#8 Revista Memórias Kariri

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Assaré prédios contam a história

Edição n º 8Ano 5

Expediente

Edição 8

Juazeiro do Norte, junho de 2022

Repórteres: Aline Fiuza

Amanda Nobre

Guilherme Figueiredo

Ribamar Oliveira

Sarah Frutuoso

Wesley Vasconcelos

Colaboração: Bianca Fiuza

Charles Costa

David Júnior

Francisca Alves

Jurani Clementino

Luciano Cesário

Luis Alves de Sousa

Rauan Leite

Socorro leite

Qual é a cara do Cariri? Mestre

responder essa questão você pode pensar em figuras famosas como Padre Cícero ou Patativa do Assaré. Porém, me refiro ao cotidiano, àqueles que ocupam romarias, feiras livres e salas de aula. Não há como negar a importância dessas personalidades para a construção da identidade do Cariri. Na oitava edição da Revista Memórias Kariri fazemos um passeio por esses lugares e encontramos pessoas que construíram e constroem o cenário do Cariri cearense.

Em Brejo Santo, a repórter Sarah Frutuoso conta a história do Mestre Elias Rosinha, artista que carrega consigo a tradição familiar da banda cabaçal. Do pife ao forró, viajamos até Várzea Alegre para conhecer a história por trás da música “Os Contrastes de Várzea Alegre”. A repórter Aline Fiuza destaca a canção que ganhou repercussão nacional na voz de Luiz Gonzaga, contando de maneira curiosa e engraçada os causos da cidade. O jornalista Ribamar Oliveira nos convida a conhecer outro mestre, Françuli, um verdadeiro inventor do sertão. De maneira criativa, fabricou uma ferramenta para tirar água do poço profundo, ajudando muita gente na seca da década de 1980.

Ilustração e colagem digital: Abner Frutuoso

Clarice França

Sarah Frutuoso

Capa: Charles Costa

Revisão: Aline Fiuza

José Anderson Sandes

Projeto gráfico e diagramação: Paulo Anaximandro Tavares

Professor Orientador: José Anderson Sandes

Revista experimental do projeto Memórias Kariri, vinculado à Pró-Reitoria de Cultura e à Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Cariri

Partindo para Tarrafas, o repórter Wesley Vasconcelos nos leva a conhecer a vida da educadora Maria Luiza Leite, que lutou contra opressões políticas e revolucionou a educação do município. Já em Juazeiro do Norte, o repórter Guilherme Carvalho entrevista o mestre relojoeiro Geraldo Ramos, que movido pelo chamado de Padre Cícero, abandonou a Força Aérea Brasileira e dedicou-se à arte. Assim como as pessoas podem contar a história de um local, o inverso pode acontecer e em Assaré, eu apresento sete prédios que resistem apesar do tempo, guardando um pedacinho da história em cada tijolo.

Indo novamente à Tarrafas, conhecemos a história de uma praça que mudou de função diversas vezes. A praça da matriz de Tarrafas já foi oratório, capela e até cemitério. O repórter Wesley Vasconcelos conta como aconteceram diversas disputas políticas e movimentos religiosos. No Cariri, não poderia faltar fé. Para finalizar essa edição, a repórter Thais Cândido traz um ensaio repleto de devoção sobre a romaria de Nossa Senhora das Dores, em Juazeiro do Norte.

As singularidades aqui retratadas ajudam a compor a identidade dessa região tão rica, criativa e plural que é o Cariri. Te proponho a mergulhar nessas narrativas nas próximas páginas. Boa Leitura!

Amanda Nobre

Para
Elias Rosinha, do roçado ao pife Os Contrastes de Várzea Alegre Mestre Françuli quer voar A Professora de Tarrafas Nas engrenagens do tempo Assaré As mil vidas de uma praça Romaria 12 20 66 12 20 26 42 50 58 66 04
Mestre Elias e sua esposa Inês na sala de sua casa durante a entrevista 4
Kariri
roçado
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Memórias
Mestre Elias Rosinha, do
ao pife

MESTRE ELIAS

Sem telefone ou radar, Mestre Elias Rosinha, 80 anos, natural de Brejo Santo é um dos ícones da cidade. Sua história de peregrinação e arte inspiram os que acreditam na cultura da sua terra. Histórias se cruzam entre os acordes dos instrumentos. Ali mora a memória. Foi na Vila São Sebastião, zona rural de Brejo Santo, que encontramos o artista, antes era peregrino. Para ouvir de perto a história desse personagem tão importante que enriquece os livros de história de Brejo Santo, com talento, carisma e música. Vamos abrir a linha do tempo e conhecer os caminhos do Mestre Elias Rosinha.

Texto: Sarah Frutuoso

Fotos: Adeilton Frutuoso

Em 18 de setembro de 1941, nascia Elias do Nascimento Rosinha na cidade de Brejo Santo, um menino destinado a perambular pelos sítios e pelas praças com seu talento e sua arte. Os pais de Elias sempre trabalharam no roçado, na arte de construir histórias e de criar os 14 filhos. Quando Elias ainda estava nos cueiros (recém-nascido), seus pais se mudaram para Mauriti e ali começa uma grande aventura e vida de peregrinação entre muitas cidades. Como os pais dependiam da ação da natureza para garantir a renda, era comum entre eles se mudarem frequentemente em busca de solos férteis. A família passou dois anos na cidade de Mauriti, de sítio em sítio, em busca de terras melhores para plantar. O pequeno menino sempre ajudou seus pais no roçado, e essa viria a ser sua profissão até sua aposentadoria.

O pai de Elias, José Raimundo do Nascimento Rosinha, mais conhecido como Zé Rosinha, já tocava em bandas cabaçais influenciado pelo pai, que contava aos filhos e netos a origem das bandas cabaçais e os inspirava a continuar levando essa tradição. Elias diz com o peito cheio: “Meu pai era do roçado e do Pife”.

Zé Rosinha tocava pífaro e para acompanhar o pai, Elias também aprendeu a zelar pelo instrumento desde cedo. Em 1957, aos 16 anos, Elias Rosinha tocou pela primeira vez com a banda que era formada por ele, alguns irmãos e o pai.

As primeiras tocadas foram nas terras de seu tio materno, Livino Ricarte, que tinha um bar onde guardava os instrumentos e, assim, as apresentações eram realizadas em família.

Quase sem inverno, em 1958, a cidade de Brejo Santo enfrentou uma terrível seca, e como os pais de Elias dependiam dos períodos chuvosos para garantir a alimentação da família, começaram a se preocupar. Colheram apenas feijão e milho, mas perderam o arroz. “Como é que eu vou passar essa seca toda, como eu vou sustentar os meus filhos?”, perguntava Zé Rosinha. A família se mudou para a Bahia em busca de terras melhores. Elias, seus pais e seus 13 irmãos partiram para Feira de Santana na tentativa de fugir da seca.

Andando pela estrada pedindo carona para desconhecidos se depararam com um feirante chamado Pedro Margarino. Ele advertiu a família sobre Feira de Santana ser uma cidade violenta e os convenceu a ir com ele para Euclides da Cunha - BA, lá teriam casa e terra para trabalhar. Com fé, poucas malas e muita coragem foram com Pedro Margarino. Lá, a família conseguiu, por um bom tempo, produzir muito no solo fértil do feirante desconhecido que os acolheu.

O tempo da família em Euclides da Cunha foi produtivo, lá passearam por outros sítios e casas de favor depois de Pedro Margarino. Elias e seus pais não viviam acostumados em lugares fixos,

a vida deles era viajar, plantar em novas terras conhecer novas pessoas enquanto fugiam da seca de sua terra natal. Passaram dois anos em Euclides e decidiram ir para a cidade de Serrinha e ficaram aproximadamente dois anos, quando decidiram finalmente voltar para o Cariri. Com o dinheiro que juntaram durante muitos anos de trabalho, os pais de Elias investiram uma casa própria no sítio Carnaúba, próximo a BR-116, em Brejo Santo sentido a cidade de Milagres.

Depois de quase dez anos perambulando em busca de solos férteis, a família Rosinha não precisava mais se arriscar em longas viagens, eles estavam finalmente em casa. Elias e seus irmãos começaram a criar raízes permanentes. Hoje, o Mestre é um peregrino aposentado, vive enraiza-

minha arte

do na Vila São Sebastião, a 4 km de distância da cidade de Brejo Santo. Sua vida hoje é transformar sua arte em patrimônio e contar as histórias que viveu.

Tesouro Escondido

Entre as viagens e peregrinações pelo Cariri, a banda começou a ser procurada para se apresentar nos mais diversos lugares. Eles já eram conhecidos. E quando momentos especiais estavam para acontecer, muitos perguntavam onde poderiam encontrar a banda dos Irmãos Rosinha. Era preciso procurar por eles, pois a banda não buscava pelos palcos e nunca estava sempre no mesmo lugar, era um tesouro escondido que muitos procuravam.

Os irmãos Rosinha, já casados, começaram a tocar na comunidade Vila São Sebastião. A primeira vez que tocaram além dos quintais da família foi no Sítio Dois Riachos, na festa de consagração do Coração de Jesus. Os festejos

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Memórias Kariri
A minha maior alegria é quando eu estou tocando, primeiro porque eu gosto do meu serviço, eu gosto da
Mestre Elias segurando uma Zabumba artesanal fabricada por ele mesmo

sempre se estendiam após as comemorações, a banda ia pra onde a plateia seguia, na casa de um e de outro os Irmãos Rosinha levavam a carreira assim, entre casas e sítios, esse era o seu palco.

Com pouca organização e sem assessoria, os Irmãos Rosinha tinham uma agenda lotada, sem medir esforços eles tocavam onde o vento levasse e a quem os chamassem.

Longe dos flashes mas perto daqueles em que o coração batia forte como a zabumba, perto da família, que como sempre, foi a nota mais importante da música que tocavam.

O nome da banda veio de sua avó paterna que se chamava Rosa, e seu filho José (Zé, pai de Elias) era sempre chamado pelos conhecidos de “filho de Rosinha” e com o tempo a referenciação foi diminuindo até “Zé Rosinha”. Assim, os filhos de Zé Rosinha carregam sua avó em seus nomes.

O resgate

Mestre Elias foi reconhecido como mestre da cultura de Brejo Santo por volta de 2006, o secretário de cultura, David Júnior, não sabe precisar a data. O mestre perdeu o certificado.

Em setembro do ano passado, a Secretaria de Cultura iniciou o resgate da banda cabaçal, confeccionando novos uniformes com as cores da bandeira da cidade e promovendo eventos culturais. “Sentimos a necessidade de resgatar a cultura popular do município, e iniciamos a partir da Banda Cabaçal Irmão Rosinha, uma tradição antiga da nossa gente, e o Mestre Elias é uma representação forte e importante desse fazer”, diz o secretário.

As mãos do mestre não tocavam apenas pife, eram também habilidosas para criar. Quando começou a tocar, aos 17 anos, Elias ainda

não carregava o seu próprio pífaro e então decidiu fazer:

– Eu mesmo fazia o meu com cano de mamona, e da mamona eu mudei pra Taboca (uma espécie de bambu). Às vezes um gomo de taboca não dá, então junta um pedaço no outro, fura para desocupar o meio, faz o buraco do sopro e mais seis buracos para os dedos. Para fazer um pífaro deve ter paciência pois é um processo demorado, mas que no final encanta.

Além dos pífaros, o Mestre também fez a zabumba na qual seu irmão João Rosinha toca:

– Da Timbaúba (árvore) se faz zabumba, que consiste em um trabalho bem maior do que na produção do pífaro. Faz aquela argola e aí cava, assim como quem está fazendo pirão, mas cava até sair fora, cavando e afinando até o casco para ficar da grossura de um dedo, dá um trabalho e ainda fiz umas quatro zabumbas.

Alguns dos irmãos da família Rosinha se envolveram com a música, já outros com o artesa-

mostrar e contar mais histórias. Elias voltou com três peças na mão, a primeira era uma mão com a ponta de um dos dedos quebrada. “Depois de feito, alguma coisa bateu e quebrou, mas se alguém precisar de alguma encomenda eu dou de graça”, disse ele sorrindo. A segunda era um rosto de um homem e a terceira peça era o rosto de uma mulher. Era ele e sua esposa, e como em quase todo tempo Elias disse sorrindo. As peças não estavam finalizadas mas não deixava de ser uma expressão feliz de seu sentimento em arte.

Amor proibido

A mãe de Elias Rosinha sempre foi muito fechada, sofria muito com seus irmãos em casa, isso a oprimiu com o tempo. Ela viu no casamento uma oportunidade para sair de casa. A mãe de Elias se casou para fugir dos seus traumas, essa foi sua única saída.

Quando mais velha e com filhos cultivava um medo dentro de si; o casamento dos filhos. Elias e seus irmãos tiveram de lidar com o trauma da

Eu mesmo fazia o meu com cano de mamona, e da mamona eu mudei pra Taboca (uma espécie de bambu) Às vezes um gomo de taboca não dá, então junta um pedaço no outro, fura para desocupar o meio, faz o buraco do sopro e mais seis buracos para os dedos

nato, como as duas irmãs do Mestre Elias, que fazem peças de decoração tudo feito à mão. E com Elias não foi diferente, suas habilidades de esculpir bonecos em madeira o permite até hoje atender pedidos de artesanato e ainda tocar sua música com muita alegria.

– Eu tenho bastante encomenda, só não me coloquei pra fiz mais porque o tempo era pouco, mas antes eu recebia encomendas pra fazer cabeça, corpo inteiro, às vezes uma perna, um braço, o pessoal encomenda e aí eu faço.

Olhei pela sala em busca das peças que ela havia produzido, meio envergonhado me conta que estava sem muita prática e que as peças que tinha guardado não estavam em boas condições. Mesmo não orgulhoso do resultado dos últimos trabalhos feitos, foi buscar para me

mãe por muitos anos, e assim por medo de magoá-la eles se fecharam para o amor. Elias então vivia na casa dos pais enquanto o amor ainda não lhe era bem-vindo, até que sua irmã mais nova quis quebrar os tabus domésticos de sua mãe e fugiu de casa, a mais corajosa de todos os irmãos fugiu para se casar. A mãe de Elias o chamou para ir em busca da irmã e desfazer os laços matrimoniais pelos quais ela havia fugido. “No querer de mãe, era pra eu ir desmanchar o que estava acontecendo, tirar ela, puxar pelas orelhas e levar pra casa, mas eu não era o pai dela”. Elias decidiu não atender o pedido da mãe pois achava essa atitude errada.

Um tempo depois sua irmã retorna para perto da família, já casada. Elias pensou: “Se minha irmã se casou, agora eu quero ver”. Ele não ia desistir de procurar o seu par, assim como

8 Memórias Kariri MESTRE ELIAS
Mestre Elias segurando Pife (Pífaro) artesanal feito de cano PVC
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MESTRE ELIAS

sua irmã. “Casamento foi feito pra gente mesmo, pro rapaz se casar com uma moça e viver junto”. Elias começou a observar o relacionamento de sua mãe com sua irmã e decidiu ir em busca de um amor e começou a namorar uma moça que morava perto de sua casa: “Eu queria e ela queria, mas a gente não tinha se encontrado ainda na porta pra ficar na calçada”. Um clássico namoro por bilhete.

Sua mãe ainda não aceitava muito bem a ideia. “A senhora está indo contra os filhos”, Elias reclamava. Ela estava querendo interferir no seu relacionamento com a jovem moça. Mas ele não desistiu, falou o que pensava e continuou: “Quando minha mãe viu que minha conversa estava bem desenrolada ela entendeu que eu também queria casar”.

“Não se case assim com qualquer moça”, a mãe de Elias já com a ideia amadurecida o orientou a procurar uma moça entre os parentes em que seu filho pudesse casar sem medo. “Então eu fui parar lá no Sítio São Felipe”, onde ali morava Inês, sua prima materna. Os dois então decidiram casar e viver juntos. Elias e Inês se casaram em 23 de dezembro de 1981, ambos com 40 anos de idade. Viveram na casa dos pais até conseguir uma casa e estão juntos até hoje, acumulando 40 anos de casados.

A história e as aventuras de Mestre Elias Rosinha são muitas. Filho do roçado e do pife, destinado a peregrinar em busca de canto e terra. Seu amor pela arte se resume no que fez e faz até hoje. Sua vida é um livro aberto; medos, histórias, zabumbas e amor verdadeiro compuseram a vida desse grande artista que carrega consigo o legado dos Rosinha e a cultura das bandas cabaçais.

Quando pergunto se Elias se sente realizado por tudo que já viveu, ele responde: “Eu me sinto realizado, não por coisas materiais, de trabalho, mas sim em viver direito. E também na parte espiritual. Para o mestre sua maior alegria é tocar “A minha maior alegria é quando eu estou tocando, primeiro porque eu gosto do meu serviço,

eu gosto da minha arte. E segundo, é saber que quando estou tocando tem gente ali, animada”. A arte de Elias vai além de tocar, suas mãos zelosas que também formam peças artesanais permitem até hoje contar suas histórias e mostrar à comunidade sua música, que para ele, é o maior prazer, nunca vai sem alguém chamar e se chamam é porque apreciam e gostam do que faz.

Uma outra alegria também é uma coisa que vem lá de cima, eu descobri uma fé, descobri a fé verdadeira. Eu realizei coisas que tem muita gente que não acredita, mas foi pura verdade. Quando a gente crê, passa a saber quem é Deus e sabendo quem é Deus fica com ele pois dali em diante fica tudo melhor que antes”.

Durante muitos anos, Mestre Elias Rosinha andou por terras desconhecidas, e assim conheceu o que jamais poderia se não fosse o roçado. Elias tocou em ares quentes e em grandes quintais que não teria tocado se não fosse a cultura do Cabaço. São dons e talentos que levam grandes artistas a mergulharem no desconhecido. A força de quem gosta de viver e vive para proporcionar o sorriso de quem escuta a zabumba e dos pifes que sopram. No artesanato, Elias sente os calos do roçado e com o pife ele sorri com a alegria que é viver a vida.

E uma música que mais lhe marcou para o senhor? Elias se levanta, busca seu violão e começa a cantar:

“Seu tenente quer casamento

Seu tenente quer casar

Seu tenente olha o serviço

Seu tenente olhe lá

Flores brancas casamento

Seu tenente quer casar

Seu tenente olhe o serviço

Seu tenente olhe lá

Menina que o pai é pobre

Mas teus olhos valem muito”

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Pequenas esculturas feitas em madeira por mestre Elias

Os Contrastes de Várzea Alegre

Dos versos do poeta à voz do rei do Baião

Várzea Alegre, município localizado no Cariri cearense, carrega em sua história uma diversidade cultural rica e importante. São poetas, escritores, compositores, cantores, músicos, artesãos, entre outros, que divulgam o nome da cidade Brasil afora com orgulho das suas raízes. E, diante dessa vastidão cultural, o compositor Zé Clementino escreveu a música “Contrastes de Várzea Alegre”, narrando os fatos curiosos da história oral da cidade que foram incorporados pelo povo. Assim, transformou em versos a cultura do município que, em decorrência do sucesso da canção, recebeu o título de Terra dos Contrastes.

Texto: Aline Fiuza

Omunicípio de Várzea Alegre possui uma população estimada em 41.078 habitantes e uma área de 835,71 km². Segundo os relatos históricos, a cidade foi descoberta por exploradores que tinham como destino o Crato. No caminho, eles se depararam com a beleza de um vale verde contemplada com a cantoria dos passarinhos, e logo o batizaram de “Várzea Alegre”. De forma oficial, a cidade surgiu a partir da Lei Provincial nº 1.329, de 10 de outubro de 1870.

A cidade é reconhecida pelo seu valor religioso e cultural. Na religião, o santo padroeiro, São Raimundo Nonato, é o principal nome para os fiéis, que também são devotos de Nossa Senhora das Mercês, co-padroeira, e de Maria de Bil,

santa popular municipal. A festa do padroeiro, realizada no mês de agosto, movimenta a economia local. No âmbito cultural, o destaque é para o carnaval e a Festa de Agosto - parte social das comemorações do padroeiro, que tem participação em média de 15 a 20 mil pessoas. Mas o município também apresenta grupos de quadrilha junina, produção de artesanato, danças folclóricas como bumba meu boi, banda cabaçal, maneiro pau, penitentes e vaquejadas.

Várzea Alegre recebeu inúmeros títulos ao longo da sua história, que formam a identidade local e do seu povo. É a “Terra de Papai Raimundo”, em virtude da doação do terreno para a construção da primeira capela ter sido feita por Raimun-

do Bezerra Duarte, considerado o fundador da cidade e o principal ascendente da família varzealegrense. É a “Terra do Arroz”, por ter sido o primeiro produtor de arroz do estado do Ceará, em 1963. E é a “Terra dos Contrastes”, por ter marcado em sua história situações pitorescas, curiosas e peculiares, sendo esta uma das nomeações mais importantes para a cultura local.

Zé Clementino e sua composição

Os contrastes marcados na história de Várzea Alegre têm sido transmitidos ao longo dos anos através das gerações, principalmente pela oralidade, e ficaram conhecidos nacionalmente por meio de uma composição feita por um dos seus

moradores e divulgada na voz de Luiz Gonzaga. José Clementino do Nascimento (1936-2005), conhecido como Zé Clementino, foi um poeta e compositor varzealegrense responsável pela escrita de diversas músicas, sendo um dos principais difusores da cultura local.

Ele foi responsável por escrever o Hino Oficial de Várzea Alegre, sua composição favorita. Entre músicas gravadas e inéditas, ele deixou mais de 200 composições. Algumas delas foram gravadas por artistas como Luiz Gonzaga, Sirano, Dominguinhos, Trio Nordestino, Diassis Martins, Messias Holanda, entre outros. A parceria com Luiz Gonzaga, entre os anos 60 e 80, renderam músicas de sucesso como “O jumento é nosso

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Ilustração:
Frutuoso. Foto: Secretaria de Cultura Novembro 2021 13
Sarah

irmão”, “Sou do Banco”, “Sertão 70”, “Xeêm” e “Capim Novo” - que foi tema da novela da Rede Globo “Saramandaia”.

Mas, foi a música “Contrastes de Várzea Alegre”, cantada pelo rei do baião, que levou as histórias do município para todo o país. O contato de Zé Clementino com Luiz Gonzaga aconteceu na cidade de Crato, em 1965, quando o cantor encomendou uma letra sobre a moda da época dos homens com cabelos grandes. Assim, Zé Clementino entregou a letra da música “Xote dos Cabeludos”, que foi um grande sucesso, e aproveitou a oportunidade para também apresentar a letra de “Contrastes de Várzea Alegre”.

Em depoimento datado de 29 de junho de 2004, disponível na monografia “Os contrastes de Várzea Alegre: cultura e memória”, escrita por Isabel Alves de Morais, Zé Clementino explica sobre como foi o processo de composição da música que relata os causos da sua cidade natal.

– Eu, sendo um rapaz jovem, já tinha meus sonhos. Sonhos de composições, ficava ouvindo estas contradições interessantes da época e a gente ia arrumando os fatos e dando origem a ‘Contrastes de Várzea Alegre’. A curiosidade pelos contrastes surge na década de 50, quando essas divergências começam a se propagar titulando Várzea Alegre como terra dos contrastes, como: o padre era casado, o juiz era uma mulher, mas tinha também alguns contrastes que precisava a gente dar uma arrumadinha para enfeitar.

E acrescenta como apresentou a letra para o rei do baião:

– Para a gravação por Luiz Gonzaga, ele já havia encomendado a letra da música ‘Xote dos Cabeludos’. Como eu havia também composto ‘Contrastes de Várzea Alegre’, aproveitei a oportunidade do nosso encontro na cidade de Crato, no ano de 1965, e dei a letra para ele cantar, fazendo com que Várzea Alegre fosse propagada além das fronteiras.

O intuito de Zé Clementino com a letra de “Contrastes de Várzea Alegre” foi, certamente, homenagear sua terra e torná-la mais conhecida nacionalmente. E ele conquistou seu objetivo, pois a partir da gravação o município ficou conhecido pelo título da música. Apesar de alguns causos terem um tom de humor, os varzealegrenses nunca se sentiram ofendidos, mas, sim, orgulhosos da sua cultura ser composta por histórias peculiares e únicas.

Desvendando os contrastes

Os contrastes de Várzea Alegre demonstram a cultura e a história de um povo simples e criativo. A própria população propagava os contrastes, com os jornais e as rádios divulgando as histórias e até mesmo criando novas situações engraçadas. Os habitantes de Várzea Alegre incorporaram o nome da cidade ao seu modo de vida e passaram a contar com alegria os causos que envolvem as comunidades ou cidadãos distintos do lugar.

Assim, eles se tornaram uma das nuances da cultura e da identidade dos varzealegrenses, que mantêm preservadas a história, a tradição e os costumes do povo. A música foi um marco na divulgação das riquezas culturais do município, com a letra destacando as singularidades da pequena cidade do interior, inspirado por temas tão pitorescos, revestidos de simbologia e mistério, que despertam a curiosidade popular e o interesse de todos aqueles que se deparam com tanta irreverência e sabedoria.

Zé Clementino explicou a origem e o significado dos contrastes relatados na canção em uma entrevista realizada pela sua sobrinha, Ana Emília, em 2004. “Os contrastes destacam os pontos pitorescos, as coisas engraçadas, enfim, o lado folclórico de Várzea Alegre. Os varzealegrenses fingem-se de matutos, mas na realidade são superinteligentes e criativos, além de alegres e extremamente expansivos. É esse o varzeale-

grense ao qual eu me refiro na música Contrastes de Várzea Alegre”, relata. Ele ainda conta que Luiz Gonzaga alterou palavras que fugiam do contexto a fim de tornar o assunto mais atrativo e bizarro.

A entrevista está registrada no livro “Zé Clementino: O ‘matuto’ que devolveu o trono ao Rei”, de Jurani Clementino. Professor, escritor e jornalista, Jurani destaca a importância de Zé Clementino para a cultura varzealegrense: “Essa música foi responsável por tornar a cidade de Várzea Alegre nacionalmente conhecida. As pessoas da região já sabiam da existência dos contrastes.

Mas, depois que Gonzaga gravou a música, isso tomou outra dimensão. E ele foi julgado por isso. Por tornar a cidade conhecida por causos negativos. Se

você perceber, anos depois, o próprio Zé faz uma espécie de pedido de desculpas, na letra do hino de Várzea Alegre em que diz ‘seus contrastes banais’. Foi uma forma dele dizer que não fez aquilo por mal”.

A curiosidade pelos contrastes surge na década de 50, quando essas divergências começam a se propagar titulando Várzea Alegre como terra dos contrastes

Identidade e tradição

Na cidade, as homenagens para o compositor são muitas. Foi construída uma praça que recebeu o nome “Praça Compositor Zé Clementino”, onde contém o busto com a imagem do artista; há uma rua com o seu nome, situada em frente ao Mercado Público Municipal; e o portal de saída da cidade pela BR-230, em direção ao Cariri, faz uma referência ao compositor, com a mensagem “Várzea Alegre, Terra do compositor Zé Clementino”.

O título de Terra dos Contrastes trouxe notoriedade e identidade para Várzea Alegre e gerou diversas manifestações culturais no município. Assim, os contrastes deixaram de ser encarados apenas como histórias curiosas revestidas de humor para transformar-se em

Foto: Bianca Fiuza 14 Memórias Kariri ZÉ CLEMENTINO
Da esquerda para a direita: Serginho Piau, Patativa do Assaré e Zé Clementino
Ilustração:
Frutuoso. Foto: Bianca Fiuza Novembro 2021 15
Sarah

traço característico e marca identitária do povo varzealegrense.

A cultura, a história e a alegria dessa terra também contrastam com a luta e o sofrimento de um povo que nunca fugiu dos desafios. E, por mais que a várzea que inspirou os primeiros colonizadores e lhe deu o nome já não seja a mesma, pelas agressões e modificações decorrentes do progresso ao longo do tempo, a alegria vislumbrada pelos pioneiros permanece uma marca indelével na memória do povo e seus contrastes são uma das características do que é ser varzealegrense.

Para cada situação narrada na canção há uma explicação e, através da entrevista registrada no livro, os versos podem ser compreendidos. A seguir estão listadas as histórias por trás da letra da canção.

“Eu sou da terra que de Mastruz se faz café” - Na letra original, estava escrito “de manjerioba se faz café”. Manjerioba é uma semente que nascia no mato e que, de tão parecida com o grão do café, era utilizada para substituí-lo. Porém, a palavra manjerioba não se “encaixava” na melodia dos contrastes e, por isso, o autor alterou para mastruz.

“Zé Felipe afamado” - Zé Felipe era um caminhoneiro da cidade que, por viajar por vários estados e por seu carisma, se tornou conhecido entre os moradores e recebeu esse título de “afamado”.

“Onde o bode era marchante / E Jesus foi intimado” - “Bode marchante” se refere ao Sr. Raimundo Bodeiro, que trabalhava como marchante no mercado público da cidade. E “Jesus intimado” era Jesus Clemente, o único fotógrafo da época, que foi intimado pelo delegado da cidade por um motivo considerado fútil.

“Do sabido acabrunhado” - Esta era uma forma de referir-se às características da timidez, da discrição, do bom humor e da inteligência dos varzealegrenses, indicando sua facilidade de interpretar e contar histórias.

“Do calango carcereiro / Meu amigo eu sou da terra / Que o peru foi delegado” - Estes dois contrastes são decorrentes de apelidos relacionados às funções desempenhadas. Calango carcereiro faz referência ao Sr. Manuel Calango, que trabalhava como carcereiro na cadeia públi-

ca do município; Peru delegado refere-se ao Sr. Vicente Peru, apelido de um delegado local.

“Onde o sobrado é nos oitão” - “O sobrado é nos oitão” é resultante do terreno acidentado em que foram edificadas as primeiras casas. Estas, para seu nivelamento, possuem ainda hoje uma fachada fronteiriça normal, enquanto a parte posterior é sempre no primeiro andar.

“Houve três anos de guerra / Não morreu um só cristão” - No ano de 1926 houve um conflito político em que foi travada uma batalha a mão armada. Há comentários de que houve tiros, mas sem o objetivo de atingir as pessoas, e, por isso, ninguém morreu.

“Onde o eleitor amigo pra votar não faz questão / Elegeram pra prefeito / Numa só semana / Quatro nobres cidadãos” - Este contraste refere-se a uma eleição ocorrida em 1958 que, após a apuração, foi declarada a vitória dos candidatos da 1ª chapa (Zé Carvalho e Zé Teixeira). Entre-

Ilustração: Prefeitura de Várzea Alegre 16 ZÉ CLEMENTINO Ilustração: Amanda Nobre Novembro 2021 17

Em Várzea Alegre, foi construída uma praça que recebeu o nome “Praça Compositor Zé Clementino”, onde contém o busto com a imagem do artista

tanto, em seguida, foi constatada fraude, com o desaparecimento de uma urna. Após uma semana, foi realizada uma nova votação, desta vez, apenas com os eleitores da urna desaparecida. O resultado da eleição foi diferente, com a vitória dos candidatos da 2ª chapa (Dr. Dário e Zé de Ginú), que ganharam legalmente e atuaram durante quatro anos.

“Meu amigo em minha terra / Já pegou fogo no gelo / Apagaram com carbureto / Foi o maior desmantelo” - O relato diz respeito a um incidente que aconteceu no bar do Sr. Mário Cassundé, em que uma geladeira, movida a querosene, incendiou de maneira repentina e, para apagar o fogo, a população presente no local utilizou um tamborete, que foi atirado debelando rapidamente o fogo. Luiz Gonzaga propôs a troca da palavra “tamborete” para “carbureto” no intuito de enfatizar a história.

“São Brás lá é São Raimundo / Se festeja com muito zelo” - São Raimundo Nonato foi escolhido

como santo padroeiro da cidade, porém, os fiéis se confundiram e colocaram a imagem de São Brás no altar da primeira capela da cidade (atual Igreja Matriz). A imagem errada permaneceu no local por cerca de 20 anos, até que o Bispo da região, em uma de suas visitas, deu os devidos esclarecimentos.

“O prefeito completava idade / Era de quatro em quatro anos / E nunca penteou o cabelo” - Esse fato trata-se do prefeito Vicente Honório, que nasceu no dia 29 de fevereiro (ano bissexto) e, por isso, só fazia aniversário de quatro em quatro anos. O comentário sobre o cabelo despenteado era em referência ao seu cabelo cacheado.

“Que o padre era casado / Enviuvou duas vezes / E depois foi ordenado / Ainda hoje reza missa / Os filhos já estão criados” - Na época, o Sr. Otávio ingressou no seminário para se tornar padre, porém, desistiu e quando saiu acabou se casando e tendo filhos. Após alguns anos, sua

esposa faleceu e ele casou-se novamente, enviuvando pela segunda vez e, assim, decidindo optar pela Igreja de vez. Para o seu retorno, ele explicou a situação ao Bispo, que autorizou. Ele se ordenou e tornou-se padre da Paróquia de Várzea Alegre até o fim de seus dias.

“O juiz era uma mulher” - A Dra. Auri Moura Costa foi a primeira mulher juíza do Brasil. O fato foi citado como contraste pela raridade na épo-

ca de uma mulher exercer um cargo tradicionalmente ocupado por homens.

“Que o cruzeiro é isolado” - O cruzeiro da Igreja Matriz de Várzea permaneceu por um tempo isolado e não em frente à Igreja, onde deveria estar. Isso aconteceu pelo fato de o cemitério ter sido transferido para outro local, ficando o Cruzeiro como lembrança e permanecendo até hoje intacto.

MAPA DOS CONSTRASTES

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Foto: Bianca Fiuza Memórias Kariri
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Ilustração: Sarah Frutuoso

Mestre Françuli quer voar

Conhecido na cidade de Potengi como o inventor do sertão, Mestre Françuli desde pequeno queria fazer uma história. O que ele não sabia era que essa história já estava escrita e o seu legado na cultura popular começaria do céu. Aos 77 anos, ele continua desenhando modelos de aeronaves e ainda possui um sonho: trabalhar.

Texto: Ribamar Oliveira

Fotos: Augusto Pessoa

MESTRE FRANÇULI

Tudo começou com sim, mas o sonho de Mestre Françuli ganhou forma quando um avião cruzou o céu da roça do seu pai, em meados de 1948, e criou no menino o sonho de voar. O que o pai de Francisco Dias de Oliveira mais escutava do filho, quando estava trabalhando no roçado do sítio Marmeleiro, era que o pequeno inventor queria fazer uma história para deixar na cidade de Potengi. Francisco ainda era pequeno, nem conseguia acertar as sementes nas pequenas covas da terra, mas já parecia saber que entre o difícil e o impossível, ele seria reconhecido como “Mestre Françuli”. “O difícil eu trabalho direito, não é impossível não, pai”, relembra Françuli sobre o que pensava aos 8 anos durante o trabalho debaixo do sol. O menino foi chamado de doido. O pai gostava de prosear nas horas livres e conversava muito com ele. “Eu já nasci doido, mas já tô é bom”, diz. A história do Mestre Françuli começa das brincadeiras com as outras crianças no alto de um pé de Juá. Na volta do caminho da roça, ele observava os pássaros voando e já tinha uma fascinação por tudo que não encostasse os pés no chão.

“Comecei a fazer avião, aí os meninos vinham brincar mais eu e tinha um ‘pézão’ de Juá lá no terreiro. A gente fazia estrada, fazia os ‘avião’, quando era de noite, eles ajudavam a guardar e eu colocava no quarto para brincar no outro dia”, reconta o Mestre. No começo os aviões eram de madeira, quebrava uma asa tinha que fazer outro inteiro. Naquela época, as coisas eram difíceis e nem solda tinha para colar os brinquedos quebrados. Foi voltando de mais um dia de roça, depois do almoço, que Françuli avistou algumas latas de óleo de cozinha no lixo. “Eita, isso vai dar um avião bonito”, pensou. Françuli fez o molde e pegou a lata, mas não soube como iria cortar o material de ferro com a faca artesanal que havia ganhado do compadre Major, que trabalhava na roça com seu pai. Pegar a tesoura da sua mãe escondido talvez fosse mais difícil do que fazer o avião nos flandres. Por isso, Françuli precisou de três dias para pensar como pegaria a tesoura, cortaria a lata e devolveria a ferramenta para uma das gavetas do móvel da cozinha. “Ela tava distraída, fui lá peguei a tesoura, cortei as peças ‘tudinha’, amolei a tesoura e coloquei lá de novo, tinha uma pedra de amolar ferro que era mesmo um esmeril, amolei bem amolfadinha e coloquei na gaveta”, conta.

Pronto, metade do caminho estava andado e o Mestre escapou do que chama de ‘pisa’ que seria dada pela mãe se ela soubesse da artimanha do menino que queria voar. Com o aviãozinho cortado, Françuli modelou, ajeitou e fechou a peça piloto. Estava feio o primeiro avião. Mais tarde, a mãe do Mestre descobriu a terceirização da sua tesoura, mas ficou tão encantada pelo brinquedo inventado por seu filho que permitiu que ele a usasse, porém era preciso uma coisa: entregar a tesoura amolada de volta para a gaveta, pois ela precisava para remendar as roupas da família. “Fiz um bocado logo, caia e não quebrava, amassava, mas não quebrava”, explica o Mestre. Quando perguntado o porquê de aviões, ele justifica e resume no substantivo abstrato “bonito”. A brincadeira no terreiro se tornou um sonho. Não se sabe ao certo em que medida uma coisa passou a ser a outra, já que quando fala dos moldes cortados de aviões Françuli parece brincar com os pensamentos e a imaginação.

Mas, o título de “inventor do sertão” foi adquirido na grande seca que durou três anos, entre as décadas de 1981 e 1983, quando um poço secou e o gado berrava na margem do buraco com sede sem alcançar a água do fundo. Françuli estava trabalhando em seus aviões quando chegou um dos moradores da cidade e disse que estava passando sede olhando para a água. “E eu disse, por que não bebe? Era um poço profundo de até 3 metros, veio a seca e só ficou água nesse poço”, explica o Mestre sobre a necessidade de inventar alguma ferramenta que tirasse a água do fundo. Françuli foi para casa, tomou banho, merendou e deitou. “Comecei a pensar: como vou fazer um balde para puxar água desse poço? Fui e inventei um balde com uma válvula no fundo, passei a noite pensando”, fala o Mestre sobre a ideia que veio às quatro da manhã entre o quarto e a oficina. O processo da invenção durou quase oito horas, às 14h da tarde daquele dia Françuli tirou da cabeça a ideia e materializou o balde com a válvula. O teste foi bem-sucedido, quando o Mestre puxou o balde do fundo, a válvula tampou e a água subiu para matar a sede do povo de Potengi. Para além dos 12 mil réis que o Mestre recebeu, o título de inventor do sertão foi adquirido e daquele molde do balde, ele fez mais seis peças. Durante todo o inverno, depois daquela seca, Françuli recebeu

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Em sua oficina, a ideia alça voo pelo horizonte Memórias Kariri
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MESTRE FRANÇULI

o molde aí vou fazer a peça, colo com solda branca”, explica passo a passo sobre a criação do flandeiro. A casa do Mestre Françuli se torna oficialmente o segundo museu no conceito de orgânico, produzido e curado pelo Sesc Ceará e pela Fundação Casa Grande, em 15 de novembro de 2018. O endereço para correspondência é pronunciável em duas palavras: Beco de Françuli, sem número.

da vizinhança jerimum, melancia e abóbora, tudo colhido com as águas das chuvas no plantio da comunidade.

“Eu já fiz muito, num conto não”, exclama o Mestre sobre a quantidade de aviões que já fez na vida. O maior que fez tinha uma extensão de seis metros, era uma réplica de uma ultraleve feita de cano, “ela ainda correu no chão com motorzinho de cortar mandioca”, diz. Era o ano de 1983, o Mestre ainda levou o modelo para a cidade de Araripe, a obra chamou atenção de curiosos e até hoje ele tem um filme do avião andando com ele dentro. Por 12 anos, ele trabalhou para o Centro de Artesanato do Ceará (CEART) de Fortaleza, todos os meses o Mestre mandava de Nova Olinda uma determinada quantidade de aviões para serem comercializados como brinquedos na capital cearense. A técnica de Françuli de utilizar flandres e zinco se tornou obra exposta em diversos museus. O livro de visitas possui assinaturas de caligrafias alemãs, francesas e peruanas, além de sobrenomes brasileiros de quase todos os estados. Se a cabeça de Françuli por si só já era um museu, a casa dele era o esboço de um rascunho em constante processo. O Mestre sabe que o que importa para a obra não é o resultado final, mas sim a processualidade de cada técnica. “Primeiro faz os ferros, depois faço

Mestre Françuli teve o nome publicado no Diário Oficial do Estado do Ceará no título de Mestre em Artesanato em Flandres no dia 23 de outubro de 2015. “Eu fiquei muito alegre e cheguei em casa pensando: Deus é muito poderoso!”, destaca um trecho da fala de Françuli na página 148 do “Livro dos Mestres”, organizado pela jornalista Dora Freiras e pela historiadora Sílvia Furtado e publicado em 2017 pela Fundação Waldemar Alcântara. Desde o dia que avistou o avião, Françuli só voou quase quarenta anos depois. Aos 35 anos, quando entrou em um avião para Belém, Pará, com uma passagem que recebeu de presente de um amigo jurista chamado de Salomé. Pai de quatro filhos, ele se divide entre Potengi e o Crato. Françuli é viúvo e conta que a sua esposa gostava muito das suas invenções, ela ajudava nas oficinas entregando a ele a “boia”, se refere o Mestre sobre a marmita entregue após o trabalho. O Mestre Françuli ainda tem um sonho: trabalhar. Apesar de estar fazendo fitoterapia para um problema no pé, ele diz com a sobriedade de quem nunca teve os pés no chão que está mais sadio do que os vinte anos.

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Os aviões de Françuli são memórias com asas Memórias Kariri
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Mestre Françuli fala de cada projeto como se fosse o primeiro

A Professora de Tarrafas

Em uma Tarrafas iniciante, marcada pelo atraso, a estrela da educação brilhou em sua primeira revolução. Desde cedo sonhou com a docência, brincou tanto de ensinar, que acabou ensinando de verdade. Com uma pedagogia quase freireana, tom conciliador e compreensivo, Tarrafas teve sua professora preparando o distrito para ser emancipado. A cidade marcada pela educação, foi um distrito marcado por sua educadora.

Texto: Wesley Vasconcelos
26 Foto: Acervo pessoal de Socorro Leite 27

o sul do Ceará, na região do Cariri, mais especificamente em Assaré, havia um distrito que hoje é cidade. Nas casas que lá existiam, um jovem casal vivia os primeiros anos de seu casamento. Moacir e Maria eram primos, e passaram a morar na Boa Vista, a casa onde Maria passou a infância e haveria de morar até... enfim, não vou começar a contar esta história já antecipando coisas que só vão acontecer lá na frente, né?

Bem, mas não é sobre esse casal que essa história se concentra, a Maria que citei, não é a mesma Maria que dá nome a este texto.

Moacir e Maria são muito importantes, isso é inegável a todas as fontes com quem conversei, também foram pessoas que ainda hoje são extremamente queridas.

Mas essa história não é sobre eles. Vamos falar sobre sua primogênita. O ano era 1942. Aos 45 do segundo tempo, quando o mês de agosto estava quase dando lugar para setembro chegar, nasce nossa estrela: Maria Luiza Leite.

Nossa personagem teve mais quatro irmãos: Zezito, Socorro, Jesus e Junior. Acho importante falar brevemente sobre esse quarteto.

Zezito, ou Pretinho, como era conhecido, tinha uma deficiência cognitiva, então nunca estudou. Mas tinha um talento ímpar para a música, e rapidamente aprendia a tocar os instrumentos que tinha acesso.

Socorro, ou Socorrinha, foi professora, e durante o ano de 1970 foi radialista esportiva na antiga rádio Araripe. A primeira radialista esportiva do interior do Ceará.

Jesus é um faz tudo, formado em Direito, Comunicação e Letras, é jornalista e historiador, também foi professor, vereador, vice-prefeito, secretário de cultura e um dos responsáveis pela emancipação de Tarrafas.

Junior, o caçula, formou-se em agronomia e matemática, foi professor, agrônomo e político, e contra a ordem da natureza, mas seguindo as reviravoltas da vida, partiu cedo.

Uma família quase toda composta de professores.

Não precisaria ter falado um pouco sobre cada um dos irmãos de Maria Luiza, mas na verdade, precisava sim. Convivi com quase todos da prole de Moacir e Maria, principalmente com Socorrinha, que foi o anjo que me acolheu. Inclusive são meus primos, assim como todas as pessoas que foram entrevistadas, todo mundo é parente em Tarrafas.

Enfim, por mais interessante que isso seja, e por mais linhas que possa render, voltemos à primogênita do quinteto.

Maria Luiza foi uma professora de Tarrafas, e talvez eu repita isso porque foi um sonho que ela cultivou desde criança, que realizou logo quando cresceu, e a realização deste sonho tornou possível inspirar outras pessoas a também sonharem.

Ter sonhado sempre em ser professora pode ter servido de inspiração aos seus outros irmãos. Por coincidência do destino, ao procurar a genealogia da família, Jesus descobriu que a família Leite, da qual fazem parte, é a que possui a maior quantidade de educadores, dentre todas as famílias dos países lusófonos, ou seja, falantes da língua portuguesa. A tradição docente atravessando gerações, didática no sangue.

Sentada numa poltrona, na sala de seu apartamento em Juazeiro do Norte, Socorrinha, 73 anos, ao esquadrinhar memórias vividas com a irmã, relembra que “quando Maria Luiza estava estudando o Normal, ela disse que se tivesse nascido em cidade grande ia ser médica, mas não tinha jeito não, a sina dela era ser professo-

ra. Quando criança, ela brincava de alfabetizar a gente, brincou tanto de ensinar, que acabou ensinando de verdade. Nossa alfabetização começou com a Biliu”, recorda, trazendo à tona o apelido de infância da irmã.

Maria, a mãe, que foi aluna de Emília Ferreira, a primeira professora de Tarrafas, era quem dava os primeiros passos para alfabetizar os filhos. Maria Luiza, a primeira a ir para a escola, quando brincava de ser professora, ajudava no processo, ensinando o que aprendia na escola e alfabetizando irmãos e primos.

Falando nisso, é importante contextualizar a situação educacional de Tarrafas naquela época.

Tarrafas não tinha escola. Até 1935, o mais perto de professora que se tinha era uma mulher chamada Sifronia, que havia sido alfabetizada em Saboeiro, e trabalhava ensinando o básico que sabia. Mas não ensinava no distrito, porque não havia interesse de contratar uma professora, então montava num burro, e ia a galope até Campos Sales, onde passava 15 dias, e depois ia até um povoado próximo de Iguatu, onde passava outra quinzena. Em Tarrafas, ensinava aos sobrinhos e primos, fazendo o que podia, iniciando-os nos primeiros passos da alfabetização.

Em 1935, tivemos um avanço. Aos dezoito anos, Dona Emília chega em Tarrafas, vinda de Assa-

Como não havia escola, ensinava no pátio da casa da Boa Vista, às vezes em salões emprestados

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Foto: Acervo pessoal de Socorro Leite
1943 28
MARIA LUIZA
Maria Luiza com um ano de idade. Fotografia datada de
Memórias Kariri
Foto: Acervo pessoal de Socorro
Leite
Casa da Boa Vista, local de nascimento de Maria Luiza e também onde funcionou a Escola Isolada de Tarrafas
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ré. Nora de José Cândido, um rico fazendeiro e primeiro delegado civil de Tarrafas, ela ensinava num salão, localizado onde hoje fica o centro da cidade. Emília Ferreira foi a primeira iniciativa de educação pública em Tarrafas. Detinha o terceiro ano, o que, na época, era o suficiente para assumir uma sala de aula. Alfabetizando com rigidez, palmatória, cartilhas e com os escassos recursos que conseguia, lá ficou por 15 anos. Quando adoecia, ou tinha filhos, ou quando a demanda de alunos era grande, era substituída ou auxiliada por outras duas professoras, sua cunhada, Pura Cândido, e Lurdes Moreira, que a acompanharam por muito tempo.

Em 1950, Emília Ferreira foi embora para Iguatu e levou consigo o seu contrato. Ou seja, a vaga de professora, deixando Tarrafas sem educação formal. Depois de sua partida, algumas professoras que haviam sido suas alunas, ou que estudaram fora de Tarrafas, foram fazendo o que podiam. Informalmente, enquanto nada aparecia, para que a educação não parasse por completo. Ensinavam em casa, e os que eram alfabetizados faziam o mesmo e assim se iniciou um processo em cadeia, algo iniciado na época de Sifronia.

Em meados dos anos 50, foi construída uma casa grande, que funcionava como escola. Em um sítio chamado Barra do Urucu, as professoras moravam nas casas e davam aulas, era uma instituição comunitária. Lá, moravam as professoras Antônia Leite, tia de Maria Luiza; Oneida Cândido, filha de dona Emília; Dalcides, dona Nitinha e Conceição Alcântara. Mas o colégio foi desativado alguns anos depois. Por ser afastado do “centro” do distrito, costumava ser frequentado por estudantes que viviam no sítio lá perto. A instituição era mantida precariamente pela prefeitura de Assaré, e muitas vezes as professo-

ras contavam com ajuda das famílias dos alunos para se manterem.

E assim foi a educação em Tarrafas por muito tempo. Caminhando a passos lentos, aos tropeços e sem nenhum amparo governamental. “A educação foi caminhando graças ao esforço de quem não aguentava ver aquele descaso e fazia o que podia com o pouco que tinha”, diz Lila Cândido, 80 anos, outra filha de Emília Ferreira. Ela ainda complementa, dizendo que “naquela época, Maria Luiza ainda era uma mocinha e vinha brincar lá nas férias”.

Panorama feito, sigamos para a história de Maria Luiza.

Maria Luiza foi para Jucás, onde havia colégios e parentes para abrigá-la. Aos cinco anos, iniciou os estudos no Grupo Escolar Nelzinho Leal. Como não tinha como seguir os estudos em Jucás, foi para Tauá, onde morava um primo de seu pai, e lá começou o ginasial no Ginásio Antônio Araripe. No ano seguinte, foi para Iguatu, onde estudou no colégio São José, no qual também funcionava um convento. Lá ela estudou até o segundo ano do Normal.

Nesse meio tempo, voltava para Tarrafas, brincava de professora, e visitava a família sempre que ficava de férias.

Foi também no Iguatu que conheceu o amor. Um rapaz, chamado Antônio Ferreira dos Santos, irmão de uma colega de aula, se encantou logo que a conheceu.

“Ah, meu filho, ali foi ligeiro. No começo de 1962 ele foi lá para a Boa Vista, pedir a papai para namorar com Maria Luiza. No começo de 1962, começaram a namorar e em outubro se casaram”, recorda Socorrinha.

Casada, Maria Luiza Leite, adotou o sobrenome Santos. E, aos 20 anos, interrompeu os estudos para se dedicar à sua nova família. Mas não deixou o sonho de lado. Conseguiu um contrato pela prefeitura de Assaré, e começou a ensinar em Tarrafas. Como não havia escola, ensinava no pátio da casa da Boa Vista, às vezes em salões emprestados.

Esse ambiente foi o mais próximo de uma primeira escola, mais institucionalizada, chamava-se Escola Isolada de Tarrafas. Maria Luiza conseguia livros em Iguatu e assim continuou por al-

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Brincou tanto de ensinar, que acabou ensinando de verdade Socorrinha
Memórias Kariri MARIA LUIZA Fotografia de Maria Luiza na formatura do Ginasial Foto: Acervo pessoal de Socorro Leite

guns anos. As crianças traziam as cadeiras de casa e, ao fim da aula, as levavam de volta. “Era impressionante como ela conseguiu resultados tão bons, mesmo em turmas multisseriadas, ou seja, as que possuíam alunos em diversas séries diferentes na mesma sala e a professora devia acompanhar diversos níveis na mesma turma”, explica Jesus Leite, 67 anos. No período, foi a única professora do distrito.

Em meados de 1963, aconteceu a primeira tentativa de emancipação de Tarrafas. O então deputado estadual Erasmo Rodovalho de Alencar, do Partido Trabalhista Brasileiro - PTB, se aliou com as lideranças da UDN local e conseguiu a emancipação. O feito foi de grande aceitação popular, festejado com unanimidade partidária. “Havia uma história que queriam mudar o nome Tarrafas para Cruzeiro do Norte, ainda bem que não foi adiante, nome feio”, relembra Socorrinha.

O distrito havia se tornado cidade e se organizava para a primeira eleição. O prefeito de Assaré já se movia para eleger um aliado, e assim não perder o controle sobre o antigo domínio. “Lembro de minha mãe ter dito que uma vez o prefeito mandou fechar o lugar onde ela ensinava porque disse que ela ensinava daquele jeito porque queria ser prefeita”, recorda Raquel Leite, 44 anos, filha caçula de Maria Luiza. Quando

não havia lugar para ensinar, sua sala de aula se localizava sob a sombra de um cajueiro.

Mesmo com as dificuldades, nada a havia impedido de seguir realizando seu sonho.

Mas ainda havia muito a fazer.

Em 1964, aconteceram as primeiras eleições, Tarrafas elegeria o primeiro prefeito. Mas a alegria iria durar pouco.

Neste mesmo ano, instalou-se no Brasil a Ditadura Militar, e com uma canetada de Virgílio Távora a mando de Castello Branco, todos os municípios recentemente emancipados voltaram a ser distritos. A justificativa era que menos municípios seriam mais fáceis de administrar.

Também em 1964, Maria Luiza teve seu primogênito, Manoel Idelano Leite.

Em 1965, resolveu terminar os estudos. O contrato municipal vinha com uma exigência de submissão aos líderes locais, e ela não precisaria se preocupar com isso se conseguisse a cadeira estadual. Com essa conquista, ela conseguiria autonomia.

E foi o que fez. Mas não sem sacrifícios.

Ao chegar em Iguatu, no seu antigo colégio, não foi aceita. O colégio de freiras não aceitava mulheres casadas. Em Iguatu, ela conseguiria voltar para Tarrafas com mais frequência, para

cuidar do filho e seguir os estudos. Mas não foi possível.

Teve que ir para mais longe.

Deixou Idelano com Maria, avó de primeira viagem, e partiu para Fortaleza.

Depois de quatro anos afastada da sala de aula, como aluna, foi mais um desafio. E também mais uma conquista.

No começo de 1966, terminou o Normal.

E na diplomação, foi considerada a mais dedicada de todas as 360 alunas. Como reconhecimento, recebeu das mãos do então governador Virgílio Távora dois prêmios, um em espécie, e um outro, que foi ainda mais valioso.

Conquistou uma cadeira especial, que lhe dava o direito de ensinar em qualquer cidade do território cearense.

Poderia ir para Juazeiro ou Crato, as maiores cidades do Cariri. Ou até mesmo permanecer em Fortaleza, um emprego garantido na capital, com oportunidades de seguir estudando e até mesmo ensinar na universidadeª

Mas seu sonho não era esse. Não sonhava apenas em ser professora.

Seu sonho era ser professora em Tarrafas.

E Tarrafas precisava dela.

E foi assim que teve início a primeira revolução educacional de Tarrafas.

Maria Luiza Leite Santos é a primeira professora filha de Tarrafas com formação.

Foto: Acervo pessoal de Maria de Fátima Leite (Fafá) 32
Maria Luiza (ao centro, de camisa branca e saia preta) com seus alunos. Meados dos anos 60, em Tarrafas
MARIA LUIZA
Foto: Acervo pessoal de Socorro Leite
Maria Luiza e seu marido, Antônio, na formatura do Normal, em Fortaleza, 1965

Retornou para Tarrafas logo após a formatura, em 1966. Ensinou na casa da Boa Vista, em salões emprestados ou em cajueiros, assim como antes. Mas agora não dependia de políticos locais.

Em 1967 teve seu segundo filho, Moacir Leite Neto, como homenagem ao pai de Maria Luiza.

Ensinou no MOBRAL - Movimento Brasileiro de Alfabetização, por um tempo. Mas não se limitou a ele. Tinha uma mente criativa e inquieta, e gostava de utilizar recursos diferentes para ensinar.

Maria Romana, 65 anos, professora aposentada e prima de Maria Luiza, ao falar sobre o MOBRAL, lembra que “todo mês vinha um fiscal do Mobral para assistir às aulas de Maria Luiza, depois passavam horas reunidos numa sala. Acho que por ela ter se formado na capital né, eles deviam ter medo que ela fosse uma ameaça, e ficavam de olho”.

Associava a prática docente à socialização, fazia com que os estudantes pensassem nas próprias realidades e os limites da sala de aula se dissolviam. Trazia saberes externos para as salas de aula, e fazia com que os alunos levassem consigo o que aprenderam nas aulas. A educação transforma, e foi o que ela os ensinou.

“Maria Luiza foi minha professora por muitos anos, era tão gentil, tão doce, tão paciente com os alunos. Não fazia distinção, era rígida sem precisar levantar a voz ou castigar, conversava muito com os alunos. Quando o aluno era danado, ela conversava para entender a realidade dele. Depois disso a danação acabava”, recorda Cristiano Bantim, 67 anos, um ex-aluno que hoje reside no Rio de Janeiro.

Organizava eventos, comemorações de feriados, peças teatrais, realizava formatura. “Os primeiros festejos de dia das mães, dia dos pais, dia do estudante, dia dos professores, foram todos organizados pela Biliu. No Sete de Setembro, ela organizava o desfile e o braço direito dela era o Luizinho, que ajudava demais, ensinava os meninos a marchar, organizava os pelotões... ela dizia que Luizinho enfrentava tudo”, diz Socorrinha. Luizinho, apelido pelo qual Luiz Alves de Sousa, 76 anos, é conhecido, é um ex-aluno de Maria Luiza, foi comerciante e hoje é aposentado.

Maria Luiza também contribuiu para o desenvolvimento do distrito. Como forma de responder

pavimentadas e que chegasse a energia elétrica. Até então a luz era a motor.

Socorrinha relata que “Tarrafas tinha uma professora impecável, mas não tinha escola. Naquele tempo, ter uma professora formada, e principalmente com a dificuldade que ela teve, era uma honra muito grande. E o distrito tinha a melhor dentre 360, não era pouca coisa”. Em seguida, relembra um episódio interessante.

Em 1968, ao final do ano, Maria Luiza organizou uma formatura dos estudantes que estavam concluindo o quinto ano. E o prefeito da época, Raul Onofre (UDN), havia sido convidado. Era um evento grande para o distrito, muita gente viria

à revogação da emancipação, o distrito continuou se comportando e se organizando como uma pequena cidade. A comunidade se ajudava, foi reconhecendo o próprio poder eleitoral e seus moradores foram elegendo mais vereadores, se organizaram para reformar ou construir determinados prédios e assim seguiu. E Maria Luiza, com algumas cartas enviadas ao governo estadual, ajudou a fazer com que ruas fossem

assistir. As eleições voltaram e estavam próximas, seria uma oportunidade perfeita para o povo colocar ele contra a parede, para cobrar por uma escola. Mas quem iria “peitar” Raul Onofre? E logo em público?

E foi aí que Socorrinha entrou em cena. Por escrever e falar bem, e também por ser corajosa e não ter papas na língua, foi escolhida para ser a paraninfa da turma.

Fotos: Acervo pessoal de Claudio Carvalho de Araujo
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Registro de 1976 da passagem de estudantes participantes do projeto Rondon em Tarrafas
MARIA LUIZA
Memórias Kariri Colação de grau de Maria Luiza Leite no curso de ensino superior de licenciatura em Pedagogia
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Foto: Acervo pessoal de Socorro Leite

Chegou o dia e o prefeito não foi, mandou o vice, Paulo Paiva. Socorro lembra que “Paulo era bom, gostava muito de Maria Luiza, mas acabou levando a lapada por Raul”.

Socorrinha discursou por quase meia hora, expôs o descaso com o distrito, acusou o prefeito e demais políticos de só olharem para Tarrafas quando queriam votos, mas só se importavam com o centro de Assaré. Também falou sobre o desrespeito com Maria Luiza, que se formou na capital e tinha que dar aula embaixo de um cajueiro, e outras coisas mais. “Naquele dia eu lavei a alma, a gente tem que cobrar mesmo né? Os políticos se achavam donos dos lugares e do povo, mas são funcionários a serviço da gente, se fosse hoje eu dizia era mais coisas”, relata Socorrinha.

Ao fim do discurso, Paulo se levantou, foi em direção à jovem estudante e a parabenizou. Chamou-a de corajosa por ter dito o que disse, e prometeu que Tarrafas teria sua escola.

No ano seguinte, a construção começou.

E no final deste mesmo ano, 1969, nasceu sua terceira filha. Católica, devota de Nossa Senhora de Fátima, Maria Luiza pediu à santa para que fosse feliz no parto, em agradecimento, batizou a filha em sua homenagem, e assim nasceu Maria de Fátima, a Fafá.

A escola recebeu o nome do pai de Raul Onofre, o ex-prefeito de Assaré Euclides Onofre. Como lá havia duas salas, e a demanda vinha crescendo, Maria Luiza precisava de ajudantes.

Foi nesse período que organizou as Regentes de classe. Es-

colheu algumas alunas, dentre elas, sua prima Maria das Graças, conhecida como Gracinha, que era filha de Antônia, professora mencionada anteriormente; as irmãs Salete e Dalcides, que já ensinavam e eram responsáveis e dedicadas; e também Francisca Rodrigues, que ensinou até pouco tempo atrás. Com as regentes selecionadas, elas se dividiam no ensino e, nas férias, faziam estágios e formações em Barbalha e Crato.

Com a construção da primeira escola, a dinâmica do distrito mudou. E se iniciou um processo onde os pais que moravam em localidades mais distantes, passaram a construir casas em lugares próximos à escola. Enquanto a grande maioria das cidades se organiza ao redor de igrejas, Tarrafas se organizou ao redor de sua primeira escola.

Sua atuação também se dava na igreja, participava de atividades religiosas, o vigário da época, Pe. Agamenon Coelho, tinha um carinho muito especial por ela. Fafá recorda que “sempre que o Pe. Agamenon vinha para Tarrafas, ele se hospedava lá na Boa Vista, porque gostava demais de minha mãe”. Maria Luiza também tinha uma grande quantidade de afilhados, por ser muito querida e ter grande prestígio no município, quase uma autoridade.

Com o passar do tempo, recebeu inúmeros convites para deixar Tarrafas. Propostas de emprego em cidades maiores, a fama da professora alcançou distâncias. Mas ela sempre declinava, dizia que seu sonho era ensinar em Tarrafas e sua terra ainda precisava muito dela.

Tarrafas é o primeiro município cearense a ter um patrono da educação, e o segundo do Brasil. É o único a conceder essa homenagem a uma professora

Sua fama também percorria distâncias dentro do distrito. Luiz Vasconcelos, 60 anos, disse que seu sonho, quando criança, “era ser aluno de dona Maria Luiza. Gostava muito dela e ela era muito querida por meus pais e tios, mas como a gente morava longe da escola, não deu certo”.

No início da década de 70, assumiu mais uma função: recenseadora. Durante semanas, percorreu, a pé e no lombo de um cavalo, toda a extensão do distrito para fazer o recenseamento do IBGE. Debaixo de sol e chuva, foi contando quantas pessoas viviam em Tarrafas, visitou sítios, conheceu e foi conhecida por todas as pessoas que lá viviam. Também foi importante para que percebesse a quantidade de alunos que ainda não tinha acesso à educação. Nesse período, contabilizou 7.058 pessoas residindo no distrito.

Em 1975, veio ao mundo o seu quarto filho, Jáder Ferreira Leite.

Foto: Acervo pessoal de Socorro Leite 36
Maria Luiza em sua casa no Assaré Memórias Kariri Foto: Acervo da página @passadotarrafas no Instagram Fotografia dos estudantes do projeto Rondon e demais lideranças distritais em 1976. Todos posaram em frente ao grupo escolar Euclides Onofre

No ano seguinte, em 1976, Tarrafas foi uma das comunidades assistidas pelo Projeto Rondon. O projeto tinha o objetivo de levar a juventude universitária a conhecer a realidade deste país continental, multicultural e multirracial, e proporcionar aos estudantes universitários a oportunidade de contribuir para o desenvolvimento social e econômico do País. E os estudantes foram para a casa de Maria Luiza.

“Todas as pessoas de fora que vinham para Tarrafas, iam para a casa da Biliu. Deputados, prefeitos, vereadores, padres, bispo, todos chegavam já perguntando ‘onde fica a casa da professora Maria Luiza?’. E com o projeto Rondon não foi diferente”, explica Socorrinha.

“Tenho recordações muito boas desse período. Eu era pequena quando eles vieram. Minha mãe cozinhava para eles e os tratava tão bem que eles passaram a chamá-la de Mãe Luiza. Foi um vínculo muito forte, anos depois, ainda mandavam cartas, nos convidaram para as forma-

turas e choraram demais quando souberam do falecimento de minha mãe”, diz Fafá.

E continuou ensinando e trabalhando pelos tarrafenses. Lurdes Moreira, 92 anos, lembra o quão incentivadora foi Maria Luiza: “meus filhos foram alunos dela. Um deles, Altair, era muito inteligente, e queria ser professor, assim como ela. Um dia, Maria Luiza conversou comigo, disse que ele tinha muito potencial, que eu o incentivasse a estudar porque ele tinha futuro. Ela me deu coragem para enfrentar meu marido e botar meu filho para fazer faculdade. Hoje ele é professor já aposentado, e sempre lembra com muito carinho da mestra. Devo muito a ela, Maria Luiza me deu coragem, e essa coragem mudou o futuro do meu filho”.

Em 1977, depois de muito ser incentivada por amigos e parentes, resolveu fazer faculdade. Para isso, teve que deixar Tarrafas e se mudou para Assaré com a família. Mas não deixou Tarrafas desamparada. “Quando Maria Luiza quis ir

para o Assaré, foi no tempo em que eu me casei, e queria ir para Tarrafas. Aí eu tinha uma cadeira para ensinar no Moacir Mota. Então trocamos, ela foi para o Assaré, e eu para Tarrafas”, recorda Dona Chiquinha, 67 anos. Francisca Alves de Lima Sousa, ou Dona Chiquinha, é uma professora aposentada, assumiu diversos cargos na educação, sua vida foi totalmente dedicada a essa área e ao potencial transformador dela. É nossa Dama da Educação e a responsável pela segunda grande revolução educacional de Tarrafas. Mas essa é outra história.

Então, no ano de 1977, grávida novamente, mudou-se para Assaré. Foi quando nasceu a caçula, Ana Raquel Leite.

E em 1978, prestou vestibular e passou para o curso de pedagogia, na antiga Faculdade de Filosofia do Crato, hoje conhecida como Urca, Universidade Regional do Cariri. Foi um período cheio de percalços. Para ir estudar, às vezes conseguia carona com algum colega que tinha carro, às vezes ia em um ônibus muito precário e às vezes ia com algumas colegas esperar na beira da pista por alguma carona. Chegou a ir para o Crato em cima de um caminhão carregado de algodão. E assim se seguiram os quatro anos,

onde sempre ia quando tinha folga, ou no período das festas da padroeira Nossa Senhora das Angústias, em agosto.

Em 1987, Tarrafas finalmente conquista sua emancipação. Em meados de 1988, aconteceria a primeira eleição e uma das pessoas mais cotadas para se candidatar à prefeitura foi Maria Luiza. “Além de ter sido uma professora ímpar, ela contribuiu para preparar o distrito para ser emancipado, fez com que naquela população marcada pelo atraso, surgisse uma geração socialmente ativa. Nada mais justo do que ser nossa primeira prefeita”, disse Jesus Leite, um dos responsáveis pela emancipação. Mas Antônio foi contra, e Maria Luiza também não quis deixar a sala de aula.

Em 1989, sua filha Fafá se casa e vai morar em São Paulo. “Uma lembrança muito boa que tenho é essa. Porque tinha uns primos que viviam chamando minha mãe para viajar para São Paulo e ela nunca ia, porque tinha medo de avião e não tinha coragem de passar três dias dentro de um ônibus. Aí foi só eu me casar e mudar para lá, que em seis meses ela voou ao meu encontro. Amor de mãe dá tanta força, né?”, recorda.

Ela me deu coragem para enfrentar meu marido e botar meu filho para fazer faculdade. Hoje ele é professor já aposentado, e sempre lembra com muito carinho da mestra. Devo muito a ela, Maria Luiza me deu coragem, e essa coragem mudou o futuro do meu filho

ensinava de manhã e à tarde, e à noite ia para a pista esperar por algum transporte.

Até que finalmente, em 1982, se formou. Seguiu ensinando em Assaré, porque logo depois, os filhos passaram a estudar. Idelano foi para o Crato, cursar Direito. Depois, Moacir foi para Fortaleza, cursar Farmácia e Biomedicina. E a vida seguiu, com Maria Luiza ensinando em Assaré, mas sem esquecer da querida Tarrafas, para

Em 1991, Raquel se muda para o Crato, para estudar e morar com Jáder, que já estava por lá. Em uma de nossas conversas, dona Chiquinha recorda que “na festa de agosto daquele ano, Maria Luiza estava especialmente radiante, sempre simpática e atenciosa com todos, foi em todas as mesas, falou com todo mundo, conversando, abraçando ex-alunos, sempre sorridente. Parecia uma despedida”.

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Parte da família de Maria Luiza. Da esquerda para a direita: Moacir, Zezito, Maria e uma moça que morava com ela, em seguida Maria Luiza e Antônio. As crianças presentes são seus três filhos: Fafá (roupa rosa), Jáder (roupa amarela), e atrás está Moacir (camisa branca)
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MARIA LUIZA

A festa de agosto em Tarrafas é o período de oito a quinze de agosto, quando se comemora o dia de Nossa Senhora das Angústias, padroeira do município. Dois dias depois, faltando 14 dias para os seus 49 anos, Maria Luiza sente uma dor de cabeça forte e vai para o hospital de Assaré. Sente as pernas adormecendo, e a dor de cabeça persistindo. Lá fica durante a noite, sentada, esperando passar.

Ao romper da aurora, ela partiu.

Em 17 de agosto de 1991, aos 48 anos, 11 meses e 17 dias, morreu Maria Luiza Leite Santos. Levada por um aneurisma.

Assim, repentinamente.

Foi uma comoção total. O velório aconteceu no CERU - Centro Educacional Rural, o maior espaço possível para acomodar a quantidade de pessoas que veio se despedir da professora do povo. Nunca viu-se tanta gente aglomerada para dizer adeus a alguém. Foi o maior velório que se tem notícia em toda a história de Tarrafas.

Antes de sua morte, tentaram fazer homenagens à essa que tanto fez pela jovem Tarrafas. Dona Chiquinha, juntamente com Francisca Lédio, ao fundarem o ensino médio no município,

batizaram a escola com o nome de Maria Luiza. “Mas o conselho de educação não reconheceu a escola, e o governo do estado dizia que a demanda era pouca e não compensava, então a escola foi incorporada à que já existia, e que já havia sido batizada com o nome de dona Emília Ferreira”, recorda Chiquinha.

Em seguida, já após seu falecimento, batizaram a principal avenida da cidade com o seu nome. Uma homenagem que ainda hoje permanece. Enquanto cidades batizam avenidas com nomes de políticos, Tarrafas batizou a sua com o nome de uma professora. Mas ainda não era o suficiente. Uma professora merece uma homenagem associada à educação.

E ocorreu a segunda tentativa. Com a chegada de uma escola exclusivamente de ensino médio, da rede estadual, em 2009, novamente tentaram batizá-la com o nome de Maria Luiza, mas não deu certo.

Em meados dos anos 2010, construíram o primeiro Centro de Educação Infantil, que recebeu o nome de Maria Luiza. Mas, pouco tempo depois, uma das professoras que lá ensinavam faleceu tragicamente, o que ocasionou na mudança do nome da escola.

Ao pesquisar sobre a vida dela, sempre a apresentei como a nossa Paulo Freire. Maria Luiza tinha consciência do potencial emancipador da educação. Reconhecia a importância de se pensar a realidade em sala de aula, e de transformá-la com a educação. Certo dia, ao acordar, tive um insight. O Brasil tem seu patrono da educação. Não se pode pensar na educação brasileira sem passar pelas contribuições de Paulo Freire.

Em Tarrafas, acontece o mesmo, não se pode pensar no nosso desenvolvimento educacional sem passar pelas contribuições de Maria Luiza Leite Santos. Conversei com três vereadores com os quais tenho mais proximidade: Sonha Germano e Tonozinho (ambos do PDT) e Lane Arrais (PTB), que gostaram da ideia e se puseram à disposição. Em 11 de novembro de 2021, fui à Câmara de Vereadores defender um projeto de lei que a tornasse Patrona da Educação Tarrafense. Havia um precedente em uma cidade, Recife. Se eles podiam ter um patrono, nós também poderíamos.

Em 25 de novembro o projeto foi aprovado por unanimidade. Sancionado logo depois. Hoje, temos a Lei Municipal N 426/2021, que declara

a professora tarrafense Maria Luiza Leite Patrona da Educação tarrafense. Uma homenagem merecida, 30 anos após seu falecimento.

Esta homenagem garante que seu legado se perpetue na memória desta geração e das próximas que virão. Não cheguei a conhecê-la, nasci quando completavam-se sete anos de sua partida. Mas a memória dessa educadora tem poder transformador, e essa homenagem permite que sua luz continue brilhando pela educação dos tarrafenses.

Tarrafas é o primeiro município cearense a ter um patrono da educação, e o segundo do Brasil. É o único a conceder essa homenagem a uma professora.

E não à uma professora qualquer. Mas à professora de Tarrafas, que desde criança sonhou em ser.

Socorro Braga, sua prima, diz que “só em estar com a gente, ela já agradava. Bastava estar presente”.

Bastava estar presente. E ela está. Maria Luiza, presente!

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Festa de Agosto. Fotografia repleta de figuras de destaque na história do município no âmbito político, cultural, religioso, educacional e militar. Em destaque, Maria Luiza Novembro 2021

Nas engrenagens do tempo

a história do Mestre Geraldo Ramos, o relojoeiro do Cariri

Uma oficina na Avenida Carlos Cruz, em Juazeiro do Norte, guarda o único mestre relojoeiro do Brasil. Com mais de 50 anos dedicados à arte dos relógios, Mestre Geraldo Ramos deu início ao ofício pela devoção ao Padre Cícero. Suas produções podem ser vistas em todo Brasil e constam até no Guinness Book.

Texto: Guilherme Carvalho

Aos 83 anos, Mestre Geraldo Ramos mantém vivo em seu dia a dia o manejo e a arte dos relojoeiros. Natural de Juazeiro do Norte, é o único especialista em relógios de torre no Brasil. Referência no ramo há mais de 50 anos, Geraldo coleciona experiência, também, em sinos de igreja e colunas. Intitulado mestre em 2015 pela Secretaria de Cultura do Ceará, o juazeirense se diz orgulhoso de sua trajetória e contribuição no ofício dos relógios. Porém, não baixa o tom de voz e faz duras críticas à falta de reconhecimento na área.

Geraldo Ramos nasceu na Terra do Padre Cícero em 1938, mas ao completar 18 anos de idade, seguiu rumo à capital Fortaleza. Lá, ingressou na Força Aérea Brasileira (FAB) com planos de seguir carreira militar. Porém, tudo mudou no início da década de 60. Por motivos familiares, retornou ao interior do Ceará e dedicou-se ao ofício de relojoeiro. Aqui chegando, foi convidado pelo Padre Gino Moratelli, da ordem dos Salesianos, para restaurar a antiga fábrica do relojoeiro

Pelúsio Correia Macêdo, responsável pela coluna da hora na Praça Padre Cícero.

O pontapé para a labuta partiu a exemplo de seu pai, que mantinha uma oficina de ferragem no antigo Juazeiro. Entretanto, a imagem e influência do Padre Cícero foram fundamentais para sua especialização em relógios de torre. Segundo ele, seu retorno ao Cariri aconteceu pela sua fé ao Padre Cícero. Mestre Geraldo acredita piamente que recebeu um chamado espiritual do Padim. “Ele que me trouxe para cá, para fazer um relógio para ele”. A tal homenagem pode ser encontrada no relógio da torre da Igreja O Alto da Conceição, na cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Em dedicatória, o juazeirense escreveu: “Homenagem ao Padre Cícero Romão Batista, patriarca da fabricação de relógios e sinos em Juazeiro do Norte”.

Hoje em dia, o relojoeiro passa sua experiência e conhecimento para seus filhos, principalmente para Marcus Freire, que participou dessa entrevista ajudando a esclarecer a narrativa da

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MESTRE GERALDO

vida de seu pai. A oficina, localizada na Avenida Carlos Cruz, em frente à linha do trem, em Juazeiro do Norte, está temporariamente fechada por conta da pandemia da Covid-19. Marcus, inclusive, é o atual responsável, junto ao pai, pela manutenção da coluna da hora da Praça Padre Cícero, de autoria do Mestre Pelúsio, antecessor do Mestre Geraldo Ramos.

Foi por conta da pandemia, também, que a entrevista aconteceu por videochamada, para garantir a saúde de todos os envolvidos.

O senhor é o único mestre brasileiro na fabricação de relógios, colunas e sinos de igreja. Mais de 50 anos de atuação neste ramo, não é?

Mestre Geraldo: Exatamente. Quando só se fabricava relógio na Suíça, que é o berço do relógio, e lá em Nova Iorque, nós aqui fabricávamos há muito tempo. Então, nós somos pioneiros na América Latina na fabricação de sinos e principalmente de relógios de coluna e torre de igreja.

Foto: Acervo pessoal

E como o senhor se aprofundou na prática dos relógios de torre?

Mestre Geraldo: Meu pai era ferreiro, e o ferreiro é como se fosse o ‘ABC’ da mecânica em geral. Tudo começava pelo ferreiro antigamente. O ferreiro era o elemento mais importante. Depois foi aparecendo as oficinas e essas coisas todas. Mas no começo de tudo mesmo, o mais importante era o ferreiro.

Então, foi o pai do senhor que o instruiu a começar a trabalhar com relógios?

Mestre Geraldo: Não, por incrível que pareça, meu pai era ferreiro e nós entramos na arte através dele. Mas essa arte apareceu assim: eu não sou beato, mas eu sou, como se dizª

Marcus Freire: Devoto.

Mestre Geraldo: Isso, devoto do Padre Cícero e eu mantenho o respeito por ele. Eu estava servindo na base aérea, eu queria ser aviador.

Daí ele [Padre Cícero] me trouxe para cá, para

fazer um relógio para ele, e até hoje eu continuo fazendo. Eu fiz uma homenagem, o relógio mais importante que eu tenho. Ele está hoje em Mossoró, na Igreja O Alto da Conceição. Daí eu coloquei assim: ‘Homenagem ao Padre Cícero Romão Batista, patriarca da fabricação de relógios e sinos em Juazeiro do Norte’.

Como foi que se deu a reativação da fábrica de relógios aqui de Juazeiro do Norte?

Mestre Geraldo: Rapaz, eu era menino velho, como se diz, e já era conhecido neste setor, meu pai era ferreiro e nós já tínhamos uma oficina. Daí, um dia o Padre Gino Moratelli chegou e disse: ‘É uma oficina tão bonita e lá tá tudo parado. Vá lá para a gente ver isso’. Daí eu disse: ‘Não, meu pai já tem uma oficina. Pra que isso?’. Mas ele pediu. Daí quando eu cheguei lá, que vi aquela coisa todinha, a oficina parada, deu pena. Daí nós fizemos um contrato. Quando eu estava lá, apareceu um padre lá de Mossoró, no Rio Grande do Norte, para comprar um relógio.

Aí, ele chegou e disse: ‘Rapaz, é aqui a fábrica de relógios de Juazeiro? Quem é que faz?’. ‘Sou eu’, respondi. Ele disse: ‘Já fez quantos?’. Eu disse: ‘Rapaz, já fiz alguns, não me lembro, mas já fiz alguns.’ Mentira! Nunca tinha feito, né? [risos]. Foi feito o contrato, fiz o primeiro relógio e ele está lá em Mossoró, no Rio Grande do Norte, onde coloquei a dedicatória do Padre Cícero.

O senhor trabalhou também no relógio da Praça Padre Cícero?

Mestre Geraldo: Não, é de um antecessor chamado Pelúsio Correio de Macêdo. Eu era

novo ainda e ele tava já nos últimos dias dele. Eu não tinha nem ideia que iria ficar sendo o substituto dele, mas graças a Deus, acho que o Padre Cícero me trouxe para cá. Eu tava na base aérea e queria mesmo era ser aviador. Mas o Padre Cícero me trouxe para cá e já fiz mais de 60 relógios. E agradeço muito a ele.

Marcus Freire: Quem fez esse relógio foi o Mestre Pelúsio. Meu pai assumiu a oficina dele depois que ele morreu. Quando ele faleceu, ficou desativado por um tempo, as coisas ficaram abandonadas, e os padres do Salesianos fizeram o convite para pai arrendar a oficina. No começo, ele ficou um pouco relutante porque ele já tinha a oficina do meu avô. Ele não precisava de outro espaço. Mas eles [padres salesianos] insistiram muito, daí meu pai foi lá e deu uma chance. Quando chegou lá, viu as coisas abandonadas, né? Daí ele pegou restos e outras peças de relógios, começou a estudar e começou a entender o mecanismo. Ele é como um sucessor espiritual

Mestre Geraldo (em pé, com joelho sob a caixa) durante seu tempo de serviço na FAB
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Memórias Kariri
Juazeiro deveria ser conhecida como a capital da fabricação de relógios do nordeste
Marcus Freire e Mestre Geraldo na oficina localizada na Avenida Carlos Cruz Foto: Luciano Cesário / O POVO

MESTRE GERALDO

do Mestre Pelúsio. Ele pegou o conhecimento que ele deixou em relação ao espaço e começou a desenvolver.

Então grande parte disso tudo o senhor aprendeu sozinho, não é? Na prática.

Mestre Geraldo: Exatamente. Para o bom entendedor, meia palavra basta. Chama-se autodidata.

Quantos relógios o senhor fabricou?

Mestre Geraldo: Rapaz, na faixa de 60, que fiz só por minha conta depois que saí no Salesianos. Destes 60, quais são possíveis de ser encontrados na Região do Cariri?

Mestre Geraldo: Aqui na região, eu tenho no Crato, aquele com seis mostradores, que é o primeiro do mundo com seis mostradores. Tá até no Guinness Book. É aquele da Igreja de São Francisco. Tem um em, se não me engano, Jardim. Por aqui, eu tenho bastante, não me recordo agora, mas tenho uns 3 ou 4 aqui na região do Cariri. Tenho um em Crateús, parece, e assim, sucessivamente.

Foi um orgulho

Mestre Geraldo: Mas é claro, rapaz! Quem é que não se orgulha de um título desse, né? Você saber que está representando sua terra e essa coisa toda, pra mim é um prazer e uma honra. Foi um reconhecimento que foi muito bem reconhecido, como se diz.

Marcus Freire: Era uma coisa que, inclusive, meu pai se questionava muito. Ele via que outros tipos de pessoas eram reconhecidas por muito menos, e pessoas que fazem um trabalho tão importante como o dele, que leva a história aqui da região para o Brasil e para o mundo, não tinha esse reconhecimento. Aí isso mudou tudo.

Onde fica a oficina do senhor?

Mestre Geraldo: Fica aqui bem distante da minha casa, meio quarteirão de distância daqui [risos]. Fica na Avenida Carlos Cruz, em Juazeiro.

Ela é aberta ao público?

ele [Padre Cícero] me trouxe para cá, para fazer um relógio para ele, e até hoje eu continuo fazendo

Como é que veio o reconhecimento de mestre pela Secretaria de Cultura do Ceará?

Mestre Geraldo: Rapaz, isso surgiu eventualmente, né? Lá na oficina saiu a conversa, no boca a boca, que a gente fabricava relógio. Daí o pessoal foi lá, me entrevistou e eu contei mais ou menos a história: como foi no começo e essa coisa toda.

Marcus Freire: Inclusive, quando ele recebeu esse título, o pessoal até disse que ele era um mestre peculiar comparado aos outros. Geralmente, os outros mestres trabalham mais com outros tipos de artesanato mais conhecidos, como por exemplo, manipular barro, ou couro, no caso do Espedito Seleiro. Ele já tem essa parte de produzir esse tipo de tecnologia que é tipo um artesão que tem também uma engenharia ali envolvida.

Mestre Geraldo: Agora, eu queria até fazer uma exigência para você. Quero que você procure divulgar isso aqui no Guinness Book para dizer que: Juazeiro, aqui no Ceará, foi a primeira cidade a fabricar relógio em todo Nordeste brasileiro. Antes, só se fabricavam relógios na Suíça e em Nova Iorque, nos Estados Unidos. Então, nós somos os terceiros. E no Brasil, somos os primeiros, somos pioneiros. E o pessoal não sabe. É uma tristeza. Isso aí é obrigação da SECULT, eles deveriam fazer um apanhado do pessoal. Não é que eu queira ser importante, é por conta do pessoal que tem importância, mas fica aí à toa.

Então, apesar do termo de mestre, ainda falta reconhecimento?

Mestre Geraldo: Exatamente, nós somos reconhecidos mais lá fora do que na nossa terra natal, o que é uma tristeza. Isso era para ser matéria de escola: o relógio lá da Igreja de São Francisco, no Crato, está no Guinness Book, e foi feito no Juazeiro, mas não divulgam.

O senhor está com 83 anos e tem mais de 50 anos dedicados a essa arte. Hoje em dia, o senhor ainda trabalha?

Mestre Geraldo: Rapaz, assim, é como bicicleta. Bicicleta, se você parar, cai. Eu tenho que trabalhar. E eu gosto do trabalho, então tenho que trabalhar direito e de fato.

Mestre Geraldo: Por enquanto ela não tá aberta ao público por causa dessa pandemia, né? E aí, também, a gente mudou de local, estamos em um lugarzinho meio apertado. Mas, se precisar de alguém ver, vem aqui em casa e a gente vai lá e mostra tudo direitinho, explica como que é. Dá explicação de como funciona, as máquinas e essas coisas todas. Se não tiver relógio lá, mas instrumentos vai ter. A nossa intenção é essa.

E como é o dia a dia hoje na oficina? Quais as principais demandas que são recebidas?

Marcus Freire: Assim, atualmente ele está mais como um mestre mesmo. Ele hoje aconselha e ensina a mim e a meu irmão mais velho. Quem pega mais pesado hoje em dia somos nós mesmos. Ele está mais nesta função de professor.

Mestre Geraldo: Estou só assessorando [risos].

E como o senhor se sente em ver todo esse ensinamento sendo passado e eternizado para seus filhos?

Mestre Geraldo: Rapaz, eu me sinto, assim, orgulhoso por fazer parte deste setor e saber que eu já tenho seguidores. Quando eu partir lá para o outro lado, alguém vai ficar dando continuidade ao nosso trabalho, que é muito importante para a nossa cidade e nossa região, principalmente a cidade de Juazeiro do Norte, que deveria ser conhecida como a capital da fabricação de relógios. Isso era para fazer parte de livros didáticos do primário até a faculdade. Isso é a história da nossa terra!

Em sua avaliação, qual a importância de um relógio de torre para manter viva a memória de um povo,

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Memórias Kariri
Foto: Acervo pessoal Novembro 2021 47
Mestre Geraldo realizando manutenção na estrutura de um relógio de torre

MESTRE GERALDO

como por exemplo, o relógio da coluna da hora na Praça Padre Cícero?

Mestre Geraldo: É o seguinte: você sabe qual o relógio mais importante do mundo hoje?

Não. Qual é?

Mestre Geraldo: É o Big Ben, em Londres. Ele é um relógio mecânico tal qual esses daqui, ele marca a hora mundial. Então para você ver: o relógio mais importante do mundo é igual a esse que nós temos aqui. Você vê o seguinte: o relógio de torre é tão importante, que você tem um compromisso às 10h, mas no seu dia a dia, você vai lá e esquece. Mas quando o relógio começa a bater, você vai lá e: ‘Eita rapaz, eu tenho aquele negócio’.

Hoje nós vivemos em tempos digitais, onde tudo é mostrado por um tela, até mesmo a hora. Eu, por exemplo, estou usando um relógio digital neste momento. O senhor acredita que essa digitalização de tudo tem algum impacto na arte dos relojoeiros?

Mestre Geraldo: Rapaz, é o seguinte, eu vou fazer uma comparação: é como o cabra ser casado com uma mulher bem bonita, mas ela bota ‘chifre’ nele que só a peste [risos]. O relógio mecânico eu acho que é mais importante que esse, porque ele é o precursor desses aí. Já aconteceu de um padre deixar de comprar um reló-

gio nosso porque era arcaico, não sei o que, foi comprar outro e depois se arrependeu porque deu defeito o digital que ele comprou.

Nesta sua trajetória dedicada à arte dos relógios, o que o senhor mais se orgulha?

Mestre Geraldo: Rapaz, o que mais me orgulho é ter dado prosseguimento a arte que era do meu pai, que tudo começou com ele, ele era ferreiro. Então, o precursor foi meu pai neste negócio de mecânica. E hoje, os relógios que fiz tudim ainda funcionam, e tem muitos deles que eram eletrônicos, não sei o que, que já sumiram, acabaram. E também tá divulgando a nossa terra aqui, Juazeiro, do Ceará, do Padre Cícero, porque, falando de relógio em Juazeiro, vem o que logo à tona? O Padre Cícero, que foi realmente ele que incentivou essa fabricação de relógios. Aí o segundo mais importante é o Pelúsio Correia de Macêdo e acho que o terceiro sou eu, né?

Se o senhor pudesse deixar uma mensagem de alerta ou um chamado para a arte de relógios, qual seria?

Mestre Geraldo: Mensagem para os meus filhos aqui, que, mesmo que eles não fossem sujar a mão de óleo como eu sujei, mas que eles dessem prosseguimento e não deixassem acabar esse negócio. Passar aqui para o meu filho e

depois para os meus netos. Mesmo que ele não ficasse ali, à finco, mas que desse pelo menos uma continuidade.

Daqui a 100 anos, quando alguém lembrar do senhor, o que você deseja que fique de legado?

Mestre Geraldo: Eu quero que fique na memória do povo que foi, depois dos Salesianos, eu fui o cara que deu continuidade a fabricação de relógios aqui, que representa muito bem a nossa terra. Tô passando aqui para o meu filho, e possivelmente para algum neto que se interessar por isso, que é uma coisa histórica. Como eu tô dizendo, deveria ser inserido no jardim da infância até as universidades.

Geraldo Ramos ao lado de uma de suas produções, um grande sino de igreja
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Foto: Acervo pessoal Memórias Kariri Foto: Acervo pessoal Coluna da Hora, na praça Padre Cícero. A manutenção e restauração do equipamento é de responsabilidade de Mestre Geraldo e seus dois filhos

Assaré

Prédios que resistem ao tempo

Já parou para pensar como era sua cidade há 50 anos? Existem mecanismos que nos fazem ativar ou reativar essa memória, como observar prédios e construções antigas. Qual a construção mais antiga do município que você mora? Ela está preservada? Será que continuará de pé para as próximas gerações? O que se pode fazer para preservar esses prédios e/ou as memórias que eles representam? Fiz essas e outras indagações ao observar os prédios de Assaré, sejam eles do século XIX: Igreja Matriz, Casa da Várzea, Girafinha, Memorial, ou do século XX: Câmara Municipal, antiga Prefeitura e Mercado Público. Veja a seguir um pouco da história de cada prédio.

Foto: Divulgação 50 Memórias Kariri Novembro 2021 51
Texto: Amanda Nobre

A Igreja de Nossa Senhora Das Dores está localizada na praça da matriz, no centro de Assaré. É uma construção datada de 1842, embora a paróquia exista desde 1838. A capela foi erguida no topo de uma colina, a fim de que fosse vista por todo o povoado, no ano de 1838, sob administração do Padre José Tavares (1801-1889). Em 1842, a capela já não atendia às demandas do povoado, uma vez que a população havia crescido. Foi então demolida e reconstruída como Igreja Matriz, poucos metros acima da capela original. Ao longo dos anos a Igreja passou por modificações e guarda traços históricos preservados.

As casas que compõem os arredores da Igreja Matriz (o chamado “Quadro da Igreja”) foram simetricamente projetadas pelo Coronel Antônio Mendes Bezerra, assim como as do “Quadro do Comércio”. As construções ao redor da Igreja são datadas do final do século XIX e as próximas ao comércio, datadas do início do século XX. A simetria foi calculada de tal maneira que a distância da ponta da calçada das casas para a praça é a mesma, independentemente de qual lado seja.

Alexandre da Silva Pereira (1749-1843), fundador de Assaré e doador das terras para construção da paróquia, escolheu Nossa Senhora Das Dores como padroeira, pois sua família residia em Portugal numa paróquia de mesmo nome. A devoção e fé à Nossa Senhora das Dores permanece até os dias atuais, sendo a festa da padroeira uma das mais importantes do município. São nove noites de celebração, acompanhadas por bingos, shows, sorteios e comemorações realizadas entre os dias 7 e 15 de setembro, encerrando com uma grande procissão.

Outra tradicional procissão é a de 13 de maio, em alusão à Nossa Senhora de Fátima. A procissão iniciou-se em 1955, a pedido de José Ferreira do Nascimento (1920-2018), um jovem de família humilde e que desejava casar-se com Margarida Arrais do Nascimento (1918-2016), de família rica e influente politicamente no município. A família de Margarida era totalmente contra a união dos dois, mas Zé Ferreira, como era conhecido, fez uma promessa a Nossa Senhora de Fátima e quando foi alcançada, pediu a permissão do Padre Agamenon (1912-1980), pároco da época, para realizar a procissão, realizada até os dias de

hoje. Muitos fiéis, sejam crianças, jovens ou idosos, vestem-se de branco, acendem suas velas e saem em caminhada, alguns até descalços, pelas ruas da cidade. As festas de Nossa Senhora Das Dores e Nossa Senhora de Fátima tem um toque identitário e único do município.

Casarão da Várzea

O Casarão da Várzea foi construído em estilo colonial por um mestre de obras da cidade de Olinda-PE, a mando do Coronel Francisco Gomes Braga, chefe político durante a primeira república (intendente de 1890 a 1892). A construção é datada aproximadamente de 1884, mesmo período da construção de outro famoso casarão, o Memorial Patativa do Assaré. Situado na travessa

paros para não ruir e é utilizado como armazém da família Paiva.

Memorial Patativa do Assaré

O casarão colonial que hoje abriga os pertences do grande poeta Patativa do Assaré, localizado na Rua Coronel Francisco Gomes, n 80, foi construído em 1884, pelo Major Camapum para sua residência. Depois foi sede do sindicato dos trabalhadores rurais, cadeia pública, intendência (ou prefeitura), escola, hotel e até casa de prostituição.

É curioso ressaltar que nesse casarão ocorreu em 25 de outubro de 1966 o suicídio do delegado José Cartaxo Rolim. Por conta desse fato, há

A família de Margarida era totalmente contra a união dos dois, mas Zé Ferreira, como era conhecido, fez uma promessa a Nossa Senhora de Fátima e quando foi alcançada, pediu a permissão do Padre Agamenon (1912-1980), pároco da época, para realizar a procissão, realizada até os dias de hoje

João Pinto, S/N, próximo ao centro da cidade, em uma região alagadiça com muitos aspectos rurais. Mesmo quando há enchentes, a água não chega a subir no imóvel, uma vez que a calçada foi projetada como barreira. Sua arquitetura é um típico casarão sertanejo, estilo colonial, que possui sótão e o caimento do telhado vai diminuindo até chegar à cozinha (último cômodo), a configuração do telhado é de duas águas.

Na época, a autoridade do coronel era soberana. Quando havia alguma confusão na cidade, as pessoas protegidas dele iam para a sua fazenda e ao atravessar a porteira, ninguém ousaria mexer, devido o respeito ao poder do coronel. Há também relatos de que existiam escravos no casarão. Atualmente, o imóvel necessita de re-

quem diga que nesse casarão existem assombrações. Hoje, o espaço se tornou um memorial da vida e obra do poeta Patativa do Assaré. No entanto, quem visita esse espaço duplamente histórico aprende sobre o poeta e também sobre a história do município e a memória que o casarão carrega.

No memorial, encontram-se os pertences de Patativa, aspectos da sua biografia desde o nascimento, além de curiosidades sobre sua vida como poeta, repentista e escritor. Ainda no memorial, encontram-se expostos os troféus, honrarias, homenagens e medalhas. No andar superior, encontra-se um espaço de estudos gratuito para todos que desejem acessar

Igreja Matriz Memorial Mercado Público Antiga Prefeitura Municipal
Infográfico: Joana Edbéria
Casa da Várzea Câmara Municipal
Girafinha Prédio construído no século XIX, mantém aspectos preservados da arquitetura colonial Foto: Rauan Leite

a internet e também uma sala dedicada à religiosidade do poeta, contendo oratórios, terços, rosários e imagens de santos.

Prédio Girafinha

O prédio “Girafinha”, carinhosamente assim apelidado devido ao seu formato comprido e estreito, é um sobrado localizado na mesma rua do Memorial Patativa do Assaré (Coronel Francisco Gomes, n 14). Foi construído em 1877 e pertenceu a Cândida Tavares da Glória, filha do Padre José Tavares Teixeira, primeiro vigário de Assaré. Mas, como assim filha de um padre? É uma longa história. José Tavares Teixeira era estudante de medicina na Bahia, mas a sua mãe decidiu que deveria ser padre, ele obedeceu e mudou-se para Olinda, apesar de estar noivo de uma moça chamada Esmeralda Delfina da Glória. Ordenou-se padre, morava na casa paroquial, a noiva em

HINO DO MUNICÍPIO DE ASSARÉ

Quando havia alguma confusão na cidade, as pessoas protegidas dele iam para a sua fazenda e ao atravessar a porteira, ninguém ousaria mexer, devido o respeito ao poder do coronel

frente, facilitando a continuidade das relações amorosas. Desses relacionamentos nasceram sete filhos: Matildes Delfina da Glória (falecida ainda criança), Rita Tavares da Glória (1840-1880), Joana Delfina da Glória (1845-1878), Maria Tavares da Glória (1846), José Tavares (1847), Ana Tavares da Glória (1849) e Cândida Tavares da Glória. O prédio então foi construído para ser a escola de Cândida, a primeira professora da cidade. Mais tarde, Cândida casou-se com o Coronel Antônio Mendes, figura importante na construção de outros prédios. Em anos mais recentes, o prédio foi restaurante, porém, atualmente encontra-se fechado e com a placa de “aluga-se”.

Mercado Público

O Mercado Público de Assaré, localizado na rua Padre Emílio Cabral, foi construído em 1914, pelo já citado intendente Coronel Antônio Mendes Bezerra.

Letra: João Junqueira e Francisco Palácio Leite

Música: Josino Roberto Lei Municipal 12/2002 05/07/2002

Salve ó dia ditoso e de glória

Em que um povo com amor tão profundo Principia escrever nossa história

Semeando este solo fecundo

REFRÃO:

A tua luz de raios mil

Enche nossa alma de alta fé

Pela grandeza do Brasil

Pelo progresso de Assaré

Retratando o enlace perfeito

Desta terra com sua gente altiva

Entre tantos filhos foi eleito

O poeta maior Patativa

Refrão

Assaré venturoso e brilhante Vibrará nos clarins da Vitória

Ascendendo ligeiro e triunfante

Nos caminhos sublimes da glória

Refrão

Exaltemos povo varonil

Esta terra que sempre será

Filha ilustre do nosso Brasil

E orgulho do nosso Ceará

Refrão

Casarão que abriga os pertences do poeta Patativa do Assaré desde 1999, já funcionou escola, cadeia, sede do sindicato dos trabalhadores rurais, hotel e casa de prostituição O Mercado público municipal é um local em que circulam muitas pessoas, especialmente nas segundas-feiras, dia da tradicional feira da cidade Josino Roberto, compositor do Hino da União Operária Beneficente- UOBA
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Versão original do Hino da União Operária Beneficente

As casas construídas ao redor do Mercado precisavam obedecer o distanciamento e a demarcação estabelecidas pelo coronel, uma vez que os terrenos em volta foram destinados à construção da praça, um dos únicos bairros planejados de Assaré no início do século XX.

No entanto, apenas em 1965 (centenário do município), sob administração de Leovigildo Claraval Catonho, é que foi construída a praça do Mercado Público, junto a ela, um obelisco como marca de 100 anos da cidade. O prédio do Mercado passou por diversas reformas, sendo a última em 1943, que mantém as características até os dias atuais. As feiras livres aconteciam dentro do Mercado Público e na década de 1970 foram construídos boxes para o açougue, restaurantes, cafés e lanches. Com a reforma, as feiras livres passaram a acontecer na praça ao lado do mercado, tradicionalmente às segundas-feiras.

Prefeitura

A primeira sede da Prefeitura era em estilo semelhante ao gótico, localizada na rua Doutor Gentil Braga, n 42, em frente ao Mercado Público. Foi construída em 1941, e abrigou prefeitura, biblioteca, secretaria de educação, dentre outras repartições públicas.

Antes de tornar-se biblioteca, o prédio sofreu modificações, perdendo seu estilo original. Quando sediou a biblioteca pública, em 2007, recebeu o nome de “Biblioteca Pública Municipal Professor Doutor João Bantim de Souza”, em homenagem ao educador que foi, dentre outras coisas, fundador do Ginásio Assareense. Este ginásio, era uma escola particular que funcionou aproximadamente por oito anos, abrangendo as séries de 6 ao 9 ano. Na época, foi uma grande inovação para o município que até então oferecia apenas o fundamental I para seus alunos. Atualmente, o prédio está novamente em reforma. A Prefeitura funciona no antigo hotel municipal.

Câmara Municipal

A atual sede da Câmara Municipal funciona no antigo prédio da União Operária Beneficente (UOBA), construído em 1935 e localizado na esquina da Rua Doutor Paiva com a Rua Euclides Onofre, n 86, foi construída pelo mestre José Pereira da Silva (Zezinho Salvador), o mesmo que fez os acabamentos da Igreja Matriz. A União

O prédio foi modificado ao decorrer do tempo, mas mantém em sua fachada a frase em latim “laboromniavincit”, que significa “o trabalho conquista tudo”

Operária Beneficente foi fundada por Raimundo Mendes Rates. Nesta instituição, funcionavam clubes, em que haviam jogos e “dramas”, espécies de tragédias teatrais, havia também as “tertúlias”, eram reuniões de jovens nos domingos à noite, entre outras atividades. Era mantida com taxas pagas pelos sócios e também com ajuda das autoridades políticas. No dia do trabalho havia uma organização dos membros que se dividiam entre partido azul e partido vermelho para disputar qual “partido” conseguiria angariar mais fundos para contribuir com a União. Raimundo Rates também criou outras associações no município, como é o caso da Sociedade São Vicente de Paulo. Por tais feitos, hoje o prédio da Câmara intitula-se com o seu nome.

O prédio foi modificado ao decorrer do tempo, mas mantém em sua fachada a frase em latim “laboromniavincit”, que significa “o trabalho conquista tudo”. O atual Hino da cidade de Assaré foi inspirado no Hino da UOBA, com algumas modificações. O professor Francisco Palácio Leite, ex-secretário de educação, mesclou a letra do compositor João Junqueira e a melodia de Josino Roberto e deu origem ao hino na forma como conhecemos hoje.

Foto: Rauan Leite
Conhecido como “girafinha” por seu formato estreito e comprido Memórias Kariri
Fotos: IBGE
Antigas fachadas da prefeitura municipal, união operária beneficente e Igreja Matriz, respectivamente

As mil vidas de uma praça

Um lugar que já foi oratório, capela, cemitério, igreja, chafariz e cadeia antes de ser praça. O umbigo político de Tarrafas, que recebeu o nome de Tereza Moreira, a fundadora que talvez não a tenha fundado. É um local repleto de memórias e, ainda hoje, é onde tudo acontece.

Em meio a todas as contradições, encontros, enganos e surpresas, esta é a praça principal de Tarrafas, seja bem-vindo.

Texto: Wesley Vasconcelos

Foto: Acervo pessoal de Socorro Leite

Tarrafas é uma cidade que, pode-se dizer, tem dois umbigos.

Como assim?

Bem, pensando o umbigo como o ponto central, que se relaciona com a vida, com o nascimento . é isso mesmo.

O município de Tarrafas, no Cariri cearense, nasceu (ou se emancipou) duas vezes. Mas é importante uma contextualização.

Em meados do século XVIII, havia uma propriedade chamada Fazenda Aroeiras, que se localizava próxima ao local onde hoje fica a praça principal. Essa fazenda, segundo relatos populares, pertencia a uma senhora de nome Tereza Moreira. E sua casa era um ponto por onde passavam tropeiros e viajantes, a caminho, ou partindo de Crato, Assaré, Jucás e Iguatu.

Atualmente, Tereza Moreira é considerada a fundadora de Tarrafas, a praça principal tem seu nome. Contudo, pesquisas recentes podem sugerir outras interpretações. A história que se tem é que o movimento de tropeiros foi se intensificando, e dona Tereza fez um grande galpão para alojá-los. Em seguida, com um volume maior chegando e alguns gostando do ambiente, passou a distribuir terrenos. Com o tempo, a comunidade foi se formando ao redor.

Certa vez, um rapaz foi pescar no rio Bastiões, e acabou perdendo sua rede de pesca, ou sua Tarrafa. Criou-se um burburinho pelas pessoas da comunidade, que passaram a dirigir-se ao local como “o lugar da tarrafa” até que o lugar acabou recebendo o nome de Tarrafas. Tem mais detalhes, mas, de modo sucinto, essa foi a primeira versão, popularizada principalmente pelos estudos do professor e jornalista Jesus Leite, hoje contando com 67 anos de idade.

Só que novos estudos apareceram.

Em sua monografia, ao estudar as ações praticadas pelo homem no rio Bastiões, a professora e bióloga Gilcarla Lima, 42 anos, descobriu novos fatos que podem fornecer uma nova perspectiva de leitura da história de Tarrafas.

Gilcarla descobriu que a origem de Tarrafas data de meados de 1600. Conseguiu registros históricos datados do início dos anos 1800, que mostravam a existência de um sítio, ou fazenda Tarrafa. O local

aparecia em diversos escritos sobre o rio Bastiões.

Pensando nisso, há um impasse. A primeira versão traz uma cidade surgida em meados dos 1800 e que só veio a receber o nome Tarrafas em um período já próximo aos 1900. Na outra, há registros de antes disso, mostrando a existência de uma fazenda já com o nome Tarrafas.

E o que isso tem a ver com a praça?

Ela leva o nome da fundadora. E se essa Tereza não tiver fundado nada?

“Vejo na história contada sobre Tarrafas uma visão aristocrática muito comum em tempos mais antigos, principalmente no Nordeste, onde era conferido a uma família de renome todos os marcos históricos importantes de um lugar”, explica Gilcarla.

“Imagino que em algum momento deva ter existido uma família Moreira, da qual fazia parte essa senhora, dona Tereza, que tinha alguma propriedade batizada de Aroeira, mas que era vizinha da fazenda Tarrafa, essa sim, contada nos anos da história. Essa senhora deve ter tido posses e isso fez com que a cultura popular da época lhe exaltasse a ponto de que no futuro, seu nome fosse projetado como a fundadora do lugar”, acrescenta.

E o trabalho da história é esse. As leituras do passado são retratos da época nas quais são produzidas, não são, e nem devem ser fixas. É essencial que existam trabalhos de revisionismo, revisitando o passado para pensá-lo e repensá-lo criticamente. A história é um conhecimento construído permanentemente e esse é um exemplo disso. As novas pesquisas mudam alguns pontos e, ao mesmo tempo, trazem novos detalhes que

preenchem lacunas nas eras em que a memória não alcança.

Falei antes de dois umbigos, né? Pois é, o primeiro deles foi a praça. Mas a praça já foi tanta coisa O segundo foi a escola, que, depois do trabalho de alguns professores, mobilizando a população, fez com que a comunidade fosse se desenvolvendo ao redor dela. A primeira escola foi um fator chave para a emancipação definitiva.

Mas este texto se debruça sobre o primeiro umbigo, que foi o centro por um tempo. A praça.

Continuemos, então, com a nossa história.

Maria das Dores Vasconcelos, memorialista tarrafense já falecida, conta em seu caderno de memórias que dona Tereza Moreira era devota

de Nossa Senhora das Dores. Por isso, no local onde hoje fica a praça, ela construiu, em uma pequena parte, uma casinha para colocar a imagem da santa, com o objetivo de funcionar como um oratório. E passou a servir como uma capelinha, pequena, onde as pessoas que lá viviam também frequentavam para rezar.

Pelo fato da vila ser pequena, as pessoas passaram a usar o território próximo à capelinha para enterrar seus mortos.

E foi assim que surgiu o primeiro cemitério.

Aconteceu que, certo dia, já na primeira década do século XX, um jovem casal resolveu noivar. Só se casariam quando o noivo conseguisse uma renda para manter a noiva e a futura família. Ele, chamado José Arrais, seduzido pelo ciclo da bor-

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pessoal de Socorro Leite
Acervo
TARRAFAS
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Procissão de Nossa Senhora das Angústias. Fotografia datada de 15 de agosto de 1965

racha, resolveu que seguiria para o Amazonas, para trabalhar nos seringais.

Era uma época com uma cobertura vacinal praticamente inexistente no interior, o Nordeste ainda não havia sido inventado e a febre amarela, o tifo e demais doenças tropicais levavam muitos jovens esperançosos, como este personagem.

Então, antes de partir, o jovem foi até a capela e pediu à Nossa Senhora das Dores que o ajudasse, mostrando uma outra fonte de renda, para que ele não precisasse ir para longe. Se a

As leituras do passado são retratos da época nas quais são produzidas, não

graça fosse alcançada, ele voltaria para construir uma capela maior no lugar.

Chegando em Fortaleza, quase na hora de pegar o trem, resolveu jogar na Sorte Grande, e acabou ganhando.

Voltou para Tarrafas e investiu quatro contos de réis para construir a capela. Agora de tijolos, não mais de taipa. Em 1911 a capela ficou pronta, construída em cima da antiga e também do antigo cemitério, já desativado. Segundo Jesus Leite, em 1909 foi construído um novo cemitério, que é o utilizado até hoje.

A capela ficou muito bonita, a população era engajada para organizar as festas religiosas, eventos sociais e culturais. Tudo girava ao redor da igreja.

Em 1919, resolveram que era importante comprar uma imagem nova da padroeira, Nossa Senhora das Dores. A que se tinha era a antiga imagem, de madeira, pequena, e que, segundo os relatos, pertencia à dona Tereza Moreira, que já havia falecido na época. Já haviam se organizado para comprar um sino bonito, e a igreja merecia uma imagem nova.

O rapaz da Sorte Grande, inclusive, casou com sua amada e se mudou para Fortaleza. Trouxe ele de novo porque o sortudo vai entrar novamente na história. Os líderes comunitários se organizaram e entraram em contato com Arrais, por carta ou telegrama, as versões variam, pedindo que comprasse uma imagem nova de Nossa Senhora, que a comunidade se organizaria para pagar.

A imagem veio diretamente da Europa, e foi mandada de trem para que fossem buscar em Iguatu, porque era até onde ia a linha ferroviária que partia da capital.

E aí foi uma grande caravana, com pessoas importantes da comunidade: José Cândido, com os irmãos Cícero e Terto, Francisco Alves de Vasconcelos, com o irmão Abel e mais um bocado de pessoas. Foram caminhando até Iguatu. No caminho, encontraram com uma caravana que vinha do distrito de Amaro, que ainda hoje pertence a Assaré. Por coincidência, estavam também em busca de uma imagem que encomendaram, nesse caso, foi a de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.

Juntas, as caravanas chegaram até Iguatu e trouxeram as imagens nos lombos de animais.

A santa chegou em Tarrafas no dia 19 de agosto de 1919.

Agora temos três versões para o que acontece em seguida:

I - Chegaram em Tarrafas, abriram a caixa e perceberam que a santa não era Nossa Senhora das Dores. Foram até o Amaro para trocar, mas a deles havia chegado certa.

II - Abriram a Caixa e estranharam a pose da santa, a expressão e a posição das mãos. Chamaram o padre Emílio Cabral, vigário de Assaré, que confirmou que a santa não era Nossa Senhora das Dores.

III - Chegaram com a santa, colocaram ainda na caixa na igreja e esperaram pela missa. Tarrafas ainda não era distrito, o que só aconteceria no ano seguinte, então o vigário vinha uma vez por mês celebrar na capela. Deixaram então que ele abrisse no dia da missa, quando fosse batizar a estátua em setembro, que era quando se comemoravam os festejos de Nossa Senhora.

Na missa, o padre abriu a caixa e estranhou.

“Essa não é a mãe das Dores!”

O povo ficou chocado, sem saber o que fazer. Então o padre explicou que aquela santa era Nossa Senhora das Angústias, uma santa muito rara, que só tinha conhecimento de uma cidade que a tinha como padroeira, que era Granada, na Espanha.

O padre Emílio também explicou que a santa era muito boa, e aconselhou a comunidade que não ficasse triste, e a aceitasse. Além de tudo, também daria muito trabalho ter que devolver a santa até a Europa. Nossa Senhora também é mãe de Cristo, e a comunidade a aceitou de bom grado depois disso. A partir do ano seguinte, as festas passaram a acontecer entre os dias oito e quinze de agosto.

O largo da igreja era um local onde as pessoas se concentravam para eventos, festivais e brincadeiras. Também era onde aconteciam comícios e alguns movimentos articuladores da primeira emancipação, que aconteceria em 1963, e seria derrubada logo depois.

A igreja ficou de pé por 57 anos. Alguns moradores relembram que, por ter sido construída em cima de um cemitério, em períodos mais quentes subia uma “gordura” dos defuntos que sujava os joelhos de quem se ajoelhava para rezar.

Em períodos de cheia, por se localizar próxima do rio, entrava água na igreja.

E foi esse um dos motivos adotados para que a comunidade se organizasse para construir uma nova igreja, maior, em um lugar mais alto.

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Procissão de Nossa Senhora das Angústias. Fotografia datada de 15 de agosto de 1965 Memórias Kariri Foto: Acervo pessoal de Socorro Leite
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É onde acontecem comícios, festas, leilões e a tradicional seresta da ressaca, que encerra os festejos da padroeira

A obra foi liderada por João Bantim de Vasconcelos, líder comunitário, que, com a ajuda de outros tarrafenses, foram conseguindo recursos para compra de materiais e mão de obra para a construção da igreja.

Em 1968, a nova igreja foi inaugurada. E, nesse mesmo ano, mandaram derrubar a antiga.

No lugar onde ficava a antiga igreja, cavaram um poço e colocaram um chafariz, de modo que as pessoas pudessem ter acesso à água por lá também. E isso aconteceu por volta dos anos 70.

“Mas a água não prestava, meu filho. Era gordurosa, fedorenta, eles não limparam direito o solo, aí subia a gordura dos defuntos. Usamos daquela água por pouco tempo”, recorda Antônia, conhecida como Toinha do Luto, 75 anos.

O chafariz ficava dentro de uma casinha, e esta, muitas vezes, serviu como cadeia.

Na época, não havia policiais no distrito, então a comunidade selecionava uma pessoa para assumir a função de delegado. José Cândido foi o primeiro, e outros como Antônio José dos Santos, e meu avô, Antônio Bantim de Vasconcelos, também assumiram essa função.

“Quando algum homem bebia muito e começava a bagunçar, o delegado trancava ele na casinha até o efeito da cachaça passar”, explica Luiz Vasconcelos, 60 anos.

Com o tempo, desfizeram o chafariz, e por iniciativa do então vereador João Bantim de Vasconcelos, foi iniciada a construção da praça.

O local ainda serviu de ambiente para histórias de visagens e assombrações. “Quando foram cavar os alicerces para fazer a praça, tiraram tanta ossada de gente que chega dá gastura de lembrar. Mas papai uma vez viu na praça o fantasma de um homem que já tinha morrido, e foi um medo tão grande que ele quase caiu quando deu fé que tinha visto o finado”, relata Toinha.

Foi lá também onde colocaram a primeira televisão que chegou no distrito. De modo que as pessoas passaram a frequentar assiduamente para assistir novelas e acompanhar a programação televisiva.

A praça também foi, e ainda é, ponto de encontros, lazer, eventos, feiras de agricultura familiar, cultos evangélicos, eventos católicos e estudantis. É onde acontecem comícios, festas, leilões e a tradicional seresta da ressaca, que encerra os festejos da padroeira.

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Memórias Kariri
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Romaria

Mãe das Dores, Benditos, Bombons e Fé

ARomaria de Nossa Senhora das Dores, em Juazeiro do Norte, é tradição. Os fiéis romeiros se deslocam de suas cidades, em direção ao Juazeiro, para vivenciarem esse momento. Em seus carros, topiques, ônibus, bicicletas ou até mesmo, a pé, eles percorrem esse caminho com fé e devoção.

Em 2019, na Festa e Romaria de Nossa Senhora das Dores, a última que aconteceu de forma totalmente presencial antes da pandemia de coronavírus, a cidade de Juazeiro do Norte foi tomada pelos romeiros e romeiras, que vieram louvar o Padre Cícero Romão Batista e a Mãe das Dores.

Este ensaio mostra um pouco destas expressões de fé, em dois momentos marcantes da cidade: a procissão dos bombons (onde os romeiros ornamentam seus carros, caminhões e topiques e jogam bombons aos juazeirenses, como forma de agradecimento pela acolhida) e também a procissão de Nossa Senhora das Dores, fazendo as ruas da cidade ficarem preenchidas de fé, benditos e romeiros.

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ENSAIO FOTOGRÁFICO Novembro 2021 67
Thaís Cândido Fiéis à espera da passagem do carroandor da Mãe das Dores na romaria de 2019

Altar do santo na janela da casa de devota que aguardava a passagem da Mãe das Dores

Organização das velas na procissão de Nossa Senhora das Dores Dona Severina, romeira da cidade de Gravatá/ PE, agradecendo por mais uma viagem à Juazeiro do Norte Integrante da Irmandade do Santíssimo olhando de forma contemplativa para luminária, na procissão em honra a Nossa Senhora das Dores

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