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xico sá xico sá
Por Dentro Da Gel Ia Geral
Fotos: Rafael Vilarouca | Cariri Revista
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Jornalismo, literatura, política, sociologia de boteco, chifre, modos de macho, modos de fêmea, ideologias, fascinações, niilismo, anarquismo, utopias, alumbramentos, sacanagens, Crato, Juazeiro, Santana, Barbalha. Nada como uma conversa longa com Xico Sá. Disse conversa… São muitos os casos e vidas desse cearense de Santana do Cariri que ralou muito como repórter de paletó e gravata até chegar a cronista.
Ainda moleque, pelas ruas de Santana, Crato e Juazeiro, ele aprendeu os primeiros lances ou sacanagens da vida. Encantou-se pelo mestre dos mestres – Graciliano Ramos. Na sua casa, havia poucos livros, mas por sorte se deparou com o autor de Vidas Secas. Leu tudo. Frases curtas e repletas de significados, da prosa da vida e da morte. De Insônias e Memórias do Cárcere. Das imagens do sertão brabo da cachorra Baleia, de Fabiano e Sinhá Vitória. E na fase adulta se deparou com o anjo pornográfico, Nelson Rodrigues, um dos grandes influenciadores de sua veia satírica, amorosa e sacana. Nunca foi um reacionário, mas desceu aos porões dos inferninhos para falar da carne e outros desejos a ela pertinentes.
A primeira conversa que tive com ele foi ainda no final dos anos 90, quando começamos a publicar, no Diário do Nordeste, sua coluna semanal. Era quase uma zorra total. Quase fui demitido por atrasar tanto o jornal. A culpa não era de Xico, mas da empresa ou das moças responsáveis pelo envio da coluna. Às vezes pensei até em cancelar a coluna da semana, mas em respeito aos leitores jamais caí nesse canto do cisne. Mas foi muito divertido. Muitas vezes, ele mesmo ligava se desculpando: “ainda não recebeu a coluna… essas meninas, essas meninas… providencio já”. Às vezes, as meninas estavam na Europa, França ou Bahia. E Xico não queria deixar na mão seus leitores do Ceará.
O outro encontro foi no início desse Século maluco. Programa de Debates Século XXI, no Centro Cultural Banco do Nordeste, em Fortaleza. A conversa foi batizada de “Cultura e Imprensa
– como a grande imprensa mostra ou esconde a cultura nordestina”. Auditório cheio. Papo sério, mas depois descambou para a informalidade e reflexões singulares. Buscar culpados? Ora, a indústria cultural é uma hidra de sete cabeças… E o Nordeste é resistência. Desde a Confederação do Equador. Xico, em qualquer debate, seja no Cariri, Rio ou São Paulo coloca o Nordeste no centro da conversa.
Para revista Gente, do Diário, fiz uma longa entrevista-memória que os especialistas chamam de entrevista em profundidade. Aliás, só consegui publicar uma parte no jornal de tão longa foi a conversa. Aquela coisa - uma resposta puxa outra pergunta… e nunca chega ao final. Xico está há leguas da velha e boa Rosa, de Pedro Nava (Baú de Ossos), que, ao se cansar de contar estórias, dizia para o pequeno Pedro: “entrou pelo cu dum pinto, saiu pelo cu dum pato, quem quiser que conte outra…
A última conversa que tive com Xico Sá foi na Casa Cariri para uma plateia refinadíssima. Duas horas de papo. Dos cabarés do Cariri, da boêmia do Cariri, de Padre Cícero de Juazeiro, de anarquismo e, principalmente, do fascínio que tem por essa região tão cara e bela – que zumbe no seu ouvido diariamente - , região que lhe deu régua e compasso para o mundo. E que até hoje é mote de suas escrivinhações.
O celebrado autor de “Modos de Macho & Modinhas de Fêmea” e de tantos outras crônicas lançadas em outros livros, em jornais e da ficção “Big Jato” conta um pouco dessas histórias nessa também longa conversa.
Como está a vida neste momento tão crítico da nação brasileira?
Momento difícil, mas a história do Brasil é feita desses ciclos: abre aqui, fecha de novo, respira-se um pouco, o pau come logo depois... A democracia há de superar essa fase de golpes no varejo e no atacado, sem contar o retorno do autoritarismo, sinais de censura e uma política de enfraquecimento da educação e da universidade.
Qual foi o sentimento no dia que prenderam o presidente Lula?
Sentimento de que o Brasil Oficial cometeu uma grande injustiça com o maior presidente da história do Brasil Real. O mesmo Brasil Oficial que massacrou o Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, Canudos e outros movimentos populares.
O que fazer diante desse quadro quase apocalíptico?
Resistir, denunciar e aprender com a história.
Você ainda é um anarquista de carteirinha?
Já fui mais, amigo. (Risos). Politicamente, nunca fui filiado a nenhum partido, mas estou inteiramente no campo das esquerdas, no combate, na defesa dos direitos humanos acima de tudo.
Para alguns, as redes sociais estão insuportáveis. Insultos em rede.
Você concorda?
O jornalismo dos chamados grandes veículos anda muito reaça e atendendo apenas aos interesses do tal deus Mercado, inclusive nos cadernos culturais. O jornalismo independente, feito nos blogs, por exemplo, tem mostrado vigor e novidades.
O Cariri está fazendo muita zoada no seu ouvido?
É uma zoada permanente, é o que me move, mesmo longe daí. Toda minha escrita é uma bagaceira caririense, das crônicas à ficção.
Big Jato – livro e filme – narram sua meninice no Cariri cearense. São muitos causos...
Não foi o curso de Jornalismo, mas sim a poesia de rua, o ambiente da boêmia recifense. Foi meu trabalho como vendedor na melhor livraria do Recife, a Livro Sete, um lugar que reunia a boêmia literária recifense. Ali, comecei a ler de verdade. Uma leitura visceral
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Em alguns momentos, as redes sociais fedem mais do que o banheiro masculino da velha rodoviária de Juazeiro, Ave Maria! Tapo o nariz, entro, dou os meus pitacos, vendo os meus livros... Meu expediente, no entanto, é cada vez menor.
E a literatura... o que está lendo e escrevendo?
Acabei de mandar para a gráfica -deve sair agora em maio- um livro de poesia, precisamente de haikais, chamado “Sertão Japão”, uma viagem literária que explora, com muito humor, as semelhanças entre o oriente e o Cariri. O livro conta com a colaboração de José Lourenço, da Lira Nordestina, que fez xilogravuras especialmente para a edição. O lançamento é da Casa de Irene, uma editora independente da qual faço parte.
A literatura puxa para o jornalismo... Que análise você faz no jornalismo verde-amarelo?
Xico Sá - Conto muitas histórias a partir de um caminhão apelidado de Big Jato, um coletor de fossas do meu pai - na verdade, do meu avô. Faço uma embolada muito grande com os personagens, às vezes a ação é praticada por meu pai, ou por meu tio, outras por meu avô ou os malucos do Crato. O Cariri que retrato no livro é muito verdadeiro. Foi o Cariri que vivenciei no início da década de 70. Narro às grandes chuvas – vivemos num Estado onde não chove tanto -, os banhos no açude cheio, as pescarias, as brincadeiras no barro quando o açude sangrava. Morava no Sítio das Cobras, zona rural de Santana do Cariri. O meu avô, João Patriolino de Menezes, reunia na calçada, durante noite de lua cheia, cinqüenta meninos para contar histórias. E haja mentira. Eram histórias de Camões, até hoje presente no interior do Nordeste, um personagem meio sombrio, um anti-herói, tipo Pedro Malasartes, que passava a perna em todo o mundo, inclusive no rei, fazia um desmantelo grande. Isso influenciou mais tarde a minha escolha de também contar histórias. Outra lembrança forte são as feiras. O barulho infernal das feiras com seus cantadores, repentistas e cordelistas. Lembro dos doidos do Crato, Juazeiro e Santana. As histórias deles são espetaculares. Um deles, o príncipe de Ribamar da Beira Fresca, um negro elegante, cheio de medalhas, sonhava em casar com a princesa Isabel. Escrevia à mão cartas e mais cartas de amor para a tão amada princesa.
Tinha outra ambição: montar no Crato uma fábrica de desentortar bananas. São histórias deliciosas que transcrevo no livro, com uma dose de realismo fantástico.
O caminhão Big Jato existiu?
Claro que existiu. Era um FNM (marca de caminhão da época), um limpa fossas do meu avô, que tirava sujeira das casas sem encanamento de Pedra do Peixe. Depois, o FNM passou para o meu pai, que chegou a ganhar dinheiro com ele vendendo rapadura. As histórias são todas verdadeiras, talvez alteradas um pouco. Os fatos que narro ocorreram há mais de quarenta anos e a memória pode falhar. Mas o Cariri está ali, o Cariri dos anos 70.
No livro você fala muito pouco das mulheres. Por quê?
No final fica mais forte a presença das mulheres. Mas no silêncio delas, um silêncio meio sertanejo, de fala pouca e mansa, devido a cultura machista. A mulher na época era um personagem quase invisível.
A indústria cultural também já invadia com força o Cariri...
Muita força. Até a Copa de 70, a televisão era preto e branco, mas depois veio a colorida. Um tio malucão, que me levou aos puteiros, era louco pelos Beatles. O cinema, muito forte também, promovia sessões gigantescas; e o puteiro era o lugar da iniciação sexual da minha geração. O cinema era uma diversão popular, programa da pobreza, da riqueza, de todo o mundo. O cinema de aventura, o faroeste norte-americano e o faroeste spa- ghetti, a chanchada brasileira, os filmes bíblicos lotavam as sessões do Eldorado e do Plazza.
E o Padre Cícero?
Não tive uma família de freqüentar a Igreja semanalmente, todos eram católicos, mas não iam à missa. Até porque em Santana não tinha Igreja. De Santana, passei um período em Nova Olinda e, depois, em Juazeiro. Quando mudei com a família para Juazeiro virei um fanático por Padre Cícero, um fundamentalista. Fazia as promessas e obrigava meus irmãos menores a pagarem. Uma sacanagem. Minha mãe, em tempos de romaria, alugava parte da casa para os romeiros. Todos vestindo preto, chapéu na cabeça, muitos deles descalço. Eu, menino, vivi aquela coisa maluca, fanática, com uma crença sem tamanho.
Por transitar entre o bordel e a Igreja, você sentia alguma culpa?
Era uma culpa imensa, gigante, que o catolicismo colocava em nossa cabeça, mas ele mesmo dava um mecanismo facilitador. Eu comungava com o padre e acertava as contas com Deus. Depois, com a Faculdade de Jornalismo, os livros, minha crença foi para o buraco. Também comecei a compreender o sentido da manifestação religiosa de Juazeiro. Nunca deixei de ver ali uma manifestação fé com uma beleza simbólica e cultural muito intensa.
Meu humor vem do Cariri. Acredito no poder da sátira, dos grandes poetas e narradores satíricos como desconstrução da política. O Gregório de Matos, nosso boca do inferno, desconstruía de uma tacada só a Igreja, o Estado e a família
Você sempre teve uma relação maior com Recife do que com Fortaleza. Por quê?
Primeiro, os caras da minha rua, meus amigos, iam estudar em Recife. Segundo, minha família é metade cearense, metade pernambucana. A família da minha mãe é toda de Pernambuco (Floresta, Serra Talhada) e a do meu pai, do Ceará. Mas o caminho tornou-se natural porque, dentro das condições da minha família, Recife foi o atalho mais prático.
Proveniente de uma família de agricultores do interior do Ceará, você abraçou a literatura como profissão de fé. Como foi o começo desse processo?
Nunca tive noção do que fosse jornalismo, nem tão pouco do que fosse literatura. Li, ainda em Juazeiro, toda a obra de Graciliano Ramos. Comecei logo a pensar em escrever ou, quem sabe, fazer alguma coisa no rádio. Em Juazeiro freqüentava muito as rádios, acabei colaborando com uma delas com alguns poemas. Na época, o único escritor que vivia de literatura era Jorge Amado, traduzido na China, na França, na Rússia. Percebi que tradicionalmente o escritor era advogado, funcionário público ou jornalista. Quer dizer, ganhava a vida na redação ou na repartição pública para poder escrever. Voltando a Graciliano: seu repertório era o meu, a cachorra baleia, a brutalidade e a violência do sertanejo. Era o terreiro da minha casa, de viver meio como bicho naquela paisagem árida. Tava tudo lá, de forma genial. Com ele, comecei a pensar em ser escritor. Não havia romances na minha casa -, os poucos que livros que existiam eram didáticos. Meu pai tinha a sabedoria de um autodidata. Sempre foi bodegueiro. Além da venda, trabalhou na agricultura. De tanto lidar com o comércio, com o algodão, sabia fazer suas contas, o que no sertão se chama de conta de tarefa. Nunca teve a formação dos livros, mas sim a sabedoria do sertanejo. O meu avô, por exemplo, era um grande narrador de histórias, nunca escreveu uma linha. Mas inventava histórias de príncipes e reinos encantados, histórias labirínticas, muitas delas durando mais de duas horas. Tudo ligado a oralidade. As narrativas do meu avô, oriundas da oralidade, e os romances de Graciliano Ramos foram meu primeiro contato com a literatura.
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O ambiente universitário em Recife, particularmente o curso de Jornalismo, não lhe empurram ainda mais para o meio literário?
Não foi o curso de Jornalismo, mas sim a poesia de rua, o ambiente da boêmia recifense. Foi meu trabalho como vendedor na melhor livraria do Recife, a Livro Sete, um lugar que reunia a boêmia literária recifense. Ali, comecei a ler de verdade. Uma leitura visceral.
Por falar em trabalho, como você conseguiu se manter em Recife?
Depois da livraria, consegui uma vaga na residência universitária da Universidade Federal de Pernambuco. Ganhei uma bolsa e trabalhava na assessoria de imprensa da Reitoria. Passei também pela Companhia Estadual do trânsito. Fazia uma orientação de rua, quando mudavam uma avenida de sentido, ajudando os velhinhos a atravessar as ruas. Trabalhei ainda na Mesbla preenchendo fichas no crediário. Era um exímio datilógrafo, desde o Crato. Quem sabia datilografia na época não ficava desempregado. Não ganhava muito, mas dava para tocar a vida. Ainda produzi textos para cartazes e folhetos de uma gráfica. Mas essa coisa de querer ser escritor nunca me saiu da cabeça.
E o jornalismo?
Fazia jornalismo para ganhar dinheiro. Sempre meu sonho foi escrever livros. Comecei a trabalhar em jornal no governo João Figueiredo, início dos anos 80, último presidente da ditadura militar. Passei pelas redações do “Jornal do Comércio” e das sucursais da “Veja”, do “Jornal do Brasil”, do “Globo” e do “Estadão”. Aí virei jornalista sério. Aquilo foi tomando meu tempo, mas no paralelo sempre continuei sendo um bom leitor. Tentava miseravelmente escrever alguma coisa literária, mas não conseguia, o jornalismo tomava a minha vida.
Você foi um jornalista investigativo, passou por redações importantes, ganhou prêmios, inclusive um Esso, por sua entrevista com PC Farias na Folha de S. Paulo...
Na época da entrevista com o PC Farias eu já trabalhava na Folha de S. Paulo. Mudei de Recife para Brasília a convite do Laurentino Gomes, meu chefe na sucursal em Pernambuco da “Veja”, numa época em que a revista era uma publicação descente. Existia mais respeito ao jornalismo. Na verdade, eu não agüentava o mundo político, trabalhar nos bastidores da política, investigar o motivo da queda de um ministro e a subida de outro; cobrir votações no Congresso. Achava entediante e miserável. Da “Veja”, em Brasília, fui para São Paulo, onde primeiro trabalhei no “Estadão”. Um ano depois fui para a “Folha de S. Paulo”, onde estou até hoje, mas fui condenado por uma longa etapa a fazer jornalismo político.
Sou um anarquista. Isso vem das minhas leituras de Mikhail Bakunin e do anarquismo cristão de Liev Tolstói. Tenho uma descrença na autoridade.
A sua crônica bem-humorada vem do Cariri ou do anarquismo?
Meu humor vem do Cariri. Acredito no poder da sátira, dos grandes poetas e narradores satíricos como desconstrução da política. O Gregório de Matos, nosso boca do inferno, desconstruía de uma tacada só a Igreja, o Estado e a família. Minha crônica junta um pouco dessa coisa toda. É extremamente popular, com uma oralidade e sotaque do Cariri. Por outro lado, tem influência das minhas leituras. Gosto de citar vários autores, num texto fragmentado. Já recebi retorno de leitores que, depois de ler uma citação minha de Nelson Rodrigues, por exemplo, leu toda a obra dele. Não tenho mais cerimônia de citar ninguém. Quais são suas outras influências?
No jornal você sempre acaba caindo na bagaceira, cobrindo tudo de um assassinato, aos fatos da política e do esporte. Ninguém me conhecia como cronista. As pessoas me viam como jornalista sério
Como conseguiu deixar o “miserável” jornalismo político?
Não foi fácil. Sempre procurava elaborar uma pauta que me dava prazer – uma resenha de um livro, ou uma entrevista com um escritor. Não ganhava um centavo por essa entrevista que, normalmente, escrevia em casa, no meu tempo livre. Também propunha matérias de cunho social. Escrevi uma que chegou a ser premiada sobre o “Homem Guabiru”, uma reportagem que mostrava que o índice de desnutrição em períodos de escassez fazia com que toda uma geração de nordestinos crescesse menos. Para cada matéria chata de política, eu fazia uma que me dava prazer.
Você começou no jornalismo no final da ditadura Militar, dentro de um governo ainda autoritário...
Até hoje temos resquícios do autoritarismo, nostalgia do militarismo. Veja as prisões no Rio durante a Copa do Mundo, prisões preventivas, malucas, sem provas. O Marin (José Maria Marin) como presidente da CBF... o cara tá implicado até os dentes com a morte do jornalista Vladimir Herzog, assassinado nos porões da ditadura. Ideologicamente como você se situa?
Dialogo praticamente com Nelson Rodrigues. A crônica lírica, amorosa, ligada às relações homem e mulher, tem muito de Paulo Mendes Campos, de Antônio Maria, de Rubem Braga e do próprio Nelson, o de “A vida como ela é”. Não faço uma crônica dentro daquele modelo dos anos 50 e 60. Ela é mais suja, mais rés-do chão, mais humilde.
Como assim?
Não tenho a solenidade literária desses cronistas. Não sou menos, nem mais importante. Mas não tenho medo de descer a baixaria do bar, ao inferno do casal, a escatologia, ao porre, ao chifre. Os autores que citei são mais literários, solenes.
Nelson Rodrigues chamava seus textos de “A vida Como ela É” de hediondos. Você classifica a sua crônica de suja. Algum paralelo ou tem algo de Nelson em suas crônicas?
Tento dar conta em minhas crônicas dos desencontros entre os casais de hoje. Desse homem meio perdido diante do avanço da modernidade, do avanço da mulher. Como contraponto, escrevo sobre a minha formação de homem, dos meus antepassados, do meu avô, meu pai e tios, do sertanejo do Cariri. Foi inspirado neles que criei o Macho Jurubeba – o cara que se permite ao máximo um espelhinho, um pente de bolso, brilhantina no cabelo e passa pomada minancora para combater as espinhas. Comparo o Macho Jurubeba com o homem de hoje, usando os cremes do universo feminino. Comparo os dois universos estéticos. Sou
Cartaz do filme e capa do livro de Big Jato: o Cariri da adolescência de Xico Sá um cara que veio do Cariri, com uma formação machista muito bruta e violenta que, aos poucos, entrou num mundo absolutamente moderno. Passei a conviver com homens mais modernos, artistas do Rio de Janeiro e São Paulo. Minha crônica é forte por esses dois motivos. Conheço bem os dois universos.
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Quando realmente trocou a vida de repórter pela de cronista?
No jornal você sempre acaba caindo na bagaceira, cobrindo tudo – de um assassinato, aos fatos da política e do esporte. Ninguém me conhecia como cronista. As pessoas me viam como “jornalista sério”. Eu queria exercer minha verve humorística. Mas acabei por seguir por outro caminho – sendo reconhecido como repórter investigativo, ganhando prêmios, recebendo salários altos e tendo uma vida confortável. Eu queria ser o que realmente sou: esculhambado, satírico, boêmio, de um lirismo derramado pelas moças. Queria ser um cronista sujo, tratar de temas escatológicos, mas pelas circunstâncias acabei produzindo reportagens chatas na editoria de política. Tudo começou na “Revista Folha”, publicação mais arejada, que circulava aos domingos, em São Paulo, quando es- crevi uma coluna já explorando o universo macho e fêmea. Em 1995, comecei timidamente minha carreira de cronista. Mesmo assim ainda continuei como repórter especial da “Folha.” Mas fui tomando gosto e comecei a fazer sucesso com a crônica. Com vinte e tantos anos como repórter você vira homem de redação – até a calça vai sozinha para a reunião de pauta. Só em 2000 conseguir sair dessa rotina. O primeiro livro – “Modos de Macho & Modinhas de Fêmea” – publicado em 2003, foi um sucesso. Acabei me firmando como cronista. O livro possibilitou a minha virada profissional. Tirei a gravata de repórter e mudei de vida.
Você como nordestino, nunca sofreu preconceito em São Paulo?
O que eu já vi de nego escondendo o sotaque para ser mais aceito. Eu cheguei a São Paulo de forma confortável, trabalhando nos grandes jornais. Cheguei como convidado, não em busca de emprego. Meus parentes, primos e tios, que chegaram nos anos 60 do século passado para trabalharem na indústria automobilística sofreram muito preconceito. O nordestino ainda enfrenta gozação, brincadeira. Aliás, isso não é uma brincadeira, mas sim preconceito. Nunca larguei o sotaque e os valores nordestinos. Meus leitores valorizam muito isso. Valores que reafirmo também nos programas de televisão. Não sou artificial com relação a minha região. Realço isso seja na escrita, na tevê, aonde for. A zoada do Cariri nunca saiu dos meus ouvidos.
Você fez sucesso com os livros, mas foi à tevê que lhe projetou nacionalmente...
Comecei na televisão no programa “Cartão Verde”, ao lado do Dr. Sócrates, um encontro muito importante para mim. Depois, fui convidado para o Saia Justa, no GNT. Fui chamado inicialmente para a televisão porque fazia crônicas esportivas e para o “Saia Justa” porque escrevia crônicas sobre homem e mulher. O que realmente fiz foi levar a minha crônica para a televisão. Não me considero, nem quero ser um cara de televisão. Isso não me agrada. Sou na tevê cronista com o meu sotaque e o meu jeito esculhambado.
Foi a tevê que fez com que você escrevesse “Mulheres Extraordinárias?
Não, nada disso. O livro é de encomenda e, como não tinha prazo fixo, acabei atrasando. Falo de mulheres famosas - do cinema, da literatura, da televisão. Mulheres das mais variadas qualidades. Tem a beleza europeizante de Vera Fisher e a beleza da nossa mestiçagem representada por Sônia Braga. Hoje, a peleja hoje fica entre Camila Pitanga e Gisele Bündchen. Não são perfis, mas crônicas. Não fiz entrevistas com nenhuma dessas belas mulheres. Do Cariri escrevi sobre a Suyane Moreira. Homenagiei Leyla Diniz e Barbara de Alencar, mulheres libertárias, A maioria são deusas famosas, outras nem tanto.
Até que ponto o jornalismo influencia nas suas crônicas?
No começo o jornalismo era mais ligado a cultura. Minha geração lia muito, o que, infelizmente não ocorre hoje. O jornalista estava dentro da música, do teatro, do cinema. Com a chamada “profissionalização”, a redação é mais asséptica, desligada do mundo cultural. Sempre fui um cronista flanador, sem rumo. Daquele que senta num café ou toma uma cerveja num botequim para observar as pessoas, observar a vida. Passo uma tarde inteira passeando pelo Rio antigo. Reparo coisas maravilhosas. Tento descobrir a história do Rio de Machado de Assis. Eu não tenho carro, nem dirijo, graças a Deus, ando a pé, de ônibus ou metrô e, às vezes, pego o taxi.
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Quer dizer, redação nunca mais?
Nunca mais. Não quero mais entrar na máquina de moer gente. Isso não me interessa. Seja na tevê, no jornal, em qualquer coisa. Não há dinheiro que pague o meu sossego. Toda vez que faço televisão fico com uma folga financeira. Vou pro Cariri, escrevo um novo livro. Só escrevi o Big Jato porque tinha feito “Saia Justa”. Depois, ganhei alguns trocados com “Amor e Sexo”, o que me deu uma folga para terminar “Mulheres Extraordinárias”, livro recomendada pela editora da “Folha”. Já havia até gasto todo o dinheiro do adiantamento. Nada de educação financeira?
Não, mas minha mãe me regula muito. Sou arrimo de família e sustento parte da família desde que cheguei a São Paulo. Hoje todos viraram adultos e ganham suas vidas Tenho a obrigação apenas de sustentar minha mãe e uma irmã, que moram no Cariri. Essa parada toda me deu certa organização com dinheiro. Guardo essa coisa moral, de honra sertaneja maluca de nunca faltar com o dinheiro deles. Falhava comigo, mas nunca com eles. Vivo de qualquer jeito, sem vaidade, nem frescura. Cultivo dois luxos, apenas – viajar para o Cariri quando me der na telha e comprar livros. Os bens culturais são pra mim de importância fundamental. Moro aqui nessa barraquinha (uma quitinete em Copacabana), uma coisa de pegar preá, uma armadilha. Nunca me importei. Hoje, minha vida é muito simples. Gosto de trabalhar. A boemia é coisa do passado. Já bebi muito, confesso. Hoje, tomo apenas meu vinho, bebo muito pouco. Agora, vivo muito no bar, com meus amigos. Ás vezes tomando apenas água. Ficou a fama do personagem: grande bebedor, mulherengo, cabarezeiro. Não nego nenhuma dessas filiações. Passei por todas. Isso não significa que tenho todas elas presentes na minha vida de hoje.
O Cariri do presente mudou muito, mas parece que você gosta mais da dimensão do Cariri do passado...
O Cariri é a minha realimentação. Se não voltasse nunca escreveria coisa que preste. Quando chego lá parece que uma velha fita de cinema rebobina no meu juízo. Naquele centro, entre Crato, Juazeiro e Barbalha você encontra tudo, até shopping. O importante é que existe uma resistência cultural, a questão mais mitológica do Padre Cícero. A cultura popular ainda é muito forte – a xilogravura, o cordel, a escultura. A simbologia é tão forte que, qualquer candidato a presidência da República, tem que passar obrigatoriamente pelo Cariri. De lá, ele fala para o Nordeste.