Catálogo Exposição – Fragmentos: Coleções de Rafael Schunk e MAS/SP

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FRAGMENTOS Coleções de Rafael Schunk e Museu de Arte Sacra de São Paulo Exposição no Museu de Arte Sacra de São Paulo de 17 de setembro de 2016 e 08 de janeiro de 2017.



FICHA CATALOGRÁFICA (Elaborada por Cláudio Oliveira CRB8-8831)

Fragmentos: coleções de Rafael Schunk e Museu de Arte Sacra de São Paulo / Curadoria: Percival Tirapeli ; textos: Percival Tirapeli, Rafael Schunk ; Fotografia: Iran Monteiro, Germano Graeser, Leandro Fonseca, Rafael Schunk, – São Paulo: Museu de Arte Sacra de São Paulo, 2016. ISBN 978-85-67787-15-2 1. Fragmentos 2. Rafael Schunk 3. Museu de Arte Sacra de São Paulo. 4. Arte Sacra I. Título. II. Autor.

RealIZação:


FRAGMENTOS Coleções de Rafael Schunk e Museu de Arte Sacra de São Paulo

Museu de Arte Sacra de São Paulo 2016


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ragmentos: pedaços da memória que recontam a História. O ímpeto progressista levou à demolição inúmeras construções que, se preservadas, serviriam hoje de testemunhas de como foi a vida no passado. A atuação de colecionadores, como Rafael Schunk, adquirindo e preservando os fragmentos destas demolições, permite que, ao serem expostos no Museu de Arte Sacra de São Paulo, façam com que o público conheça um pouco desse passado, e que os estudiosos e historiadores tenham elementos que lhes permitam reconstruir a memória arquitetônica. O Museu de Arte Sacra de São Paulo mantém em seu acervo fragmentos de enorme valor histórico e irá colaborar com o colecionador agregando à exposição peças representativas. O MAS-SP está abrigado no prédio do Mosteiro da Luz, construído em 1774, um dos mais conservados exemplares do patrimônio arquitetônico e um dos últimos prédios em taipa de pilão. Além disso, a Curadoria da exposição “Fragmentos” está a cargo do Professor Dr. Percival Tirapeli, um dos maiores estudiosos da matéria. Esses fatores enriquecem em muito essa mostra. A Direção do Museu tem certeza de que a exposição e seu catálogo permitirão aos visitantes juntar os “Fragmentos” da História e formar novos conhecimentos.

José Oswaldo de Paula Santos Presidente do Conselho de Administração

José Carlos Marçal de Barros Diretor Executivo


Sumário Fragmentos da Memória.................................................................................................................... 7 Fragmentos: coleções de Rafael Schunk e Museu de Arte Sacra de São Paulo................................. 9 Coleção Rafael Schunk..................................................................................................................... 10 Reflexões sobre os fragmentos........................................................................................................ 11 Fragmentos e ruínas das missões jesuíticas................................................................................... 13 Fragmentos em São Paulo............................................................................................................... 16 Fragmentos do Rio de Janeiro......................................................................................................... 17 Fragmentos de São Pedro dos Clérigos de Mestre Valentim.......................................................... 18 Fragmentos da Sé de Salvador......................................................................................................... 20 Capela da fazenda Jaguara em Nova Lima..................................................................................... 21 Fragmentos e recomposições.......................................................................................................... 22 Fragmento: fragilidade e durabilidade............................................................................................ 24 Fragmentação dos conjuntos pictóricos......................................................................................... 27 Fragmentos entre o barroco e a modernidade: os azulejos............................................................ 29 Fragmentos como documentos....................................................................................................... 31 Bibliografia ...................................................................................................................................... 33 Acervo Museu de Arte Sacra de São Paulo...................................................................................... 41 Fragmento de figuras femininas míticas........................................................................................ 45 Sacrário de Guarulhos...................................................................................................................... 47 A Anunciação de Nossa Senhora..................................................................................................... 49 Frei Agostinho de Jesus em Mogi das Cruzes ............................................................................... 51 Fragmentos da História .................................................................................................................. 53 Coleção Rafael Schunk..................................................................................................................... 61 “A Osirarte" - Da Igreja do Outeiro da Glória ao Ministério da Educação e Cultura do Rio de Janeiro........................................................................................................... 119 O colecionador............................................................................................................................... 124 O curador........................................................................................................................................ 125 Ficha Técnica.................................................................................................................................. 126


MESTRE VALENTIM DA FONSECA E SILVA (C.1745 – 1813). ESPALDAR – CAMA VICE-REINO. Madeira jacarandá, século XVIII, 105 x 132 cm. Obra realizada por Mestre Valentim no período do vice-reinado de d. Luís de Vasconcelos e Souza na cidade do Rio de Janeiro (vice-rei do Brasil – 1778 - 1790). Coleção Schunk.


Fragmentos da Memória

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beleza do fragmento está na ideia do que o fruidor possa perseguir: falta-lhe a mão que segura o rosário, o Menino sorridente – com o gesto renascentista do passo reservado para a realeza. O fragmento é despojado da aura sagrada. É arte pura, poesia barrista [...]. Apenas meio corpo, o modelado sem policromia emana o frescor do barro que, pelo destino, rompeu-se. Fugiu das chamas e emergiu vigoroso como um pensamento a ser concluído. Fragmentos – o todo das partes.” (Percival Tirapeli, 2011, Exposição Oratórios Barrocos, MAS-SP, pp. 83 e 98).

Para que as histórias sobrevivam no imaginário coletivo, é necessário recontá-las sob vários pontos de vista: conto; reconto; reencontro. Herança viva e ininterrupta; o textual e a tradição oral. A exposição Fragmentos reúne um novo olhar sobre a arte sacra brasileira – o diálogo entre duas coleções, uma pública e outra particular, aquilo que um dia foi rejeitado, salvo e redescoberto. Nos anos 1980, ainda criança, viajava regularmente nas férias de verão para o município de Itanhaém, antiga cabeça de capitania hereditária, terra imortalizada nas pinturas de Volpi e umas das mais velhas cidades históricas brasileiras. Eu costumava fazer longas caminhadas pela praia ao entardecer acompanhando minha saudosa avó materna Helena Bakk Pereira; no final, subíamos a secular ladeira de pedras irregulares em direção ao conventinho de Nossa Senhora da Conceição para avistar o mar; no alto do morro via-se a foz do Rio Itanhaém, a Praia da Saudade, o cruzeiro franciscano e o areal. Entrávamos na igreja para admirar aqueles altares maneiristas de cedro escurecido, lustrado pelo sebo da fuligem das velas, as ferragens corroídas pela maresia, a Virgem de Anchieta, os pisos cerâmicos desnivelados pelo constante caminhar, as ruínas do claustro recobertos de musgos, restos de azulejos portugueses e imagens de barro desenterradas em escavações arqueológicas, testemunhos de outros tempos. Estas experiências visuais, táteis, olfativas e, sobretudo, culturais foram marcantes. A minha primeira relação com a arte sacra foi de contemplação e estudo – o objeto religioso visto como documento histórico. No começo, vieram os postais de monumentos coloniais do litoral paulista, seguidos de recortes de revistas, catálogos e jornais sobre o barroco brasileiro organizados numa pasta. Anos mais tarde, passeando pelas feirinhas dominicais paulistanas, conheci alguns catadores e antiquários iniciando uma coleção de pedaços de altares de igrejas demolidas, fragmentos de tocheiros, oratórios, imagens de culto doméstico e azulejos. Ao contrário da maioria das coleções particulares que enfatizam a imaginária, eu sempre privilegiei os fragmentos do mobiliário das igrejas demolidas. Talhas que sofreram todos os tipos de intempéries e abandono: derrubadas a golpes de machados, serradas, mutiladas, carcomidas por brocas e cupins, queimadas, expostas à chuva, sol e frio – contudo, sobreviventes. Talvez a minha geração seja das últimas a reunir acervos de maneira tradicional, compostas pelos encontros de peças adquiridas nos locais históricos originais; com o passar dos tempos apenas

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será possível formar coleções a partir de outros espólios desmembrados. Hoje é preciso viajar centenas de quilômetros e raramente se localiza algo autêntico disponível para aquisição; como jazidas de ouro que um dia se esgotaram. Os santos paulistinhas desapareceram das capelas de santa cruz das estradas, dos cruzeiros de cemitérios e das choupanas dos caboclos da roça – quando muito, apenas fragmentos de barro, gesso, metal ou resina são encontrados pelas velhas estradas; restos da cultura material e religiosa do século XX. Passados os tempos de estudo na faculdade de arquitetura, eu senti a necessidade de ampliar os horizontes; seguir adiante – das frequentes visitas e exposições organizadas na histórica Santana de Parnaíba, cidade vizinha da minha terra natal Osasco, me chamou a atenção a carência de informações sobre certo escultor misterioso que atuou naquela região; um monge beneditino carioca chamado frei Agostinho de Jesus (c.1600/10 – 1661), primeiro grande artista brasileiro. Suas imagens sempre foram objetos de fetiche entre os colecionadores disputando-as avidamente. Aproximei-me de Parnaíba no intuito de procurar imagens deste artista, acabei seduzido pelo desafio de escrever e catalogar sua produção na pesquisa do mestrado. Concomitantemente ao trabalho de resgate da escola de imaginária beneditina, redescobri a obra do escultor seiscentista franciscano denominado Mestre de Angra dos Reis. Já não era mais suficiente colecionar, era preciso compreender o passado, reescrever a história, participar intensamente da construção do conhecimento, fotografar e viajar: interior de São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás... litoral e sertão.

Rafael Schunk Colecionador / pesquisador RUÍNAS DO ENGENHO DE SÃO JORGE DOS ERASMOS Estruturas remanescentes, séc. XVI. Santos – SP.

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Fragmentos: Coleções de Rafael Schunk e Museu de Arte Sacra de São Paulo


Fragmentos: coleções de Rafael Schunk e Museu de Arte Sacra de São Paulo

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exposição Fragmentos: coleções de Rafael Schunk e Museu de Arte Sacra de São Paulo reúne fragmentos do jovem colecionador e do MAS-SP que, por razões diversas, não haviam ainda sido expostos. A sala expositiva dedicada à coleção particular prioriza os fragmentos oriundos da antiga catedral de Taubaté, demolida em 1940; as pequenas imagens em terracota da feitura de frei Agostinho de Jesus e aquelas que seguiram a esta tradição no Vale do Paraíba, os denominados santos paulistinhas. Ainda dentro do ambiente expositivo, o diálogo entre os fragmentos evidencia-se com obras de Mestre Valentim, artista mineiro que viveu no Rio de Janeiro colonial. Naquela cidade ainda há importantes obras dele em talha, como as das igrejas de Santa Cruz dos Militares, a Capela dos Noviços na Ordem Terceira do Carmo, altares monumentais na igreja São Francisco de Paula e Nossa Senhora da Conceição da Boa Morte. O mestre teve seu ateliê e sua obra-prima, a igreja de São Pedro do Clérigos, demolidos (1943) para a abertura da avenida Presidente Vargas. As partes oriundas daquele desmanche são pontos de partida para a reflexão sobre os fragmentos presentes tanto em coleções particulares como nos acervos de museus. De Schunk, a cabeceira de cama e dois anjos; do MAS-SP, como atribuição, dois anjos voantes e a Verônica (entalhe do rosto de Cristo). Em São Paulo, no início do século modernista, a demolição das igrejas coloniais no centro antigo foi ação quase que rotineira. Foram demolidas a Sé, igrejas do Pátio do Colégio, São Pedro dos Clérigos, Misericórdia, além dos conventos carmelita, beneditino e de Santa Teresa. A última, a dos Remédios, de fachada toda azulejada, foi ato desnecessário, e dela aqui apresenta-se a pintura A Anunciação de Nossa Senhora, de José Joaquim de Gugos, acervo MAS-SP, que raramente é exposta. Aliás, os azulejos das coleções do MAS-SP e de Schunk, apresentam esta importante técnica, tão apreciada pelos portugueses, e no século XX incorporados à arquitetura moderna por Portinari em obras de Niemeyer e executados pela Osirarte. As demolições do patrimônio histórico também atingiram a antiga capital colonial, Salvador, atingida pela febre da modernidade e em 1933 ali demoliu-se a antiga Sé Primacial do Brasil, da qual saíram uma grande quantidade de fragmentos atualmente dispersos por museus e coleções particulares. Uma cariátide e dois fragmentos de arcos com cabeças de putti, acervo do MAS-SP, relembram esta ação que motivou o início da criação do Iphan (1937) logo em seguida. Neste catálogo o curador elenca uma sucessão de demolições de igrejas que geraram uma grande quantidade de fragmentos, sendo dos mais antigos a destruição das missões jesuíticas no Rio Grande do Sul. O conhecido texto de Lúcio Costa sobre a Arquitetura Jesuítica no Brasil é ponto de partida para o olhar sobre fragmentos daquelas ruínas. Não é por acaso que os dois fragmentos de cabeças de anjos da coleção MAS-SP, provenientes das missões jesuíticas, são hoje o símbolo do Museu de Arte Sacra de São Paulo. Destaques de fragmentos no espaço permanente do MAS-SP abrem o diálogo com peças da exposição Fragmentos: as duas talhas com cabeças de anjos já mencionadas, a escultura de São Francisco

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Xavier, santo jesuíta e o armário antifonário das missões de Chiquitos, Bolívia. Da lavra dos jesuítas, relacionam-se com Fragmentos o sacrário de Guarulhos e fragmentos do altar de talhas vazadas de Araçariguama, que dialogam com a talha da moldura de uma portinhola de sacrário da coleção Schunk. Ampliando o conceito de aceitação do fragmento como ponto de partida para pesquisa, no catálogo há informações sobre o importante restauro de dois altares da antiga matriz de Santo Amaro (SP). Durante décadas os fragmentos foram expostos tal como haviam sido recebidos como parte do acervo (1969) e, pesquisados por Aracy Amaral em 2003, resultaram em surpreendente restauro executado pelo Ateliê Julio Moraes. O esforço de se procurar em documentos escritos, fotográficos e testemunhos orais levou a uma ação conjunta de restauro na qual os fragmentos foram transformados em documentos de uma época de brilho e cor da talha jesuítica paulista. O diálogo entre os fragmentos de ambas as coleções proporciona um olhar mais agudo sobre as partes de ornamentos que, desmembrados de sua totalidade, geram novas investigações sobre a técnica, o estilo, o douramento, constituindo assim um documento que é parte integrante de nosso patrimônio sacro. Percival Tirapeli, curador.

Coleção Rafael Schunk

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onstituída no final dos anos 1990, a Coleção de Arte Sacra Rafael Schunk enfatiza produções artísticas do período bandeirista a partir do século XVII, passando pelos artistas barrocos conventuais e laicos até a contemporaneidade. Destaque para as esculturas em terracota de pequenas dimensões do primeiro artista nacional, o monge beneditino frei Agostinho de Jesus (c. 1600/10 - 1661) e seguidores da escola paulista de imaginária, tais como um santeiro anônimo intitulado Mestre do Cabelinho Xadrez, artista que espalhou sua obra ao redor de São Paulo na segunda metade do século XVII. Seu trabalho, essencialmente voltado ao culto doméstico, representa a síntese da arte no tempo dos bandeirantes. Estas obras, de culto coletivo e doméstico, representam a diversidade da arte sacra produzida em terras de bandeirantes, índios e jesuítas. Algumas pinturas de tradição cusquenha enfatizam a ligação e intercâmbio de São Paulo com os castelhanos da América Espanhola desde os tempos pioneiros. Em princípios do século XVIII, com o surgimento do ciclo do ouro, migração de populações e mão-de-obra para as regiões auríferas, a arte barroca brasileira atinge seu apogeu em Minas Gerais. Nesse período, em São Paulo, as grandes imagens padroeiras dos templos paulistas foram importadas de Portugal ou do Nordeste como podemos testemunhar nos oragos retabulares das igrejas ituanas, nos conventos da Baixada Santista ou Vale do Paraíba. Na Coleção Schunk, o século XVIII destaca os fragmentos das talhas das velhas matrizes paulistas, demolidas ou reformadas no decorrer dos tempos. As talhas do acervo são provenientes das matrizes de Taubaté, Pindamonhangaba, Basílica Velha de Aparecida, Queluz e Bananal. Além deste legado paulista, o acervo conserva obras de um dos maiores

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escultores brasileiros do período colonial, o Mestre Valentim, artista que disseminou sua obra na antiga capital da colônia da América Portuguesa, a cidade do Rio de Janeiro. Somam-se a esta rica diversidade um conjunto de tocheiros, mísulas, oratórios e palmas de altares originários dos Vales do Paraíba e Tietê. Em meados do século XIX, com o desenvolvimento do ciclo do café, as atenções econômicas e sociais retornam para São Paulo. Impulsionada pelo ouro verde, a arte religiosa paulista segue em dois paralelos: o gosto neoclássico dos salões do baronato cafeeiro ligado à corte imperial carioca; e a produção santeira de padrão arcaísta, voltada ao culto popular e doméstico. Nesta época surgem as imagens paulistinhas, em sua maioria, santos de barro cozido ou semi-cozido compostos por bases cônicas e confeccionados em oficinas artesanais espalhadas por todo Vale do Paraíba Paulista. Desta época destacamos a obra do artista Benedicto Amaro de Oliveira (1848-1923), o Dito Pituba, nascido em Santa Isabel-SP e considerado um dos maiores santeiros populares do Brasil. Seu trabalho, conforme relato do pesquisador Eduardo Etzel contido em Arte Sacra Popular Brasileira (1975) era encontrado até pouco tempo nos oratórios e casas simples do homem no campo, entre as velhas estradas que interligavam Santa Isabel a Mogi das Cruzes, Itaquaquecetuba, Guararema, Arujá, Igaratá, Nazaré Paulista e Jacareí. O trabalho de Dito Pituba representa a cultura caipira como desdobramento da sociedade bandeirista e pode ser admirado em suas diversas fases na Coleção Schunk e em grandes instituições como o Museu de Arte Sacra de São Paulo e o acervo do Museu de Antropologia do Vale do Paraíba. O percurso da Coleção de Rafael Schunk abrange produções artísticas dos séculos XVII, XVIII, XIX e XX, desde o surgimento da arte barroca brasileira até suas ramificações na cultura caipira, com permanência de arcaísmos até a modernidade, com destaque para um conjunto de 60 azulejos da Osirarte, oficina que desenvolveu trabalhos para inúmeros edifícios públicos, a exemplo do MEC-Rio e representou a tradição da azulejaria brasileira desenvolvida no período moderno. O acervo Schunk conserva obras de grandes artistas nacionais do período colonial e imperial, tais como frei Agostinho de Jesus, Mestre de Itu, Mestre do Cabelinho em Xadrez, Mestre Oliveira, Mestre Valentim da Fonseca e Silva, José Joaquim da Veiga Valle, Dito Pituba, Dito Luzia e santeiros populares do Vale do Paraíba. As coleções particulares expostas nas vitrines do Museu de Arte Sacra de São Paulo cumprem um duplo papel social e desbravador, democratizando o acesso à cultura e ao conhecimento. Dessa forma, as obras de arte migradas dos ambientes privados para os museus atingem numerosas camadas sociais.

Reflexões sobre os fragmentos ...recolhendo-se em seguida, a um pequeno museu local, as peças que, sobrevivendo à catástrofe, por assim dizer, “deram à praia”: capitéis, cartelas, partidas, ainda com o IHS, os três cravos e a cruz, imagens mutiladas e já sem cor, - peças cuja vista nos deixa a impressão penosa e certo mal-estar, como se realmente estivéssemos diante dos destroços de um naufrágio...Lúcio Costa (1977, p.164).

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ncontrar sentido em fragmentos é ter a capacidade de reconstituição de parte importante de um documento. O documento, anteriormente lido, daquilo que era o escrito, modernamente foi ampliado para o objeto gravado, fotografado, esculpido e mesmo transmitido oralmente como memória de um tempo. Os fragmentos, para adquirirem status de documento, necessitam ser investigados visto que fizeram parte de alguma totalidade perdida, não mais valorizada, como era em sua integridade, sejam quais foram as circunstâncias desta perda: desastre natural, intenção destrutiva de apagamento da memória como ação do homem. Portanto, se preservado um fragmento, o historiador ou o colecionador o privilegiou pela raridade, antiguidade ou mesmo afetividade. A presença e reconhecimento de um fragmento advém da nossa maneira cultural de reverenciar o passado e nele encontrar um elo perdido dentro da História, e também nos ajuda a compreender a importância de ruínas. Sua visualidade expressiva e de vivência nos anima a uma credibilidade que dispensa muitas vezes o documento no sentido tradicional, a descrição em algum período já passado ou prova cabal de um projeto, construtor e, por sorte, o autor. Neste caso o exame passaria a ser sobre o documento – projeto - e não sobre o monumento arruinado e com sua existência comprovada na materialidade das pedras, agora em partes das colunas, arcos, mármores empregados ou materiais menos nobres. Este monumento é um documento a perpetuar memória e recordação de uma pessoa valorizada em geral pela sua morte: arcos de triunfo, pirâmide, túmulos. O documento em si tem o sentido de ensinar (do latim docere, ensinar) sobre algo que ocorreu, porém evoluiu – segundo Jacques Le Goff – para o sentido de prova tal como utilizado no vocabulário legislativo (Le Goff, 2012, p. 512). O fragmento como documento exige do intelecto um conhecimento prévio que nos remeta à sua totalidade e, dentro desta reconstituição do objeto perdido, a privilegiar as partes compositivas até sua integridade. A valoração de um fragmento está na ideia de que aquela parte possibilita uma leitura completa dentro da nova condição de objeto fraccionado, mas ao mesmo tempo exemplar. Exemplo que ocorre com o frontal de um altar ou ainda os pares de colunas de um retábulo. Se ímpar na disposição compositiva anterior, adquire um status mais elevado quando observado em separado. A materialidade influencia na leitura, se mármore ou madeira, e, em sendo madeira, se está esculpida com figura, policromada ou dourada. O fragmento ou coleção dos mesmos requer documentação para sua distinção e valoração. Lança-se de todo tipo de possibilidades de busca de autenticidade, sendo a mais comum a oralidade até chegar à prova fotográfica e ao currículo da peça. Nossas igrejas são carentes de documentos sobre os monumentos, porém um fragmento pode ensejar a monumentalidade por motivos como antiguidade, materialidade e, claro, pela autoria. A Renascença foi buscar nas ruínas de mármores pentílico ou travertino a base para sua arquitetura, e nos frisos e fragmentos de esculturas a nova plástica para a tridimensionalidade. O fragmento do Torso que está nos Museus do Vaticano aponta para Michelangelo uma nova plástica que atinge até a escultura barroca. Os fragmentos de inscrições romanas foram alçados à categoria

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de arqueologia com direito a salas de museus pontificais. Os objetos em madeira estariam dentro da escala do colecionismo um degrau abaixo, principalmente se se considerar sua durabilidade e possibilidade de desaparecimento. O fragmento demora a adquirir destaque em coleções, sendo apreciado a partir do século XIX pelo romantismo tornando-se mesmo motivo pictórico. A arqueologia impulsiona a admiração pelo fragmento, passando a ser considerado uma parte pelo todo e em outras ocasiões com intenções de devolver a ele a integridade. O exemplo mais claro foi a tentativa de se colocar os braços na escultura em mármore da Vênus de Milo, no Museu do Louvre em Paris. Os estudos nas buscas da origem ou autoria dão início à produção de documentos escritos para aqueles fragmentos no intuito de se buscar autenticidade. No caso dos desmontes de igrejas barrocas – e este é objetivo desta exposição – a fotografia começou a ser considerada como documento. Assim a falsificação da localização, que antes fora transmitida apenas pela oralidade, sofreu um estremecimento diante da nova documentação fotográfica que comprova seu local de origem atrelado à geografia. Assim, um objeto egípcio vale mais que um da época medieval francesa. Vale notar que a quantidade de documentação – fotográfica, escrita, oral - que acerca um fragmento garante a ele uma possibilidade de tornar-se monumental. As esculturas fragmentadas dos portais da catedral de Notre Dame de Paris são agora elevadas à categoria de arte, e podem ser admiradas no Museu de Cluny.

Fragmentos e ruínas das missões jesuíticas

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etornando aos exemplares de arte sacra barroca brasileira, tem-se como exemplo inicial aqueles altares maneiristas em pedra destruídos pelos holandeses (1624 -1654) inicialmente em Salvador e depois em Olinda e Igarassu. Os fragmentos dos altares de pedras e partes das colunas se encontram no coro da igreja de Nossa Senhora da Graça (1584), dos jesuítas em Olinda e no vestíbulo de entrada do convento franciscano de Igarassu (1588). Ainda naquele período colonial, quando das assinaturas dos tratados de San Ildefonso e Madrid, a respeito das demarcações das terras no Sul entre Portugal e Espanha, culminando com a expulsão dos jesuítas das Américas (1759 – 1767) iniciou-se a destruição dos Sete Povos das Missões Paraguaias. Sobre a dispersão do acervo escultórico, há historiadores que estimam que mais de mil obras foram destruídas ou abandonadas. Há relatos de que altares e imagens em madeira foram transportados para o Uruguai e lá transformados em lenha para fogueiras. Parte destas missões foram anexadas ao território do atual Estado do Rio Grande do Sul, sendo as ruínas de São Miguel das Missões a mais importante. Lúcio Costa, ao pesquisar as igrejas jesuíticas do Brasil, chegou em 1937 às ruínas de São Miguel das Missões (RS). Sob intensa chuva, visitou cada uma das ruínas e encontrou imagens que restaram: em Santo Ângelo, entre dez imagens, um Senhor Morto de dois metros; em São João Batista grande número de peças, algumas de excepcional valor; em Carajazinho, peças de pedra eram vendidas por metros cúbicos; em

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São Miguel, onde se demora na descrição da arquitetura, encontra em uma capela do povoado umas poucas imagens, quase todas mutiladas (já documentadas); em São Lourenço, duas boas imagens com dois metros de alto e já sem vestígio de pintura sendo uma de São Lourenço e a outra de Santana, vários fustes de colunas com acabamento perfeito, alguns fragmentos de cornijas com dentículos e uma bacia estreita e comprida (2,87 m), tendo à guisa de suporte uma figura grotesca, tudo numa pedra só; em São Luís,...uma figura mutilada, uma pia batismal ricamente trabalhada....Disseram-nos, também, que por volta de 1902 foram trazidas para esta capital várias carretas com material das Missões, inclusive uma imagem de São Luís de grandes proporções (cerca de três metros), que foi aqui vendida, achando-se atualmente em Saint Louis, EUA; São Nicolau, nada mais resta (Pessoa, 1999, pp. 21 – 42). Os fragmentos a que Lúcio Costa se refere são os sobreviventes dos naufrágios que chegaram até os museus da Argentina, Brasil e Paraguai.

SÃO FRANCISCO XAVIER Autor: MaterIal: Data: OrIgem: ProcedÊncIa: DImensão:

Desconhecido Madeira com resquícios de policromia Século XVII / XVIII Sete Povos das Missões, RS São Paulo 173 x 73 x 50 cm

Peça proveniente da coleção Guita e José Mindlin Acervo Museu de Arte Sacra de São Paulo

ARMÁRIO autor: materIal: data: orIgem: ProcedÊncIa: DImensão:

Desconhecido Madeira entalhada e dourada Século XVIII e XX Bolívia Missões Jesuíticas de Chiquitos / Bolívia 189 x 115 x 69 cm

A obra apresenta partes originais e outras apostas do século XX. Acervo Museu de Arte Sacra de São Paulo

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Especifiquei os vestígios encontrados em cada um dos antigos povos percorrido e direi, sem seguida, das medidas que se tornam ao meu ver necessárias para a conservação das ruínas de São Miguel, e bem assim à preservação dos fragmentos pertencentes às demais missões, alguns dos quais dos melhores, talvez no mais completo abandono (Pessoa, 1999, p. 22). É importante lembrar que este primeiro monumento tombado pelo Iphan nasceu da descrição de fragmentos, como continua Lúcio Costa em seus documentos de trabalho datados de 20 de dezembro de 1937. As imagens e fragmentos permaneceram no Museu das Missões segundo seu projeto. Em abril de 2016 as instalações do museu e algumas esculturas foram danificadas por um vendaval. Em Porto Alegre, as esculturas se encontram no Museu Júlio de Castilhos que tem em seu acervo a Imaculada, Tupãsy. No Museu de Arte Sacra de São Paulo há dois fragmentos de talhas com cabeças de anjos, uma escultura de São Francisco Xavier e um armário com o monograma dos jesuítas das missões de Chiquitos, na Bolívia. Lá do outro lado, no Paraguai, permanecem as ruínas das igrejas com frisos esculpidos como em Trinidad, e imagens em pedra. Na igreja paroquial daquela localidade há doze belas esculturas em madeira, hoje são objetos de pesquisa. Cada fragmento tem seu próprio documento, pesquisa e apontamento de autoria como os do padre José Brasanelli que constam do catálogo do Museo del Barro, de Assunção no Paraguai (Sustersic, 2010). Ainda naquele país, importantes são os museus San Ignacio Guazú, Monseñor Bogarín, Santiago Misiones e Santa Maria de Fé Misiones.

PAR DE ANJOS - FRAGMENTOS DE ALTAR autor: Desconhecido materIal: Madeira esculpida data: Século XVIII orIgem: Sete Povos das Missões / RS Remanescente das Missões Jesuíticas de São Miguel / RS DImensões: 119 x 51 x 9 cm / 118 x 51 x 8 cm Acervo Museu de Arte Sacra de São Paulo

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Fragmentos em São Paulo

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CONJUNTO DE SEIS AZULEJOS autor: Desconhecido materIal: Cerâmica policromada data: Século XVIII orIgem: Portugal ProcedÊncIa: Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, São Paulo / SP DImensões: 13,2 x 13,2 cm (cada) Acervo Museu de Arte Sacra de São Paulo

ORNATO DE ALTAR Desconhecido materIal: Madeira e douramento data: Século XVIII orIgem: Desconhecida ProcedÊncIa: Igreja de São Pedro dos Clérigos, São Paulo / SP DImensão: 85 x 63 x 11 cm autor:

Acervo Museu de Arte Sacra de São Paulo

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o caso brasileiro, o segundo grande desmonte, depois daquele dos holandeses, foi o das igrejas jesuíticas quando da expulsão da Companhia em 1759. Os retábulos perderam-se, foram desmontados quando suas residências e igrejas foram transformadas em sedes de fazendas ou mesmo palácios de governo, tal como ocorreu em São Paulo, Vitória, João Pessoa e Belém. No final do século XIX foi o grande desmonte da Capela do Colégio de São Paulo cujos altares foram documentados fotograficamente quando o edifício ruiu em 1896. Os mais ilustrados os levaram para a igreja do Imaculado Coração de Maria, à rua Jaguaribe, até desaparecerem. As colunas do altar-mor, até o início do século XXI, permaneciam na capela reconstruída (1961) quando foram retirados. O desmoronamento da parede e teto da igreja do Colégio foi registrado, assim como dos dois altares laterais. Todos com talhas vazadas, colunas e coroamento em estilo nacional português conforme estudos de Aracy Amaral (1981). Das doze capelas do século XVII com presença jesuítica, apenas duas sobreviveram: Santo Antônio, no sítio de São Roque, e da Conceição, na fazenda Voturuna, Santana de Parnaíba (Cerqueira, 2013). Os fragmentos das igrejas paulistanas formam um capítulo à parte a partir da demolição da antiga Sé (1912), com mobiliário distribuído com guarda autorizada e documentada por diversas igrejas da capital, como os altares que estão na igreja da Imaculada Conceição na Avenida Brigadeiro Luís Antônio. Os cadeirais foram para a catedral de Ribeirão Preto e o altar da capela do Santíssimo para o santuário de Bom Jesus dos Perdões. Há um documento datilografado no Arquivo da Cúria de São Paulo com a distribuição dos bens móveis. Tantos outros hoje fazem parte do acervo do Museu de Arte Sacra de São Paulo, que teve origem na preservação das imagens e mobiliário iniciada por Dom Duarte Leopoldo e Silva. A demolição da Sé foi documentada em O álbum de Afonso (Lemos, 2001). Continuaram as demolições das igrejas de São Pedro dos Clérigos, do Rosário, do convento de Santa Teresa e dos Remédios. Esta última toda documentada fotograficamente com a promessa de reconstituição de seus altares na nova igreja no bairro da Aclimação, onde se encontra a imagem em argila. No MAS-SP há azulejos – pois era toda revestida sua fachada – e uma pintura da Anunciação de Nossa Senhora. Do convento de Santa Teresa foram salvas as pinturas de Jesuíno do Monte Carmelo, em caixotões, sobre a vida de Santa Teresa, que se encontram em corredor da igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo na Avenida Rangel Pestana, e outras a ele atribuídas – os doutores da

Fragmentos: Coleções de Rafael Schunk e Museu de Arte Sacra de São Paulo


“Com o passado em foco, obras barrocas e de artistas modernos passaram a conviver com fragmentos, arcazes de antigas capelas, agora levados para ambientes sofisticados. As coleções particulares foram ampliadas. Oratórios com santos a eles destinados no devocionário popular colonial saíram das penumbras das alcovas para as salas de visitas. Aos poucos, os fragmentos ganharam lugar nas paredes, no acréscimo de móveis, valorizados junto àqueles santos de argila, ou mesmo de madeira policromada. O próximo passo foi rápido: destaque em exposições e páginas de catálogos. A valoração de um fragmento está na ideia de que aquela parte possibilita uma leitura completa dentro da nova condição de objeto fracionado, mas ao mesmo tempo exemplar” P T, curador.


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