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B. SÉTIMA ETAPA

gestão: assim como nas etapas anteriores, foram removidas de modo autoritário 174 famílias e observou-se novamente o esgotamento de um modelo monofuncional de consumo, que não consegue se manter sem aporte contínuo de recursos estaduais (Sant’Anna, 2017a, p.95; Mourad, op. cit., p.80). A mudança de paradigmas e de postura somente se observou em 1999-2000, com a implementação da sétima etapa do PRCHS.

Terceiro momento: 7ª etapa (2000-atualmente)

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As mudanças mais significativas foram introduzidas nesta etapa por meio da reutilização do uso misto e habitacional considerada como um dos elementos âncora do projeto, em detrimento do uso monofuncional que se observou nas etapas antecessoras (Mourad, op. cit., p.79). Além disso, ao mobilizar para além dos recursos estaduais, federais e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), por meio do Programa Monumenta, deixou de ser uma intervenção comandada exclusivamente pelo governo estadual (ibidem). Por se tratar do recorte e foco específico desta monografia, a análise aprofundada desta etapa se dá abaixo.

B. SÉTIMA ETAPA

O desenvolvimento da sétima etapa, no bairro de São Dâmaso, é marcado por uma ampla disputa entre o Estado e os movimentos populares de moradia, no que tange a luta pelo fomento de habitação social voltada para a permanência dos moradores populares. Dessa forma, para melhor compreensão, divido a análise desta etapa em dois momentos, tendo como marco as ações judiciais enfrentadas pelos movimentos populares para garantir sua manutenção no território. A priori, será analisado o modelo inicial da sétima etapa, em que teve-se a movimentação do Estado em não garantir a permanência dos residentes tido como indesejáveis, adotando estrategicamente o programa habitacional para funcionários públicos do governo. Posteriormente, será abordada a faceta da sétima etapa que se conhece hoje, resultante da resposta dos movimentos populares mediante tal manobra.

Primeiro momento

Conforme já dito acima, diferentemente de suas etapas antecessoras, a sétima etapa do PRCHS manteve a diversidade do uso do solo. Contudo, é necessário pontuar que a mudança de postura não se deu enquanto um questionamento crítico em relação ao que vinha sendo feito. Na realidade, decorreu do desinteresse da

participação da iniciativa privada no compartilhamento da gestão e a fraca demanda para ocupação de novos estabelecimentos voltados para o consumo externo, leia-se turismo. Assim, teve-se a mudança de ênfase em relação às etapas anteriores para priorizar o uso residencial, contudo, sem prever a manutenção dos antigos moradores (Bonduki, op. cit., p.338). Essa guinada, inclusive, parte do fato de que, seguindo o diagnóstico realizado, 145 imóveis, tanto privados, como públicos e até mesmo monumentos, encontravam-se em estado de conservação regular ou péssimo, sendo evidenciado a necessidade de reparação (ibidem). Nessa narrativa, “o relatório é claro ao destacar que novas diretrizes deveriam orientar a intervenção, priorizando a habitação e prevendo usos não residenciais de modo complementar e compatível com a vocação da área (...)” (ibidem).

Segundo Bonduki, o modelo inicial da sétima etapa previa um auxílio a realocação das famílias a serem removidas, bem como um projeto habitacional, cujo financiamento basearia-se no programa de Arrendamento Residencial (PAR), gerido pela Caixa Federal, dada a experiência que o programa Rememorar10 obtivera por meio deste. Contudo, para o autor, a solicitação de uma habitação por meio desse programa para os moradores locais era “impossível em razão de sua renda irregular e

10 Rememorar (1999) corresponde a um projeto piloto de reabilitação de edifícios no Centro Histórico de Salvador que implantou 42 unidades habitacionais na área (Bonduki, 2010, p.325).

FORTE DE SANTO ANTÔNIO

LADEIRA DA ÁGUA BRANCA

Imagem 9

Poligonal do Centro Histórico de Salvador. Fonte e reprodução: Seminário Internacional de Reabilitação de Edifícios em Áreas Centrais, São Paulo, 20 a 22 de setembro de 2006. PILAR

BAIXA DOS SAPATEIROS insuficiente” (Bonduki, op. cit., 340). Nesse sentido, a remoção dos moradores estava explícita, principalmente, pelo fato do poder estadual orientar a intervenção do Monumenta para que o PAR se destinasse aos funcionários públicos estaduais. Todavia, Bonduki revela que, em geral, o uso do PAR na intervenção de São Dâmaso não se efetivaria, uma vez que além de sua rigidez burocrática, seu formato não atende as especificidades de um centro histórico11. Em linhas gerais, observa-se a diferença de destinação de subsídios que, para as etapas antecessoras de caráter comercial e de consumo foram fartas, e que, ao restringir ao uso habitacional, reduziram-se (ibidem). Assim, para viabilizar o projeto, o governo estadual criou o Programa Habitacional para Funcionários do Estado (Prohabe), e se valeu de recursos do Fundo de Previdência do Estado, bem como de recursos do Monumenta. Além disso, buscou-se criar um Plano de Gestão Ambiental, a fim de controlar os impactos negativos sobre a ocupação da área, reconhecendo seus diversos agentes do campo turístico, cultural e local. Nota-se, portanto, que quem residia ou iria residir no centro o fez utilizando artifícios seletivos, como o PAR, ou pelo simples fato de ser um funcionário público.

Nessa narrativa, para aqueles que não tivessem condições de arcar com o

11 Entretanto, a reabilitação de edifícios nas áreas centrais para habitação, por meio do Rememorar, vingou pois, para além do financiamento do PAR, houve uma séria de recursos adicionais por meio da Lei de Incentivo à cultura vinculada à Caixa (Bonduki, 2010, p.340).

SÉTIMA ETAPA DO PRCHS SÃO BENTO

LIMITE DA ÁREA TOMBADA PELO IPHAN E UNESCO

pagamento do financiamento, ou não tinham a “sorte” de ser um funcionário público, a única alternativa dada era a remoção mediante o pagamento do “auxílio-moradia”, chamado pelos movimentos de moradia de “cheque-despejo”, que gravitavam entre 1,5 mil reais e 5 mil reais (Bonduki, op. cit., p.341). Foram cadastrados 1.670 núcleos familiares. Embora os estudos do projeto indicassem a desapropriação e indenização dos moradores populares da área como o último instrumento a ser utilizado, além do fato de que, em levantamento, 80% da população indicou interesse em comprar o imóvel mediante o financiamento acessível, 1674 famílias foram majoritariamente indenizadas ou realocadas para o subúrbio de Coutos, um bairro distante do Centro (Sant’Anna, 2017a, p.101). Grande parte dos moradores não resistiam a sair dos imóveis em decorrência da ausência de organização comunitária, do atrativo das indenizações face a extrema pobreza do grupo, e o fato de não lhes ter sido oferecida possibilidade de aquisição de moradia mediante um financiamento acessível (Uriarte, 2012, p.57). Contudo, houve um grande movimento de resistência por parte de alguns moradores, fortalecendo-se com a atuação da Associação dos Moradores e Amigos do Centro Histórico (Amach).

É importante pontuar que este movimento de remoção insere-se em um cenário político diferente daquele vivenciado nas etapas anteriores, em nível estadual e federal. Em 2001, teve-se a criação do Estatuto da Cidade que, em conjunto com outros instrumentos jurídicos (emenda do artigo 6º da Constituição Federal e Medida Provisória 2.220) reconheceu o direito à moradia. A Associação teve, a partir de 2003, com a mudança do governo, um forte aliado para reverter esse processo. Em nível estadual, o governador Antônio Carlos Magalhães renunciou, em 2001, sob risco de cassação (Bonduki, op. cit., p.342). É neste cenário que o Ministério Público intervém, por meio de uma Ação Civil Pública (ACP), em conjunto com a atuação da Amach. Nessa narrativa o governo federal, por meio do Monumenta e do Ministérios das Cidades, “atuou de acordo com sua linha programática”, buscando uma solução que garantisse o direito dos moradores a permanecer na área (ibidem).

Segundo momento

O pedido da Associação de Moradores e Amigos do Centro Histórico (Amach) pela intervenção do Ministério Público nas ações de violação do direito à moradia, promovidas pelo governo estadual, marca o segundo momento de desenvolvimento da sétima etapa do PRCHS. Por meio da ACP, o Ministério Público e o governo da Bahia assinaram, em 2005, um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) “que previa a permanência das famílias moradoras cadastradas pela associação de moradores, num complexo arranjo de fontes de recursos de diversas origens, capaz de viabilizar um novo desenho social, institucional e financeiro para o projeto” (Bonduki, op. cit., p.343).

Em linhas gerais, o TAC estabeleceu diretrizes básicas para a continuidade do projeto, como a permanência das 103 famílias cadastradas pela Amach, a obtenção de subsídio do Ministério das Cidades para as famílias, e a adequação das unidades. Além disso, o termo avança ao propor uma gestão e participação democrática, em que a comunidade deveria integrar a discussão para definir o programa da ação, seus equipamentos coletivos e reabilitação das unidades (Bonduki, op. cit., p.346). Além disso, o TAC determinou que cabia ao Governo Federal, para além do Monumenta, garantir o financiamento por meio do Programa de Subsídio Habitacional (PHS) do Ministério das Cidades ou por outro programa habitacional para suprir as demandas da população de baixa renda (ibidem) . Destaca-se ainda medidas como a contratação de parte da população para realização das obras, bem como da promoção de cursos de capacitação e atividades de geração de renda (Bonduki, op. cit., p.347). Por fim, além do projeto atender os moradores, em parte, atendeu a demanda dos funcionários públicos: 200 moradias seriam destinadas aos funcionários por meio do Prohabe (ibidem).

Contudo, é importante pontuar que, para além da pressão dos movimentos de moradia, se a guinada de postura monofuncional do modelo inicial da sétima etapa não decorreu de uma reflexão crítica acerca dos saldos e diagnósticos que se observou nas etapas antecessoras, no modelo vigente, observa-se o mesmo cenário. A mudança pra o uso do solo misto com enfoque nas habitações decorreu em função das exigências que acompanham os financiamentos do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), estes, no caso, vinculados ao Programa Monumenta (Sant’Anna, 2017a, p.99). Nesse sentido, a sétima etapa contava com os seguintes fundos: (i) Programa Monumenta, a fim de destinar recursos para a restauração dos telhados e fachadas de todos os imóveis da etapa em questão, “garantindo o respeito e a recomposição dos elementos construtivos a serem preservados” (Bonduki, op. cit., p.347);

(ii) Governo Estadual, caberia o pagamento das desapropriações dos imóveis que fossem de proprietários privados; (iii) Ministério das Cidades, por meio do Programa de Habitação de Interesse Social (Phis), aportaria subsídio de 17,5 mil reais para cada família dos antigos moradores;

(iv) Fundo de Previdência do Estado, financiaria habitações destinadas aos funcionários.

Prevê-se que os recursos do Monumenta retornem, em condições especiais, para o Fundo Municipal de Preservação, FUNDOCENTRO12, a fim de que usos, como a manutenção futura dos edifícios, fossem possibilitados aos moradores. Além disso, os

recursos do Prohabe também retornariam a fim de preservar o Fundo de Previdência do Estado (ibidem). À guisa de saldo geral, no total, a sétima Etapa de Recuperação do Centro Histórico de Salvador propõe-se a abarcar 76 edifícios, totalizando 338 unidades residenciais e 55 pontos comerciais (Bonduki, op. cit., p.348).

Após as obras, as unidades habitacionais, de em média 37 m2, seriam apropriadas com uma prestação média de 154 reais (Sant’Anna, 2017a, p.100). Em linhas gerais, “a intervenção da 7ª etapa deveria, assim, romper com o esquema concentrado de propriedade existente na área recuperada do Pelourinho e com o regime de ocupação predominante via inquilinato” (ibidem). Os novos proprietários passariam a ser responsáveis não só pela administração dos imóveis, mas também por sua manutenção, conjuntamente com recursos do FUNDOCENTRO. Além disso, subsídios não eram mais diretos aos proprietários, como ocorreu nas outras etapas. Na realidade, ele se dava via empréstimo, o qual seria futuramente revertido ao FUNDOCENTRO, a fim de garantir a continuidade do próprio projeto. Todavia, apesar de avanços como os direitos alcançados pela permanência dos moradores, sintetizadas no esforço da Amach, a sétima etapa também é marcada pela permanência de práticas das etapas passadas. No que tange ao caráter prático da intervenção:

“o partido físico da intervenção também pouco diferiu do anterior, no sentido de que uma importante documentação urbanística, mais uma vez, seria perdida, com a eliminação indiscriminada de anexos (alguns dos quais constituíam ‘avenidas’ de casas cosntruídas para abrir os negros libertos depois da escravidão) e o rompimento de relações de parcelamento, entre cheios e vazios e de ocipação do conjunto. Consoante com a concepção fachadista de patrimônio, que caracterizou as intervenções no centro histórico, os interiores dos imóveis seriam barbaramente retalhados para dar lugar aos pequenos apartamentos que se encaixavam na montagem financeira, apesar dos subsídios públicos que foram mobilizados. Além disso, dificilmente uma família baiana de classe média baixa seria estável a ponto de se adaptar sem promover ampliações ou novas subdivisões, a um espaço habitacional tão exíguo. Assim, tudo indicava que as perdas para o patrimônio seriam grandes e não se limitariam ao que estava previsto nos projetos” (Sant’Anna, 2017a, p.101 - grifos meus).

Além disso, embora a ACP tenha obtido êxito, é preciso evidenciar que outro trâmite legal do processo, que ocorria paralelamente à ACP, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), obteve uma resposta por parte da Procuradoria Geral da União, em que descaradamente associava a pobreza à ausência de cultura (Uriarte, 2012, p.60). A Procuradoria questionava se de fato havia um modo de viver, de habitar e de saber que constituía essa população popular e que merecia ser reconhecida e preservada (GEB/PGE, 2003, p.14. apud. Uriarte, op. cit., p.60). Nesse sentido, a seu ver, trata-se mais de “condições de pobreza” do que “uma cultura em verdade” (idem):

pas que conseguem, a maior parte de andranjos. Tampouco criam dialeto, mas falam simplesmente errado, arremedo de uma língua que desconhecem (...). Existe tão somente um estilo de vida determinado pela pobreza, indigno de ser considerado como expressão da dignidade da pessoa humana (...) apenas denota pobreza e marginalidade (...). Não há, na hipótese, cultura popular a ser protegida” (GEB/PGE, op. cit., p.1617, apud. Uriarte, op. cit., p.61).

Observa-se, portanto, uma ambiguidade por parte da Promotoria ao afirmar que não há cultura a ser protegida, uma vez que, ao mesmo tempo em que se afirma isso, a administração pública apropria-se dela para criar um imaginário coletivo para atração de turistas nacionais e internacionais. Para isso, retoma-se códigos como o traje das baianas, o acarajé, a capoeira, o candomblé, dentre outros, mas ao mesmo tempo, anula-se os corpos majoritariamente pretos e pobres que os evocam, os vivenciam e os produzem (Uriarte, op. cit., p.61). Ou seja, vale-se de códigos culturais dotados de “retorno financeiro”, seguindo de certo modo os paradigmas da Unesco, enquanto, concomitantemente, expulsa-se os moradores, os agentes de tais códigos (ibidem).

A partir do exposto, à guisa de análise sobre o processo como um todo, Sant’Anna indica que, num aspecto geral, as intervenções na área central de Salvador, provavelmente devido a suas funções eminentemente promocionais, assim como ao seu desvinculamento de questões sociais e urbanas, não se fundamentaram em planos urbanísticos ou projetos globais, tampouco conformaram dados sistematizados13 que permitissem monitorar seu impacto (Sant’Anna, 2017, p.111). Assim, a autora ilustra:

“mesmo no âmbito dos novos projetos habitacionais, em que pesem as pesquisas de demanda realizadas, se trabalhou sem plano de conjunto e sem dados essenciais como, por exemplo, número de domicílios residenciais e comerciais vagos por setor. As informações, quando existiam, se encontravam dispersas e dificilmente mapeáveis” (ibidem, p.112).

Bonduki colabora ao debate lançando luz para o fato de que, para além do projeto em si das habitações, é imprescindível o grande esforço dos responsáveis pela intervenção para garantir a manutenção destes moradores no território, assim como das unidades, por meio de processos de qualificação profissional, a fim de permitir sua inserção tanto social, quanto no mercado dito formal, com seus respectivos benefícios, como maior estabilidade. Como não observou-se uma movimentação nesse sentido na sétima etapa do PRCHS, Bonduki indica que há riscos de ocorrer um processo rápido de deterioração dos imóveis, bem como de se reproduzir uma ocupação informal das moradias, com subdivisão dos compartimentos, adensamento populacional, sublocação ou cessão de espaços habitáveis, ou ainda de que as famílias de

baixa renda repassem, informalmente, suas unidades (Bonduki, op. cit., p.361). Como potencial consequência da não manutenção da ambientalidade, bem como da não inserção social desses moradores, tem-se a eventual substituição da população original por uma de renda mais elevada, como observou-se na cidade baixa de Salvador, uma porção do centro histórico que tornou-se alvo do mercado imobiliário (ibidem, p.362). Um gatilho para isso é justamente a instalação de funcionários públicos estaduais, que possuem renda notadamente superior aos moradores locais (ibidem, p.362-363).

A partir do panorama exposto, salvo os problemas e fragilidades que apresenta, certamente a sétima etapa do PRCHS possui dimensão e impacto social significativos, adquirindo “relevância extraordinária”: “com essa solução, viabilizou-se um pequeno projeto, mas que já constitui a maior intervenção de interesse social a ser realizada no país em edifícios de valor patrimonial” (Bonduki, op. cit., p.348).

Imagens 10 e 11

Da esquerda para a direita: ruas São Francisco e Beco do Seminário, respectivamente. Fonte e reprodução: Bonduki (2010).

Imagem 12

ZEIS e poligonal da sétima etapa do PRCHS. Fonte e reprodução: Sacramento (2018).

Imagem 13

Uso do solo da poligonal da sétima etapa do PRCHS. Fonte e reprodução: Sacramento (2018).

Imagem 14

Patrimônio tombado da poligonal da sétima etapa do PRCHS. Fonte e reprodução: Sacramento (2018).

ELABORADO POR: SACRAMENTO (2018)

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