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O ADEUS À PÃO DE FORMA 1949
REVISTA 13/JUN/14
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O ADEUS À PÃO DE FORMA 1949
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49 Protagonista da geração hippie e da reconstrução da Alemanha, a Pão de Forma transformou-se num objeto de culto desejado em todo o mundo. A mítica carrinha da Volkswagen reformou-se aos 64 anos (as últimas unidades estão à venda no Brasil), mas promete não desaparecer nas estradas TEXTOS DE MARIA JOÃO BOURBON
VIDA LONGA A PRIMEIRA VW TRANSPORTER (À ESQ.), PRODUZIDA EM 1949, E O MODELO LAST EDITION (À DIR.), LANÇADO NO FINAL DE 2013
VOLKSWAGEN COMMERCIAL VEHICLES PRESS DATABASE
2013
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As gerações da Pão de Forma Em Portugal, a Pão de Forma era essencialmente utilizada por campistas e surfistas, como ambulância (sendo famosas as da Cruz Vermelha) e transporte de crianças. As apropriações variavam um pouco em função dos países, ao longo dos anos e das necessidades mas, em todos, um elemento era comum — esta fica apenas associada às três primeiras gerações da VW Transporter que, correspondem, na Europa a:
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FOTOGRAFIAS DE VOLKSWAGEN COMMERCIAL VEHICLES PRESS DATABASE
T1 (1949-1967) Duas janelas à frente (“split window”) são a imagem de marca da primeira geração das Transporter (T1), que oferece carrinhas em formato van ou Kombi (veículo combinado de carga e passageiros). Mais tarde, a Volkswagen disponibiliza ainda uma versão de luxo com 25 janelas e teto de abrir, denominada Samba, e ainda a VW Camper, adaptada à vida itinerante e de campismo, sob a designação Westfalia — incluindo mais espaço de arrumação, um banco que se adapta a cama e um minibar.
“Nada atrás de mim, tudo à minha frente, como sempre acontece na estrada.” A frase registada em 1951 por Jack Kerouac naquela que seria a primeira versão do livro “Pela Estrada Fora”, publicado em 1957, poderia descrever igualmente um início de viagem numa Volkswagen Transporter. Na realidade, é a este imaginário de geração beat, contracultura hippie e antimaterialismo, que são associadas as Transporter, carinhosamente apelidadas em Portugal de Pão de Forma. Mas nem sempre foi assim. No mesmo ano em que Kerouac e os
amigos rasgavam a estrada e rompiam com os padrões da sociedade americana, na Europa um alemão adquiria o primeiro carro ajustado à vida itinerante e de campismo. A produção havia começado dois anos antes, em 1949, com a primeira carrinha a sair da fábrica de Wolfsburg, na Alemanha. Uma proeza possível graças a um empresário holandês, Ben Pon, que dois anos antes viajara até à Alemanha decidido a tornar-se no importador da Volkswagen (VW) para a Holanda. Ao visitar a fábrica deparou-se com o Plattenwagen, uma autêntica “cai-
* T2 (1967-1979) Após 18 anos de produção do primeiro modelo, a Volkswagen decide redesenhar a Transporter. Designada na gíria por “bay-window” — em virtude do para-brisas de um vidro só, arredondado —, a T2 tem janelas maiores, portas de correr e mais espaço para passageiros. Ao longo dos anos, o modelo vai sendo otimizado, substituindo-se os assentos da frente por um banco corrido e acrescentando-se novos espaços de arrumação e, por vezes, uma kitchenette.
* T3 (1979-1992) A neta da Transporter de 1949 inclui uma faixa de absorção de choque mais segura, continuando a incorporar o motor (no início, ainda refrigerado a ar) na traseira do carro. Apesar de ser usada com a mesma finalidade que as anteriores, a terceira geração (T3) é a menos associada ao conceito de pão de forma, pela sua dianteira mais quadrada. A partir daqui, os modelos posteriores deixam de estar associados a este imaginário.
xa sobre rodas” destinada ao transporte de material, que lhe serviu de inspiração. E desenhou assim a VW Transporter, um veículo utilitário de carga e passageiros, que se tornaria protagonista de uma das histórias de maior sucesso mundial da indústria automóvel. Barata e multifuncional, a Pão de Forma surgiu no rescaldo da Alemanha nazi, assumindo-se como “carro do povo” orientado para a família nuclear: um veículo utilitário de carga durante a semana de trabalho e de lazer ao fim de semana. Concebida a partir
do suporte do Carocha (Typ1) — que incluía um motor com quatro cilindros opostos, refrigerado a ar, situado na parte traseira —, a Transporter ou Typ2 era o meio ideal para percorrer grandes distâncias e diversos pisos e estradas. Só aos poucos foi sendo adaptada a longas viagens, adquirindo ao longo da sua vida mais de 30 versões — sendo as T1 (“split-window”), T2 (“bay-window”) e Samba (versão de luxo) as mais conotadas com este imaginário. O seu sucesso, como realça David Burnett na tese “From Hitler to Hippies: The
Volkswagen Bus in America” (“De Hitler aos Hippies: a Pão de Forma na América”, numa tradução livre), decorre numa primeira fase do facto de permitir “às famílias viajar sob o seu próprio controlo, para os seus destinos, à sua velocidade e com privacidade.” UM MURAL CONTRACULTURA A viagem da Pão de Forma pela história surge à boleia dos ideais de aventura, itinerância e liberdade do pós-guerra. “O seu sucesso não é só consequência de um design único, durabilidade e baixo
custo”, explica ao Expresso o diretor de marketing da Volkswagen Veículos Comerciais, João Carrilho. “Mas também, e principalmente, do grande impulso dos Estados Unidos.” Na realidade, os americanos foram os que mais contribuíram para aumentar a curva da procura pelo VW Bus (como era conhecido no país): entre 1966 e 1970, as suas exportações quadruplicaram para quase 20 mil veículos por dia, com 95% da produção a viajar para os EUA. “Com o seu sentido prático, os americanos descobriam novas REVISTA 13/JUN/14
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VIAJANTES MANUEL MOURA (EM CIMA), COM UMA DAS CARRINHAS DA SURF IN PORTUGAL. EM BAIXO, INÁCIO ROZEIRA E HELENA PIMENTEL, COM A PÃO DE FORMA QUE OS LEVOU A DAR A VOLTA À AMÉRICA LATINA
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possibilidades de utilização deste carro”, explica Carrilho. O preço e o design utilitário transformaramna num símbolo da contracultura hippie de contestação social e rejeição do consumismo da época, que levava inúmeros jovens a trocar a segurança da classe média por uma vida descomprometida ao sabor do imediato. Errância, liberdade e viagem tornam-se modos de vida ou escapes à rotina diária. Por isso, não era de estranhar que
a maioria dos viajantes atribuísse nomes às carrinhas, alterasse o seu interior consoante as necessidades ou as pintasse, conferindo-lhes um cunho próprio. Foi o que fez o artista plástico Bob Hieronimus, ao transformar a Volkswagen de 1963 do guitarrista Bob Grimm (que mais tarde integraria a banda The Four Seasons) numa verdadeira obra de arte. Intitulada “Bus Light”, tornar-se-ia famosa em Woodstock e um ícone do seu tempo, sendo
fotografada para revistas como a “Life” e a “Rolling Stone”. Da vida hippie de viagens, campismo e surf até à sua conotação com o emblema “sexo, drogas & rock’n’roll” foi um pequeno passo. O sucesso da Pão de Forma guiou bandas como os Grateful Dead, o grupo de rock psicadélico que no final dos anos 60 criou uma verdadeira legião de fãs, conhecida por acompanhar as suas digressões nas suas van. Em 1963, Bob Dylan lança o segundo álbum, “The Freewheeling”, em cuja capa apareceu com a namorada da época, Susan Rotolo, em Greenwich Village (Nova Iorque) e ao fundo uma VW van. A banda The Who foi fotografada várias vezes com uma destas carrinhas. Mais recentemente, a Pão de Forma tornou-se protagonista de alguns filmes e séries, nos quais se incluem a animação “Cars” (2006), “Argo” (2012) e “Les Grandes Ondes” (2013), apresentado este ano no festival Indie Lisboa, e ainda no programa de culinária de Jamie Oliver “Great Italian Escape”, no qual o chefe viaja por Itália numa Samba de 1965. LEVAR A CASA ÀS COSTAS “No dia em que viveres em casa e bateres com a cabeça no teto, sabes que estás numa Pão de Forma”, brinca Inácio Rozeira, um viajante português de 35 anos que se juntou a Helena Pimentel, de 26, numa viagem pela América do Sul que terminou em março. “Dar a volta” foi o nome que o casal escolheu para o blogue que retrata esta aventura ao volante de uma Kombi de 1995, a Walentina, comprada e restaurada em São Paulo. Percorreram 10 países em 13 meses, mais de 30 mil quilómetros, levando praticamente a casa às costas e sem deixar de incluir o melhor de Portugal e da América do Sul — o galo de Barcelos, o bacalhau e o elétrico são alguns dos elementos desenhados na lateral da carrinha, juntamente com a bandeira dos povos originários dos Andes na traseira. Escolher uma Pão de Forma como companheira de viagem foi uma questão de lógica. “É um veículo mítico e emblemático, bastante fácil me-
FOTOGRAFIAS DE VOLKSWAGEN COMMERCIAL VEHICLES PRESS DATABASE
VISÃO À ESQ., O ESBOÇO DE BEN PON, NO SEU BLOCO DE NOTAS. EM BAIXO, O PLATTENWAGEN, VEÍCULO DE TRANSPORTE DE MERCADORIAS QUE LHE SERVIU DE INSPIRAÇÃO
canicamente: quase todos os mecânicos da América do Sul sabem mexer nela”, explica Inácio. Se na América do Norte a cultura hippie e do surf viajou a bordo da Volkswagen Bus, mais a sul as Kombi (como eram conhecidas) serviam todo o tipo de viagens de trabalho, como carros comerciais, de transporte de crianças ou até funerários. “E têm ainda a vantagem de incorporar um motor refrigerado a ar, que não sofre com os problemas do frio e do calor”, acrescenta. O motor não, mas o carro, sem ar condicionado, esteve bastante sujeito às variações de temperatura nesta viagem: em certas zonas da Patagónia, por exemplo, a Walentina começou a congelar por dentro. “A meio começámos a saber conviver com o seu temperamento e a adaptarmo-nos a ela”, garante Inácio. Apesar de algumas idas ao mecânico, a Walentina nunca deixou o casal ficar mal. Chegou inclusive a atravessar dois rios, na fronteira entre a Colômbia e Venezuela, dias antes das eleições venezuelanas a 8 de dezembro, período no qual o Governo ordenou que cessassem as atividades fronteiriças. A troco de dinheiro atravessaram a fronteira clandestinamente, pelo rio, e apesar dos barulhos de protesto, a carrinha sobreviveu — não sem depois fazer uma visita ao mecânico. A durabilidade e mecânica destes carros contribuíram também para a paixão de José Rui pela Volkswagen. Presidente e fundador do Volkswagen Ar Club
(que procura incluir todos os refrigerados a ar), o colecionador de carros de 47 anos é proprietário de uma Transporter de 1955. “Comprei-a em 92 e, mais tarde e por razões monetárias, tive de a vender. Preteri ofertas bem mais aliciantes no estrangeiro para a vender em Portugal, sempre com a esperança de a reaver”, conta. Anos depois, conseguiu recuperá-la naquele que “foi um dos dias mais emocionantes” da sua vida. Mas o que leva ainda hoje tantas pessoas a ‘baterem-se’ por uma lenta e velha Pão de Forma, cuja crescente escassez no mercado tem contribuído para inflacionar os preços? “O modelo tem handicaps, mas, para quem gosta, os entraves tornam-se vantagens”, explica o colecionador. “São lentos, sim, mas ideais para ver a paisagem. É incrível andar num carro no qual entre nós e o mundo há apenas uma fina chapa!” É também esta a perceção de Manuel Moura, surfista e empresário de 34 anos, que decidiu aproveitar as potencialidades das Pão de Forma e criou em 2013 a empresa “Surf in Portugal”. Com seis carrinhas de primeira geração de cores e nomes diferentes, está a
O SEU SUCESSO NÃO É SÓ CONSEQUÊNCIA DE UM DESIGN ÚNICO, DURABILIDADE E BAIXO CUSTO, MAS TAMBÉM DO IMPULSO DOS ESTADOS UNIDOS, ONDE ESTAS CARRINHAS ERAM USADAS PARA CONDUZIR OS IDEAIS HIPPIES DE CONTESTAÇÃO SOCIAL
restaurá-las e disponibiliza já algumas para fins de semana, despedidas de solteiro, férias ou ativações de marca. A ideia é, como explica, “estimular o surf e este tipo de viagem lenta pela costa portuguesa, levando o melhor de Portugal aos estrangeiros que nos visitam”. ENCOSTAR ÀS BOXES A história deste ícone teve o último capítulo a 20 de dezembro, quando a última Kombi saiu das linhas de montagem da fábrica de São Paulo, enviada posteriormente para o Museu da Volkswagen em Hannover, Alemanha. Era a número 1200 da série Last Edition que surgiu com um novo rosto, a azul e branco, mais moderno e com um preço elevado: 85 mil reais (cerca de €28.000). Este valor é um dos motivos pelos quais a sua venda no Brasil não está a ser tão rápida como seria de esperar, chegando inclusive a ser vendida com desconto nas concessionárias, de acordo com a revista brasileira “Autoesporte” e o jornal “Estadão” (o Expresso contactou a VW Brasil, que se recusou a responder a qualquer questão). Os motivos da sua certidão de óbito já são conhecidos: a nova legislação que entrou em vigor no Brasil no início deste ano (semelhante à que ditara o fim da sua produção na Europa) obriga a que os veículos, por questões de segurança, incluam airbags e sistema ABS. Uma morte considerada natural por alguns fãs, provocando noutros uma onda de nostalgia e espanto. “Cresci numa época em que não existiam airbags nem ABS e vivíamos bem com isso”, explica Inácio Rozeira, que considera que se está “a eliminar um imaginário de sonho das pessoas”, transversal a várias gerações. Verdade ou não, certo é que este modelo não desaparecerá por completo. Seja na estrada a explorar novos mundos, como carro de coleção ou na memória de quem nela viveu, a Pão de Forma foi — e continuará a ser, após a morte — um símbolo de liberdade sobre rodas. R revista@expresso.impresa.pt REVISTA 13/JUN/14
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