9 minute read

03O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR: DA ELITE COLONIAL AOS CORTIÇOS E PROJETOS DE TRANSFORMAÇÃO URBANA

03 - O CENTRO HISTÓRICO DE SALVADOR:

DA ELITE COLONIAL AOS CORTIÇOS E PROJETOS DE TRANSFORMAÇÃO URBANA

Advertisement

Durante o século XVIII, a área central de Salvador, eixo conformado a partir do Pelourinho, fora ocupada por senhores de escravos e pela alta administração colonial, em seus casarões (Bonduki, op. cit., p.328). Até o final da década de 1950, o Centro Histórico de Salvador correspondia a “uma das principais áreas da população abastada, sede exclusiva das atividades de controle econômico e administrativo e lócus das atividades de comércio e serviços, inclusive dos voltados para a população de renda alta” (Brandão, 1995, apud. Bonduki, op. cit., p.327). Contudo, a partir das novas tecnologias de transporte, século XIX, e da nova etapa econômica associada à exploração de petróleo e à indústria petroquímica, século XX, teve-se a criação de novos polos de negócios e bairros de elite em áreas mais distantes, que foi acompanhada pela transferência das sedes dos órgãos públicos e da dinâmica imobiliária para a área em expansão urbana. Em síntese, “simbiose entre o setor público e o privado foi visível” (ibidem) neste processo de formação de novas centralidades, o qual estava intrinsecamente ligado às novas formas de mobilidade:

“a Bahia, seus portos e, consequentemente o centro urbano de Salvador passam por novas intervenções, com destaque para mobilidade e transporte, como as vias férreas. Tal impacto acaba gerando uma amplitude urbana e a migração das classes mais abastadas para novos bairros construídos (Graça, Vitória, Barra) (SANTOS, 2008: 43-44). (...) Em 1871, a Companhia Trilhos Centrais liga o “Centro Antigo” aos bairros da Vitória, Graça, Barra, Federação, com planos de expansão até o Rio Vermelho, reflexo, segundo Sampaio, do “evidente” dinamismo urbano fruto da própria emergência capitalista do período (SAMPAIO, 1999: 68). Ainda conforme este autor a expansão em direção ao sul (Campo Grande e Vitoria) significará a “materialização de segregação social dos brancos” e, como parte do mesmo processo, nos bairros ao norte as massas mais pobres vão permanecendo ou adensando o centro tradicional (ibidem)” (Bittencourt, 2011, p.37 - grifos meus).

É importante pontuar que essa mobilidade das classes abastadas no final do século XIX levou ao adensamento do centro pelas classes populares, que ali supriam sua necessidade de moradia (Bittencourt, op. cit., p.37). Observou-se, assim, uma dinâmica de subdivisão dos sobrados a partir de estratos sociais e econômicos:

“inicialmente, [os proprietários] alugaram seus sobrados por andares: os pavimentos inferiores a preço menor, para os pobres, e os mais elevados, mais caros, para os mais abastados. O subsolo – uma parte que muitos casarões costumavam ter, aproveitando o desnível do solo, característico da área central da cidade, composta por muitas colinas, algumas bastante íngremes – ficava para os mais pobres, dentre os pobres: os libertos e escravos de ganho (que trabalhavam fora da casa dos donos e lhes pagavam uma quantia fixa diária). Assim, o subsolo dos casarões foi a primeira modalidade de moradia da população pobre do centro de Salvador (embora, fora da cidade, espalhavam-se outros tipos, como os casebres e os quilombos)” (Uriarte, 2019, p.385).

vimentos, envolvendo a divisão de seus interiores. Neste período, seus moradores já não eram mais escravos de ganho ou libertos, dada a abolição de 1888, correspondiam a ”operários, carregadores, vendedores ambulantes de comida, pequenos comerciantes, alfaiates, cabeleireiros, sapateiros, quase todos negros e alguns árabes e turcos (Bacelar, 1975)” (ibidem, p.358). Os casarões subdivididos internamente ínfima vezes e marcados pelo alto nível de insalubridade, densidade e pobreza eram conhecidos em Salvador como cortiços, contudo, em outros territórios, receberam o nome de casa de cômodos, estalagens e zungus, este último voltado especificamente para a moradia de negros (Ibidem, p.385-386). Ainda no século XX, a expansão e densidade dos cortiços era tão expressiva em Salvador que, segundo Uriarte, conformou-se uma especialização de zonas de cortiço:

“em meados do século XX, eram muitos os cortiços no CHS que, devido à expansão comercial que expulsava moradores de prédios até então de uso residencial, foram se adensando cada vez mais. Assim, embora a população residente no centro diminuísse de 7,9% em 1940 para 4,8% em 1950 (Santos, 1959, p.131), os que ficavam passavam a morar em um número menor de ruas que se especializaram como zonas de cortiços” (ibidem, p.386-387).

Nessa narrativa, a área central de Salvador, assim como o movimento histórico vivenciado em múltiplas localidades no país e no globo afora (Bonduki, 2010; Santa’Anna, 2017b), encerrava e ainda encerra em seu patrimônio uma arena de disputa e descaso por seu bem material e imaterial, que sintetizam na escala do habitar as demandas pelo direito à moradia e à memória das classes populares. O descaso dos proprietários e do Estado, agentes que supostamente deveriam salvaguardar e fiscalizar o patrimônio, é evidente ao longo dos anos em números: em 1969, treze edifícios encontravam-se totalmente arruinados na região do Maciel; em 1978, totalizavam-se 41 e, em 1988, 51 prédios (Uriarte, 2019, p.387).

Em média, as unidades do cortiço (“quartos”) possuíam 4m2, em que sobrados de até dois quartos eram multiplicados para vinte e quatro unidades (ibidem, p.388). Mesmo com tamanha precariedade, os valores cobrados para os aluguéis eram expressivamente altos. Segundo Uriarte (ibidem), essa dinâmica se dá em conjunto pela demanda de moradia popular no centro, bem como pela exclusão que esses corpos vivenciam a serem relegados em áreas específicas da cidade, com destaque, por exemplo, para as travestis da área (Cardoso, 1991, p.67; Kulick, 2008; apud Uriarte, op. cit., p.388).

Em linhas gerais, ao longo do século XX, a população dos cortiços não variou significativamente em níveis sociais e de acesso às suas demandas básicas: Jorge Amado escreveu, na década de 20, tratar-se de “operários, soldados, árabes de fala arrevesada, mascates, ladrões, prostitutas, costureiras, carregadores” (ibidem). Mil-

ton Santos, já na década de 50, indicou “pequenos empregados ou pessoas sem uma ocupação permanente ou bem definida. Seu local de trabalho era, de preferência, no centro da cidade (Santos, 1959, p. 167)” (ibidem). Neste cenário, as mulheres voltavam-se majoritamente para os meretrícios, casas de prostituição que a sua época eram reconhecidas legalmente. Segundo Uriarte, em 1967, as prostitutas do Pelourinho correspondiam a 42,0% das moradoras da área (ibidem). Enfim, na década de 80, observou-se a permanência do perfil de seus moradores relatados acima: a maioria dos moradores eram vendedores, domésticos e prostitutas, em que 50% deles não alcançava dois salários mínimos de renda (Simões; Moura, 1986, apud Uriarte, op. cit., 388).

Tendo em vista o adensamento popular do centro e a subdivisão maciça dos casarões, dando origem aos cortiços, bem como as características embrionárias dessas habitações, como ausência de recuos no terreno, com paredes laterais coladas, compondo agrupamentos de edificações geminadas somadas às condições insalubres dos cortiços, como ausência de ventilação, insolação e metragem adequada, o início do século XX foi marcado pelo paradigma da cidade moderna, que em Salvador traduziu-se em três condições básicas: de higiene, fluidez viária e estética da beleza (Bittencourt, op. cit., p.39). A década de 50 é marcada pela visão de que à área central é possível conferir a vocação relacionada ao seu valor patrimonial, enquanto um vetor de fomento para a indústria do turismo. Desse modo, parte do centro antigo de Salvador é tombado, em 1959, enquanto conjunto urbano pelo Iphan, e declarado Patrimônio da Humanidade, em 1985, pela Unesco, seguindo a lógica mundial de “transformação de centros históricos” (Bittencourt, op. cit., p.42; Bonduki, op. cit., p.326). Tecia-se, portanto, uma tentativa de redefinir o dinamismo do centro antigo, até então marcado por traços populares de apropriação (Bittencourt, op. cit., p.42) cujo rebatimento se deu na abordagem dos planos e das próximas intervenções urbanas sobre este território.

Desse modo, nos anos de 1960 e 1990, houve diversos projetos de reabilitação de caráter pontual que buscavam criar um polo de turismo para “os de fora” e um polo de lazer para as classes abastadas de “dentro”, inseridos no discurso de reverter o processo de deterioração física da área (Bonduki, op. cit., p.311). Dado o tombamento pelo Iphan e o reconhecimento pela Unesco, desde os anos 19607 o Pelourinho é alvo de intervenções públicas que levaram mais de vinte projetos em diversas instâncias político-administrativas (Fernandes e Gomes, 1995 e 1996, apud. Bonduki, op. cit., p. 326). Contudo, estudos apontam para a ineficácia de tais intervenções, pois, se-

7 A visita de Michel Parent em 1967, representante da Unesco, e suas recomendações levaram a formulação de uma política pública para o Centro Histórico de Salvador tendo como uma das consequências a criação do IPAC (Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural), no mesmo ano de 1967. O instituto lançara o primeiro projeto destinado à valorização dessa área por meio da vocação turística e de fomento ao setor terciário, o “Plano de Recuperação da Área do Pelourinho”, em 1969, (Bittencourt, 2011, p.46).

gundo Bonduki, estruturaram-se de modo localizado e isolado, sem conseguir abarcar e reverter questões como a extrema pobreza da população e a marginalidade que dominavam (Bonduki, op. cit., p.311).

Todavia, por outro lado, tais projetos, de certo modo, levaram ao fortalecimento do Pelourinho enquanto “uma espécie de território central numa rede de territórios negros nessa cidade tão negra que é Salvador” (Gomes e Fernandes, 1995, apud. Bonduki, op. cit., p.331). Nos anos 70 e 80, destacam-se inúmeros grupos culturais de traços afro, como Ylê-Ayê, Olodum, Araketu, Unegro e Muzenza, os quais instalaram-se na área do Pelourinho criando uma forte identidade cultural (ibidem). Ao reivindicarem seus valores e externalizarem suas denúncias, ao mesmo tempo, os grupos chamavam a atenção dos órgãos públicos e ganharam sensibilização internacional, o que serviu de atrativo para que turistas e outras classes, que não as populares, estivessem presentes no Centro Histórico, para conferirem os ensaios da banda, principalmente nas “terças da benção”8 (Bittencourt, op. cit., p.50).

“O Grupo Cultural Olodum, criado em 1979, foi um dos protagonistas deste ‘fazer ecoar na cidade’ e, posteriormente, no mundo, as mazelas vividas pelas classes populares no local e seus valores humanos a serem preservados. A atuação do Olodum marca a década de oitenta também como elemento de disputa pelo espaço” (Bittencourt, op. cit., p.50).

Em síntese, no século XX, o Centro Histórico de Salvador caracterizava-se por sua realidade social híbrida - presença dos casarões encortiçados, casas noturnas de alto luxo, igrejas, empresas e hotéis e rede de comércio. Durante a década de 80, tem-se a institucionalização do processo de transformação do Centro Histórico de Salvador, enquanto resultado dos paradigmas da Unesco supracitados, o que “acelerou a expulsão dos seus moradores da área e a redefinição da área em um parque turístico, provida de lojas, bares, hotéis e pousadas (...)” (Bittencourt, op. cit., p.44 e 49). Em 1989, anuncia-se a proposta de reforma e, em 1991, o Governo do Estado da Bahia , sob o mandato de Antônio Carlos Magalhães, elaborou e operacionou o chamado “Programa de Recuperação do Centro Histórico, o qual será abordado abaixo.

Imagens 2, 3, 4, 5, 6 e 7

Moradores, habitações, ruínas e escombros no bairro de Maciel, Salvador, possivelmente na década de 70. Fonte: Acervo do IPAC, Museu Tempostal (reprodução de Uriarte, 2019, p.386-687).

This article is from: