Meninos, eu vi
A memória levanta questões complexas e inerentes a nós, humanos, demasiadamente humanos. Por meio dela, o pensamento se renova no curso da própria vida. A minha, a sua, as nossas lembranças fazem parte de um caldeirão cultural coletivo. Quando o tempo passa, restam apenas as impressões deixadas nos vagões do nosso ser. A memória é épica, é narração, é vida lapidada nos grotões do nosso espírito.
Chegamos ao segundo número da revista Memórias Cariri e, mais uma vez, remexemos no baú de lembranças de muita gente. Descobrimos e refletimos, junto aos nossos entrevistados, sobre suas vidas, suas andanças, suas tensões, dores e alegrias – tudo que a memória lembra, guarda ou apenas esquece. Através dela, muito aprendizado e uma luz no fim de cada túnel da lembrança, afinal, o passado empurra o presente.
Célia Rodrigues encanta com suas histórias. Radialista e feminista, ela conta a sua rica trajetória. Nas ondas do rádio, Célia começou a falar de questões feministas numa terra até hoje permeada pelo machismo e encabeçou a primeira passeata do dia oito de março – Dia Internacional da Mulher - no Cariri .
A história do rádio caririense confunde-se também com a história de João Hilário Coelho Correia, 64 anos. Radialista há quase 50, ele conhece como ninguém cada peça dessa narrativa, pelo menos desde o Século XX. João fala dessa rica trajetória e também de suas andanças pela política da região: ele foi prefeito duas vezes de Barbalha.
Xico Sá lança seu novo livro - “Sertão Japão”, uma viagem literária que explora, com muito humor, as semelhanças entre o oriente e o Cariri. O livro conta com a colaboração de José Lourenço, da Lira Nordestina, que fez xilogravuras especialmente para a edição. Aproveitamos o gancho para contar a história, ou as memórias, desse D. Quixote da literatura brasileira. O estudante Breno Arlet, do curso de Jornalismo da UFCA, escreveu uma bela crônica em homenagem a Xico, uma cortesia de um fã de carteirinha e conterrâneo do autor de Big Jato”.
Viajamos ao tempo da contracultura, da Ditadura Militar, dos festivais de música, de teatro e de muita resistência através do Xá de Flor, uma espécie de aguardente temperada com ervas. O Xá de Flor puxou um movimento cultural que se es-
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praiou por Crato, Juazeiro e Barbalha nos anos de chumbo. Confira essa história através dos depoimentos de Blandino Lobo, de Abidoral Jamacaru e de João do Crato.
Confira também a história Cícero Bento de Mendonça, 65 anos, Técnico de Laboratório em Joias, do curso de Design da Universidade Federal do Cariri. Seu Ciço é ourives de primeira linha e narra os segredos da sua profissão no mundo das joias desde São Paulo – ele trabalhou em várias capitais do país. Explicita o seu trabalho no laboratório da UFCA da complicada, mas delicada tarefa de modelar jóias.
No compasso da memória e da vida reconstruímos o passado em diversos campos do conhecimento por meio de entrevistas em profundidade, com personagens singulares da nossa região. São vestígios do passado que entram pelo nosso presente e projetam saberes para o nosso futuro. Como no famoso poema I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, hoje um bordão popular: meninos, eu vi.
Boa leitura!
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Célia Rodrigue hilário de flor
30 Dona Dôra
Expediente
Índice Expediente
Texto e fotografia:
Andressa Figueiredo
Anna Carla de Morais
Beatriz Morais
Breno Árleth
Caio Botelho
Edla Ribeiro
José Anderson Sandes
Professor orientador:
José Anderson Sandes
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Revisão:
Andressa Figueiredo
Projeto gráfico:
Isaac Brito Roque
Diagramação:
Hanna França Menezes
Edição 2
Juazeiro do Norte, Outubro 2018 Revista experimental do projeto “Memórias Kariri” vinculado à Pró-reitoria de Extensão da Universidade Federal do Cariri.
José Anderson Sandes Professor OrientadorRodrigues Célia Célia Rodrigues bela,
corajosa e do ar
Célia Rodrigues é radialista, feminista e comunicadora de gênero. Nasceu em Juazeiro do Norte em 12 de fevereiro de 1951. Começou a se aventurar nas ondas do rádio ainda adolescente. Atualmente apresenta os programas Papo Cabeça e Sexo Verbal na Rádio Vale FM e é integrante da Rede Mulher e Mídia. Célia Rodrigues conta nesta entrevista da sua trajetória de vida, da carreira e ,principalmete, da luta do femisnimo no Cariri.
Depois de quase cinquenta anos atuando como radialista, você saberia dizer quando e de que forma começou sua relação com o rádio?
Começou como ouvinte. Eu era adolescente e tinha uma fascinação enorme por ouvir rádio. Na minha geração, as músicas eram aquelas que hoje são chamadas de velha guarda: Roberto Carlos, Jerry Adriani, Vanderlei Cardoso, Wanderléa. Eu era fã da Wanderléa, assim como hoje a juventude é fã da Beyonce... E sempre fui vidrada pela música popular brasileira. O que você mais ouvia da música brasileira?
Eu era apaixonada pela Bossa Nova. A Bossa Nova é um ingrediente muito importante para se contar a história do Brasil envolvendo a política, a ditadura e todos os horrores sofridos neste período. A censura era muito forte, então os artistas utilizavam as músicas para denunciar e colocar para fora seus sentimentos de revolta. Ainda assim, muitos deles foram deportados, presos e torturados. As mulheres, principalmente. A própria [ex-presidenta] Dilma foi uma dessas vítimas. São tantas histórias de mulheres, artistas, cantoras, atrizes de teatro que foram extremamente torturadas. Eles entravam nos teatros, pegavam os atores e atrizes em cena e retiravam para a prisão.
Essas lembranças são tão horrorosas que estão gravadas, até mesmo, na mente de quem
não as viveu. E, o pior, é que hoje convivemos com um grupo que pede o retorno da ditadura... Quem deseja a volta da ditadura no Brasil são pessoas totalmente sem noção, que não fazem ideia do quanto custou para brasileiros e brasileiras esse absurdo, essa barbárie.
E quando foi seu início no rádio?
Na minha época de adolescente, na década de 60, tinha um programa de calouros chamado “A Cidade se Diverte”. Ele era produzido, apresentado e transmitido pela Rádio Iracema. E a turma ia lá cantar para ganhar aqueles brindes bobos, mas o importante mesmo era pegar o microfone e ensaiar com João Martins, que era um dos titulares da orquestra do Treze Atlético Juazeirense, no tempo em que o Treze era um dos melhores clubes sociais de Juazeiro.
E você foi participar?
Sim! Eu e minha irmã nos inscrevemos para cantar e acabaram gostando da nossa voz. Lembro que cantei uma música da Wanderléa. O meu pai era músico, tinha violão e ensaiava com a gente, ajudava muito. Um dia, voltando da escola, o diretor da Rádio Iracema, seu Coelho, estava na porta do prédio da rádio e me reconheceu: “Ei menina, vem aqui! Você não quer vir fazer um teste com a gente, não? Você tem uma voz muito boa, pelo menos para cantar.” Eu fiquei eufórica,
Foto: Arquivo pessoal
saltitante, sai correndo, fui pra casa e minha mãe disse: “Não vai de jeito nenhum!”
E aí?
Eu convenci! Na nossa época, o pai era mais ausente e a mãe era mais presente, acho que até hoje ainda é assim. E, muitas vezes, a mãe é mais carrasca que o pai. No meu caso, era. Então acabei ganhando mais com o meu pai. Fui pedir e ele disse: “Deixa a menina! Eu vou acompanhar!”. Aí ela cedeu: “Ah, se você for, está tudo bem”. E eu fui fazer o teste.
E como foi o teste?
Quando cheguei na rádio, Maciel Silva – que foi meu diretor de programação durante anos e um dos melhores radialistas que eu já conheci – me colocou dentro da sala de gravação com um gravador daqueles de rolos enormes e me entregou um monte de textos, tinha até convite de enterro. Primeiro, ele me deu uma rápida explicação de como eu deveria proceder e depois me deixou à vontade. E eu mandei ver. Quando terminou tudo, ele ouviu e começou a pontuar o que eu poderia melhorar. Aí eu falei assim: “Mas isso aqui é uma brincadeira, né?” e ele respondeu: “Não senhora, é um teste! Se você passar, você vai falar no microfone, você vai ser locutora”. Nem passava pela minha cabeça que eu poderia ser locutora. Mas o interessante é que aquilo começa a fluir na cabeça de jovem e a gente toma como tarefa. Daí nasceu a Célia Rodrigues radialista. E seus pais? De que forma eles lidaram com essa nova paixão da filha?
De início não gostaram nada, mas foram amolecendo. Lembro que o locutor Wellington Balbino foi à minha casa com um gravador e perguntou para os meus pais se eu poderia gravar uma chamada para carro de som. Nesse tempo, a publicidade em automotores era muito maior do que é hoje, até porque só existia uma emissora de rádio na cidade. E minha mãe não queria deixar. Ele insistiu: “Vamos remunerá-la”. E minha mãe retrucou: “Não estou preocupada com isso. Eu quero é que ela estude. Esse negócio de mulher que faz rádio fica mal falada”. Tinha muito isso, de ficar falada... Meus pais sequer queriam que eu trabalhasse. Antes disso, trabalhei no comércio e foi uma peleja grande para os meus pais deixarem. Mulher que trabalhava fora era mal falada, mulher que se metia com negócio de artista, de cantar, dançar, teatro, era mal falada. E isso começou a crescer em mim uma vontade imensa de compreender o porquê. Por que é mal falada?
É nesse momento que surge o interesse pelas questões de gênero?
Talvez... Talvez já fosse o desejo de trabalhar com comunicação de gênero e eu ainda não sabia. Inquietavam-me as questões comportamentais entre homens
Célia Rodrigues em três momentos da sua carreira
e mulheres. Eu queria saber por que a mulher era mal falada e o homem não era. Por que o homem podia chegar em casa de madrugada e a moça não? Quando íamos para uma festa, minha mãe ordenava: “Dez horas em casa!” E eu dizia: “Mãe, dez horas começa o baile, como eu vou chegar às dez?” E aí chorávamos, fazíamos um carnaval danado para conseguir ficar até meia noite. Não era muito fácil a nossa juventude não... Mas e a propaganda? Eles te deixaram gravar?
Sim! Gravei e foi ao ar. Mas você acredita que eu nunca ouvi? Eu nasci e me criei na rua Santa Luzia, ali pertinho das ruas da Conceição e da Glória, e torcia para que esse bendito carro com a minha voz passasse na minha rua. Mas ele nunca passou quando eu estava em casa. Uma hora eu estava na escola, outra hora na rádio ou em outro lugar... Mas foi assim que eu comecei. Ingressei em 1971 e em 1972 a rádio assinou minha carteira, aí eu já era funcionária, já fazia reportagem, fazia externa...
Você lembra da sua primeira atuação como profissional?
Lembro! Foi quando seu Coelho Alves me convidou para fazer a cobertura da diretoria de posse do primeiro Centro Estudantil Juazeirense – que, inclusive, escreveram “estudantal”, depois descobriram que essa palavra não existia e precisaram mudar o estatuto para colocar “estudantil”. E eu morria de medo de trabalhar com ele, porque o cara era jornalista mesmo, formado no Rio, sabia tudo de rádio. Quando fomos fazer a cobertura, eu dizia: “Seu Coelho, eu não vou saber”. E ele respondia: “Vai saber sim, você é boa”.
E era ao vivo?
Não [risos]. Nessa época, para fazer ao vivo era muito difícil. Você tinha que pedir uma linha de transmissão à Companhia Telefônica de Juazeiro, a TELEGE. Eles levavam mais ou menos três dias para instalar essa linha. Então, a gente geralmente gravava e jogava na programação do dia seguinte. Aí ele me deu o gravador e o microfone enorme para entrevistar o presidente e dar uma geral do evento.
E você foi?
Fui! Morrendo de medo, mas fui. Essas experiências, a primeira atuação quando a gente se sente profissional dentro da área, não é fácil. Mas eu me sai bem, fiz tudo o que ele me ensinou. Nunca tive dificuldade de conversar ou formular perguntas. Na escola eu já fazia isso, mas é a situação em si que nos coloca no momento de nervosismo.
E, falando em nervosismo, qual foi o momento que você se sentiu mais nervosa na profissão?
Teve alguma matéria ou entrevista que te fez tremer?
Uma vez eu fui para o Romeirão e tinha faltado um repórter de campo. Então, o José Boaventura, chefe da equipe de esporte da Rádio Iracema, me disse: “Célia, você vai ajudar hoje!” Respondi logo: “Eu não! Não entendo nada disso”. Mas ele insistiu: “A única coisa que você precisa fazer é perguntar pro Dote, se ele fizer gol, qual foi a sensação”. O Dote era o melhor jogador do Icasa, na época. O estádio estava lotado. Era um torneio intermunicipal e o Icasa estava na frente. Dentro do Romeirão eu tremi.
E aí, o Dote fez o gol?
Aí terminou o primeiro tempo e o Dote foi para o vestiário. E o Boaventura dando sinal para eu ir atrás. E eu: “Tu acha que eu vou correr? Deixa ele voltar que eu pergunto” [risos]. Mas ele ainda não tinha feito o gol. E o que você iria perguntar caso ele não fizesse o gol?
Não sei [risos]. Fiquei torcendo para ele fazer. E ele fez. O Icasa ganhou de dois a zero e eu perguntei: “Dote, qual a sensação de você ter feito o segundo gol, que fortaleceu a vitória do Icasa?” Aí já mandei o microfone para ele, porque eu não tinha mais o que perguntar. [risos]. Depois eu disse para o Boaventura: “Nunca mais faça isso comigo, eu sou locutora, apresento programa de disc jockey, não sou repórter esportiva”. E ele falou: “Meu amor, nessa profissão a gente faz tudo, sabia?” Nunca me esqueço disso.
O que são programas de disc jockey?
São programas feitos com a participação do ouvinte. E o ouvinte, nesse caso, é o disc jockey, ou seja, aquele que seleciona as músicas. Valorizávamos bastante o ouvinte. Perguntávamos a música que eles queriam escutar, a idade, o lugar de onde estavam falando... Os ouvintes participavam bastante? De que forma isso acontecia?
Muito! Principalmente as mulheres. A participação por telefone era escassa pela ausência de telefones. Eram aqueles pretos, enormes, que quase ninguém tinha. E também não existiam orelhões, eles vieram depois... Então, o programa recebia uma tonelada de cartas.
Cartas? Como elas chegavam até vocês?
Isso! Tínhamos uma urna na rádio e o público ia lá deixar. Todos os dias nós abríamos essa urna e ela estava sempre lotada até a borda de cartas. E dava trabalho imenso para separar, porque era carta para um monte de programa diferente. De vez em quando me dá uma saudade danada, às vezes me reporto lá para o passado porque é uma forma de fazer um comparativo com o que a gente vivencia hoje.
Quais programas você estava apresentando na época? Eles recebiam muitas cartas?
Eram dois. O Cantinho Sentimental e a Grande Parada. Na Grande Parada, às vezes, eu recebia de trinta, quarenta cartas por dia. No Cantinho Sentimental, eu recebia muito mais. Eram histórias sentimentais...
Qual era o conteúdo dessas cartas? Já teve alguém apaixonado por você?
Já! [risos] Ele era frequentador da Rádio Iracema. Ia todo santo dia na hora do meu programa. A sala de controle tinha um balcão que as pessoas ficavam e, através do vídeo, dava para ver o locutor no estúdio. E aquele menino ficava o programa inteirinho ali olhando para mim. Mas eu não tinha ideia, achava que era um ouvinte, porque os ouvintes sempre iam. A rádio, naquela época, enchia de gente, era quase um programa de auditório. Ninguém tinha nada para fazer, nem televisão... Quando começou a aparecer televisão era outro objeto de luxo, assim como o telefone...
E era você quem produzia os dois? Quais eram os formatos deles?
Era sim! Na Grande Parada tocava muito internacional. Era o único programa da Rádio Iracema que tocava internacional, então ele era muito ouvido pela galera jovem, tinha uma audiência danada. À tarde, não dava outra, era A Grande Parada. Quando o programa acabava, às quatro, eu me trancava na discoteca para escolher uns discos, lp’s e músicas românticas para o Cantinho Sentimental. Sempre tocava uma que eu gostava muito, do Moarcyr Franco: “Eu nunca mais vou te esquecer”. Era auge! Ou então Wanderléa: “Quisera ter / a coragem de dizer / que é bem grande o meu amor” Sucesso também! Roberto Carlos então, nem se fala! “Sem você / minhas noites são tão tristes / vou morrer”. Eram essas que a gente tocava... É a cara do nome do programa mesmo, né? Cantinho Sentimental...
Era [risos]. Tocavam só essas músicas que doíam até nos que não estavam apaixonados.
A Audiência da Rádio Iracema era boa?
Sim, demais! A Rádio Iracema, mesmo depois do surgimento da Rádio Progresso, sempre foi a pioneira em audiência. Ela era ouvida nas cidades de Juazeiro, Crato e Barbalha. Nossa antena ficava na Serra do Horto e, por estar num lugar de muita altitude, tinha possibilidade de alcance. O sinal da Rádio Iracema pegava bem à noite e de manhã cedo. De tarde, em alguns lugares, diminuía um pouquinho. Então, os ouvintes mandavam carta: “Estava ouvindo o programa da Célia e fugiu [o sinal]”. Era assim mesmo, fugia e depois voltava, às vezes fraca, às vezes melhor. Mas ela era ouvida em quase toda região do Cariri.
E como era a relação com os ouvintes?
Era engraçado. No rádio, você está em público, mas ninguém sabe quem você é. Mas quando vinham bandas, nesses eventos municipais, geralmente era o pessoal de rádio que ia apresentar. Quando as pessoas me viam, elas falavam: “Ahhh, você que é a Célia Rodrigues?”. E perguntavam sobre o Cantinho Sentimental, a Grande Parada. Eu me sentia importante! [risos] Quando foi que o casamento interpelou seus planos?
Já estava no auge do rádio quando conheci meu ex-marido. Ele era lindo, cabelo grande... Começamos a namorar e eu saia escondido da escola para encontrar com ele. Meus pais nunca souberam. Ele morava em São Paulo e vinha de férias para cá. Na terceira vez que ele veio, me pediu em casamento. Eu enlouqueci. Estava apaixonada, mas fiquei dividida. Tinha minha carreira.
Eu queria crescer, queria fazer jornalismo, mas não tinha perspectiva de vir um curso de jornalismo ou outros cursos para cá. Aí o casamento acabou entrando nos meus projetos de vida. Sabe aquela briga do carrinho de corrida? Minha vida profissional e familiar entrou naquele rodeio. E, em 1974, eu casei e fui embora para São Paulo. Lembro que na véspera do meu casamento, meu pai falou bem assim: “Minha filha, é isso mesmo que você quer? Você me disse que queria estudar, estar no rádio...”
E você deixou o rádio neste período?
Deixei... Na minha cabeça eu ia fazer faculdade, voltar a estudar. Mas meu ex-marido era extremamente machista, ele abominava o fato de eu ser profissional do rádio. Então, para ele, eu jamais voltaria para o rádio. Mas você voltou?
Voltei!
De que forma o casamento interferiu na sua carreira?
Acho que foi a pior batalha da minha vida, mas eu consegui. Não me senti vitoriosa porque nessa batalha travada dentro do relacionamento não existe ganhador. É para existir consenso. No meu caso, não houve consenso, houve a minha perseverança. Eu provei para ele que a minha carreira não atrapalharia no meu casamento e nem com os filhos.
Como você fez isso?
Com sete meses de casada eu engravidei, o que dificultou para caramba minhas chances de voltar a trabalhar. Mas esperei meu filho nascer e completar um aninho. Então, o deixei com uma vizinha, escondido do meu ex-marido, e fui fazer um teste na Rádio Tribuna FM, de Santos. Nesse dia caiu um temporal tão grande que
“Eu uso muito a linguagem de gênero, defendo a igualdade entre homens e mulheres. Um cara me mandou assim: ‘Minha namorada não gosta de sexo anal, o que eu faço?’ Não faça, meu querido! É tão óbvio”
eu fiquei ilhada, não consegui sair do terminal de ônibus de jeito nenhum, tive que voltar para casa. Aí essa vizinha, que era minha aliada, falou: “Não tem problema, Célia. Marca de novo que eu fico com seu filho e não precisa teu marido saber. Depois que você fizer o teste e passar, você enfrenta outra etapa para convencê-lo”. Imagina você ter que ser autorizada pelo marido para trabalhar?! Isso é o fim da picada! E no meu tempo tinha isso. São coisas que a gente conseguiu quebrar, mas não foi fácil.
O que te custou?
Para mim, custou o casamento. Não vou dizer que meu divórcio decorre única e exclusivamente dessas nossas diferenças, Mas o fato de eu ter sido teimosa e ter ido trabalhar, mesmo contra a vontade dele, contribuíram muito. Todo dia era uma briga.
Ele trabalhava com o que lá?
Ele era portuário. O porto de Santos é o maior da América Latina. Existem setores lá em que é preciso usar aquelas roupas esquisitas, com muita proteção. Ele trabalhava dentro desse setor e ganhava muito bem. Só que o governo de São Paulo, na época do Maluf, resolveu privatizar o porto e os trabalhadores entraram em greve. Nessa época, Lula era presidente do sindicato dos metalúrgicos e vinha do ABC Paulista para dar suporte à greve do pessoal do porto. Foi lá que eu o conheci e comecei a ser simpatizante do PT. Lembro que nós, as mulheres dos portuários, batíamos panelas. Mas era bater panela mesmo. Não era essa elite paulista que bate panela de safadeza. Era uma forma de protesto para dizer que a privatização ia acabar com todos os direitos e diminuir por demais o orçamento familiar de cada trabalhador. Mas não adiantou. Eles privatizaram mesmo. E o que vocês fizeram?
Foi uma fase muito difícil. Ele me falou assim: “É da vez, Célia, que a gente vai voltar para o Ceará. A gente pega o dinheiro da indenização, vai para Juazeiro e abre um restaurante”. A gente teve que vir pra cá de mala e cuia. Ele trouxe uma boa reserva de dinheiro e montou um bar na rua São Paulo. Só que meu ex-marido nunca teve o mínimo timbre para negócio e faliu o bar. Montou uma lanchonete lá no Socorro, no cruzamento da Santa Rosa com Santa Luzia, chamada
Rola Papo, mas ele faliu de novo. Não dava. Ele não tinha traquejo para o negócio. Quando vocês se divorciaram?
Já tínhamos voltado para cá, na década de 90. A vida privada da gente acaba interferindo na vida profissional. Quando você precisa juntar sua carreira com a sua vida relacional e familiar, é muito difícil chegar num denominador comum. Por mais madura que a pessoa seja, por mais convicta que a pessoa esteja naquela sua escolha, ainda assim não é fácil. Principalmente quando vêm os filhos.
Você acha que, por isso, cada vez mais mulheres não querem filhos ou postergam a maternidade?
Com certeza! Muitas mulheres seguram e não são mães enquanto não estão satisfeitas profissionalmente. Hoje a mulher pode escolher quando quer ter filho, ainda que o marido não concorde. Ela pode. É o corpo dela que vai sofrer as alterações e é ela que vai ter que se afastar do trabalho. Precisa ser uma decisão dela. Eu passei por tudo isso com um marido repressivo e machista, numa geração em que não tínhamos tanta abertura, porque quanto mais a mulher fosse rebelde, mais censurada ela era pela sociedade. Depois do meu divórcio fui taxada de lésbica porque eu não queria um homem. Era uma escolha. Eu queria focar na minha carreira. Foi difícil porque meus filhos eram pequenos, mas valeu a pena. Todas as angústias me fizeram valorizar tudo que eu consegui. A minha vida no rádio sofreu mudanças a partir do momento que eu voltei de São Paulo para cá. O Papo Cabeça, que você apresenta hoje na Rádio Vale é um programa de aconselhamento sobre relacionamentos. Você utiliza as suas experiências no casamento no seu programa?
Também! A minha experiência no casamento foi com um homem machista que tentou me podar de todas as formas, que não queria que eu crescesse. Para ele, a mulher tinha que ser mãe, dona de casa e na cama. Mas eu não permiti. Nunca permiti violência física, porque se eu tivesse permitido, ele tinha me batido. Ele ameaçou. Nós não tínhamos a lei Maria da Penha, mas eu sabia que podia denunciar por agressão. A partir disso, consegui pontuar todas as experiências negativas e trabalhá-las na minha vida hoje, como profissional do rádio e como militante. No Papo Cabeça eu falo muito. Quando você está com o outro precisa compartilhar, tem que entrar em sintonia. Eu via meus pais brigando e minha mãe se calar, achando que ele tinha razão, que mulher tinha que ficar dentro de casa mesmo. Aquilo me machucava. Eu não conseguia sintonizar isso como sendo a coisa certa. Talvez eu já tenha nascido com um DNA feminista. E hoje, o que me fortalece bastante, me
faz crescer como mulher, é saber que eu continuo com meu trabalho no rádio e nas redes de articulação em prol da mulher.
Como foi seu retorno para rádio? Seus ex-colegas sabiam que você tinha voltado?
Quando voltamos para Juazeiro, fiquei dois anos tentando trabalhar com meu ex-marido, mas não deu certo, nós brigávamos muito. Então percebi que essa não era minha praia e comecei a dar uns telefonemas. Ninguém sabia que eu tinha voltado. E começaram a me convidar para ir aos programas, jornais. Revi os colegas e fui convidada pela Rádio Progresso. Expliquei para o diretor, seu Zezinho Barbosa, minha ideia de um programa voltado para o público feminino, de mulher para mulher. Mas ele disse: “Ah, mas isso é um programa temático. Não vai pegar. Programa só de conversa não pega”. E eu falei: “Depende do conteúdo da conversa”. Fiz o projeto e levei para ele. Ele disse que me chamaria em uma semana, mas eu nem dei mais esperança... Estava pretendendo, inclusive, voltar a estudar. Mas de repente, toca o telefone e era ele me chamando para negociar o programa. E ele me explicou: “A gente não sabe se vai ter público alvo para esse programa. Você tem noventa dias, se o programa emplacar, fica. Se não emplacar, a gente vê o que faz para você continuar na rádio”. Mas eu tinha certeza que ia dar certo, estava muito convicta. Comecei a agilizar e preparar o programa.
Era o Mulher Ideal, né?
Exatamente! Em 02 de janeiro de 1994 estreamos o programa Mulher Ideal, na Rádio Progresso. Era para ir ao ar no dia primeiro de janeiro, mas como era feriado, precisamos adiar mais um dia.
Como foi estrear um programa com uma proposta tão diferente do que se fazia na época? O que vocês fizeram para atrair o público?
Pedimos uma semana de chamada na programação habitual da rádio. Coloquei “Cor de Rosa Choque” (da Rita Lee) como a trilha do programa e, quando estreamos o programa, já começamos a receber telefonemas no ar, com pessoas dizendo: “Nossa, que legal! Temos agora um espaço para a mulher. Parabéns, Célia!” Outros se perguntavam que era a Célia Rodrigues. Alguém reconheceu?
Sim. Algumas pessoas, ainda do meu tempo, foram na rádio. Era uma surpresa tão grande ver minhas ouvintes, todas maduras, como eu, chegarem no estúdio e me abraçarem. Todas essas mulheres compareceram em nossa primeira passeata do Dia Internacional da Mulher, em 8 de março de 1994. E, a partir de então, foi só fortalecimento para continuar o trabalho.
E o diretor cedeu?
Sim! Ele começou a ver. Só que eu não era funcionária ainda. Fui contratada pela rádio depois de quatro anos.
Teve algum momento que você considera que tenha levado o programa a um alcance ou con-
Na época em que o programa estava no ar, em 1995, ia acontecer a V Conferência Internacional da Mulher, em Pequim, na China. E folheando a Revista Nova, da qual eu era assinante, vi que o CEMINA –Centro de Projetos da Mulher, no Rio de Janeiro, ia enviar uma representante, a Denise Viola, para a Conferência. Foi representação feminista de tudo quanto é instituição desse Brasil. Foram mulheres negras, grupos de mulheres lésbicas, trabalhadoras rurais... Uma coisa maravilhosa. E o Brasil foi signatário dessa conferência desde o início. Eu vi essa referência sendo publicada na Revista Nova, peguei o número de lá e enviei um fax com um release do Mulher Ideal, porque eu queria receber fita cassete para divulgar dentro do meu programa. Eu queria dar ao programa uma consistência de
Deu sim! Minha maior alegria! Uma semana depois o telefone toca: “É Célia Rodrigues de Juazeiro do Norte, do programa Mulher Ideal na Rádio Progresso?”
“Sim, é ela!” “Célia, aqui é Madalena Guilhon do CEMINA. Gostamos muito do seu fax e queremos o endereço daí que vamos começar a enviar as fitas cassetes. Você disse que tem interesse, nós temos mais interesse ainda de descentralizar a divulgação da Conferência, você topa?”. E eu: “Claro que topo, Madalena! Só topo! Quer que eu te mande o endereço agora?”. Passei o endereço e, uma semana depois, recebi um pacote de fita cassete. Não era só divulgação da pré-conferência, eram produções do CEMINA sobre saúde da mulher, gravidez, aleitamento materno, feminismo, educação de gênero. Aí eu falei: “Pronto! Estou feita!”. Comecei a me fortalecer bastante. No final de 1995 eu recebo um faz delas me convidando para ir ao Rio de Janeiro fazer uma capacitação para ingressar na rede de Mulheres em Comunicação. A rede estava sendo formada naquele ano, elas já tinham tido uma reunião em Ubatuba, na região litorânea de São Paulo, e decidiram que o CEMINA ia dar suporte a criação dessa rede. Antes era rede de Mulheres no Rádio. “Queremos representação do Ceará e, por enquanto, só tem você. Você topa vir?” “Mas é claro que eu topo!”. Falei para o diretor e começaram a dar mais credibilidade ao meu trabalho lá dentro.
Em 1998 vocês organizam o primeiro even-
to pelo Dia Internacional da Mulher de Juazeiro. Como foi isso?
Foi maravilhoso! Uma das maiores alegrias da minha vida, quando cheguei para apresentar e o Memorial Padre Cícero estava lotado. Este evento, que foi o primeiro, intitulamos de “Mulher de Corpo e Alma” que era o nome de um dos quadros do programa. A partir daí, realizamos o evento todos os anos até o programa sair do ar e a gente perder o estímulo.
Qual foi a duração do programa? E por que ele saiu do ar?
Durou de 1994 até 2006, tinha uma audiência imensa, a gente fazia festa com bolo e tudo para comemorar os aniversários do programa até que o diretor da Rádio Progresso, seu Zezinho Barboza, tirou do ar sem dar nenhuma explicação.
Mas o Mulher Ideal era uma criação sua, você não pensou em levá-lo para Rádio Vale?
Sim, pensei. Eu queria levar o programa para a Vale, porque ele é meu, com criação e produção minha. Mas como Rádio FM tem um modelo diferente, o diretor sugeriu que colocássemos semanalmente, no domingo. Mas não fazia sentido. Meu sonho hoje é criar a Rádio Comunitária Mulher Ideal. Se eu tivesse cinquenta mil reais...
Você já está há mais de 45 anos atuando no rádio. Começou numa época em que quase não existiam mulheres locutoras. Como era sua relação com seus colegas?
O que mais admiro quando as pessoas me perguntam sobre mulheres no rádio, eu digo que nunca sofri rejeição lá dentro. Fui muito bem tratada e respeitada dentro da minha posição de única locutora da Rádio Iracema. O curioso era que nós mulheres, locutoras, não assumíamos a bancada de radiojornalismo porque a voz do homem é que prevalecia. A Rádio Iracema foi a primeira que quebrou esse tabu. No meu tempo, a voz da mulher não era cabível, na cabeça deles. Até hoje tem isso, são pouquíssimas as meninas que fazem radiojornalismo. Não conheço aqui no Cariri nenhuma locutora que apresente sozinha, ou como titular, um jornal. Quando eu voltei de São Paulo pra cá, eu voltei pro rádio, convidada pela Rádio progresso, fiz o jornal de meio dia com Wellington Oliveira, mas nunca aconteceu de sermos nós, sozinhas, apresentando jornal. Enfrentamos preconceito por sermos mulheres, enfrentamos a violência da discriminação, que já é uma violência. Violência simbólica a gente tem que combater. Por isso que a lei do feminicídio foi aprovada, porque hoje a mulher é vítima só pelo fato de ser mulher. A luta é muito grande. A guerra não foi ganha ainda, apenas algumas batalhas. Mas eu acho que a gente consegue
chegar lá. Nunca me senti inferior a nenhum colega, mas era óbvio que havia muito menos mulheres trabalhando.
Você já foi vítima de assédio ou presenciou alguma situação nos lugares em que trabalhou?
Uma colega radialista foi assediada por outro colega. Ele a imprensou na parede querendo beijá-la. E ela se recusou. Depois, ela me disse que se sentiu tão coagida, que precisou dizer: “Eu tenho namorado”. E ele parou. Só que ela nem tinha esse namorado. Mas aí ele respeitou esse suposto namorado, não a vontade dela. Isso é um absurdo! E a gente sabe que isso ocorre na faculdade, nos ambientes de trabalho, em todo canto.
Já aconteceu contigo?
Nunca fui assediada em nenhuma das emissoras que trabalhei. Mas fui assediada por um chefe que tive antes do rádio. Teve um período que a rádio teve um problema técnico e ficou fora do ar por uns meses. E durante esse tempo eu endoidei.
Como assim?
Via minhas amigas trabalhando fora e queria também, sonhava em trabalhar fora, ser comerciária. Eu via as meninas passando naquele quarteirão da Rua São Paulo, onde só haviam casas de tecido, como as Casas Alencar, Casas Pernambucanas... Eu adorava que elas usavam uma farda bonitinha, uma saia e um sapato e eu queria ser comerciária também. Jovem mudava num piscar de olhos os seus sonhos. Quando eu me conscientizei que a rádio era minha praia, eu tinha 22. Esse processo de inconstância foi dos 17 aos 20.
E então você foi se arriscar no comércio?
Na verdade, eu fui trabalhar num laboratório de análises clínicas. E foi esse meu chefe, um médico conhecido na cidade, que me assediou. Eu esterilizava as lâminas para colocar o material e levar para análise. Certo dia, no momento que eu estava preparando as lâminas para esterelizar, ele veio para trás de mim e se masturbou. Eu não sabia o que ele estava fazendo, mas desconfiava. Fiquei assustada, apavorada. Aconteceu uma segunda vez e aí eu joguei a bandeja de lâmina em cima dele e sai correndo.
Você contou para alguém?
Minha mãe estava querendo saber porque eu havia desistido do emprego. E eu menti, inventei uma desculpa e meus pais nunca souberam. Porque, naquela época, não existia absolutamente nenhum órgão policial em que uma adolescente chegasse dizendo que um homem daqueles tinha lhe assediado e que ele ia ser punido. A maluca ia ser eu. E nem eu fazia ideia de que isso era caso de polícia. As mulheres da nossa geração sofreram muito. Para você ver a ironia das coisas, meus pais não queriam que eu fizesse rádio para não ficar
mal falada e olha o que acontece comigo no laboratório do médico. Tenho até vergonha de contar isso. Como que uma jovem, de dezessetes anos, ia falar isso na minha geração? Como que eu ia provar? Eu não fiz nada. Isso deixa a gente tão impotente. Se eu falasse para os meus pais eles não iam mais me deixar trabalhar em canto nenhum, iam me prender dentro de casa. E como é sua relação com os seus filhos?
Eu já não tive esse problema. Aliás, os meus filhos não tiveram. Há uns vinte anos atrás, eu falava para a minha filha adolescente: “Quando perder a virgindade, quero ser a primeira a saber” E ela: “Ai, mãe!”. Mas as meninas, amigas dela, diziam: “Eu queria ter uma mãe assim”. Nessa época ainda existia uma amarração familiar. Eu sou comunicadora de gênero, faço questão de dizer isso. No meu quadro Sexo Verbal eu recebo tanta pergunta de adolescente, as meninas completamente perdidas quanto essa questão. E isso é porque com as mães ou com outras pessoas adultas próximas, elas não tem coragem de falar sobre isso, porque sabem que serão repreendidas, com um: “Pare de falar isso! Isso é muito feio e imoral para você!” Na minha época, as meninas não sabiam o que era menstruação. Eu soube porque eu era muito xereta e acabei descobrindo, mas minha irmã menstruou sem saber o que era e começou a chorar achando que estava doente. Isso para você ter uma ideia de como era tudo cheio de tabu. E também as questões religiosas que até hoje interferem muito...
Você recebe muitas perguntas machistas no Sexo Verbal?
Muita! E eu dou uns puxões de orelha. Eu uso muito a linguagem de gênero, defendo a igualdade entre homens e mulheres. Um cara me mandou assim: “Minha namorada não gosta de sexo anal, o que eu faço?” Não faça, meu querido! É tão óbvio.
O programa já recebeu críticas e reações negativas?
Já estamos há quase dez anos no ar e só recebemos duas reações negativas. Um cara que telefonou na hora que eu estava no ar e falou com o locutor: “Tenho uma lanchonete que está cheia de frequentadores, e essa mulher começou com essa linguajar, isso não é cabível, não é adequado. Não sou obrigado a ouvir isso com meu público”. Aí ele respondeu: “Faz o seguinte, senhor, tire de sintonia. Existem muitas outras rádios para você sintonizar.” Aí quando eu terminei o quadro ele me falou.
E, uma outra vez, foi um torpedo que recebi de uma pessoa evangélica dizendo que eu precisava me redimir porque eu estava incitando o sexo, que Deus mudasse meu coração, me deu uma verdadeira lição de moral religiosa. E eu pensei “Ah, meu Deus, quer dizer que ela não transa?” Essa eu respondi com um torpedo tam-
“O que mais admiro quando as pessoas me perguntam sobre mulheres no rádio, eu digo que nunca sofri rejeição lá dentro. Fui muito bem tratada e respeitada dentro da minha posição de única locutora da Rádio Iracema”
Eu e minha irmã nos inscrevemos para cantar e acabaram gostando da nossa voz. Lembro que cantei uma música da Wanderléa
bém, dizendo que eu não incito prática sexual, que as pessoas que mandam já têm vida sexual ativa.
Como o programa é visto?
A linguagem do Sexo Verbal é aberta, mas, assim, não damos brecha para piadinhas. As piadinhas que recebo são em relação a mim, gente dizendo “você deve ser muito boa de cama porque quando eu lhe ouço fico excitado”. A gente não permite que vulgarize. O programa é de educação sexual comportamental. Eu não sou sexóloga, sempre deixo claro que não sou médica e recomendo procurar uma ginecologista.
De que forma as novas tecnologias e redes sociais, especialmente o whatsapp, têm contribuído para o programa?
Quando começamos a abrir o whatsapp da Vale para as perguntas foi muito bacana. Eu fico muito preocupada. Temos a preocupação de editar algumas palavras para não ser adequada para ir ao ar, e deixar a pergunta para transcrever depois. Mas a turma que manda perguntas já tem se acostumado ao formato do programa. A gente substitui da expressão vulgar, pela propriamente dita. Mas é muito difícil. E raramente me constrange. A turma da faculdade que mora em cidades vizinhas e bairros mais distantes, que andam nesses micro-ônibus, costumam acompanhar o programa.
Olhando para trás, para tudo que você já viveu, suas experiências no rádio, no casamento, nos movimentos feministas, como você se sente?
Eu me completo. O rádio nunca me deu fortuna. Eu não tenho nada na minha vida, mas eu sou uma pessoa super feliz. A partir do momento que eu ingressei nos movimentos feministas e movimentos sociais, essas redes que me possibilitam viajar o Brasil inteiro, é muito aprendizado. Se eu morrer nos próximos meses, já está registrado aqui: a Célia Rodrigues morreu com a tarefa cumprida. Acho que cheguei no meu estágio de realização. Eu não tenho muito para conquistar. Eu fiz um pacto com o universo que quero morrer aos oitenta. Minha irmã é que diz: “Só morre quando Deus quiser”. E eu respondo: “Deus é o universo, meu amor”.
JOÃO HILÁRIO
às duas e meia da tarde. Na primeira semana eu pedi pra mudar o nome do programa pra “Força Total”. Lá fiquei dois anos. Saí da rádio quando eu fui fazer faculdade. Aí eu fui me dedicar um pouco mais aos estudos. Como era esse programa antes de você assumir?
Era só de música, atendendo carta. Quando eu cheguei, coloquei traduções, mais cartas, rápidas mensagens, informações das músicas. Comecei a dizer o nome dos compositores quando a música era brasileira. Tocava música internacional também, né. Diversifiquei bastante. E deu muito resultado ao ponto de eu ter sido escolhido para apresentar o primeiro show do Roberto Carlos no Romeirão com apenas quatro meses no rádio. Comecei no dia 31 de março e o show do Roberto Carlos foi 06 de julho de 1970.
Você chegou a conversar com o Roberto?
Sim. Ele deu entrevista pra nós da rádio e para o Wilton Bezerra, que é hoje comentarista esportivo da Rádio Verdes Mares, né, e da TV Diário. Eu levei o Antônio Libério comigo, chefe da banda “Os Águias” de
Minha vida é um pouco atribulada, mas eu consigo conciliar porque eu estou fazendo o que eu gosto. A gente fazendo o que gosta já é um meio caminho pra você ter satisfação, você não se enfadar
Barbalha. “Os Águias” vão pra cinquenta e dois anos de história. Eu tinha dezessete anos, cheio de espinhas, as orelhas ainda maiores... Cabelos! (Risos). A entrevista foi no Aristocrata Hotel, no refeitório, em Juazeiro do Norte, onde o Roberto Carlos estava hospedado. Acho que não existe mais. Era na rua São Francisco, pertinho de onde era a Rádio Progresso antiga. Era estreitinho, mas tinha dois andares. Era o melhor hotel na época. O Libério é meu amigo, eu gostava muito da banda, copiava música pra eles. E eu o levei pra pedir ao Roberto que “Os Águias” se apresentassem naquela noite, abrindo o show no Romeirão. Ele aceitou. Ele só entraria com os oitenta mil cruzeiros no bolso, quando os promotores pagassem pelo show. Ia demorar um pouquinho. Então, ele permitiu que “Os Águias” se apresentassem, só não permitiu usar os instrumentos dele. Montar show naquele tempo era rápido. Eram quatro caixas de som, quatro amplificadores em cima. Pronto! Montava bem ligeirinho no chão mesmo... Foi muito bom esse show. O Romeirão tinha muita gente. Agora, em 2015, quando o Roberto Carlos veio outra vez, eu recebi uma ligação do promotor do show, me convidando pra apresentar de novo. Ele me disse que estava conversando com o Roberto sobre aquele primeiro show aqui e falou sobre mim. Aí o Roberto disse: “Pois diga a ele que venha seis e meia pro camarim que a gente troca um papo aqui sobre como é que eu quero que ele apresente”. Mas eu não pude ir porque ia sair daqui direto pro Romeirão onde eu ia comentar o jogo do Icasa pelo campeonato brasileiro. Já estava anunciado. Eu mesmo já tinha anunciado aqui. Eu comento futebol pela Rádio Vale. Eles também passaram a semana anunciando que o comentário seria meu. Eu achei deselegante não ir, embora fosse uma honra novamente apresentar o Roberto depois de quarenta e cinco anos.
Vocês não chegaram a se encontrar?
Não, não. Nesse dia eu comi um lanchezinho lá no Romeirão, antes do intervalo do jogo. Cheguei em casa e fui almoçar efetivamente. Era sete, oito horas da noite e não fui a esse show do Roberto.
Depois de dois anos, você saiu da Rádio Progresso pra poder se dedicar a faculdade.
Sim, isso mesmo. Era o curso de Letras, na antiga Faculdade de Filosofia, hoje Universidade Regional do Cariri. Quando terminei a faculdade já era muito ocupado, já ensinando. Eu dava doze aulas por dia... Treze! Treze aulas por dia. Ensinava às 5:30 da manhã
educação física, em Barbalha, no antigo Ginásio Básico de Comércio, de 5:30 às 6:30. Às 7:00 horas, dava aula no SENAI, em Juazeiro, até às 11:00 horas. Voltava pra Barbalha. Aí, a uma hora, eu dava aula no SENAI até às cinco. E, às seis e meia, ia pra faculdade no Crato. Eram treze aulas e seis viagens por dia. Barbalha-Juazeiro, Barbalha-Crato. Nesse pequeno período eu não fiz rádio.
Como o jornalismo em rádio surgiu na sua vida profissional?
A história remonta vinte anos atrás. Eu fiz um projeto de um jornal para o rádio: “Jornal do meio dia”. Apresentei a um corretor pra ver a viabilidade de publicidade praumarádioaquiemJuazeiro.OpessoaldaRádioVale me chamou. Eu fazia “Beatles” na Tempo, mas a Tempo não tinha interesse em jornal de meio dia lá. Em 15 de dezembro de 1997, eu apresentei a primeira edição do “Jornal do meio dia” na Vale. Fiquei até 2003. Em 2003, saiu quase todo mundo da Rádio Tempo pra Rádio Vale. Foi um baque grande na emissora na época. Recebi um convite pra voltar pra Rádio Tempo. Aceitei o desafio de levantar a rádio. Construí lá o “Jornal Super Tempo”. Era cinco de maio de 2003 quando estreei. Fiquei até 09 de outubro de 2010. Saí da Rádio Tempo e vim pra cá, pra FM Pe. Cícero. Mais um desafio. Uma emissora
educativa, uma emissora com traços de audiência, mas uma emissora muito boa de se trabalhar. No dia oito de novembro de 2010, eu estreei o “Jornal da Tarde”, até hoje. Quando nós chegamos aqui, o jornal tinha duas horas de duração. Depois, a direção nos ofereceu mais meia hora. Ficou duas e meia. E depois, nos ofereceram mais meia hora: ficaram três horas. E sempre tem muita coisa além das notícias. Tem as participações, as entrevistas, as mensagens dos nossos ouvintes. Muitos ouvintes escrevem crônicas, artigos, mandam pra gente. Eles querem participar. Nós temos várias sequências dentro do jornal: a sequência “UniLeão”, a sequência “Boa tarde para você”, do Renato Casimiro, a sequência “Consulta de negócios”, com a Marília Falcioni, a sequência “Momento High Tech”, do Raul Sampaio Correia. Tem o “Quero saber”, de perguntas dos nossos ouvintes. Ano passado foram mais de 1.300 entrevistas. Como você lida com tantas participações?
Tem dia que eu fico preocupado. Tem notícias que eu chamei na manchete e tem várias participações dos ouvintes e faltam dez minutos pra terminar o jornal. É uma situação meio danada rádio ao vivo, com muita participação. Uma vez fui participar do programa da Adísia Sá, na Rádio O Povo, de Fortaleza. Era um programa ao vivo. Era tanta gente no estúdio. E ela corria
pra cima e pra baixo. Eu ia dar uma entrevista sobre o pau da bandeira de Barbalha. Eu era prefeito na época. E lá era loucura! Ficava imaginando: “Como é que ela pauta esse negócio?”. E ela dizia: “Aqui, prefeito, não tem pauta, não tem nada! Aqui é tudo na tora!”. Um tempo depois, já na Rádio Padre Cícero, a direção me pediu um jornal à noite. Eu aceitei. Saía da rádio pra ir almoçar em casa. Voltava cinco e pouco da tarde pra apresentar o jornal às seis. Sobravam dez minutos entre o fim do jornal da rádio e o início do jornal da televisão, a TV Verde Vale, onde eu trabalhei por dez anos. É perto da rádio a televisão. Mas aquilo começou a dar problema na minha voz. Tenho 64 anos e talvez seja a pessoa que mais falou no mundo! Professor que deu até treze aulas por dia, político – quantos discursos eu não fiz! –, radialista – imagina, fala mais que camelô! Não era nem cansaço que eu sentia. A voz é que não estava com a mesma potência. Aí, eu resolvi deixar um pouco a noite... Mas, ainda tem muita palestra e cerimonial.
horas de entrevista. Ele respondia bem às perguntas. Eu ainda estava na Rádio Tempo. Ele era muito espontâneo mesmo. Aliás, o dia dessa entrevista foi no dia do município de Barbalha, 17 de agosto de 2010, uma terça feira. Depois eu falei com ele em Barbalha, num comício na campanha de 2016. Mas era tanta gente, tanta coisa, que foi só um cumprimento mesmo. Como você relaciona o político e o professor com a sua vocação para o rádio?
Para todas elas o rádio contribuiu. Por exemplo, o rádio ajudou o professor, o rádio ajudou o político. A locução ajudou o professor, a profissão de professor ajudou a atividade política. Em tudo ajudou. São três atividades bastante sociáveis. Elas se intercomplementaram. A minha entrada na política foi em função do conhecimento que o rádio fez com que as pessoas tivessem de mim. Eu era uma pessoa popular que apresentava a Festa de Santo Antônio e já coordenava outras festas. E como a política entra na sua história? Você já
minha intenção de não ser candidato e que ajudaria quem fosse escolhido. Mas não se chegava num consenso. Decidiram, então, fazer uma votação. Quando terminou a votação que foram apurar, eu tive quarenta e um votos. Eu votei no vice prefeito da época, Dindin, meu amigo, meu compadre, padrinho da minha filha Heloísa. Eu votei nele e ele votou em mim e todos os outros votaram em mim. Aí foi aquela algazarra, aquele entusiasmo. Pronto! Eu não tive como escapar! Na segunda eleição, eu também não queria. Nosso lado teve três candidatos a prefeito. Tinha pessoa que dormia três dias candidato, depois desistia, dois dias candidato, depois desistia. Meu pai também não queria que eu fosse. Papai dizia que eu não dava pra política porque eu não sabia negar nada. No último dia, depois dos outros colegas terem desistido, eu tive que ir de novo, para o segundo mandato. Não tinha reeleição na época. Eu considero que já tinha feito um trabalho bom no meu primeiro mandato, foi muito tranquilo, foi muito produtivo, graças a Deus. A minha segunda candidatura foi devido aos resquícios desse primeiro trabalho. Foi uma campanha apaixonante.Chegavaemcasacomdois,trêsquilosde força, trinta, quarenta cartas. Tanto no primeiro quanto no segundo mandato, a gente veio para Juazeiro em passeata para o horto. Foram seis mil pessoas na primeira caminhada e dez mil na segunda. A estrada já estava duplicada, o que facilitou. Tive o dobro de votos do primeiro mandato. As pessoas sempre pedem pra eu ser candidato. Do Juazeiro vieram cinco vereadores, em 2011, num evento de empresários. Falaram que já estavam começando uma vaquinha pra eu ser candidato a prefeito de Juazeiro. Eu disse que não. Não quero mais deixar
Mas você já recebeu convites para assumir outros cargos
O Cid Gomes, quando foi eleito governador, em 2006, me convidou pra ser secretário da ouvidoria e controladoria geral do estado. Mas eu não quis. Falei para ele: “Me deixe lá no meu Caririzinho com o microfone”. E ele respondeu: “Rapaz, tu faz o jornal daqui, macho! Até deputado federal quer ser secretário e você não quer!” Prometi a ele que ia cobrar as melhorias necessárias pra região e, também, ressaltar as obras que ele fizesse,
“Tenho 64 anos e talvez seja a pessoa que mais falou no mundo! Professor que deu até treze aulas por dia, político – quantos discursos eu não fi z! –, radialista – imagina, fala mais que camelô”
dia 1º de julho. Quando foi no dia sete, a rádio recebeu uma ação da justiça impetrada pelo Eunício Oliveira. Essa ação dizia que eu estava desabonando a imagem de Eunício, perpetrando inclusive palavrões, palavras de baixo calão contra a pessoa dele. Quando eu vi o conteúdo da ação, me surpreendi porque aquilo nunca existiu. Eu não vou usar palavrão contra ninguém nem fazer birra contra ninguém. Mas aí, o oficial de justiça já trazia era a decisão da justiça. A justiça estava só comunicando que não aceitou a ação perpetrada pelo candidato. Ele recorreu ao Tribunal Regional Eleitoral em Fortaleza. Botou mais forte ainda a argumentação. Disse que eu estava difamando pessoas da família dele. De novo o tribunal recusou a ação. Não tinha provas, não existia isso! Nunca existiu. E isso repercutiu contra ele bastante aqui no Cariri.
Como é lidar com essa realidade tão instável vivida na política?
Em Barbalha, digamos que sou político, tenho um lado ainda. Eu não votei no atual prefeito, o Argemiro Sampaio, mas ele já veio no meu jornal duas vezes. Já dei notícias dele. Em Juazeiro, eu procuro manter uma distância política no rádio. No rádio, eu não tenho política, em hipótese alguma. Claro que um ou outro ouvinte mais apaixonado de um outro partido pode até se exaltar. Mas nem isso tem acontecido aqui. Não tenho tido protestos de ouvintes, graças a Deus. O pessoal sabe que tem hora que a gente elogia, tem hora que a gente critica. Eu não gosto de criticar pessoas, mas ações sim, quando é preciso. E sempre no sentido proativo. Eu nunca recebi nenhuma ameaça no rádio, a não ser esses aí, esses processos que foram rejeitados no nascedouro. Do ponto de vista político é preciso ter um certo jogo de cintura pra conciliar com um jornalismo com lisura, com imparcialidade. Até hoje não aceitei propaganda de prefeitura, de câmara. Nunca aceitei dinheiro de prefeitura pra divulgar. Divulgo tudo sem contrato, sem necessidade de elogio. Se quiser elogiar, elogie. Se quiser criticar, critique. Não tenho nenhum problema. Tem que ter um jogo de cintura pelo meio. Como você vê a influência da força política no rádio?
É ruim. A maioria das rádios brasileiras pertencem a políticos. Isso é muito ruim e me faz trabalhar com muito gosto nessa rádio porque aqui não tem isso. Aliás, tanto lá na Vale quanto na Tempo, enquanto eu estive nas duas, o editorial era sempre nosso. Nunca houve uma influência no editorial do jornal, das posições do jornal. Durante o tempo que eu fiquei nesses jornais, eles nunca me pautaram. Quando acontecia algo que poderia ser considerado errado, tanto da parte deles, Eunício Oliveira e Raimundão Macedo, ou de aliados deles, eu divulgava,
dando sempre o direito de resposta. Procurava sempre ouvir o outro lado. Muitas vezes, eram notícias de interesse público e para que aquela notícia tivesse uma resposta, era preciso divulgar o que tinha gerado a situação, o motivo pelo qual se estava divulgando aquela resposta. Nunca nenhuma notícia minha foi barrada nem na Vale nem na Tempo, sempre com esse mesmo critério. Agora mesmo, minha esposa foi vice prefeita em Barbalha e eu fiz algumas críticas à administração e o prefeito, por algum momento, se chateou. Mas, na verdade, eram coisas tão óbvias, reivindicações da população que não tinha como não falar. Mas eu procuro evitar o lado pessoal. A sua esposa não ficou com raiva não?
Não. Ela me conhece, né. Sabe que partido político nenhum me pauta aqui. Na campanha de 2014, convidei todos os candidatos a governador e todos vieram aqui. O Eunício não veio no primeiro turno. No segundo turno, a assessoria dele pediu um espaço. Era só ele e Camilo Santana. Eunício tinha ido mal aqui nas urnas no primeiro turno. Só que a votação dele não foi a contento. Tem certas coisas que eu não consigo associar, o lado político com o lado jornalístico. Mas, às vezes, tem gente que diz: “O João Hilário virou!”. Por exemplo, esses dias fiz uns dois elogios ao atual prefeito de Barbalha, Argemiro Sampaio. “Epa! Só porque é primo?!” Por que ele é meu primo e eu não fiz campanha pra ele. É filho de um primo legítimo meu. A avó dele é irmã de minha mãe. “Então, é assim! Tá elogiando o prefeito de Barbalha!” Sempre tem um ou outro lá. Mas, no fundo, sabem que esse é o nosso critério. Aqui é a minha vida. Enquanto eu tiver voz, se eu não tiver mais nenhum emprego no rádio, eu vou pra internet! Como foi essa transição, todas essas mudanças que o rádio passou com a internet, essas inovações, notícias no whatsapp? Como foi se adaptar a essas transformações?
sapp, de outra operadora, para as pessoas fazerem perguntas a ele, por áudio ou digitada. Aí começou. Vieram 74 perguntas para o governador. Eu não coloquei no modo aviãoeaítinhamuitagenteligando.Então,nãotevecomo atender as perguntas dos ouvintes. Talvez eu tenha subestimado a participação dos ouvintes pelas redes sociais. Eu sou “atrasadão” nesse ponto. Priorizei mais só o rádio mesmo. Eu fui o segundo internauta do Cariri. O primeiro provedor do Cariri tinha sido contador da prefeitura de Barbalha no meu segundo mandato. Ele me chamava “doutor João”, embora eu não seja doutor. “Doutor João, você vai ser o segundo internauta do Cariri. O primeiro sou eu porque sou dono do provedor. O senhor vai ser o segundo”. Aí me colocou a internet de 14400 bites, lá em casa, no sítio, ainda com modem. Lenta... Eu não conseguia abrir imagem lá em casa. Só abria texto. Eu também fui o primeiro jornal do rádio a usar notícias da internet, lá na Vale, em 1997.
Mas as novas tecnologias não facilitaram seu trabalho...
escolhido
Eu sou atrasadíssimo em redes sociais. Eu tenho um twitter criadopormeufilhoenuncaposteiumamensagem. Eu não tenho facebook. O antigo orkut eu não tinha. Eu não tenho instagram. Só tenho um e-mail mesmo. O meu filho, queédessaáreadetecnologia,quemeempurroupramuitas coisas. Nós já fizemos experiência aqui de transmissão pelo facebook do jornal. O whatsapp eu tenho, mas esse não consigo mais acompanhar, nem as mensagens privadas, nem os grupos. Eu sou tão atrasado que um dia o Camilo Santana veio aqui pra uma entrevista e eu criei um what-
Eu me admiro muito hoje com essas inovações. Vejo as pessoas no instagram, no facebook. A internet é uma das maiores invenções do ser humano. Ela contempla tudo: conhecimento, experiência, a comunicação interpessoal, comunicação global. Trouxe o rádio pra dentro, trouxe a televisão pra dentro, os jornais pra dentro. Aí depois veio o celular, o smartphone... Eu vi tudo isso. Quando eu comecei no rádio era só microfone e disco. Nem gravador cassete tinha. Na difusora lá do cinema, eu já dava notícias. E eu sempre gostei de copiar as notícias. Eu ouvia, memorizava ali e copiava o bojo, o centro da informação. Isso me fez ter uma certa prática... Por que é que eu não tenho facebook? Por que eu não uso o twitter? É um atraso de minha parte, mas é por uma razão simples: eu não sei deixar de responder. Estou “doentim” porque não estou conseguindo acompanhar as respostas, as perguntas, os comprimentos das pessoas que me procuram no whatsapp. Eu acho uma desfeita. O medo que faz é o pessoal achar ruim, o pessoal começar a achar que eu sou grosseiro. Essa é a coisa que eu menos quero. Por isso eu não tenho essas redes sociais. Pode ser uma falha terrível, um atraso de minha parte, mas cada um vai vivendo como consegue. Eu gosto muito de tecnologia. Mas, meu pai, por exemplo, quando chegou o rádio FM, ele, acostumado de tantos anos ouvindo
O Adauto Bezerra veio falar comigo e disse que o pessoal estava comentando sobre o meu nome. Eu reafirmei minha intenção de não ser candidato e que ajudaria quem fosse
rádio AM, estranhou. Por que o FM tem mais fidelidade, tem o agudo. Depois ele se adaptou. Eu admiro todas essas mídias. Acho que a internet possibilita todas as formas possíveis de comunicação, falada, ouvida, lida, vista. A comunicação é ontem, hoje e sempre a ferramenta mais importante que o ser humano tem. Dela tudo nasce, tudo prospera, tudo vai, tudo persevera. Tudo se cria através da comunicação.
E o que o Cariri representa na sua história?
A minha vida inteira foi Crato, Juazeiro, Barbalha. Passei uns quarenta anos todo dia rodando as três cidades. Sou um cosmopolita da região! Nunca deixei de morar em Barbalha. Trabalhei em Juazeiro e Crato. Eu sou louco por essa região! Quando foi criado o “Jornal do Cariri”, em 1997, como era bem pertinho da faculdade, eu corria pra lá. A primeira editora era Maria do Socorro Ribeiro e ela me pedia opinião sobre as manchetes. Eu escrevia artigos para o “Jornal do Cariri”. No dia 03 de novembro de 1997, foi publicado um artigo meu: “O Cariri do futuro”. Eu dizia o que é que ia acontecer no Cariri nos próximos vinte anos. Eu só errei uma coisa, quando eu disse que o Cariri ia exportar rapadura pra China. Quando eu era prefeito, eu doei um terreno para uma empresa de Goiás, pra instalar uma fábrica de remanufaturamento da rapadura, pra fazer tabletes de 20 gramas e exportar pra China. Os empresários foram numa comitiva do presidente Fernando Henrique Cardoso, na época, pra China. Construíram a fábrica em Barbalha, mas ela não funcionou. Eles tiveram algum problema. Tiveram que voltar pra Goiás e deixaram a fábrica sem funcionar. Foi uma frustração grande pra mim. Até hoje está lá o prédio. Eu torcia muito naquela época pra que fosse rapadura de Barbalha pra China, rapadura do Cariri pra China. A China era um mercado alimentar bom. É curioso. Sei lá! Quando eu vejo alguém de fora que nega as origens, fico doente. E não quero sair nunca daqui. Eu sinto que essa região tem algo diferente, magnético. Até brinco no jornal quando as pessoas vem de fora: “Ah, você já bebeu a água daqui? Cuidado que você vai voltar e quem sabe até ficar!”. E de fato é, pois nessa região eu ainda vejo um potencial maior do que o que está. Um turismo diferente, um turismo diverso, um turismo ambiental, um turismo científico, um turismo comercial, artístico. Aqui é uma riqueza! Não existe ainda turismo no
Cariri. Os operadores do turismo não trabalham isso, os governos ainda não fizeram disso um propósito. É preciso uma cadeia turística grande pra contemplar a região.
Durante esse tempo que você se manteve afastado do rádio, por conta de estudos, da política, como foi que o rádio esteve presente na sua vida?
Eu sou atrasadíssimo em redes sociais. Eu tenho um twitter criado por meu filho e nunca postei uma mensagem. Eu não tenho facebook. O antigo orkut eu não tinha. Eu não tenho instagram. Só tenho um email mesmo
Nos sonhos. Eu sonhava com o rádio. No contato com as pessoas no dia a dia, sempre me perguntavam quando eu ia voltar pro rádio. “Eu voltarei, com certeza!” Foi minha primeira profissão. Sou professor desde os dezesseis anos, mas sou locutor desde os doze. Era amador, mas já fazendo experiência da vida profissional. Era uma tentação sempre, a todo momento. Eu sentia muitas saudades. Ouvia muito rádio, rádio daqui, rádio de fora. A Rádio BBC de Londres eu escutava muito. Escuto hoje de vez em quando. E era uma eterna saudade, uma coisa que fazia parte dos meus sonhos. Até que eu voltei. Quando eu voltei... “Agora é definitivo!”
Dona Dôra Dona dôra A voz dos orixás
Texto
Nascida médium, Dona Dôra, 69 anos, encontrou seu lugar, sua missão, sua paz e sua saúde na umbanda. Quando o dom começou a se manifestar na vida adulta, sob a forma de fortes dores de cabeça, era uma época em que as casas de saúde mental – manicômios ou “hospital de doido” como a fala coletiva se habituou a chamar – eram o espaço de destino para qualquer mal neurológico que a medicina não via como tratar. O sofrimento ensinou que é sempre melhor cuidar a se entregar a ignorância. É um aprendizado simples, mas que só faz sentido a quem se entregou a viver. Ela saiu da experiência traumática recuperada e, acima de tudo, fortalecida e com uma identidade de vida que leva adiante ajudando quem a procura sob a forma de sua religião que é sua maneira de ler o mundo e contar sua história.
Qual seu nome completo, dona Dôra? É Maria Avelina de Sousa, só que todo mundo só me conhece por Dôra. Esse é um apelido de infância?
Não, sei não, nunca me disseram. Só sei que botaram o nome Maria Avelina de Sousa e apelido Dôra. Até muita gente pensa, pensava que era Maria das Dores, não é.
Como foi a sua infância?
Não, eu só lembro que era muito inteligente, só que hoje eu num sei mais de nada. Se eu visse uma pessoa fazendo crochê, quando eu chegava em casa pegava um pedaço de arame e ia fazer crochê. Aprendi a fazer crochê. Do mesmo jeito, foi com bordado em máquina. A gente morava em Assaré. Eu me lembro de muita coisa de quando eu era pequena, mas, hoje em dia, num lembro de nada. Se eu visse uma pessoa costurando, eu aprendia. Um dia fui deixar umas costuras na casa de uma senhora que já é finada.
Cheguei lá vi a mulher costurando, prestei atenção em como ela costurava. Aí ficava sentada, pequeninha, mais mamãe, olhando. Quando eu chegava em casa, eu pegava uma tesoura e um pedaço de pano de uma roupa de boneca pra costurar na mão. Assim, eu aprendi a costurar, bordar, aprendi fazer crochê. Só que hoje em dia eu num sei pra onde vai mais nada. Até a máquina eu vendi porque não tenho mais paciência de fazer nada. Muita coisa da minha infância, naquela época, era muito difícil. Algumas coisas, né. No meu tempo era tudo diferente de agora. E eu me criei foi nos mato, no sertão, trabalhando de roça. Mas, graças a Deus, estou aqui satisfeita, apesar de ter um bocado de doença, de problema, diabetes, pressão alta. Ontem minha pressão baixou que eu quase fui pro hospital. Baixou mesmo. Já faz anos que eu tomo remédio pra pressão. E nesse tempo a pressão baixou duas vezes.
A senhora sempre foi umbandista?
Não. Eu entrei nessa religião por que eu não sabia que era médium. Eu sentia muita dor de cabeça. Eu pensava que ia morrer de derrame. Eu só vivia nos hospitais. Às vezes, o doutor dava alta no sábado e na segunda eu voltava de novo, gritando de dor. Parecia que minha cabeça era toda cheia de sangue. Eu assoava o nariz, saía aquelas toras de sangue coalhado. Me levaram pra Nova Olinda, pra um bocado de canto. Tinha uma mulher de muito saber em Nova Olinda que me
desenganou. Disse que só tinha jeito pra mim em Recife ou em Fortaleza. Voltaram comigo e botaram no Santa Tereza (hospital psiquiátrico). Pensaram que eu estava doida. Fui pra lá duas vezes. Tomei tanto remédio lá, que quando eu vim pra casa foi babando. Os remédios eram muito fortes.
Como foi essa época?
Veio uma irmã minha do Piauí, que eu nem sabia que estava lá. Fazia muitos anos que ela tinha ido embora. Ela morreu ano passado, era a mais velha. Ligaram pra ela, que viajou de lá pra cá para não deixarem me internar. Mas quando ela chegou aqui já tinham me internado no Santa Tereza, já estava sem jeito. Passei quase um mês internada. Uma mulher começou a rezar em mim e eu melhorei. Passei um ano bem. Até que voltou tudo de novo, as mesmas coisas. Tornaram a me internar no Santa Tereza. Dessa vez eu passei quase dois meses. Com um mês internada, o médico liberou para meus irmãos irem me buscar nos fins de semana. Passava o sábado e o domingo em casa e nas segundas voltava pro Santa Tereza. Depois desses dois, o doutor ligou para meu padrinho de batismo, padrinho Valtim. O doutor mandou me tirar do hospital e procurar um centro espírita. Passei dois meses lá, tomando os remédios e, cada vez, eu piorava mais. Quando eu tomava os remédios minha cabeça ficava assim “friviando”. Parecia quando a gente pisa num formigueiro. Fulminando no pé da gente. Pois minha cabeça ficava daquele jeito.
dia. Mas nesse dia elas pelejaram tanto, disseram que iam me esperar. Mandaram tomar banho e trocar de roupa, vestir uma roupa branca. Ficaram debaixo de um pé de cajarana me esperando. Resolvi ir com elas e achei bom lá, né. O centro da Sagrada Família era bem afamado nesse tempo. Custei a voltar ao normal porque eu sofri muito, né. Mas, graças a Deus, estou aqui contando a história. Eu acho que se não tivesse procurado ajuda eu tinha morrido. Fui duas vezes pro Santa Tereza. Se tivesse ido pela terceira vez não tinha mais resistido, porque o remédio era forte, forte que só quem sabe é quem tomou. Se eu soubesse que era médium não teria passado o que passei. Eu fiz foi sofrer. A pessoa ir pro hospital dos doidos, levar tapa na cara que nem eu levei... Como meu povo não sabia de nada, ninguém sabia de nada, me botaram no Santa Tereza. Se não tivessem ligado para o meu padrinho, eu teria morrido porque continuaram me internando lá.
Em qual terreiro a senhora começou na Umbanda?
A gente vai pra missa. Os padres não estão ligando mais. Os primeiros padres não gostavam. Mas agora está liberado. Os padres não falam mais contra a Umbanda. De início, falavam
Mas a senhora ainda estava tomando os remédios?
Eu pedi pra não tomar mais. Se tivesse continuado a tomar eu tinha morrido mesmo. Eu não estava me dando com os remédios. Ficava era pior quando tomava. Estava tratando uma coisa que não existia. Mas ainda tinha gente que queria que eu tomasse. É do mesmo jeito quando você come uma comida que lhe ofende. Você não quer comer mais. Era do mesmo jeito com o remédio que estava me fazendo mal. Teve um tempo que trocaram o remédio. Era só um vidrinho por mês. Foi nessa época que a senhora foi pro centro espírita?
Sim. Chegaram umas colegas minhas me incentivando a ir no centro lá na Sagrada Família. Eu nem sabia nem conhecia nada. Ficava dizendo que ia outro
Comecei no terreiro do pai de santo que me desenvolveu, Pai Beto. A primeira vez que recebi os orixás foi na exposição (do Crato).
Eu estava com uma barraca lá. A corrente atacou lá e foi Pai Beto que consertou. Ele é o meu pai de santo.
Foi com ele que eu acabei de ficar boa, graças a Deus. Daí por diante eu pratico. As minhas amigas vem de Juazeiro e Barbalha. Não cabe aqui dentro, aí eu trabalho lá fora. Aqui fica pequeno quando vem muita gente. A Umbanda é assim, pra quem entende e sabe das coisas. Umbandista tem que ser tudo unido. Mas um bocado de gente de terreiro por aí não quer essa união. Acha que tem que ser mais sabido que outro.
Faz quanto tempo que a senhora desenvolveu sua mediunidade?
Faz anos, eu não tenho na memória de quantos anos fazem, mas está na faixa de uns trinta anos. Para todo mundo que chega aqui com um problema eu conto minha situação. Eu já passei por muita coisa, muitos momentos difíceis, já sofri demais. Agora a pessoa escolhe se quer se cuidar ou se quer sofrer como eu sofri. A pessoa que é médium de verdade, quando chega o tempo determinado, se a pessoa não se cuidar, a pessoa sofre até morrer. Se a gente não se cuidar, entra coisa negativa e aí pode se jogar em qualquer abismo, se enforcar. Quem é médium de verdade e não se cuida o resultado é esse aí.
nha neta que é filha de uma dessas crianças que me entregaram para criar. Ela é evangélica. Ela não diz nada. Ela até já se batizou, mas não diz nada. Entra, sai, vai para a igreja e não diz nada. Todos eles respeitam, graças a Deus. Nenhum é contra, né. Quem da sua família já veio lhe procurar pedindo ajuda?
Tem um sobrinho meu que frequenta. Ele é oficial de justiça e sofreu muito. A mãe dele veio aqui chorando numa sexta feira. Ela estava vendo a hora do rapaz perder o juízo. Passava o dia todo dentro do sítio estudando dentro duma rede. Eu pedi a ela para mandar o rapaz vir aqui no outro dia de manhã. Eu peguei o nome dele completo e a data de nascimento porque de noite eu ia rezar e ver se os orixás me mostravam alguma coisa. Ele já tinha sido casado duas vezes. Na primeira, ele ficou um mês e se desquitou da mulher. A gente só vê as coisas se rezar e deitar quieto. Quando a gente agarra no sono, a gente vê. Eu me deitei e vi duas mulheres fazendo trabalho para ele. Nesse trabalho tinha era coisa. Eu me acordei doida. Quando a gente
conversou, ele me perguntou se tinha como desmanchar um trabalho feito. E tem como desmanchar?
Se for feito na linha de Exu, tem gente que não desmancha não. Aí mandam para outro. Nesse tempo, tinha Dona Celina, uma mãe de santo bem afamada. Também mandavam para Pai Beto lá na Sagrada Família. Só que depois que eu fui lá, eu nunca vi. Mas era a história que eu sabia que o povo dizia, né.
Por que seu sobrinho queria saber isso?
Por que ele tinha ido num rezador que mandou ele procurar uma pessoa que tivesse terreiro pra desmanchar um trabalho que tinham feito nele. Eu contei que tinha visto duas mulheres que eu não conhecia e o trabalho que elas tinham feito. Era uma mesa de Exu, com um pano e as coisas que o povo bota para as ofertas aos exus. Eu vi o trabalho bem direitinho e vi tudo que tinha no trabalho. Ele foi num terreiro em que o povo reza pelos livros. Esse era muito sabido e tudo que ele faz é pelos livros. Ele não recebia orixá não. Uma pessoa boa ele. No outro dia, meu sobrinho veio para a gente ir nesse terreiro. Quando chegamos lá, o orixá descobriu as coisa todas que tinha no trabalho, tudo o que já tinha visto antes. As coisas que tinham no trabalho, ele pediu de volta para poder desmanchar. Aí pronto! O menino ficou bom. Tinha feito um concurso que nem tinha mais esperança de ser chamado nem estava lembrado. Com poucos dias foi chamado para ser oficial de justiça.
A senhora falou que é católica. Como é lidar com as duas religiões? A senhora nunca ouviu nada preconceituoso na igreja?
A gente vai pra missa. Os padres não estão ligando mais. Os primeiros padres não gostavam. Mas agora está liberado. Os padres não falam mais contra a Umbanda. De início, falavam. Tinha padre que dizia era coisa com o povo que trabalha na Umbanda, mas agora... Nunca ouvi nada preconceituoso na igreja, não vou mentir. E não sou apenas eu que vou na igreja. Tem muita gente Umbanda que vai para a missa.
A senhora é devota de algum santo da igreja católica?
Nossa Senhora de Fátima é minha advogada. Eu já contei para todos os filhos de santo e pra muita gente que vem aqui um exemplo da minha vida. Quando eu senti um inchaço no peito. Senti inchado e doendo, só me queixando. Começaram a me fazer medo, que essas coisas no seio são muito perigosas. Mandaram eu ir me receitar. Mas eu já tinha mandado uma mulher rezar. Aí disseram: “Que negócio de reza!”. No horário de meio
Dona Dôra: “Eu nunca fiz um trabalho para fazer mal a ninguém. Deus me defenda!”
dia, passei pelo Hospital Manoel de Abreu. Cheguei lá e perguntei se tinha médico. A atendente quis saber qual era o meu problema. Eu mostrei a ela. Quando o médico veio já foi com aquelas doidices dele. Disse que tinha que arrancar o peito. Eu comecei a chorar. Eu pedia pelo amor de Deus pra ele não fazer aquilo. E ele disse que não tinha jeito.
Ele queria operar sem fazer nenhum outro exame?
Ele mandou fazer o teste. Mas ele queria arrancar o peito. Esse dia era uma sexta feira. Ele me mandou pra casa, combinar com minha mãe e minha família, para eu voltar na segunda feira para operar. Voltei do hospital chorando. Cheguei em casa, mandei chamar mamãe, mandei chamar meu irmão e contei a história. E choramos. Na segunda eu fui para o Manoel de Abreu. Passei três dias internada para o doutor tirar esse peito. Sempre acontecia uma coisa para não dar certo. Não
dava certo a anestesia, minha filha que queria me levar para Fortaleza, o pessoal que me conhecia não queria deixar o médico operar. E ele só dizendo que eu tinha que tirar o peito, que não ia perder o trabalho dele. Foi quando eu me peguei com Nossa Senhora de Fátima. Pedi a ela que se fosse para correr risco que não acontecesse a cirurgia. É por isso que visto branco no mês de maio, por causa da promessa que fiz com ela. Ela é minha advogada, Nossa Senhora de Fátima. Foi ela que me salvou.
E o que aconteceu?
A cirurgia era para ter acontecido na segunda, depois passou para terça, da terça para quarta. Às quatro horas da manhã da quarta, chegou uma mulher toda de branco, com as mãos postas e dois menininhos, um de cada lado. Era Nossa Senhora de Fátima, do mesmo jeito dela nos quadros. Ela não falou nada. Os menininhos disseram que tinham vindo me buscar. “Viemos tirar você daqui porque quando o doutor te cortar, você vai morrer”. Eita! Eu pulei da cama pro chão, corri pro banheiro. Cadê eu dormir mais? Tomei um banho e fiquei chorando, chorando. Não disse nada para as pessoas que estavam comigo, me acompanhando. Às onze horas o povo saiu para almoçar. Eu fiquei sentada pensando: “Ai, meu Deus! Está já chegando a minha hora de morrer”. Então, veio a enfermeira me perguntando pelo meu marido. Ele estava pra lá de Farias Brito. O doutor tinha dito que só faria a operação quando ele chegasse. Me mandaram ir para casa e só voltar com ele. Tinha um termo de responsabilidade para assinar.
Cadê que eu quis almoçar?
A enfermeira queria que eu comesse antes de ir. Mas eu não quis. Só troquei de roupa. Queria era ir embora.
muita vitória também que a gente recebe. Tem que ter a fé. Se tiver fé, a gente vence mesmo. Eu venci muita coisa.
Há quantos anos a senhora é da Umbanda?
Eu não lembro o ano que eu desenvolvi, mas acho que já tem uns trinta anos.
E há quantos anos a senhora é mãe de terreiro?
Já está com uns vinte anos. Depois de uns dez anos que eu desenvolvi foi que eu me tornei mãe de terreiro. Como foi essa mudança?
As pessoas vinham aqui para eu rezar nelas. Uma noite, chegou uma mulher aqui perturbada. Era bem umas sete horas da noite. Antes ela teve que tomar um banho. Quando ela entrou estava irradiada com o orixá dela. Corri para chamar Pai Beto. Foi quando eu pedi a ele para atender o povo e ele liberou. Já desenvolvi um monte de gente. Um bocado de gente trabalha, outros estão desenvolvendo a mediunidade. Alguns até já me ajudam muito, muito mesmo. E eu agradeço a Deus, primeiramente, e segundo aos orixás. Por que se não fosse eles, eu não estaria viva aqui, contando as histórias. Apesar de que o povo não acredita, zomba muito. Cada um usa sua consciência do jeito que quer.
Para Xangô já é feito um prato de rabada de gado. As oferendas dos pretos velhos são muitos tipos de coisas: é mungunzá, é feijão preto, é canjica, é pamonha. A festa de Iemanjá é feita com bolo e refrigerante. As pombas giras, às vezes, a gente oferta a carne torrada
A senhora mandou chamar seu marido?
Quando eu cheguei em casa, contei tudo para minha mãe. Depois, desabei lá para Pai Beto (pai de santo). E ele achou foi graça do que eu contei. Ele disse que tinha rezado pra mim e que sabia que a cirurgia não ia acontecer. Contei a história da mulher de branco que chegou no hospital com os dois menininhos. Fiz a promessa, me peguei com ela. Passei um horror de perigo e ela me tirou dele. Até morrer eu vou me vestir de branco no mês de maio todinho. Tem muita coisa pela qual a gente passa, né, tem esses problemas. Mas tem
Então, ainda tem muito preconceito? Ainda tem quem chame de macumba?
Só chama de macumbeiro. Mas a pessoa que trabalha para fazer o bem, trabalha só com essa linha branca, não faz macumba. Macumba quem faz são aqueles que vão para as encruzilhadas, com vela de todo jeito. Nem com vela de cor eu trabalho. Só com vela vermelha porque é para São Jorge, amarela que é para Xangô, a verde para Oxóssi, azul para Iemanjá e Cosme e Damião. Mas vela preta, Deus me livre! Quem tiver suas velinhas pretas para eu acender, não traga, não. Não trabalho com vela preta. Mas, por aí, a maioria trabalha. Aí o povo chama todo mundo de macumbeiro, mas nem todo mundo é macumbeiro. Quem trabalha certo na Umbanda não é macumbeiro. É umbandista. É da Umbanda. O povo não entende e leva de todo jeito por aí.
E a senhora, como praticante da Umbanda, já sofreu algum preconceito?
Não, até agora não. Quando eu comecei, fiquei sabendo de uma história, mas eu não sei se é verdade. O
Quais as obrigações da senhora como dirigente?
Aceitar e ajudar. Tratar o povo bem, que é isso o que todo dono de terreiro tem que fazer. Receber todo mundo, menos drogado, bêbado, e armado. Essas pessoas não podem entrar no terreiro. E quando chega alguém assim, a gente tem que falar bem direitinho. Pedir desculpa por ele não poder entrar, explicar o motivo. Não pode espantar o povo com ignorância, né. Onde tem bebida, sempre atrai o que não presta. Tem muito bêbado que, além disso é drogado. Só atrai coisa ruim. Aquilo ali para entrar dentro de um terreiro, com um monte de gente, a qualquer momento pode encostar uma coisa ruim, aí dá trabalho. É um caso sério uma pessoa assim para quem é médium mesmo.
Tem alguma limpeza que se faz no terreiro antes de começar um trabalho?
Tem. A gente começa lá da porta. Faz uma ronda lá. Leva o esfumador daqui até lá fora, para limpar a casa, o terreiro e o que estiver pesado. Para a limpeza, mistura o fumo com alfazema, alecrim, com erva doce. Os banhos são de sete ervas. Também tem de nove, catorze, até vinte e uma ervas. Cada erva serve para uma coisa, até para preparar para os médiuns. A gente bota pra secar as sete ervas. É ainda melhor. Bota para secar e pisa bem pisadinho e esfuma antes de começar o trabalho.
A senhora reza com que planta?
Com folha de pinhão roxo. Mas não tem um pé de pinhão aqui porque, quando eu planto e começam a nascer as folhas, vou tirando, vou tirando. Quando vem uma pessoa para rezar, eu tenho que ir procurar pinhão em outro canto, por aí, pelas casas aí pra cima. Eu corto logo um galho. Tem dia que não vem uma pessoa só não. Coloco dentro d’água. Se chegar duas, três pessoas para rezar, já tem um galho dentro da água. eu boto água numa vasilha e boto aí em cima pra ir rezando. Já chegou alguém pedindo para trazer amor de volta?
Muita gente que chega aqui atrás. Só que os orixás só ajudam aqueles que são casados, que não querem nem a mulher nem o marido alheio. Podem pedir o tanto que quiserem, que os orixás não ajudam não. É um crime também a pessoa querer o que não é seu. Eu acho que a gente só tem que querer o que é da gente, o que for para a gente. Querer
separar um casal é errado também. E quem fizer esses tipos de trabalho é muito errado também.
Quais oferendas são feitas aos orixás e os santos?
Oxóssi, que é São Sebastiao, são frutas. São ofertadas frutas doces. Iansã, também frutas. Para Xangô já é feito um prato de rabada de gado. As oferendas dos pretos velhos são muitos tipos de coisas: é mungunzá, é feijão preto, é canjica, é pamonha. A festa de Iemanjá é feita com bolo e refrigerante. As pombas giras, às vezes, a gente oferta a carne torrada. Muita gente por aí, muito terreiro, corta bode, corta galinha. Eu mesma nunca fiz assim. Faço uma carne torrada no azeite de dendê, tem a farofa da carne com azeite de oliva, tem a outra farofa que é com vinho, com cerveja, com mel. As minhas ofertas são assim. Mas por aí, a maioria do povo, é cortando bicho. Eu não corto não.
Como a senhora mantem as velas? Alguém doa?
A maioria eu que compro. Às vezes, chega gente que traz. Um dia desses mesmo veio uma mulher para eu rezar e trouxe uma caixa de vela de sete dias. Ainda tem ali. Ela perguntou quais as cores que eu usava. A de São Sebastião é vermelha. A de Ogum também, mais a branca. Iemanjá e Cosme e Damião é rosa. Aí ela trouxe sortida. Branca, rosa, azul, verde e vermelho. É bom quando uma pessoa tem consciência de perguntar. Décio, meu sobrinho, gosta de trazer também. Ele compra a caixa e traz. Traz da caixa de vela número oito. Não pode faltar vela para os orixás. Eles não podem ficar no escuro. As outras podem apagar e ficar apagada. Agora as velas deles tem que ficar direto. Não é só pra mim não. É para mim, é para os filhos de santo e pra todo mundo que vier pedir ajuda. Por isso não pode faltar.
Qual o orixá da senhora?
dium, a gente reza e pronto. Se for médium a gente tem obrigação de explicar bem direitinho o que isso significa e os cuidados que tem que ter.
A senhora acha que precisa de uma religião para crer em algo?
Eu acho que tem que crer em Deus. Se a gente crê que existe Deus é o suficiente para gente enfrentar o que for. Por que sem Deus, nós não somos ninguém. E é tão provado que Deus existe, que quando os orixás vem, eles só vem louvando a Deus. Então, os orixás também não fazem o mal.
O que é fé para a senhora?
Fé é a pessoa acreditar numa coisa. É ter aquela fé pura de que vai vencer aquela coisa e vencer. Para mim é isso. A gente tem aquela fé e pedir a um santo e pedir de coração. Do mesmo jeito que eu pedi a Nossa Senhora de Fátima que, se fosse um perigo, ela me tirasse e me ela me tirou. Eu acho assim no meu pensamento.
Muita gente que chega aqui atrás. Só que os orixás só ajudam aqueles que são casados, que não querem nem a mulher nem o marido alheio. Podem pedir o tanto que quiserem, que os orixás não ajudam não
Qual o seu maior aprendizado na vida?
Eu acho que é cuidar dos meus orixás bem direitinho. Cada dia em que estou cuidando deles, eu aprendo mais coisas. Eu vejo mais resultado para mim quando vou ajudar os outros. Eu penso assim.
Xangô, o dono da justiça. Xangô representa São Pedro. Cada orixá é representado por um santo.
O que é a Umbanda representa para a senhora?
A Umbanda verdadeira, que eu conheço, é essa da união. Cada terreiro tem que ser unido com os outros terreiros. Sem união ninguém faz nada. A Umbanda significa isso. Se a pessoa passa por muito problema e procura a Umbanda é para se encontrar. Qualquer um que precisar de um pai ou mãe de santo e procurar vai saber o que está acontecendo. A gente vai ver o que tem na corrente daquela pessoa. Se a pessoa não for mé-
Bar Xá de Flor
com garrafa e sem rótulos
Meados dos anos 80, fim da Ditadura Militar. O Brasil vivia dolorosos resquícios de um de seus mais horrendos momentos políticos. Vitória após duros 20 anos de combates contra um sistema, mas pouco se comemorou especialmente as classes mais lesadas por tal forma de governo, os que não se cansaram de reivindicar a volta de uma doutrina popular. Isto porque muitos de seus companheiros de luta haviam sido mortos, e de outros não se tinham pistas de seus paradeiros. Mas nem mesmo a tortura, a violência, nem o medo acuou os que lutaram contra. O sentimento que assolava o Pós-Ditadura era paradoxal: receio e vontade, destruição e arte. Na contramão do silenciamento, a arte foi e é estabelecida como uma válvula de escape para o cerceamento das liberdades individuais. Ainda que de forma amena, comparada as grandes capitais do país, os interiores também sentiram a atroz mão condutora de tal regime e em consequência, as peculiaridades artísticas que se desenvolveram da necessidade de se falar de outa maneira, da que burlasse a censura. No Cariri não foi diferente. Acontecimentos como os Festivais da Canção e o Salão de Outubro, deram cara a contracultura que inspirou gerações futuras, Xá de Flor é um exemplo disso. O movimento que nasce de uma pesquisa elaborada por Blandino Lobo com ervas para desenvolver uma espécie de aguardente temperada, chamada de Xá de Flor, deu origem a todo um movimento cultural que enriqueceu cidades como Crato, Juazeiro, Barbalha e até a capital Fortaleza. Além da cachaça o movimento deu origem a uma banda e a um bar de mesmo nome. Ao contrário do bar que só fechou as portas nos anos 90, a banda não teve vida longa, esteve em atividade por aproximadamente três anos, mas foi tempo suficiente para conquistar o público e os mais experientes do meio. O grupo teve a oportunidade de dividir palco com a lenda da música nordestina Luiz Gonzaga e abrir o show de lançamento, em Fortaleza, do lendário álbum “Massafeira” tendo como intérpretes nomes como Belchior e Ednardo. Confira os detalhes desse marco para a cultura caririense pelos olhos dos seus protagonistas: Blandino Lobo e João do Crato, e do cantor e compositor Abidoral Jamacaru, narrador-personagem das duas épocas.
O que é Xá de Flor?
Bladino Lobo - O xá finda que foi um movimento cultural além da cachaça, acontecido em uma época muito fechada. Era um espaço de cultura onde as pessoas se encontravam, os artistas se encontravam para fazer arte.
Quando surgiu e quanto tempo durou todo o movimento?
Bladino Lobo - Em datas sou terrível. (risos) Mas só de Exposição foram 16 anos de barraca. Eu fiz 12 anos de barraca na Barbalha, na festa de Santo Antônio, é questão de final de anos 70, anos 80.
Uma ressaca da ditadura...
Bladino Lobo - É, embora ela tem sido bem antes ficou a sua ressaca que foi justamente a repressão. Naquela época você ser cabeludo era terrível, ser abordado sem documento numa capital como Fortaleza, era certeza de “castigo”.
Como se manifestava essa ressaca no Cariri? O senhor sofreu algum tipo de opressão em Crato?
Bladino Lobo - Uma vez eu fui preso. Subimos a serra e quando voltamos nos prenderam em um posto fiscal, do nada. Porque era repressão, eram tempos de repressão. Era aquela questão de prender para no outro dia soltar, só para gerar um constrangimento, por ser cabeludo, por achar isso ou aquilo. O delegado quando conversou comigo no dia seguinte perguntou o que eu fazia e eu disse que fazia um trabalho com ervas medicinais e que temperava uma cachaça e vendia. Ai ele olhou pra mim e disse: “Você sabe que curandeirismo da cadeia?” Eu respondi: “Bom, eu não sei se curandeirismo da cadeia eu só sei dizer que não tenho parte com curandeirismo, eu não estou curando as pessoas, estou levando alegria. Ai foi paga umas fianças lá e saímos. Como nasce toda essa história?
bladino lobo
Bladino Lobo - A história nasce de Crato à Fortaleza. Porque, na realidade, Chá de Flor foi também uma banda de rock composta por João do Crato, Batista Sena (in memoriam), o Mocó, o Bebeto Porto que é um grande flautista transversa, tinha o Ronald Carvalho, enfim... nesta época eu já estava nos bastidores, ajudando o pessoal... Aí começamos a fazer uma pesquisa em cima das ervas medicinais aqui no Cariri, o Crato sempre teve nas bodegas uma cachaça temperada, ai além da pesquisa das ervas comecei a fazer um trabalho de experiência com ervas em cachaça, além das que eu sabia que colocavam nas bodegas da região. Fiz vários experimentos com as ervas.
Por exemplo...
Bladino Lobo - Por exemplo: um anis estrelado não era uma erva que comumente a gente pegava em uma bodega, se tomava mais uma catuaba, mais essas coisas típicas daqui, mas essas ervas de fora: canela, cravo, anis estrelado, isso já foi mesmo uma criação para a Xá de Flor. A gente começou a dosar, botar em maceração essa questão.
Foi assim até se chegar a uma fórmula exata?
Bladino Lobo - Sabe que as pessoas até costumam querer a fórmula da cachaça, mas nunca se teve uma fórmula porque a fórmula era o acreditar. Cada produção era feita de uma maneira, a receita nem eu mesmo sei, ainda hoje eu sei fazer o Xá de Flor. A Xá tinha vários sabores: anis, cravo, canela, catuaba...
Qual era a mais vendida?
Bladino Lobo - Era uma mistura de frutas com as ervas, composta de vários sucos de fruta, concentrados com essências, aguardente e mel de abelha, era uma caipirinha, uma batida...
E por que o acreditar?
Bladino Lobo - Porque os ritos para preparar as receitas era uma coisa muito espiritualizada. Não saía um Xá de Flor sem eu estar pronto para fazer. Para começar você tem que lavar todas as garrafas, depois passar aguardente em todas para elas ficarem batizadas. Os utensílios todos são muito bem lavados e depois todos lavados com cachaça, feito uma assepsia, para poder entrar no ritual de mexer com as essências. As essências de ervas com menos de um ano não servem, o fruto não, eu posso fazer uma caipirinha de limão rapidinho, mas a Xá de Flor que leva erva tem que tá maturada. Deixava um ano na ceração, tinha um trabalho de amadurecimento. Não dá pra fazer com a cachaça ypioca, tem que ser cachaça de cabeça, aguardente mesmo, braba, do engenho, essas cachaças industrializadas todas têm um teor de água para ficar mais mansa. O senhor quem fazia a cachaça?
Fazíamos juntos e tinham vários degustadores - para dizer se ainda não estava boa, para sugerir botar isso ou aquilo - mas no momento final sempre era eu quem batia o martelo, quem percebia se estava faltando alguma coisa na receita.
E voltando ao nascimento da Xá de Flor... Bladino Lobo - Essa coisa toda começou desde a época da Massafeira, já se levava essas bebidas pra lá e depois teve a época da central de artesanato da Luiza Tavora, onde tinha um palácio na Santos Dumont (Fortaleza), posteriormente demolido e lá a gente montou um box onde várias pessoas colocavam produtos, além da cachaça tinham roupas, figurinos, adereços, peças de artesanato. O Batista Sena além de músico era artesão. Depois dessa central eu vim embora para o Crato, tanto eu como o João, a gente voltou, a gente estudava em Fortaleza, trabalhamos e depois voltamos pra cá. Quando se tornou um bar, Xá de Flor acontecia em uma casa onde rolava uma boa música, uma boa bebida e uma boa comida, e um encontro de pessoas para conversar, para dançar. Era toma lá da cá: você chegava, comprava sua ficha, pedia sua Xá de Flor, pedia seus petiscos e dançava. Tinham pouquíssimas mesas, tinham meia dúzia de mesas, só uns apoios, mas eram uns balcões, uma coisa bem eclética mesmo.
O senhor montou o bar depois que voltou de Fortaleza?
Bladino Lobo - O bar teve várias fases. O primeiro foi no Lagoinha, ali para o lado da Ponta da Serra onde tem um lixão em cima, aquele terreno do lixão era pra ser uma universidade que vinha do Canadá, ai meu pai vai e monta um negócio lá pra gente. Lagoinha foi o primeiro bar, mas a Xá de Flor já existia como cachaça. Mas na lagoinha acabamos por incomodar papai, aqueles problemas de bar com bebedeira... e ele resolveu que estava na hora de fechar.
E o bar Xá de Flor vai se inaugurar onde?
Bladino Lobo - O laboratório da Xá de Flor funcionava à Rua Ana Triste, foi transferido para a casa onde se firmou o bar. Atualmente onde fica localizada a Xoperia do Crato, era um casarão, minha mãe construiu 6 casas e uma delas quando esvaziou fui foi morar lá e passei um ano limpando os fundos da casa para depois montar uma horta para plantar as ervas.
O bar era montado em qual cômodo desta casa?
Bladino Lobo - Nas duas primeiras salas dessa casa acontecia o bar, onde aconteceu os grandes eventos do Xá de Flor, como os 10 anos de lá.
Como a década foi comemorada?
Bladino Lobo - Nos 10 anos do Xá de Flor foram 3 dias de festa com um dia das artes cênicas, outro dia só com o pessoal da música popular brasileira.
E como eram articuladas as programações em datas não festivas?
Bladino Lobo - Na programação do Xá de Flor nós tínhamos um forró por ano, buscávamos o pessoal lá do pé da Serra, um forro pé de serra mesmo, zabumba, triângulo, pandeiro. Na época tinha muito axé, axé Bahia e rolava uma Daniela Mercury, porque era uma epidemia da época. Rolava da opera ao Rock’n’ Roll, rolava de tudo. O pessoal tinha uma musicalidade boa na cara, no ouvido, hoje para se ter um espaço com música boa é mais difícil, porque se gosta hoje de músicas com letras vazias.
Vamos voltar para o Xá de Flor enquanto movimento cultural, antes do bar e depois que vocês chegaram ao Cariri... Como se deu esse movimento na região?
Bladino Lobo - Antes do bar o movimento com o Xá se dava nas festas populares, íamos pra Barbalha, começava com Santo Antônio, ai depois vinhamos para as festas juninas, Exposição do Crato, Nossa Senhora da Penha, Carnaval... Levávamos os quiosques, começamos numa mesa e depois montamos uns quiosques de madeira. Na Expocrato, uns vendiam comida e outros bebida e começamos a trabalhar. Um dia cismaram e fecharam nosso quiosque e eu fui na administração da festa e contei o acontecido. Eles fecharam só porque a gente estava rindo e cismaram, mas foi literalmente porque estávamos rindo.
Como assim?
Bladino Lobo - Eu lembro que tinha uma amiga que estava lendo uma carta sobre umas coisas bem engraçadas e todo mundo ria. Nosso movimento incomodava porque eles só viam drogas, com os estereótipos da juventude da época. Os pais chegavam a ir para ver se o que diziam era verdade e começavam era a frequentar.
Várias pessoas da sociedade que tinham os filhos que já iam, que ficavam em volta das nossas barracas na exposição e depois no próprio espaço físico, chegavam e viam que não tinha nada, e viam que o lugar era maravilhoso, cheio de festa, e viam que tinha uma seriedade.
Existia uma logística para o Xá?
Bladino Lobo - Tinha caixa, era tudo na ficha, tinha toda uma organização e a cachaça era que segurava o movimento cultural, porque na época, como ainda hoje é difícil patrocínio, ainda era pior. Era contado no dedo as pessoas que davam patrocínio, então era a cachaça que bancava. Nós fazíamos as coisas como diz o linguajar popular: “nas coxas” mesmo, pagávamos para ver a coisa acontecer. As pessoas se juntavam com
a sede de fazer, era pagando pra ver. Nunca ninguém se apresentou lá sem ter um cachê. Nos 10 anos do Xá de Flor tinha uma criança, que era sobrinha de João do Crato, ela era uma das bailarinas e ela também teve cachê, assim como o pessoal da produção, todos os artistas tinham cachê, não se fazia uma festa para não ter o cachê das pessoas. Sempre tinha uma programação para acontecer qualquer coisa, tinha uma preparação, tinha um preparo dos discos para montar uma trilha sonora, além da programação visual da estética do lugar, sempre tinha um esqueleto, ninguém fazia as coisas no improviso. No Xá de Flor, se conversava, se reunia, tinham uma logística, o Xá de Flor tinha um caderno onde anotava-se as entradas e saídas. A entrada não era sempre paga, só em eventos específicos como, por exemplo, nos 10 da Xá de Flor. A Xá de Flor nunca foi registrada nem a marca, razão social não tinha, eu não era muito ligado nessas questões, era mais em querer fazer as coisas acontecerem, minha ligação sempre foi muito atrás, eu gosto de arrumar o artista e jogar ele em cena, sou contrarregra, sou produtor. Por quê?
Bladino Lobo - Porque eu enjoei da noite, a noite é meio pesada, né? Principalmente nos tempos de hoje. João até hoje faz um trabalho mais cultural popular, ele faz um trabalho maravilhoso em cima da cultura popular e eu fiquei mais em stand-by, fiquei mais atrás, eu gosto mesmo é de estar cedo em casa para dormir.
Toda essa questão ritualística até na hora de produzir o Xá de Flor influenciou o surgimento de boatos por parte da sociedade mais conservadora cratense de que aquilo era uma substancia alucinógena?
Bladino Lobo - Ah, com certeza. E tinham momentos - quando o bar estava lotado de gente - que estava aquela energia louca, ai eu fazia uns incensos e saia incensando a moçada, ai acalmava todo mundo, e as pessoas adoravam isso. Tinha umas coisas místicas da gente que a gente carrega desde criança. Por exemplo, no tempo que nasci sempre tinha um cheiro de alfazema na casa de um recém-nascido. Além de dar um banho do recém-nascido com um chá de alfazema, tinha os banhos de erva também. Então, no Xá de Flor tinham essas coisas que são da sabedoria popular que hoje em dia as pessoas não dão mais muita importância a isso.
Como se deu o fim do Xá de Flor?
Bladino Lobo - Xá de flor teve um fim de bar, do espaço físico, mas ainda hoje Xá de Flor culturalmente é uma entidade que existe. Ela tá adormecida, mas ela existe. O bar foi uma coisa de um momento mesmo que
João do crato
eu disse: não quero, estava com todos os congeladores cheios e decidi que não queria mais.
O senhor têm planos de acordá-lo?
Bladino Lobo - Eu não sei como seria hoje o comportamento dessa história, porque também cada tempo no seu tempo. Hoje se viesse a se formar um Xá de Flor seria um Xá de outro momento. Mas nós temos o Raul e o Cangaço (bares de Juazeiro do Norte) que talvez se aproximem da ideia do Xá de Flor. Agora, para o futuro, eu e a Nivea Uchoa (fotógrafa) já fizemos alguns encontros para o planejamento de um documentário sobre o Xá.
Como nasce o Xá de Flor?
João do Crato - Ele surgiu na experiência de Blandino com os raizeiros aqui do Cariri, com os engenhos de cana, com as farinhadas e com o pessoal da cultura popular da Feira do Crato, principalmente. A intenção do Xá de Flor era a pesquisa de ervas, sementes, frutos e cascas, a coisa da medicina popular com um teor curativo. Então, Xá de Flor começou antes dos anos 70, digo isso porque foi muito mais do que um bar, foi um movimento cultural. Antes do bar ele já acontecia nas festas populares daqui do Cariri e em fortaleza, na praça Portugal. Eu não consigo separar a banda da cachaça e do movimento, tudo surgiu de uma necessidade de se mostrar, de se dizer “Eu faço isso!”. Blandino é um raizeiro, um pesquisador, um cara que tem vasto conhecimento da pluralidade da Feira do Crato, conhece todo mundo, conhece Dona Ciça do barro cru, conhece os violeiros, os rabequeiros, os engenhos de cana, as farinhadas. Fortaleza?!
João do Crato - Assim, tinha uma casa muito alternativa em uma praia de Fortaleza onde ia todo mundo para lá, era uma mistura, iam poetas, músicos, cantores, performances, era uma casa muito ativa, muito viva, de entre e sai de gente onde hospedavam-se as pessoas que eram de fora. E esse movimento surgiu basicamente nas conversas dentro dessa casa, o rótulo da cachaça surgiu lá, foi desenhado inclusive pelo Giovani Sampaio, que era o dono da casa e artista plástico. Quando se está em Fortaleza tem todo o movimento da musicalidade que vai surgindo do rock’n roll, que era um rock do ceará, do movimento com Lúcio Ricardo, Mona Gadelha, todo esse pessoal surgiu naquela época.
O movimento começa em Fortaleza?
João do Crato - O movimento começa em Fortaleza e chega ao Cariri, marcando uma época. Então assim, começou tudo junto, tudo foi o movimento e o movimento é amplo, surgiu de uma forma muito unificada, com muita harmonia, foi muito legal. Dentro desse ambiente, e bem antes do bar, já tinha um movimento aliado à música que deu origem a uma banda, a
banda Chá de Flor, que surgiu junto desse movimento. Éramos uma comunidade que morava na praia e tudo muito misturado. Começamos a entender o que era o Xá de Flor além de ser a possibilidade de você pegar o fruto, a casca, a raiz, a semente, a folha e sim transformar isso em uma coisa que me cura a alma aliado a uma cachaça boa, natural do engenho sem passar por nenhum processo químico.
Como aconteciam e quais eram as festas?
A gente trabalhava na Exposição do Crato e na festa de Santo Antônio em Barbalha onde começamos com uma mesinha com lamparinas, bem rudimentar mesmo, e depois passou a ser um quiosque de madeira. Nessas festas a gente já vendia e preparava as cachaças. Como se acontecia a preparação da cachaça?
João do Crato - Sempre muito terapêutica. Na verdade a Xá de Flor representava uma mesinha que qualquer sertanejo tinha sua em casa, com uma cachaça com ervas que se toma antes do almoço, uma dose antes de tomar um banho, que é uma prática muito popular da cultura popular daqui, então ele foi criado nesse intuito. A gente ia para os engenhos e temperava as rapaduras e as batidas com canela, cravo, gergelim, amendoim, e tudo isso tinha uma marca que já era Xá de Flor, as rapaduras também já entraram nesse contexto do Xá de Flor que já trazia a arte, o místico... Isso fez algumas pessoas apontarem como alucinógena, mas tudo isso era muito mais folclore.
E o bar?
João do Crato - O bar ele já veio bem depois em uma proposta cultural de ser um espaço de juntar as pessoas, a juventude principalmente e aliar o Xá de Flor com a arte. No Xá de Flor se apresentavam os cantores, as performances de teatro, circo, exposições de artes plásticas. Era um local de convergência entre todos os artistas, não só aqui do Crato mas de todo o Cariri e até de fora, como da Paraíba, porque sabiam que era um movimento interessante e as pessoas vinham para conhecer e trocar ideias.
Em quais momentos você esteve presente dentro de todo esse processo?
João do Crato - Todo o processo de começar a se estabelecer o Xá de Flor como um grande movimento cultural eu acompanhei desde o começo. Levamos a cachaça às feiras de São Paulo, Rio de Janeiro, que Blandino ia levando toda a questão da raiz do Cariri, dos raizeiros - iam tecelões que levavam a rede, o pessoal do artesanato indígena - Então, nesse período eu estava muito presente depois que o bar surgiu e já foi um negócio muito mais específico, eu ficava mais na questão de direcionar a parte artística e lá dentro mesmo na produção da cachaça já tinham muitas outras pessoas aju-
dando. Enfim, a minha parte mais presente foram nos festejos de Santo Antônio de Barbalha. Quando chegou no bar mesmo eu participava mais como artista, ia lá para cantar mas trabalhando mesmo com a equipe eu já não estava mais porque eu já estava mais envolvido em outras coisas, principalmente na questão musical. Por que movimento cultural?
João do Crato - A juventude estava buscando alguma coisa de mais forte, como interferir no sistema, estávamos saindo de um ditadura militar, era tudo muito difícil. As pessoas eram muito reprimidas, não tinha como se expressar e tudo era muito repressor na época. Então, o Xá de Flor estava nesse processo de talvez libertação de um tempo de ditadura militar e da própria sociedade tradicionalista, coronelista aqui do Cariri, formada por oligarquia das famílias tradicionais que reprimiam muito, A minha visão do Xá de Flor é muito como um movimento cultural mesmo, que marcou época, marcou uma década ou mais, 70, 80, até 90... Foi muito expressivo. As pessoas tiveram um processo formativo muito bom junto com o Xá de Flor porque as pessoas que nos acompanharam, os artistas, intelectuais, eram pessoas de boa índole, o que permitiu a troca com a juventude de uma ideia muito saudável. Diferente do que hoje a indústria cultural faz com a juventude que coloca tudo de pior qualidade para confundir a cabeça. Xá de Flor fazia o contrário em um processo de qualidade, de conversa, de intercâmbio, de amorosidade, de cumplicidade. Era um movimento muito legal, vindo do pós “paz e amor”, do movimento hippie, do Woodstock e isso foi muito revolucionário e plantou essa semente de você querer que o mundo fosse maravilhoso, que todo mundo fosse feliz, liberto, de usar o que quiser, dos cabelos crescerem, a liberdade da sexualidade. Foi quando começou a surgir o movimento gay, foi quando surgiu a AIDS… E depois que passou tudo isso o mundo criou uma nova cara, as pessoas começaram a entender, a juventude principalmente a possibilidade de liberdade. Basicamente nos anos 70 para 80, Xá de Flor se estabelecia como esse movimento sem uma definição, sem padrão, sem um rótulo mas com a ideia de que a partir dessa fusão das ervas com frutas e essa manipulação de Blandino - que tem um conhecimento incrível de formação ancestral - que isso ia dar em alguma coisa. E aí foi surgindo a banda de Rock Roll ‘Chá
de Flor’, e a música que se chama ‘Xá de Flor’ que fala justamente dessa magia de unir plantas e ervas.
Quem compôs a música?
João do Crato - A música foi composta em grupo, com músicos que faziam parte da banda, eu, Batista Sena, Ronald de Carvalho... Foi um poema que foi feito a muitas mãos em um momento em que estávamos todos juntos, depois que foi feito o poema foi pego o violão e começamos a colocar a melodia. A banda se desfez e o Xá de Flor continuou como esse movimento de agregar a juventude.
O nome da banda é uma homenagem a cachaça ou ao movimento?
João do Crato - Simultaneamente iniciou-se tudo, ela surgiu dentro do movimento Xá de Flor quando as pessoas se reuniam ao redor de uma mesa para tomar a cachaça e para compor. A banda era de Fortaleza, na verdade, mas a essência era daqui do Crato, as flores eram do Crato. E durou muito pouco tempo, em 79, 80, acho que chegou a 81, passou mais ou menos três anos. Fizemos shows aqui na Exposição do Crato junto com Luiz Gonzaga, fizemos um show lá onde hoje é a reitoria da URCA. Em Fortaleza, participamos de festivais, participamos do lançamento do disco da Massafeira, que estava chegando, que era outro movimento cultural que aconteceu em Fortaleza.... Nós fizemos vários shows, mas “sonho dos cupidos” foi o mais produzido, nós fazíamos uma coisa bem marginal, periférica, então
Abidoral jamacaru
fomos nós mesmos quem nos auto produzimos com os contatos que tínhamos. Era tudo muito difícil, você não tinha acesso aos meios de comunicação, era tudo muito elitizado.
Esse movimento foi mais intenso em Crato?
João do Crato - Claro! Depois que ele se estabeleceu aqui na Festa de Santo Antônio, na exposição do Crato e depois na Lagoinha, pra depois ir pro bar mesmo propriamente dito, ele passou por vários estágios. Quando ele chegou no bar já estava com uma cara, Blandino já tinha uma série de pessoas que trabalhavam com ele, não era mais como no começo com a cachaça que era eu e ele e quando íamos para Fortaleza o Giovani, que também tem profundo conhecimento daqui da região e sobre ervas, e ajudava, assim como o Batista Sena. Foi um movimento tão importante a maneira como ele foi gestado, porque ele conseguiu unir o sertão com o litoral, a gente saiu daqui do sertão, quando chegou no litoral, e o que tinha de bom no litoral foi incorporado lá, os muricis que é do litoral, as coisas que eram do litoral entraram nesse movimento do xá de flor, nessa pluralidade das frutas, das ervas, das sementes, o movimento foi muito amplo. Foi surgindo uma coisa muito unificada, simultânea, é tanto que não temos tanta referência de datas.
O que o Xá de Flor representou para os artistas da época?
Abidoral Jamacaru - O Xá de Flor foi um movimento que ocorreu naquela sucessão de eventos que aconteceram aqui no Crato, que foram os festivais de música, em torno de oito festivais. Funcionou como um divisor de águas na música, porque até então nós, artistas, não compúnhamos, só cantávamos os artistas de fora. E, com esse tipo de movimento e festivais, ganhamos espaço e todo mundo começou a compor.
Quais festivais? Eles aconteceram concomitantemente ao Xá de Flor?
Os festivais foram antes do Xá de Flor, ainda na Ditatura Militar. Existiu o “Salão de Outubro” que foi um movimento artístico que aconteceu aqui no Crato em que passávamos uma semana acampados em uma praça praticando arte de todas as variedades possíveis. Esse universo veio a inspirar o Xá de Flor que, enquanto bar, foi um diferencial do que se convencionou por bar, na época.
Por que diferencial?
Porque ali haviam pessoas que tinham a concepção de vida e expectativa de vida diferenciada do que se estava estabelecido há muito tempo. Ou seja, pessoas que comungavam na praça com o que se chamava de contracultura. A contracultura não é nada mais nada menos do que a questão da contestação de uma cultu-
ra já estabelecida para a implantação de uma cultura nova. Queríamos implantar uma nova cultura, onde o jovem pensasse, onde o jovem dividisse as suas coisas. Então o Xá de Flor apareceu nessa época. Foi depois dos anos 70. Blandino sempre participava conosco desses movimentos, ele foi captando essa coisa do diferencial e resolveu colocar um bar com essa diferença toda. Ele resolveu fabricar um tipo de bebida diferente, já que tinha um conhecimento das ervas da floresta, da Chapada do Araripe, e que ele incrementava essas coisas numa cachaça e dava um sabor diferenciado chamando isso de Xá de Flor.
O diferencial do Xá de Flor foi o ar de liberdade estabelecido? As pessoas iam ao bar especialmente para tomar a cachaça?
Com certeza. A bebida principal do bar era essa. Toda a moçada que queria esse diferencial ia pra lá, tinha uma música diferente, nós artistas tínhamos um espaço lá que não tínhamos em outro canto. As pessoas se vestiam diferente, dançavam diferentes, conversavam coisas diferentes. Esse é o grande lance do Xá de Flor que está inserido nesse contexto do Salão de Outubro, dos festivais, dos jornais que nós criamos. Jornais?!...
Chegamos a fazer jornais, livros, cinema, tudo isso nós fizemos nesse período. Começando no final dos anos 70 adentrando até os anos 80. E, até hoje, nós continuamos a fazer alguma coisa. Eu na música, outro no teatro, outros com artesanato... Tem uma coisa interessante que nesses movimentos, como o Salão de Outubro e Xá de Flor, que é o fato de nós não termos ficado restritos aos artistas daqui, chamávamos os artistas de Juazeiro do Norte, Barbalha, às vezes até Fortaleza e eles vinham - era ótimo porque acentuava ainda mais as diferenças que existiam.
O senhor frequentou o bar?
Estive algumas vezes lá, mas é uma questão minha, nunca fui boêmio. Participei mais tocando e cantando. Lembro-me de estar sempre lotado. Por outro lado, porque tem sempre o outro lado da coisa, né? O povo mais antigo dizia que lá era um ambiente promíscuo. Sempre tem essa taxação quando se faz uma coisa diferenciada que extrapola em algumas áreas, a pessoa já olha diferente para tudo que foge aos padrões.
O senhor acha que os bares de hoje no Cariri carregam um pouco de influência do que foi o Xá de Flor?
Hoje o Cangaço (o bar) é uma forma de repetir essa dose, fazer esse diferencial. A juventude tende a fazer isso com ou sem precursores. E o que é juventude, né?
Aquele que aceita o novo, aquele que se atualiza com o tempo. Juventude vai além da questão da faixa etária, ela é composta de todos aqueles que compreende o novo e se conecta a ele. Como dizia Belchior “o novo sempre vem”.
Cícero Cícero
A pequena grande arte do ourives
Texto: José Anderson Sandes
Fotos: Caio Botelho e Emanoella Callou
Cícero Bento de Mendonça, 65 anos, Técnico de Laboratório em Joias, do curso de Design da Universidade Federal do Cariri, tem uma trajetória singular. Nasceu em Caririaçu e, ainda adolescente, mudou-se com a família para São Paulo. Lá aprendeu um ofício que o acompanha durante a vida – a ourivesaria. Mas antes trabalhou durante tempos numa fábrica de gesso, esculpindo santos. Ingressou na Marinha aos 18 anos – ofício que lhe deu muita disciplina. Como marinheiro, morou em Santa Catarina e no Rio de Janeiro. Mas cansou-se da disciplina da caserna e, aos 26 anos, depois de ter passando num concurso para seguir carreira na Marinha, largou tudo e voltou para São Paulo. Com irmãos envolvidos já com a ourivesaria, começou a aprender o ofício. Seu primeiro emprego foi como ‘meio oficial de ourives’, profissão que não largou mais. Passou por várias empresas, sempre trabalhando com joias – da matriz ao acabamento da peça. Ficou entre Juazeiro e São Paulo, fazendo uma escala em Macéio. Sempre em busca de novas oportunidades. Essa entrevista foi realizada no laboratório de Design da UFCA, local de trabalho de seu Ciço. Ali ele se sente em casa. Às vezes tímido, outras abrindo um largo sorriso, falou de sua trajetória de vida e da arte moldar metais e pedras preciosas.
O senhor nasceu quando e aonde?
Eu nasci aqui mesmo, na região, em Caririaçu, cidade serrana, em 1951. Mas passei boa parte da minha infância em Juazeiro do Norte. Em 1967, minha família mudou-se para São Paulo. Sim, mas a infância?
Ah, eu passei no sítio, né. Um lugar maravilhoso para se passar a infância. Muitas brincadeiras, pesca no riacho, o Sítio Bananeiras. Era a casa da nossa avó. Quando era época do inverno, a gente ia pra lá. Na época da safra, né. Passava lá um tempo enquanto não tinha aula, era recesso de aula. Quando acabava o recesso, voltava para Juazeiro. Meus pais eram agricultores. Plantavam feijão, milho, fava… uma série de coisas. As terras também naquela época eram ressequidas. Chovia bastante, mas quando parava o inverno, ficava seco. Tinha na época umas feiras que duravam bastantes dias. Começava aqui, em cima, na rua São Pedro e ia até lá, na Matriz. Bom eram os tempos de festa, de romarias. Essas lembranças a gente sempre guarda com a gente.
E em São Paulo?
A gente tinha que ir pra outro lugar para sobreviver. Tinha 15 anos. Foi pai, mãe, a família toda. Já tinha três irmãos lá. Tudo maior de idade que, inclusive, dois são ourives também. Trabalham com joias. Quando cheguei lá já tinha um emprego pra mim. Era fazer imagem de gesso, fazer santo. Era só eu e o dono da firma. Ficava num barracão de fundo de quintal. Aí fui trabalhando, peguei o jeito, a prática do serviço, né. Minha família toda trabalhava. A gente morava no Jardim Brasil, Zona Norte. Lá também continuei a estudar. Era o ginasial. Quando fiz 18 anos surgiu uma oportunidade de entrar na marinha.
Por quê a Marinha?
A Marinha foi quando completei 18 anos, né. Fui servir. Eu ia servir o Exército, mas como eu ouvia falar muitas coisas do Exército, que você sofria demais, aí resolvi entrar na Marinha. Eu prestei um concurso e graças a Deus passei. Era uma turma de 1500 alunos para 64 vagas. Entrei pra Marinha e fui pra Santa Catarina. Era a Escola de Aprendiz de Marinheiro. A gente cui-
dava da escola e estudava. Fazia limpeza, cortava grama e também estudava. Toda matéria do Ginásio – matemática, biologia, química, física. Estudava isso tudo. De Santa Catarina, fui para o Rio de Janeiro e embarquei. Fiquei oito meses embarcado. Eu enjoava demais. Mas fui levando a vida nesse navio. Trabalhava na limpeza do navio e de vigia. Era navio de patrulha, de guerra. Foi uma boa experiência. A gente aprende muita coisa. É outro tipo de vida. É meio complicado, sabe. A gente sofre, mas vale a pena. Passei seis anos na Marinha. Aos vinte e seis anos pedi demissão e deixei a Marinha. A gente era novo, né. Se sente muito preso. É um regime militar, né. E eu estava doido para voltar para São Paulo. Eles gostavam muito de mim porque era um excelente marinheiro. Nunca aprontei, né. Quando pedi para sair, meus chefes me deram muito conselho pra ficar, mas eu tava decidido. Queria ficar de jeito nenhum. Voltei pra São Paulo e comecei a trabalhar com imagem de gesso, fazendo santo novamente. Todo o tipo de santo. E como se tornou ourives?
com joias – era o modelista, o joalheiro. Um excelente joalheiro, por sinal. Entrei como meio oficial de ourives. Com três meses, já peguei a ficha como profissional de ourives. Comecei a fazer montagem de anéis, laminar, fundição. Você derrete o metal e aí lamina. Vai para a bancada e molda a peça a partir do ouro, da prata e do latão. Algumas vezes, a gente utiliza o cobre também. Como é o processo de criação das jóias?
Eu trabalhava numa oficina em São Paulo para o empresário Adriano Facchini, na época casado com a Luíza Thomé. Eles levaram um brinco lá, para fazer uma cascata de brilhantes. Pense numa dor de cabeça, rapaz
No meu caso – não vou dizer que sou designer - , porque eu não sou formado em design. Fiz um curso no SENAC, mas um curso rápido, não deu para aprender muito coisa, não. Mas eu crio e faço modelagem, a matriz. A matriz, uma peça única, a indústria compra de você e reproduz milhares. Eu fiquei seis meses na H. Stern e apareceu um senhor lá, joalheiro também, que tinha feito um teste em outra empresa – a Brasil Metais -, não existe mais. Ele me incentivou a ir para Brasil Metais, onde ganharia bem mais. Fui e consegui o emprego. Lá fiquei dois anos já como ourives profissional. Fazia as modelagens. Fiz muitos brincos de chapinhas,
quando você trabalha com ele – os donos das empresas nunca vão entender se der uma falha no ouro. Ele pode dar uma falha quando você manuseia com ele – lixar, limar, etc -.Então, quando o extravio é grande, né, vamos dizer assim, cinco, seis gramas, aí eles acham que você tá passando a mão, roubando, né.
Por que o senhor retornou para Juazeiro?
Eu fiquei até mais ou menos em 1989 em São Paulo e aconteceu de separar da mulher. Ela não quis ficar com os dois filhos, eu fiquei. Ainda disse que pagava pensão e alugava casa se ela ficasse com os filhos. Ela disse que não, queria viver a vida dela. Era nova também, né. Tinha vinte e seis anos na época que a gente separou. Na época que casei, ela tinha 15 anos; eu vinte e sete. Voltei para Juazeiro com os dois filhos e não deu muito trabalho, não.
E como foi a retomada da vida em Juazeiro?
Em São Paulo, fazia umas peças em casa também para Leda Lagoa, uma designer de jóias. Quando falei que iria mudar para o Ceará, ela me propôs fazer umas peças para ela, quer dizer, ficar trabalhando para ela. A
eu fiquei muito bravo com ele, disse umas coisas que não devia. Mas de qualquer maneira a gente acabou ficando bem de novo. Em 1989, o então prefeito Manuel Salviano, amigo de Geraldo Macedo, montou um parque tecnológico em Juazeiro. O Geraldo Macedo foi lá em casa e perguntou pra mim: Ciço, o que você acha que a gente deve montar lá no parque tecnológico? Eu sugeri uma escola de joalheria. Ele perguntou – ‘tu sabe fazer o projeto’. Eu respondi: sei fazer o rascunho e você passa para o papel. Fiz e ele mostrou para o secretário da Indústria e Comércio. Ele aprovou na hora. Fizeram uma reunião no Sebrae e implantaram a escola. Como foi o processo de implantação da escola?
Infelizmente, era transição de governo. Na época, o Tasso Jereissati estava no governo e depois entrou o Ciro Gomes. Tinha uma verba destinada ao parque, uma verba muito boa, que dava para a gente sobreviver. A escola existiu pouco tempo, não chegou a completar um ano. Eu era assessor do diretor do parque e eles estavam me pagando. Fiquei por lá, mas depois eles
gente ficava se comunicando pelos correios, pelo Sedex. Ora, foi muito bom para mim. Disse pra mim mesmo – vou adorar porque quando eu chegar lá não vou ter emprego de imediato. Aí comecei a fazer as peças para ela daqui de Juazeiro. O comerciante Geraldo Macedo soube, né, que eu trabalhava com jóias e foi na minha casa. Ele me convidou para trabalhar com ele e me pediu para dispensar a mulher, lá, a Leda Lagoa. Não fiz, pois ela me ajudou e não poderia deixar de trabalhar para ela pelo menos naquele momento. Ele insistiu, disse que montaria uma oficina em sua casa. Bem, resolvi ficar trabalhando para os dois. Mas diante de tanta insistência, acabei por ficar somente com ele. Só que aí o preço que ele me pagava caiu. Aí teve um dia até que
Lá eu ganhava bem razoável, meus oito ou dez salários. Foi em 1991. Voltei para São Paulo e voltei a trabalhar – deixar eu ver onde -, sim numa firma lá, D’Agente, uma firma de jóias. Fazia o mesmo serviço – brincos, pulseiras. Colares. Eles lá tinham designers próprios. O próprio dono fazia, às vezes. Explique o seu processo de trabalho?
A gente elabora a peça. Eles fazem os rascunhos, os rabiscos deles, lá. A gente faz a fundição, derrete o metal, vaza, faz um lingote. A gente usa um motor de suspensão, Depois a gente vai para o laminador – faz o fio ou a chapa. Dali você começa o processo de serragem. Se no caso for chapa, por exemplo, você passa o desenho do papel para a chapa. Depois, recorta, dá o
Isso porque quando você fala que trabalhou na H. Stern todo mundo diz, ah o cara é fenomenal, né. Aí a gente sempre encontra um empreguinho bom. Já conhecia bem São Paulo. Olha a gente mora desde 67. Fui pro Rio e passei seis anos, lá; voltei para São Paulo, sempre no mesmo lugar. Em 2004 tava em Presidente Prudente, desempregado, com meu irmão lá. Passei seis meses morando com ele. Aí meu pai, José Bento, e a minha mãe, Balbina, estavam aqui, em Juazeiro, velhinhos né. Minha irmã cuidando deles. Aí falei com meu irmão: Geraldo, eu vou lá para Juazeiro, vou ajudar Rita lá. Aí voltei para cá. E os seus dois filhos?
Lá também fiquei trabalhando para uma velhinha rica, de Brasília. Só que ela era, sabe… era muito segura. Ela é poderosa, sabe, assim de ameaçar. Tanto que quanto falei para ela que ia embora, ela disse, pegando no meu braço: “Não Ciço, o senhor não pode, não...” Não posso? Tô indo! Aí ela me pagou, sabe, mas ficou ainda me devendo mil reais.
E como o senhor descobriu a Universidade Federal do Cariri?
pararam de pagar. Falaram que não dava mais, que a verba tinha sido cortada. O Ciro Gomes tinha cortado e que não ia dar mais para pagar, que a gente tivesse paciência. Eu até tenho paciência, mas meus filhos não têm. Aí combinei com eles: não quero mais, vou para São Paulo, voltar de novo para São Paulo. Por que essa decisão, já que Juazeiro é conhecido também como pólo de jóias?
acabamento. Se tiver pedras, a gente faz uma caixinha para pedra. Pedras que compõem o brinco, o anel... eu também sou lapidário. Aí a gente faz a solda, né, Faz a montagem da peça, dá o acabamento, polimento. Aí crava a pedra – se tiver -, se não vai direto para o cliente.
Não foi difícil então arranjar colocação em São Paulo?
Nessa época eles já eram adultos, né. Aí ficaram lá. Já tinham casa. Um trabalha em empresa de limpeza, terceirizado. Trabalhou como motorista na empresa de Hermínio Moraes – na Nitroquímica, né. Fez lá o curso de cargas perigosas. Trabalhou bastante tempo lá. Conseguiu um pezinho de meia lá, um chacrazinha e tem três casas de aluguel. Trabalhei na SemiJoias, trabalhando em casa. Depois fui para Maceió. O meu pai faleceu em 2007, né; minha mãe faleceu em 2011. Fiquei um ano e meio em Maceió trabalhando como ourives.
Eu entrei em 2015, né. Antes de 2015 eu cheguei a prestar um concurso para assistente administrativo. Só que não tinha estudos suficientes para passar. Aí fui eliminado pelo perfil. Eu sou de idade também, né. Aí fiquei esperando. Aí surgiu o concurso de Técnico de Laboratório de Joias. Era a minha área. Agora, é hora de me inscrever. Vim e prestei o concurso. Fiquei em terceiro lugar. Foram aprovados quatro na prova teórica, né. Aí veio a aula prática. Aí consegui passar. Eram onze candidatos.
Como é o seu trabalho no laboratório?
Aqui eu oriento os alunos. A professora dá aula teórica, né, e passa os trabalhos. Eles elaboram o desenho e aí trazem para mim. Trazem todo o tipo de peça. A gente só trabalha com latão. Ouro é muito caro (risos).
Aí a gente faz brincos, anéis, alianças, entendeu? Faz o recorte (solda); depois vem o laminador, a chapa ou o fio, passa o desenho para a chapa e depois faz a montagem. Eles dão o acabamento e o polimento. E está pronto. Para fazer uma peça mais elaborada levamos um dia, às vezes, dois. Depende da dificuldade da peça. Quais os perigos da profissão de ourives?
O perigo é que você trabalha com ácido, com gás e o oxigênio – que não foi ligado ainda -, mas tem esse risco também. Inclusive quando for ligar o oxigênio temos que chamar o corpo de bombeiros para ver se não corremos nenhum risco.
E o senhor tantos anos como ourives, nunca se acidentou?
Não. Grave, não. Sempre tem alguma queimadura, alguma coisa assim. Mas isso quando a gente começa na profissão, né.
Muitas profissões estão mudando com as novas tecnologias. A de ourives corre algum risco?
Olha, tá ameaçada. A matriz, por exemplo, você hoje faz pelo computador. Sai a peça prontinha, já no metal.
Mas aonde fica o artista?
Ah. Você trabalha com o metal, dá forma ao metal. Aí você é artista, singular. Você tá criando uma peça única. Na realidade, você é o artista – criando uma forma, criando um desenho, criando uma peça, né. Qual a peça mais cara que o senhor já fez na sua vida?
Eu trabalhava numa oficina em São Paulo para o Adriano Facchini (empresário), na época casado com a Luíza Thomé (atriz). Eles levaram um brinco lá, para fazer uma cascata de brilhantes. Pense numa dor de cabeça, rapaz. Os brilhantes começavam pequenos e iam até duas argolas, uma dentro da outra. E nessas argolas, você tinha que soldar as argolinhas para pendurar uns chapeuzinhos com brilhantes. Eram de todo o jeito –redondo, oval, gota. Mas ficou lindo, viu.
Quer dizer, requer muito cuidado e também segurança para manusear uma cascata dessa?
É perigoso também. Corre um risco de chegar um bandido e roubar tudo. Isso aconteceu na Finamore, sequencia da Brasil Metais, em São Paulo. Com toda a segurança não tem jeito. Corre o risco de chegar um bandido e até te matar. A Finamore tinha quatro sócios. Foi assaltada e o ladrão matou um dos sócios. O cara deu um tiro na nuca dele. Tem que ter toda a segurança num local desses.
Como o senhor definiria a sua profissão?
Eu acho que é um sonho, cativa você. Uma coisa gratificante. Você gosta daquilo e continua. Foi o que fiz durante a minha vida.
O senhor trabalhou fazendo santos de gesso, mora em Juazeiro… O senhor crê em Padre Cícero?
Gosto, sim. A minha religião é católica, sempre foi a católica. Meus pais sempre foram católicos, né.
O seu maior medo?
Rapaz, morrer. Morrer ou ficar desempregado ou doente – em cima de uma cama; dando trabalho para
os outros. Era o medo do meu pai também. E ele ficou. Mas eu e minha irmã cuidamos dele com muito prazer. A vida é bela?
É. Mas você sabendo levar ela. Aí a vida é maravilhosa.
O senhor soube levá-la?
Eu acho que sim, viu. Teve seus altos e baixos, mas isso, de qualquer maneira, a gente conseguiu contornar. Faria tudo de novo?
As coisas boas, sim. Mas as ruins não dá pra fazer. Repetir o sofrimento? Não. (risos)
xico sá
xico sá
por dentro da geléia geral
Fotos: Rafael Vilarouca | Cariri Revista
Jornalismo, literatura, política, sociologia de boteco, chifre, modos de macho, modos de fêmea, ideologias, fascinações, niilismo, anarquismo, utopias, alumbramentos, sacanagens, Crato, Juazeiro, Santana, Barbalha. Nada como uma conversa longa com Xico Sá. Disse conversa… São muitos os casos e vidas desse cearense de Santana do Cariri que ralou muito como repórter de paletó e gravata até chegar a cronista.
Ainda moleque, pelas ruas de Santana, Crato e Juazeiro, ele aprendeu os primeiros lances ou sacanagens da vida. Encantou-se pelo mestre dos mestres – Graciliano Ramos. Na sua casa, havia poucos livros, mas por sorte se deparou com o autor de Vidas Secas. Leu tudo. Frases curtas e repletas de significados, da prosa da vida e da morte. De Insônias e Memórias do Cárcere. Das imagens do sertão brabo da cachorra Baleia, de Fabiano e Sinhá Vitória. E na fase adulta se deparou com o anjo pornográfico, Nelson Rodrigues, um dos grandes influenciadores de sua veia satírica, amorosa e sacana. Nunca foi um reacionário, mas desceu aos porões dos inferninhos para falar da carne e outros desejos a ela pertinentes.
A primeira conversa que tive com ele foi ainda no final dos anos 90, quando começamos a publicar, no Diário do Nordeste, sua coluna semanal. Era quase uma zorra total. Quase fui demitido por atrasar tanto o jornal. A culpa não era de Xico, mas da empresa ou das moças responsáveis pelo envio da coluna. Às vezes pensei até em cancelar a coluna da semana, mas em respeito aos leitores jamais caí nesse canto do cisne. Mas foi muito divertido. Muitas vezes, ele mesmo ligava se desculpando: “ainda não recebeu a coluna… essas meninas, essas meninas… providencio já”. Às vezes, as meninas estavam na Europa, França ou Bahia. E Xico não queria deixar na mão seus leitores do Ceará.
O outro encontro foi no início desse Século maluco. Programa de Debates Século XXI, no Centro Cultural Banco do Nordeste, em Fortaleza. A conversa foi batizada de “Cultura e Imprensa
– como a grande imprensa mostra ou esconde a cultura nordestina”. Auditório cheio. Papo sério, mas depois descambou para a informalidade e reflexões singulares. Buscar culpados? Ora, a indústria cultural é uma hidra de sete cabeças… E o Nordeste é resistência. Desde a Confederação do Equador. Xico, em qualquer debate, seja no Cariri, Rio ou São Paulo coloca o Nordeste no centro da conversa.
Para revista Gente, do Diário, fiz uma longa entrevista-memória que os especialistas chamam de entrevista em profundidade. Aliás, só consegui publicar uma parte no jornal de tão longa foi a conversa. Aquela coisa - uma resposta puxa outra pergunta… e nunca chega ao final. Xico está há leguas da velha e boa Rosa, de Pedro Nava (Baú de Ossos), que, ao se cansar de contar estórias, dizia para o pequeno Pedro: “entrou pelo cu dum pinto, saiu pelo cu dum pato, quem quiser que conte outra…
A última conversa que tive com Xico Sá foi na Casa Cariri para uma plateia refinadíssima. Duas horas de papo. Dos cabarés do Cariri, da boêmia do Cariri, de Padre Cícero de Juazeiro, de anarquismo e, principalmente, do fascínio que tem por essa região tão cara e bela – que zumbe no seu ouvido diariamente - , região que lhe deu régua e compasso para o mundo. E que até hoje é mote de suas escrivinhações.
O celebrado autor de “Modos de Macho & Modinhas de Fêmea” e de tantos outras crônicas lançadas em outros livros, em jornais e da ficção “Big Jato” conta um pouco dessas histórias nessa também longa conversa.
Como está a vida neste momento tão crítico da nação brasileira?
Momento difícil, mas a história do Brasil é feita desses ciclos: abre aqui, fecha de novo, respira-se um pouco, o pau come logo depois... A democracia há de superar essa fase de golpes no varejo e no atacado, sem contar o retorno do autoritarismo, sinais de censura e uma política de enfraquecimento da educação e da universidade.
Qual foi o sentimento no dia que prenderam o presidente Lula?
Sentimento de que o Brasil Oficial cometeu uma grande injustiça com o maior presidente da história do Brasil Real. O mesmo Brasil Oficial que massacrou o Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, Canudos e outros movimentos populares.
O que fazer diante desse quadro quase apocalíptico?
Resistir, denunciar e aprender com a história.
Você ainda é um anarquista de carteirinha?
Já fui mais, amigo. (Risos). Politicamente, nunca fui filiado a nenhum partido, mas estou inteiramente no campo das esquerdas, no combate, na defesa dos direitos humanos acima de tudo.
Para alguns, as redes sociais estão insuportáveis. Insultos em rede.
Você concorda?
O jornalismo dos chamados grandes veículos anda muito reaça e atendendo apenas aos interesses do tal deus Mercado, inclusive nos cadernos culturais. O jornalismo independente, feito nos blogs, por exemplo, tem mostrado vigor e novidades.
O Cariri está fazendo muita zoada no seu ouvido?
É uma zoada permanente, é o que me move, mesmo longe daí. Toda minha escrita é uma bagaceira caririense, das crônicas à ficção.
Big Jato – livro e filme – narram sua meninice no Cariri cearense. São muitos causos...
Não foi o curso de Jornalismo, mas sim a poesia de rua, o ambiente da boêmia recifense. Foi meu trabalho como vendedor na melhor livraria do Recife, a Livro Sete, um lugar que reunia a boêmia literária recifense. Ali, comecei a ler de verdade. Uma leitura visceral
Em alguns momentos, as redes sociais fedem mais do que o banheiro masculino da velha rodoviária de Juazeiro, Ave Maria! Tapo o nariz, entro, dou os meus pitacos, vendo os meus livros... Meu expediente, no entanto, é cada vez menor.
E a literatura... o que está lendo e escrevendo?
Acabei de mandar para a gráfica -deve sair agora em maio- um livro de poesia, precisamente de haikais, chamado “Sertão Japão”, uma viagem literária que explora, com muito humor, as semelhanças entre o oriente e o Cariri. O livro conta com a colaboração de José Lourenço, da Lira Nordestina, que fez xilogravuras especialmente para a edição. O lançamento é da Casa de Irene, uma editora independente da qual faço parte.
A literatura puxa para o jornalismo... Que análise você faz no jornalismo verde-amarelo?
Xico Sá - Conto muitas histórias a partir de um caminhão apelidado de Big Jato, um coletor de fossas do meu pai - na verdade, do meu avô. Faço uma embolada muito grande com os personagens, às vezes a ação é praticada por meu pai, ou por meu tio, outras por meu avô ou os malucos do Crato. O Cariri que retrato no livro é muito verdadeiro. Foi o Cariri que vivenciei no início da década de 70. Narro às grandes chuvas – vivemos num Estado onde não chove tanto -, os banhos no açude cheio, as pescarias, as brincadeiras no barro quando o açude sangrava. Morava no Sítio das Cobras, zona rural de Santana do Cariri. O meu avô, João Patriolino de Menezes, reunia na calçada, durante noite de lua cheia, cinqüenta meninos para contar histórias. E haja mentira. Eram histórias de Camões, até hoje presente no interior do Nordeste, um personagem meio sombrio, um anti-herói, tipo Pedro Malasartes, que passava a perna em todo o mundo, inclusive no rei, fazia um desmantelo grande. Isso influenciou mais tarde a minha escolha de também contar histórias. Outra lembrança forte são as feiras. O barulho infernal das feiras com seus cantadores, repentistas e cordelistas. Lembro dos doidos do Crato, Juazeiro e Santana. As histórias deles são espetaculares. Um deles, o príncipe de Ribamar da Beira Fresca, um negro elegante, cheio de medalhas, sonhava em casar com a princesa Isabel. Escrevia à mão cartas e mais cartas de amor para a tão amada princesa.
Tinha outra ambição: montar no Crato uma fábrica de desentortar bananas. São histórias deliciosas que transcrevo no livro, com uma dose de realismo fantástico.
O caminhão Big Jato existiu?
Claro que existiu. Era um FNM (marca de caminhão da época), um limpa fossas do meu avô, que tirava sujeira das casas sem encanamento de Pedra do Peixe. Depois, o FNM passou para o meu pai, que chegou a ganhar dinheiro com ele vendendo rapadura. As histórias são todas verdadeiras, talvez alteradas um pouco. Os fatos que narro ocorreram há mais de quarenta anos e a memória pode falhar. Mas o Cariri está ali, o Cariri dos anos 70.
No livro você fala muito pouco das mulheres. Por quê?
No final fica mais forte a presença das mulheres. Mas no silêncio delas, um silêncio meio sertanejo, de fala pouca e mansa, devido a cultura machista. A mulher na época era um personagem quase invisível.
A indústria cultural também já invadia com força o Cariri...
Muita força. Até a Copa de 70, a televisão era preto e branco, mas depois veio a colorida. Um tio malucão, que me levou aos puteiros, era louco pelos Beatles. O cinema, muito forte também, promovia sessões gigantescas; e o puteiro era o lugar da iniciação sexual da minha geração. O cinema era uma diversão popular, programa da pobreza, da riqueza, de todo o mundo. O cinema de aventura, o faroeste norte-americano e o faroeste spa-
ghetti, a chanchada brasileira, os filmes bíblicos lotavam as sessões do Eldorado e do Plazza.
E o Padre Cícero?
Não tive uma família de freqüentar a Igreja semanalmente, todos eram católicos, mas não iam à missa. Até porque em Santana não tinha Igreja. De Santana, passei um período em Nova Olinda e, depois, em Juazeiro. Quando mudei com a família para Juazeiro virei um fanático por Padre Cícero, um fundamentalista. Fazia as promessas e obrigava meus irmãos menores a pagarem. Uma sacanagem. Minha mãe, em tempos de romaria, alugava parte da casa para os romeiros. Todos vestindo preto, chapéu na cabeça, muitos deles descalço. Eu, menino, vivi aquela coisa maluca, fanática, com uma crença sem tamanho.
Por transitar entre o bordel e a Igreja, você sentia alguma culpa?
Era uma culpa imensa, gigante, que o catolicismo colocava em nossa cabeça, mas ele mesmo dava um mecanismo facilitador. Eu comungava com o padre e acertava as contas com Deus. Depois, com a Faculdade de Jornalismo, os livros, minha crença foi para o buraco. Também comecei a compreender o sentido da manifestação religiosa de Juazeiro. Nunca deixei de ver ali uma manifestação fé com uma beleza simbólica e cultural muito intensa.
Meu humor vem do Cariri. Acredito no poder da sátira, dos grandes poetas e narradores satíricos como desconstrução da política. O Gregório de Matos, nosso boca do inferno, desconstruía de uma tacada só a Igreja, o Estado e a família
Você sempre teve uma relação maior com Recife do que com Fortaleza. Por quê?
Primeiro, os caras da minha rua, meus amigos, iam estudar em Recife. Segundo, minha família é metade cearense, metade pernambucana. A família da minha mãe é toda de Pernambuco (Floresta, Serra Talhada) e a do meu pai, do Ceará. Mas o caminho tornou-se natural porque, dentro das condições da minha família, Recife foi o atalho mais prático.
Proveniente de uma família de agricultores do interior do Ceará, você abraçou a literatura como profissão de fé. Como foi o começo desse processo?
Nunca tive noção do que fosse jornalismo, nem tão pouco do que fosse literatura. Li, ainda em Juazeiro, toda a obra de Graciliano Ramos. Comecei logo a pensar em escrever ou, quem sabe, fazer alguma coisa no rádio. Em Juazeiro freqüentava muito as rádios, acabei colaborando com uma delas com alguns poemas. Na época, o único escritor que vivia de literatura era Jorge Amado, traduzido na China, na França, na Rússia. Percebi que tradicionalmente o escritor era advogado, funcionário público ou jornalista. Quer dizer, ganhava a vida na redação ou na repartição pública para poder escrever. Voltando a Graciliano: seu repertório era o meu, a cachorra baleia, a brutalidade e a violência do sertanejo. Era o terreiro da minha casa, de
viver meio como bicho naquela paisagem árida. Tava tudo lá, de forma genial. Com ele, comecei a pensar em ser escritor. Não havia romances na minha casa -, os poucos que livros que existiam eram didáticos. Meu pai tinha a sabedoria de um autodidata. Sempre foi bodegueiro. Além da venda, trabalhou na agricultura. De tanto lidar com o comércio, com o algodão, sabia fazer suas contas, o que no sertão se chama de conta de tarefa. Nunca teve a formação dos livros, mas sim a sabedoria do sertanejo. O meu avô, por exemplo, era um grande narrador de histórias, nunca escreveu uma linha. Mas inventava histórias de príncipes e reinos encantados, histórias labirínticas, muitas delas durando mais de duas horas. Tudo ligado a oralidade. As narrativas do meu avô, oriundas da oralidade, e os romances de Graciliano Ramos foram meu primeiro contato com a literatura.
O ambiente universitário em Recife, particularmente o curso de Jornalismo, não lhe empurram ainda mais para o meio literário?
Não foi o curso de Jornalismo, mas sim a poesia de rua, o ambiente da boêmia recifense. Foi meu trabalho como vendedor na melhor livraria do Recife, a Livro Sete, um lugar que reunia a boêmia literária recifense. Ali, comecei a ler de verdade. Uma leitura visceral.
Por falar em trabalho, como você conseguiu se manter em Recife?
Depois da livraria, consegui uma vaga na residência universitária da Universidade Federal de Pernambuco. Ganhei uma bolsa e trabalhava na assessoria de imprensa da Reitoria. Passei também pela Companhia Estadual do trânsito. Fazia uma orientação de rua, quando mudavam uma avenida de sentido, ajudando os velhinhos a atravessar as ruas. Trabalhei ainda na Mesbla preenchendo fichas no crediário. Era um exímio datilógrafo, desde o Crato. Quem sabia datilografia na época não ficava desempregado. Não ganhava muito, mas dava para tocar a vida. Ainda produzi textos para cartazes e folhetos de uma gráfica. Mas essa coisa de querer ser escritor nunca me saiu da cabeça.
E o jornalismo?
Fazia jornalismo para ganhar dinheiro. Sempre meu sonho foi escrever livros. Comecei a trabalhar em jornal no governo João Figueiredo, início dos anos 80, último presidente da ditadura militar. Passei pelas redações do “Jornal do Comércio” e das sucursais da “Veja”, do “Jornal do Brasil”, do “Globo” e do “Estadão”. Aí virei jornalista sério. Aquilo foi tomando meu tempo, mas no paralelo sempre continuei sendo um bom leitor. Tentava
miseravelmente escrever alguma coisa literária, mas não conseguia, o jornalismo tomava a minha vida.
Você foi um jornalista investigativo, passou por redações importantes, ganhou prêmios, inclusive um Esso, por sua entrevista com PC Farias na Folha de S. Paulo...
Na época da entrevista com o PC Farias eu já trabalhava na Folha de S. Paulo. Mudei de Recife para Brasília a convite do Laurentino Gomes, meu chefe na sucursal em Pernambuco da “Veja”, numa época em que a revista era uma publicação descente. Existia mais respeito ao jornalismo. Na verdade, eu não agüentava o mundo político, trabalhar nos bastidores da política, investigar o motivo da queda de um ministro e a subida de outro; cobrir votações no Congresso. Achava entediante e miserável. Da “Veja”, em Brasília, fui para São Paulo, onde primeiro trabalhei no “Estadão”. Um ano depois fui para a “Folha de S. Paulo”, onde estou até hoje, mas fui condenado por uma longa etapa a fazer jornalismo político.
Sou um anarquista. Isso vem das minhas leituras de Mikhail Bakunin e do anarquismo cristão de Liev Tolstói. Tenho uma descrença na autoridade.
A sua crônica bem-humorada vem do Cariri ou do anarquismo?
Meu humor vem do Cariri. Acredito no poder da sátira, dos grandes poetas e narradores satíricos como desconstrução da política. O Gregório de Matos, nosso boca do inferno, desconstruía de uma tacada só a Igreja, o Estado e a família. Minha crônica junta um pouco dessa coisa toda. É extremamente popular, com uma oralidade e sotaque do Cariri. Por outro lado, tem influência das minhas leituras. Gosto de citar vários autores, num texto fragmentado. Já recebi retorno de leitores que, depois de ler uma citação minha de Nelson Rodrigues, por exemplo, leu toda a obra dele. Não tenho mais cerimônia de citar ninguém. Quais são suas outras influências?
No jornal você sempre acaba caindo na bagaceira, cobrindo tudo de um assassinato, aos fatos da política e do esporte. Ninguém me conhecia como cronista. As pessoas me viam como jornalista sério
Como conseguiu deixar o “miserável” jornalismo político?
Não foi fácil. Sempre procurava elaborar uma pauta que me dava prazer – uma resenha de um livro, ou uma entrevista com um escritor. Não ganhava um centavo por essa entrevista que, normalmente, escrevia em casa, no meu tempo livre. Também propunha matérias de cunho social. Escrevi uma que chegou a ser premiada sobre o “Homem Guabiru”, uma reportagem que mostrava que o índice de desnutrição em períodos de escassez fazia com que toda uma geração de nordestinos crescesse menos. Para cada matéria chata de política, eu fazia uma que me dava prazer.
Você começou no jornalismo no final da ditadura Militar, dentro de um governo ainda autoritário...
Até hoje temos resquícios do autoritarismo, nostalgia do militarismo. Veja as prisões no Rio durante a Copa do Mundo, prisões preventivas, malucas, sem provas. O Marin (José Maria Marin) como presidente da CBF... o cara tá implicado até os dentes com a morte do jornalista Vladimir Herzog, assassinado nos porões da ditadura. Ideologicamente como você se situa?
Dialogo praticamente com Nelson Rodrigues. A crônica lírica, amorosa, ligada às relações homem e mulher, tem muito de Paulo Mendes Campos, de Antônio Maria, de Rubem Braga e do próprio Nelson, o de “A vida como ela é”. Não faço uma crônica dentro daquele modelo dos anos 50 e 60. Ela é mais suja, mais rés-do chão, mais humilde.
Como assim?
Não tenho a solenidade literária desses cronistas. Não sou menos, nem mais importante. Mas não tenho medo de descer a baixaria do bar, ao inferno do casal, a escatologia, ao porre, ao chifre. Os autores que citei são mais literários, solenes.
Nelson Rodrigues chamava seus textos de “A vida Como ela É” de hediondos. Você classifica a sua crônica de suja. Algum paralelo ou tem algo de Nelson em suas crônicas?
Tento dar conta em minhas crônicas dos desencontros entre os casais de hoje. Desse homem meio perdido diante do avanço da modernidade, do avanço da mulher. Como contraponto, escrevo sobre a minha formação de homem, dos meus antepassados, do meu avô, meu pai e tios, do sertanejo do Cariri. Foi inspirado neles que criei o Macho Jurubeba – o cara que se permite ao máximo um espelhinho, um pente de bolso, brilhantina no cabelo e passa pomada minancora para combater as espinhas. Comparo o Macho Jurubeba com o homem de hoje, usando os cremes do universo feminino. Comparo os dois universos estéticos. Sou
Cartaz do filme e capa do livro de Big Jato: o Cariri da adolescência de Xico Sá um cara que veio do Cariri, com uma formação machista muito bruta e violenta que, aos poucos, entrou num mundo absolutamente moderno. Passei a conviver com homens mais modernos, artistas do Rio de Janeiro e São Paulo. Minha crônica é forte por esses dois motivos. Conheço bem os dois universos.
Quando realmente trocou a vida de repórter pela de cronista?
No jornal você sempre acaba caindo na bagaceira, cobrindo tudo – de um assassinato, aos fatos da política e do esporte. Ninguém me conhecia como cronista. As pessoas me viam como “jornalista sério”. Eu queria exercer minha verve humorística. Mas acabei por seguir por outro caminho – sendo reconhecido como repórter investigativo, ganhando prêmios, recebendo salários altos e tendo uma vida confortável. Eu queria ser o que realmente sou: esculhambado, satírico, boêmio, de um lirismo derramado pelas moças. Queria ser um cronista sujo, tratar de temas escatológicos, mas pelas circunstâncias acabei produzindo reportagens chatas na editoria de política. Tudo começou na “Revista Folha”, publicação mais arejada, que circulava aos domingos, em São Paulo, quando es-
crevi uma coluna já explorando o universo macho e fêmea. Em 1995, comecei timidamente minha carreira de cronista. Mesmo assim ainda continuei como repórter especial da “Folha.” Mas fui tomando gosto e comecei a fazer sucesso com a crônica. Com vinte e tantos anos como repórter você vira homem de redação – até a calça vai sozinha para a reunião de pauta. Só em 2000 conseguir sair dessa rotina. O primeiro livro – “Modos de Macho & Modinhas de Fêmea” – publicado em 2003, foi um sucesso. Acabei me firmando como cronista. O livro possibilitou a minha virada profissional. Tirei a gravata de repórter e mudei de vida.
Você como nordestino, nunca sofreu preconceito em São Paulo?
O que eu já vi de nego escondendo o sotaque para ser mais aceito. Eu cheguei a São Paulo de forma confortável, trabalhando nos grandes jornais. Cheguei como convidado, não em busca de emprego. Meus parentes, primos e tios, que chegaram nos anos 60 do século passado para trabalharem na indústria automobilística sofreram muito preconceito. O nordestino ainda enfrenta gozação, brincadeira. Aliás, isso não é uma brincadeira, mas sim preconceito. Nunca larguei o sotaque e os
valores nordestinos. Meus leitores valorizam muito isso. Valores que reafirmo também nos programas de televisão. Não sou artificial com relação a minha região. Realço isso seja na escrita, na tevê, aonde for. A zoada do Cariri nunca saiu dos meus ouvidos.
Você fez sucesso com os livros, mas foi à tevê que lhe projetou nacionalmente...
Comecei na televisão no programa “Cartão Verde”, ao lado do Dr. Sócrates, um encontro muito importante para mim. Depois, fui convidado para o Saia Justa, no GNT. Fui chamado inicialmente para a televisão porque fazia crônicas esportivas e para o “Saia Justa” porque escrevia crônicas sobre homem e mulher. O que realmente fiz foi levar a minha crônica para a televisão. Não me considero, nem quero ser um cara de televisão. Isso não me agrada. Sou na tevê cronista com o meu sotaque e o meu jeito esculhambado.
Foi a tevê que fez com que você escrevesse “Mulheres Extraordinárias?
Não, nada disso. O livro é de encomenda e, como não tinha prazo fixo, acabei atrasando. Falo de mulheres famosas - do cinema, da literatura, da televisão. Mulheres das mais variadas qualidades. Tem a beleza europeizante de Vera Fisher e a beleza da nossa mestiçagem representada por Sônia Braga. Hoje, a peleja hoje fica entre Camila Pitanga e Gisele Bündchen. Não são perfis, mas crônicas. Não fiz entrevistas com nenhuma dessas belas mulheres. Do Cariri escrevi sobre a Suyane Moreira. Homenagiei Leyla Diniz e Barbara de Alencar, mulheres libertárias, A maioria são deusas famosas, outras nem tanto.
Até que ponto o jornalismo influencia nas suas crônicas?
No começo o jornalismo era mais ligado a cultura. Minha geração lia muito, o que, infelizmente não ocorre hoje. O jornalista estava dentro da música, do teatro, do cinema. Com a chamada “profissionalização”, a redação é mais asséptica, desligada do mundo cultural. Sempre fui um cronista flanador, sem rumo. Daquele que senta num café ou toma uma cerveja num botequim para observar as pessoas, observar a vida. Passo uma tarde inteira passeando pelo Rio antigo. Reparo coisas maravilhosas. Tento descobrir a história do Rio de Machado de Assis. Eu não tenho carro, nem dirijo, graças a Deus, ando a pé, de ônibus ou metrô e, às vezes, pego o taxi.
Quer dizer, redação nunca mais?
Nunca mais. Não quero mais entrar na máquina de moer gente. Isso não me interessa. Seja na tevê, no jornal, em qualquer coisa. Não há dinheiro que pague o meu sossego. Toda vez que faço
televisão fico com uma folga financeira. Vou pro Cariri, escrevo um novo livro. Só escrevi o Big Jato porque tinha feito “Saia Justa”. Depois, ganhei alguns trocados com “Amor e Sexo”, o que me deu uma folga para terminar “Mulheres Extraordinárias”, livro recomendada pela editora da “Folha”. Já havia até gasto todo o dinheiro do adiantamento. Nada de educação financeira?
Não, mas minha mãe me regula muito. Sou arrimo de família e sustento parte da família desde que cheguei a São Paulo. Hoje todos viraram adultos e ganham suas vidas Tenho a obrigação apenas de sustentar minha mãe e uma irmã, que moram no Cariri. Essa parada toda me deu certa organização com dinheiro. Guardo essa coisa moral, de honra sertaneja maluca de nunca faltar com o dinheiro deles. Falhava comigo, mas nunca com eles. Vivo de qualquer jeito, sem vaidade, nem frescura. Cultivo dois luxos, apenas – viajar para o Cariri quando me der na telha e comprar livros. Os bens culturais são pra mim de importância fundamental. Moro aqui nessa barraquinha (uma quitinete em Copacabana), uma coisa de pegar preá, uma armadilha. Nunca me importei. Hoje, minha vida é muito simples. Gosto de trabalhar. A boemia é coisa do passado. Já bebi muito, confesso. Hoje, tomo apenas meu vinho, bebo muito pouco. Agora, vivo muito no bar, com meus amigos. Ás vezes tomando apenas água. Ficou a fama do personagem: grande bebedor, mulherengo, cabarezeiro. Não nego nenhuma dessas filiações. Passei por todas. Isso não significa que tenho todas elas presentes na minha vida de hoje.
O Cariri do presente mudou muito, mas parece que você gosta mais da dimensão do Cariri do passado...
O Cariri é a minha realimentação. Se não voltasse nunca escreveria coisa que preste. Quando chego lá parece que uma velha fita de cinema rebobina no meu juízo. Naquele centro, entre Crato, Juazeiro e Barbalha você encontra tudo, até shopping. O importante é que existe uma resistência cultural, a questão mais mitológica do Padre Cícero. A cultura popular ainda é muito forte – a xilogravura, o cordel, a escultura. A simbologia é tão forte que, qualquer candidato a presidência da República, tem que passar obrigatoriamente pelo Cariri. De lá, ele fala para o Nordeste.
PartedessaentrevistafoipublicadanaRevista Gente,doDiáriodoNordeste.
Crônica
Cortesia de um conterrâneo para Xico
Textos: Breno Árleth
Bem ao seu estilo, tomei algumas garrafas de cerveja em um bar de rua da boemia caririense. Escrever sobre Xico Sá à luz de uma ressaca, só não é melhor que ler uma crônica sua embriagado. Algo que já fiz muitas vezes, porque nelas, entre tantos outros porquês, encontro rascunhos da vida de pouca circulação.
Os textos desse filho do país Crato, naturalizado mundano revelam os desejos mais lúbricos da mente de homens e mulheres, dificilmente ditos da boca para fora. Perdoem-me se for falta de bagagem literária, mas desconheço autor para tratar de modo descarado, tão genuinamente sertanejo, as peripécias sexuais de um raparigueiro.
Em “Modos de Macho e Modinhas de Fêmea”, uma de suas estouradas obras, malandramente ele evoca as vitórias e derrotas da educação sentimental do Xico e do homem com e sem “H”, do homem de todas as letras ou daquele que nenhuma interessa possuir, já que essa categorização de nada serve. De qualquer modo, não se engane por essa chamada, caro amigo ou amiga. Marmanjo nenhum possui sentimentos educados. Toda surra do mundo para nós é merecida e pouca. Tem mesmo é que “baixar o sarrafo”. Avante em Sá!
Nesse livro, não há tema proibido a respeito de atividades que fazemos por trás das paredes, da coberta das matas, da lataria do carro ou da proteção do crânio que esconde pensamentos safados. Não são contos eróticos, longe disso. Acham-se nas páginas, práticas corriqueiras de “cabas” e moças com os hormônios abaixo do umbigo à flor da pele. Só um cronista insano – há algum que não o seja? – para falar tão bem da iniciação sexual de uma geração de meninos do semiárido, que ensaiavam as primeiras posições e acertos de velocidade no caule confortável de uma bananeira, cuja folha no mesmo ato excitava tão bem quanto as mãos de donzelas ou donzelos. Doces fantasias da adolescência.
O pincel artístico de Xico pinta de tudo, melhor dizendo, escreve de tudo. Da masturbação, vulgo punheta, aos desgostos futebolísticos ele representa. Fértil é o imaginário erótico do autor, boas indicações daquele do resto da população. Mas não apenas sobre esse conteúdo sua obra se detém. Existem mais putarias da vida abraçadas em seus escritos.
A maior delas, sempre presente, não em “Modinhas”, mas nas inúmeras crônicas de outros livros, jornais e revistas, costurando os assuntos diversos contados por ele, é a política. Não pense que menosprezo essa matéria ao classificá-la como putaria. Se possível, compreendam essa palavra no mais nobre e necessário emprego que possam lhe dar.
O traço de Francisco Reginaldo de Sá Menezes, nome de batismo do nosso autor, é admirável ao tecer comentários, questionamentos e teses sobre política. Carregado de intenções, com frequência Xico nos
apresenta os escassos orgulhos políticos do Planalto de outrora e as incontáveis desgraças do atual, no clássico estilo “de quem não quer nada”.
Digo-lhes como: Ele fala do clássico paulista de futebol e dos erros da arbitragem; fala da conversa que teve com sua mãe por telefone, contando-lhe boas novas desses lados da Chapada do Araripe; fala saudoso da puta que seus tios pagaram para tirar-lhe a virgindade em um cabaré do Crato, quando ainda era garoto; fala do cheiro e do sabor do pequi na comida; e no meio disso tudo bombardeia um governante ou aquele grupo deles, meio batido, o tal partido político.
Assim, sem pressa ele vai organizando e hierarquizando os elementos que tanto enriquecem sua crônica. Usa e abusa das figuras de linguagem, das canções e dos cantores que tanto mexem com o imaginário e o coração brasileiro. Solidarizando-se a maior parte da gente, recorda com nostalgia a vida dos muitos rapazes latino-americanos, sem dinheiro no banco tentando viver pelos Brasis afora e a dentro. Memorável Belchior. A crônica de Xico é íntima do leitor. Traz as situações cotidianas do brasileiro mais lascado e do canarinho do bolso mais bem costurado. Seu texto tem equilíbrio, referência e base real daquilo que passa diante dos olhos dos homens e mulheres desse lado da linha do Equador. Há originalidade, meto a mão no fogo. Duas características de Xico, gosto de apresentar a todos que eu falo sobre ele. A primeira é o seu rico vocabulário “cearensês”. Do Crato, ele partiu ainda rapazote, graduou-se em Jornalismo em Recife, lugar onde começou a construir sua carreira renomada como jornalista e escritor. Tornou-se colunista de grandes jornais e de TV, a fama chegou e fez morada, mas jamais abandou as gírias e palavras, sabiamente faladas no Ceará. Às vezes, penso que ele dorme agarrado com nosso autêntico dicionário.
A segunda característica é um presente aos conterrâneos. Estrategista na arte de escrever, esse caririense é memória viva da sua terra. Se há alguém que defende e valorize a cultura do Cariri, certamente é Xico. Ele eterniza a região ao lembrar regularmente das suas aventuras, amores e eventos daqui, como o Pau da Bandeira da Festa de Santo Antônio, em Barbalha.
Não por acaso é o Cariri cenário do seu mais importante romance “Big Jato”, também levado às telas do cinema com nome homônimo. A obra é, praticamente, uma autobiografia do autor. Narra a sua infância na região, as influências, as paixões e os conflitos com o pai, com quem trabalhava no caminhão limpa fossas que intitulou seu livro.
Autor de muitas outras obras e centenas de crônicas e poesias, Xico Sá escreve sobre a vida, a sua e a dos ou-
tros, com a dedicação necessária ao ofício de um cronista. Trabalho por demais sentimental, pois de tanto escrevermos sobre tudo, absorvemos enorme totalidade das coisas, que ora nos fazem bem, ora nos fazem mal.
Uma verdadeira devoção às palavras ele tem, e, quando não a possui, usa a melhor expressão do mundo para responder a qualquer provocação: “Aí dentro!”
E é com essa frase que finalizo minha cortesia a Xico, assim sem eira nem beira, deixando a sensação que algo mais teria. E tem, mas você terá de ler os rascunhos de vida desse cearense arretado.