporta montanhas. Padre, o que é fé?
A fé é acreditar em Deus sem dúvidas. O senhor já duvidou da existência de Deus? Nunca.
Tem alguma coisa que o senhor não concorda no catolicismo?
Não. Quem vive como católico só perde a felicidade de ir para o céu com o pecado. Se ele souber que era pecado e faz, quer dizer, desobedeceu a quem? A lei de Deus. O maior pecado, Jesus Cristo falou, quando perguntaram a ele - “mestre qual é o maior pecado, que não tem salvação?”. Jesus disse: “é não acreditar no divino espírito santo”. Porque tem um mistério, toda religião tem o seu mistério, e qual é o maior mistério da Igreja Católica? É um Deus só em três pessoas: pai, filho e espírito santo.
Qual a maior virtude para o senhor?
Primeiramente a maior virtude é a fé, todas as outras virtudes está dependendo da fé. Agora, para praticar a virtude não basta a fé. São Paulo disse que é necessário a caridade. A caridade é tudo! Salvo se ele se condenar, se for caridoso. Porque quem é caridoso tem fé! Tá entendendo? Tem fé! Agora quem não faz a caridade é porque não tem fé. E quem não tem fé não se salva!
O senhor está já completando cem anos...
Ah sim, você quer o segredo é? (risos) Eu quero saber se a velhice é um problema...
Grande! A família mora toda distante, é Rio, São Paulo, Fortaleza... Tem deles que eu não sei nem onde é que mora (risos), então eu ando sozinho. E por que a velhice é um problema grande?
É o seguinte, porque se tiver o cuidado e uma pessoa para orientar se vive muito. Primeiro a pessoa se desapegar das coisas da mocidade. Quando a pessoa fica apegada quer continuar a ser jovem até o fim, mas não pode, porque a construção física não é duradora. A tendência é chegar a um ponto, depois só vai diminuindo. Na minha vida de professor fica muito tempo sentado e agora eu estou notando que as pernas enfraqueceram. E eu perguntei ao médico e eles disseram que não fazendo exercício tem que enfraquecer. E o velho não pode mais fazer aquele exercício que fazia. O senhor se sente só?
Como velho, eu sinto, eu não gosto de ficar só, não. Porque eu nunca fiquei só. O senhor se arrepende de alguma coisa?
Não, só me arrependo sabe do que é? É de não ter aproveitado mais. (risos) Eu gostava de brincar. Principalmente o futebol. E eu tinha sorte, os pais davam licença para a gente jogar lá em São Mateus. Tinha os esportistas rapazes que criou o esporte para meninos. Mas tem uma disciplina, oxente, ai é que é bom. Aí eu me dediquei quando era menino ao futebol. Ou só desistir de jogar futebol quando eu vim pra cá. Eu fui brincar com os meninos lá no campo de futebol lá do Serrano e eles me deram uma quebra que até hoje eu sinto. (risos) E o médico dizia: mas o senhor não pode jogar futebol, é violento... (risos) Eu jogava não era só por diversão não, mas para ganhar mesmo. (risos) O senhor sente medo nem de morrer?
Quando eu era menino tinha um medo danado. (risos) Não dormia com a luz apagada, quando eu era criança. Acabou o medo quando eu fui para São Paulo. Aí era interessante, eu estudando a psicologia quando era criança e adolescente eu tinha medo de morrer, mas eu tinha uma vontade de ver uma pessoa morta. “Ige”, eu fazia de tudo para ir a um velório. Curiosidade da transformação da pessoa quando morria. Pois é, mas quando eu fui para São Paulo acabou esse negócio de medo de morte. Quando eu me lembro que andei de navio, que não me dei com a maresia, e o cheiro do mar.

Quando eu tomei o navio pela primeira vez, em 1930, em dezembro para ir para o Rio de Janeiro para lá pegar um trem para ir para São Paulo, eu tinha que passar lá, tinha uns parentes também lá, uns tios do RJ. Com dois que tinham parentes em Fortaleza se hospedaram, eram do interior, de Russas e de limoeiro, aí juntamos tudo na casa do doutor dos meninos, aí quando foi para dizer é amanhã a nossa viagem de navio.. Fortaleza não tinha porto, você sabe que antes tinha era uma ponte metálica, que ainda hoje existe. Já votei lá, tirei retrato, só me lembrando da primeira viagem que eu fiz de navio. A gente ia até o final da ponte e as embarcações mutuou foram umas lanchas pequenas levar o passageiro da ponte ao navio. Era quase dois quilômetros andando dentro d’água. E esses barquinhos pequenos as ondas levantavam. Eu e outro companheiro, não aguentamos a maresia, o cheiro da água do mar e o balanço, sem a gente querer.. vú aí estava bem alto, vú lá embaixo, aí qual foi o resultado? Botei todo o alimento que eu trouxe antes de tomar o navio. Às sete horas nos tomamos o café na casa do doutor, com tudo que tinha na mesa, reunimos lá os mais novos, os mais velhos não, tinham outros parentes, isso em 1930, Fortaleza era pequenininha, deste tamanho.. (risos) Mas tinha o que conhecer, tinham os bondes que eu não conhecia, andamos dentro da cidade, eu não perdia a oportunidade de andar nos bondes, achava bom (risos). Quando eu vim morar em Fortaleza a gente tinha um dia por mês de ir à praia tomar banho lá no Mucuripe, hoje o Mucuripe é um posto. (risos) E o que é que eu fazia?
Eu entrava magro, mas eu tinha tanto medo, taí.. tanto medo, mas eu já sabia mergulhar e tudo, mas sabe o que é que acontece? Era a água salgada e o sol quente. Agente saía frio, mas com pouco começava a queimar. Ainda hoje eu sinto coceira por causa do mar, Nunca quis entrar no mar. E aí me enjoei, subi a escadaria do navio quase sem força de chegar até o convés, quando a gente ia se hospedar no navio. Aí tive saudade de casa, só nesta hora.(risos) Aí eu disse “pronto, vou vomitar aqui dentro do mar” (risos)..
Do que o senhor sente medo?
Se eu tivesse medo eu já tinha morrido (risos). Quando eu era menino eu tinha medo, mas na medida em que fui crescendo fui procurando a verdade, porque o medo muitas vezes é apenas a imaginação, não é qualidade não, não é virtude não. O medo é falta de conhecimento das coisas.
O que é a morte, Padre Ágio?

A morte? É a passagem da vida da terra para a eternidade. E só tem três lugares quando a gente tiver de morrer, se estiver em estado de graça vai direto para o céu onde mora Deus, se morre em estado de pecado
”Eu estudei línguas não latinas – inglês, francês e italiano e línguas clássicas estudei grego e latim. Duas clássicas e quatro modernas, com o português, né?” leve, vai direto para o purgatório, e esse livro eu fiz e contei em fato, de pessoas que vieram do purgatório pedir orações e ir à missa, o meu tio. Ele veio e a neta dele recebeu a mensagem dele, sem saber com quem estava falando, ela não chegou a conhecer não. A família foi quem disse “como foi que ele apareceu” aí disseram os traços “todinhos” e tiraram a conclusão de que era ele pedindo uma missa para poder sair do purgatório para ir logo para o céu.
O que o faz sorrir, Padre?
Olha, alguém que procura qualquer carreira, qualquer estudo, ele não é formado, ele não é educado, mas ele tem um sentimento de atração. Nem todos os padres estudaram música, mas eu conhecia música. O negócio é esse, muitas vezes coisa complicada na vida é muito melhor cantar do que chorar, como se aquilo fosse resolver. (risos)

Do que o senhor mais gosta além da música e do sacerdócio?
Quando eu era bem jovem, eu saia daqui de madrugada, para fazer o que? Para chegar até o clube do serrano. Pois é, eu me alistei para participar como sócio assim quando eu cheguei aqui. Porque a outra paixão que eu tinha quando eu era jovem, de nadar. Agora eu nadava de todo jeito. Uma vez eu nadei 1.200m sem pegar em canoa, sem pegar em balsa ou qualquer coisa para boiar, só, só de braço, braço cansado, só os pés, os pés dentro d’água, e para mais repouso botava os pés de fora e as banhas que trabalhavam por baixo, como se estivesse remando como uma canoa (risos) ai eu era apaixonado. Se eu fosse atleta, banhista, eu atravessava, é porque eu nunca gostei sabe do que? Foi da agua salgada. E.. Deus me livre!
O que é o amor, padre?
Quem inventou o amor? Tem uma canção muito interessante lá de Portugal... “mas quem inventou a partida não sabia o que era o amor, quem parte, parte sem vida, quem fica, morre de dor”... Tá aí! (risos)
É verdade que o senhor está escrevendo um livro sobre o Padre Cícero?
Um passagem bem interessante... Mestre Pelúncio Macêdo, inventou o relógio de ser tocado nas igrejas e nas praças lá do Juazeiro. Ele vivia com Padre Cícero, era telegrafista, era engenheiro e artista, era músico. Padre Cícero o amparou. Tudo que Padre Cícero queria chamava Mestre Pelúncio. Quando foi para fazer o relógio, o padre Cicero disse:

-Óh mestre Pelúncio, faça o relógio para o povo ter a noção das horas, para colocar na praça.
Ai o mestre Pelúncio disse:
-Meu padim, não dá para eu fazer não! Eu nunca participei de uma escola técnica de engenharia.
Aí Padre Cícero disse:
-Não, mas é o seguinte, você vai comprar um relógio no comércio, desmonta todinho, aí você com a sua cabeça, fazem o relógio grande que todo ler as horas com facilidade. E ele fez. Comprou o relógio, desmontou e tudo. Mas ele só vivia dizendo:
-Masmeupadim,eutinhamuitavontadedeserpadre.
Aí Padre Cícero disse:
-Não mestre Pelúncio, você não pode ser padre não! O que vale? Um ou quatro?
Aí ele ficou sem saber...
-Como é, meu padim? Que matemática é essa? Então, ele o perguntou se o que tinha ais valor, um ou quatro e explicou que se ele fosse padre ele não teria os quatro primeiros filhos que seriam padres. Padre Cícero profetizou a vida dele. Aí ele não quis mais ser padre e quando casou foi dito e feito. Eu conheci o primeiro, segundo e terceiro, o quarto não conheci não. Assim como foi o caso do meu pai. Ao invés de um foram dois padres, quase três, é que um já morreu. Mas chegou perto.