A minha cama e eu

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eu A minha cama e

CAMA

DESCANSO

N

ão há muito tempo, um ladrão que pretendia assaltar uma empresa no Vale do Paraíba, interior de São Paulo (Brasil), adormeceu num dos sofás do escritório, vindo a ser encontrado pelo proprietário, que chamou a polícia. Nem a voz da autoridade o conseguiu acordar. Depois de resmungar qualquer coisa, o indivíduo voltou-se para o outro lado e continuou a dormir tranquilamente. O caso é insólito, mas não deixa de provar até que ponto dormir é uma necessidade fisiológica. Por muito que permaneçam envoltas em mistério algumas das funções

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São indiscutíveis os benefícios de dormir bem. Cinco personalidades abriram-nos a porta dos seus quartos e dizem como descansam TEXTOS DE MAFALDA GANHÃO E MARIA JOÃO BOURBON FOTOGRAFIAS DE JOSÉ VENTURA


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JOÃO MANZARRA, APRESENTADOR

DORMIR COMO UM RELÓGIO “SEMPRE PENSEI que um dia havia de ter uma cama redonda! Quando me mudei para esta casa percebi que era o momento. Enquanto não tenho filhos.” João Manzarra sorri, antes de justificar: “Não quero ouvir: ‘Oh pai, porque é que tens uma cama redonda?’” O apresentador decidiu-se pela “extravagância” por querer perceber como é dormir numa base “sem vértices” — “estamos só a falar de sono, não é?” —, uma coisa do tipo relógio, “em que nós somos os ponteiros e acordar em qualquer posição passa a ser uma coisa normal”. Foi dando mais importância ao quarto com a idade. “Antes, qualquer palhinha me servia, agora já percebo a importância de um bom colchão.” Tal como as vantagens de adormecer e acordar mais cedo. Se, por norma, ia deitar-se sempre muito tarde, cheio de sono, atualmente prefere ser um bocadinho mais disciplinado. Deita-se ainda com energia para escolher um “indutor do sono”, como ver televisão, ler ou jogar ‘Angry Birds’ no iPhone”. O adormecer é o seu momento mais criativo do dia, propício a ideias geniais, “mesmo que a maior parte delas se percam, porque geralmente não as anoto, ou se escrevo, parecem-me coisas incompreensíveis quando as leio no dia seguinte”. Pelo contrário, as primeiras horas do dia nunca são muito produtivas. Custa-lhe acordar. “A preguiça matinal faz-me parecer um brócolo...” Local basicamente para dormir, o quarto é território proibido até para os seus vários cães e ali “comida não entra”. “Tenho pavor de dormir numa cama com migalhas. Areia ainda vá lá, mas migalhas... Comida?...” Faz um esgar agoniado, enquanto reconhece não se perder em pormenores ou adereços. O pássaro que aparece na fotografia foi um extra, levado debaixo do braço antes de posar. 61


DESCANSO

MANUEL AIRES MATEUS, ARQUITETO

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UM QUARTO À MEDIDA PROJETAR um quarto é relativamente simples. Viver nele também. Pelo menos para Manuel Aires Mateus, que concebeu o seu sob uma ótica funcional. “Tenho uma relação simplista com o quarto”, explica descontraidamente o premiado arquiteto, autor de vários projetos, entre eles as “Casas na Areia”, na Comporta: “Deve ser um espaço simples, já que é usado basicamente para dormir”. No seu caso, toda a (pouca) mobília que o decora foi também desenhada por si. “Nos primeiros anos dormíamos apenas num colchão pousado no chão”, recorda. O estrado de madeira que agora lhe serve de base teve de obedecer a critérios rigorosos: incluir um encosto para as costas, ser confortável para as leituras noturnas mas não tão alto que desequilibrasse o alinhamento entre as portas de correr que dão acesso à casa de banho, a cama de casal e a janela que serve de moldura à paisagem natural: uma enorme árvore morta que, por entre os ramos, deixa ver ao longe o rio Tejo e as duas Torres da Praça do Comércio. A cama foi “arrumada” em função dessa vista. Ocasionalmente, serve também de sofá para aquilo a que chama as suas “sessões familiares”, referindo-se aos momentos em que os dois filhos se juntam aos pais para ver um filme projetado na parede do quarto. É a exceção. Por regra, Aires Mateus passa pouco tempo na cama. Acorda às seis ou sete da manhã, não dorme mais que seis horas por noite e, entre o trabalho e as aulas que dá na faculdade, não consegue descansar muito tempo em casa. “O normal é estar sempre cansado, não sou como o Marcelo Rebelo de Sousa, que só dorme quatro horas e consegue ter boa cara. Eu vivo cansado.”

do sono, sabe-se que ele é vital para o ser humano e que dele depende — e muito — a nossa qualidade de vida, a nossa saúde e a nossa memória. Importante em qualquer idade, o tempo e o modo como dormimos vai evoluindo com o passar dos anos. “Um adulto não precisa de dormir tanto como um adolescente, nem este como um bebé”, explica a neurologista Teresa Paiva. À medida que envelhecemos, vamos dormindo “menos profundamente e de forma mais fragmentada”, acrescenta Marta Gonçalves, presidente da Associação Portuguesa do Sono (APS). É um facto que as pessoas devem aceitar como normal, continua a psiquiatra, e que gera muitas vezes um injustificado recurso a medicação. 62

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Do que fica dito, já se percebe que não é possível padronizar o número ideal de horas de sono. “Depende das pessoas, embora se possa considerar que o mínimo indispensável são seis horas e meia”, diz Teresa Paiva, responsável também pelo primeiro mestrado mundial em sono. Na medida certa. Se dormir pouco aumenta o risco de sofrer de doenças como hipertensão arterial, obesidade, cancro e problemas cardiorrespiratórios, não se pense que dormir de mais não é também considerado um distúrbio. Alguns dos problemas anteriores podem ser consequência de horas de sono em excesso (acima das nove horas e meia), que favorecem ainda o cansaço, dores de



DESCANSO

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JOANA SEIXAS, ATRIZ

INSPIRAÇÃO JAPONESA DE TODOS os quartos que já teve, este é o seu preferido. Joana Seixas escolheu cuidadosamente cada quadro, cada peça de mobília, cada objeto. O resultado final reflete a sua maneira de ser. Sensível às questões ecológicas, pintou as paredes com tinta sem chumbo, dorme em almofadas de caroços de cereja e a cama foi uma descoberta “para a vida”. Resume-se a um colchão assente numa base de tatame. “Não há melhor. Não range quando nos mexemos e é muito confortável.” Pena que não seja fácil encontrá-la. Joana comprou a sua há vários anos, “numa loja de artigos japoneses, que entretanto fechou”. Não foi a sua primeira incursão na criação de ambientes. “A decoração de interiores é a minha segunda área de eleição. Adoro. Tinha 14 anos quando desenhei a mobília para o meu quarto, com uma cama que tinha de encaixar entre dois pilares.” A atriz não esconde que gosta muito de dormir. “O ideal são oito horas por noite”, fundamentais para “funcionar bem no dia seguinte”, que começa cedo, “logo às 7h da manhã para despachar os miúdos”. Entre ensaios e afazeres domésticos, não para um segundo. Resultado, a partir das 21h os olhos começam a pesar-lhe. Consoante a energia, pega num dos livros que tem à cabeceira ou passa os olhos por uma revista antes de adormecer. “Mas não gosto de estudar textos ou cantar nessa altura”, esclarece a atriz, que frequenta atualmente um curso de canto no Hot Clube, sobretudo porque as questões profissionais podem perturbar-lhe o sono: “Sonho muito com as personagens que interpreto quando estou a iniciar um projeto.” Usa o quarto para trabalhar somente durante o dia, se precisa de estar mais concentrada. E não é de ficar muito tempo na cama depois de acordar: “Tenho a sensação que estou a perder o dia.”

cabeça e depressão. Dizem as estatísticas que os portugueses são dos que menos dormem na Europa. A tendência é para adormecerem tarde, perto da meia noite, e acordar cedo para irem trabalhar. É uma rotina cansativa, que — alerta Teresa Paiva — está a ser transmitida também às crianças, com a agravante, nesta faixa etária, de potenciar um mau rendimento escolar e problemas de hiperatividade. Ainda assim, o estudo “Epidemiologia da Insónia em Portugal”, de que Marta Gonçalves é coautora, revela que os portugueses dormem atualmente melhor do que dormiam em 1998. Se é verdade que 17,7% da população apresentam sintomas de insónia, o número representa menos 10% do que há 64

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uma década. Outros dados relevantes apontam para o facto de 10% da população tomarem diariamente medicação para dormir e, desses, 12% fazerem-no escolhendo as indicações dos amigos. “Medicar alguém para dormir é uma facilidade em que os médico caem, muitas vezes pela falta de tempo para atender o doente com mais calma e perceber o que lhes está a tirar o sono”, considera a presidente da APS. “E depois de se começar a tomar já não há ninguém que retire esses remédios, embora eu registe com agrado que já aparecem pessoas preocupadas em deixar de depender de comprimidos para dormir”, acrescenta a psiquiatra. Tão ou mais eficaz do que a medicação



DESCANSO

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JOSÉ AVILLEZ, CHEFE

SONHAR COM IGUARIAS MESMO reconhecendo que o quarto é assoalhada a que pouco liga, José Avillez condescende que, quando tem de viajar e passar algum tempo fora de casa, “é sempre ótimo voltar para a nossa cama”. De resto, o chefe declara-se pouco exigente e isento de rituais quando chega a hora de dormir: “Basta-me um colchão confortável, uns bons lençóis e uma almofada baixinha.” Ausência de luz, cores claras e “poucos ornamentos à volta” são também condições preferenciais. “Por isso nem quadros pendurei nas paredes.” Televisão no quarto já teve, mas desistiu. Para quem, como ele, não consegue adormecer antes das duas da madrugada e não dorme mais que cinco ou seis horas por noite — um luxo, depois de durante muito tempo não conseguir ir além de hora e meia — deitar-se e descansar é tudo o que ambiciona no final dos dias intensos de trabalho. “É namorar um bocadinho e cair para o lado...”, brinca o proprietário do restaurante O Cantinho do Avilez, que confessa ser um homem de sono leve, com tendência para acordar ao mínimo ruído. O que leva muito a sério são os sonhos. “Mais do que os pesadelos, na verdade.” Quinze dias antes de ser convidado, sonhou que era chefe do Tavares, por exemplo, e acontece-lhe sonhar com pratos que depois experimenta na cozinha. Atualmente, José Avillez escreve quase tudo no telemóvel. Regista se acorda com alguma dessas inspirações, anota os pensamentos que tenha durante uma insónia ou mesmo as coisas que se vai lembrando se demora um pouco mais a adormecer. Com os dois filhos pequenos “transferidos” para quarto próprio, saboreia ainda a reconquista de um espaço que durante algum tempo foi área forçada de convívio familiar: “Agora consigo dormir mais um bocadinho, não há dúvida...”

pode ser adotar bons hábitos. Segundo Teresa Paiva, para dormir bem o essencial é ter tido um dia em que os músculos trabalharam e houve estimulação intelectual. Cumprir horários regulares (para comer e acordar por exemplo), apanhar luz e ter dias emocionalmente tranquilos são outros fatores positivos. E se nem todos dependem da nossa vontade, há pelo menos erros que se podem evitar. Marta Gonçalves refere dois: “Ir para a cama sem sono e ter relógios por perto”. Não há nada mais contraproducente do que forçar-se a ir dormir, desrespeitando os ritmos biológicos naturais, garante. Já os relógios, aumentam o risco de provocar insónias, “por causa da ansiedade que provocam”. Se 10% ou 15%o do tempo em 66

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que estamos deitados não estivermos de facto a dormir, isso é normal, mas deixa de ser encarado como tal quando se passa a controlar cada minuto sem adormecer, explica a especialista. Melhor mesmo é jogar pelo seguro e afastar do quarto potenciais fontes de “desassossego”. Evitar telemóveis e computadores por perto, televisores, consolas e tudo o mais que contrarie o relaxamento. Criar nos quartos um ambiente sereno é o que recomendam os especialistas, mesmo que não existam estudos que comprovem cientificamente a eficácia de escolher certas cores ou estilos de decoração. Assim, escolha um espaço confortável e uma temperatura fresca. E tenha bons sonhos.



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NUNO BALTAZAR, ESTILISTA

DORMIR SEM OS PÉS DE FORA

Cama Uma história do chão às nuvens Durante séculos considerada a peça de mobília mais importante da casa, a cama foi também, desde sempre, um símbolo de estatuto social. O homem pode ter começado por dormir no chão, mas depressa percebeu as vantagens de tornar mais confortável o seu espaço de descanso. Começou por fazer montinhos de palha ou folhas, que mais tarde ensacou em colchões rudimentares, cosendo duas peles de animais ou tecidos. Posteriormente elevou-os, para evitar o pó, o frio e a ‘convivência’ com as ratazanas, causa frequente de uma série de doenças. Há detalhes curiosos. No tempo dos egípcios encontram-se camas com estruturas não muito diferentes das da atualidade, mas com um pormenor engraçado: uma cabeceira com um recorte em arco, provavelmente para encaixar os compostos penteados da época. E se os romanos popularizaram os canapés, onde comiam também, 68

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dando um salto para a Idade Média as camas eram simples caixas de madeira onde só os mais ricos conseguiam assentar colchões de plumas (os da maioria continuavam a ser de palha). A influência cultural dos diferentes períodos históricos trouxe o dossel na era romântica, imponentes colunas no renascimento, profusão de elementos decorativos na fase barroca e linhas limpas e monumentais durante o império de Napoleão. Já a revolução industrial trouxe novos materiais à peça de mobília e foi responsável pela modernização dos colchões, após a invenção da mola de aço em espiral. Os colchões de água — um sucesso do século XX, durante os anos 60 — e os de ar (nos anos 80), antecederam a mais recente inovação em matéria de conforto: a espuma viscoelástica, desenvolvida pela NASA para ajudar os astronautas a suportar a gravidade e nos deixar a dormir nas nuvens.

A ESTATURA (1,85m) justifica a preocupação de Nuno Baltazar com as camas. “Como sou alto, faz-me confusão dormir em camas pequenas. Acabo por dar menos importância ao colchão.” A que tem no quarto é feita à medida do seu conforto e tem por cima uma ventoinha que contribui para criar um ambiente relaxante: “Além de proporcionar uma frescura mais saudável que o ar condicionado, o barulho das pás tem um efeito calmante.” Aliás, tudo no quarto do estilista foi pensado para proporcionar tranquilidade. “Não gosto de branco, mas optei por um tom suave nas paredes e a decoração, feita por um arquiteto, foi pensada em função dos objetos que eu queria cá colocar.” Neles se incluem alguns acessórios criados por si para a linha “Nuno Baltazar casa” — nomeadamente os candeeiros — e uma serigrafia do amigo Luís Buchinho. “É a primeira coisa que vejo ao acordar.” O peluche que se vê na fotografia foi oferecido por uma amiga e acabou por ficar. Baltazar não tem rituais rigorosos antes de dormir. “Muitas vezes adormecia na sala a ver televisão. Acabei por trazer uma para o quarto, embora também goste de ler um livro ou uma revista antes de adormecer.” Trabalho é que não. “Evito ao máximo trabalhar em casa e no quarto nem emails profissionais abro.” Não é dado a insónias. “Tenho a sorte de adormecer bem e durmo tranquilamente — tirando um ou outro pesadelo nas alturas da ModaLisboa —, mas confesso que me é difícil acordar e sair logo da cama. Às vezes até ponho o despertador a tocar mais cedo para poder ficar um bocadinho a ver as notícias, tranquilo, antes de me levantar.” Outra coisa que o ajuda a acordar bem disposto é dormir com as janelas abertas: “Adoro acordar com o sol a bater-me na cara.” n


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