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02 ÁREAS CENTRAIS, MOVIMENTOS DE MORADIA E CAPITAL IMOBILIÁRIO: O DIREITO À CENTRALIDADE FRENTE AO PLANEJAMENTO URBANO ESTRATÉGICO DE CARÁTER EMPRESARIAL

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A. PANORAMA GERAL

A. PANORAMA GERAL

02 - ÁREAS CENTRAIS, MOVIMENTOS DE MORADIA E CAPITAL IMOBILIÁRIO:

O DIREITO À CENTRALIDADE FRENTE AO PLANEJAMENTO URBANO ESTRATÉGICO DE CARÁTER EMPRESARIAL

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As áreas centrais, enquanto tendência observada globalmente, apresentaram um apogeu enquanto uma região nobre mas que, ao longo das décadas, devido a conformação de novas centralidades pelo mercado de consumo e pelo capital imobiliário, acompanhada pelo deslocamento das classes altas, dinamizou-se a partir da faceta popular, mantendo a pujância por meio dos setores de comércio e serviço populares. Dessa forma, enquanto juízo de valor negativo e estigmatizado, este movimento de popularização das áreas centrais é comumente tido enquanto parte integrante do processo de “degradação” das áreas centrais:

“em decorrência de seu natural envelhecimento, da inadequação das edificações para os usos modernos e do surgimento de outras centralidades atraentes para os setores privilegiados da sociedade e para o mercado imobiliário, os tecidos urbanos mais antigos das principais cidades sofreram, ao longo do século XX, forte processo de deterioração física” (Bonduki, op. cit., p.319).

Estes territórios foram majoritariamente ocupados por indivíduos de renda média e baixa que possuíam vínculos históricos, relações sociais e facilidades, como acesso a empregos e transportes, não possuindo, assim, interesse ou até mesmo condições de se transferirem para as novas centralidades que se conformavam nas cidades (ibidem). Contudo, já na década de 90, observou um movimento de interesse pelo Estado em fomentar a retomada das áreas centrais pelas classes mais abastadas, enquanto um vetor atrativo para investimentos e consumos atrelados à circulação de capital.

Segundo Scifoni (2015), a partir da década de 90 é comumente atribuído à preservação e restauração do patrimônio cultural o papel estratégico de agente protagonista em intervenções nas áreas centrais de grandes cidades, no contexto de desenvolvimento do planejamento urbano estratégico de caráter empresarial (Scifoni, op. cit., p.130). Nessa narrativa, o empresariado, bem como o Estado, compreendem aparelhos culturais e patrimônios restaurados e/ou transformados como um instrumento capaz de mobilizar investimentos e circulação de capital, num processo de competição global, principalmente, no âmbito da rede consumo e lazer ligada ao turismo, ou, ainda, até mesmo como instrumento de um processo de revalorização imobiliária (ibidem). Em consequência, observa-se como resultado dessa prática urbana a expulsão de moradores populares e a transformação do uso do solo e da vivência que se observava outrora:

“com o advento das políticas de proteção às cidades históricas, as formas de tratar esses sítios lentamente se alteraram, evoluindo da renovação para a reabilitação. Predominou, entretanto, uma visão que continuava a estigmatizar a população moradora, como se o enfrentamento da deterioração física fosse incompatível com a manutenção do tecido social e cultural que se formou nesses núcleos” (Bonduki, op. cit., p. 320-321).

Contudo, dado o fracasso destes projetos urbanos (Sant’Anna, 2017b, p.149150), na própria década de 90, houve o fortalecimento dos movimentos sociais de luta por moradia que reivindicam a permanência em tais territórios, bem como o desenvolvimento de programas habitacionais de cunho social1. Todavia, essas iniciativas “(...) esbarraram na fragilidade e na inadequação da política e dos instrumentos de financiamento habitacional no Brasil e em entraves diversos de natureza urbana, fundiária, tecnológica e política, o que prejudicou o seu desenvolvimento e resultados, a despeito de focalizarem demandas reais” (Sant’Anna, 2017b, p.150).

Apesar do fracasso destes projetos apontado por Sant’Anna, no sentido das áreas centrais manterem seu caráter híbrido de coexistência de classes, usos e dinâmicas diversas, o ritmo do processo de esvaziamento populacional nessas áreas, que observou-se durante as décadas de 80-90, tem diminuído nos últimos anos e até apresentado reversão em alguns municípios (Kohara et al., 2012, p.13). Todavia, “a produção de habitação de interesse social continua seguindo a lógica de produção periférica da cidade” (ibidem). Para Bonduki:

“a questão da habitação social nunca foi, no Brasil, objeto central de projetos de reabilitação de centros históricos. Tradicionalmente, as intervenções têm desconsiderado esse tema, sendo predominante a visão de que o lugar dos pobres é nas periferias e que a recuperação dos núcleos históricos deveria estar voltada prioritariamente para o turismo e as atividades culturais” (Bonduki, op. cit., p. 316-317).

Mediante as pressões de modificação de usos atrelada a mudanças também de nível social, rejeitando-se os mais pobres, os movimentos de moradia emergem pela defesa do direito à centralidade. Tal direito refere-se não somente a manutenção das classes populares residentes no território, atrelada aos laços ali constituídos, assim como facilidades de maior empregabilidade na região, ao baixo custo de deslocamento e à disponibilidade de serviços públicos, mas também ao direito da população de baixa renda morar dignamente na região central, dado o cenário de concentração de cortiços ou habitações coletivas precárias, acompanhadas pela cobrança abusiva de aluguéis (Kohara, et al, op. cit., p.13). Nessa narrativa, o movimento popular de moradia, seja

“na prática teimosa ou no discurso esclarecido, a defesa da centralidade é uma contrapolítica, uma ação na contramão (Holston, 2013, p. 62), uma insubordinação diante da política de fronteiras que produz as diferenças entre centro e periferia. Aberta ou silenciosamente, discursos e práticas são contrapolíticas espaciais que desafiam a regra que, no Brasil, dita que ‘o lugar dos trabalhadores pobres e o lugar para os trabalhadores pobres’ é a periferia (Holston, 2013, p. 197)” (Uriarte, 2019, p.396).

1 Para além do próprio Projeto da 7ª Etapa do Programa de Recuperação do Centro Histórico de Salvador, são exemplos o Programa de Revitalização de Sítios Urbanos (PRSH), 2000, criado pela Caixa Econômica Federal e componentes do Programa de Reabilitação do Centro, 2003, da Prefeitura de São Paulo (Sant’Anna, 2017b, p.150).

Nessa narrativa, uma série de fatores, a um primeiro momento, podem encarecer essa unidade habitacional em áreas centrais. Segundo o dossiê “Moradia é central - lutas, desafios e estratégias”, o pouco fomento de habitação de interesse social em áreas centrais decorre do fato do mercado da construção civil e imobiliário não alcançarem lucros tão expressivos nesse segmento. Para o mercado da construção civil, é mais lucrativo construir unidades novas em grande escala, onde o custo da terra não seja tão elevado como no centro e ainda em áreas que sejam possível seguir seu projeto adaptado. Além disso, o dossiê indica que “a legislação, em grande parte das cidades, não favorece a reforma” associada ainda a maior burocracia de áreas e unidades protegidas enquanto patrimônio, cujas reformas estão submetidas a aprovação de diversos órgãos governamentais (Kohara, et al., op. cit., p.15).

Todavia, a longo prazo, o investimento em habitações de interesse social em tais áreas é mais positiva, uma vez que, segundo o mesmo dossiê, morar em áreas centrais é mais barato para o trabalhador e, em linhas breves, “se morar no centro é mais barato para o trabalhador, também é para o Estado, uma vez que não precisa investir em serviços e infraestrutura já existentes e subutilizados nas regiões centrais” (ibidem). O governo federal tem sido o maior indutor dessas habitações em áreas centrais2. Nesse sentido, destaca-se o Programa Monumenta, criado em 1999, um projeto do Ministério da Cultura3, em nível federal, de linha de crédito voltado para a recuperação de imóveis tombados pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) em centros históricos, sendo implementado em 26 cidades históricas. Em linhas gerais, seus recursos de financiamento podem englobar: recuperação de fachadas e coberturas, demolição de acréscimos descaracterizadores da edificação, estabilização ou consolidação da estrutura do imóvel, embutimento da fiação e adequação das instalações elétricas, projeto e placa de obra, taxas cartoriais para registro do contrato.

Apesar do programa se inspirar na experiência de Quito4, em que associou-se a defesa patrimonial à política habitacional, sem expulsar os moradores pobres que ali habitavam, o Monumenta inseriu-se, na realidade, na corrente difundida na déca-

2 Além disso, destaca-se a própria autogestão pelos movimentos de moradia como forma de garantir projetos com melhores qualidades e mais adequados às suas demandas, em que uma maneira de possibilitá-la é por meio do financiamento federal do PMCMV - Entidades (Kohara, et al., 2012, p.18).

3 Em 2006, deixou de ser um programa do Ministério da Cultura e passou a ser da alçada do Iphan (Sant’Anna, 2017b, p.150).

4 Segundo Uriarte (2012, p.51), para além de Quito, o Monumenta baseou-se também na experiência de Olinda, em que o centro histórico manteve a predominância de uso habitacional com seus antigos moradores pobres, uma vez que a Prefeitura assumiu um empréstimo junto ao até então existente BNH (Banco Nacional de Habitação) repassando-o na forma de pequenos empréstimos aos moradores evitando, assim, entraves comuns como a comprovação de renda, documentação e titularidade.

da de 705 de intervenções nos centros históricos atrelados ao capital e às dinâmicas econômicas ligadas ao turismo e lazer (Uriarte, 2012, p.51-52). Assim, é importante pontuar que o Monumenta não é um programa habitacional, mas sim um projeto de conservação e restauro, de monumentos tombados em nível federal, e de melhorias no espaço público próximo destes (ibidem, p.52), mas que é utilizado em alguns casos voltados para habitação, como na sétima etapa do PRCHS, enquanto um dos diversos instrumentos de recursos para a reabilitação e preservação destes imóveis.

Assim, segundo Sant’Anna (2017b), de certo modo, o Monumenta em sua fase inicial buscava atualizar a proposta do PCH6 (Programa de Cidades Históricas), no sentido de atuação descentralizada e aproveitamento turístico do patrimônio urbano (Bonduki, 2010, p.28, apud Sant’Anna, 2017b, p.150). Nessa fase inicial, financiou obras de conservação e adaptação de edificações, aprovadas pelo Iphan e executadas por seus proprietários ou ocupantes (Sant’Anna, 2017b, p.150). Além disso, os empréstimos voltados para essas obras compunham o Fundo Municipal de Preservação, a fim de ser reinvestido na conservação da área de intervenção do programa (ibidem). Com o seu término, o Iphan buscou aplicar a mesma lógica no PAC - Cidades Históricas (PAC-CH), lançado em 2009, mas não obteve sucesso, uma vez que limitou-se a obras de restauro de grandes monumentos e de requalificação de espaços públicos (ibidem). À guisa de panorama geral, “analisando-se as ações do Monumenta em todo o país, pode-se dizer que apenas em Salvador a habitação social tornou-se o elemento estruturador da reabilitação de um trecho do núcleo histórico” (Bonduki, op. cit., p.319). Dessa forma, após uma breve contextualização sobre as apropriações do Centro Histórico de Salvador, que se segue abaixo, será analisado o caso pioneiro da sétima etapa do PRCHS.

5 Apesar de na década de 90 intensificar-se a visão do patrimônio e da atividade cultural como estratégia de intervenções no âmbito do chamado planejamento urbano estratégico de caráter empresarial, já a partir da década de 60, tem-se a atuação das novas diretrizes da Unesco, nos ditames do que corresponde a bem cultural, a partir de uma lógica de cultura mercadológica, enquanto fonte de lucro. Especificamente no Brasil, a Unesco conjuntamente ao Programa de Cidades Históricas (PCH), na década de 70, atribuíram ao turismo cultural a agenda de promotor da preservação e do desenvolvimento das “cidades-patrimônio” (Sant’Anna, 2017b, p.143).

6 Criado em 1973, implementou uma primeira política integrada de preservação do patrimônio urbano no país, sendo um agente modernizador e transformador, cujo um dos principais resultados foi induzir a criação de organismos estaduais de preservação (Sant’Anna, 2017b, p.142).

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Simone, única mulher entre os artesãos que vivem nos casarões construídos nos arcos de sustentação na ladeira da Montanha. “Herdeiros de ofícios tradicionais de matriz africana”, alguns deles ali estão instalados há gerações (Rocha e Castro, 2019). O projeto de transformação urbana “4º Eixo do Programa Salvador 360º”, que abarca a área, em conjunto com as redes de hotéis de luxo no entorno geram pressão de saída desses moradores. Foto: Matheus Tanajura (reprodução de Rocha e Castro, 2019).

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