Amores de Verão

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VERÃO ROMANCE

Amores de verão Romances de verão são passageiros e eternos, ritos de passagem entre a adolescência e a idade adulta. Quatro testemunhos em épocas diferentes que contam, na primeira pessoa, como é o amor aos 20 anos TEXTO DE ANA SOROMENHO * FOTOGRAFIAS DE TIAGO MIRANDA

“Havia um leve rumor de amores adolescentes. Era como o rumor da brisa. Pois era o princípio da vida e nada ainda nos tinha acontecido. Ainda nada era grave, trágico nu e sangrento” Sophia de Mello Breyner (“Contos Exemplares” — ‘A Praia’) Maria, 65 anos. Algarve, início dos anos 60

“Do Algarve da minha infância e adolescência guardo memória da terra de um lugar de uma beleza indescritível, ainda intacto nas suas terras antigas e familiares. No fim de junho, as pessoas desciam até à costa para passar os três meses de verão. A minha praia ficava no centro da costa algarvia. Era um sítio muito simples, com as ruas de areia bordadas de piteiras e campos de vinha moscatel. Havia uma única rua calcetada que ia da igreja à praia, onde ficava o correio, um pouco mais abaixo o velho casino semiabandonado e o maravilhoso cinema ao ar livre. Do outro lado da rua era a casa dos pescadores e a farmácia onde íamos 44

REVISTA ÚNICA · 18/06/2011

comprar o óleo de coco com bergamota para nos fritarmos ao sol. Em frente ao mar só havia uma fiada de chalés de veraneio construídos no anos 30 e 40 — onde a maior parte das minhas amigas passava o verão —, dois cafés de madeira com os seus fiéis que se mantinham de ano para ano e o suprassumo da praia, a esplanada onde nas noites e nas matinés de domingo se dançava o mambo e o chá-chá-chá, ao som da orquestra Pax Júlia, que vinha de Beja para animar o nosso verão. Eu tinha o meu grupo de rapazes e raparigas e pelas nove da manhã já estávamos na praia. Tomávamos banho, secávamos ao sol e fazíamos mil combinações que não variavam muito. À hora do almoço íamos a casa, e pelas quatro horas vestíamos os nossos vestidinhos de robbia e tobralco, voltávamos à praia, jogávamos ao mata, ao prego e passeávamos. Depois do jantar íamos à esplanada, ao cinema ou, simplesmente, falar. Foi no verão de 58 que reparámos um no outro. Eu tinha 13 anos, ele 14. Sentíamo-nos

MARIA, 65 ANOS “NAQUELA ÉPOCA O ALGARVE ERA UMA PROVÍNCIA RESGUARDADA PELA SERRA E UM SEGREDO BEM GUARDADO. GUARDO A MEMÓRIA DE UM ALGARVE DE BELEZA INDESCRITÍVEL”


VERÃO ROMANCE

Amores de verão Romances de verão são passageiros e eternos, ritos de passagem entre a adolescência e a idade adulta. Quatro testemunhos em épocas diferentes que contam, na primeira pessoa, como é o amor aos 20 anos TEXTO DE ANA SOROMENHO * FOTOGRAFIAS DE TIAGO MIRANDA

“Havia um leve rumor de amores adolescentes. Era como o rumor da brisa. Pois era o princípio da vida e nada ainda nos tinha acontecido. Ainda nada era grave, trágico nu e sangrento” Sophia de Mello Breyner (“Contos Exemplares” — ‘A Praia’) Maria, 65 anos. Algarve, início dos anos 60

“Do Algarve da minha infância e adolescência guardo memória da terra de um lugar de uma beleza indescritível, ainda intacto nas suas terras antigas e familiares. No fim de junho, as pessoas desciam até à costa para passar os três meses de verão. A minha praia ficava no centro da costa algarvia. Era um sítio muito simples, com as ruas de areia bordadas de piteiras e campos de vinha moscatel. Havia uma única rua calcetada que ia da igreja à praia, onde ficava o correio, um pouco mais abaixo o velho casino semiabandonado e o maravilhoso cinema ao ar livre. Do outro lado da rua era a casa dos pescadores e a farmácia onde íamos 44

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comprar o óleo de coco com bergamota para nos fritarmos ao sol. Em frente ao mar só havia uma fiada de chalés de veraneio construídos no anos 30 e 40 — onde a maior parte das minhas amigas passava o verão —, dois cafés de madeira com os seus fiéis que se mantinham de ano para ano e o suprassumo da praia, a esplanada onde nas noites e nas matinés de domingo se dançava o mambo e o chá-chá-chá, ao som da orquestra Pax Júlia, que vinha de Beja para animar o nosso verão. Eu tinha o meu grupo de rapazes e raparigas e pelas nove da manhã já estávamos na praia. Tomávamos banho, secávamos ao sol e fazíamos mil combinações que não variavam muito. À hora do almoço íamos a casa, e pelas quatro horas vestíamos os nossos vestidinhos de robbia e tobralco, voltávamos à praia, jogávamos ao mata, ao prego e passeávamos. Depois do jantar íamos à esplanada, ao cinema ou, simplesmente, falar. Foi no verão de 58 que reparámos um no outro. Eu tinha 13 anos, ele 14. Sentíamo-nos

MARIA, 65 ANOS “NAQUELA ÉPOCA O ALGARVE ERA UMA PROVÍNCIA RESGUARDADA PELA SERRA E UM SEGREDO BEM GUARDADO. GUARDO A MEMÓRIA DE UM ALGARVE DE BELEZA INDESCRITÍVEL”



como uma espécie de irmãos, uma maneira de ser diferente na proximidade de uma certa inquietação e, sobretudo, com um desejo de ultrapassar as nossas circunstâncias, que ainda não sabíamos exatamente quais eram. Começámos um namoro muito inocente, que durou até setembro, mês em que eu ia sempre para as vindimas. Em outubro, voltava para o colégio interno. Nos verões de 59, 60 e 61, tudo recomeçava. Quando terminei o quinto ano saí do colégio e fui para o liceu de Faro. Nesse ano passei a vê-lo quase todos os dias. Tínhamos as festinhas com pick-up em casa de uns e de outros 46

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Para o meu pai aquele namoro era impensável, pertencíamos a mundos diferentes

aos sábados à tarde e as idas ao cinema ao domingo e, nesse inverno, em que éramos já adolescentes quase à beira de ser adultos os sentimentos intensificaram-se. Para conseguirmos estar juntos era preciso muita habilidade. Para o meu pai aquele namoro era impensável, pertencíamos a mundos diferentes. No verão de 62 a minha mãe levou-me para uma praia no norte do país, mais adequada à ideia que tinham para mim. Acabei aquele namoro, comecei outro diferente. Quando nesse inverno regressei ao liceu já não nos falávamos. No verão de 1963, num dia de julho, na nossa praia, depois do jantar passei em casa de


ISILDA, 51 ANOS NO MUNDO RURAL, OS NAMOROS ESTIVAIS TINHAM O RITMO DAS COLHEITAS SAZONAIS

uma amiga. Quando entrei vi-o, extraordinariamente bonito, muito especial como era. A casa ficava em cima da areia e viemos cá para fora conversar para o poial. Falámos de coisas banais. Quando eu me ia embora pediu-me para ficar mais um pouco, disse-lhe que não. De manhã, quando acordei foi o meu pai que me explicou que durante a noite tinha havido um acidente. Aquele rapaz, com a inconformidade dos seus 19 anos, tinha rasgado a estrada e riscado para sempre todos os limites. No verão seguinte casei-me. Este amor de verões e de verão ficou nos meus sonhos de mulher como um amor perfeito, inalterado, na nostalgia de tudo o que ficou para trás, nos limites do Guarda Che Luna e dos pirilampos.” Isilda, 51 anos. Sertã, distrito de Castelo Branco, final dos anos 70

(Chega à conversa com risadinhas nervosas que lhe abafam os pensamentos. Antes de nos encontrarmos, escreveu duas folhas A4 nas quais, com uma caligrafia limpa, conta a história daquele primeiro romance. Começa por ler o manuscrito, protegendo-se assim da sua enorme timidez. Recuamos a setembro de 1977. Tem 17 anos, mas no seu pequeno mundo ainda nada se passara.) “Todos os anos aparecia na Sertã, a minha aldeia, um senhor que ia buscar as pessoas para a apanha da uva. O rancho era quase só formado por pessoas jovens, íamos para uma quinta perto de Torres Vedras, eu era uma rapariguinha alegre e curiosa, estava encantada com a perspetiva de sair dali. Era a primeira vez. Mal chegávamos, arranjávamos um colega de carreira — a uva apanha-se aos pares — e juntos fazíamos toda a vindima. Os homens dormiam num barracão e as mulheres noutro, mas a vindima era feita num ambiente de proximidade e festa. No campo, as mulheres cantavam o tempo todo temas de folclore relacionados com as colheitas e nos fins de semana havia os bailaricos. Dei por ele uns dias depois de ter chegado. Era alto, bem-parecido, muito tímido, mas sentia que reparava em mim e aquilo dava-me grande alegria. As trocas de olhares duraram toda a época da colheita e no último dia, a 25 de setembro, havia sempre um grande baile. Dançámos a noite toda. Esperei que se pronunciasse, mas não o fez. No dia seguinte, cada um partiu para a sua aldeia e, passado algum tempo, chegou a primeira carta. Respondi-lhe. A segunda


EMÍLIA E FRANCISCO, 70 E 71 ANOS “COIMBRA ERA A BASE DOS VERANEANTES DA FIGUEIRA DA FOZ. TAMBÉM APARECIAM OS DE LISBOA E SANTARÉM E, AINDA, ESPANHÓIS, O QUE DAVA ÀQUELA PRAIA UM CERTO COSMOPOLITISMO”

já vinha com o pedido obrigatório que dava início ao namoro.” (Daquele inverno que decorreu manso e reservado até ao verão seguinte, recorda-se vivamente das terças-feiras, dia em que aparecia o carteiro para na quarta levar a resposta que ela passara a noite a escrever. Certos domingos, a caminho da missa, a cinco quilómetros da aldeia, o namorado distante aparecia-lhe de surpresa de moto, apanhava-a na estrada, e lá ia ela com o coração sintonizado nos solavancos daquela breve intimidade partilhada. Em setembro voltaram à vindima.) “Ficámos companheiros de carreira e andávamos sempre juntos. Era um namoro inocente que tinha a novidade de ser o primeiro. Quando acabou o verão anunciei que tinha outros planos. Uma tia de Lisboa arranjou uma casa para eu servir na cidade, no Bairro das Colónias. Pelo Natal, o Ricardo foi visitar-me e levei-o a passear a Belém.” (Mostra a fotografia, aos 19 anos, vestido grená com saia de godés abaixo do joelho comprado numa loja da Baixa com o primeiro ordenado. O cabelo, normalmente apanhado, solto pelos ombros. No regresso a casa, andaram perdidos pelo bairro sem atinar com o caminho. Provavelmente estaria perturbada.) “Ele detestou a cidade, disse que não iria viver em Lisboa. Foi uma grande desilusão. O meu maior sonho era libertar-me da al48

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Nessa época, era profundamente ridículo dizer ‘amo-te’. Quando o ouvíamos no cinema era a risada geral deia, tinha imaginado uma vida longe, sonhara até que poderíamos casar. Soube mais tarde que tinha emigrado para França. Demorei dois anos a desvanecer aquele amor.” Emília e Francisco, 70 e 71 anos. Figueira da Foz, final dos anos 50

Francisco: “Naquele tempo um rapaz podia ter toda a soltura, mas não se conhecia uma rapariga de um momento para o outro, o que acabava por ser chato. Se as raparigas fossem ‘sérias’ os pais metiam-se logo ao barulho e tínhamos ali uma férrea vigilância. O mais fácil para os rapazes era conhecer as amigas das irmãs e, normalmente, tudo acontecia durante o verão.

Em 1959 eu tinha 19 anos e os meus dias de férias passavam-se assim: estava-se a manhã na praia e subia-se para almoçar. À tarde, só as raparigas voltavam à praia. Nós, os rapazes, íamos para as piscinas ou ao ténis. Algumas tardes eram passadas nas matinés. Tinha um grupo local, de malta que durante o ano não se dava mas que no verão coincidia na Figueira. Todas as noites íamos para o casino, tinha assinatura para o mês inteiro, e aquilo era emocionante. Havia o espaço da dança e a rodeá-lo cinco filas de cadeiras onde se sentavam as meninas acompanhadas pelas respetivas mães. Dançava-se aos pares. Para convidar alguém atravessávamos aquela sequência emocionante de fiadas de senhoras, uma espécie de via-sacra, e, por vezes, depois daquele trabalho todo, levávamos tampa. A dança era acompanhada pelos olhares avaliadores das ‘mães’ e tínhamos de nos portar muito bem. Não podíamos convidar uma menina para dançar de cigarro na mão, era mal visto. Havia uns especialistas que dançavam rock, eu não gostava muito de dançar e fumava cigarros. Certas noites, esgueirávamo-nos até uma boîte onde havia uma espécie de striptease, coisa só para adultos, e sentíamo-nos muito intimidados, pois estávamos longe de nos sentir adultos. Estudava no Técnico, onde era rara a presença feminina, considerava as mulheres uma espécie menor e julgava pertencer a um tipo de escol que se diferenciava. Nessa altura já me interessava por política, levava para férias um carregamento de livros e passava parte das tardes nos cafés. Nas minhas leituras desse verão marcou-me muito o Bertrand Russel, “Porque Não Sou Cristão’, porque como andava com uma crise de fé, aquilo ia ao encontro das minhas preocupações metafísicas. Nesse tempo as raparigas não andavam sozinhas. Emília era amiga da minha irmã e, uma tarde, apareceram na piscina. Conhecia-a do ano anterior, era vistosa, e eu estava na fase de olhar. Andava já na faculdade em Coimbra e tinha uma abordagem diferente das outras raparigas. Pedi-lhe namoro. Era obrigatório. Mas, também nessa época, era profundamente ridículo dizer ‘amo-te’, quando ouvíamos no cinema a palavra era a risada geral. Não me lembro exatamente o que lhe disse. Devo ter-me embrulhado todo.” (Sentada ao lado de Francisco a folhear um álbum de fotografias antigas, Emília lembra-se bem daquelas palavras. Nesse dia fazia 19 anos. De memória, repete o diálogo:


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