Sonido Ademir Demarchi

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ADEMIR DEMARCHI


O SOM E SEUS SENTIDOS Silêncio ou Ruído? Eric Satie já nos demonstrou sábia e prazerosamente que um e outro coexistem, são faces de uma mesma coisa, a ponto de um não existir sem o outro. Aplicadas essas noções à música, a opção é perfeita. No entanto, na vida urbana que levamos é praticamente impossível até mesmo ouvir essa música e distinguir o que seja um e outro, Silêncio e Ruído. Insistindo nessa atividade algo obsessiva que é a de olhar o mundo a partir da escrita, o desejo de Silêncio, para pensar, chega a ser quase apolíneo, digamos assim, dada sua impossibilidade absoluta. Eu o prefiro, ao Ruído, logicamente. Associo-o ao estado em que se alcança, no sonho, o distanciamento sensorial do entorno, sabendo, porém, que o Silêncio, como disse, é mais apropriadamente daquela ordem das idealizações apolíneas, uma vez que é apenas uma ideia, uma vez que não existe (até mesmo o universo sideral tem um Som) e se pudéssemos mentalmente ir editando e apagando todos os sons mais evidentes em nossa cabeça como se tivéssemos um equipamento de edição sensorial, infinitamente iríamos encontrando outros Ruídos, e aqui, agora, suspendendo os Sons dos carros que deslizam e passam, dos pratos que batem lá na cozinha, que são os mais evidentes, restam ao fundo minúsculos cantos de pássaros nas árvores ao redor, pássaros quase metafísicos por sua supressão na paisagem, e, ultrapassando-os, chego até o Sonido, uma espécie de Zumbido que zune sem parar na cabeça, fino, discreto, que existe o tempo todo, talvez aí colocado pela onipresença de máquinas funcionando o tempo todo à volta onde se vai ou a correspondência última com aquele já assinalado Som que existe até mesmo no universo sideral. A busca, senão pelo Silêncio como uma Utopia, porém como um conforto para possibilitar estados sensoriais mais agradáveis e reconfortantes me fez descobrir o uso eficiente de rolhas de silicone para dormir, desligando na quase totalidade os Ruídos à volta, de carros que passam na noite, de pessoas que falam na rua, de gente que ressona ou agoniza ao nosso lado, de cães que latem ecoando os temores dos donos. Como se chegasse a uma espécie de chão daquele alcançado por Dionísio, mais uma vez constatei que o Silêncio não existe, dada a barafunda que descobri em meu cérebro. Busco o Silêncio em meio ao Ruído que prevelace. Se busco o Silêncio, é porque ele não existe, é uma conjetura ideal. Assim, o Ruído que mais prezo é um que já não existe mais, transformou-se em outra informação, outra forma de linguagem, agora memorial, escrita, que é a do apito de uma fábrica, na infância; dessa fábrica restou a imagem de um galpão enorme, do qual saía uma longuíssima chaminé feita de tijolos do barro das imediações e da qual saía uma fumaça branca vinda dos restos de serragem da madeira da floresta da região que ia sendo cortada, hoje me parecendo como se a fumaça fosse o corpo soante do Som agonizante da floresta sendo queimada, gemendo o Silêncio por aquele fio de fumaça que atingia o ponto mais terrível às 18 horas, quando encerrava o turno de trabalho e a Sirene (esta palavra-canto que então a ouvi pela primeira vez) soava para toda a cidade ouvir a quilômetros de distância. Exatamente nessa hora, como se fosse um aviso, começava outro Som maldito, agora nos rádios espalhados pelo bairro e por toda a cidade, que era “A Hora da Ave Maria”...

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POEMAS RUÍDO NA PAISAGEM

o ruído cadenciado de um motor de popa risca o horizonte vazio até ser preenchido pela canoa que o carrega ainda assim não estará completo o que se pensa que se vê pois não basta o deslocamento do olhar é preciso que o corpo se triture na fronteira e se destrua no abismo para que a canoa deixe enfim de existir e prevaleçam apenas os estampidos ouvidos e imaginados do motor na paisagem imovente:

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CALAMARES para cristiano moreira

na origem da escrita os calamares se calam deles extraída a tinta eis, novamente falam errantes pela escrita seu renovado caminho em borrões e cracas por penas e tinteiros vão pelos pergaminhos onde de novo se ouve o som oco de conchas ao mesmo tempo eco de todos os sete mares

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o som sucede o silêncio precede

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pequenos barcos navegam entre as ondas de som das vozes se enfibrando como agulhas por túneis obscuros cercados de paredes inescrutáveis e negras

*** impertinência do instante incontinência da vaidade descorteses sonidos coros de vozes arrazoam espaços finitos de onde longe ainda se ouve o eco se perdendo em seus últimos desmedidos fios a voz a foz o rio da fala se descortina pelo imenso horizonte visto pelo vidro da nave ouvido pelo aparelho de hábito que razão se encontra no devaneio inconsequente dessas dissimilitudes de


olhar olhar olhar perdidamente no tempo do nada que há dentro para o nada que há fora somas residuais esforços impensáveis gestos finos das mãos desenhando no espaço a cor leve os pés

*** A CRUELDADE SE DILAPIDA NO CONSUMO DA INOCÊNCIA fui à caça de um modelo vivo para desmontar joguei fora a toalha de banho em que vomitara uma vez que nunca mais conseguiria usá-la e mesmo que a tivesse limpa a toda prova ainda restaria nas narinas as enfibraturas daquelas sensações rudes despencando olhei com desprezo profundo a bucha sedosa em forma de coração no boxe de banho os despojos contra a vontade perduravam deitei-me no sofá e enquanto folheava alguns desvarios de imagens espanholas ouvia satie ao piano tentando tateante um desempenho entre cru e encantatório abandonei o livro momentaneamente e reencontrei a voz de bá quando me ninava e da qual de seu rosto me resta apenas a mancha da dissimilitude depois reencontrei outra voz desta vez a de uma sereia muda que sem qualquer sonido instrumental enchia os ambientes em que estávamos me envolvendo à imobilidade total recordei-me da recorrência da história da tragédia da farsa e da ilusão nesse instante saturno triturava entre seus dentes meu braço esquerdo ˗ a crueldade se dilapida no consumo da inocência:

*** por palavras desconexas a caça por onde começa eis que por esse caminho incerto é que vai como ambulância e seu sonido que passa e à distância se afina e some


depois, depois, palavras escolhidas em vão são jogadas no cesto das feiras inconclusas para se mesclarem às despedidas sem não *** CARDUME DE LETRAS

cardume de letras esguio feixe de luz sob o espelho d’água-página onde os sentidos ondeiam não se lê esse urdume mas pescam-se seus sonidos em cada letra peixe que reluz

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Ademir Demarchi (Maringá, Brasil, 1960). Reside en Santos (São Paulo). Es Doctor en Literatura Brasileña (USP), y editor de "BABEL – Revista de Poesia, Tradução e Crítica." Es poeta.


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