
11 minute read
Cícero Cícero
A pequena grande arte do ourives
Texto: José Anderson Sandes
Advertisement
Fotos: Caio Botelho e Emanoella Callou
Cícero Bento de Mendonça, 65 anos, Técnico de Laboratório em Joias, do curso de Design da Universidade Federal do Cariri, tem uma trajetória singular. Nasceu em Caririaçu e, ainda adolescente, mudou-se com a família para São Paulo. Lá aprendeu um ofício que o acompanha durante a vida – a ourivesaria. Mas antes trabalhou durante tempos numa fábrica de gesso, esculpindo santos. Ingressou na Marinha aos 18 anos – ofício que lhe deu muita disciplina. Como marinheiro, morou em Santa Catarina e no Rio de Janeiro. Mas cansou-se da disciplina da caserna e, aos 26 anos, depois de ter passando num concurso para seguir carreira na Marinha, largou tudo e voltou para São Paulo. Com irmãos envolvidos já com a ourivesaria, começou a aprender o ofício. Seu primeiro emprego foi como ‘meio oficial de ourives’, profissão que não largou mais. Passou por várias empresas, sempre trabalhando com joias – da matriz ao acabamento da peça. Ficou entre Juazeiro e São Paulo, fazendo uma escala em Macéio. Sempre em busca de novas oportunidades. Essa entrevista foi realizada no laboratório de Design da UFCA, local de trabalho de seu Ciço. Ali ele se sente em casa. Às vezes tímido, outras abrindo um largo sorriso, falou de sua trajetória de vida e da arte moldar metais e pedras preciosas.
O senhor nasceu quando e aonde?
Eu nasci aqui mesmo, na região, em Caririaçu, cidade serrana, em 1951. Mas passei boa parte da minha infância em Juazeiro do Norte. Em 1967, minha família mudou-se para São Paulo. Sim, mas a infância?
Ah, eu passei no sítio, né. Um lugar maravilhoso para se passar a infância. Muitas brincadeiras, pesca no riacho, o Sítio Bananeiras. Era a casa da nossa avó. Quando era época do inverno, a gente ia pra lá. Na época da safra, né. Passava lá um tempo enquanto não tinha aula, era recesso de aula. Quando acabava o recesso, voltava para Juazeiro. Meus pais eram agricultores. Plantavam feijão, milho, fava… uma série de coisas. As terras também naquela época eram ressequidas. Chovia bastante, mas quando parava o inverno, ficava seco. Tinha na época umas feiras que duravam bastantes dias. Começava aqui, em cima, na rua São Pedro e ia até lá, na Matriz. Bom eram os tempos de festa, de romarias. Essas lembranças a gente sempre guarda com a gente.
E em São Paulo?
A gente tinha que ir pra outro lugar para sobreviver. Tinha 15 anos. Foi pai, mãe, a família toda. Já tinha três irmãos lá. Tudo maior de idade que, inclusive, dois são ourives também. Trabalham com joias. Quando cheguei lá já tinha um emprego pra mim. Era fazer imagem de gesso, fazer santo. Era só eu e o dono da firma. Ficava num barracão de fundo de quintal. Aí fui trabalhando, peguei o jeito, a prática do serviço, né. Minha família toda trabalhava. A gente morava no Jardim Brasil, Zona Norte. Lá também continuei a estudar. Era o ginasial. Quando fiz 18 anos surgiu uma oportunidade de entrar na marinha.
Por quê a Marinha?
A Marinha foi quando completei 18 anos, né. Fui servir. Eu ia servir o Exército, mas como eu ouvia falar muitas coisas do Exército, que você sofria demais, aí resolvi entrar na Marinha. Eu prestei um concurso e graças a Deus passei. Era uma turma de 1500 alunos para 64 vagas. Entrei pra Marinha e fui pra Santa Catarina. Era a Escola de Aprendiz de Marinheiro. A gente cui- dava da escola e estudava. Fazia limpeza, cortava grama e também estudava. Toda matéria do Ginásio – matemática, biologia, química, física. Estudava isso tudo. De Santa Catarina, fui para o Rio de Janeiro e embarquei. Fiquei oito meses embarcado. Eu enjoava demais. Mas fui levando a vida nesse navio. Trabalhava na limpeza do navio e de vigia. Era navio de patrulha, de guerra. Foi uma boa experiência. A gente aprende muita coisa. É outro tipo de vida. É meio complicado, sabe. A gente sofre, mas vale a pena. Passei seis anos na Marinha. Aos vinte e seis anos pedi demissão e deixei a Marinha. A gente era novo, né. Se sente muito preso. É um regime militar, né. E eu estava doido para voltar para São Paulo. Eles gostavam muito de mim porque era um excelente marinheiro. Nunca aprontei, né. Quando pedi para sair, meus chefes me deram muito conselho pra ficar, mas eu tava decidido. Queria ficar de jeito nenhum. Voltei pra São Paulo e comecei a trabalhar com imagem de gesso, fazendo santo novamente. Todo o tipo de santo. E como se tornou ourives? com joias – era o modelista, o joalheiro. Um excelente joalheiro, por sinal. Entrei como meio oficial de ourives. Com três meses, já peguei a ficha como profissional de ourives. Comecei a fazer montagem de anéis, laminar, fundição. Você derrete o metal e aí lamina. Vai para a bancada e molda a peça a partir do ouro, da prata e do latão. Algumas vezes, a gente utiliza o cobre também. Como é o processo de criação das jóias?

Eu trabalhava numa oficina em São Paulo para o empresário Adriano Facchini, na época casado com a Luíza Thomé. Eles levaram um brinco lá, para fazer uma cascata de brilhantes. Pense numa dor de cabeça, rapaz

No meu caso – não vou dizer que sou designer - , porque eu não sou formado em design. Fiz um curso no SENAC, mas um curso rápido, não deu para aprender muito coisa, não. Mas eu crio e faço modelagem, a matriz. A matriz, uma peça única, a indústria compra de você e reproduz milhares. Eu fiquei seis meses na H. Stern e apareceu um senhor lá, joalheiro também, que tinha feito um teste em outra empresa – a Brasil Metais -, não existe mais. Ele me incentivou a ir para Brasil Metais, onde ganharia bem mais. Fui e consegui o emprego. Lá fiquei dois anos já como ourives profissional. Fazia as modelagens. Fiz muitos brincos de chapinhas, quando você trabalha com ele – os donos das empresas nunca vão entender se der uma falha no ouro. Ele pode dar uma falha quando você manuseia com ele – lixar, limar, etc -.Então, quando o extravio é grande, né, vamos dizer assim, cinco, seis gramas, aí eles acham que você tá passando a mão, roubando, né.

Por que o senhor retornou para Juazeiro?
Eu fiquei até mais ou menos em 1989 em São Paulo e aconteceu de separar da mulher. Ela não quis ficar com os dois filhos, eu fiquei. Ainda disse que pagava pensão e alugava casa se ela ficasse com os filhos. Ela disse que não, queria viver a vida dela. Era nova também, né. Tinha vinte e seis anos na época que a gente separou. Na época que casei, ela tinha 15 anos; eu vinte e sete. Voltei para Juazeiro com os dois filhos e não deu muito trabalho, não.
E como foi a retomada da vida em Juazeiro?
Em São Paulo, fazia umas peças em casa também para Leda Lagoa, uma designer de jóias. Quando falei que iria mudar para o Ceará, ela me propôs fazer umas peças para ela, quer dizer, ficar trabalhando para ela. A eu fiquei muito bravo com ele, disse umas coisas que não devia. Mas de qualquer maneira a gente acabou ficando bem de novo. Em 1989, o então prefeito Manuel Salviano, amigo de Geraldo Macedo, montou um parque tecnológico em Juazeiro. O Geraldo Macedo foi lá em casa e perguntou pra mim: Ciço, o que você acha que a gente deve montar lá no parque tecnológico? Eu sugeri uma escola de joalheria. Ele perguntou – ‘tu sabe fazer o projeto’. Eu respondi: sei fazer o rascunho e você passa para o papel. Fiz e ele mostrou para o secretário da Indústria e Comércio. Ele aprovou na hora. Fizeram uma reunião no Sebrae e implantaram a escola. Como foi o processo de implantação da escola?
Infelizmente, era transição de governo. Na época, o Tasso Jereissati estava no governo e depois entrou o Ciro Gomes. Tinha uma verba destinada ao parque, uma verba muito boa, que dava para a gente sobreviver. A escola existiu pouco tempo, não chegou a completar um ano. Eu era assessor do diretor do parque e eles estavam me pagando. Fiquei por lá, mas depois eles gente ficava se comunicando pelos correios, pelo Sedex. Ora, foi muito bom para mim. Disse pra mim mesmo – vou adorar porque quando eu chegar lá não vou ter emprego de imediato. Aí comecei a fazer as peças para ela daqui de Juazeiro. O comerciante Geraldo Macedo soube, né, que eu trabalhava com jóias e foi na minha casa. Ele me convidou para trabalhar com ele e me pediu para dispensar a mulher, lá, a Leda Lagoa. Não fiz, pois ela me ajudou e não poderia deixar de trabalhar para ela pelo menos naquele momento. Ele insistiu, disse que montaria uma oficina em sua casa. Bem, resolvi ficar trabalhando para os dois. Mas diante de tanta insistência, acabei por ficar somente com ele. Só que aí o preço que ele me pagava caiu. Aí teve um dia até que
Lá eu ganhava bem razoável, meus oito ou dez salários. Foi em 1991. Voltei para São Paulo e voltei a trabalhar – deixar eu ver onde -, sim numa firma lá, D’Agente, uma firma de jóias. Fazia o mesmo serviço – brincos, pulseiras. Colares. Eles lá tinham designers próprios. O próprio dono fazia, às vezes. Explique o seu processo de trabalho?
A gente elabora a peça. Eles fazem os rascunhos, os rabiscos deles, lá. A gente faz a fundição, derrete o metal, vaza, faz um lingote. A gente usa um motor de suspensão, Depois a gente vai para o laminador – faz o fio ou a chapa. Dali você começa o processo de serragem. Se no caso for chapa, por exemplo, você passa o desenho do papel para a chapa. Depois, recorta, dá o pararam de pagar. Falaram que não dava mais, que a verba tinha sido cortada. O Ciro Gomes tinha cortado e que não ia dar mais para pagar, que a gente tivesse paciência. Eu até tenho paciência, mas meus filhos não têm. Aí combinei com eles: não quero mais, vou para São Paulo, voltar de novo para São Paulo. Por que essa decisão, já que Juazeiro é conhecido também como pólo de jóias? acabamento. Se tiver pedras, a gente faz uma caixinha para pedra. Pedras que compõem o brinco, o anel... eu também sou lapidário. Aí a gente faz a solda, né, Faz a montagem da peça, dá o acabamento, polimento. Aí crava a pedra – se tiver -, se não vai direto para o cliente.

Isso porque quando você fala que trabalhou na H. Stern todo mundo diz, ah o cara é fenomenal, né. Aí a gente sempre encontra um empreguinho bom. Já conhecia bem São Paulo. Olha a gente mora desde 67. Fui pro Rio e passei seis anos, lá; voltei para São Paulo, sempre no mesmo lugar. Em 2004 tava em Presidente Prudente, desempregado, com meu irmão lá. Passei seis meses morando com ele. Aí meu pai, José Bento, e a minha mãe, Balbina, estavam aqui, em Juazeiro, velhinhos né. Minha irmã cuidando deles. Aí falei com meu irmão: Geraldo, eu vou lá para Juazeiro, vou ajudar Rita lá. Aí voltei para cá. E os seus dois filhos?
Lá também fiquei trabalhando para uma velhinha rica, de Brasília. Só que ela era, sabe… era muito segura. Ela é poderosa, sabe, assim de ameaçar. Tanto que quanto falei para ela que ia embora, ela disse, pegando no meu braço: “Não Ciço, o senhor não pode, não...” Não posso? Tô indo! Aí ela me pagou, sabe, mas ficou ainda me devendo mil reais.
E como o senhor descobriu a Universidade Federal do Cariri?
Não foi difícil então arranjar colocação em São Paulo?
Nessa época eles já eram adultos, né. Aí ficaram lá. Já tinham casa. Um trabalha em empresa de limpeza, terceirizado. Trabalhou como motorista na empresa de Hermínio Moraes – na Nitroquímica, né. Fez lá o curso de cargas perigosas. Trabalhou bastante tempo lá. Conseguiu um pezinho de meia lá, um chacrazinha e tem três casas de aluguel. Trabalhei na SemiJoias, trabalhando em casa. Depois fui para Maceió. O meu pai faleceu em 2007, né; minha mãe faleceu em 2011. Fiquei um ano e meio em Maceió trabalhando como ourives.

Eu entrei em 2015, né. Antes de 2015 eu cheguei a prestar um concurso para assistente administrativo. Só que não tinha estudos suficientes para passar. Aí fui eliminado pelo perfil. Eu sou de idade também, né. Aí fiquei esperando. Aí surgiu o concurso de Técnico de Laboratório de Joias. Era a minha área. Agora, é hora de me inscrever. Vim e prestei o concurso. Fiquei em terceiro lugar. Foram aprovados quatro na prova teórica, né. Aí veio a aula prática. Aí consegui passar. Eram onze candidatos.
Como é o seu trabalho no laboratório?
Aqui eu oriento os alunos. A professora dá aula teórica, né, e passa os trabalhos. Eles elaboram o desenho e aí trazem para mim. Trazem todo o tipo de peça. A gente só trabalha com latão. Ouro é muito caro (risos).
Aí a gente faz brincos, anéis, alianças, entendeu? Faz o recorte (solda); depois vem o laminador, a chapa ou o fio, passa o desenho para a chapa e depois faz a montagem. Eles dão o acabamento e o polimento. E está pronto. Para fazer uma peça mais elaborada levamos um dia, às vezes, dois. Depende da dificuldade da peça. Quais os perigos da profissão de ourives?
O perigo é que você trabalha com ácido, com gás e o oxigênio – que não foi ligado ainda -, mas tem esse risco também. Inclusive quando for ligar o oxigênio temos que chamar o corpo de bombeiros para ver se não corremos nenhum risco.

E o senhor tantos anos como ourives, nunca se acidentou?
Não. Grave, não. Sempre tem alguma queimadura, alguma coisa assim. Mas isso quando a gente começa na profissão, né.
Muitas profissões estão mudando com as novas tecnologias. A de ourives corre algum risco?
Olha, tá ameaçada. A matriz, por exemplo, você hoje faz pelo computador. Sai a peça prontinha, já no metal.
Mas aonde fica o artista?
Ah. Você trabalha com o metal, dá forma ao metal. Aí você é artista, singular. Você tá criando uma peça única. Na realidade, você é o artista – criando uma forma, criando um desenho, criando uma peça, né. Qual a peça mais cara que o senhor já fez na sua vida?
Eu trabalhava numa oficina em São Paulo para o Adriano Facchini (empresário), na época casado com a Luíza Thomé (atriz). Eles levaram um brinco lá, para fazer uma cascata de brilhantes. Pense numa dor de cabeça, rapaz. Os brilhantes começavam pequenos e iam até duas argolas, uma dentro da outra. E nessas argolas, você tinha que soldar as argolinhas para pendurar uns chapeuzinhos com brilhantes. Eram de todo o jeito –redondo, oval, gota. Mas ficou lindo, viu.
Quer dizer, requer muito cuidado e também segurança para manusear uma cascata dessa?
É perigoso também. Corre um risco de chegar um bandido e roubar tudo. Isso aconteceu na Finamore, sequencia da Brasil Metais, em São Paulo. Com toda a segurança não tem jeito. Corre o risco de chegar um bandido e até te matar. A Finamore tinha quatro sócios. Foi assaltada e o ladrão matou um dos sócios. O cara deu um tiro na nuca dele. Tem que ter toda a segurança num local desses.
Como o senhor definiria a sua profissão?
Eu acho que é um sonho, cativa você. Uma coisa gratificante. Você gosta daquilo e continua. Foi o que fiz durante a minha vida.
O senhor trabalhou fazendo santos de gesso, mora em Juazeiro… O senhor crê em Padre Cícero?
Gosto, sim. A minha religião é católica, sempre foi a católica. Meus pais sempre foram católicos, né.
O seu maior medo?
Rapaz, morrer. Morrer ou ficar desempregado ou doente – em cima de uma cama; dando trabalho para os outros. Era o medo do meu pai também. E ele ficou. Mas eu e minha irmã cuidamos dele com muito prazer. A vida é bela?

É. Mas você sabendo levar ela. Aí a vida é maravilhosa.
O senhor soube levá-la?
Eu acho que sim, viu. Teve seus altos e baixos, mas isso, de qualquer maneira, a gente conseguiu contornar. Faria tudo de novo?
As coisas boas, sim. Mas as ruins não dá pra fazer. Repetir o sofrimento? Não. (risos)