LAGOA DOS CRIOULOS
Edição n º 5Ano 2
caminho
O
das águas
Expediente
Edição 5
Juazeiro do Norte, dezembro de 2019
Texto e Fotografia: Adler Sousa
Bárbara de Alencar
Bibiana Belisário
Guilherme Antônio
Jayne Machado
Paulo Junior
Colaboração: Roberto Júnior
Revisão: Adler Sousa
José Anderson
Sandes
rastros da memória
Ojogo da memória não será nunca pacífico. Pelo contrário. Os desvãos da memória oscilam entre a lembrança e o esquecimento. Ou como coloca Paul Ricouer uma incessante busca de reaprender o tempo perdido nas diversas lacunas ou lapsos do tempo. Um difícil equilíbrio entre o excesso de memória e excesso de esquecimento. Por isso, a importância da “Memórias Kariri”, que chega a sua quinta edição.
A reportagem “Memórias de uma ocupação que abalou a UFCA” revisita um período difícil para a universidade. A ocupação dos campi pelos estudantes se deu como resistência à Proposta de Emenda Constitucional (PEC 55), no governo Temer, que limitou os gastos públicos por vinte anos. O movimento dividiu professores e estudantes.
As cidades do Cariri se encontram pelo caminho das águas. Começam por lagoas encantadas e transbordam em pedras que formam esse grande caldeirão. Visitamos o oeste caririense para contar história da comunidade quilombola Lagoa dos Crioulos, distrito de Salitre. Uma história das mais ricas, entre o mítico e o maravilhoso.
Geová Magalhães Sobreira tem uma rica história ligada ao Cariri. O pesquisador catalogou mais de quatro mil poetas de folhetos de cordel e xilogravuras. Desde os anos 1960, pesquisa a religiosidade popular de Juazeiro, resgatando documentos raros. Ele conta passagens dramáticas da sua família durante a revolta de Juazeiro, em 1914.
Projeto gráfico
e diagramação: Paulo Anaximandro
Tavares
Professor Orientador: José Anderson
Sandes
Memórias
Revista experimental do projeto Memórias
Kariri, vinculado à Pró-Reitoria de Cultura e à Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Cariri
Conheça a história do seu João Martins, 94 anos, um conhecido alfaiate de Juazeiro desde os anos 1950. Seus ternos bem traçados, eram consumidos pelos endinheirados da cidade. Foi músico e fundou dois conjuntos que fizeram sucesso no Cariri e parte do Nordeste. Ele revela momentos importantes do cotidiano juazeirense.
No Cariri, sobrevivem até hoje mitos e lendas oriundas de dos nossos ancestrais, os índios Kariris. Quatro lendas se destacam, envoltas em uma aura mística, marcas sagradas dos nossos antepassados, em Lavras da Mangabeira, Crato, Missão Velha e Nova Olinda.
No jogo da memória, vamos desvendando os vários Kariris - um passado que sempre está repleto de presente -, com seus hiatos, lacunas, esquecimentos e lembranças. São rastros e vestígios da nossa Memória Kariri. Individual e coletiva.
José Anderson Sandes Professor Orientador
de umaqueocupação abalou a UFCA Bonecos, retalhos e resistência Fogo das Guaribas Lagoa dos Crioulos
sentimentalArqueologia de Juazeiro O alfaiate, a melodia e o tempo
Pelas salas de Maria Piauí A água que nos liga à terra
Memórias de uma ocupação
que abalou a UFCA
A ocupação de 2016 na UFCA em consequência da “PEC do Teto” motivou rupturas e causou conflitos entre estudantes e professores num dos momentos mais tensos da instituição desde a sua criação como campus.
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Memórias Kariri
Texto: Paulo Júnior
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Dezembro 2019
OCUPAÇÃO UFCA
Aocupação começou primeiro no campus do Crato e depois se estendeu ao campus Juazeiro. As demais sedes da instituiçãoFamed (Barbalha) e Instituto de Formação de Educadores (Brejo Santo) e Curso de História (Icó) não aderiram ao movimento. O conflito maior se deu no campus de Juazeiro - de um lado alunos ocuparam a universidade; enquanto outra parte posicionou-se contrária, o mesmo ocorrendo com o corpo docente.
Tudo começou com um dos primeiros atos do presidente Michel Temer que, ao assumir o cargo em agosto de 2016, levou ao congresso uma
ocupação da Reitoria da Universidade regional do Cariri (URCA). Na Universidade Federal do Cariri (UFCA), o processo de ocupação se estabeleceu inicialmente no campus Crato, em 07 de novembro de 2016.
No Crato
Em 04 de novembro de 2016, o Centro Acadêmico do curso de agronomia convocou uma assembleia estudantil para pautar a questão. De acordo com Tiago Barroso, à época estudante e integrante do Centro Acadêmico 12 de outubro, a decisão ocorreu por aclamação, sofrendo, naquele
realizadas in loco, e que ficariam prejudicadas diante da PEC 55”.
A sede do curso de agronomia foi ocupada por cerca de quarenta estudantes. No dia seguinte ao ato concretizado, segunda-feira, 08 de novembro de 2016, começou a repercussão: fotos e relatos afirmavam que haviam bloqueios que impedindo a entrada no campus Crato da UFCA. Mas, os ocupantes asseguravam que o acesso era livre e que atividades de pesquisa e os laboratórios seguiriam funcionando normalmente; tratava-se somente de uma paralisia das aulas.
Apreensão
A ocupação no Crato despertou os ânimos no campus de Juazeiro do Norte da UFCA, principal centro da instituição. Estudantes contrários ao processo de ocupação que vinha sendo realizado, especialmente do Centro de Ciência e Tecnologia (CCT) mostravam-se extremamente apreensivos, pois percebiam que o segundo local a ser ocupado seria a sede juazeirense.
Tal apreensão se configurava, ainda, devido ao processo de consulta que vinha ocorrendo. Os centros acadêmicos que se encontravam consolidados consultavam seus cursos por meio de assembléias, buscando definir apoio ou desaprovação à proposta de ocupação. Nos cursos sem centro ccadêmico, deliberou-se em reunião do Conselho de Entidades de Base (CEB) que a consulta se daria por meio de votação. Integrantes destes cursos responsabilizaram-se por organizar e apurar os dados.
O processo de ocupação nasceu como necessidade, pois os estudantes estavam acompanhando o cenário nacional, e a votação da PEC iria afetar, especialmente, as universidades em expansão, caso da UFCA
individual de cada curso. Ou seja, cada curso contava com um voto, podendo ser favorável ou contrário a ocupação do campus Juazeiro. Um total de nove cursos participaram do processo.
Logo, para a aprovação da ocupação era necessário que, ao menos, cinco cursos votassem favoravelmente, fato que ocorreu. Os cursos de jornalismo, filosofia bacharelado, filosofia licenciatura, design de produto, biblioteconomia e administração pública foram favoráveis. Os curso de engenharia civil, engenharia de materiais e administração de empresas se posicisionaram contra.
Proposta de Emenda Constitucional (PEC), para limitar os gastos públicos por um período de vinte anos.
A PEC foi amplamente questionada pelos movimentos sociais e entidades representativas da sociedade civil, gerando uma série de protestos em âmbito nacional. O movimento mais marcante e reverberante foi o processo de ocupação que tomou centenas de instituições de ensino, secundaristas e superiores.
O movimento teve início no dia 03 de outubro de 2016, no estado do Paraná e rapidamente se expandiu para todo o Brasil. Em 25 de outubro desembarcou no Cariri, com a
momento, poucas contestações. “Nós vimos a necessidade de chamar a comunidade acadêmica para debater, principalmente os discentes, por isso realizamos um debate e uma assembléia. Ao final, foi deliberado, pela maioria dos estudantes, por aclamação, que a ocupação ocorreria.”
Ele diz ainda que “o processo de ocupação nasceu como necessidade, pois os estudantes estavam acompanhando o cenário nacional, e a votação da PEC iria afetar, especialmente, as universidades em expansão, caso da UFCA. O nosso campus tinha muitas obras e nós identificamos que, além disso, nosso ensino seria colocado em xeque, pois temos muitas aulas com caráter de visita técnica, que devem ser
Cabe pontuar que o resultado final não se daria pelo volume de votos totais, mas sim pela posição
Diante do resultado e de uma mobilização que se formava, além de greve deflagrada pelos
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Aula pública proferida pela professora Aglaize Damasceno
Memórias Kariri
Oficina de faixas e cartazes, realizada durante a ocupação da UFCA, para manifestacão contra a Pec 55
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servidores técnicos administrativos, em nove de novembro daquele ano, um grupo de estudantes, durante o turno da noite, passou pelas salas de aula convidando os discentes para um sarau como preparação para a ocupação, iniciada no dia seguinte.
Na iminência da ocupação, ainda na noite do dia nove, ocorreu uma grave discussão provocada por um estudante do curso de filosofia (depois expulso da UFCA). Ele se apresentou como ex-policial militar e agrediu diretamente dois outros discentes da instituição, um estudante, também do curso de filosofia, e uma de jornalismo (eles preferiram ficar no anonimato). O fato causou confusão durante a noite, a polícia foi chamada à instituição e a queixa de agressão foi registrada. Quer dizer, a ocupação se iniciava em meio a conflitos.
O acontecimento não afastou os estudantes dispostos a ocupar a sede da UFCA em Juazeiro. Cerca de sessenta discentes de vários cursos dormiram nas dependências da Universidade. Em um ambiente agora tranquilo, os ocupantes conversavam e debatiam assuntos políticos.
Rodrigo Manfredine, discente do curso de filosofia, lembrou da primeira noite da ocupação: “Nós fizemos uma assembleia para encaminhar algumas coisas. Por exemplo, quem ficaria na comissão de segurança, comissão de alimentação, quem ficaria na comissão financeira, na político pedagógica, que iria organizar as
atividades diárias da ocupação. Prezávamos pela horizontalidade”, afirmou.
Pelo olhar de quem ocupa
A noite do dia dez rapidamente passou, diante do volume de atividades dos estudantes. O nascer do sol no horizonte cobriu os novos prédios em construção. Os ocupantes se organizavam nos espaços da instituição. Eram 6h da manhã, e os que dormiam acordaram; aqueles que não conseguiram dormir, seguiram então o caminho da cantina, ávidos por café. Se preparavam então para o embate que viria em seguida, certamente esperado.
A primeira hora de ocupação passou rapidamente. Às 07h30 ouvia-se o barulho dos ônibus: outros estudantes começaram a chegar, esperando que fosse apenas um dia comum. Mas encontraram alguns portões de acesso aos blocos de aula fechados, cadeados expostos. Aos poucos o volume de estudantes e professores crescia; chegavam e incrédulos ficavam.
Cada vez mais estudantes chegavam, se concentravam na escada que dá acesso ao bloco “B” e em frente ao bloco “A”. Os ocupantes se organizaram rapidamente, olharam atentamente tudo que se desenvolvia em volta deles. E se concentraram à frente do bloco “C”, estratégico pela sua centralidade.
O tempo seguia seu passo, por voltas das 08h30 da manhã os ocupantes entoaram, em uma só voz, palavras que convocavam os demais discentes a unir-se a eles, chamando-os para adotar a bandeira defendida. Segundo Cauê Henrique, estudantes de Jornalismo, bandeira de defesa da
educação pública e contra a PEC 55 que iria impor retrocessos drásticos à universidade.
Os gritos dos ocupantes repercutia nos demais estudantes, primordialmente, discentes dos cursos de engenharia civil e engenharia de materiais. Estes, a cada grito se entreolhavam, poucos aceitavam o modo de luta delineado; a maioria estava descontente com a situação, alegava que a ocupação deveria ocorrer apenas com quem concordasse, não como imposição a todos.
Os ocupantes, nesta primeira manhã de ocupação, organizaram um painel para expor como teria ocorrido o processo decisório até o ato em vigência. A atividade ocorreu na entrada da instituição e os estudantes que discordavam recusaram-se a participar. Alegaram que preferiam resguardar-se, pois discordavam do processo e do ato como um todo.
Naquela manhã se instaurava na Universidade Federal do Cariri um clima tenso; a todo momento havia a preocupação de evitar confrontos diretos entre os grupos, questão apontada pelas professoras Silvana Alcântara e Camila Prado. Existia um certo ar de medo pairando, alguns estudantes e professores sentiam como se a
universidade estivesse sendo saqueada, tirada deles. Olhares fortes escrutinaram o ambiente. Professores limpavam suas salas e saiam com computadores e diversos outros itens.
O clima tornou-se mais ameno somente após a definição que haveria abertura de uma linha de diálogo, entre ocupantes e não ocupantes, buscando definir um meio termo que pudesse agradar a todos em alguma medida. Representantes docentes e discentes dos cursos do Centro de Ciências e Tecnologia (CCT) sentaram-se juntos aos representantes da ocupação, foram diversas reuniões, privadas e públicas.
A proposta defendida por aqueles que se apresentavam contrários ao movimento defendia a possibilidade de aulas normais em três dias da semana, além do comprometimento dos discentes do CCT integrarem a programação da ocupação nos dias sem aula. A proposta foi amplamente debatida, porém, rejeitada pelos ocupantes. Rodrigo Manfredine destaca que a ocupação se propunha a outros modos de aula, menos tradicionais e sem, necessariamente, estar preso a sala de aula. Aulas sobre política, universidade, sobre o impacto da PEC no cotidiano de todos. Ainda neste sentido Camila Prado aponta que
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haviam reiterados convites para que todos os discentes participassem do movimento, integrandose e dialogando.
Camila lembra, também, o rompimento com as aulas tradicionais, o que permitiu o enriquecimento do saber, e a conversa com saberes e atividades periféricas, como grupos de skate e perna de pau que estiveram presentes e realizaram oficinas. A professora Silvana Alcântara, pontua que o interrompimento do processo de aprendizagem em sala de aula trouxe prejuízos aos discentes, que passaram muito tempo longe do conteúdo, dificultando a retomada da aprendizagem ao final de toda a trajetória de ocupação.
A ocupação produziu um largo grupo de atividades, debates, aulas públicas, exibições de filmes, assembleias, além da discussão da PEC 55. Diversas destas atividades passaram por
Os estudantes se deram conta da relevância que tem, como promotores de debate. A posição do discente é mais revolucionária que a do professor e do técnico... o estudante pode promover transformações reais, pedagógicas, de conteúdos a serem estudados e do ponto de vista político, também
questionamentos, entre elas, a exibição do filme ‘Batismo de Sangue’, do diretor Helvécio Ratton, sobre a ditadura civil militar brasileira.
No dia seguinte a exibição, foi matéria em diversos sites locais e rádios que o grupo de ocupação usava do espaço e dos bens universitários para assistir a filmes pornográficos, isso porque o filme conta com cenas de sexo e nudez. Cauê Henrique, afirma que este foi apenas “um dos ataques”. Segundo o discente de jornalismo, pessoas chegavam durante a noite causando incômodos a eles, além de pessoas
alheias a ocupação que estariam dormindo sem autorização nas dependências da UFCA. Cecília Santos, discente de administração pública lembra, também, que não raramente pessoas bêbadas chegavam na Universidade e buscavam atentar contra o grupo ocupante.
Os professores
No ato da ocupação, os servidores técnicos já haviam deflagrado greve, contudo, professores seguiam sem uma definição firme a esse respeito. De acordo com a professora Silvana Alcântara, teria sido realizada uma consulta pelo sindicato de classe, na qual os professores rejeitaram a proposta de greve. Porém, após a negativa inicial, a professora pontua que tiveram início os movimentos, por ela denominados, de invasão. Além de uma forte pressão de um grupo específico para que fosse realizada uma assembleia livre, desconsiderando a primeira consulta. No entanto, Camila Prado lembra que o momento exigia que se fizesse algo. “Uma greve realmente proativa, sem esvaziamento”, diz.
Duas semanas se passaram, e uma nova assembleia docente foi marcada. Os membros do sindicato chegaram, montaram o equipamento, colocaram o lanche sobre a mesa. Aos poucos o miniauditório ficou lotado por professores, técnicos, estudantes. O clima era tenso, ambos os lados articulavam por sua vitória. Via-se um tácito campo de batalha, cuja a arma era a retórica.
A assembleia começa com falas exaltadas. Todos se posicionaram, disseram a que e porque vieram. A reunião se estendeu; havia muito a ser dito. Ora falava-se a favor da ocupação e da greve, ora ia-se contra tudo isso. Ora aplauso, ora vaia. O agora miniauditório Bárbara Pereira de Alencar vivia um momento marcante de sua história. Roberto Ramos, professor e à época Pró-Reitor de Gestão de Pessoas, diz que era necessário que os professores se manifestassem, pois duas das categorias da Universidade já estavam paradas e era impossível fingir que havia normalidade.
No momento da votação, ânimos exacerbados, alunos atentos e professores ávidos. Cada voto contava; tinha peso e importância. Os braços levantaram-se, começou a contagem. Um professor à frente questiona outro que está ao fundo, diz: “você é professor substituto”, e ouve: “sou tão professor quanto você”. Braços ainda erguidos,
de ocupação da UFCA; Roberto Ramos, à época atuava como Pró-Reitor de Gestão de Pessoas, diz que a gestão da universidade era sensível as pautas que culminaram com a ação dos estudantes; Camila Prado, professora do curso de Filosofia, percebe a ocupação como um ato necessário e produtor de aprendizados; Rodrigo Manfredine, discente do curso de Filosofia, figura emblemática do período em destaque, atuou na organização pregressa e durante a ocupação; Tiago Barroso, estudante de Agronomia, em 2016, trata-se de uma liderança fundamental para as ações ocorridas no campus Crato-CE; Cauê Henrique, estudante de Jornalismo, participante da ocupação; Cecília do Santos, discente de Administração Pública, participante da ocupação.
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Silvana Alcântara, professora do CCT, posicionou-se de maneira contraria ao processo
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estudantes favoráveis e contrários torcem por um posicionamento, professores ansiosos. Abaixaramse as mãos, somou-se tudo rapidamente, estava, naquele momento, definindo que os professores entravam em greve.
Ministério Público
Entretanto, tal fator não acalmou por completo as animosidades do processo. Estudantes e professores, cada um a seu posto, agia, articulava segundo suas diretrizes e pensamentos. Silvana pontua que o CCT definiu que ficaria ao lado de seus discentes, independente do que definissem, se apoiassem o ato, também o fariam. Porém, como isso não ocorreu, ela conta que os discentes os procuraram e pediram ajuda. Discentes e professores buscaram apoio junto ao Ministério Público Federal (MPF), pediram orientações sobre que atitudes tomar, buscando encontrar um método de ação.
Seguindo esta linha, o MPF recomendou que a Universidade Federal do Cariri tomasse
situação fática que demande qualquer ação judicial de reintegração de posse.”
A declaração da Reitoria aumentou, ainda mais, as dúvidas quanto ao posicionamento da gestão universitária. A isso, Roberto Ramos, responde que a Instituição estava ciente da situação que se desenrolava em todo o país, e que buscava agir dentro da Universidade como mediadora dos conflitos.
Relata, também, que não eram raros os depoimentos de pessoas que falavam na possibilidade de ações mais enérgicas. Por isso, segundo ele, a gestão estava tão atenta. Lembra, ainda, que havia uma certa simpatia pelos motivos que levaram a ocupação, o protagonismo estudantil, ocupação dos espaços. Mas aponta, também, que existiam grandes discordâncias no grupo de gestão, causando embates discursivos internos.
Todos os professores, estudantes, favoráveis ou contrários ao movimento, relatam que durante todo o processo pairou uma nuvem densa sobre a UFCA. Pois devido a animosidade, havia sempre
estudantes parados, olhavam uma universidade que era a mesma e era outra, transformada por todos. Uns sorriam, outros estavam indignados com o cadeiraço produzido: os ocupantes haviam tirado e limpado todas as cadeiras das salas de aula, colocando-as no pátio. Nas paredes, sobre o corrimão da escada, lia-se um poema sobre resistência.
Ao entrar na UFCA, em 14 de dezembro, uma faixa gritante dizia: chega de violência. Ela ficou como marca permanente na arquitetura e na memória, durante mais de um ano esteve lá. Mas há sempre algo que fica, que marca, para além da poesia pintada, ou da faixa que se esconde.
Roberto Ramos diz que fica a politização dos estudantes, a certeza de que os discentes da UFCA não estão aquém do país, daquilo que chama a atenção da opinião pública.
Rodrigo Manfredine afirma que ficou o sentimento de pertencimento, de enxergar a universidade como uma casa, uma extensão de si mesmo. Fala, ainda, que as instituições de ensino superior devem transcender qualquer lógica utilitarista, de vir assistir aula e ir embora.
Camila Prado lembra da criação de laços entre os próprios estudantes, integrando-os, fala de um espírito de ocupação que leva a universidade para além dos muros que a ela são postos. Camila elabora, também, que a ocupação trouxe ao
estudante a ciência de sua relevância, pontuando que a posição dos estudantes é revolucionária, pois transcende a revolução proposta pelo técnico e pelo professor.
Contudo, a lembrança apresenta-se de muitos modos, sob muitas visões. Para a professora Silvana, o que fica da ocupação cabe em uma palavra, ‘prejuízo’. Ela diz: “Quando eu cheguei e vi salas pichadas, cadeiras quebradas, então ficou um prejuízo sim para Universidade. O que eu olho é que o movimento de invasão foi de prejuízo para Universidade e para os alunos no CCT, que foram os que mais tentaram negociar alguma forma de permanecer estudando. Para mim a palavra que resume é prejuízo.”
Atualmente, quase quatro anos decorreram do movimento de ocupações. As ideias se assentaram, o tempo passou. Hoje, a UFCA segue seu caminho de normalidade, uma normalidade nova, diferente daquela que vigorava antes. Cursos como as Engenharias Civil e de Materiais, e Administração de Empresas resolveram fundar seus Centros Acadêmicos. Aqueles que já estavam ativos conseguiram consolidar ciclos de renovação, ampliando assim o número de instituições estudantis de base, fator que permite uma maior pluralidade de ideias e debates. Hoje, vê-se muitas coisas, dentre elas, a necessidade de olhar o que precedeu o presente, olhar o passado e a sua densidade.
atitudes para reintegração de posse. O procurador Celso Leal afirmou que “em um Estado democrático de direito, os estudantes têm integral direito de protestar contra atos do governo, porém, não podem invadir o espaço público e suspender as aulas de forma discricionária.”
Ao receber tal recomendação, a Reitoria da UFCA respondeu da seguinte forma: “o movimento caracteriza-se pela ocupação do pátio central da instituição. Com a realização de debates e atividades culturais, não obstruindo o perfeito funcionamento da Universidade, não havendo
um certo receio que um dos lados efetuassem atos mais radicais.
Contudo, mesmo diante das controvérsias que se instalaram, das dúvidas, das questões com, e sem resposta, a ocupação trilhou seu caminho, deixou marcas em uma instituição ainda jovem.
Em 13 de dezembro era votada no congresso nacional a PEC do teto de gastos; foi aprovada. Em 14 de dezembro se encerrava a ocupação. Pouco mais de um mês após seu início, chegava ao fim. Os ônibus paravam, estudantes desciam, parecia que a cena de 10 de novembro se repetia,
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A densidade do retrovisor
Olhar pelo retrovisor é sempre algo convidativo, pois é necessário olhar para trás para tentar entender aquilo que ocorre no presente. O Cariri cearense é rico; de maneiras múltiplas se mostra e se descobre. Apresenta-se culturalmente como construtor de marcas de expressividade e de determinada maneira demarca modos de resistência e debate, sendo estes modos aceitos ou questionados.
Neste olhar ao retrovisor, percebese que os processos de ocupação insurgem como maneiras de ação, de defesa de bandeiras, atividades, como uma forma de lutar contra algo que se impõe. Em 2003, acontece a primeira ocupação do Cariri em uma instituição de ensino superior, segundo a professora Zuleide Queiroz. Esta ocupação ocorreu na Universidade Regional do Cariri (URCA), e tinha entre suas principais motivações a nomeação do André Herzog para a Reitoria da instituição, além de reivindicações que buscavam melhores condições estruturais e equipamentos para os espaços da universidade.
A ocupação se estendeu então por vinte e um dias, conseguindo unir muitos entes da comunidade acadêmica, professores, técnicos administrativos e estudantes. Os ocupantes saíram somente após reintegração de posse, realizada com auxílio do Batalhão de choque da Polícia Militar.
Seguindo a linha histórica do tempo, dez anos após a primeira ocupação, em 2013, a Câmara Municipal de Juazeiro do Norte-CE foi surpreendida com uma ocupação popular. Tal fato veio em resposta ao escândalo da “Farra das Vassouras”, que ficou nacionalmente conhecido, pois referiase a uma compra monumental de materiais de limpeza. Entre as pautas estava, ainda, um decreto recém aprovado que reduzia
Notas de uma assembleia
a remuneração de professores em 40%,, além do reajuste salarial que havia sido direcionado ao prefeito, seu vice, vereadores e secretários municipais.
A Câmara ficou interditada durante pouco mais de uma semana, produzindo um vácuo na prefeitura, pois o então gestor, Raimundo Macêdo, havia sido afastado do cargo e o vice-prefeito não conseguiu tomar posse antes da ocupação. Ressaltase, porém, que isso não trouxe prejuízo aos serviços da cidade, e a ocupação acabou depois da assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), que estabeleceu prazos para cumprimento das pautas do movimento ocupante.
Em 2014, voltamos a presenciar ocupações em setores educacionais, neste caso no Centec Fatec Cariri. Membros de todas as classes se uniram e fecharam o acesso a instituição, alegando que era imprescindível que fossem realizadas reformas nos prédios, além da compra de materiais de laboratório e atualização de softwares aplicados em diversas disciplinas. Estudantes e professores explanavam tais necessidades como fundamentais para o melhoramento das aulas que, segundo ambos, estavam sofrendo graves prejuízos. Não existem dados específicos sobre a extensão do ato, mas sabe-se que ele resultou em diversas ações propositivas que culminaram com ganhos positivos a instituição.
Após este pequeno preâmbulo, chegamos ao ano de 2016, marcante para todo o país, por um conjunto de fatos e atos. Dentre estes destaca-se o impeachment da então presidente, Dilma Rousseff e, no segundo semestre, o corpo de movimentos de ocupação que se espalhou por todas as regiões do país. (Paulo Junior)
Logo após assembleia de professores decretando paralisação em apoio aos estudantes e técnicos, o professor José Anderson Sandes publicou, no dia 19 de novembro de 2016, na lista de e-mail Diálogos, um breve relato sobre o tenso processo. Leia abaixo.
Professores a favor com o mesmo discurso, no mesmo diapasão, só mudou a forma. Da urgência do professor Ricardo Salmito, passando pela necessidade de uma revolução mundial da professora Maria Luíza, até várias afirmativas e validações, algumas em tom mais brando, outras nem tanto, sobre a necessidade da greve diante da PEC e da paralisação dos nossos alunos e técnicos.
Professores contrários não se manifestaram. Medo? Prudência? Cautela? Aversão ao clima de assembleísmo? Falta de argumentos?
Professor Leonardo de Almeida Monteiro, presidente da ADUFC, chegou a colocar, mas não aprofundou, que a assembléia desrespeitava o plebiscito já realizado nos dias 31 de outubro e primeiro de novembro, quando 913 professores votaram contra e 666 a favor da greve por tempo indeterminado.
Outras falas tentaram explicar, mas não foram também concludentes sobre a questão. Talvez pelo curto tempo para cada, três minutos. Houve manobra do Sindicato? Existiram falhas da ADUFC durante a
realização do pleito? A manobra por uma greve por tempo determinado é legal, mas não moral?
Seguiram-se mais algumas explicações sobre o mesmo tema - a importância e a necessidade de nova consulta. Também não concluídas, possivelmente pelo pouco tempo de fala, três minutos. Professor chegou a avaliar que, caso fosse decidido pela greve por tempo determinado, o placar deveria ser mais extenso, para não mostrar divisão entre professores. O placar foi apertado: 290 a favor, 190 contra. Divisão clara.
Depois da fala da professora Beatriz Furtado, elogiando a reitoria da UFC que, em nota, apoiou os estudantes em greve, uma pergunta: por que a reitoria da UFCA não fez o mesmo?
Logo após o anúncio da votação, os professores do CCT da UFCA, contrários à paralisação, saíram em peso, reclamando do resultado. Alguns afirmaram que continuariam com as suas aulas.
Um professor das engenharias cutucou outro das Humanas: “isso aí que vocês fizeram não tem valor”.
Membros importantes da reitoria comemoraram resultado com grande alegria, batendo palmas e vivas. Poderiam ter sido mais sóbrios diante de um cenário de divisão de professores. (José Anderson Sandes)
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Ela vive entre suas criações na calçada de uma casa simples no bairro Tiradentes. São bonecos grandes e pequenos e uma variedade de produtos artesanais. Conheça a história da artesã Vilani Borges.
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Textos e fotos: Guilherme Antônio
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Quempassa pela rua Martiniano Santana, no bairro Tiradentes, em Juazeiro do Norte, não pode deixar de notar que em meio às pequenas casas de portão e janela simples, como é comum nos bairros periféricos, existe uma pequena placa escrita à mão “Bazar e Artezanato”, na casa de número 74, onde dona Vilani mora sozinha. Aos 67 anos de idade, ela entende a arte de confeccionar bonecas de pano como uma forma de se manter entretida diariamente.
Ela expõe as bonecas na sua calçada, logo nas primeiras horas da manhã. Fica ali sentada costurando seus panos e escutando o programa do Padre Reginaldo Manzotti pelo rádio. Observa o movimento da rua, as crianças que passam para a escola acompanhados de seus pais, os carros apressados e as pessoas com seus dramas diários. Ali, a artesã consolida seu processo de trabalho - confeccionando novas bonecas -, uma criação que suplementa sua fonte de renda.
Arte da Costura
Quando veio morar em Juazeiro do Norte, em 1972, Vilani Borges da Costa deixava um Iguatu devastado por uma enchente que destruiu a
eram pessoas de verdade. Logo, imaginou o pior: um velório na casa da artesã. Ao se aproximar da casa, percebeu melhor os bonecos e riu da situação. Dona Vilani achou muito engraçado e deu graças a Deus, eram apenas suas bonecas, e não seu funeral.
Além dos bonecos, ela confecciona tapetes de fuxico, bichinhos de pelúcia para encostar nas portas de casa, tapetes de retalho, guardadores de sacola e bonecas pequenas, que também compõem o seu catálogo. Embora bonecas sejam vistas como um brinquedo, geralmente a arte de Dona Vilani tem um destino diferente: a decoração.
Por exemplo, o mês de Junho traz consigo as festas juninas e as bonecas de dona Vilani ganham uma atenção especial nesse período. Ela conta que são compradas em maior número, nessa época do ano, principalmente por escolas para enfeitarem os arraiais das crianças. Em geral, os colégios compram duas bonecas grandes: um homem e uma mulher e montam um cenário composto por um casal caipira.
Os preços também são variados e se encaixam nos diversos orçamentos da clientela. As bonecas
Os bonecos grandes eu não vou mais fazer, não. Eu vivo doente né? Mas não vou parar, não. Deus me livre Paro não porque eu não sei estar sem fazer nada não, meu filho
Vila Neuma, localidade onde morava com seus familiares. Como em um êxodo rural, sua família veio para Juazeiro, uma cidade maior, em busca de melhores oportunidades de vida. Desde então, já morou em dois bairros da cidade: no João Cabral, primeiramente, e agora no Tiradentes.
Dona Vilani usa a calçada da casa para expor sua arte como em uma vitrine. Além disso, sua casa também funciona como um brechó popular. São peças doadas pela comunidade, embaladas em sacolas lotadas - roupas, sapatos, chinelos, principalmente. E muitos retalhos para ela confeccionar suas bonecas e outros produtos artesanais. Tudo é vendido a preços acessíveis.
Os bonecos de pano têm o tamanho de uma pessoa e, sem dúvida, são os que mais chamam a atenção dos que passam pela calçada de dona Vilani. Muitos se tornaram seus fregueses. Em meio à risadas, ela lembra de uma mulher que se espantou pela presença dos bonecos em sua calçada. Como vinha distraída, acreditou, num primeiro momento, que os bonecos nos bancos
pequenas variam entre 5 a 10 reais, um presente diferenciado para crianças. Já os bonecos grandes, devido à sua dificuldade de fabricação e a suas diferentes finalidades, encontram-se numa faixa de preço bem maior, entre 150 a 180 reais. No mais, tudo é barato. Os encostos de porta custam 5 reais e os guardadores de sacola, 15.
A calçada da casa da artesã já consolidou-se como um ponto de vendas. Por isso, dona Vilani teve a ideia de vender também produtos variados a fim de aumentar a renda. “E tem lambedor pra vender também, fiz ontem pra vender, e tem tempo que aqui tem doce de gergelim, doce de mamão, tudo que eu faço e boto aqui na porta e vende tudo” - disse ela, apontando para três garrafas do mel artesanal expostas em uma mesinha vizinho a ela.
Processo artístico
Costurar não é algo fácil. A arte de confeccionar objetos através de pano requer tempo e muita
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Memórias Kariri
DONA VILANI Dezembro
2019
Dona Vilani cotidianamente confecciona e vende seus bonecos na calçada de casa, no Tiradentes
DONA VILANI
dedicação. De maneira geral, a atividade é passada através da família, geralmente de pais para filhos. Porém, com Dona Vilani isso foi diferente. A artesã fala com muito orgulho que tudo que ela sabe fazer hoje, aprendeu sozinha, apenas observando outras pessoas trabalharem. Ninguém pegou na sua mão, pôs a agulha e lhe guiou entre os panos.
Com apenas seus olhos atentos nas mulheres que faziam costura, a artista desenvolveu seu trabalho. “De primeiro eu fazia só tapete. Mas aí agora é tapete, é boneca, é bonecão, é tartaruga, é almofadinha de escorar porta, é sofazinho, é cobra de tapar brecha de porta.
A confecção dos bonecos veio mais tardiamente, mas também desenvolveu-se com independência de ensinamentos. Ela conta que uma vez, assistindo um programa na televisão no canal da TV Diário, viu bonecos de pano serem exibidos por artista de Fortaleza e aquilo a inspirou. Fascinada pelo tamanho e pela beleza deles, Dona Vilani enxergou ali uma oportunidade de expandir sua arte e seu trabalho.
“Foi na TV Diário, mas não da Garra das Patrulhas, não. Foi um programa que o homem saiu fazendo uma apresentação com bonecos. Não sei se foi num programa de brega, parece que foi, no Programa do Silvino Neto. Aí eu vi os bonecos e eu olhei bem olhado e disse: eu vou fazer boneco grande, e fiz, eu fiz e tô fazendo!”
Dona Vilani, ainda muito feliz por falar de sua eficiência, diz que certa vez, sua vizinha a mostrou um pequeno sofá de encostar portas -
desses que se vê nas casas das pessoas. E para ela, perceber aquilo foi o suficiente. A beleza a encantou, a inspiração bateu na porta e, o mais rápido que pôde, suas mãos começaram a costurar. E foi um sucesso. Todo mundo que passava se encantava com a arte simplista da senhora e não resistia em levar uma lembrancinha daquelas para sua casa.
O processo artístico da confecção é trabalhoso. E torna-se ainda mais complicado quando estamos tratando de uma senhora que faz tudo sozinha. Dona Vilani conta que os grandes bonecos de pano, os que geralmente atraem mais a atenção dos passantes, demoram cercas de três dias para serem finalizados e, devido ao seu tamanho, necessitam que ela fique em pé ao lado da mesa da cozinha, onde eles são costurados de maneira bem dedicada.
De origem simples, e dependente de uma aposentadoria pequena que é rapidamente destinada à quitação de dívidas e contas mensais, a artesã agradece as pessoas que doam roupas e tecidos afins. Segundo ela, em um mês com muitas doações, seu único investimento para comprar materiais é destinado a adquirir a tinta para pintar os olhos e as bocas das bonecas e as diferentes linhas e agulhas que ela usa. E isso, para ela, é um dos fatores que mais a incentiva financeiramente para continuar seu artesanato.
Fé e Esperança
Além de sua arte, a religião também está muito presente no dia a dia de Dona Vilani. Ao entrar em
sua casa duas coisas são facilmente perceptíveis logo no primeiro cômodo: as bonecas de pano e os itens religiosos. Estátuas de santos feitas de gesso, uma grande bíblia com um terço ao seu redor estão localizados em uma espécie de altar na sala de estar. Nas paredes, crucifixos de Jesus Cristo, quadros da Virgem Maria, do Padre Cícero e de alguns papas da Igreja Católica dão vida àquele cômodo.
Durante a entrevista, a artesã escutava um programa católico, atividade que tem como um hábito. Típico das senhoras nordestinas, Dona Vilani anda com um rosário no pescoço, utilizando-o como colar. Quando questionada sobre Deus, seus olhos se arregalaram com um certo espanto, como se a ousadia de ao menos cogitar fazer essa pergunta tornava o questionamento algo estúpido, pois nas entrelinhas de sua fé, a importância de Deus é inquestionável.
Desvalorização e dificuldades
A fala de Dona Vilani carrega um ar de felicidade que só as pessoas mais simples conseguem expressar. Apesar das dificuldades de ser uma mulher idosa que mora sozinha e tenta vender sua arte por conta própria, ela não desanima no dia a dia e leva toda a conversa com um tom bem humorado.
Pela idade um pouco avançada, problemas de saúde já a afetam. Ela reclama da artrose a aponta para os seus pés que estão cobertos por um pomada branca cuja finalidade é diminuir a dor. A sua visão, conforme conta, também apresenta sinais falhos. Como Dona Vilani é uma senhora bem simples, que não usufrui de um grande aporte financeiro, a dependência da saúde pública para o tratamento das mazelas causadas pelo tempo se torna um processo demorado.
Ela explica que o posto de saúde do Bairro Tiradentes está sem médico para atender no momento, então resta esperar a chegada de um profissional da saúde qualificado para examinála ou procurar o Hospital Tasso Ribeiro Jereissati - popularmente conhecido como Estefânio, próximo ao shopping Cariri Garden e bastante distante da sua casa.
Devido à necessidade de precisão no ato de costurar, o fato de estar ficando “ceguinha, ceguinha mesmo” - como ela fala - dificulta a costura das peças. Somado a isso, as bonecas de tamanho real tornam-se, conforme sua artrose vai piorando, quase impossíveis de serem feitas, por demandarem um certo esforço físico durante
o tempo de costura, que pode levar até três dias para ser finalizado.
Sobressaindo as limitações físicas impostas pelo tempo, Dona Vilani diz que a coisa que mais a desmotiva a continuar seu trabalho artístico vem da desvalorização do artesanato. Ela fala que, ao longo de seus quase 40 anos como artesã, nenhum órgão governamental ligado à cultura ou a arte sequer soube da sua existência ou tampouco procurou saber.
Além disso, a desvalorização do preço de seu trabalho é bastante desmotivador. Trabalhos como a confecção de tapetes, que levam dias para serem finalizados, custam quantias pequenas, chegando ao máximo a 20 reais. Apesar do preço já ser baixo, as pessoas ainda pedem desconto e acham que o preço pedido originalmente é alto demais. Essa prática, sem dúvidas, é totalmente desprovida do reconhecimento do esforço da artesã e da qualidade de seu trabalho.
O ano de 2019 também não foi fácil para a venda das bonecas, especialmente na época junina. Nos anos anteriores, Dona Vilani vendeu
Pra mim Deus é tudo na minha vida, tudo. Jesus e Maria pra mim é tudo. Se não fosse, se eu não botasse Deus em prática e tivesse atenção a Jesus, como é que eu vivia, meu irmão?
no mínimo duas bonecas grandes para os festejos de São João e São Pedro. Esse ano, infelizmente, nenhuma boneca foi vendida. O preço, que originalmente rodeava a faixa dos 160 reais, caiu para 50, mas ainda não foram vendidos.
A culpa, segundo ela, está no governo. Ela diz que o povo pobre está sem dinheiro, diferente dos ricos que passam bem. O governo, então, através de um olhar desatento à população mais pobre, e consequentemente à população artesã, sucateia as expressões artísticas que carregam no seu íntimo o que mais é verdade no povo brasileiro: a simplicidade de fazer as coisas com amor.
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Dona Vilani: “É só eu e Deus. Ninguém me ensinou não, eu vendo, eu faço”
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Dezembro 2019
Fogo das Guaribas
A tragédia de Chico Chicote
Em 28 de Janeiro de 1927, chegou a Brejo dos Santos (atual Brejo Santo), uma volante comandada pelo então Primeiro Tenente – José Gonçalves Bezerra, um dos mais sanguinários integrantes das forças policiais que o Ceará já teve em seus quadros, responsável também por parte das operações de desmonte e ataque do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto. A justificativa para a mobilização militar era a presença de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, em terras caririenses.
Texto: Roberto Júnior
Aregião do Cariri foi um dos mais importantes pontos de pouso do grupo de Lampião e de outros cangaceiros - estando eles absolutamente confortáveis e seguros diante dos ilustres anfitriões que possuíam por aqui.
O objetivo final de José Bezerra e seu troço de malfeitores, era na realidade cumprir os mandatos de alguns potentados rurais da região, e dentre estas missões, estava o aniquilamento de Francisco Pereira de Lucena (Chico Chicote), Antônio Grangeiro e Antônio Marrocos de Carvalho (Nêgo Marrocos).
Não era novidade o uso das forças militares do estado como braço armado do coronéis, muitos casos são relatados na crônica histórica, onde o poder político e financeiro exercido pelos mandões locais foi suficiente para corromper os que deveriam prezar pelo cumprimento da lei, e o caso aqui relatado trata justamente de mais um destes “pacotes de pistolagem” negociados pelos coronéis e executados a seu mando.
Um alvo a ser atingido
O caso de Antônio Marrocos de Carvalho é um dos mais absurdos presentes neste relato; residente em Macapá - a época um distrito de Jardim, e atualmente cidade de Jati - Nêgo Marrocos era um coletor de impostos que ganhava expressão popular com rapidez, sendo assim uma verdadeira pedra no sapato nas carcomidas lideranças políticas tradicionais do lugar; o sujeito sofreu difamações e até emboscadas, mas diante do insucesso destas, foi na pessoa do Tenente Zé Bezerra que os mandões do local encontraram solução para seus problemas.
Usando como argumento o fato de que no passado, Antônio Marrocos havia dado abrigo a
Lampião e seu bando, Zé Bezerra o convidou para uma missão contra o cangaceiro, o que segundo ele afastaria das autoridades policiais e da população, a sua fama de coiteiro, e traria tranquilidade aos seus dias seguintes. Nêgo Marrocos seria figura central no desenrolar do objetivo final da missão, que era por fim a vida de Chico Chicote e Antônio Grangeiro. Vale destacar que o fato de dar coito a um grupo armado nem sempre é uma atitude voluntária de quem executa, muitos dos que sofreram retaliações e violências por conta dessas ações, as fizeram por meio de coerção.
Chico Chicote e Antônio Grangeiro
Francisco Pereira de Lucena nasceu em Brejo dos Santos, em 08 de Janeiro de 1879, e era
Foto: Antônio Vicelmo 22 Memórias Kariri
Casa de Chico Chicote, Guaribas
Tenente Zé Bezerra causava o terror na população
Foto: Arquivo Pessoal
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FOGO DAS GUARIBAS
o filho caçula do Capitão Francisco Pereira de Lucena e Donina Maria de Jesus; Chico Chicote era o que comumente chamamos de “Nó Cego” aqui no sertão; ainda jovem deu provas de seu caráter autoritário e violento, tendo sido expulso do Seminário São José, em Crato, após tentar ferir com um canivete um dos alunos da instituição. Já na vida adulta, Lucena era um tipo robusto o suficiente para impor medo, falava sempre aos berros e demonstrava desdém por qualquer autoridade, assim como também grande lealdade com sua parentela e amigos, e grande receptividade aos que buscavam a casa grande de Guaribas como local de pouso.
Era este homem, compadre de Antônio Gomes Grangeiro, dono do Sítio Salvaterra, em Brejo Santo, uma localidade próxima a Guaribas, numa relação que diante dos relatos e depoimentos, não era totalmente sadia, o que seguia em certa medida o padrão das relações que envolviam os coronéis de outrora. Grangeiro estava há algum tempo envolvido em disputa de terras com José Franklin de Figueiredo, o José Franco; segundo o depoimento de D. Raimunda Grangeiro, última filha viva de Antônio Grangeiro, o pai não havia até o momento buscando meios violentos de resolver a demorada peleja, mas isto não impediu que Chico Chicote, com a desculpa de tomar as dores do amigo, assassinasse José Franklin, causando a ira de Sinhô (Sebastião)
Passado o tiroteio e a retirada das forças policiais, populares seguiram até Guaribas para resgatar feridos e o corpo de Chico Chicote
de Princesa, que o ajudou a montar um pequeno exército de jagunços, e a fazer contato com o Tenente Zé Bezerra, que ficaria responsável por dar ares de legalidade a ação, atendendo assim aos interesses particulares dos coronéis.
Assim, fechamos o segundo elo desta narrativa, sendo importante destacar que não existem indícios de que Antônio Grangeiro fosse o mentor intelectual do assassinato de José Franklin, muito pelo contrário, há versões que indicam que Chico Chicote possuía dissabores antigos com o morto, e que diante de uma justificativa que aliviava sua culpa, executou a ação.
A marcha sanguinária
A volante de Zé Bezerra era composta inicialmente por cerca de 70 homens, sendo o seu auxiliar imediato o Tenente Verissmo Gondim, e acompanhava o batalhão assassino, o Nêgo Marrocos, de quem já falei anteriormente, e que agora irei explicar o motivo de sua importância para a execução dos planos de Bezerra.
Marrocos era amigo de Chico Chicote, e conhecia a casa grande de Guaribas como poucas pessoas, além do mais, sua presença junto aos militares causaria um retardo no poder de resposta após o início do tiroteio. O padrão da construção desses imóveis os tornava verdadeiras fortalezas, localizadas em pontos que proporcionavam visão estratégica, e construídas para durar e para proteger seus moradores de ataques como os dessa natureza, assim sendo, e agindo dissimuladamente para não levantar suspeitas de Antônio Marrocos e outras pessoas que topou no trajeto, Zé Bezerra fraudou documentos e fazia questão de destacar que a passagem na casa de Chicote seria somente com a finalidades pacíficas, tendo supostamente solicitado uma planta da construção, no que teria sido atendido por Marrocos.
era sobrinho de Antônio, e os dois últimos moradores de suas terras.
Salviano, cunhado do falecido, que diante da fama e capacidade de Chicote, preferiu se retirar para Princesa Isabel, na Paraíba, onde buscou o apoio de José Pereira Lima, o maldito Zé Pereira
Nas primeiras horas de 01 de Fevereiro de 1927, a caminho de Guaribas, que hoje está inserido no município de Porteiras, os militares fizeram parada no casarão do sítio Salvaterra, em Brejo Santo, morada de Antônio Grangeiro, onde com grande violência renderam a ele e mais três pessoas: João Gomes Grangeiro (Louro Grangeiro), Raimundo Madeiro Barros (Mundeiro) e Aprígio Temoteo; o primeiro
A volante seguiu sua marcha em busca de Chico Chicote, e estima-se que faltando apenas 500 metros da casa do mesmo, Zé Bezerra, para não espantar Nêgo Marrocos e nem dar alarde de sua aproximação, ordenou que o grosso da tropa estacionasse junto dos prisioneiros e aguardasse novas instruções, tendo feito o restante do trajeto acompanhado somente de Marrocos, do Tenente Verissimo Gondim, e também do Sargento Antônio Gouveia e João Alves Feitosa, este último era corneteiro e apelidado de Louro. Enquanto isso, a sorte de Antônio Grangeiro
e seus companheiros seria das piores: foram assassinados a tiros, em seguida degolados e tiveram seus corpos incinerados.
A aproximação de Guaribas estava ocorrendo como previsto: Marrocos foi reconhecido pelas pessoas que já enchiam o “oitão” do imóvel, que por sua vez avisaram a Chico Chicote da chegada de seu amigo; eram 7h da manhã. Em seguida, Verissimo Gondim desferiu um disparo nas costas de Antônio Marrocos, que tombou em suas últimas agonias. Em depoimento alguns anos depois, Mundinha Piancó, viúva de Marrocos, informou que o militar responsável pelo disparo
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Antônio Marrocos, coletor de impostos em Macapá, atual Jati: assassinado por questões políticas
Foto: Arquivo Pessoal
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FOGO DAS GUARIBAS
havia sido subornado com 5 contos de réis, valor considerável para a época.
Chico estava nas suas plantações vizinhas a casa, preparando os alimentos que seriam utilizados nas festividades de Nossa Senhora das Candeias, sua santa de devoção. Ao escutar o disparo, correu junto do filho, Vicente Inácio, e de dois cabras seus, Sebastião Cancão e Mané Caipora, para a frente do casarão. Armado de rifle, iniciou o combate aos agressores, tendo sido Sebastião Cancão o responsável por derrubar o corneteiro com um tiro na cabeça, enquanto este soava o instrumento que avisou ao restante dos atacantes que era hora de marchar; foi a primeira baixa no lado das volante.
Durante a marcha dos que haviam ficado de tocaia, Joaquim Morais, morador de Chico Chicote, deitou fogo nos militares, travando intenso tiroteio, mas que diante do volume da tropa, terminou sucumbindo e sendo incinerado num depósito de milho nas imediações. A chuva
no que foi respondido com uma visita de Lampião em 31 de Janeiro de 1927, véspera do ataque; ciente da ida do cangaceiro, fugiu Grangeiro para evitar danos maiores, tendo sua esposa, D. Celina, relatado que o Virgulino havia dito que não temessem a ele, mas aos “bonzinhos” que vinham no seu rastro, obviamente o Tenente Zé Bezerra e seu magote. Assim temos a dimensão da rede de informações que Lampião dispunha.
Também da sede de Porteiras foi possível ouvir a intensa troca de tiros, e um contingente de 50 pessoas - incluindo dois filhos de Chico, seu genro, populares, e membros do destacamento policial – rumaram para Guaribas, acreditando que era Lampião o responsável por perpetrar o ataque; grande surpresa tiveram ao se deparar com verdadeiros bandidos fardados sitiando o casarão, mas ainda assim endossaram a resistência. Os que já estavam no imóvel eram muito habilidosos com as armas, prova disso é que antes da chegada dos reforços, estavam
Após a morte de Chico Chicote, a propriedade foi totalmente devastada. Animais foram mortos, plantações incineradas, dinheiro, joias e tecidos foram roubados, e até as propriedades vizinhas foram atacadas
de balas era enorme, o casarão passou a ser atingido por todas as frentes e a resistência era composta por pouquíssimas pessoas, basicamente Chico, seu filho, os dois cabras, e sua esposa e filha, estas últimas atuando na refrigeração e recarregamento dos rifles, tendo como auxílio uma gamela de água.
Ali próximo, na Sitio Malhada Funda, Lampião escutava o intenso tiroteio, e supostamente teria declarado: “Se fosse meu amigo, eu ia lá”. Mas não era o caso, Chicote era inimigo declarado do Rei do Cangaço, tendo se indisposto com ele após Virgulino ter “levantado falso” num caso de abate de reses do Coronel Pedro Martins, da Fazenda Cacimbas. Antônio Grangeiro também não mantinha laços com o cangaceiro, tendo sido um dos integrantes de um abaixo assinado solicitando reforços policiais contra o bandoleiro,
dando combate cerrado, de modo que as 16:00, Antônio da Piçarra conseguiu meios de tirar Chico daquela peleja, no que foi rechaçado pelo Coronel de Guaribas, que afirmou que dali não sairia, tamanha eram a afronta que estava sofrendo, Chicote perdeu assim sua última chance de salvação. Às 17h chegaram no local volantes do Pernambuco e da Paraíba, esta última reforçada com a participação e comando de Sinhô Salviano; a combatividade de Chico era tão grande, que mesmo após a fuga de boa parte de seus aliados, estando acompanhado de pouquíssimas pessoas, dentre elas o fidelíssimo Mané Caipora, causou sérios estragos nas forças policiais, que somavam um troço de mais de 200 homens. Chicote corria em cada porta e janela do imóvel, dando a
impressão de que várias pessoas estavam atirando, e assim afastando os invasores.
O desfecho
Após 31 horas de combate, às 14h do dia 02 de Fevereiro de 1927, baleado no maxilar inferior, no braço esquerdo e com o tiro fatal no tórax, Chicote foi encontrado de joelhos, amparado na parede, na posição de atirar e ainda com uma bala na agulha. Estava completamente escura a sua pele do rosto, mãos e braços, por efeito das horas de disparos por ele executados, e naquele momento Sinhô Salviano executou sua vingança pela morte do cunhado, encravando na axila esquerda de Francisco um punhal, configurando semelhante ferimento ao que Chico havia causado em José Franco.
A atuação da família de Chico neste episódio causou imensa estranheza na época, e ainda causa atualmente. A família Chicote era influente na região, de modo que Quinco Chicote era chefe político de Brejo Santo, e dispunha de aliados em toda a redondeza, ainda assim, o mesmo não enviou ajuda ao irmão sitiado, e nem autorizou que coronéis como Isaias Arruda, de Missão Velha, socorressem o atacado. Foi também um sobrinho de Chico quem guiou os assassinos do tio até sua casa, e há indícios de que a atuação de Zé Bezerra era de conhecimento do presidente do estado, Moreira da Rocha, tendo existido influência da família no pedido de intervenção do governador. Tais fatos, deveras escandalosos, são decorrentes de intrigas e desavenças de Chico com os seus familiares, mas houve e há quem diga que o coronel de Guaribas, independente dos dissabores, jamais deixaria de socorrer os parentes e amigos, imagine então conspirar contra eles.
Após a morte de Chico, a propriedade foi totalmente devastada. Animais foram mortos, plantações incineradas, dinheiro, joias e tecidos foram roubados, e até as propriedades vizinhas foram atacadas. Na sede de Brejo Santo, os comandados de
Zé Bezerra causaram o terror na população, principalmente nos parentes de Chicote.
Passado o tiroteio e a retirada das forças policiais, populares seguiram até Guaribas para resgatar feridos e o corpo de Chico Chicote. Mais de 20 baixas foram contabilizadas entre os membros da volante, que foram sepultados ali mesmo, fator que contribuiu com a fama de que o local tornou-se assombrado. Chicote foi velado na casa de seu irmão, Pedro Lucena, na Rua da Taboqueira, em Brejo Santo, tendo sido sepultado por volta das 9h do dia 03 de fevereiro no cemitério da mesma cidade. Dona Geracina, sua esposa, e sua filha, Josefa, também foram levadas até Brejo, onde foram amparadas.
Zé Bezerra foi assassinado em 10 de maio de 1937, envolvido em mais um caso escabroso, o do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto. Veríssimo Gondim foi morto em 26 de junho de 1932atingido pelas costas assim como fez com o Nêgo Marrocos pelo coronel Raimundo Augusto Lima, suas últimas palavras teriam sido: “Que homem falso”. Suas ações foram questionadas na época, e hoje principalmente.
Ao fim de tão longo relato, convém destacar que este artigo não traz defesa a figura de Chico Chicote, e sim uma abordagem do uso da máquina pública e suas forças de repressão ao bel prazer dos coronéis e lideranças políticas, sendo inegáveis as permanências históricas de algumas destas práticas, infelizmente. Casos como o Fogo das Guaribas e o Caldeirão, trazem à tona as motivações que fundamentam a ojeriza de boa parte da população as forças policiais naquele período, sentimento este que ainda pode ser sentido. O casarão de Chico Chicote foi demolido no início dos anos 2000, e em memória de Antônio Grangeiro e dos outros que foram brutalmente assassinados junto a ele, foi erguido um mausoléu, que hoje corre risco de ser demolido.
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Lagoa dos Crioulos
Lenda, toré, reza e parto
Texto: Bibiana Belisário
Fotos: Bárbara de Alencar e Jayne Machado
As cidades do Cariri se encontram pelo caminho das águas. Começam por lagoas encantadas e transbordam em pedras que formam esse grande caldeirão. Aqui, saímos do tempo profano, cronológico e adentramos no universo das Iaras e serpentes. É assim, que no oeste caririense nasce a história da comunidade quilombola Lagoa dos Crioulos, distrito de Salitre, Ceará.
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LAGOA DOS CRIOULOS
Véspera da semana santa, a meninada corria solta no meio da terra fazendo poeira e brincando de careta. O que mais valia, era a algazarra de tá na rua. Senhoras nas calçadas, bicicletas indo e vindo. Ali estava o cenário pronto para uma tarde de prosa com as narrativas das pessoas que se disfarçam de céu a noite e fazem os olhos virarem estrelas.
Se voltarmos ao tempo em que o astro rei era quem guiava as horas, compreenderemos o nascimento do povo dali. Cresceram no berço da mãe d’água cuja cantava na pedra bem no meio da lagoa, que situada na entrada da localidade, atualmente abastece as famílias em época de chuva. As árvores grandes que fazem sombras nas beiras, era lugar de sossego pro boi crioulo que deu nome à lagoa e ali margeava depois de desgarra-se de uma boiada que passava pela Chapada do Araripe, como um guardião.
só as folhas secas no barro rachado do chão da lagoa.
A nova matriarca
Chegamos na casa de Dona Maria Grosso com olhos sonolentos de pósalmoço e dia chuvoso. Mesmo com os tantos detalhes do lugar, não me detive a um que fugisse do sofá onde estava sentada a senhora com seu vestido de botões, todo cor de rosa. Nascida e crescida na Lagoa, conta que seus pais “nascero ali pro lado do Sítio Tanque Novo”. Após anos, se mudaram pras terras da Lagoa dos Crioulos dizendo
Aqui começou tudo depois que descobriram que aqui é uma comunidade quilombola, tá ouvindo os galos aí cantando? Pois era do mesmo jeito antes, só os galos cantando
O padre do vilarejo vizinho celebrava missa lá todo amanhecer e os trabalhadores das redondezas iam pedir coragem pra começar o afazer. Na época não havia casa alguma no lugar, apenas uma pequena barraca de dois homens caçadores. Julgando estarem tendo visões, se perturbaram com a ideia de atirar na sereia que os enfeitiçava com seu canto sagrado. Ouviram de longe os disparos. A mulher se encantou na pedra e junto dela foi-se o boi crioulo, não havia rastros.
Após três dias, o lugar foi descoberto como abundante e farto por gente de todo lugar. A riqueza estava diretamente ligada a pedra, onde a presença da sereia permanecia marcada. Tudo que possui preciosidade, a humanidade se assombra com a falsa necessidade de tirar uma lasca. Assim fizeram, os fazendeiros e caçadores arrancaram um pedaço da pedra e rapidamente saíram dali, deixando pra trás
que os brancos estavam precisando de morador para cuidar do plantio. Sobrevivendo das roças de mandioca, feijão e milho, criaram seus dez filhos na labuta e resistência.
“Eu tem quais cem ano”. A sensação era de que de fato, tinha pra depois dos cem. Afirma não saber porquê tanta procura por ela pra contar a história do lugar, relembrando com saudade da companheira
Maria do Céu que faleceu em 2013, “ela era nossa mãe”. Hoje Maria Grosso é considerada a nova matriarca da comunidade. A
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Ilustração: Letícia Persiles
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pele enrugada não só conta todas as andanças da mulher, mas irradia a força das noitadas de lua cheia que passou ao redor das fogueiras dançando toré.
“Sabiá dunderudê, sabiá ô sabiá dunderudá, sabiá e quem num gosta de nois dois, sabiá e de quem diabo quer gostar, sabiá rodô, trocô, sabiá balance eu, sabiá”
O verbete toré no Nordeste está para uma dança cantada, de origem indígena. Registra-
se também que os quilombolas do alto sertão de Alagoas dançavam o toré ainda na década de 1930. Atualmente, na cidade de Potengi, Ceará, que fica apenas à 52km de distância de Salitre, a comunidade quilombola Carcará busca resgatar as tradições cultuadas em seu território pelos mais velhos, e isso inclui o toré, que afirmam ter sido trazido por pessoas que se mudaram para lá no século XIX. Já na Lagoa dos Crioulos, outros processos nascem. O reconhecimento é o primeiro e maior passo que vem sendo trabalhado.
Maria Grosso cantava como se tivesse puxando o fio condutor de todas as memórias do seu povo, falou que na brincadeira “um
ia e soltava aquele, pegava os outros lá na frente, tudo dançando”. Eram noites e mais noites. Quando a perguntei sobre seus filhos, ela responde “perdi a conta”. Ao final de ir e vir nos dedos contando por nome, número ou até mesmo jeito, lembrou que ao todo foram quinze, mas “só ficou viva duas”.
Ser remanescente quilombola pra Dona Maria é ser feita pronta pra tudo. “Eu era pega neném, pegava, mas a vista hoje não dá mais não, me assombrei”, parteira desde os 16 anos, compartilha que muitos meninos da Lagoa escorregaram pro mundo pelas suas mãos. Com olhos distantes, relata quantas
mulheres já se foram com “suas cria” por terem sofrido violências durante a gestação e diz que “é tanta gente trabaiadora tá virando terra debaixo do chão”.
“Aqui começou tudo depois que descobriram que aqui é uma comunidade quilombola, tá ouvindo os galos aí cantando? Pois era do mesmo jeito antes, só os galos cantando”. Cerca de 320 famílias residem atualmente na Lagoa dos Crioulos e são acompanhadas pela Cáritas da diocese de Crato. Maria Grosso conta que pra se reconhecer como quilombo precisa se sentir pertencente à terra independente de papel e
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Dona Maria Grosso é considerada a matriarca da comunidade puxa o fio condutor das memórias do seu povo: ‘’Eu tenho cem anos” Dezembro
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depois enxergar todo mundo ali como família, “é tudo sangue do mesmo sangue”.
Dona Maria carrega uma vitalidade imensa. O histórico de opressões vividas naquele corpo, mente e coração fazem com que hoje relembre tudo em um misto de desgosto e alegria, pois como ela disse “sobrevivi, mesmo que ainda essa noite eu não sabia onde tava”. A memória já falha à cabeça, mas por si, a senhora das luaradas já é uma memória viva. Cheia de esperança, enche o peito de quem passa por lá. Agora entre sem pedir licença, que ela vai lhe receber com um “tá entrando sem pedir permissão, bicho da cara lisa? Eu tô é esquecida né cega não”.
Eu rezo em nome dos santos
“Quem chegar aqui em casa eu rezo”, assim nos recebeu Expedita Tereza. Nascida e crescida na comunidade do Sítio Arapuca, aos 77 anos
com suas preces numa simbiose da natureza da terra com o astral.
A imagem dessas mulheres se constitui como um vitral que agrega a efervescência espiritual despida das materialidades terrestres, expressando uma procissão de símbolos que mesmo estando dentro de uma tradição católica, extravasam esse universo. No alto da parede da sala da frente, a imagem de Yemanjá ganha destaque, quando pergunto qual a ligação dela com a entidade, ela conta “eu acredito em yemanjá, ela num tá aqui, num sei contar a história dela bem contada não, mas eu sinto”. Dona Expedita explica ainda que os ramos retirados para rezar, nunca podem ser da rua, tem que ser do quintal de casa, quando pedi que rezasse em mim, a mulher com o semblante de surpresa me indagou “será que a senhora sente alguma coisa se eu rezar?”. Senti.
É festa grande. Tem reisado, quermesse, vem gente de fora, enfeitam tudo, não perco uma, lembro de quando Maria do Céu tava entre nós e era quem liderava tudo, era ela que sabia contar as coisa tudo daqui
conduz os ramos de aroeira que tecem um fio invisível, poderoso, unindo as dores dos homens. Na parede da sala, Yemanjá casa com Frei Damião, São Francisco e João Paulo II. Quando pergunto em nome de quem ela puxa a reza, sem exitar me diz que “eu rezo em nome dos santos”
No Cariri Cearense o ofício no ramo é uma prática constante. Em sua maioria, sobrevive aos tempos através da oralidade, ou surge pela necessidade da família ou comunidade, como foi o caso de Dona Expedita. “A fome traz muita mazela e meus filhos viviam doentes por falta de comida e das comidas ruins, então precisava alimentar por outra veia, a da oração”. Em meio ao adorno seco do chão, está a chama da sabedoria popular das rezadeiras, curando
“Aqui, muito conhecida é a Mãe Aparecida dos Crioulos, rezo com ela”. A santa que há 300 anos foi encontrada no Rio Paraíba do Sul, é quem abençoa a vida e resistência desse povo. Seu dia é o 13 de maio, se Nossa Senhora de Fátima estava a aparecer pros pastorinhos na Cova da Iria, a Senhora dos Crioulos vinha pela correnteza de um rio a ser achada. Atualmente, na capela que abre as portas da comunidade, há sua imagem esculpida em madeira e é lá que os festejos anualmente rendem honras a Mãe Aparecida. “É festa grande. Tem reisado, quermesse, vem gente de fora, enfeitam tudo, não perco uma, lembro de quando Maria do Céu tava entre nós e era quem liderava tudo, era ela que sabia contar as coisa tudo daqui”, diz dona Expedita me mostrando em sua parede uma foto
LAGOA DOS CRIOULOS Ilustração: Letícia Persiles
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das duas mulheres abraçadas com olhos sorrindo e braços dados.
“Filha, mas não é só de reza que se vive e eu precisava ganhar, que eu num tinha quem me desse”. Como já dizia minha avó, o trabalho é a primeira oração dada ao mundo por Deus e lá na Arapuca, o sustento de muitos vinha das farinhadas em cima da serra. Expedita conta que “trabalhava raspando mandioca” e que desde nova, todo “trocado” que recebia, dava uma parte aos seus pais, pois naquele tempo, não tinha aposentadoria e “a idade chega mais cedo pra quem é maltratado pelo tempo”.
Quando a pergunto se ela dançou toré, seus olhos se dirigiram pro homem que estava encostado na porta sem trocar uma só palavra. Aquele ali era quem Expedita divide sua vida há 56 anos. “Zé, tu lembra das rodas grande, uns segurando na mão e os outros dentro da roda dançando?”, a mulher conta que mesmo depois de passar o dia trabalhando, tinha energia pra celebrar. Peço então que cante pra mim alguma das músicas e ela entoa:
“Fulô do i, fulô do a Vamo apanha maracujá
Fulô do i, fulô do a Vamo apanha maracujá
E ela tire, tire eu, tire eu, tire eu
E ela tire, tire eu, tire eu, tire eu”
O canto tende a ficar mais baixo e aos poucos para pelo corte da lembrança. Da porta de saída ficou gravada a imagem de um quadro, onde dos pés a cabeça tons de verde e azul se misturavam dando forma a Expedita.
LAGOA DOS CRIOULOS
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Dona Expedita: “Eu acredito em Iemanjá, ela num tá aqui, num sei contar a história dela bem contada não, mas eu sinto”
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Arqueologia sentimental de Juazeiro
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Foto: Adler Sousa Dezembro
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GEOVÁ SOBREIRA
Geová Magalhães Sobreira tem uma rica história ligada ao Cariri e a Juazeiro do Norte. Sua família aportou na região ainda no Brasil colônia. Neste depoimento, Geová, de 79 anos, conta algumas passagens dramáticas da saga da sua família na região e seu percurso como memorialista, quando, desde os anos 60, começou um trabalho de formiguinha ao juntar e pesquisar documentos sobre religiosidade popular, cordel e xilogravura de Juazeiro. Ele catalogou mais de 4 mil poetas de folhetos de cordel publicados, uma coleção hoje de referência para pesquisadores do País. Formando em Ciências Econômicas pela URCA, Geová, funcionário do Banco do Brasil, foi selecionado para cursar doutorado em Economia na Fundação Getúlio Vargas. Ele estruturou a Secretaria do Tesouro Nacional da Presidência da República, convidado pelo então ministro Roberto Simonsen, onde permaneceu até o final do Governo Sarney.
Texto:
Da Independência
à Guerra de 14
A minha ligação histórica e sentimental com Juazeiro tem dois esteios importantes. Primeiro, pelo lado paterno. A família Sobreira vinda de Portugal chegou à região do Cariri em 1750 e obteve uma “data de terra”, concedida pelo Presidente da Província de Pernambuco que ia do sítio São José, na Missão do Miranda –hoje Crato – até o Sítio Ossos na Vila de Missão Velha. Já no início de 1800, desempenharam ativa atividade cultural na pessoa do padre Joaquim Eduardo Sobreira, de sólida formação cultural e tradutor de clássicos gregos e latinos. Ele teve entre os seus alunos o jovem José Antonio Pereira, que se preparava para ingresso na Faculdade de Direito de Recife/Olinda, e que seria anos depois, como o Padre Mestre Ibiapina, o maior e único missionário nordestino a pregar pelos sertões e autor da maior obra social da Igreja Católica no Brasil.
Em 1822, mesmo com o grito do Ipiranga, o presidente da Província do Ceará, Raimundo Porbém, de naturalidade portuguesa e em razão de ter jurado fidelidade à Constituição de Portugal, não reconheceu a Independência do Brasil. Diante disto, uma comitiva do Sul do Ceará saiu para Fortaleza, composta por José Pereira Figueiras, por Tristão Gonçalves e pelo padre José Joaquim Xavier Sobreira, com o objetivo de destituir Raimundo Porbém do cargo de Presidente da Província do Ceará. O padre José Joaquim Xavier Sobreira depois da deposição do
presidente da província do Ceará seguiu para reunir-se com a corte no Rio de Janeiro para que houvesse a designação de novo Presidente da província que fosse fiel ao Império do Brasil. Dom Pedro I nomeou Costa Barros presidente da província.
Outro grande vulto da família que teve forte influência na minha formação foi o padre Azarias Sobreira que dedicou a vida na defesa do padre Cícero. Ele fez desse ideário sua razão de viver.
O lado materno teve também uma influência muito grande na minha formação. Meu avô materno, Antonio Gonçalves Magalhães, era um médio e bem sucedido proprietário rural, na Vila de União dos Palmares, Estado de Alagoas. Já tinha vindo em romaria ao Juazeiro logo após a divulgação dos fatos maravilhosos ocorridos com a Beata Maria de Araújo. Em setembro de 1913, toda a região da Serra da Barriga, divisa dos Estados de Pernambuco e de Alagoas, foi sacudida pela terrível notícia de que o Governo, como fez em Canudos na Bahia, iria invadir o Juazeiro, destruir tudo, até mesmo a Casa da Mãe de Deus, a capela do povoado, e matar o Padre Cícero e a cabeça dele seria levada para Fortaleza espetada na ponta de uma baioneta de um fuzil. Diante da tragédia anunciada meu avô reuniu a família e comunicou sua decisão: “Se meu Padim vai morrer, eu não tenho razão de viver. Vou vender tudo o que tenho e irei defender o Juazeiro”. Foram dias agitados preparando a longa travessia de 150 léguas – cerca de 900 km – em carro de boi e tropa de burro, trazendo os “trens” de casa, utensílios domésticos, roupas, mantimento e água. Além do núcleo familiar – a
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José Anderson Sandes
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Foto: Arquivo Pessoal
Mestre Noza produziu inúmeras esculturas de Padre Cícero. Ele veio de Pernambuco para Juazeiro sobreviver na terra do “Padim” Foto de 1967/68
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GEOVÁ SOBREIRA
esposa e oito filhos menores – diversas pessoas, romeiros e devotos do Padre Cícero, foram se agregando à comitiva do meu avô para defender Juazeiro. Foi uma lenta caminhada, a pé, rezando o Rosário da Mãe de Deus e cantando o Ofício de Nossa Senhora durante quarenta dias. No curso da jornada a comitiva parava duas vezes por dia, uma para o almoço ao meio dia e outra na “boca da noite”, em lugar seguro, que desse para repouso e alimentação dos animais. Em uma das paradas do comboio, na agitação natural de se providenciar refeição para todos, uma mula estradeira separou-se do lote de animais e seguiu andando estrada afora. Aquela mula tinha como arreios dois caçuás bem forrados por redes e lençóis e dentro dos caçuás vinham duas crianças, uma criança de pouco mais de três anos e um bebê de um ano e meses. Momentos depois, a minha avó foi procurar as duas crianças para alimentá-las e não encontrando nem as crianças nem a mula caiu em aflito desespero. Toda a comitiva em pânico com a tragédia saiu pelas estradas e caminhos e pelos matos à procura das crianças e somente no outro dia um dos tropeiros da
comitiva reconheceu no oitão de uma casa a mula estradeira que havia fugido e então meus avós foram para lá. Uma senhora relatou que viu o animal andando sozinho e duas crianças se esgoelando dentro dos caçuás. Então recolheu as crianças, deu banho nelas e fez uma papinha com leite de cabra e as alimentou. Limpinhas e bem alimentadas as duas crianças dormiam tranquilamente numa rede. Aquela criança de pouco mais de três anos iria ser anos mais tarde a minha mãe.
A comitiva chegou a Juazeiro no meio do mês de novembro de 1913 e o Juazeiro naquela época
Mãe de Deus” ao redor da cidade impedindo que as tropas do Governo invadissem o Juazeiro.
Na casa do Padre Cícero, a Beata Mocinha comandava um batalhão de mulheres cozinhando em imensos tachos e panelões de alimento para os romeiros. De quando em vez ecoavam gritos alucinantes: - “Madrinha Mocinha, mande comida. ,Estamos morrendo de fome”. Era uma azáfama desesperada.
Meu avô, Antonio Gonçalves Magalhães, logo que chegou a Juazeiro, dirigiu-se para a casa do Padre Cícero e ficou esperando ser recebido pelo Patriarca de Juazeiro. Na curta e
meninas, andando no meio de jagunços e romeiros, tendo que cozinhar de cócoras em trempe de pedra debaixo de uma grande mangueira. O coração de mãe não aguentou aquele tormento. Um infarto fulminante foi fatal. Meu avô, Antonio Gonçalves Magalhães, reuniu os filhos e parentes e aos prantos pedia aos filhos que naquele momento de aflição ajudassem uns aos outros porque a mãe tinha ido para o céu implorar a Deus e a Nossa Senhora pela vitória de Juazeiro.
Finda a Guerra de 1914, Juazeiro vitorioso e estava salva a vida do Padre Cícero. A Beata Mocinha acolheu, sob sua proteção, toda a família
Naquele clima de agitação social e cultural por sugestões e orientação de amigos decidi dedicar-me a estudos do Movimento Religioso Popular de Juazeiro sob enfoques modernos da Antropologia Cultural, buscando entender o fascinante universo do sincretismo cultural radicado em Juazeiro
só tinha umas três pequenas ruas com cerca de mil residências. O local estava transformado em agitada praça de guerra com mais de vinte mil romeiros vindos de todo o nordeste para defender o Juazeiro e o Padre Cícero. A multidão estava acampada no largo espaço da Praça da Liberdade – hoje Praça Padre Cícero –e nos átrios da capela do Socorro e na Igreja de Nossa Senhora das Dores. Toda aquela multidão estava se abrigando debaixo de árvores. Havia a mobilização total de todos os romeiros trabalhando noite e dia cavando o “valado da
entrecortada conversa meu avô disse que tinha vindo com a família inteira defender o Juazeiro e entregou todo o dinheiro que havia trazido para ajudar a financiar a guerra. Informou ao Padre Cícero que a família de oito filhos menores estava provisoriamente alojados na Rua do Brejo e logo depois da guerra construiria uma casa para abrigar a família.
No entanto, a minha avó, Maria Rosa de Lima Magalhães, entrou em estado de choque logo que chegou a Juazeiro vendo os filhos dormindo debaixo de árvores, suas quatro filhas, ainda
Magallhães, educou a todos e encaminhou-os pela vida ajudando financeiramente a todos.
Juazeiro, também coito de poetas
Saí do Seminário Salesiano no início de década de 1960 e voltei para Juazeiro. Fascinado vivi aqueles grandes eventos dos “annuus adminirabilis - Anos Extraordinários”: Celebração do “Cinquentenário”, Eletrificação com energia gerada pela Usina de Paulo Afonso, Anuência do
Foto: Adler Sousa 42 Memórias Kariri
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GEOVÁ SOBREIRA
Ministério da Educação para o funcionamento dos cursos do 2º grau – clássico e científico -, Construção de uma belíssima sede para a Prefeitura, Construção do 2º maior estádio de futebol do Ceará, edificação da Estátua do Padre na Colina do Horto - o segundo maior monumento do Brasil depois do Cristo Redentor no Rio de Janeiro. Houve também uma avalanche de produção e publicação de livros com ensaios históricos e biográficos de Juazeiro e sobre aspectos diversos da vida do Padre Cícero. No entanto, duas obras que podem ser consideradas clássicas, modificaram a narrativa do movimento religioso popular liderado pelo Padre Cícero: O Patriarca de Juazeiro, do Padre Azarias Sobreira e Milagre Em Joaseiro, de Ralph Della Cava.
Estavam, então, escancarados os baús da intolerância, que foram mantidos escondidos a sete chaves por dezenas e dezenas de anos nas Arquidiocese do Ceará, na Cúria Diocesana do Crato e num depósito da tralhas velhas no Colégio Salesiano de Juazeiro.
Naquele clima de agitação social e cultural por sugestões e orientação de amigos decidi dedicar-me a estudos do Movimento Religioso Popular de Juazeiro sob enfoques modernos da Antropologia Cultural, buscando entender o fascinante universo do sincretismo cultural radicado em Juazeiro. Percebi por acaso a evasão de bens culturais indo para o exterior e de modo especial para os Estados Unidos. Então resolvi adquirir tudo o que eu fosse encontrando ligado às nossas raízes culturais e principiei pela literatura de cordel e pelas xilogravuras. Saí farejando os clássicos ou os pioneiros do cordel desde Silvino Piraruá, Leandro Gomes de Matos, João Martins de Athayde e dos demais poetas. Comecei a divulgar escrevendo que os sertões não eram só coito de jagunços e cangaceiros e já no início da década de 1970 já tinha catalogado mais de 4.000 poetas com folhetos de cordel publicado. Assim a minha coleção de folhetos de cordel tornou-se referência para pesquisadores. Os sertões não era apenas coito de cangaceiros e sim a pátria de poetas...
Mesmo sem querer tornei uma dissidência entre os estudiosos da literatura de cordel porque professores de diversas Universidades foram para a Universidade de Sorbonne levados pelos ensaios do Professor Raymond Cantel com
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Geová Sobreira, quando jovem, ao lado do escultor Manoel Lopes da Silva, o “Manoel Santeiro”. Foto de 1965
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Foto: Arquivo pessoal
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projetos de tese relacionando o cordel com “ La littérature populaire em France du XVII au XIX siècle – conhecida como “Bibliothèque Bleu”. Procurei ver na literatura de cordel a influência das Mil e uma Noites, da cultura e da música moura, além de sólidas e concretas influências africanas.
Centra-se aí a fisionomia atípica da formação do núcleo populacional de Juazeiro: o locus do distrito onde estava situada a fazenda Joaseiro era de propriedade de Nossa Senhora das Dores, por doação em testamento pelo Padre Pedro Ribeiro. Em 1872 numa ida ocasional do Padre Cícero para celebrar a festa do Natal ele teve ali a um sonho escatológico no qual o próprio Cristo determina que o Padre Cícero tomasse conta daquele exército de flagelado. O padre Cícero aceitou a missão recebida em sonho mítico e com aquele povo flagelado José Turco, Zé Quintino, Maria Izidoro, Pedro Fumaça ,Tereza do Padre, Maria de Araújo, beato Elias, Zé Lourenço, beata Bichinha, Izabel da Luz, Soledade, beato João da Cruz, Beata Mocinha constrói o maior centro urbano, comercial e industrial dos Sertões.
O aspecto mais marcante da trajetória de Juazeiro não é o seu passado e sim o que Juazeiro vai ser. Exemplo concreto e típico: em 1918 estava iniciando no mundo o aeroplano (o avião) e no primeiro testamento do Padre Cícero já havia área destinada para campo de pouso de aviões.
Como Patriarca o Padre Cícero revestiu a História de Juazeiro de uma singularidade muito especial: tudo em Juazeiro está voltado para o futuro. Juazeiro ainda era um simples distrito, pressionado e perseguido por toda
Com relação ao Crato, houve uma distinção histórica. Ali morava uma elite portuguesa, que era regalista, imperialista, viva dos bens do Estado e da nação. Uma elite cultural que repudiava essas tradições populares
burocracia da Igreja, o Padre Cícero tendo como “excomungado”, com a Matriz – hoje Basílica – fechada por 24 anos, pois nem vigário ou capelão tinha, mesmo assim é construída a completa e moderna infra-estruturar para a Cúria Episcopal.
Esta é a característica social da Terra do Padre Cícero tanto para os filhos da terra, para os romeiros, para os adventícios atraídos por qualquer razão. Juazeiro só tem um sentido: um futuro melhor. Juazeiro é a Terra do Futuro.
Padre Ibiapina
A História Eclesiástica Brasileira tem três imensos vultos: Padre Ibiapina, Padre Cícero e Padre Helder Câmara – todos eles cearenses. Todos eles legaram à História do Brasil as maiores obras sociais da Igreja em todo o território nacional.
O Padre Ibiapina nasceu na cidade de Sobral (CE). Seus pais vieram para o Cariri em 1816. Ele fez seus estudos propedêuticos para ingressar na Faculdade de Direito do Recife (PE) com o Padre Joaquim Eduardo Sobreira. Apaixonou-se pela filha de Tristão Gonçalves – herói e mártir da Confederação do Equador. Seu pai, Francisco Miguel Pereira e o seu irmão, Raimundo, foram líderes da Revolução no Ceará. Seu pai e seu irmão foram tragicamente executados por ordem do Imperador Pedro I. O pai foi fuzilado no “Campo da Pólvora”, hoje o atual Passeio Público em Fortaleza (CE) e o seu irmão, Raimundo, foi executado pelo Coronel Mercenário Jacob Niemeyer em Fernando Noronha (PE).
O Padre Ibiapina buscou por diversos caminhos meios para as populações mais desassistidas do Nordeste quer como Deputado Federal, como Advogados dos pobres, como Magistrado.... Sentindo-se frustrado tomou a decisão de tornar-se padre e como padre ser “missionário” pelos sertões nordestinos. Fundou 26 Casas de Caridade no Nordeste com escolas para crianças órfãs, com hospital. A Casa de Caridade do Crato hoje de propriedade da Diocese do Crato e Reitoria da Universidade Regional do Cariri (URCA) foi a sua obra mais importante: tinha um grande colégio, uma banda de música, um jornal A Voz da Religião no Cariri, que dispunha de oficina gráfica própria e curso de tipografia,
além de ter reunido uma magistral equipe: Padre Ibiapina, Padre Inácio Rolim fundador do Colégio em Cajazeiras (PB) o mais importante Colégio de todo o Nordeste naquela época, Antonio Vicente Mendes Maciel que entrou na história como Antonio Conselheiro, José Joaquim Teles Marrocos, um dos mais importantes líderes da Campanha Abolicionista do Brasil e jovem sacerdote Padre Cícero Romão Batista. Foi o Padre Ibiapina quem fundou a ordem dos Beatos...
O Bispo do Ceará, Dom Antonio Luís dos Santos, sequestrou todos os bens das Casas de Caridade do Ceará e expulsou do Ceará o Padre Ibiapina, José Marrocos e Antonio Vicente Mendes Maciel. Dom Antonio Luís dos Santos. No entanto poupou de sua degola o jovem sacerdote Padre Cícero por ter sido seu aluno no Seminário da Prainha em Fortaleza (CE).
O Padre Cícero fez do povoado de Juazeiro o grande celeiro do projeto pastoral do Padre Ibiapina.
Sincretismo cultural
Eu guardei a documentação católica do Padre Azarias Sobreira e fui buscar estudar Juazeiro
sob os diversos aspectos - histórico e cultural. Recuperei toda a documentação que estava perdida desde a década de 60 do século passado. Reuni esse material para uma interpretação histórica da cidade de Juazeiro. Temos aqui o maior sincretismo histórico da história do Brasil. Possuímos três pólos da cultura no Brasil, só encontrados em Salvador e Rio de Janeiro. Falo da fusão da cultura africana, da cultura islâmica e da cultura portuguesa. A cultura africana teve um viés muito rico - a maioria dos escravos vieram para Juazeiro da Serra da Barriga, em Alagoas, onde morou Zumbi. Depois vieram os refugiados da revolta dos Malês, na Bahia, em 1835 . Era tão interessante que os escravos, em sua maioria, eram médicos e engenheiros, enquanto seus donos eram analfabetos. Juazeiro tem esse precioso sincretismo cultural. Um exemplo é a tradição católica das renovações. Essa prática religiosa não é católica, nem européia, mas sim celta, incorporada à religião humana há dois mil anos. A cultura romana criou o culto aos deuses nos lares - que é a nossa renovação. Quando o jovem romano ia casar, escolhia o Deus para proteger a sua casa - os deuses lares - reverenciados todos os anos. Essa é a origem da nossa renovação. Outro exemplo é a práticas dos penitentes - que viviam se flagelando nas
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Foto:
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Geová Sobreira: Temos aqui o maior sincretismo histórico da história do Brasil”
Adler Sousa
GEOVÁ SOBREIRA
estradas. No alcorão essa prática se chama achurra, ainda hoje praticada na Europa oriental. O Padre Cícero apreendeu essa grande prática cultural e, com esse pessoal, conseguiu fazer um movimento religioso popular, que fugia às práticas católicas instituídas pela Igreja, o padrão da burocracia católica. Os beatos nunca foram reconhecidos, não é uma ordem reconhecida pelo Vaticano. A pessoa se intitulava beato e vivia de outra coisa, até de pedir esmolas. Veja. A bijuteria de Juazeiro, uma das fontes de renda da população, ainda em 1990, era praticada pelos descendentes muçulmanos vindos da África. Em Juazeiros, já existia o Beco do Ouro. Como um analfabeto ia ter noção de liga de materiais preciosos? Um semianalfabeto produzir ouro 12, 18, 24. Criar instrumentos para produzir as jóias, as medalhas, os anéis. Em 1990 já exportávamos para Recife jóias feitas em Juazeiro do Norte. Com relação ao Crato, houve uma distinção histórica. Ali morava uma elite portuguesa, que era regalista, imperialista, vivia dos bens do Estado e
Joaquim Vieira, arcebispo do Ceará, veio em visita pastoral à região, na sua comitiva veio também o monsenhor Tabosa. Ele começou o sermão pedindo desculpas ao povo ilustre e culto do Crato para falar do povo imundo, sujo e analfabeto de Juazeiro. Essa distinção ficou para sempre. Eram dois tipos de sociedade, uma era elite; outra popular..i
Mestre Noza
O grande artista Mestre Noza veio para Juazeiro sobreviver, fazer qualquer coisa. Em que ele foi trabalhar? Ele tinha sido aprendiz de funileiro, mas não tinha dinheiro para comprar matéria prima, Então, ele achou um toco de pau e fez a sua primeira estatueta. Quando ele criou um conjunto de estatuazinhas na década de 20, foi vender na Praça Padre Cícero, antigamente Praça da Liberdade. Ocorreu que Padre Cícero estava visitando as bancas de cada feirante e,
Comecei a divulgar escrevendo que os sertões não eram só coito de jagunços e cangaceiros e já no início da década de 1970 já tinha catalogado mais de 4.000 poetas
da nação. Uma elite cultural que repudiava essas tradições populares. O José de Figueiredo, o pai de José de Figueiredo Filho, foi prefeito do Crato e proibiu as manifestações de danças popularesreisados, bumba meu boi. Agora, o Juazeiro veio de Alagoas, de Pernambuco, descendentes de escravos. Os personagens de Juazeiro da época - Mané Chiquinha, Zé Turco, Elias Beato, Beato José Lourenço, pessoas quase marginais da elite social. Da Serra da Barriga, entre Pernambuco e Alagoas, onde viveu Zumbi. A grande sabedoria do Padre Cícero foi juntar essa massa, e fazer um movimento religioso. O Ralph Della Cava conta no livro dele a procissão das Candeias - ele mandava o povo fazer candeeiros para a procissão das Candeias. Plantem flores, vamos fazer uma procissão das rosas. Com isso, ele girava a economia, a economia popular. Como é até hoje. A distinção entre Juazeiro e Crato é grande. Vou citar um exemplo, um momento histórico para a região. Quando, em 1909, Dom
quando viu o Noza, na época não era o Noza, mas sim Inocêncio, disse, após pegar uma estátua: ‘Inocêncio, eu sou tão feio assim?’. O artista replicou: ‘Meu padim, qual o romeiro que vai lhe achar feio?’. Ele era descendente de holandês com índio ou africano, já era caboclo. Noza chegou aqui fugido de Pernambuco, ainda garoto. Ele era descendente de holandês com índio ou africano, já era caboclo.
O Mário de Andrade escreveu que esse foi o maior achado, uma descoberta que transformou o artesão em artista. Era o que tinha que fazer, transformar um toco de árvore em arte. Os artesãos eram pobres - faziam candeeiros, peças de tocos e barros. Tinham que ganhar dinheiro. Uma coisa que até hoje não foi estudada bem pela universidade, o design caboclo que, agora, com o Espedito Seleiro está chamando a atenção. Em 1825, foi dado ao Imperador D. Pedro I um trono de um imperador africano
e ficou no Museu Histórico Nacional e depois passou para o Museu da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que pegou fogo. Entre os objetos destruídos, estava o trono do imperador africano. O que me chamou a atenção, para menos para mim, foi que o pé do trono tinha duas coisasuma chinela currulepe e uma bolsa igual ao que o Espedito Seleiro produz. Quer dizer, a currulepe vigorou até 1960, quando apareceu à sandália japonesa, criada também em Juazeiro, o mesmo estilo da Havaiana, que conquistou o mundo. Foi Juazeiro que lançou as sandálias Havaianas no mundo, o mesmo modelo do design da sandália corrulepe.
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Xilogravura de Mestre Noza para a capa do folheto História de Juvenal e Leopoldina, de João Melchíades Ferreira da Silva
João
O alfaiate, a melodia e o tempo
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Martins
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Texto: Adler Sousa Dezembro 2019
Rua da Glória, esquina com a Boa Vista. Driblando pedestres, concretos, panfletos e o calor de Juazeiro do Norte, a equipe da Memórias Kariri procurou entre as muitas ruas emaranhadas da cidade pelo endereço que nos levaria ao nosso entrevistado. Rua da Glória, esquina com a Boa Vista. É lá que mora João Martins Gonçalves. Sentado na calçada, seu olhar, que acompanhava todo o movimento a sua volta, nos capturou por um instante. Depois de um momento de conversas e apresentações, buscamos saber sua idade. Ele mostrou então quatro dedos para nós. ‘Sabem quantos anos são?’, perguntou. ‘Tenho 94. É que depois dos 90 tudo zera’. De Missão Velha, seu João chegou a Juazeiro em 1954, e trouxe na bagagem seu ofício, o de alfaiate, mas no outro canto da mala uma outra paixão: a música. Dono de uma alfaiataria na Rua São Pedro, logo montou uma banda - ‘J. Martins e seu Conjunto’, seu primeiro grupo musical. E com ele se apresentou por todo o Nordeste. Conheça a história desse alfaiate e artistas , um personagem hoje conhecido por várias cidades do Cariri cearense.
Seu João, o senhor é daqui mesmo? Os pais do senhor são daqui ou vieram para cá?
Eu sou natural de Missão Velha. Meus pais eram da região, mas eram de sítio. Meu avô materno, João André Gomes, tinha um pedaço de terra perto de Missão Velha. Nossa família, os Andrés, é de São José de Piranha, na Paraíba. O pai da minha mãe é de lá. Ele veio para a região do Cariri junto com a família, ainda novos, e ficaram em Missão Velha. Quanto aos meus avós paternos, eu nunca conheci. Minha profissão mesmo quando eu vim para Juazeiro do Norte era alfaiate. Eu era um bom alfaiate. Eu trabalhei muito aqui, eu vim aqui para a cidade em 1954. Quando eu cheguei tinha 29 anos
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Foto: Arquivo pessoal
Memórias Kariri
JOÃO MARTINS
João Martins com sua guitarra, na época do seu primeiro conjunto.
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e Juazeiro podia dizer que ia dos Franciscanos para a rua Doutor Floro, para a Matriz.
E o senhor aprendeu o ofício de alfaiate com alguém ou foi sozinho?
A profissão de alfaiate eu aprendi em Missão Velha com uns parentes meus que eram alfaiates, então eu aprendi lá. Quando eu vim pra cá eu abri logo uma alfaiataria minha, na rua São Pedro.
E o senhor ainda trabalha com alfaiataria ou já se aposentou?
Trabalhei por muitos anos mas eu já deixei faz é tempo. Minha alfaiataria ficava em frente onde hoje é a galeria Zé Viana, na época era o armazém de Adjassis Cidrão. Foi em 1958 isso. Eu fiquei com a alfaiataria na rua São Pedro de 58 até mais ou menos 71, aí depois fui trabalhar na rua abaixo do correio, entre a rua São Pedro e a rua Padre Cícero. Aí nesse ponto eu passei muito tempo.
Aí o senhor fechou a alfaiataria em que ano?
Em 1996 eu já não tava mais querendo trabalhar. Eu parei a alfaiataria quando me mudei para essa casa, na rua da Glória. O negócio já
tava fraco, não tinha mais ninguém que queria fazer terno. Mas até quando eu tava morando na rua São José, antes de vir para cá, eu ainda fazia, sozinho.
E como era a clientela do senhor?
Eu atendia principalmente o pessoal da alta sociedade, porque terno era caro. Na época que eu trabalhava de alfaiate, não existia essas confecções para vender, a roupa tinha que ser feita. Eu trabalhava de seis horas da manhã até uma da madrugada fazendo serão com quatro operários para dar conta dos pedidos. E na época tinha muito alfaiate aqui. Quando eu cheguei aqui, as profissões do Juazeiro eram ourives, alfaiate e sapateiro. As ruas eram até divididas por profissão; tinha a rua dos ourives, a rua dos alfaiates e a rua dos sapateiros.
O senhor, além de alfaiate, também era envolvido com música...
Eu tive dois conjuntos musicais, mas eu nunca fiz dinheiro com isso. Eu aprendi a tocar porque eu fazia serenata com os meus amigos por diversão. Na minha época, a gente fazia serenata para as namoradas. Não existia energia elétrica. Quando eu cheguei aqui em Juazeiro, tinha dois
Minha profissão mesmo quando eu vim para Juazeiro do Norte era alfaiate. Eu era um bom alfaiate. Eu trabalhei muito aqui, eu vim aqui para a cidade em 1954
motores, umas caterpillar lá no mercado, que forneciam energia de seis da tarde até dez da noite. A luz era tão ruim que parecia um braseiro dentro de um copo. Aí quando passava essa hora apagava e ficava sem energia. Aí quando a lua saía e a cidade tava clara, a gente saía e fazia a serenata para as namoradas com a luz da lua. Era um tempo bom.
E como era o nome do conjunto do senhor?
O primeiro conjunto que eu formei aqui tinha o nome de ‘J. Martins e seu conjunto’, porque tinha um conjunto aqui no Ceará, de Ivanildo, chamado ‘Ivanildo e seu conjunto’, daí eu me inspirei. Quase todos os componentes desse conjunto eram de Missão Velha. Foi esse conjunto que foi aplaudido em pé no Clube dos Diários, em Teresina.
E aí o senhor teve outro conjunto além desse?
Tive. Depois que eu acabei o J. Martins e seu Conjunto, em 1969. No ano seguinte, em 1970, eu formei outro conjunto, chamado ‘IlderMartinsSom’, porque era a junção do meu nome com o nome de Ildergard, um músico que tinha um conjunto também. Tinha muito músico bom nele. Tinha uma cantora, chamada Heleninha Sobreira, que cantava demais. Daí em 1978, Ildegard saiu do conjunto, e eu mudei o nome para ‘MartinsSom’. Aí foi que fez sucesso mesmo.
Então o senhor trabalhava como alfaiate, mas a paixão mesmo do senhor era a música?
Não. A minha profissão mesmo era alfaiate. Eu nunca ganhei dinheiro com conjunto. Eu andei
esse nordeste todinho. Porque eu era vaidoso, eu queria um bom conjunto e de fato eu tive dois bons conjuntos. Eu acho que foram uns dos melhores conjuntos do Nordeste. Eu tirava era dinheiro da minha alfaiataria e botava dentro dos conjuntos. Para pagar bem aos músicos e para ter músicos bons.
E esses conjuntos eram como se fossem bandas?
Isso. Meus conjuntos tinham tudo, tinha cantor, tinha cantora. Eu tinha um vocal tão bom nos meu conjuntos que às vezes a gente tocava do mesmo jeitinho do disco, às vezes eu achava até melhor que o disco, quando a gente ensaiava. Eram bons meus conjunto. Eu andei esse Nordeste todo tocando em festa. Em 67, eu fui aplaudido de pé no Clube dos Diários de Teresina com o meu primeiro conjunto, onde lá tinha um bocado de conjunto bom, mas acharam melhor o meu.
O senhor ia a convite desses locais ou o senhor mesmo arranja os shows quando chegava nas cidades?
Eu tinha um empresário para vender o show. Ele saía daqui de Juazeiro e vendia festa no estado do Piauí, Maranhão, Pernambuco, Bahia… eu andei esse Nordeste quase todo. O nome do meu empresário era Raimundo Nilton.
E como foi que o senhor começou com essa história de conjunto?
A história dos conjuntos começou quando eu me mudei de Missão Velha para Milagres. Eu trabalhava como alfaiate já nessa época, era casado. Eu me casei em 1946, e, em 1948, fui para Milagres. Daí lá, eu cheguei e tinha um regionalzinho lá dos rapazes. Quando eles me viram tocando, não quiseram mais tocar,
João Martins ainda guarda em sua casa a tesoura e a máquina de costura de sua época como alfaiate.
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disseram que eu tocava bem demais e queria que eu tocasse no lugar deles. Aí Zé Brasileiro, junto com Alberto Brasileiro, foram fazer um show em bar daqui de Juazeiro chamado “Ballas Cowboy”, que tocava as músicas de Bob Nelson e outras desse estilo ‘cowboy’, que fez muito sucesso no Brasil nos anos 50. Esse bar pertencia ao Alberto, que tinha uma fábrica de balas, bombons, em Natal, no Rio Grande do Norte. Foi daí que surgiu o nome do bar. Então quando eles quiseram fazer esse show, eles foram atrás do regional lá de Milagres para tocar, só que os rapazes não quiseram, disseram que não sabiam acompanhar. Mas daí eles me indicaram, disseram que eu tocava violão muito bem.
E aí o senhor foi?
Quando Zé Brasileiro foi perguntar se eu podia tocar no bar, eu disse que não, que não sabia tocar para muita gente, que só tocava para mim. Mas aí ele disse que o regional não ia tocar, que eu tinha que ir. E aí eu sabia todas as músicas, meu ouvido era muito bom para melodia, tanto que Zé começou a cantar uma música de Vicente Celestino e eu acompanhei no violão todinha, que nem no disco. Depois que eu toquei, ele disse: ‘O que você tá fazendo em Milagres, rapaz? Você é um grande violonista!’ e eu respondi ‘Eu sou é alfaiate” (risos). Mas aí acabei topando o convite e indo tocar no bar. Foi depois disso que o Zé me disse que a rádio Iracema de Juazeiro tava sem violonista, que era para eu tentar a vaga lá. Aí foi na mesma época que a rádio tava fazendo o primeiro aniversário, em 1951.
Então o senhor foi para na rádio Iracema por causa do show?
Coincidiu de Coelho Alves, diretor da rádio na época, me telegrafar e chamar para tocar nesse dia (data do aniversário da rádio). Aí eu vim, passei 15 dias ensaiando no regional. Depois que eu toquei lá eles pelejaram para me fazer ficar trabalhando lá, na época me ofereceram um pagamento muito bom, 800 mil réis, mas eu não quis. Mas fiquei com aquela vontade, de fazer mais música. Aí quando foi em 1954, por causa da seca, muita gente foi embora de Milagres para São Paulo, e eu vim para Juazeiro. Aí quando eu cheguei em Juazeiro, a rádio tava lá embaixo, não tinha nada mais. Fui eu que
formei outro regional para a rádio. Aí eu fiquei aqui no regional da rádio Iracema de 1954 até 1958. Naquele ano, a rádio Educadora do Crato tava em experiência e eu fui para lá com um sobrinho meu que tocava pistão e aí fiquei lá até 1961, quando eu voltei para Juazeiro e formei o meu primeiro conjunto e fiquei tocando no Clube 13. Aí fiquei tocando em conjunto de 1961 até 2000, 2002.
O senhor disse que viajou o Nordeste todo. Qual foi o primeiro lugar que o senhor foi?
A primeira vez que eu saí do Juazeiro para tocar em outro Estado, foi no Piauí, em Floriano. Chega eu fiquei besta quando eu vi o pessoal louco pelo conjunto. Aí pronto, eu criei gosto e foi quando eu deixei um rapaz cuidando da alfaiataria e fui só malandrar. (risos). A minha mulher até ficava com raiva de mim, do tempo que eu passava viajando.
E nessa história toda ainda tem a família do senhor. Como era o nome da sua mulher?
Era Maria André Gonçalves. Ela morreu em 2009, eu já tinha 82 anos. Inclusive nós eramos primos legítimos. Quando foi pra eu me casar, na época, existia uma protocolo para parentes não casarem, daí teve que ir uma solicitação para o Vaticano, parece, para eu e minha mulher termos a autorização.
Vocês tiveram quantos filhos juntos?
Foram nove, mas vivos só tem cinco. São três homens e duas mulheres. Minha filha mais velha tem 69 anos. Eu tenho até um filho que tocou comigo no conjunto por um tempo, teclado e violão. Mas ele nunca gostou muito, não. Além desses tem uma menina, irmã da minha mulher, que eu criei como minha filha. Inclusive um filho dessa mulher mora hoje comigo, que eu criei também quando o pai morreu.
E educação. O senhor ainda estudou?
Na minha época era difícil demais estudar. Eu fiz o chamado terceiro ano primário. Era o estudo mais avançado que tinha em Missão Velha na época. Depois que o estudo avançou mais um pouco, teve gente de lá que estudou mais, mas não sabia o que eu sabia! Eu sempre
Em 2017 seu João ganhou o título de cidadão juazeirense.
‘J. Martins e seu conjunto’ foi o primeiro conjunto formado por seu João.
Foto: Bibiana Belisário
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Foto: Bibiana Belisário
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fui muito vivo. A matéria que eu gostava mais era matemática. Agora mesmo, quando chega turma de estudante de faculdade de Nutrição, Fisioterapia,Medicina fazendo teste lá no Sesc, onde eu faço hidroginástica, eles ficam impressionados com as contas que eu sei fazer de cabeça. Então eu agradeço muito a Deus. Eu acho que eu sou assim, mesmo com essa idade, por que eu gosto muito de brincar. Por exemplo, teve uma vez que eu tava descendo para o Sesc com uma das senhoras que faz aula comigo, que nem conhecia direito. Daí quando eu fui dobrar a rua eu pisei em falso e ia caindo. Aí olhei pra ela e disse: ‘Por que a senhora me empurrou?’ (risos). Ela achou que eu estava falando sério, a coitada. Até que eu expliquei a ela que era brincadeira.
Além das atividades que o senhor faz no Sesc, eu sei que hoje em dia você faz Seresta toda última sexta-feira do mês na Cantina Zé Ferreira, aqui em Juazeiro do Norte. Como foi que essa tradição começou?
Começou porque eu andei lá um dia, e eu não conhecia o local, e percebi que lá tem muita coisa antiga, fotografias de Padre Cícero e Beata Maria de Araújo, tem rádio de pilha. Então eu entrei lá e tinha um menino cantando sertanejo, que era o filho do dono, de doutor Humberto, aí doutora Alice, que é muito minha amiga, me viu lá e disse para doutor Humberto me chamar para tocar lá. Aí ele perguntou se eu ainda tava tocando, e eu disse que não, que só tocava para mim hoje em dia. Aí ficou falando, dizendo para eu ir, até que eu acabei cedendo. Eu disse - ‘Vamos dar um mês para ver se eu venho mesmo’. Daí no dia que eu fui lotou. O pessoal não sabia que eu ainda tocava, por causa da
‘O que você tá fazendo em Milagres, rapaz? Você é um grande violonista!’ e eu respondi ‘Eu sou é alfaiate’
idade. Aí foi uma beleza, e daí pegou. Isso tem uns dois, três anos.
E o senhor ganha para tocar lá?
Eu disse para ele que não queria, porque eu não tava mais fazendo profissão, não queria compromisso. Mas aí ele insistiu e ficou me dando 100 reais para eu ir. Mas eu toco pouco. Sempre que eu vou dá câimbra nos dedos e aí eu não vou mais para lugar nenhum. Aí eu chego lá e toco no máximo umas duas horas, o resto eu boto os cabas para tocar e fico tomando uma cerveja.
Então o senhor fez muita coisa. Trabalhou como alfaiate, viajou bastante, trabalhou em rádio... Para finalizar nossa conversas eu quero saber só mais uma coisa: qual foi a verdadeira paixão do senhor dentre todas essas coisas?
Rapaz, eu acho que tudo que eu fiz eu fiz com amor. Ave Maria, eu fazia um paletó, colocava no manequim, ficava olhando e achava uma beleza. Quando eu ia tocar eu tocava com vontade que o povo gostasse. Então eu me acho muito feliz por isso. O povo às vezes até me pergunta se eu tenho certeza da minha idade, por eu ainda fazer o tanto de coisa que eu faço. Uma vez até me disseram - ‘Mas me dê a receita de ser assim, lúcido desse jeito...” aí eu disse - “Olha só, o segredo é nunca ter raiva”. Eu trabalhei com cara que bebia demais, mas eu nunca tive raiva de ninguém. Outra, não gostava muito de dinheiro. Até que eu ganhei um bocado de dinheiro aqui em Juazeiro. Em Conjunto eu nunca ganhei muito dinheiro não, mas trabalhando de alfaiate eu ganhei. Eu fazia cerca de 20 ternos por semana, fora calça e camisa. Um terno naquela época já era 150, 250 mil réis. Eu lembro que teve um tempo que meu pai chegou aqui, viu o movimento na minha loja, e me pediu ajuda. E eu ajudei muito meus pais, que eram bem pobres. Então eu ganhei muito dinheiro aqui, mas nunca liguei para guardar. Eu até brinco dizendo que o que eu não dava, eu guardava no banco. ‘Então você tem uma poupançazinha’? o povo pergunta. ‘Eu botava era no banco da praça, pra quem passasse pegar!’ (risos). Então eu não tenho nada, não me preocupo com nada, por isso que eu sou assim. Não me preocupo nem com doença, que eu não vou atrás!
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Foto: Bibiana Belisário
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Pelas salas de Maria Piauí
Depois da curva do rio que está seco vocês vão encontrar uma casa branca em uma esquina de sítio, é lá a casa de Dona Maria Piauí”. Rezadeira e católica apostólica romana, a mulher que aos 15 começou no ofício do ramo, cuida de gente viva e desencarnada que passa ou reside no município de Potengi (CE), a cidade que literalmente não dorme. Abrindo os caminhos e livrando da inveja, cuida de 20 pessoas ou mais por dia com sua fé e força de vontade.
Avistei a casa de Dona Maria Piauí e meus dois graus de astigmatismo me fizeram sentir o branco de sua fachada. O mormaço da terra que nos ardia dos pés à cabeça preparava nossos corpos para recebermos a energia quente, que exalava não só a conhecida rezadeira de Potengi, mas também sua casa.
De cabelo amarrado, “blusa de santo”, saia rodada e rosto fechado estava a senhora de aparentemente 60 anos nas costas, sentada em meio a um misticismo gritante em imagens, cheiros e sons. Após negar-se ser fotografada, filmada e até rezar, pois por promessa à Virgem Santíssima tirou o sábado para descanso, conseguimos ir conversando pelas bordas, tentando conhecer
aqui, entender ali, até nos somar a mesma sintonia.
De cima a baixo em uma estante havia uma linha que partia do coração de Jesus até dois pretos velhos, quase invisíveis, por trás de dois objetos de gesso. Escondidos? “Não, estão para ser vistos por quem precisa enxergar”, disse Dona Maria quando perguntei sobre, em dado momento que ficamos a sós, e ainda completou: “Minha fia não é besta, né?”. Segurando minha mão, me levou até a cadeira de madeira na sala de oração, minhas pernas tremiam e meu coração palpitava como se tivesse um passarinho batendo dentro. A força que passeava no espaço parecia entrar e sair como feixes de luz entre as telhas vazadas, alumiava de canto, amarelava o lugar e dava a impressão de que tudo era sol, mas não queimava, aquecia e curava.
De imediato me deparei com as imagens de Nossa Senhora Aparecida e Mãe Yemanjá, elas “falavam” que não importa a forma, tem que ser com fé, é tudo a mesma coisa, o mesmo Deus. O que capturei da sala pareceu um filme de uma semana inteira. Eram elementos que se completavam.
A emoção tomou de conta e o corpo estremecia ao sentir
fortemente a presença do povo dos matas, prontamente indaguei sem se dar conta: “a senhora trabalha com Mãe Maria das Matas?”, ela sorriu de canto e disse que não só ela. Proseamos muito, trocamos nomes e histórias. Olhando fixamente nos meus olhos, soltou os cabelos como um ritual e falou calmamente que iria me benzer, nesse instante pude sentir a empatia que se coloca por trás da cara e corpo duro, é só proteção, “energia de gente adulta é pesada”.
A aroeira lavava como água corrente de um riacho, parecia que tava fazendo buraco em cada pedra que me fazia estagnar, de fato abriu caminhos, podia até ver de olhos fechados a leveza das mãos daquela mulher que da boca entoa a reza com firmeza, lembrando cantos de procissão, e se entrega de corpo para seu sacerdócio.
Do meio pro fim eu não entendia mais o que era real ou não, percorria em mim, visceralmente, uma irradiação de fluidos, tudo dançava e tinha cor. Ela suavemente tocou minhas mãos, elevou-as ao céu, fez uma a outra se tocar e tudo esvaneceu. Potengi ficou ali para mim.
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Texto: Bibiana Belisário
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Foto: Bárbara de Alencar
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A casa de Maria Piauí fica a 4km do município de Potengi, Ceará. Ela aprendeu o ofício com sua avó, Soledad, que percebeu o dom da neta quando criança e desde então exerce o sacerdócio sem pedir nada em troca.
O sentimento gerado pelo espaço era de calor. As entidades por mais que fossem de raízes religiosas divergentes, tinham conexões diante do trabalho realizado.
O Padre Cícero Romão Batista se encontra em diversos elementos da casa, figura que para a rezadeira “foi um grande mensageiro de toda esperança”.
A jovem Benigna também soma às paredes, esta que aos 13 anos de idade foi assassinada na cidade de Santana do Cariri, a 44km do município de Potengi, e se fez santa pela devoção que tinha ao catolicismo.
Foto: Bibiana Belisário
Foto: Bibiana Belisário
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Memórias Kariri
Foto: Bárbara de Alencar
Foto: Laura Brasil
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Sala de oração marcada pelo misticismo que exala no lugar por meio de imagens, quadros e fotografias.
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Foto: Laura Brasil
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Nossa Senhora Aparecida e Mãe Yemanjá são figuras constantemente vistas no lugar, e marcam a pluralidade de representações entre entidades que assistem o trabalho da rezadeira.
Quadro de Nossa Senhora Apará, entidade representada na doutrina espiritualista cristã Vale do Amanhecer. Dona Maria relatou ter sido um presente, e que tudo que lhe chega, sendo para o bem, ela acolhe de bom grado.
Os ramos por onde tudo passa. “A aroeira é forte pra aguentar a energia humana”, disse Maria.
de Alencar
Foto: Bárbara
Foto: Bibiana Belisário
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Memórias Kariri
Foto: Bibiana Belisário
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A água que nos liga à terra
Existe no Cariri mais que a terra batida e as raízes que seguram a chapada. No seu cerne se concentra magia, convertida em mitos e lendas deixadas aqui pelos seus primeiros habitantes, os Índios Cariri (Kariri ou Quiriri). Esse encanto se escorre nas águas que desembocam em nossa terra, e em cada gota d’água brilham nossas tradições. Dentre esses leitos envoltos em aura mística, se encontram quatro que se destacam pela marca sagrada de suas histórias. Eles estão localizados nas cidades de Crato, Nova Olinda, Lavras da Mangabeira e Missão Velha, e sua trilha será desbravada pelas nossas palavras.
Texto: Adler Sousa
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Crato
Pedra da Batateira
Os Ìndios da Nação Kariri, expulsos de sua terra e massacrados pelos bandeirantes, encontraram no Vale do Cariri um refúgio para fazer casa. Com a carne veio a alma, e na alma veio a tradição: os mitos e as lendas da bacia amazônica e da água que trás a vida. E foi assim que a terra da chapada virou mar. Não em cima, mais em baixo; pois o leito estava represado pela enorme pedra da batateira, encantada pelos índios. E como o homem veio do pó e um dia voltará a ser pó, o Cariri um dia há de voltar a ser água. Quando a pedra rolar, a serpente sagrada irá descer, inundando a região e libertando a Nação Cariri, que viverá em paz em um paraíso.
Nova Olinda
Boqueirão da Mãe Dágua
Foi no Boqueirão da Mãe D’água, em Nova Olinda, que nasceram os Índios Kariri. Tudo começou quando ela, senhora de todos os mares e rios, abriu o portal para este mundo e deixou o peixe Kari subir a terra e o habitar como homem, com o nome de Manaká. Após nomear aquele lugar como “Terra de Itaperabuçu”, de suas entranhas, Manaká tirou uma semente e a plantou, fazendo surgir uma bela mulher a quem nomeou de Jurema. Eles então governaram Itaperabuçu, e dessa união nasceu a tribo Kari-ri. Eles tiveram uma filha, chamada Mara, que nasceu com os dons da beleza e sedução. Ela os usava para seduzir guerreiros da tribo e alimentar-se de suas forças. Percebendo a maldade de sua filha, Manaká encantou-a em forma de serpente e a fez habitar o lago encantado. Vendo o que sua criação se tornara, Mãe D’água fechou o reino de Itaperabuçu para sempre. De dia, apenas as ruínas das pedras do reino encantado podem ser vistas, mas nas horas mortas de noites de lua cheia a terra de Manaká e Jurema ganha vida novamente.
Lavras da Mangabeira Carneiro de Ouro e Prata
O Boqueirão, localizado a 5 km da cidade de Lavras da Mangabeira, é a garganta aberta do rio Salgado, que desemboca pela passagem. A formação rochosa também abriga uma caverna, proveniente da degradação da rocha, que tem a forma de uma cúpula achatada. Se essa beleza natural não fosse motivo suficiente para sua riqueza, o segredo que descansa sobre o amontoado de pedras o é. Isso porque a gruta é o lar de um carneiro feito de ouro maciço, que pode ser avistado em alguns dias por aqueles que tiverem sorte suficiente. Em sua morada, o carneiro esconde uma mesa repleta de ornamentos de ouro e prata.
Missão Velha
Lenda da Cachoeira
Os ecos do nosso passado deixaram marcas visíveis para o nosso presente. Em Missão Velha, essas pistas foram deixadas na sua cachoeira, em formas de pequenas patas de passarinho. Conta-se a lenda que, quando as águas do dilúvio estavam baixando, alguns passarinho pousaram na cachoeira. Como as pedras ainda estavam moles, suas pegadas ficaram gravadas em rocha. Até hoje centenas de pessoas vão a cachoeira observar, curiosos, as pequenas formas que direcionam nosso olhar para o mistério do que já foi.
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