SENTIMENTOS
TIAGO MIRANDA
S
SUPERAÇÃO
“Foi preciso vencer-me a mim próprio” Catorze anos depois do acidente que quase lhe roubou a vida, o ex-piloto de automóveis Miguel Vilar percorreu os Estados Unidos de costa a costa em bicicleta. TEXTO DE MARIA JOÃO BOURBON
E
m 1997, uma pedra no caminho mudou-lhe a vida. Projetada pelo carro da frente, na autoestrada, atingiu-o em cheio na cabeça. Esteve em coma, podia até ter morrido, mas sobreviveu. Porém, deixou de poder conduzir e o seu sonho de ser piloto de Fórmula 1 dissipou-se. Foi graças ao neurocientista António Damásio, a residir nos Estados Unidos, que o ex-piloto de automóveis Miguel Vilar voltou a ter uma vida normal. Agora, 14 anos depois, decidiu fazer uma viagem de bicicleta pelos EUA, desde Jacksonville, na Florida, a Los Angeles, na Califórnia, para celebrar o 55º aniversário ao lado de Damásio. Uma viagem costa a costa, com partida de Lisboa a 17 de julho e chegada no passa74
REVISTA ÚNICA · 17/09/2011
do dia 5. Na bagagem, levou uma mensagem para transmitir a quem o quisesse ouvir: “Não desistam”. Como surgiu a ideia desta viagem? Há 20 ou 30 anos que ando de bicicleta. O ano passado, um amigo francês desafiou-me a descer a costa vicentina de bicicleta. Aceitei e lá fomos os dois. Parecia mesmo um puto, todo contente a entrar no ferry para passar para a outra margem! Foi aí o despoletar da viagem aos EUA. Queria voltar a ter essa sensação. O resto era um pretexto. Pensei em ir a Paris visitar o meu irmão. De Paris a Los Angeles foi só imaginar. Porquê Los Angeles? Porque é lá que está o António Damásio. E queria celebrar os meus 55 anos com ele. Levava consigo uma mensagem muito espe-
cífica... [Vira-se para trás e pega numa pedra de cinco quilos] Há 14 anos, vinha eu tranquilamente na autoestrada, levei com esta porcaria na cabeça. É esta a razão da viagem. Lembra-se do acidente? Há coisas bizarras. Antes do acidente, tinha partido a coluna devido às minhas brincadeiras radicais. Tinha acabado de receber alta e voltava para casa na A5, no dia 28 de janeiro de 1997, quando a pedra foi projetada pelo carro da frente. Despistei-me, além de ter levado com ela na cabeça. Fiquei quase dois meses no hospital e ainda me
SENTIMENTOS
TIAGO MIRANDA
S
SUPERAÇÃO
“Foi preciso vencer-me a mim próprio” Catorze anos depois do acidente que quase lhe roubou a vida, o ex-piloto de automóveis Miguel Vilar percorreu os Estados Unidos de costa a costa em bicicleta. TEXTO DE MARIA JOÃO BOURBON
E
m 1997, uma pedra no caminho mudou-lhe a vida. Projetada pelo carro da frente, na autoestrada, atingiu-o em cheio na cabeça. Esteve em coma, podia até ter morrido, mas sobreviveu. Porém, deixou de poder conduzir e o seu sonho de ser piloto de Fórmula 1 dissipou-se. Foi graças ao neurocientista António Damásio, a residir nos Estados Unidos, que o ex-piloto de automóveis Miguel Vilar voltou a ter uma vida normal. Agora, 14 anos depois, decidiu fazer uma viagem de bicicleta pelos EUA, desde Jacksonville, na Florida, a Los Angeles, na Califórnia, para celebrar o 55º aniversário ao lado de Damásio. Uma viagem costa a costa, com partida de Lisboa a 17 de julho e chegada no passa74
REVISTA ÚNICA · 17/09/2011
do dia 5. Na bagagem, levou uma mensagem para transmitir a quem o quisesse ouvir: “Não desistam”. Como surgiu a ideia desta viagem? Há 20 ou 30 anos que ando de bicicleta. O ano passado, um amigo francês desafiou-me a descer a costa vicentina de bicicleta. Aceitei e lá fomos os dois. Parecia mesmo um puto, todo contente a entrar no ferry para passar para a outra margem! Foi aí o despoletar da viagem aos EUA. Queria voltar a ter essa sensação. O resto era um pretexto. Pensei em ir a Paris visitar o meu irmão. De Paris a Los Angeles foi só imaginar. Porquê Los Angeles? Porque é lá que está o António Damásio. E queria celebrar os meus 55 anos com ele. Levava consigo uma mensagem muito espe-
cífica... [Vira-se para trás e pega numa pedra de cinco quilos] Há 14 anos, vinha eu tranquilamente na autoestrada, levei com esta porcaria na cabeça. É esta a razão da viagem. Lembra-se do acidente? Há coisas bizarras. Antes do acidente, tinha partido a coluna devido às minhas brincadeiras radicais. Tinha acabado de receber alta e voltava para casa na A5, no dia 28 de janeiro de 1997, quando a pedra foi projetada pelo carro da frente. Despistei-me, além de ter levado com ela na cabeça. Fiquei quase dois meses no hospital e ainda me
PERSISTÊNCIA EX-PILOTO DE AUTOMÓVEIS, MIGUEL VILAR NÃO DESISTE FACILMENTE. HÁ DOIS ANOS, ENTROU PELA PRIMEIRA VEZ NA UNIVERSIDADE, PARA ESTUDAR CIÊNCIA POLÍTICA E RELAÇÕES INTERNACIONAIS
vieram dizer que, durante esse tempo, não tinha pago as obrigações fiscais!
as minhas filhas comigo. Há 14 anos que estou a fazer luto por umas filhas que não morreram.
E não foi indemnizado pela Brisa. É por isso que sou um revol-
A sua mulher não conseguiu lidar com o acidente? Sei lá, ou
tado contra o sistema. Como é que ninguém é responsável por isto? A justificação do tribunal foi que, para a Brisa ter visto a pedra, seria necessária uma vigilância tipo “Big Brother”. Eu percebo isso, mas a Brisa é responsável pelas autoestradas. Fomos a tribunal e a grande questão que se debatia era quem tinha colocado lá a pedra! Até à data do acidente, a Brisa nunca tinha perdido em tribunal. É o sistema. E eu não tenho a capacidade nem o poder para lhe fazer frente.
não lhe apeteceu. As razões que evocou são absolutamente surrealistas. Eu era casado há 13 anos, não há 13 meses! O meu casamento era estável, nada faria prever um divórcio. Quando mais precisei dela, foi-se embora e eu fiquei sem nada. Por isso é que quando, nos EUA, com 50 graus, me lembrava disto, ainda pedalava com mais força.
Lembra-se da sua reação quando acordou no hospital? Lem-
bro-me de acordar no São Francisco Xavier e ficar surpreendido: “O que é que estou aqui a fazer?” Os médicos disseram-me que tinha levado com uma pedra e eu pensei: “Mas é preciso estar no hospital por estar com a cabeça partida?” Só depois percebi que tinha estado quase dois meses ligado a um ventilador nos cuidados intensivos. Não me tinha apercebido da gravidade da situação. Lembro-me do fisioterapeuta me dizer que ia ensinar-me a andar e eu pensar: “Este não é bom da cabeça, eu sei andar há 40 anos!” Levantei-me e comecei a andar como se nada tivesse acontecido. Os médicos acharam que tinha sido um milagre. Além disso fraturei o crânio, com perda de massa encefálica e de memória imediata — foi isso que me tornou um caso de estudo para o António Damásio. Como é que a sua família lidou com a situação? À data do aci-
dente, eu era casado e tinha duas filhas, com cinco e dois anos. Meses depois, a minha mulher saiu de casa e desde aí não tenho
A viagem serviu como uma prova de superação? Foi um desa-
fio para mim, venci-me a mim próprio. Há 14 anos estava quase a morrer e agora estou aqui, a lutar pela vida. Depois do que me aconteceu, a minha mensagem para o mundo é: não desistam, independentemente do que vos aconteça. Destina-se a todos os que passaram ou estão a passar tão mal ou pior do que eu. Quero que as pessoas olhem para mim e para a minha viagem e pensem que se eu consegui, elas também conseguem. Acredita que tem outra garra e um novo olhar sobre a sua vida? Tenho a garra que sempre
tive. Quando quero muito uma coisa, vou até onde consigo para a alcançar. Não desisto com facilidade. Conseguiu cumprir à risca o percurso a que se tinha proposto? Houve apenas uma mudan-
ça de planos, num trecho de 300 quilómetros entre o Novo México e o Arizona. A polícia aconselhou-me a não ir de bicicleta, porque era um terreno montanhoso e muito perigoso. No regresso a Portugal, passei por essa zona de avião. Ainda bem que não fui de bicicleta! Se eu tivesse uma avaria, ninguém me poderia ajudar. Quais os locais que o impressionaram mais pela sua beleza?
Cerca de dois terços da viagem
Lições de uma vida O QUE MIGUEL VILAR APRENDEU COM... As corridas de automóveis: “A ter calma. E a saber resolver situações sobre pressão, correndo os menores riscos possíveis” O acidente: “A vida muda num milésimo de segundo. Os acidentes não acontecem só aos outros” A viagem: “A superar-me a mim mesmo. Mas, numa próxima viagem, não irei sozinho. A companhia é importante, nem que seja para chamar nomes ao parceiro” A vida: “Há 14 anos, eu estava quase a morrer numa cadeira de rodas, mas recuperei e cheguei até aqui. A vida é feita de referências. Quero que as pessoas que não estão bem na sua vida olhem para mim e pensem: se ele conseguiu eu também consigo”
— Texas, Novo México e Arizona — não tinham grande beleza. Pedalava quilómetros e quilómetros sem ver vivalma. O cenário era pedra, terra, planícies que se perdiam no horizonte. São territórios muito inóspitos. Não é fácil pedalar às 8h30 da manhã com 42 graus e saber que, à tarde, as temperaturas podem atingir os 50 graus. Um companheiro de viagem, nesses casos, teria sido importante — para a próxima não vou sozinho. Mas, apesar de tudo, o local que mais me marcou foi Dallas, no Texas. Não pude deixar de ir ver o sítio onde mataram o Kennedy. Senti-me do tamanho de uma ervilha! Estava ali e pensava: “Foi aqui que o mundo mudou.” Ir ao memorial e estar à janela de onde partiu o tiro que o assassinou foi uma espécie de regresso ao passado, a um acontecimento que presenciei quando tinha cinco anos. Qual foi a sensação quando finalmente chegou a LA e se encontrou com os Damásio?
Quando cheguei, fui direto ao Estado Olímpico. Queria tirar uma fotografia na ‘porta’ por onde o Carlos Lopes passou quando ganhou a medalha de ouro da maratona. Aquela foi a minha chegada simbólica ao Estádio Olímpico. No dia seguinte, fui com um amigo à Universidade do Sul da Califórnia, onde trabalham os Damásio. Quando me viram, abraçaram-se numa manifestação tipicamente portuguesa. Cumprimentámo-nos como amigos e ficámos horas a conversar. À noite, fomos todos jantar. Foi um ótimo jantar, com um ambiente muito agradável e divertido. Quando regressei a Portugal, tinha um e-mail dele: “Miguel, adorei o jantar de ontem. Tiveste muito azar na vida, but you are a remarkable man [mas és um homem extraordinário].” n unica@expresso.impresa.pt
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