Umbigo de Ebderelis Jorge Pieiro
EDITORA MULTIFOCO
Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda. Av. Mem de Sá, 126, Lapa Rio de Janeiro - RJ CEP 20230-152
capa Guilherme Peres revisão Beatriz Bajo diagramação Fernanda Hubacher Umbigo de Ebderelis - 1ª Edição Junho de 2010 PIEIRO, Jorge ISBN:
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem prévia autorização do autor e da Editora Multifoco.
Jorge Pieiro
Umbigo de Ebderelis
Editora Multifoco Rio de Janeiro, 2010
Obra publicada com o apoio do Ministério da Cultura do Brasil - Fundação Biblioteca Nacional - Coordenadoria Geral do Livro e da Leitura.
Aos poetas Floriano Martins, Pedro Henrique Saraiva LeĂŁo e JosĂŠ Alcides Pinto (in memoriam).
sumário
palavra crua
11
capítulos da coisa incorpórea
13
fragmentos do assassino
23
serpente com fendas
49
nunquidão (amor te nego)
57
calada de Antônio
73
meu, uma balada
75
nunca, novamente
76
pedra da canção
77
exílios
78
cinzas do amor adormecido
79
prata no olho do rio que jaguaribo
82
fragma devida
83
de uns
84
a um que amou a pedra mais oca a greta antes do abismo e calada dos antônimos
85
sacrifício entre os presentes ancestrais
88
nononononono
90
o fantasma dos mortos de propércio
91
pedra vida
93
borboleta
94
pálido
95
átrio
96
olhos
97
fúria cão
98
alice não viu
99
mergulho
100
dialógica
101
ainda tenho esboço ruína
102 105 106
11
palavra crua
a
qui reúno vísceras. não gozo ânsias. são tantas inserções, que o deserto é apenas uma matéria para delírios ou a pele depilada do umbigo do mundo. se ouso interferir com essas palavras a grande náusea, a impotência diante do sacrifício, estou servindo apenas como reprodutor da grande voz do Tempo. pensei em esconder na gruta do silêncio essas algaravias. se não o fiz, foi por mais uma desobediência, tão própria da ancestralidade que carrego. finjo que maculo o próprio coração com a maldade da palavra; sei, no entanto, que apenas finjo engolir estrelas para não salvar a humanidade.
A. de Ebderelis
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capítulos da coisa incorpórea
Aqui premedito a minha essência tirana. Jörg Rotberg
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Jorge Pieiro
princípio
D
á-me o amor qualquer lapso de martírio e de esplendor e com essas palavras a carne líquida te deleita sobre um corpo em mim de retalhos. Espero tocar-te lépida ilusão quando és o sacrifício da planície dentro de nenhum abismo e te adoto recolha de fantasia ou o quanto vale de amálgama entre o silêncio íntimo de vértebras pois seio em mim infeliz nunca te tenho feito água na garganta. ... És meu pesadelo fruto de um paraíso desencantado ou assim seria a morte roubando açúcares de asas em liberdade. Para te amar soprei um hálito de pinho e restaurei o segredo dos dedos ao te tocar a carne (se o silêncio é
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uma carne de nada). A morte me distraiu com palavras de alguma vida - sĂlabas ofĂdicas e cristais do inferno.
17
Jorge Pieiro
primeira confirmação
H
á horas de nascer nesse tempo parido de veneno ensopando novos destinos... Dizes: a vida é sempre terna e meu deus sem passaporte, o tímido que nunca vês. E te respondo só vida não é a eternidade e me espancas com a renúncia do ser descoberto. A hora te traspassa. Piolhos de máquinas obsoletas. Tu te manifestas... A cara de soluço de um anjo tingido pelo hábito das palavras. Ainda não és quem pode morrer. E resistes na tarde. Te escondes dentro de teu deus. Uma fúria sagrada arte em teu ventre. Almas violadas somos o esboço da mentira divina.
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Jorge Pieiro
segunda confirmação
E
is o exemplo: a escolha dos homens primeiros, uma leviana tentação. Qual de nós retém a certeza ao extrair pérolas da impiedosa filosofia? Uma negra virtude das entranhas... Existem uns seios à mostra ante o teu deus e ele não participa da nossa sensação, ou o que venera é tão sublime que impossível é a carne. Amar é uma cerimônia parecida com a gula ou a vergonha de extrair cinzas das labaredas de um amanhecer.
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Jorge Pieiro
terceira confirmação
D
esse, o encanto dos sonhos quadrados, a diretriz dos volumes e a necessidade de estar prenhe de luz. Pela magia das cores, pelas orgias das vítimas os nossos desejos. Tu, que instigas os arcabouços e a agonia dos homens, serás a pérola perdida. Se deus desistisse da solidão, com que encantos romperia o instinto? De pesadelos e guardiães? És tamanha sombra quanto a incerteza de toda a existência. Entre os pergaminhos mais raros te escondes, no segredo da nossa inviolável paixão. Tu és a sombra maldita que me repele por nunca te alcançar.
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Jorge Pieiro
quarta confirmação
N
unca! Esta palavra devoradora de infinitos, um soluço eterno de nenhum acaso, o que resta de uma pálida linguagem de cera? O último vestígio? Que não seja um jamais de espera o alimento da solidão rendido Ao mais intenso desejo de experimentar a coragem ou a covardia suprema da morte. La vida no vale nada se existo e logo sou contrário ao que dela resta. Nada.
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Jorge Pieiro
última confirmação
O
ventre resiste ao fruto. Nunca estivemos tão paridos de vazios! Remodelo a minha cara com cicatrizes. Gesto por jamais. – Oh! vocábulo de eterna labareda – ter conseguido te moldar neste barro sem vida... Agora reacendo o intestino dos vulcões com a minha ira construída nos cadafalsos do paraíso. E, por amar estes diabos invisíveis, amei apenas o delírio. Ou a morte.
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Jorge Pieiro
epĂlogo
G
rĂĄvida lĂłgica dos conflitos de deus, o ardor de tua palavra sagrada de desejos: te amar semeia de fantasmas o labirinto.
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fragmentos do assassino
do outro lado o ponto negro da m達o espelha a mancha do crime Georg Schattenmann
25
Jorge Pieiro
...1
e
ntro no labirinto da história rendido em soluço e nunca mais quero esse vermelho sabor de veneno acariciado em profana pélvis – momento de agora é senhora que ora pro nobis
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Jorge Pieiro
...2
v
ermelho respinga pela sala quarto vadio espanto é apenas uma toalha pendurada no cabide esse ritmo primeiro ato da vertigem: dentro o espantalho da ilusão resta hoje o que há por hoje nunca é tarde demais para um mistério agora é agora: o sol no rosto a veste vazia o silêncio entre lábios e frágil a conclusão de uma dor perdendo o fôlego.
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Jorge Pieiro
...3
o
adereço da lástima a implosão do sacrifício e a dor: o quarto esmaga a formiga que sacode a pata que jogo sobre mim
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Jorge Pieiro
...4
a
sorte escolhe envolver-me prenhe de ânsia suspiro e repouso a língua por baixo da mina vida agourando o sucesso enlaço a dobra de um silêncio respeito: o salitre da parede o ocaso dos maribondos a perplexidade da fantasia diante de um vulcão dentro de ti escondo meu sangue pedaço desconstruído de mim sob a impossibilidade do acaso
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Jorge Pieiro
...5
e
m andrajos a veste vazia da alma em espasmos o pavor os olhos: desisto da sombra do espelho refeito nesse monstro por tentativa
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Jorge Pieiro
...6
p
or vezes descubro a mentira do mito outro acaso de esconder o brilhante entre as pernas enquanto o vaga-lume vigia a noite e dentro dela o pecado ĂŠ remorso consumado
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Jorge Pieiro
...7
t
e mato criança de nunca te mato antes de te adorar o sacrifício te mato para nunca continuar insistindo sempre te mato prevenindo ausência de uma dor não consentida
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Jorge Pieiro
...8
a
blusa no armĂĄrio um rosto amarrotado esta hora de epifania descubram-se olhos por toda a parte estou vestido para medo quem deveria afugentou-se por entranhas de martĂrio e longe veste-se de punhal antes das costas e dentro o resguardo e a mĂĄgoa
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Jorge Pieiro
...9
s
abes por quanto beijo teu corpo? sabes em que horas amo tua vida? sabes quando sonho antes de sofrer? criança em fuga para desfiladeiro de azuis espanto de minhas horas hoje recebo escuros de caverna e morcegos rendidos de solidão não quero o teu perdão, criança, deixa que a estrada acalente seus bichos invisíveis e comigo a dor seja espanto deixa-me, criança, sem que fujas para sempre aonde não exista memória. pois assim construo o inferno
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Jorge Pieiro
...10
t
enho a cidade dentro das luzes do sol objeto simples de consolo e a veia inflamada rei dos martírios sofro a palidez de uma mulher não te consentes mais o passo ereto e os olhos de mercúrio onde deixaste os apetrechos do capricho? foste cúmplice: bebeste o veneno malograste a vida que mais temes agora senão o olho invicto da luz?
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Jorge Pieiro
...11
v
iajante do esmo na cidade essa prisão a céu aberto onde o sangue é tão gelado que não alcança a face por detrás dela ferida como oferecer o crime à lei se não repetindo o diabo?
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Jorge Pieiro
...12
a
lfinetes despedaçam o sono o grilo em algum lugar a noite inteira ela vive ainda ao lado do diabo uma palavra para fruto de carne indesejada a pele deserta, o macio, e contrai desejos a vez Ê de morrer tambÊm
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Jorge Pieiro
...13
a
legoria e o homem desprega a lei do rosto a face desfigurada, alma dela aflita por detrás o copo de chá vazio sobre a escrivaninha evola o silêncio e um incenso se esvai prestes ao pó vê-se, ele, ao chão estendido e molusco e a luz desalinha os cabelos dela maria plena de seios, escurecendo ela estende a mão a ninguém no avesso sobressalto da vida interrompida: que a rua devolva o céu da catástrofe! por que não mais é pálido o olhar de mateus? deus esconde-se antes de voltar quem o reconhecerá? mateus não mais responde. é a lei maria, arrependida, detém-se sobre o corpo e cavalga-o sem ansiedade. ali será para sempre
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Jorge Pieiro
...14
b
oustrophedon e este é o boi que serpenteia arando a terra o homem que por uma prenda a glória expele que sabem desta vida tais seres de deus ditos por mal e bem a espalhar por primeiro ao silêncio o seu pânico? que sabem eles quando mugem ao mundo o desespero co’a trêmula lida enfraquecida? um boi volteia arando a terra sem fim e descomeço ao homem resta aniquilá-lo como sempre reprimido quis-se
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Jorge Pieiro
...15
d
as palavras que antecipam a morte escuto a sátira do homem solitário está perdido entre as curvas da letra obcecado pelo estrídulo do vazio preciso que fazer? ouvir da própria voz a agonia ou a exaltação de schiller? arejar o coração com a nulidade do pensamento ou mergulhar na impossibilidade desse nada pensar? encontro o homem aborrecido, engolindo o vento o bobo, sem vida, quer saber mais que seu próprio poder impossível que sustenta essa ausência prolongada
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Jorge Pieiro
...16
f
osse minúsculo, ali seria a caverna e outros bichos os que habitariam esse lugar se a traça existisse seria eterno entre vida e morte, cajado e abismo. homem, porém, são muitos esses abismos, e não mais que furos e provações de um acaso em destruição e tão próxima é a semelhança entre nós: o gigante e a distante que em nada a outros seremos homúnculos de cavernas ou apenas bichos delirantes que a ela retornam.
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Jorge Pieiro
...17
m
ancha inválida espelho derivada de mim a sombra desde o coito dos relâmpagos apascento a febre com a agulha na pústula entre o rosário e a agonia válida é a cruz de porcelana no umbigo marcando na pele sob o sol apenas o desejo de matar a morte que se sacia no fogo da sombra ausente
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Jorge Pieiro
...18
i
nteiro assassino vejo em mim o corpo soterrado do milagre desterro o pecado obra limite da absolvição e sem meu deus resisto morrendo em mim apascento o crime do mundo inteiro assassino em que corpo meu rosto detona a fantasia? em que corpo estou usando a morte? tomei nas mãos o seio efervescente a glória de deus tomou-o de capricho sem sacrifício em teimoso celeiro vivo morrendo o coração na vagina, denso em brasa dos delitos. pouco é o segredo, o que falta, o laço da alegoria a mordaça e o gemido desabrochado nas entranhas
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Jorge Pieiro
...19
s
alva a palavra, amara: no mais que passado da memória a fala e, se atara à marca dessa a última letra, a ignara porque jamais era o que havia e não ousara, às claras a felicidade era uma hera e nessa cara a minha tara que nunca, por mais que tentara na hora se abafara
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Jorge Pieiro
...20
h
á o grito: garanto o sonho dentro de cada nó há a morte: deslustro a vida de quem a vive há o desejo: sucumbo com a morte da sorte. há a última palavra: desisto de existir sem silêncio
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Jorge Pieiro
...21
é
enquanto ferra o ferro na mancha da pele o obscuro de dor e interfere o som de vazios havido na palavra não dita enquanto a estrada é entranha e o som não mais que um nunca
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Jorge Pieiro
...22
c
riança sem vida para sempre: guardo-te comigo perdida onde não pude viver-te. guardo-te para desmorrer em mim segredo que te perpetua guardo-te com zelo fendida no risco da porcelana. guardo-te para a morte por dentro atada e frågil
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Jorge Pieiro
23...
n
osso fim
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serpente com fendas
quantas vezes amar テゥ solidテ」o... Jeronymo テ」ila
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Jorge Pieiro
n
essa’lva a hora mito do meu tempo de serpente canto e o motor resvala o seu gás nocivo e o osso do avatar se poreja e enquanto postas as mãos sobre o peito o valente poeta educa sua dor – lago e logo o monstro caduca a sua infância enternecida canto este silêncio de tua ira por nenhum deus e esta chave da entranha vaginal auxílio viscoso de sangue a tempos tenho horas em que canto a fruta das brechas nos monturos e a proibida saliência de um púbis enquanto sorrio perverso de desejos (e a sós mergulho no âmbito e anônimo) estás escondida na saliva úmida no entanto e por isso
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canto quero o manto, cobrir-te em mim essa fogueira país das gralhas, onde ruído e o medonho e o que exponho canto quero abafar-te embora ao nervo exposto à dor ninguém te é sombra maior que o medo quero o rouxinol, a mancha de uma sonoridade viva eterna e gázea, entre as mãos a fronte grávida mas só por não podê-la querer-te é assim, um canto de memória presentemente eterno estás aqui o corpo te participo (embora dele um jamais fui tido) o teu seio a tua flor a tua anjura diabólica oh querida minha sobre todos os agravos e pelejas e sacrifícios carne que te expõe virgem nunca mais de meus dias onde morrer o coração de morte e pulsante vai ouvindo teu passado e silêncio do pântano atos no que nele és escombros de passado e vertigem
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estás aqui em todos os ecos alvura de gemidos braços genitais centúrias de agravo oh infantil desafiante entre as prendas da volúpia e palavra de nenhum sobejo entre as pernas tuas o mar mais negro e o abismo de um monstro o maior do maior perigo de amor que alço e amargo como fel do que já não ouso por deixar-te à nua roubas-me de mim escravo o mudo ao derredor beijo o visgo do medo minhas mãos de roubar roubam poros túrgidos a face – felina a ofegante – a rija pena mais invisível pelugem o lábiolábil pedinte uma ressequidura túmida a cova do arrepio o medo beijei (andamos por essas paredes maciças, o corpo horizontal, um sobre o dorso ou dois bichos que pensando somos luas grávidas entre um assobio e a serenata uivosa de um lobo e percorremos nos espantos um dois gemidos e suamos e folheamos todas as palavras ígneas com o sangue em borbulhas e o coração latejando de amplidão um ferro um fogo uma vertigem e um suspiro)
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língua é o canhão bombardeante em tua palavra de silêncio contra a correnteza singular de ouro em penugem contra o rocio dela selva e abismo contra o âmbar da metáfora mais voluptuosa das fendas oh o silvo no que te transformaste serpente a me devolver o néctar de uma sagrada peçonha enrodilhada a escrava da contorção num grito de münch para dentro daquele mais dentro cósmico e umbilical desespero a teta loba me é avara quando a distância é silêncio quando o milagre é proibido a teta loba me é avara destevejo dentro de nós desmevejo (fortaleza conduzida em procissão pelo traçado de tuas esquinas um braço aqui outro ali essa distância de um mar pelo olho direito um comprido pela galáxia daqui àquela aldebarã estás diante da ponta desse compasso pelo estreito pelo triângulo pela saliência os edifícios engolem os sons de meusteus gemidos e soluços)
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mulher cavalgada no mar com feitiço cavala-marinha serei a tua pele por aí pelas pedras, por onde andaste, por aí? no fim de onde se finca o lago a fonte a nervura do cordão o umbigo dessa teia dorso ar? destevejo dentro de nós desmevejo pelo sinal da cruz em teu peito os sinais milhares que eu beijo sob a tua febre pelo caminho obscuro dos labirintos de schoonemborch ou rente aos martírios das almas aprisionadas nas catacumbas salitradas do quadrilátero final no chão de porangaba louvai pelo nosso pecado! pela corrida pelos céus de um abril de mil águas na vida ensopada e o rijo do cérebro confuso no alfinetar de teus mamilos nas costas de adão dentro das curvas e perigos de um rio que chora a ingratidão como o gozo por último no fim da rua nunca mais louvai pelo nosso pecado!
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pelo dente adormecido sobre a tua vulva e o sabor de mel no alvoroço dos cabelos de terror entre as paredes de sangue e esperma correndo pelos altares do alto de santa terezinha ao fim do novo mundo ao largo passo de uma avenida do inferno louvai pelo nosso pecado! oro e choro osso e gozo o alçapão no ângulo do teu infinito pouso morrer a glória amai o vosso pecado!
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nunquidĂŁo
(amor te nego)
com quantos medos se dĂĄ uma coragem? Sandro Dalpino
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A
ntes do seu amor era o princípio um verbo sem nexo. Cordilheira devassada pelos faquires de botinas. Antes do seu amor o diabo cozia sal sem nabos. Vez única não te possuí, mulher encantada de suores, entre os garranchos da indiscutível memória dos anões. E engoli a garganta de deus entre um sobressalto congelado. Eras a negra. A pasta da melhor carne dos delírios. Ou se te pudesses reconhecer, a hemorragia dos instintos. Ruidosa febre entre lençóis de estrelas e asas de um destino.
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Jorge Pieiro
I
A
carta Uma denúncia dos ventos foi a possibilidade do vício O desejo de sobrevir Ser traído Por ti um amor – ar / prazeres – o ter poder A letra Purpurina das algas Reconheci as entranhas dos pelos Alvo portal do penúltimo sonho A catedral Catarina Rima dorsal A sorte Contração de absurdos destruiu a fome Hansum Nocaute Nunca o quanto que se esvai e finca Passiva ao espadachim se arrebata
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Jorge Pieiro
II
V
ida em uma cor sem espectro. O amoroso tem a gula das águias. Em tua pele a noite varre os espelhos do meu rosto sem cicatrizes risíveis. Sob as tuas penas o espanto de gauleses ante a terra fogo e luxuriosa panaplo ancestral. Tenho esses relatos em voz de silêncio. Precipício de nenhum lugar no quarto escuro de tua janela fecunda a cor no espírito dos anjos. Agora que as roupas se desvanecem neste hálito de aço e morango o hábil dessa sorte entrecruza os solares dos meus desencantos...
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Jorge Pieiro
III
A
ndei já por luas. Dunas e futuras combinações. Queria fugir da sempreviva desluz que te acompanha. Maleito-me. O frio mais profundo nas rugas da mão. O lábio ávido dos grilos tiritando no gelo grávido dentro do mais dentro dos abismos. Em mente e meia a minha confusa. E por estar-se a se desfazer o senso, negra é a cor me aprisionando. Até não mais a fuga se eternar.
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Jorge Pieiro
IV
E
stou pálido de horas. Amo-te esgrima de uma farsa touché A que me comprimes entre as transfusões sonoras Quarto assoalho com passos de elefantes e trêmulos de trem Embora despida estejas perante o altar reverso da luxúria Um trago em mim que Em mim trago da luxúria Estou hábito de horas Armo-te com o retoque de oferendas No quarto despido roubas a sombra trêmula se te me oferto O que passa por mim tem a memória ferina do pavor Isso me comprime e ao sangue o tremor do gelo com paixão
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Jorge Pieiro
V
C
landestino. A força dos espasmos entoando salmos. A negra fortaleza desacorrenta o diabólico portal. A passagem entre as tuas pernas só brio de prazer se jamais fora verdadeira a vida. Impune é o silêncio. Tato faz o grito na ordem das menarcas. O sol da tragédia – Ícaro de cera – pigmenta o pesadelo. Clandestino. Nua sultana agourando meu sexo.
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Jorge Pieiro
VI
O
s olhos atingem o calidoscópio Os fantasmas desabitam a luz Nenhum milagre irá rondar peixes Iscariotes amanhece sobrado de vinha Tumulto Mascarado destino o alçam voláteis sonhos A minha cara nesgar de outra fantasia O me resta se nega de súbita flor brochada Negra a megera laça Se doma ao ser Amor teço
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Jorge Pieiro
VII
A
s pálpebras da divina melodia no desvão da lama interrompe a alma de sua oração. O pássaro incolor rouxinopia. Ele desexiste. É a lâmina do assobio. O último que anuncia. Quando serei a coragem da ausência dentro de ti. Me em mim. O assalto do escombro na tua sombra infalível. Eu que te alvoroço e tu não te resistes. Ameaça-me enquanto te espreito e atropelo. Nunca. A nunquidão da tua suprema presença ao me embalsamar de ininterrupto coito. O que me aproximo de ti será esperança? A fuligem dos caídos? Ainda a fresta de uma colheita? Tu, mulher, pássara, passará, lúcida e corvo, corvalho, abro-te sésama e vou?
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Jorge Pieiro
VIII
J
á mirei a ousadia de um salto A vertigem O vagalhão de nada Cachoeira de vazios A vaca perplexa na silhueta do sol O cerebelo engravidado pelo êxtase infame Já mirei Calígula no vácuo de um dromedário
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Jorge Pieiro
IX
A
rmou-se de amor a princesa de água. Abriu-me os braços. Molhou-me de seios. Acariciei aquela farta abundância de abissal estupor. Bebi-a. O amor se umedece à secura dos infames. Amei. Pertenci a qualquer reino. Namor doce. Um turbilhão. Garranchos de mim fendi fendas. A dor na mente. Deste-me o vazio do fôlego em teu galope. Golpe. Mas só te amei, princesa, por não saber te amar. E deslizei os olhos de peixe denso sem saber por quem o anzol a traía.
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Jorge Pieiro
X
D
e Vênus o delta Retalho de Dioniso Ágora de corpos inconclusos Saudade é quase morrer pensando Coxas de macias tuas Fronde do espasmo A pálida linguagem dos médios Medo que suporta um grilhão Longe de tão infinito O amor pela lâmina Espinhos de aço pelos prantos Pensar é quase morrer voando
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Jorge Pieiro
XI
F
oi o último dele o meu pesadelo da mancha forçando a saída. Não era ela a negra, a nigramante. Era dela o amante? O invólucro de sucumbir os sãos? Quantos se amaram entre as pálpebras! Dentro deles o espesso volume dos plexos. Eu vi! Eu senti! Não era ela a da minha ilusão a paixão maior parte dos infinitos. Ele, ele, o ente amante, cruel vingador, vilão imigo. Eu vi! Foi o último dele o meu pesadelo. Eu senti! Ele chamando. Estava ali indefeso o rival. Eu também era o que se ia rival da nigramante...
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Jorge Pieiro
XII
E
ntre meus mortos os cabelos da sinistra amante Mulher de um panapleu Estou na cama cova deles alcova Um serei tal qual o dia Dentro em ti nas trevas
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Jorge Pieiro
XIII
A
morte distraí com fantasia. Entremeios de duas palavras. Tu, a negra, concepção de todas as dores e a fúria. A letal. Te concebi e te amei. Minha Morte minha. Agora a febre tem medo de mirar teu rosto. Nunca viver será tarde. Pois enquanto arregaço as penas dos desejos, não ouso deflorar-te, por fim. Amor te nego. Pois sei dos meus limites. Serás agora a sempre. A flor de luto. Nunquidão.
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calada de Ant么nio
a minha liberdade n茫o me deixa ver o voo em que me aprisiono em fuga... J. Landwirt
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Jorge Pieiro
meu, uma balada
e
nquanto a erva ferra de abstração o quadril desse fecundo coração, o meu deus panapleu uiva lobos a um são dragão na lua órfica e a pele dos espelhos se encontra com os teus olhos de dentro em si de uma canção pequenina: miro em ti me amar e o sei, sei-o, menor a vida, isto é nascer! enquanto pálida a hora, derroto o viço por debaixo dos escombros e alimento a dor; um tecido de aranhas na pele do sonho a hegemonia do fio e o caminho subterrâneo sobre a febre dos insetos por debaixo de uma canção pequenina: miro em ti me amar e ao seio igual à vida, isto é viver! enquanto sonho com a última paz a temer o que recolho entrecortado de vazios pela gula de abraçar, tecendo o mal no corpo e coração de meu deus, teus olhos de dentro desafiam o caminho de uma canção pequenina: miro em ti me amar e o sei, seio! maior que a vida, isto é morrer!
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Jorge Pieiro
nunca, novamente
e
sta palavra devoradora de instintos, um soluço terno sem algum acaso. acaso, o que resta da pálida linguagem de cera? o vestígio? que não seja um mais de espera o alimento da solidão perdida ao mais intenso desejo de representar a coragem ou a covardia suprema da morte. la vida no vale nada se desisto e logo sou contrário ao que dela resto. nada
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Jorge Pieiro
pedra da canção
t
e revestes em pálpebra ao espelho – sereia muda – e cabes na alma dessa ágil visão em voo por seres extrema em mim sem ti no seio me sou: aflito rósea dormes na flor minha do umbigo: neste exílio lavrado de pergaminhos e serva a voz do desejo se vai – sol em mim, o pranto na palavra pedra para sempre alívio nesta canção
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Jorge Pieiro
exílios
e
ste é pedra de ângulos postados na algibeira de menino este é pedra perdida no relógio dessa vida se esvaindo este é pedra esculpindo o vento no ventre desse sono este é pedra de Davi no chão abandonada antes da têmpora este é pedra soluçando nos pés do caminho indefeso este é pedra contando segredos em seu dialeto de silêncio este é pedra calculada para a dor animal nas entranhas este é pedra que falseia Aquiles sobre seu fracasso este é pedra do frade e orações e templos com paciência este é pedra que ao pó será com meu corpo este outro que é pedra
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Jorge Pieiro
cinzas de amor adormecido
c
orpo de água e desespero, o amor sobre os olhos em bicos de águia existes por ontens repleta de feitiço e pele extintos dentro de mim no arco de volts lírico em torno de um coração no dilúvio este perfil de relâmpago em disformes miragens vez de quando te amei com poções de extermínio e doçura leite morno em teu seio de punhais sem mordaça sonho este limite é o teu compasso de raio infinito proibido para a língua doce de beija-flores
80
restará o cabelo a fio no sino dessa estranha catedral a fórceps da magia pela imaginação de um sono como bela inesquecida entre todos os dedos do grito? onde estás, poeira dos suspiros em qual ave ou feitiço em qual nave de arlequim o perfume da vertigem solitária cor de um mar afogado de avestruzes? moves-te dentro de mim como uma acrobata antes de cair eu te espero todos os dias o corpo sabes que a existência é uma fatia de impossibilidades a poeira é um lago acomodado no cume do abismo estimo a vida que já deixou de esperar o enigma escreves nesse caderno sei a última estrada foi para além dos poucos passos dentro dessa cabana roubo-te a paz. feiticeira de tantas verdades, acrescento a luz dos escombros. dentro de mim reparaste o delírio.
81
lembras o tapete e a varanda e o parque infantil por detrás de todos os muros e da flor que brotava do coração nos monturos? ali ensaiei te amar e abrir os oceanos e sorver a língua do pássaro mas o pássaro noturno beijou o aviso e foi para sempre o súbito. mesmo assim, ontem te amo, nesse amanhã. prata no olho do rio que jaguaribo (sem homenagem) no olho do rio tem o rio. importa saber da água cadela enraivecida com espumas. escorre e chora a mordida no afogado. deste lado da margem meu corpo é o soluço daquele que acena por borbulhas. nosso corpo tem argila e ferida por dentro. nele vai pelos meus olhos de rio dupla enchente se anunciando. não é aquele o que abocanha meu sonho. tivesse medo mergulharia fantasiado de Netuno. mas uma rosa no coração diz – não vá! não vá! – fico no seio da minha senhora Incerteza. pleno de agulhas. rochedo picado por fagulhas de vagalumes. nulo. um que daria pelo corpo um abraço. na prata de todas as rebeldias causo a dor. e cão sem ossos multiplico um arremesso de Narciso contra a rosa e a Incerteza mito de um rito
82
Jorge Pieiro
prata no olho do rio que jaguaribo
(sem homenagem)
n
o olho do rio tem o rio. importa saber da água cadela enraivecida com espumas. escorre e chora a mordida no afogado. deste lado da margem meu corpo é o soluço daquele que acena por borbulhas. nosso corpo tem argila e ferida por dentro. nele vai pelos meus olhos de rio dupla enchente se anunciando. não é aquele o que abocanha meu sonho. tivesse medo mergulharia fantasiado de Netuno. mas uma rosa no coração diz – não vá! não vá! – fico no seio da minha senhora Incerteza. pleno de agulhas. rochedo picado por fagulhas de vagalumes. nulo. um que daria pelo corpo um abraço. na prata de todas as rebeldias causo a dor. e cão sem ossos multiplico um arremesso de Narciso contra a rosa e a Incerteza mito de um rito
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Jorge Pieiro
fragma devida
e
xperimenta o dente: estampido na espoleta. intragável, desdenha-se de rabiscos, só. colhe o punhal com a raiz dos seios. jorra o leite apenas, e o rio cicatriza montanhas. descerra os últimos lábios no ácido. o ventre engole-se de lagartas tocadas. a bela desfigura – monstra-se! – e dos seus sussurros a ira grotesca-se de víbora. abre a janela. o sol indo-se. soluça. aonde aquele sangue desvia. pensa pelos telhados. flores de nabucodonosor nas derradeiras páginas do livro. desde anseia voar-se. experimentar sem chuva luas inteiras suas. escolhe ao êxtase colher-se.
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Jorge Pieiro
de uns
a
inda – como quis – não beijei o corpo do fantasma não recebi a benção do Tao surgida à margem do silêncio no ato enquanto plantava o deserto ainda – como quis – não tombei do corpo o espasmo com a negra, esse amor que levaste ao cúmulo feito um acaso de sons calados e desfeitos ainda – como quis – não tenho mais nada revogado com a morta! e o que me valida: ainda – essa tristeza de arame vincando a pele, por ela
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Jorge Pieiro
a um que amou a pedra mais oca a greta antes do abismo a calada dos antônimos
a um outro deus dedico
1m Escutai agora a canção dos besouros: zilidos siluosos, uns truídos, as sussúrias. Entre, era uma delas a palavra fluida da fêmea primeva. Os devaneios de um trem rachando as paredes do mal construído. Todos os flocos se larvaram de gosmas, um espetáculo de reversas repugnâncias. Estava ali um de besouro, gratulíssimo pela honra da criação. Deus, mais de um em mim era eus. 2ois Existi em um, primeiro. Quase descri que seria mil, trezentos mil repetido. Desde o quanto é medo o que abisma o simples do inorgânico sentimento! Tivera eu que cobrir de máscaras o rosto bisonho. Pois só com um assim, rompi aldravas e amei.
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3rês Tratei de fúrias. Me embalei e sangrei pela primeira vez como uma virgem, outra maria. Terror de nunca mais. Seria ela uma assassina da natureza com os seus machos, fim seria esse o meu, apenas o objeto fértil para mil eus repetidos e nada mais? 4uatro Outras e tantoutras, que amar é mesmo que se almar, nunca desisti. Morrer é um abismo para asas. 5inco Dissestes que o silêncio era trágico, a honra a deserção do labirinto, a glória o modelo. Mal previsto. Diante dela, o amor se transtorna. Os passos dos homens são esteiras fabris, os pássaros átomos livres das órbitas, os camaleões o arco-íris ou o caos multifacetado. Me enganastes. Mas não vos preocupeis. Os trezentos e mais que tantos mil agora sendo não vos atormentarei.
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6eis Escutai... Ícones sonoros de uma antiga solidão, o que ouvis. Estamos diante de um palco. O que vedes? O insólito espelho da memória, a regra imprópria dos neurônios, o fervor de partículas prestes a explodir em besouríons? 7ete Derrotai vossas recusas mais íntimas! Arrebatai os laços desses tremores de desejos! Revirai os escombros à cata dos antepassados! A hora da morte é que nos torna completos... 8ito Anjos na planície dos sonhos. Amo meus tremores de fugas. Ainda amarei um dilúvio sobre a pele da catástrofe. 9ove Entre o bálsamo e a ferida, a dor. Vós sabeis. Escolhei o mistério e a fresta e sereis o besouro mais puro das trevas! (...) Adorai agora o meu silêncio de Deus...
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Jorge Pieiro
Sacrifício entre os presentes ancestrais
m
astigou pedras para tentar o açúcar dos grãos. deitou-se de rato para a lua – era dia! – e invalidou-se de olhos no cego do sol. pinçou cada pelo da barba no mês de abril e enfeitou as microvilosidades das vísceras. tinha um instinto de poeta ou dinossauro! perdeu o destino e as linhas de Maria na máquina de cortar mãos. avolumou-se de ferrugem entre os automóveis. ferrou-se na testa com a marca de Salomão. tinha um cenário despótico para um louco motivo! esmagou os dias e as noite com um crucifixo. insistiu em mastigar todas as pedras do deserto. mas já não havia açúcar naqueles corpos queridos. pedras sem motivos... pois a cidade virou cinza com o seu gosto de cinzento.
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findou por jejuar feito um fracassado poeta sem algibeiras e guardanapos! e as salmonelas com suas urdiduras roeram nele os Ăşltimos registros de ternura. palavra que se diz ĂŠ absurdo dentro do poeta!
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Jorge Pieiro
nonononono
n
a frente daqueles pássaros o destino da espécie. Vogel, o alemão, ciciava enquanto pendia de suas agarradas unhas um lagarto esverdeado. ele não devia pensar. só existir é que é existir. o segundo líder, o que atendia por Bacon, aproximou-se de Vogel e pensou mais forte que todos. tarde, porém. ele tornou-se a máquina de destruir sonhos. o que o tornava inanimado, pássaro sem alma, seguidor daquele bando em V. enroscou-se Bacon na direção de Vogel, oh que algo se desprendeu!, e Vogel perdeu o rumo, o sentimento das unhas. e bicaram-se ante o bando desgovernado. Pandora, então, deixou que Vogel e Bacon repetissem suas façanhas desgraçadamente e reuniu o bando, levando a outros rumos os pássaros desesperados desesperados...
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Jorge Pieiro
o fantasma dos mortos de propércio
h
á séculos recolho ossos e mulheres. este fêmur pertenceu à rainha de Sardanápalo, este a Nefertiti, este perônio à concubina de Josuel, vassalo de certo rei Licurgo e estes fragmentos de maxilar a Calíope. sou O-Sem-Nome e tenho medo da única certeza do meu coração: sobrevivi a tudo e a todos, fizeram-se três séculos. e ainda escuto as vozes dessas preciosas damas – O-Sem-Nome! trance meus cabelos! O-Sem-Nome! beija-me com ardor! O-Sem-Nome! lava-me os pés com tuas lágrimas! temo, pois, acender (e seja!) a vaga lembrança de como foram as mulheres que revestiram esses ossos. lembrar é corroer a memória, pousar os olhos na grande sombra. amanhã, porém, será um grande dia. fogueira imensa. já não consigo escalar essa montanha de ossos. amanhã tocarei fogo nessas mulheres. pois sei que ali amontoam-se as que me amaram e as que odiei por amá-las demasiadamente.
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amanhã direi: vês este fogo? a crosta amarela do ar, as fagulhas riscando aleatoriamente os estalidos dos seus orbitais? vês a pureza do elemento secreto arder?amanhã, as mulheres serão esta chama. depois, verás cinzas. e eu, O-Sem-Nome, ingresso na fogueira, inferno meu, faço arder esta solidão em últimos instantes de pó. mecum eris et mixtis ossibus ossa teram!
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Jorge Pieiro
pedra vida
h
averia em panaplo uma grande empresa. dela, participariam todos os homens aptos à leitura. uns, dados aos milagres da escritura, recarregariam o silêncio de outros. saberiam todos das exigências que permeariam aquele jogo de troca de influências. durante muito tempo, a empresa acompanharia a vida com a sua visão imparcial, porém, atada aos princípios de seus realizadores. certo dia, um dos principais homens da empresa, imbuído da missão de revelar-se perante todos os outros, resolveria instituir um cargo de sacrifício, o do sacrifício da verdade escolhida. e convidaria aqueles meticulosos guardiães da sensatez para cumprir o ritual, um de cada vez. e, assim, a ação apontaria o escolhido a destinar-se ao mito. Sísifo condenado a carregar a pedra ao alto da montanha, vê-la despencar e torná-la ao cume de todas as atenções, indefinidamente...
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Jorge Pieiro
borboleta
m
artírio: sofrer sem asas, desnuda de voar deixar de resumir salto em abismo – completo circuito de vento assim Gabriela sorri sofrimento escolhe dor por aliada ante holofote, rasga tecido enfeite de amarelo e brilho arma-se de foice arranjada por delírio decepa-se. nenhum sangue em suas primeiras asas já nenhum mistério a jorrar corta asas, desistência de voo verdadeiro para tentar salto vazio borboleta perplexa, Gabriela salta e vai arrastada por olhos de amante, tento acompanhá-la. frágil demais, difícil de desistir espeto-me de condenação, segundo e segundo, por saber: voar nunca é costume do meu povo.
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Jorge Pieiro
pálido
d
or de letra é mais mistério: selo de bruxa em pacote
tenta dilacerar vagalhões moribundos corpos trêmulos escrúpulos senóides salmonelas volumes pústulas delírios este poeta como sói acontecer só se identifica com aquele morto de futuro
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Jorge Pieiro
átrio
d
entro a bolha por dentro a outra ninguém nunca viu o olho do olho corpo de ouro soluço no meio da escolha dentro o sangue por dentro o outro ninguém nunca viu a manha da sanha musa de nada pressinto e a fúria se encanta
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Jorge Pieiro
olhos
q
uantas vezes e ainda eras quantas: vi por dentro a ilha tu
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Jorge Pieiro
fúria cão
d
esde quando percebi a morte engolindo meus olhos desde quando sonhei amar uma gleba de desejos desde quando me espedacei no marfim do silêncio desde quando mergulhei no vácuo e flutuei invisível desde quando senti a dor de uma alma impassível desde quando lamentei o tédio das esquinas desde quando esperei o templo ruir antes da noite desde quando sofri por não esperar o próprio fim desde então conservo essa fúria de deus entre meus sonhos desde então e sei que morrer é apenas Borges um costume que sabe ter toda a gente para sempre e eternamente desde quando
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Jorge Pieiro
alice não viu
c
ego nesse tempó de chorar a dor é ingratidão e teu castigo
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Jorge Pieiro
mergulho § entre dedos impúbere a alma me anuncia § plantas me insetam de erva curtidas § palavras em ti pecar-te ciciam § espaço em flor de ira de lótus uiva § entre sóis pisco lágrimas em busca § no escuro hálito o retrato em que táctil § me escuso de mergulho no abecedário § estás em mim como a pílula afogada no seio § tão instante porém daquele que se faz distante § entre as fúrias o rebanho de tantos dias § entre dedos a alma em lótus me anuncia § plantas me insetam em ti pecar-te ciciam § palavras de ervas curtidas anseio § espaço em flor delírio que me acaricia
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Jorge Pieiro
dialógica
p
orque o louco afirma ser jesus o louco pode – riem dele – ser jesus e ele é louco por jesus e quem sabe? – se a culpa não é de jesus? porque o louco tudo – ou quase – pode ser tão diferente como jesus e ele sabe – ou não insiste em – que tudo pode fazer – até milagre por que se não fosse louco seria o tal um outro átrio de soluços querendo explicar dos céus o símbolo? por que se não fosse por ser jesus seria o mesmo crucificar-se no medo de nada mais poder ser – nem poeta?
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Jorge Pieiro
ainda tenho
a
s mãos os pés o intestino a bílis a enxaqueca e a farta lição de casa os artefatos as cinzas da inquisição as aleivosias o ciúme a crise o torso do acrobata de um livro antigo a pedir desculpas e a continuar caindo no céu da pátria que a chão se abriu o latifúndio do joão medido a palmos a bananeira os abutres e a colina a amargura o gim e a conquista o pus e a cisão mas também a alegoria a fantasia e o carnaval infestado de selenitas a coorte dos antigos e dos amigos o lapso e a mácula a pereba o estrume da raça e o anseio nefelibata cage a fé o demônio e a imensa satisfação de sobreviver digamos aprisionado nos espelhos a cura e a fúria mas enfim tenho ainda o fim em minhas mãos a arma ainda tenho
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o grilo no automóvel passou por mim passageiro feito a infância e eu não vi a rua molhada de passos tristes passos da gente sem face pois não vi o sol crestando a face dessa gente a quarenta graus à sombra ou ao gelo de trinta negativos no breu branco do silêncio isso eu não vi por isso não tenho mas ainda tenho no entanto desses como a que perdi só não vejo a cabeça que encorpa incorpora e poreja mas seja assim assimilar com a verdade a verossimilhança a imensa pureza de ainda ter o cravo na pele incrustado do que dói como a ausência por fim no que ainda tenho
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as mãos com essa arma que retribuirá o fel por nada mesmo que essas cabeças insistam de avestruz esconder a febre o olho o bafo das narinas a cicatriz o espelho e a alma a ruga o sestro a dor a careta e o riso o privilégio do esgar a varíola a pele ressequida a madeira da cara o óleo a penumbra a sombra e a silhueta o cocar das alucinações ou o que se perpetua na longevidade das tartarugas dos ratos de gaveta dos axiomas falsos nas mentiras nas vestes seculares por fim nas falsas visões e insensatez por mais que risível e veloz costumo apontar com as minhas mãos que ainda tenho
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Jorge Pieiro
esboço
d
esejo esta parede blindada: sem violência teu corpo parede dobrada silenciosa o maior vazio escorrendo filigranas dentro ela muro alto adiante em mim. teu corpo acoita a cara da noite contrai mistérios de penitenciária ou catedral. a mesma noite o mesmo desejo toda noite
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Jorge Pieiro
ruína
o
u vi frutas secando ao sol e a tarde engolindo criancinhas ou talvez peixes bebendo luz? quem sabe o anseio das bombas entregues ao som de fogueiras invisíveis? – desde que o amor é o paradoxo do sono sinal da cruz descrito em silêncio na garganta repre)z(ando o fogo efêmero – à tarde: ou vi frutas revelando a frescura de sabores ou talvez o corte no lábio intumescido o sal, quem sabe, do ocaso ardendo sobre os açúcares da pele nesse esboço de cachalote no corpo do que era (feminino)
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Sobre o Autor Jorge Pieiro (Limoeiro do Norte, 1961) Graduado em Letras, pela Universidade Estadual do Ceará, e mestre em Literatura Brasileira, pela Universidade Federal do Ceará. É professor de Literatura. Atua também na área de produção musical e na linha editorial, como revisor, editor e consultor. Faz parte do Movimento Caixeiro-Viajante de Leitura. Publicou Ofícios de desdita (Fortaleza: Ed. do autor, 1987 – novela); Fragmentos de Panaplo (Fortaleza: Ed. do autor, 1989 – contos breves); O tange/dor (Fortaleza: Ed. do autor, 1991 - poemas); Galeria de murmúrios (Fortaleza: Cadernos de Panaplo, 1995 - ensaio); Neverness (Fortaleza: Letra & Música, 1996 - poemas); Caos portátil (Fortaleza: Letra & Música, 1999 - contos); Os sonhos de Josafá (Fortaleza: Seduc, 2006; 2ª. Ed. Fortaleza: IMEPH, 2007 – infantil); Bolha de Osso (Fortaleza: Letra&Música/IMPRECE, 2007 – contos breves) e A grande casca do S (Fortaleza: Letra&Música/IMPRECE, 2008 - contos). Participou de várias coletâneas, dentre as quais se destacam Geração 90 – Manuscritos de computador (São Paulo: Boitempo, 2001; 2ª. ed.
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2007) e Geração 90 – Os transgressores (São Paulo: Boitempo, 2003), Antologia do conto cearense (Fortaleza: FUNCET/FCPC, 2004), Os cem menores contos brasileiros do século (São Paulo: Ateliê Editorial, 2005), 35 segredos maneiras para chegar a lugar nenhum: literatura de baixo-ajuda (São Paulo: Bertrand Brasil, 2007), Máscaras de Orfeo (Santo Domingo: Secretaria de Estado de Cultura de Santo Domingo, 2009). Como crítico e ensaísta, tem trabalhos editados em várias revistas e jornais do Brasil e exterior. Como pesquisador, ministra vários cursos na área da literatura brasileira e, como palestrante, participa de vários eventos culturais em todo o Brasil. Cronista no sítio www.germinaliteratura. com.br, assina a coluna “no rasto de panaplo”. Detém vários prêmios literários, dentre os quais se destacam o Programa de Bolsa para Autor com Obra em Fase de Conclusão (Fundação Biblioteca Nacional, 2009), IV Edital de Incentivo às Artes (SECULT, 2007) e III Edital das Artes (FUNCET, 2006). Foi também finalista do Concurso Literatura para Todos, do MEC, em 2009. Coeditor da revista Caos Portátil – Um almanaque de contos, da qual se formou o selo “Edição do Caos”. Foi coordenador de Políticas do Livro e de Acervos da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará e Curador da 8ª. Bienal Internacional do Livro do Ceará, em 2008.
Este livro foi composto em Arno Pro e Cronos Pro pela Editora Multifoco e impresso em papel p贸len 80 g/m虏