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ZÉ FlÁvio Zé Flávio Escrevo pra minha tribo

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RAIMUNDO MARTINS

RAIMUNDO MARTINS

Em seu ambiente de trabalho, dessa vez não sendo o consultório, o médico e escritor cratense, José Flávio Pinheiro Vieira, 64 anos, fala do seu processo de escrita literária. Zé Flávio concedeu esta entrevista na Rádio Educadora, em Crato, lugar onde trabalha com suas leituras de textos semanais. Com trinta anos de experiência na literatura, escreveu para o teatro e encantou a criançada com o “O mistério das 13 portas”. Ele segue com diversidade em suas publicações – textos para teatro, infantil, adulto e até musicou canções sobre personagens baseados em lendas do Cariri. Amante da literatura desde muito novo, se apegou a uma escrita de fácil compreensão. “Se o matuto fala assim, assim escrevo. Já imaginou um matuto com escrita difícil?”. O escritor defende suas raízes e prioriza o seu lugar em todos os segmentos de escritas. Nesta entrevista, você conhecerá um pouco mais da intimidade desse médico-escritor caririense.

Para iniciarmos, queria que nos contasse um pouco como era o José Flávio na infância. Quais eram seus maiores sonhos? Como imaginava seu futuro?

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Era um pouco hiperativo e ainda continuo. Tudo que vou fazer é no sapatinho, como dizem, apertado, aperreado. Tenho uma neta, Maria Cecilia, que é hiperativa. Acompanhando-a percebo claramente como que eu era hiperativo. Tive inclusive dificuldade no primeiro momento na escola, não parava para sentar. Só vim a me aquietar a partir da terceira série do ginasial. Mas essa coisa de vontade de escrever veio desde a primeira série. Me lembro que já no exame de admissão, que acontecia em torno da quinta série, minha redação foi bem escrita. Já escrevia, gostava de escrever. Na adolescência tinha um diário que ainda guardo. Então essa coisa de escrever veio desde o primeiro momento.

Conte um pouco da sua infância.

Apanhei demais, na época o tratamento era assim. Cheguei a conhecer os meus quatro avós ainda na infância, um privilégio, que nem todo mundo tem essa oportunidade. Conheci inclusive minha bisavó. Na infância, era sempre tido como aquele menino terror. Quando ia passar um período das férias na casa dos meus avós, sempre era uma tensão danada por conta da hiperatividade. Eu não parava num canto, desaparecia, subia em telhado. Então, era um pavor.

E hoje, como é o pai José Flávio?

Bom, tenho quatro filhos. Sempre fui muito ligado aos meninos. Passei por um processo de separação, mas nunca me afastei deles.

Quais eram as brincadeiras que o senhor gostava?

Na época, a gente não tinha brinquedos eletrônicos, fazíamos os próprios brinquedos - pião, triângulo, carrinho de rolimã e os caminhõezinhos. O mais interessante é que a rua fazia parte da casa, era uma extensão da casa. Tinham os quintais. De noite as pessoas botavam a cadeira na calçada; os meninos brincavam na rua. Tinha aquela coisa de realmente reunir os meninos. Agora, é diferente. Hoje, meus sobrinhos moram num edifício em Recife, mas as crianças não se reúnem, então é um problema. Os meninos têm que ir para escola cedo para se socializar; se demorou a falar é porque não tem com quem falar, né? Isso não existia na minha época, por conta dessa enormidade de meninos que tinham para as brincadeiras, as mais variadas possíveis - futebol, esconde-esconde, um mundo de brincadeiras no meio da rua. Tanto que a gente só ia pra escola bem tarde. Só fui pra escola praticamente com sete anos. Sobre a gastronomia nordestina, o que não pode faltar?

Têm muitas. Por exemplo, a carne de sol, sou muito ligado, a farofa. Minha comida é muito nordestina e sou também simples na comida. Gosto de várias coisas, mas a comida é mais regional. Panelada, buchada, só que não é uma coisa que como todo dia, é uma coisa eventual, quando aparece.

Você lida com duas áreas, a medicina e a literatura. Se sente mais à vontade em alguma delas?

Acho que elas se complementam muito, no sentido da medicina se aproximar da morte, do bem-estar, do mal-estar. Boa parte dos contos que escrevi, por exemplo, saíram dessa minha vivência com as pessoas, tanto que têm muitos médicos que são escritores.

Tchekhov, Ronaldo Brito, que é daqui do Crato, Guimarães Rosa e Pedro Nava. Eu comecei a escrever em 1972, dei uma parada e retornei em 1977, ano em que terminei a universidade.

Em 2011, você lançou o livro “Os Mistérios das 13 Portas do Castelo Encantado e a Ponte Fantástica”. Como foi que surgiu essa ideia de escrever para o público infantil?

Em nenhum momento pensei em escrever livro infantil. A ideia surgiu quando notei que aqui no Cariri tem uma mitologia muito forte. Quando a gente vai estudar, vemos que não é história da “carochinha”. O mito é uma coisa que tá profundamente inserida no inconsciente. Então, não é uma historinha de “trancoso”. Temos uma mitologia muito forte no Cariri, como a da pedra da Batateira e a baleia debaixo do altar de Nossa Senhora da Penha. Notei que toda essa mitologia era forte e que estava se perdendo um pouco. Por quê? Porque a mitologia tem uma concorrência muito grande, principalmente para as gerações mais novas, através do DVD, do Smartphone, da Internet e Facebook. Então, tive essa ideia. Mas ela veio mesmo do Jorge Malta, numa das mostras de teatro daqui. Ele é compositor e também estudioso de mito. Conversando comigo, Jorge Malta disse uma coisa que me tocou, sobre o Cariri: “essa região tem uma energia diferente, ela é forte desde a pré-história”.

Isso me tocou no sentido de tentar escrever para criança, que não é uma coisa fácil, é uma linguagem totalmente diferente, tem que ser direto. Os meninos geralmente quando vão ouvir a história de um dos meus personagens, como Tandor ou o Beato Zé Lourenço, eles vão atrás do pai pra saber “papai o senhor também conheceu?”. Como ocorreu a relação da sua literatura com o cinema, o teatro e a música?

Pensei em uma peça quando li um livro de Zé Carvalho, escritor cratense que participou da Padaria Espiritual. Zé Carvalho, em seu livro, “O Matuto do Nordeste e o Caboclo do Pará”, de 1930, conta várias histórias daqui e, dentre elas, a história de Zé de Matos, que foi um poeta popular daqui. Entre 2000 ou 2003, veio a ideia de escrever a peça e a trabalhei coletivamente. Eu acho legal isso de trabalhar coletivamente, mas dá trabalho. No infantil “O Mistério das 13 Portas”, por exemplo, tem 15 músicas, tive que fazer a letra de cada uma das músicas dos personagens. O Abidoral Jamacaru falava - “não, vamos fazer um musical, vai ficar legal”. Então começamos a fazer. Abidoral fez a parte musical, que é uma pessoa muito próxima a mim, muito amigo. Então juntou várias pessoas, Luiz Carlos Salatiel, João Nicodemos, o pessoal do Zabumbeiros Cariri. Foi um trabalho emocionante. É um dos que mais me emocionou, foi uma repercussão tão boa, as pessoas gostaram tanto, tivemos mais de quarenta apresentações. Depois a gente teve uma adaptação também de um dos contos do Matozinho pra o cinema. Foi o Jefferson Albuquerque que fez. O que é uma coisa interessante também, porque é uma linguagem diferente. O resultado foi bom, podia ter sido melhor em alguns pontos técnicos.

Como adaptou cada obra nos seus lançamentos?

Não gosto daquela coisa tradicional, fazer uma mesa lá em cima, botar um monte de gente e ficar falando como se fosse uma reunião da maçonaria, uma reunião do Rotary. Não gosto desse formato, acho que é chato pra quem tá assistindo, a pessoa vai por obrigação. No

“O Matozinho Vai à Guerra”, tivemos encenações relacionadas ao personagem, fizemos um palco grande, inclusive com um cenário bem interessante, o Reginaldo Farias que fez. Foi no Cine Moderno. Do infantil, o lançamento foi em formato de uma peça de teatro. Lançamos com uma leitura dramática que depois foi encenada. Fizemos também uma leitura dramática na URCA (Universidade Regional do Cariri), no Salão de Atos. Foi legal porque fizemos a primeira leitura com vários atores no palco, totalmente diferente. Já “A Delicada Trama”, que é o último, foi lançado na RFFSA. Eu, Flávio Queiroz e os meninos do teatro fizemos uma apresentação da leitura de dois textos. Nos seus textos nos deparamos com personagens com características próprias, como você cria os personagens?

No infantil, os personagens são reais, inclusive eu tentei manter as histórias. É claro que a história é da oralidade, não é uma história assim com muito rigor técnico e histórico, o oral é o que interessa. Então, fiz um levantamento de treze personagens para o livro. No Matozinho, por exemplo, é quase que um livro de memórias da minha família, envolvendo os amigos também. Meu pai era um grande contador de histórias. A maior parte dos personagens na realidade são reais, troquei os nomes, claro, porque não queria identificar fulano. Às vezes a pessoa sai bem no livro, outras vezes a pessoa sai mal. “Matozinho Vai à Guerra” é uma história criada mesmo, relacionada com aquele momento da invasão do Iraque, se não me engano. Já na outra, “A Delicada Trama”, a maior parte dos textos da obra, dividi em três partes. Uma parte inicial, que é uma parte mais poética. Uma parte central, que é uma parte de trama mesmo. E a parte do labirinto, que é uma parte mais reflexiva sobre situações mundiais, situações locais. O infantil é muito indicado em escolas do Município. No Pequeno Príncipe já foi indicado mais de cinco ou seis anos; no colégio Ágape foi indicado durante um período. Outra coisa que eu achei interessante, é que os professores indicam o livro no colégio e os alunos falam que vão comprar das sé- ries anteriores às suas, mas os colegas das outras salas não querem vender os seus livros.

Qual é o significado da literatura para você, por que você escreve?

Meu pai tinha uma livraria, então a ligação é muito grande com livros. Compro livros que não vai dar para ler nessa encarnação, já disse que tem que comprar tudo na outra novamente. Eu compro como se fosse para o supermercado comprar os alimentos. Essa coisa da livraria foi muito importante, tem a história também que meu pai e minha mãe eram professores. Papai de língua portuguesa, então isso certamente me levou um pouco pra banda da literatura. Mas quando perguntam por que escrever, Clarice Lispector dizia que é pra não morrer. A gente não sabe, tem gente que mesmo escrevendo vai morrer, e também não tenho essa perspectiva, as pessoas sempre fizeram isso, você cria um nome para ver se fica imortal. Não tenho essa perspectiva de dizer que essa é uma maneira de não morrer, de me imortalizar, não tenho de jeito nenhum essa pretensão. Escrever é uma coisa que me faz bem, me sinto bem quando estou escrevendo, acho que por isso escrevo. É importante dar um testemunho do meu tempo, o tempo que eu vivi, isso é interessante para as outras pessoas. Tenho que ser testemunha do meu tempo, não só do meu tempo, mas de meu lugar. Todo mundo é regional, toda literatura é regional, você escreve a partir da sua realidade. É essa é a maneira que tem se tornar universal. Como Dostoiévski escrevia da Rússia. Machado de Assis, que é o escritor que eu mais gosto, dos brasileiros, certamente era regional, fazia uma literatura do Rio de Janeiro. Guimarães Rosa, regionalíssimo, Érico é regionalíssimo, todo mundo é regional, não tem conversa. Eu tenho que deixar isso aqui, me faz bem, sempre di- minui minha ansiedade, talvez escreva para não ir para o psicanalista (risos) fica mais barato. Todo leitor carrega em si sensações deixadas pela leitura, como você pensa em atingir seu público a partir de sua escrita?

Penso que a gente não escreve um livro só, você escreve uma parte; e o leitor escreve a outra. É tanto que é muito comum a gente fazer um texto e o leitor interpretar de outra forma. O humor é muito importante, por exemplo. O Matozinho é um livro muito querido, o pessoal gosta muito por ele ser bem-humorado e isso, certamente, é um gancho importante para você ter o leitor. Outra coisa é a poesia, a poesia está no alicerce de qualquer arte, sem poesia não existe nada. Esses são os dois ganchos que eu mais utilizo. Outra característica é a linguagem, quando um ator está falando, ele está falando como ele fala, assim consegue imaginar como um “matuto” está falando. Tento não fugir tanto da língua padrão, mas escrevo o coloquial. Acho isso importante, é uma língua tão rica, talvez uma das mais ricas do mundo todo, então utilizo os recursos que eu tenho na língua, tanto o erudito, quanto o popular. Um dos melhores elogios que eu recebi, é quando a pessoa diz assim “você escreve fácil”, escrever fácil é difícil”.

Quando dizem que escrevo fácil, quer dizer que o texto ficou leve e isso é bom, porque prende. Você gosta de ler uma coisa mais leve, até porque a gente já tem a vida tão atribulada.

Você tem um projeto de lançar um livro na área de medicina...

Esse é um projeto que fala da medicina, aqui do Cariri, de 1800 a 1960. Escrevi o primeiro livro, que é de 1800 a 1900. Deu um trabalho desgra- çado, tinha muita coisa nesse século sobre a medicina e para escrever, tive que diferenciar a história da ficção. Passei mais de 10 anos mexendo, pesquisando. Fiz uma primeira parte, onde eu conto a história do Ceará, a história do Cariri, da colonização do Cariri. Levantei a história da medicina desde o princípio, porque senão fica difícil de contextualizar. Não adianta falar, por exemplo, na terapia o que se fazia em 1800 sem contextualizar o motivo daquele processo. Você consegue relacionar medicina e literatura como duas formas de salvar vidas?

É interessante essa pergunta. Eu não tenho dúvida. É a coisa mais importante da profissão. Não mede salário, não mede nada. Uma possibilidade de se conseguir reverter os malefícios. Eu acho que a literatura de alguma maneira salva as pessoas. Não só as pessoas, mas salva o escritor também. Ajuda a gente demais e de alguma maneira salva os leitores. Eu tiro por exemplo de Abidoral, que ele tem uma responsabilidade muito grande com a obra de arte dele. Ele não fala em drogas. Ele diz, “eu não posso falar, se eu falar, eu não sei se eu tô incentivando”. Ele tem esse cuidado em tocar em coisas que possam causar o mal das pessoas. Eu não tenho preocupação tão grande assim, só que meus textos não são pesados. Até porque eu não gosto de ler coisa de menino sofrendo. Não gosto muito de ler coisa dramática, talvez eu não escreva muito drama por isso. É melhor fazer rir, é mais difícil, chorar é algo mais fácil. Porque cada pessoa ri de uma maneira diferente, pra chorar é fácil, porque é só você colocar um menino sofrendo de um câncer. E eu sei que todo mundo vai se debulhar em lágrimas, mas, assim, o link pra rir é muito diferente. Então, talvez eu não tenha preocupação maior, por conta disso. Mas acho que é uma coisa importante. Isso que eu falei do Abidoral, por exemplo, se ele tem uma música carregada demais, ele não grava. Ele tem uma música que é da época da ditadura, que se chama “Pipoca sem sal”, que gosto muito, já “pelejei”, mas ele não quer gravar. Ele diz: “Ficou carregada, não quero, não”. Ele acha que vai deixar as outras pessoas “down”, vai deixar as outras pessoas pra baixo, arte não é pra isso.

Como surgiram os temas pra as publicações semanais em seu blog?

Sou muito desorganizado, tenho que ter regra, porque senão, eu não escrevo. Escrevo nas quintas-feiras para o rádio, os textos são lidos nos sábados. Geralmente, o texto que é escrito para o rádio tem uma linguagem diferente, entra uma questão de periodicidade.

Entre as histórias, o que é nacional tento levar para o blog Matozinho. Às vezes aparecem histórias, mas geralmente são temas nacionais. Antigamente eu dividia mais, fazia uma história, depois eu fazia um tema mais local, depois discutia um tema nacional, ou universal, mas à medida que vão saindo, vou escrevendo. Essa última foi sobre os estudantes de medicina que baixaram as calças pra fazer uma foto. Então, geralmente, tem umas que vão vir do dia a dia, coisas corriqueiras. Mas prefiro escrever as do personagem Matozinho. Acho bom quando escrevo, porque as pessoas gostam. As redes sociais são importantes para a publicação de suas histórias no blog?

Ajuda, claro que ajuda. Hoje ficou difícil, temos que pegar várias coisas pra ter uma ideia mais global. A mídia tá toda direcionada para um lado ou pra outro, fica difícil achar o meio termo. Temos que ler duas versões para encontrar o meio, pra se orientar melhor. As mídias sociais ajudam demais, pelo menos certamente ela orienta. Sai a notícia, para saber mais sobre o assunto você tem que ir atrás. Então, orienta bastante. Embora tome tempo. A gente precisa ter cuidado pra não ficar só no facebook, o bicho toma o dia todinho se você brincar. (risos).

O escritor possui relações com cada obra. Pode contar como cada obra lhe marcou?

Acho que são filhos diferentes, quando a gente bota no mundo já não é mais nosso. No dia em que publico, o livro não me pertence mais. Até porque as pessoas vão ler, cada uma vai interpretar da sua maneira, não é a versão que eu botei no mundo. Isso é uma coisa interessante, a primeira obra, por exemplo, a de Zé de Matos me marcou muito, porque era um projeto de muito tempo, envolveu muitas pessoas, e depois o teatro, uma coisa que eu gosto muito. Matozinho é a segunda. Foi um livro praticamente familiar, ligado a memória do meu pai. O infantil teve esse lado de ter uma ligação com um público que eu não conhecia, um público que eu gosto muito. Muitas crianças mandam bilhetes pra mim dizendo se gostou ou não. Me lembro até de um bilhetinho que recebi no consultório. Uma mulher me entregou um bilhete do seu neto, que tinha assim: “Gostei do livro, tenho oito anos, gostei de fulano, só não gostei do Vicente Finim, porque ele é muito feio”. (risos). O Finim é o personagem do lobisomem. É muito legal esse público. O último é um livro que eu gosto muito, porque são textos escritos de 95 pra cá, dá uma visão muito clara do que eu escrevi, tanto na parte dos textos bem humorados, mais poéticos; e dos textos mais reflexivos, textos mais ligeiros.

Em relação as duas plataformas as quais você produz, os livros e o blog, como você consegue distinguir os públicos diferentes e como funciona a forma de escrever pra cada plataforma?

Os textos que são maiores geralmente não boto no blog. Como o da parte histórica que escrevi por conta da pesquisa para o livro de medicina. Neste livro não posso fazer escrita técnica, não tenho conhecimento, é um texto crônico histórico, que é um texto que transmito melhor. Então, publiquei um texto de fotografia, outro sobre a chegada do carro, o primeiro automóvel; todos eles foram tirados de outra pesquisa que eu estava fazendo na época. Você vai encontrando, vai preparando, para depois escrever. Esses textos são maiores, então esses não vão para o blog. Acho que o blog não é muito bom colocar um texto muito grande, é chato texto grande demais.

Como ocorre a distribuição das suas obras?

Essa coisa da distribuição é o grande problema que a gente tem. Tem sempre um livro que a gente escreve para o nosso público, escrevo para minha tribo. Me perguntam: “Como é que vai ser feito em São Paulo?”, não me interessa não, é pra minha tribo, se quiser aprender minha língua, venha para cá. Sobre a distribuição, geralmente colocamos nas livrarias, nas bancas de revista. O lançamento é importante, onde mais se vende é no lançamento. Na “Delicada Trama”, vendemos 150 livros, que eu achei bom demais, porque é difícil vender tantos livros. A partir daí, o livro começa a sair lentamente. O infantil “O Mistério das 13 Portas” tem um público definido. Todo ano os pais compram, as escolas compram, e vai saindo, não sai em grande quantidade, mas sempre o que me deixa alegre é que não param de vender. O Zé de Matos, as pessoas procuram até hoje, praticamente não tem mais, só tem os últimos lá em casa. O infantil está na 2ª edição, eu fiz outra edição, e “A Delicada Trama” é o mais ranseiro pra sair, mais devagarzinho.

Quais são as suas influências literárias?

Acho que o autor que mais se parece, o mais próximo, é o Machado de Assis, a pessoa que mais me influenciou. É meio difícil perceber isso nos livros, porque, é claro que as linguagens são diferentes, mas por exemplo, o humor, só que o dele era mais fino, e o meu é mais rasgado. Esse humor “machadiano”, essa influência do humor, acho que é uma influência forte. Têm alguns autores que eu gosto muito, internacionais, fora o Machado, como por exemplo, o Ítalo Calvino. Ainda do Guimarães Rosa, aqui do Brasil. Dos nossos daqui, do ciclo nordestino, o que eu mais gosto é José Lins do Rego, que é o mais próximo de mim, até por causa do humor dele. Admiro muito o Graciliano, por exemplo, mas o Graciliano é muito difícil de ler, era depressivo, então ele era muito carregado, acho fabuloso a maneira que ele escreve, porque ele consegue frasesinhas curtas e secas. Mas eu tenho dificuldade de ler, temos isso, ad- mirar demais um escritor, mas não gostar de ler. Carlos Drummond, admiro demais, ele foi o maior poeta brasileiro, mas eu acho melhor ler Manuel Bandeira. O Vinícius, a poesia dele, é a extensão da vida dele, embora seja menor como poeta, acho que bem menor do que Drummond, mas pelo menos na poesia ele tá mais próximo da gente, porque fala sobre o que ele viveu, então, talvez eu ache que é isso, Machado de Assis eu ache mais próximo de mim.

Tem algum livro que marcou sua vida?

Têm vários livros que marcaram a minha vida. O “Memórias do Brás Cubas” é um livro que marcou minha vida. As pessoas consideram Machado como o melhor escritor da América Latina, difícil colocar isso com tantos escritores, como Júlio Cortázar e Gabriel García Marquez, mas algumas pessoas consideram Machado como o maior autor da América Latina, e esse livro então é fenomenal, uma forma totalmente diferente. Eu gosto muito também da “Servidão Humana”, é um livro de Somerset Maugham, escritor britânico, um escritor da bexiga. Existe outro que eu gosto muito, que teve uma coisa muito forte pra mim, que é o “Fio da navalha”, lindíssimo esse livro, totalmente diferente.

“Cidades invisíveis”, do Ítalo Calvino, acho que tam- bém foi um livro que mudou muito as coisas, a gente vai redescobrindo. Agora mesmo eu li um livro, foi até um escritor muito importante dos anos 60, era muito místico, sensacional, é um livro que não é de ficção, é sobre o fenômeno que aconteceu na França, a possessão, mas é lindo esse livro. Então, vai aparecendo, você vai redescobrindo, mas você pergunta: “O que você mais relê?” Machado de Assis é o que eu mais releio, toda vez a gente lê um novo livro, toda vez que a gente lê, a gente não lê o mesmo livro. Um filme que você assiste na infância e vai ver depois não é o mesmo filme. Além do amor pela literatura, e pela medicina, o que mais você ama fazer?

Bom, andar, gosto muito; andar na serra. E de música sou muito eclético, só não gosto dessas novas agora, ainda não, pode ser até que pra adiante, ficar mais doido, eu goste. Gosto de rock pesado, depende do dia, às vezes gosto de reggae, jazz, bossa nova. Tenho variedade, não sou fechado em um tipo de música só. E de ler, sou mais leitor do que escritor. Leio muito, muito, muito, geralmente, não começo num livro só, são 3, 4 de uma vez, a medida que eu vou abusando eu pego outro. Você escrevia no tempo da ditadura?

Na ditadura eu escrevia menos, mas aconteceu censura nos festivais das canções aqui. Tínhamos um grupo, eu era o letrista, e nós tivemos uma cesura prévia.

Devíamos apresentar as letras antes para a censura, pra aprovar ou não. Várias músicas foram cortadas nessa época, inclusive, eu fui a Recife, na Polícia Federal. Me chamaram pra conversar por causa de uma música, mas não liberaram a letra, eram cheio dessas coisas. Mas a censura que eu sofri foi basicamente essa, tive textos censurados no jornal da universidade, quando eu fazia medicina. Escrevi um texto uma vez para os jornais de 63, por aí, 64. Era um diálogo do prédio da Sudene com o hospital que não terminava. O pessoal do jornal tinha a autocensura, porque tinha muito coxinha, e que ficavam informando, então acabaram censurando. Até no outro jornal, tinha um pessoal que era o cão, só viviam presos. A gente tava começando a faculdade, eles eram do 4º, 5º ano, então era uma prisão danada. Você enxerga a escrita como uma forma de se posicionar contra os fatos cotidianos, ou você tem algum receio quanto a isso?

Acho que toda a escrita tem um papel político. Então, em momentos críticos temos que colocar claramente a nossa posição. Nesse momento, agora, é um momento em que a gente vive colocando esse posicionamento, por conta dessa divisão do país, que sempre teve, tava só quietinha lá no canto. O pessoal não se conformou de o país ter ficado independente em 1822, não se conformou de o país ter virado república em 1889, acabado com a escravidão em 1888, essas pessoas ainda são as mesmas que no passado e hoje estão exercendo sua função exatamente como era antigamente, muda só a maneira, mas elas estão bem presentes no cenário brasileiro.

Então, é claro que quem tá escrevendo tem que colocar a colher nesse angu, não tem como você ficar de fora, não tenho nenhum medo de fazer isso, até porque passei por um período de repressão. No período da ditadura militar, você não podia falar nada, não podia se reunir, era terrível, gente presa, gente morta, horrível, ninguém pode nem pensar numa coisa dessas voltar. Agora com tudo que estamos vivendo, você pode gritar, você pode falar, e antigamente que não podia? Como é que fazia? “Ah, mas não tinha corrupção”. E se tivesse, o que faria? Hoje em dia tem corrupção, sai na televisão, antigamente tinha a mesma coisa, e ninguém podia dizer nada, porque se não morria, ia preso, torturado. É muito simples dizer isso quem não viveu nessa época. Só sabe quem viveu, quem viveu é que sabe direitinho o que foi isso. Horrível!

Mas hoje você tem algum receio de uma grande mudança no governo?

Não, quer dizer, ainda não, né? Eu não sei como vai ser, mas até agora, não tenho receio. E quem viveu essa época sabe disso, não tem época pior, só sabe quem viveu, sabe direitinho o que é isso. Quando tinham duas pessoas reunidas já era considerado concentração, três pessoas era considerado passeata, não podia dizer nada, toda classe do país tinha um informante, como é que pode isso? Não podia dizer nada, que já informava, outra coisa, imagina a quantidade de gente que foi denunciada. Você tinha raiva de um vizinho era só dizer que ele era comunista, e que ele tava se reunindo, bastava dizer isso. Pra você ter uma ideia, Caetano e Gil foram presos duas vezes, sem acusação, como é que você é preso sem acusação? Como é que você se defende se você não sabe do que tá sendo acusado? “Vocês tão sendo acusados de quê?”, “Não tô sabendo, não, delegado.” Foram pra Londres justamente por isso, o delegado disse que não sabia o motivo que eles estavam sendo acusados, e não podia deixar eles soltos, então era melhor eles irem embora. Foi por isso que eles foram embora, não tinha acusação, já pensou? Era desse jeito, não precisava de acusação. E como é que eu me defendo, se eu não sei pelo o quê que eu estou sendo acusado?

Como é que o escritor, Zé Flávio, enxerga a política no Brasil atualmente?

Eu acho assim, que a gente tá vivendo um momento crítico da política, o país, as forças que antigamente estavam quietinhas, hoje estão claras. Você tem as forças de direita bem claras agora, ficaram mais quietinhas porque viram as desgraças que tinham feito, quer dizer que tem o momento, teve o golpe no sentido de não melhorar nada, o golpe não foi no sentido de acabar com a corrupção. Eles estavam com raiva de ter melhorado a situação, um pouquinho de nada, da classe mais desprivilegiada, tava andando de avião, a classe mais desprivilegiada tava podendo se formar. Então, é só isso. A coisa, na realidade é só uma luta de classe mesmo, uma briga de classe, de pobre contra rico. Quinhentos anos de país e não se tem ideia de país como um todo, o país são eles, que podem fazer o que quiser, roubar, matar, que não vai dar em absolutamente nada. É tanto que agora estão caladinhos, porque o governo tá botando abaixo todos os ganhos sociais que se teve a duras penas com sangue, e com suor, tão botando abaixo. Eles estão caladinhos achando que tá muito bom, só que ninguém sabe até que ponto não mexe no controle remoto. Estamos em um momento crítico, essas forças que estão aí, essas forças reacionárias, as forças que acabaram com Canudos, que bombardearam o Caldeirão. São as mesmas forças que se mantiveram contra a abolição da escravidão, que a gente terminou como um dos últimos países a libertar os escravos, e que se esquece disso, porque essas pessoas sofreram quase 400 anos, torturados, estuprados e tudo. Essas pessoas são brasileiros, mas são brasileiros de segunda classe, e não tem direito a nada, não são cidadãos. Essa mesma elite que quando veio melhorar um pouquinho de nada, nada, a condição de consumo, se revoltou, e não quer que exista isso, quer que eles fiquem quietos nos seus cantos, e os ricos do lado de cá, nas suas fortalezas. É uma fase muito triste, mas é um processo, as coisas não mudam de uma hora pra outra, mas também não estamos naqueles tempos. Então, vai ter reação do lado de cá também, eles estão quietinhos, caladinhos, não vai ser fácil assim não, nada acontece sem represália.

O senhor pode contar quais foram as suas melhores memórias do Cariri, as imagens que mais marcaram?

Temos uma coisa importante no Cariri, é que a gente é diferente praticamente de todo o resto do Ceará. Isso historicamente, primeiro a gente teve uma maior ligação com Pernambuco do que o resto do Ceará.

Posso, vou fechar aqui os olhos, de agora?

De qualquer tempo, alguma imagem que lhe marca o Cariri.

Bom... Assim, antigas tem o sítio São Vicente que era o sítio aqui do meu avô, lembro da infância indo pra lá, ali pertinho, não é mais da família, mas ainda está lá. Esse é um local muito especial na minha memória. Existia muito antes, inclusive, dos clubes terem se estabelecido, e faziam parte não só de uma classe, de um clube, fazia parte lá do pé de serra, as pessoas iam lá tomar banho. Eu acho que essa é uma memória muito forte em mim. Então, esse pé de serra, é pra mim a imagem mais forte daqui do Cariri. Quando eu fecho os olhos, penso nelas, e penso no Crato também, no Crato antigo, tinha a memória da cidade, que é tão bonita, e você vê hoje, praticamente a cidade não soube conviver com o progresso. O antigo e o novo que era pra conviver, a parte histórica que era bonita, foi derrubada pra se construir uns monstregos arquitetônicos no lugar, caixas de sapato tudo igual, prédios todos iguais. O prédio aqui, com apartamentos, o banheiro, tudo certinho lá atrás. Isso dói, quando vejo isso, é claro que essa paisagem também fazia parte da memória, da minha juventude. Isso se acabando, tá indo uma parte da minha juventude junto. O turismo religioso, por exemplo, a cidade vizinha cresceu, não temos potencial religiosos, mas temos um potencial ecológico tão gran- de e tão mal cuidado, pessoas não tem nenhuma educação ambiental, jogam lixo, sobem com lixo. Quais as formas de cultura caririense mais lhe chamam a atenção?

Temos uma coisa importante no Cariri, é que a gente é diferente praticamente de todo o resto do Ceará. Isso historicamente, primeiro a gente teve uma maior ligação com Pernambuco do que o resto do Ceará; depois o loteamento foi feito por franciscanos, o norte foi feito por jesuítas, depois a colonização daqui foi feita, principalmente por Bahia, Sergipe e Pernambuco, nossos colonizadores brancos, inclusive, e tivemos nossos índios, os índios Kariris.

Nossa cultura difere da do resto do Ceará - sempre foi voltada pra cana de açúcar e o resto do Ceará foi voltado pra pecuária. Temos essas diferenciações. É claro que a gente levou para cultura todas essas diferenciações. Quando a gente pega, por exemplo, compara a cultura caririense, tem o povo do Inhamuns, que teve uma coisa muito fechada, que foi o ciclo do couro, como o couro do nosso mestre Espedito Seleiro, embora, tenha vindo dos Inhamuns, é uma coisa bem caririense também. Fortaleza é muito perdida no tempo. O Cariri é mais forte nisso, a gente tem não só a nossa cultura de raiz, a cultura popular que é muito diferente da região norte, mas quando a gente pega a nossa música, é muito diferente do resto do Estado. Os nossos compositores, como Abidoral Jamacaru, caririenses, são totalmente diferentes do resto de qualquer outro, se você pegar e disser que esse é do Cariri, dá pra você ter uma ideia, que tem uma marca caririense, eu acho isso muito forte. O artesanato também foi uma coisa muito importante, quando a gente pega o Juazeiro na questão do artesanato, como de barro, como de madeira, porque aí você tem uma miscigenação muito grande de pessoas que vieram, pela própria formação de Juazeiro, que é uma formação muito eclética, de todo canto. A gente teve um teatro forte, ultimamente temos pouca descendência porque não temos muitas salas de espetáculo; e o cinema foi muito forte aqui, porque a minha geração foi muito do cinema, era o único entretenimento que se tinha. Ronaldo de Brito, que é um literário conhecido nacionalmente, nasceu nos Inhamuns, mas se formou aqui no Crato, só um livro dele conseguiu sair do Cariri, mais de 40 anos, acho que 45 anos e não consegue sair do Cariri. O último livro, romance que ele escreveu agora, foi um romance sobre a ditadura militar, que foi ambientado em Recife, o resto é sobre Cariri. Ele não consegue sair do Cariri. O Cariri é muito forte, é difícil sair daqui, mesmo a pessoa indo pra fora, tentando... (risos). Mas não consegue. Quem é o atual José Flávio Vieira?

Bom... Eu sou avô de quatro netos, diminuí o ritmo da minha profissão, médico nunca deixa de ser, a não ser quando não tem mais jeito. Uma coisa da minha profissão é que quando eu me aposentar dos meus empregos, pretendo continuar escrevendo, literatura pra mim tem essa coisa do gostar de fazer, e me tomar o tempo, de me fazer útil. Vou continuar escrevendo até os últimos dias, muitos e muitos dias que ainda virão (risos). Espero continuar escrevendo. Os projetos vão aparecendo aí a medida que o tempo vai passando, às vezes um toma à frente do outro; a gente nunca sabe, por exemplo, o primeiro livro que eu pretendia escrever era o do Matozinho e acabou nem sendo, a peça tomou à frente, então a gente nunca sabe como é o destino. É uma coisa interessante, a história às vezes anda por ela mesmo, a gente não controla muito, a gente começa com os personagens e tudo, mas são eles que vão criando vida, pernas próprias, às vezes você quer que ele vá pra um canto e ele vai pra outro, é interessante (risos). É como um filho, a gente quer que vá por uma lado e o menino vai pelo outro lado. Então, é isso aí, a gente vai desenvolver os projetos pra adiante, espero continuar escrevendo por muito e muito tempo, pra deixar sem pretensões maiores de jeito nenhum, eu escrevendo, já lendo é muito importante. Se as pessoas lerem então, já é muito fabuloso. Tá bom, então?

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