Recensão Crítica.

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Instituto Politécnico de Beja Escola Superior de Educação de Beja Curso de Artes Plásticas e Multimédia U.C. História da Arte Contemporânea Docente: Viviane Soares Silva Realizada por: Miguel Sousa Ribeiro

RECENSÃO CRÍTICA “About Wounds” in Milglietti, F.A. (2003). “Extreme Bodies: The use and abuse of the Body in Art”. Milão: Skira, pp.15-41. Parti para o estudo da minha recensão, e agora parto para o seu início, a estudar/perceber a relação entre arte e dor para depois ser desconstruída pelos temas abordados mais à frente e ir de encontro ao que pretendo e que os próprios conceitos estudados exigem. Posto isto dizer que relacionar a arte e a dor pode parecer estranha à primeira vista, pois a arte, vista numa concepção clássica, existe no campo da fruição do belo e, segundo a tradição clássica, a arte seria um meio para ensinar o “bem”. Daqui poderá surgir a questão, se seria possível conciliar a arte “da dor” e essa visão, mais, tradicional da arte? Bem, parece-me que, na verdade, isso não só é possível, como também, de certa forma, essa ‘modalidade’ da arte sempre foi no mínimo tão importante – e “clássica” – quanto a sua vontade contrária à representação da dor. «Como sabemos, na mitologia clássica podemos encontrar representadas todas as paixões, de amor-ódio, como na Ilíada, uma das obras fundamentais da nossa literatura e que está na base de inúmeras obras de arte, onde nos mostra um retrato de guerra reveladores dos seus aspectos quer heróicos quer terrificadores. 1 » Tal como, noutro exemplo, a tragédia grega é em muitos sentidos uma encenação da dor, em todos os seus graus, da dor física à dor pela perda, pela privação, até à dor da ferida mortal, e, para nos levar ao exemplo definidor, a própria arte cristã é, também, fundamentalmente a arte da representação da paixão de Cristo bem como da história do seu martírio e da sua dor extrema. Ao falar de arte e dor, é conveniente que tenhamos estes factos bem presentes. Já Aristóteles tinha colocado, no centro da sua teoria, a tragédia, a “purgação” das paixões, a piedade e o terror. Purgação, essa, que só funcionava graças à identificação e à consequente compaixão, realçando a este facto que, nós homens, sentimos terror diante da morte e ganhamos uma forte ligação e/ou identificação com quem sofre, até porque, sem esse pressuposto, a tragédia das representações cristãs da paixão não teriam funcionado. Pensemos, agora, na crucificação de Cristo ou nos quadros representativos de São Sebastião amarrado e ‘atacado’ por flechas no seu corpo, para reforçar a ideia que sempre “assistimos” a uma encenação da dor mediada pela identificação com aquele que sofre, sofrer na nossa pele o que o outro sofre na dele, veremos mais tarde esta aproximação à matriz teórica da 1

SELIGMANN-SILVA, Marcio, Arte, dor e Kátharsis ou Variações sobre a arte de pintar o grito, 2003. p.1. Recensão.


Body Art e dos Accionistas Vienenses, onde o espectador é levado a sentir no seu próprio corpo o que está a ver ser feito no corpo do outro (no caso, do artista). Esta questão leva-me a referir, sem grande risco, que na questão da mímesis, na arte, sempre vivenciamos imaginariamente a dor no nosso próprio corpo que é transmitida pela visão. A arte sempre esteve relacionada à morte e ao terror, como encenação do sacrifício e como culto dos mortos. Assim, podemos começar por perceber que a representação da dor, no corpo, na história da arte é tão importante quanto as noções, complementares e não opostas, a meu ver, de “belo” ou de “harmonia”. Afinal, o belo e a dor não se excluem, mas por outro lado, existe uma associação possível e tradicional entre as representações da dor e a quebra na harmonia, e também se estabeleceu, diversas vezes, um vínculo entre a dor e o feio, e, ainda, entre a dor e o sublime. Voltando à questão do medo, associado não só ao feio, ao sacrifício e à tragédia mas acima de tudo à imposição deste sobre as pessoas, para que estas o entendessem de forma, quase, de redenção, de sacrifício pelo outro, «datam de há muitos anos a esta parte, períodos como o final da Idade Média e Renascentista que contribuíram, fortemente para o desenvolvimento da pedagogia do medo, incutida nas pessoas, quer pelos governantes como também pelo clero, este a nível espiritual, com o objectivo, claro, de um maior controlo social, à época, com diversos conflitos sociais, políticos e culturais. 2» Refiro-me à pedagogia de apreciação, imposta, e à recorrente utilização da representação da figura do diabo, declarando-a e incutindo-a na mentalidade e no imaginário cristão numa alusão ao corpo físico como algo finito e à alma como eterna. Assim o medo instaurado nas pessoas era a ferramenta escolhida na época pelos governantes e membros do clero para imporem as suas ideologias e religiões com o intuito de se perpetuarem poderosos e no poder, sendo que a importância didáctica das imagens é na grande sociedade feudal, em regime de servidão, pois além de lembrarem uma história sagrada, suscitam o arrependimento dos pecadores e, claro, facilmente iludem, instruem o povo, sobre os temas bíblicos. Esta minha pequena nota introdutória, reflecte-se e muito, a meu ver, na primeira frase do prefácio do texto de F. Miglietti: “ O corpo e o poder, ambos religiosos e políticos, o corpo e as políticas de poder” 3 mas acima de tudo nas palavras de A. Kroker, quando ele afirma “ …agora é possível ser culturalmente de vanguarda e ao mesmo tempo ser reaccionário político. 4” Mas, em meu entendimento, reflecte-se de forma contrária, pois nas épocas a que me referi até então isto não acontecia de todo, pois as pessoas não usavam o corpo para se oporem ao poder, não tinham poder no seu corpo, eram as políticas e as religiões que manietavam o corpo às pessoas, quer físico quer psicológico, não as deixando livres, a todos os níveis. Não é à toa que para muitos cristãos, segundo Umberto Eco, «existe beleza na imagem de Jesus ensanguentado, morto e maltratado/crucificado, apresentado num altar de imolação em forma de cruz. O que se vê de belo na imagem do filho de Deus desfigurado, provavelmente é a transcendência da sua alma pura e bela, harmoniosa e digna. Uma abstracção simbólica que é narrada como ressurreição. A fé dos cristãos transcende a imagem do corpo/carne que se decompõe e vê além dessa imagem um espírito que é puro e perfeito. 5» Aqui terei que fazer um paralelismo com a luz ascética, falada no texto de Miglietti, sobre o trabalho poderoso de Fra Angelico, por isso foi um pintor ‘aproveitado’ pela religião/Igreja, não fosse igualmente a luz uma grande característica do seu trabalho, luz essa ampla, transcendente “que se torna uma metáfora para a verdade religiosa, onde os olhos vulgares ou preparados não podem ver nos seus trabalhos o corpo da ferida, a crueldade infligida, o escárnio. O corpo de Cristo, de Fra Angelico é um corpo ferido…há um crânio encharcado de sangue, um lugar de alienação, o

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in MIGLIETTI, F. A. (2003). Extreme Bodies. The Use and Abuse of the Body in Art. Milão: Skira, p. 15.

ID.Idém. ID.Idém.

CAMPOS-GARCIA, Eduardo de. O BELO E O FEIO: resquícios de um nazismo. In: Filosofia, Ciência e Vida. São Paulo, SP: Escala editora. 2013. p.5.


paradoxo do símbolo da vida… 6” poder-se-á relacionar esta frase ao corpo-mistério, corposagrado, pela via da morte, sofrimento, por dar o corpo pelo outro. E acrescentar, um conceito mais percebido na actualidade ou, pelo menos, a partir da década de 60, quando mais à frente abordar a Body Art, o corpo como objecto de transformação. Vários acontecimentos históricos marcaram o mundo e tiveram repercussões, por exemplo, no âmbito científico ou na propagação de doutrinas religiosas, já faladas até aqui. Doutrinas que produziram uma visão dualista do corpo, precisamente pelo seu poder exercido, e já falado anteriormente, impondo as suas crenças e os seus princípios aos povos ditos primitivos no mundo ocidental. O esforço seria para a individualização do corpo, e também construí-lo enquanto instância dupla. Daqui poderemos entender que do corpo se extrai uma imagem, que há corpo e imagem desse mesmo corpo. E com isto, uma associação clara ao cristianismo, pelo menos em dois momentos distintos “o homem foi criado à semelhança de Deus” um fundamento antropológico cristão e também a indicação de que Jesus Cristo é a imagem de Deus. E estas serão certamente duas imagens sagradas, e sendo o homem incapaz de apreender a essência invisível do sagrado, o papel das doutrinas e das imagens é guiá-los através do mundo sensível para alcançarem o mundo inteligível, mas visto de uma outra forma, o papel das doutrinas é dar uma convenção ao povo, fazê-los acreditar no sagrado, na divindade, criandolhes medos, bloqueando-os na sua forma de pensar, pois o que lhes dão é impossível de prova, daí ser inteligível, nada mais é que não simbólico mas passam a mensagem como algo real e ela foi-se propagando com o passar dos anos, de tal forma que nos dias de hoje está ainda vincada. Esta questão leva-me ao pensamento de Jean Baudrillard quando ele nos fala de simulacro como algo que está aquém e além da verdade ou da mentira e com isso não oculta nenhuma delas, é a não-verdade, neste caso, que oculta que não existe e por isso nunca é passível de prova nem de desmentido. Do que se trata é uma representação falsa do real, trata-se de esconder que o real não é real, e com isso salvaguardar o princípio de realidade, fazer crer que existe, ou existiu, no caso. Por muito renitentes que possamos ser em relação a este assunto, é-nos difícil, e falo por mim, dissociarmo-nos dele, da crença, do acreditar no poder divino, na salvação, mas, quase em simultâneo não acreditar em nada disso, e, somente em momentos de grande dor, sofrimento e na morte ou na doença grave, de alguém querido nos socorremos dessa fé, crença e, de forma instintiva, tentamo-nos socorrer em algo superior. Isto, apesar de ser contra as doutrinas impostas e convenções e perceber que a própria igreja esconde, é secreta, milionária, domina e sempre tentou dominar o povo, incutindo-lhes os medos necessários para que estes acreditem nas suas teses, e eu, além de perceber que dentro dessas mesmas doutrina se pratica o mal, e, se mesmo assim socorro-me da fé quando mais preciso, isto diz-me que está de tal forma impregnado na sociedade sendo já culturalmente aceite, que passou de povos e de gerações que por muito que pense e saiba disso, o meu e/ou o nosso instinto enquanto humanos será sempre nos socorrermos em algo divino. Esta breve experiência própria que acabo de constatar remete-me a Michel Foucault quando nos diz que “…as relações de poder operam um domínio sobre ele(corpo), atacando-o, marcando-o, treinando-o, torturando-o, forçando-o a cumprir determinadas tarefas, obrigando-o a participar em cerimónias e exigindo determinados sinais dele. 7” Ou seja, eu fui baptizado, sem o meu consentimento, fiz duas comunhões, sem opção de escolha, andei na catequese da mesma forma, sem nunca ter decisão própria, este poder exercido sobre mim, veio do reino familiar que tinha sido levado a acreditar nas convenções, no que os outros dizem, no culturalmente aceite, acredito que com boa fé para que nada de mal me viesse a acontecer e para a sua consciência ficar, de alguma forma, tranquila. Já basta não escolhermos nascer e, por

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[5] in MIGLIETTI, F. A. (2003). Extreme Bodies. The Use and Abuse of the Body in Art. Milão: Skira, p. 18,19. 7

in MIGLIETTI, F. A. (2003). Extreme Bodies. The Use and Abuse of the Body in Art. Milão: Skira, p. 17.


norma, morrer, apesar deste ser possível ter opção sobre ela. Deixemos por agora o meu caso concreto mesmo que seja exemplo de outros. Todas estas forças exteriores ditas até então, ao longo de anos e anos, de séculos e séculos, sejam elas do clero, das doutrinas, dos governantes e da sua sede de poder, poder esse que é mais fácil de exercer quando sobre um povo mudo, passivo e que facilmente acredita no que lhe dizem, seja pelo medo incutido, seja por obrigação, levaram à necessidade da libertação desse mesmo corpo, quer físico mas acima de tudo psicológico, para que tivesse poder de decisão, escolhas, pensamento próprio e fugir às massas enformadas e formatadas. Assim, a década de 60 do século XX, foi das mais marcantes a este nível, pela conjuntura do seu contexto-social-político à época, como a Guerra do Vietname, as grandes revoluções estudantis, como a conhecida ‘Maio de 68’ bem como o próprio festival Woodstock, levaram a uma contestação social ímpar na história, onde esta Cultura Underground fez-se notar quer pela mudança de atitude e de valores, focada em transformar a consciência e os comportamentos, não só de poderosos mas da própria sociedade alienada, e temas como o sistema de educação, a sexualidade, a igualdade de género ou os tabus sexuais foram colocados à discussão tendo um enorme reflexo na arte, pois ao encontrar ressonância/legitimação nos media, chegando a mais gente e tendo mais poder contra os poderosos, e cria um manifesto político do ‘eu penso’, ‘eu critico’, ‘eu decido’, ‘eu opto’, sendo que de toda esta reflexão dá-se a conclusão de que é no corpo que está o poder, é no corpo que convergem todas as relações de poder, “ o corpo é meu faço dele o que eu quero”, há a descoberta do corpo físico e mental e a sua libertação será a luta. Para isto o corpo teria que se transformar, teria que agir, e surge no contexto artístico vários artistas a efectuarem no seu corpo a sua luta para não só a sua libertação, como para a libertação da sociedade, uma luta contra a cultura hedonista como a cultura do prazer e da ocultação, da obscuridade e da falsidade, e com a descoberta do corpo, ao usar este como manifesto, onde o conceito de dor, já falado desde o inicio do meu texto, se sobrepõe ao conceito de prazer, pois é na dor que sentimos, verdadeiramente, o corpo, no prazer abstraímo-nos dele, reforço esta ideia nas palavras da artista Gina Pane quando esta afirma: “o corpo só é verdadeiramente meu quando sinto dor” e usar o corpo contra as regras e regulamentações impostas. E claro, lembrar que a body art se insere na arte conceptual e que um dos seus princípios-chave é o de fazer critica institucional contra as estratégias de comercialização da arte, ir contra a percepção de arte como mercadoria. E, se como nos diz Jean-Paul Sartre “…mas simplesmente caí para o mundo no meio das coisas e preciso da mediação do Outro para ser o que sou… 8” precisamos de audiência de receptores para sermos o que somos mas também para lhes mostrarmos o que queremos ser ou fazer intuir/reflectir, por isso já não interessa ter observadores nem espectadores na arte, agora é preciso ter testemunhas…cúmplices para que sentissem na sua pele, no seu corpo tudo o que os artistas lhes queriam passar, que iria ser, tal como na crucificação de Cristo e em muitos outros quadros de Fra Angelico mas não só, os artistas, com especial evidência os Accionistas Vienenses, iriam voltar à ferida, à dor, ao sangue, à pele rasgada, à profanação do corpo, à purificação e redenção pelo sofrimento, tal e qual como a redenção de Cristo pelo sofrimento/morte a bem da humanidade! Estes artistas mostram a verdade da carne, do suor, do esperma…dos fluídos, mas também o ódio à carne e vontade de mortifica-la e escarifica-la, precisamente por estar contaminada pela velha cultura e quererem ver-se livres dela, e mostram igualmente um corpo doente, disforme que é exposto escandalosamente e propositadamente para acordar uma sociedade adormecida e muda, tornando-a testemunha/cúmplice ao integrar o acto da crueldade imposta pelo artista ao seu próprio corpo mas também ao de quem vê, fá-lo sentir na sua própria pele. Aqui sim o verdadeiro homem primitivo, expulsando todas as suas pulsões, todos os seus desejos, loucuras e com isto libertando-se do corpo que tinha sido educado, marcado, disciplinado, marcado e treinado.

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in MIGLIETTI, F. A. (2003). Extreme Bodies. The Use and Abuse of the Body in Art. Milão: Skira, p. 21.


Quando o Accionista Vienense, Rudolf Schwarzkogler nos diz que a arte era um “purgatório dos sentidos e uma cura de desintoxicação” 9, a meu ver e no seu caso específico, ele diz-nos que usa a arte e o seu corpo, violentamente marcado pelo seu contexto vivido na monarquia Austro-Hungara, para purificar os seus sentidos, o seu corpo, o interior do seu corpo, retirando-lhe toda uma epidemia de imposições, bloqueamentos, regras, retirando-lhe até órgãos organizados pelo exterior e que ele queria ver-se livre, queria a cura do seu interior e agiu sobre o seu corpo para desintoxicá-lo dos vírus que lhe tinham introduzido. E assim ter a “regeneração da capacidade interior”10. Fazendo uma analogia ou alusão a Deleuze e Guattari, quando falam sobre BwO (Corpo sem Orgãos), quando dizem que “O inimigo é o organismo e que o BwO opõe-se não aos órgãos, mas à organização dos órgãos a que chamamos organismo…” e que “os verdadeiros órgãos precisam de ser compostos e posicionados”11, é precisamente isto que faz R. Schwarzkogler luta contra os órgãos que foram organizados pelos organismos (forças) exteriores, ele quer retirar estes e colocar os seus verdadeiros órgãos onde quiser, tê-los à sua mercê, sob o seu próprio domínio. Rudolf Schwarzkugler, é de tal forma extremista, que além de querer curar os seus órgão, criando-lhes ferimentos, mutilações, chega mesmo a retirar o seu órgão genital, num acto onde parece “querer perder a auto-consciência masculina de poder e ultrapassar-se a si próprio como um ser masculino” como diz Miglietti 12. O que demonstra bem, entendo eu, todo o poder do homem exercido sobre ele durante a sua vida. Parece que chegou a um ponto de saturação tal que explodiu contra as regras e regulamentações, contra quem não o deixava conhecer-se a si próprio, e essa saturação ou limite transformou-se em extremismos e em nãolimites, ou seja, em oposição ao seu estado acumulado imposto pelo exterior. Aceito que seja um acto e pensamento extremo e de complexidade elevada mas, pessoalmente, entendo-o da maneira transcrita e com enorme facilidade, apesar de não ter vivido à época, sinto que nos dias de hoje esta libertação se impunha, ou se estes actos tiveram uma repercussão fortemente política deveriam ser mais propagada/explicada pela sociedade contemporânea e actual. Pois o corpo é o instrumento que contém estruturas significantes e o seu gesto-signo é lido de acordo com o âmbito social no qual se insere. Se, antropologicamente, percebemos que o corpo humano é afectado pela religião, pelo grupo familiar, pela classe e intervenientes sociais e culturais, o corpo molda-se com o seu meio, a sociedade projecta nele a fisionomia do seu próprio espirito deixando de ser a fonte a origem dos seus comportamentos, para ser a dos outros ou a que estes exigem. . Voltando aos accionistas, grupo que incluía além de R. Schwarzkogler, Herman Nitsch, Günter Brus, Otto Muehl e Arnulf Rainer, eles representavam nos seus trabalhos a complexidade angustiada da vida que tinha até agora sido definitivamente comprometida pelas várias formas de “doenças existenciais” e no seu corpo sentiram necessidade de sofrer mortificação, humilhação, laceração, auto-mutilação, antes que pudessem, finalmente, e de uma vez por todas arrancar/despir a pele da respeitável sociedade de classe média e que põe em causa e sua própria identidade, pois a meu ver e segundo o acção e pensamento destes artistas eles não tinham identidade própria, tinha isso sim, recebido de identidades exteriores a criação da sua própria identidade, pois como nos diz F.A. Miglietti, não é o corpo que muda mas sim a identidade 13, ou seja, as transformações que o corpo tinha tido reflectem-se na identidade, logo, a forma como vestimos ou nos penteamos pode reflectir as normas de controlo e expectativas sociais que nos rodeiam, tendo sido, também a partir delas, que os artistas se serviram dos seus 9

ID.Idem, p. 22.

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ID.Idem. ID.Idem, p. 25.

ID.Idem, p. 24.

ANATOMIE - Francesca Alfano Miglietti(2012), Singularidades e multiplicidades dos corpos nas artes.https://www.youtube.com/watch?v=tSXZtuDWpug.


corpos e desmantelaram estas normas, rompendo com os significados aceites da identidade destes conceitos. O corpo pode ser belo ou nojento, ser amável ou agressivo, mesmo que involuntariamente. O corpo é um composto que vive num equilíbrio dinâmico entre as forças, colectivas e individuais mas, talvez mais pelo aspecto individual. O corpo tem memória, mistérios, ao mesmo tem que revela, encobre e através do corpo podemos ser vistos e julgados. Ele é também o grande culpado. Ele aparece, atrapalha, dói, adoece, engorda, murcha e envelhece. Trai, treme. Carrega a alma e acolhe o bom ou o assassino e o psicopata. Age e reage. O Homem é corpo, alma e mais. O corpo é o profano e a alma o sagrado, mas a alma está no corpo, esse corpo que é matéria, que é suporte. Suporte da pessoa que faz tatuagens, perfura, mutila, tinge, modela músculos, deixa a barba, enfim, cada uma destas acções tem uma razão e reflecte-se numa estética para com a sociedade. Por isso, quando se foge das ditas normalidades sociais, das convenções, causa-se choque e pode-se ser entendido como marginal, fora das regulamentações que a própria sociedade impõe a si mesma. É percebendo estas ideias e lutando contra elas que a Body Art, e especialmente os Accionistas agem percebendo que não há melhor médium, não há melhor instrumento que o corpo, pois além de ser nosso é também o que mais chocará, psicologicamente, onde a testemunha melhor será levada a sentir, a reflectir e a ser cúmplice. O corpo como lugar de existência. Conseguido pelo conhecimento mediado pelo corpo (Aisthesis), reforçada nesta brilhante definição de Maurice Merleau-Ponty:”tratando-se do meu próprio corpo ou de algum outro, não tenho nenhum outro modo de conhecer o corpo humano senão vivendo-o. Isso significa assumir total responsabilidade do drama que flui através de mim, e fundir-me nele. 14”Percebemos que é a partir do corpo que conhecemos, quando vivenciamos, quando sofremos, sentimos, agimos, descomplexados e fora de qualquer préconceito ou estereótipo, quando damos ao corpo a total liberdade e responsabilidade, quando nos assumimos enquanto Ser. Aos artistas inseridos na Body Art, interessa uma observação do interno frente ao externo, do pequeno frente ao monumental, ou ainda do velado(oculto, encoberto, escondido)-o invisível; mente; interior, o que o outro pode entender, frente ao desvelado(revelado; descoberto)-o corpo, o visível, o que o outro vê, que é como nos diz René Berger quando diz:”…não somos e nunca fomos criaturas falantes ou visuais, primeiramente nós somos criaturas de carne e sangue. Muito menos somos alvos de tiros, que é o que nos reduz o discurso da propaganda de massa e da publicidade. De tal forma – conclui ele - que a Performance e a Body Art devem mostrar não o Homo Sapiens, que é como nos intitulamos do alto do nosso orgulho, e sim o Homo Vulnerabilis, essa pobre e exposta criatura, cujo corpo sofre o duplo trauma do nascimento e da morte, algo que a ordem social pretende ignorar. 15” Com isto, a Body Art ou a Arte Extrema e os seus artistas manifestam uma enorme vontade de quebrar as barreiras entre a Arte e a Vida, utilizando o corpo como matéria e suporte de arte, isto leva-me a pensar numa corrente artística e no seu autor-referência, Pop Art e Andy Warhol, respectivamente, que quis ligar a arte à vida(no caso ao quotidiano) mas de uma forma manipulada, falsa, até, demonstrando o real como imagem desse mesmo real, ou seja mostra a imagem da realidade, a exterioridade em detrimento da interioridade, dando até um real que se funde a partir da imagem tornando-se num hiper-real e na falta de consciência e certezas. É um simulacro, o parecer do ser. Ora, a meu ver, precisamente o oposto da intenção dos artistas da Body Art e dos Accionistas, que querem, isso sim, mostrar o verdadeiro real, o real de cada um, de cada indivíduo. Querem mostrar o que estava escondido e oculto pelos organismos e convenções, querem isso sim, pensar por si próprios e colocar cada individuo da sociedade igualmente a pensar por si próprio, a ser conhecedor de si mesmo, para poder conhecer o mundo através de si e não através dos outros. Assim, estes artistas ao se aperceberem, além de tudo o que foi dito, à estagnação da arte de então, onde se inclui a Pop Art e a Minimal Art, pois estas 14

Definição do autor Maurice Merleau-Ponty. Estudo em aula e investigado em contexto autónomo. Novembro de 2013. 15

Conceito do autor René Berger. Investigado em contexto autónomo. Novembro de 2013.


relacionavam-se muito com a perda de consciência, Niilismo e incapacidade do Eu se fazer sentir, buscaram uma vasta abertura entre as formas de expressão artística diminuindo a distância entre arte e vida, e com isto que os próprios artistas fossem mediadores de um processo social ou mesmo estético-social, pois como estes estavam a alienar as pessoas (e a arte a entrar no ‘jogo’), a sua identidade e individualidade, pois como sabemos o capitalismo, a velha cultura hedonista os formatava e enformava para um (não) pensamento, ou seja, um pensamento massificado, passivo que não os colocassem em causa nem os questionassem. “Assim o corpo torna-se num novo território para a discussão, uma nova indicação do caminho de fuga dos aliados cegos, duma realidade que nos transformou em utilizadores, consumidores, eleitores, pacientes, clientes, devedores e rivais… 16” como descreve Miglietti no texto, é precisamente contra esta sociedade que o corpo se insurge, nos finais da década de 60 e princípios de 1970, do século XX. Sendo que o corpo é o meio mais directo para se dirigir a um grande público, pois choca-o e leva-o a reavaliar as suas concepções de arte mas também a sua própria relação com a cultura (social, política e educacional). E pode-se dizer que o artista ganha uma presença na sociedade. Estes artistas, especialmente os Accionistas, são igualmente provocadores e respondem afirmativamente às mudanças que operam à época, quer políticas na já referida cultura hedonista ou capitalista quer culturais, a sociedade massificada, a perda da consciência, da identidade, intimidade e a perda do real. Até a barreira entre as belas-artes e a cultura popular, possa ser vista como, finalmente, destruída, precisamente pela presença viva do corpo como suporte, objecto e instrumento, tornando-se crucial para a verdadeira concepção do real. O real do individuo. O corpo. A dor. A interacção. O pensamento, o artista/actor/espectador e o espectador/testemunha/cúmplice, onde este acaba por sentir na sua própria pele aquilo que o actor está a infringir, mostrar, revelar no seu próprio corpo, fazendo com que este deixe, se liberte, de ter que ser visto pela sua beleza(exterior) mas passe a ser visto o seu interior, o que estava oculto, escondido, deixe-se de do ‘parecer bem’, do politicamente correcto, do puro prazer e do corpo enformado. Libertando-se e percebendo melhor a sua identidade, intimidade e deixar de ver o corpo como algo sagrado ou de pecado e sim o corpo do poder, das relações, da vida, do nascimento, da morte. Assim, todo este processo pode ser interpretado como uma ampliação da identidade, mas também pode ser entendido como uma tentativa de aniquilação, mesmo que momentânea, da mesma. Mas, desta forma, esta discussão encaminha-nos para um velho paradoxo: «o que perde a sua vida, a salvará». A criação artística pode abrir possibilidades ao espectador de viver mais, de abrir novas dimensões e novas perspectivas da realidade. No sentido heideggeriano, as expressões como «a arte faz brotar a verdade. A arte faz assim surgir, na obra, a verdade do ente» ou quando dizemos que a arte potencia a vida, que a amplifica, também transforma em habitável o visível, a dor, a luta, a nostalgia, o amor e a morte. Assim, na arte extrema, se a questão é despertar a consciência do indivíduo, tanto no que respeita à arte como à vida, o artista assumiria a posição xamane, em que a sua actuação traria a salvação do homem, um género de “artista-mártir” que se oferece ao suplício de modo a provocar uma mudança positiva na audiência, isto é o que me parece apesar de haver opiniões contrárias, e, recorrendo-me uma vez mais do texto de Miglietti para reforçar esta ideia quando ela nos diz: “Assim criamos um novo código de signos que provoca uma crise entre as instâncias que determinam o medo do futuro; existe uma interrupção/perturbação nos mapas de território do controlo, e há uma tentativa de provocar o incidente em que as coisas começam dramaticamente mais uma vez a comunicar. 17” Um dos cernes das suas questões era precisamente o de comunicar. O de prender a atenção do público, fazer chegar a mensagem até este. E o médium, o corpo, não poderia ser mais favorável, há até quem considere a performance do corpo a vanguarda das vanguardas, pois sempre que qualquer movimento artístico estagna ou parece esgotar-se, na história do 16 17

in MIGLIETTI, F. A. (2003). Extreme Bodies. The Use and Abuse of the Body in Art. Milão: Skira, p. 29. ID. Idem, p. 27.


século XX, os artistas recorriam ao corpo para apontar novas direcções, havendo com isso uma ruptura com a tradição. Voltando a um artista específico, no caso a Rudolf Schwarzkogler, para dizer que ele ao simular processos de castração, ao disfarçar-se, amarrar-se, cortar-se, a meu ver, ele poderá estar a fazer analogia aos tempos de guerra vividos onde executavam estas acções no povo, para fazer ver o que era escondido e feito na obscuridade pelas poderes totalitaristas, e também à relação da falta de identidade, por isso nem sempre ele dava a cara, e como está escrito no texto de Miglietti “Um homem que sofre é transformado num corpo enfaixado, desprovido de identidade social. 18” Está como a fazer uma reconstituição dos acontecimentos de violência e controlo que os cidadãos teriam passado. Ele dá o seu corpo, encena situações cruéis nele próprio como um exemplo para a sociedade, como um alerta e ao mesmo tempo dizer que a ele ninguém faz mais aquilo, nem psicologicamente, pois ele mesmo o está a fazer, ou seja, está a colocar do lado dos poderosos a impotência que teria sido colocada nele durante anos. Ele ao criar estes cenários, ‘arranjados’ está a mostrar o que era escondido à sociedade, dá-nos a ver “…a iconografia privada de um homem que é perseguido, acusado, torturado e cuja submissão é exigida. 19” E tenta ‘acordar’ toda uma sociedade muda, hipnotizada e amorfa. Esta encenação, a meu ver, estará igualmente ligada à encenação, falada no início deste texto, relacionada à arte cristã e da representação da paixão de Cristo bem como da história do seu martírio e de sua dor extrema. Estaria a querer impor um novo significado à sua profanação do corpo como uma purificação e redenção pelo sofrimento. Ora, sendo os Accionistas Vienenses apontados como a origem de uma linguagem próxima das dimensões rituais e das práticas religiosas, e tendo já, de alguma forma, aprofundado um desses activistas, Schwarzkogler mais relaciobnado com a prática religiosa, como vimos, agora quero trazer um outro mais relacionado com o ritual, Hermann Nitsch, e pela sua famosa obra Orgien-Mysterien-Theater, “que começou por volta de 1960, sendo que esta peça/acção combinava tanto o simbolismo cristão como os rituais pagãos, recheados de extras e performers. Mais uma vez, a encenação, o artista encena performances tiruais e actos de sacrificio caracterizados pelo excessivo de sangue e entranhas de animais. 20” O sangue é neste autor fundamental para as suas performances mas no caso de animais, sendo a sua crucificação um ritual que nos remete à crucificação de Cristo e mesmo à de pintura de Fra Angelico presente no texto em análise, pois o sangue como a luz era factores determinantes na sua pintura. Em OM Theatre Manifesto, Nitsch que os seus actos/acções, estripando e dilacerando cordeiros mortos, por exemplo, funcionam como uma acção de manifesto, ele coloca sobre o cordeiro tudo o que é negativo, desagradável, perverso e obsceno, com uma luxúria e histeria resultantes do sacrifício e da purificação e regenarção de todas as personagens presentes na peça, ou seja, o autos persegue a purificação da comunidade, daí estas acções serem chamativas e obviamente chocantes mas que tanto em galerias como nas ruas estavam sempre com muita gente presente. Uma outra forma de manifesto, no caso no corpo do animal e não no próprio artísta mas precisamente pela diferença de acções e actos quis dar um pequeno apontamento da mesma. Já em relação ao trabalho da artista Gina Pane, que pretendo fazer uma breve referência, a sua luta prende-se mais com a identidade de cada um, e com a estética, ou seja, a forma como nos relacionamos com os outros. Embora usasse também, de alguma forma não uma encenação, até porque as suas acções exigiam a presença do público, uma audiência, mas criava estruturas pensadas, apesar de não transparecer isso ao público, dando-lhe o choque pretendido e a insegurança desejada. Gina Pane faz do corpo uma dialética entre o vísivel e o invisível como se

18 19 20

ID.,idem, p. 24. ID.iIdem p. 25.

FILIPE-CORTEZ, A CRUCIFICAÇÃO NA ARTE APÓS OS ANOS 60. Mestrado em Pintura, FBAUP. Porto, 2012, p.70.


percebe nas palavras de Miglietti quando nos diz 21 “Com Gina Pane, o privado tornou-se público numa dimensão que era mais poética do que política, ela estabeleceu uma autonomia pessoal em que a ferida permitiu uma linguagem, uma comunicação…que invadiria as relações ausentes entre seres cujas existências eram separadas por convenções, escolhas e referências.” Ou seja, a meu ver, mais do que lutar contra as convenções impostas pelos poderes totalitaristas, apesar de lhes fazer referência, a artistas revela-se contra a sociedade em si, contra as pessoas que nada fazia para lutar, tal como ela, nada fazia para se diferenciarem e fugirem Às regras, a sociedade que se alienava e não sabia protestar ou fazer as suas próprias escolhas, daí ter dito que é a identidade a palavra-chave da sua luta. Não ter medo de mostrar o que somos e quem somos. Soltar para fora as nossas vontades, desejos, loucuras mas acima de tudo perceber quem somos, percebermos a nossa identidade e existência. Por isso é dito que com esta artista o corpo é a própria ideia enquanto antes não passava de um transmissor de ideias. A ideia é o corpo como quem diz que é ele que tem que mudar, e não só o corpo físico mas acima de tudo o seu interior, a sua intimidade, o privado teria que passar a público. Ela queria que o povo se manifestasse, participasse, reagisse, pensasse por si e fugir da sociedade progamada e colectiva, pois assim nunca perceberemos o que verdadeiramente somos e queremos. E queria com isto que as pessoas se abrissem delas próprias e consequentemente com os outros, partilhassem o que são e o que sabem, enfim que se relacionassem de forma individual, por isso Miglietti, para definir a obra de de Gina Pane usa termos como “doação”, “abertura” e “exibição”, é isto que a artista dá e faz de si mesma para incutir o mesmo espírito no outro e na sua pesquisa do seu próprio Ser. Por isso a artista é muito mais poética do que política, é muito mais paixão, emoção e o acreditar num mundo melhor, numa sociedade mehor, afinal um dos maiores intentos da arte.

21

in MIGLIETTI, F. A. (2003). Extreme Bodies. The Use and Abuse of the Body in Art. Milão: Skira, p. 28.


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