Conto «O Fato novo do Rei vaidoso»
Cena 1
O quarto é enorme e uma das suas paredes contém um móvel em madeira que a cobre por completo. Lá fora, um sol radiante que penetra por entre as cortinas, brilhantemente trabalhadas, do acesso á varanda, o que permite luminosidade suficiente para a artificial estar desligada. O Rei faz percursos repetitivos, de vai e vem, a cada ponta do móvel, abrindo e fechando as suas várias portas, olhando e pegando, como que a escolher o que vai vestir, as suas roupas, é uma tarefa árdua pela enorme quantidade de fatos que nele estão acomodados com o maior rigor. No lado oposto dois cadeirões colocados proximamente eram invadidos pelos raios de sol vindos reflectidos dos espelhos do móvel. Depois de ter provado dezenas de fatos, algo exausto, senta-se na cadeira da varanda, pensativo, sendo interrompido pelo bater na porta.
Rei (Questionando a caminho de abrir a porta) Fala! Aparece um empregado à porta do quarto. Camareiro Excelência, tem visitas. Estão lá fora dois senhores que lhe querem falar, dizem ser tecelões e que têm uma excelente proposta... Rei (Interrompendo o empregado com um gesto em direcção ao caminho que o leva para a porta chamar os tecelões) Vai lá. Trá-los, indica-lhes o caminho. Rei (Deixando a porta aberta, vai rapidamente colocar os fatos no sítio e confere se está tudo em ordem no quarto, ajeitando melhor os cadeirões e fechando as portas do guarda-roupa) Bom dia. Podem entrar, tenham a bondade. (Por lapso, não fechou a porta. O cortesão, curioso, fica à escuta.)
Rei (Apontando para os cadeirões)
Sentem-se e digam-me que proposta é essa! Tecelões (Ignorando o pedido de se sentarem, colocam-se em frente ao guarda roupa, o local onde havia um espaço maior) Majestade, temos um tecido especial para lhe fazer um fato à sua medida. (Afastam-se puxando cada um deles uma ponta do, invisível, tecido) Além de lhe garantirmos que lhe assentará na perfeição, permite também que avalie os seus cortesãos, quem não vir este belo tecido só pode ser considerado um burro, um peco, e não merecerá continuar aos seus serviços. Só os inteligentes o conseguem ver e apreciar. (Juntam as mãos com um gesto subtil e igual, depois de, não, mostrarem o tecido, fechando-o. Neste momento um raio forte de luz do sol direcciona-se aos olhos do Rei) Rei (Esfregando os olhos)
Bem, eu não vejo nada. Fiquei sem ver, este sol está maravilhoso mas agora cegou-me. (Não via nada, até porque nada havia para ver, e não propriamente pelo raio, os falsos tecelões simulavam, não havia nada para ver, o pano é feito de ar) Quanto ao tecido para o fato novo, façam-no o quanto antes. (Colocando na mãos dos vigaristas dinheiro para o seu trabalho.) Tecelões Isso é que é falar. Não se irá arrepender deste seu novo fato. Todos vão venerá-lo. Amanhã estará pronto. Vamos trabalhar nele desde já. (Pegam no saco que transportava o, não, tecido e vão-se embora) Rei (Dirige-se à porta e grita)
Rapaz! (Aparece o camareiro, apressado e com o habitual jeito de consentimento e submissão.) Contacta todos os cortesãos, ministros, condes, viscondes. Vou convosco reunir, individualmente, amanhã. Quero toda a gente cá, é imperativo.
Camareiro Com toda a certeza nossa majestade. (Voltando-se num ápice e, percorrendo o caminho até ao telefone mais próximo) Rei Magnifico, desta vez nem tive que me preocupar na procura de um fato novo, ele veio até mim. Apesar de que não vi qualquer tecido (breve pausa para reflectir) mas, pode ter sido por ter ficado encandeado pelo sol. Talvez não mas, eu não serei estúpido com certeza, amanhã sim, saberei quem da minha corte o é. (Sorrindo e esfregando as mãos)
Acto 2
Rei Acorda sobressaltado. Olha o relógio, ansioso, e logo se acalma, ainda é cedo. Possome espreguiçar convenientemente. Desfrutar deste momento sozinho, daqui a pouco chega o magnífico fato. Espero é que não se demorem a concebe-lo. (Dirige-se à vitrine da varanda, afasta as cortinas e olha a paisagem. O facto de estar no 1º andar não impede a vista. O sol está vivo. Volta-se e chama…) Rapaz! Está mais do que na hora de tomar o pequeno-almoço. O dia vai ser intenso. Rapaz! Era só o que me faltava não me ouvir. Basta antecipar-me uns minutos à hora normal e falham logo. Que limitados são! (Algo irritado, vai para o seu percurso preferido. De frente ao guarda-roupa, abrindo as portas para olhar os seus meninos e para a, enorme, tarefa de escolher um.) Camareiro (Chamando)
Majestade! Majestade! Rei (Surpreendido)
Diz. (A caminho de abrir a porta). Agora não me ouves a chamar e és tu que chamas por mim?! Desembucha, espero um bom motivo! (Demonstrando irritação pelo tom de voz elevado e vigoroso.)
Camareiro (Atrapalhado)
Excelentíssimo. Desculpe incomodar mas os tecelões já aí estão, dizem ter a encomenda pronta. Rei Já?! Bem, mais eficazes não poderiam ser. Sendo assim, Vai lá. Trá-los, indica-lhes o caminho. Camareiro Com certeza. Mas, Excelência, ainda não tomou o seu pequeno-almoço! Rei Verdade?! Eu sei que não. Fosses tu mais responsável…Vai, vai! (Esticando o braço, repentinamente, a indicar-lhe o caminho a percorrer até aos tecelões) Rei Olha que este. A dizer-me o que não fiz por sua incompetência! Vou testá-lo em primeiro. Sim, virá um a um apreciar o meu magnífico fato novo. Quem não o vir, saíra do meu reino. Eu não vi o tecido mas, eu não serei estúpido com certeza. Espero que tenha sido pelo sol que me cegou. Estranho é nem me terem tirado as medidas mas, se são do melhor que há, terão olho de lince. (Põe o quarto de feição a receber as visitas, fechando as portas e ajeitando os cadeirões. Dirige-se à porta. Esperando.) Rei Bom dia. Podem entrar, tenham a bondade. Rei (Apontando para os cadeirões)
Sentem-se e digam-me que proposta é essa! Tecelões (Ignorando o pedido de se sentarem, colocam-se em frente ao guarda roupa, o local onde havia um espaço maior) Majestade. (Abrindo o saco que transportava o fato, invisível, simulando que o tiram para fora.) Tenha a bondade, vista o seu fato novo e veja como é confortável. (O Rei, de novo, esfrega os olhos com vigor, abre-os ao máximo, com uma expressão de estupefacção e, desta vez o sol não lhe bateu nos olhos. Mas diz…) Rei Magnifico. (“Vestindo-o”). Que leveza. Parece que nem o sinto.
Tecelões Como vê, não o enganamos, fica-lhe tremendamente bem. Rei Obrigado. Agora vão. Rei Rapaz. Leva os tecelões de volta e, volta. Rei Meu deus. Não vejo uma migalha deste tecido tão gabado. Rei Rapaz! Quero comer. E beber. (Correndo para um qualquer espelho do móvel) Ontem ceguei com o sol, hoje estarei cego pela fome?! (Foge do espelho, não querendo ver que nada vê) Rapaz! (Este não o ouvi-a porque tinha ido levar os tecelões à porta) Já nem me ouvem, nem me servem, pelo menos irão ver-me, a mim e ao… (Suspende a fala) …à minha fatiota nova. (Desta vez sem se olhar, preferiu olhar, desta vez não a paisagem, a rua logo ali um andar abaixo). (Ouve-se bater na porta) Rei Estava a ver que não me ouvias. Quero comer e beber, sinto-me tonto. Vai rápido. Camareiro Com certeza Majestade. Rei Espera. Olhas-me com esses olhos bugalhudos e não dizes nada!? Fala, que te parece o meu fato novo? Camareiro Alteza, assenta-lhe perfeitamente. Está divino. Rei Óptimo. Agora vai. Camareiro Com certeza Majestade. (Virando-se, ainda de olhos enormes, e sai pé ante pé)
Camareiro sendo camarada de todos os outros e, tendo já percebido todo o contexto, quando ouviu a conversa sobre o falso fato, manteve sua atitude de fingimento e, essencialmente, de não desagradar o chefe, tinha-os já avisado do sucedido, assim, todos virão preparados para a reunião marcada para daqui a pouco. Camareiro (Chamando)
Majestade. Aqui está o seu alimento. Rei Entra. E pousa. Espero que já esteja aí toda a gente. Caso não estejam manda-os vir. Estou ansioso para que possam apreciar o meu novo fato. A entrevista será individual. Camareiro Com certeza, Senhor. Chamá-los-ei de imediato. Bom proveito. (E sai, deixando a bandeja sobre a mesa de vidro, com um repleto almoço) Rei (Deliciando-se)
Hum. Estava faminto. (Metendo à boca um naco de bolo, seguido de um enorme gole de sumo) Delicia, estava a ver que não comia hoje. (Massajando a barriga de satisfação) Quero estar forte e esbelto, para receber os meus cortesãos e, perceber da sua inteligência. Eu continuo sem nada ver. (Desta vez porque nem se atreve a olhar. Olha precisamente para cima, para o tecto. Lado oposto ao seu corpo, nu) (Mastigando rapidamente) (Ligeiro arroto) (Ouve-se baterem na porta) Rei Só um segundo. Já chamo. (Enquanto termina de se lambuzar. Dá os últimos retoques no quarto, fechando as portas do guarda-fatos, escondendo a bandeja e abrindo as cortinas de acesso à varanda para que entrasse a luz natural. Inicia um gesto para aprumar o fato mas logo o cancela, voltando a olhar o tecto, ignorando o que, não, via…dirige-se à porta) Rei Entra. Começas já tu. O que achas deste meu fato novo? Cortesão (Alarmado) (Coçando a cabeça e franzino a testa). Alteza, assenta-lhe perfeitamente. Está divino.
Rei Óptimo. Agora vai e manda outro entrar. (Dirige-se à cortina, abrindo-a no máximo. O sol, intenso, bate-lhe nas costas) Cortesão 1 Posso, Senhor? Rei Entra. Rei O que achas deste meu fato novo? Cortesão 1 Alteza, a…assenta-lhe perfeitamente. Está divino. Rei Óptimo. Agora vai e manda outro entrar. (Fica algo boquiaberto. Demonstrando alguma incredulidade pelas respostas repetitivas, apesar de gostar e do seu ego estar satisfeito) Será porque o sol lhe afecta a visão? Será que somente vêem a minha silhueta? Mais vale fechar a cortina para a luz não ser tão forte. (E fecha-a) Ministro (Batendo à porta)
Posso Senhor? Rei Entra. O que achas deste meu fato novo? Ministro Alteza, assenta-lhe perfeitamente. Está divino. (Enquanto esfrega um olho com a mão direita e tosse para a esquerda) Rei Óptimo. Agora vai. E, manda outro entrar. Mas será que todos vêem a mesmíssima coisa, além de dizerem? Será que todos estão combinados e me querem enganar? Será que eu é que nada vejo e sou estúpido e eles os
inteligentes?! Mas que grande confusão. Já nada sei. Ai a minha vida. (Enquanto dá mais um gole do, suposto, sumo. Olha para si, numa fracção de segundo) Conde Posso Senhor? Rei Entra. O que achas deste meu fato novo?
Conde Alteza, assenta-lhe perfeitamente. Está divino. (Passando a mão pela cabeça e franzino a testa) Rei (Farto)
Ok. Vai. Manda outro entrar. (Desta vez respondendo em menos 2 segundos. A sua paciência começava a esgotar-se. Apesar do equilíbrio que sentia, entre o que estava a gostar de ouvir, elogios ao fato e, o sentimento de falsidade que saíam de cada palavra dos seus cortesãos. Estava dúbio. Confuso) Haverá alguém que não repita o outro? Alguém que não veja ou dia o mesmo que o outro? (Questionando-se a si mesmo). (Andando cada vez mais de um lado para o outro, de forma a, tentar, quebrar o seu nervosismo) Conde 1 Posso Senhor? Rei Entra. O que achas…? Conde 1 (Antecipando-se à questão)
Alteza, assenta-lhe perfeitamente. Está divino. (E vira costas, saindo) Rei Como eles me tentam agradar. As minhas vontades. Os meus desejos. Mas, eu também quero a verdade. Começo a ficar farto de tanto fingimento. Eles já nem me ouvem e respondem o que eu quero ouvir. Quero? Queria? Quererei? Só sei que nada vejo. Eles também não. Ou sim. (Pausa) Estarei a ficar louco?! Já não sei se preciso de covardia ou sinceridade. Preciso de me libertar, disso eu preciso.
Visconde Posso Senhor? Rei (Em silêncio)
Visconde e Rei (Em coro)
Alteza, assenta-lhe perfeitamente. Está divino. Embaraço do Visconde. Percebe que o Rei os está a perceber. Estão a ser demasiadamente falsos, além de que repetitivos. E, provavelmente iriam ser castigados por tal facto, mesmo que estivéssemos a agradar o Rei. Rei Como vos conheço. Já não preciso da vossa resposta. Inutilidades. Nem da vossa presença. Vai. Ninguém mais entra. Termina aqui. (Mandando-o embora com um gesto, além das palavras) Rua. Rei Estou farto. A minha vaidade não pode compadecer com estes falsos de meia tijela, estes medricas. Demonstrando cada vez a sua inquietação e, até, desespero para o que percebia. Ele não queria ser o estúpido que nada via, sendo que os outros só o poderiam estar a enganar, certamente também não viam nada, mas, como bons aldrabões e fingidores, dizem que sim, até para manterem o seu posto. O Rei parece que mais que a sua vaidade, quer gente vertical a seu lado. Estarei a ficar louco? Louco é que eu não sou. (Dirigindo-se à varanda, pois o calor intensifica-se e ele demonstra já algum sufoco, quer mental quer respiratório. Abre a portada da varanda, sai, pára e respira fundo enquanto olha a linha do horizonte) Hum, que bom. Que liberdade. Que bela brisa me percorre. Sinto-a tão bem… (e eis que se ouve uma voz vinda, logo dali de baixo, da rua…) Anónimo (Gritando)
O Rei está nu. O Rei olha para baixo. As ruas estão repletas, alguns dos quais, os acabados de ser entrevistados por ele. O dia era propício e o povo saiu à rua. Um enorme burburinho se faz ouvir, coadjuvados com fortes risadas. O reino podia estar em causa. Ou estava. A não ser que a libertação do Rei estivesse na voz desta única pessoa verdadeira, sem medos e realista.
Rei Obrigado meu menino. Nessa tenra idade as mentes estão limpas. A pureza é total bem como a verdade das palavras e dos actos. Todos se riem mas, todos têm medo de mim. Têm medo de perder o seu posto em vez de contra mim lutarem. Assim nunca chegarão onde eu cheguei. Não passam de uns badamecos. Por isso quem se ri sou eu. E tu, meu menino, vais entrar no meu reino. Quero gente como tu. Agora, agora vou vestir o meu novo fato.