Vivendo da Morte

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Proposta do Trabalho: Contar uma ou mais histórias em uma narrativa jornalística (recurso chamado New Journalism, ou Jornalismo Literário).


VIVENDO DA MORTE Sepultadores de três cemitérios paulistas desmitificam a profissão e revelam o preconceito a que estão submetidos Reportagem Fernanda Patrocinio, Luma Pereira e Nathalie Franco 01 | 16 DE JUNHO 2009 | JOB


“Zeca Violeiro não fazia o que queria tinha medo de morrer Zeca Violeiro não fazia o que queria tinha medo de morrer” Falamansa

N

o cemitério a morte é mais evidente. Os coveiros a vêem de muito perto, em enterros, túmulos, caixões. A única distância que pode haver é devido ao medo de estarem perto demais, de serem os próximos. Mauro de Jesus, 38 anos, é sepultador no Cemitério Parque das Oliveiras, em Mogi das Cruzes, no interior de São Paulo. Com ar sério e tímido, o homem de camisa verde, calça caqui, sapato social e bigode cuidadosamente aparado, afirma ter medo de morrer. “O bom de trabalhar aqui é que a gente se prepara para o futuro, aprende a encarar melhor a morte”, diz o trabalhador. Já José da Silva, 40 anos, sepultador no Cemitério da Consolação, confessa ter medo da morte hoje. De aparência simples, veste um uniforme azul: camisa, calça e boné. A roupa está gasta, os botões despareados provam o intenso uso. Moreno, usa bigode e tem os cabelos grisalhos, quase brancos. Não é gordo nem magro. Simpático, não economiza sorrisos. Ele tem uma esposa, Adriana, e três filhos, Paula, Adriano e Caroline, e alega que morrer significaria perder essa vida maravilhosa que ama e na qual é muito feliz. José reconhece seu importante papel familiar. “Se eu vier a faltar para eles hoje, vou fazer uma falta terrível”, reflete o sepultador. Depois, quando envelhecer e os filhos já estiverem encaminhados, diz que já não terá mais tanto medo de morrer, pois sua família disporá de outros meios para sobreviver. Antes de trabalhar no Cemitério da Consolação, José atuava como farmacêutico na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, no

Centro de São Paulo. Optou pela atual profissão por causa do salário, na época três vezes mais do que ganhava na farmácia em que trabalhava. Hoje, insatisfeito, ele revela: “Agora lá está três vezes mais do que ganha aqui”. Para ser sepultador é necessário prestar concurso público, um teste escrito e prático. Em geral, a rotina no cemitério é apresentada, para que os aspirantes à vaga se familiarizem com o trabalho. Mauro de Jesus conhece bem essa rotina, pois já morou no cemitério em que trabalha. Atualmente, ele reside no bairro periférico Jardim Nova União, mas durante dois anos e meio foi o responsável pelo local de trabalho, apesar da segurança 24 horas contratada pela administração local. Casado e pai de quatro filhas, Mauro está na profissão há 16 anos. Dois dias após ter sido demitido de uma empresa de construção civil, em agosto de 1993, assumiu a vaga antes pertencente ao cunhado. Desde então, firmou-se profissionalmente como sepultador, sem precisar de concurso público. Ele teve a oportunidade de concluir o ensino médio, porém as escassas condições financeiras não lhe permitiram ingressar na faculdade. Mauro de Jesus, coveiro do cemitério Parque das Oliveras


O Primeiro Dia e o Medo

Eu fiquei um pouco receoso de achar alguma coisa estranha por baixo da tampa do caixão, mas depois tirei e normal, são só os ossos mesmo

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José Escudeiro, sepultador no Cemitério de Santo Amaro, em São Paulo, teve um pouco mais de sorte. “Até entrei na faculdade e fiquei dois anos. Fiz Psicologia. Mas desisti porque só conseguia pagar quando fui administrador, depois tive de trancar e não voltei mais”, explica Escudeiro. Sem aguentar o calor, o homem abre os botões da camisa azul, o emblema da Prefeitura de São Paulo aparece estampado no canto esquerdo do peito, sobre o coração. Enquanto trabalha, o suor se espalha por seu rosto. Conversa com os colegas, o sorriso fácil sempre à mostra, o espaço entre os incisivos bem visível. Dos 49 anos de vida, Escudeiro passou 28 anos trabalhando como coveiro e segurança noturno de cemitérios. De lá que ele retirou o sustento dos quatro filhos: Washington, Willian, Mariene e Priscila. José afirma que nunca teve problemas com o ofício de sepultador, já que sempre teve parentes na profissão e frequentava cemitérios “desde moleque”. Mas tal naturalidade não pode ser compartilhada por todos. Seu colega de trabalho no Cemitério de Santo Amaro, Marcelo Antônio da Silva, 40 anos, não teve a mesma facilidade de adaptação, apesar dos tios também já pertencerem a este ramo. “Eu fiquei um pouco receoso de achar alguma coisa estranha por baixo da tampa do caixão, mas depois tirei e normal, são só os ossos mesmo”, relata Marcelo. Não pretendia seguir a carreira dos familiares, mas por não ter outras opções, decidiu dar uma chance ao serviço. Ele é casado com Nilma e tem um filho, Guilherme, de 16 anos. Um pai de família comum: palmeirense, católico não praticante, sustenta o lar com os quatro salários mínimos que ganha no emprego. José da Silva também teve medo

no primeiro dia de trabalho no Cemitério da Consolação. Ele estava varrendo as folhas secas que haviam despencado das árvores, abrindo, novamente, os caminhos por onde se passa. Os mausoléus lhe faziam companhia, e confundiam sua imaginação sobre o que é vivo e o que já não é mais. De repente, avistou algo fora do comum. As esculturas de anjo bateram as asas para ele, convidando-o para o além. Mas José não quis ir. Correu, pois, o quanto mais pode, foi parar bem longe. Tencionou até mesmo deixar o emprego, mas, após conversar com a administração e perceber que era apenas sua imaginação, resolveu continuar. Em outra ocasião, José estava exumando um corpo e, ao abrir a tampa do caixão, se deparou com algo estranho. “O corpo estava de bruços”, relata, ainda com ar intrigante, o trabalhador. Ao estranho fato ele atribuiu que “quando se está colocando o caixão na cova ou tirando, você vira muito, então pode ter sido isso”. Para não recorrer a tentativas de explicação sobrenaturais sobre este fato, Silva convence-se com este esclarecimento. O cemitério da Consolação é um dos mais famosos da capital paulista devido aos ilustres finados que lá descansam. Monteiro Lobato, Tarsila do Amaral, a família Líbero. Estes são alguns dos nomes que ilustram este ambiente de paz e arquitetura ostensiva. Conversador, José da Silva tem muitas histórias de lá para contar. Muitas fazem os pequenos e expressivos olhos do sepultador se encherem de lágrimas até hoje. Uma vez, no enterro de uma criança, ele se abateu profundamente com o pedido da mãe desesperada que chorava. “Quando descemos o caixão, ela não queria que a gente fechasse, ela queria colocar uma luz na criança”, recorda José. Então, quando o sepultador atendeu ao pedido da mulher, pode


Quando a Morte se comunica com os Vivos Muitos são os relatos acerca da presença de fantasma e espíritos em cemitérios. Porém, não há provas concretas da presença destes no mundo dos vivos. Partindo da História Oral, lendas e crendices são repassadas de geração à geração, mitificando-se. O sepultador José da Silva respeita os contos populares, mas esconde de seu círculo de trabalho uma peculiar história, para não ser hostilizados pelos demais trabalhadores do Cemitério da Consolação. Argumenta, também, que prefere segredar o relato pois semanalmente a pessoa envolvida recebe a visita materna. No início de 2008, Silva estava a varrer e consertar túmulos no cemitério – atividade corriqueira para este homem. Folhas secas, restos de velas e flores murchas iam para a lixeira do sepultador, quando, de repente, ele notou que alguém o observava. Quando ele levantou a cabeça para ver quem era, a pessoa se escondeu atrás de uma antiga capelinha branca, próxima ao muro do local. O es-

Anjo do Cemitério da Consolação conde-esconde se repetiu por três vezes. Silva pensou “agora serei eu quem dará o susto”. Após dar cerca de 20 passos, o homem pulou para trás da capela e, para sua surpresa, não avistou ninguém. Nenhum som, vestígio, cheiro. Não havia ninguém ali. Atordoado, o sepultador só conseguia pensar no rosto da mulher que lhe pregara a peça. José havia olhado para o fundo daqueles olhos por alguns segundos. Após ter retomado o trabalho ele caminhou até a primeira quadra do cemitério e parou diante do túmulo de Martha. Ele questionou: “é você, Martha, quem está tentando me assustar?”. A partir daquele dia, a dúvida cessou. Aquela mulher foi um dos primeiros sepultamentos que José fez no cemitério. Ele se recorda da fisionomia da jovem de 22 anos, que morreu precocemente em virtude de um acidente de moto. José passou a ver a mulher com freqüência em vários pontos de cemitério. Depois de meses de angústia, ele procurou conselhos em centros espíritas, conforme lhe indicou um parente. Foi a partir destas conversas, que ele conseguiu lidar melhor com a situação. Silva orou pela jovem e hoje diz ser muito difícil encontrá-la. “Eu não a vejo há meses. Da última vez eu disse que não queria que ela aparece mais pra mim, que ela estava me assustando”, confessa emocionado o sepultador. JOB | 16 DE JUNHO 2009 | 04


Marcelo Antônio da Silva (acima) e José Escudeiro (abaixo): todos os dias no cemitério Santo Amaro

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ver detalhadamente o rosto da criança, todo iluminado, e conta: “aí, me choquei muito”. Apesar de sensível ao sobrenatural e à morte, Silva diz não seguir nenhuma religião. Ele acredita em Deus, e o crucifixo prateado que carrega no pescoço comprova a crença. “Eu me apego muito a Deus, converso muito com Deus, agradeço todo dia ao nosso Senhor Jesus Cristo pelos meus filhos, pela minha mãe, por todas as pessoas que estão ao meu redor. Eu não vou mais à Igreja, mas até hoje converso com Deus, todos os dias”, desabafa o sepultador. José crê que haja algo mais depois da morte, mas não sabe explicar o que é. “Nós estamos aqui de passagem, acho que após a morte deve ter um julgamento do que nós fizemos aqui na Terra, porque o nosso corpo mesmo não é nada, é uma porcaria. A nossa alma não pode ser só isso”, enfatiza o sepultador. Ele teme morrer e deixar a família passar necessidade. Outro relato acerca das estranhezas em cemitérios foi contado por José Escudeiro. Apesar de ter trabalhado como torneiro mecânico, Escudeiro diz gostar mesmo de trabalhar como sepultador. Cheio de orgulho, o homem atesta a experiência no ramo pela habituação com o ambiente. Apesar disso, ele não ficou ileso às presenças estranhas em seu local de trabalho. Certa vez, juntamente com um colega já falecido, Escudeiro estava mexendo na ossada de uma moça que tinha acabado de chegar do cemitério Vila Formosa. Era meio-dia e não havia ninguém no local além dos dois trabalhadores. Ao final, quando já estavam colocando a foto da moça, uma mulher apareceu e puxou uma animada conversa com eles durante 20 minutos. “Nossa, vocês têm coragem! Vocês merecem ganhar bem”, elogiou a mulher, que segundo o sepultador, era


muito atraente. Após os homens terem desviado rapidamente o olhar da tagarela moça, ela desapareceu. Eles a procuraram pelos arredores. Em vão. No final do dia, eles passaram novamente pelo túmulo da falecida originária do Vila Formosa. E veio o choque. A fisionomia e até mesmo a roupa eram idênticas as da moça que havia puxado papo com eles. “Inclusive a irmã dela falou que ela tinha tomado veneno por causa do namorado. E sei lá, foi só isso que eu vi!”, confessa o sepultador. Contrapondo os dois xarás, Mauro e Marcelo disseram nunca terem visto nada de anormal nos cemitérios em que trabalham. A única coisa estranha que Marcelo presenciou foi um corpo que, no momento da exumação, estava seco e não decomposto. O homem, ainda, diz não ter medo de morrer, apesar do apreço pela vida. “Nunca vi nenhuma invasão, rituais macabros muito mesmo assombração”, esclarece o evangélico Mauro de forma cética. “Todo mundo acha que tem fantasma, assombração nos cemitérios, mas isso é coisa do povo; este tipo de coisa não existe”, completa o coveiro. No momento do único esboço de sorriso, o sepultador afirmou não pensar muito na morte, muito menos em sua própria lápide.

Histórias para Contar Marcelo Antônio da Silva tem um jeito tímido de ser. Aparenta ser calmo e paciente, além de muito concentrado no serviço. Tem sorrisos na medida certa: nem contente demais, nem de menos. Não é triste, mas certamente tem muitas histórias de sofrimento para contar. Marcelo perdeu o filho Welington, de 15 anos de idade. O menino sofria de um coágulo no coração e ficou internado “um bom tempo” no InCor (Instituto

do Coração), no Hospital das Clínicas. De todos aqueles sepultamentos realizados pelo coveiro, naquela hora chegara a vez do enterro de seu próprio filho. Ele carregou o menino sem vida até o mausoléu, caminhando lentamente, ao som das lágrimas dos conhecidos e das suas próprias. Era esse o mais pesado corpo que já levara, pois no interior do caixão havia uma parte dele mesmo. Era também Marcelo ali, junto com o filho, dentro do coração da criança. A morte não era só de Welington, naquele momento o pai também morrera junto, uma pequena parte dele iria com o filho para onde quer que fosse. José Escudeiro não enterrou nenhum filho, mas nem por isso emocionou-se pouco durante os anos de profissão. Ele participou do sepultamento do próprio pai, algo de acordo com o ciclo natural da vida, mas, ainda sim, sofrido. Não comenta muito sobre o assunto, para não se lembrar do episódio e perder o sorriso simpático que reaprendeu a ter. Limitase a lamentar: “Poxa, tô nesse trabalho há tanto tempo, achava que nem ia chorar quando alguém da minha família morresse. Mas nada disso: é o contrário”. Dos tantos sofrimentos, imunizou-se da perda do pai, não expressando em lágrimas o sentimento. Preferiu preencher o vazio com alegria, e voltar a ser feliz. Afinal, José ao menos tinha grandes lembranças paternas... Atristeza alheia também já o tocou profundamente. No sepultamento de uma mulher, morta por atropelamento, que deixou muitos filhos com saudades, Escudeiro chorou. No momento de colocar o caixão na cova, os filhos dela, ainda “pitchuquinhos”, nas palavras do coveiro, começaram a chorar e a implorar para que não a levassem, nem a tirassem deles; para que José não a sepultasse. Aquele corpo não era de uma mulher qualquer, mas

Todo mundo acha que tem fantasma, assombração nos cemitérios, mas isso é coisa do povo; este tipo de coisa não existe

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de uma mãe que tinha filhos que precisavam dela. Aquele corpo sem vida já não poderia fazer mais nada pelas crianças, que mesmo assim suplicavam para que não retirassem a figura materna de suas vidas. Eles não estavam prontos para vê-la pela última vez, nem nunca estariam. E o caixão se fechou. E a terra preencheu o buraco. Ela ficou no cemitério aguardando visitas e flores. E as crianças cresceram tendo apenas retratos para observar, uma mãe de papel rodeada de lembranças. Mauro não tem nenhuma lembrança de enterros em que tenha chorado, nem nunca enterrou parentes próximos. Ao contrário, tem boas lembranças do cemitério, pois foi lá que ele conheceu sua esposa, Sueli, há 14 anos. Alguns encontram no cemitério a morte, e outros, como Mauro, encontram a vida, uma outra vida para andar ao

lado da sua: o amor. José da Silva tem várias histórias de sepultamentos nos quais se emocionou. No sepultamento de um homem de mais ou menos 45 anos, o filho dele se debruçou no caixão e conversou com o pai. “Pai, porque você foi embora? Eu te amo tanto, pai, não vai, volta para mim, pai”, suplicava o garoto. “Uma criança de nove anos fazendo isso, me marcou demais”, revela José. O sepultador não pode continuar realizando o enterro, designou a função a um colega de trabalho. Sempre queremos falar mais um pouco, não importa o que temos a dizer. As palavras nunca acabam, ficam proferindo dizeres aos nossos lábios. E se os ouvidos que queremos que escutem já não podem mais ouvir, para onde vão as frases? Os enterros entregam ao corpo recém morto uma casa. E vivemos José da Silva: sepultador no cemitério da Consolação


por debaixo da terra, somos corroídos pelas entranhas. Dentro do caixão, na fenda da cova, não enxergamos mais nada que havia antes para ver. O mundo se esconde de nós. E nós dele. Certa vez, José estava realizando um sepultamento, quando o andaime de madeira cedeu e ele caiu profundamente, dentro do vão. A cova o puxou para si, como que já o querendo, tão logo. Quebrou a perna e o braço, ganhando só o auxilio doença, sem o benefício das horas extras, o que reduziu a renda mensal do sepultador. José narra também o enterro de uma senhora, no qual apenas o filho dela apareceu. A morte daquela mulher ficou legada à indiferença dos conhecidos, à dureza dos corações que não estavam lá nas últimas horas da morta. Porque, depois, ela ficaria apenas na memória de alguns, na lembrança do filho, único presente. Para José, “você conquista isso daí no seu dia-a-dia, porque se você é uma pessoa que tem muitos amigos, todos vão querer prestar aquela homenagem a você. Se você é aquela pessoa reservada que não conhece ninguém, você acaba não tendo muita gente no enterro”. Silva garante que seu enterro estará cheio, visto que ele tem muitos amigos, familiares, e é muito querido por todos que o rodeiam.

Horas Vagas Como todo trabalhador, estes homens também possuem momentos de lazer e descontração. José da Silva alega que, nos dias de folga, tenta “dar o máximo de amor e carinho para os filhos. Sair, levar eles para passear, ir ao parquinho, na Guarapiranga, levar

ao Shopping, levar ao cinema”. Um dos filmes favoritos deste homem é Hotel Ruanda. “Gosto de filmes de história real”, afirma Silva. O intenso contato com a realidade da vida justifica tal apreço por este gênero cinematográfico. Aprecia músicas para dançar, como o forró ou o flash back. Costumava levar a esposa para dançar, mas, com o nascimento dos filhos, raramente podem sair para se divertir. Mais contido, Mauro afirma preferir ficar em casa nas horas vagas. É o momento que o homem se desprende do sepultador. “Minha diversão é quase zero”, relata o trabalhador que não gosta muito de ler, nem de ouvir música. Além da companhia familiar nos finais de semana, a família Jesus costumar ir aos cultos evangélicos da Congregação Cristã do Brasil. Fora do cemitério Santo Amaro, o palmeirense Marcelo diz que gosta de assistir a filmes de comédia e ação com a família. Casado há 18 anos, ele afirma gostar de passar o tempo livre com a esposa Nilma e o filho restante, Guilherme. José Escudeiro cuida do sítio da família, em Parelheiros, fazendo manutenção e aproveitando para se divertir com a esposa e os filhos.

Vista do Cemitério da Consolação

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Cemitério da Consolação – São Paulo Conhecido por abrigar as mais tradicionais famílias paulistanas, o Cemitério da Consolação tem muita História. Ele foi a primeira necrópole pública da cidade de São Paulo, e a construção foi polêmica no período. Inaugurado em 1858, foi construído para garantir maior higienização do lide com os mortos. Porém, a maioria dos paulistanos não queria ser sepultada lá, por ele não estar próximo a uma Igreja, que na época garantia um atalho para o Paraíso. Mais tarde, porém, ele se tornou não só utilizado como consagrado. Hoje, as esculturas e túmulos de grandes nomes paulistanos que lá descansam atraem visitantes, na maioria estudantes de arte. Esculturas de Victor Brecheret, Nicola Rolo e Elio de Giusto adornam não só os túmulos como os caminhos, e é possível prestar uma homenagem póstuma a figuras como Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Tarcila do Amaral, Júlio de Mesquita, Washington Luís, dentre outros.

Mario de Andrade, Tarcila do Amaral e Oswald de Andrade, retratados por ela.

Cemitério Parque das Oliveiras – Mogi das Cruzes É um cemitério particular, localizado em Mogi das Cruzes, em formato de jardim, ou seja, com covas no chão cobertas por terra, grama e pelas lápides. Conta com mais recursos do que as outras necrópoles visitadas por nossa reportagem, como estacionamento, floricultura e veleiro. Esse tipo de cemitério possui um aspecto mais agradável, como um grande parque, o que faz com que os visitantes esqueçam estarem em um local tão próximo da morte.

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Ossos do Ofício Raras vezes o sorriso abandona o rosto cansado de José Escudeiro. Ele permanece até mesmo quando a conversa toma rumos mais tristes: a reação dos outros em relação à profissão que exerce. “Tem pessoas que admiram a gente, tem outras que, sei lá, ficam impressionadas”, ele explica. Logo, Escudeiro prefere não sair espalhando em que trabalha. Mas consegue enxergar vantagens até mesmo na má reação das pessoas. Quando mais jovem, ele tinha uma namorada que detestava cemitérios. José se divertia provocando-a, até que resolveu revelar a ela seu ofício: “Uma vez eu perguntei para ela ‘você teria coragem de pegar na mão de um coveiro?’ E ela respondeu ‘eu não!’. Aí, eu falei: ‘eu sou coveiro’”. Ela não voltou mais a tocar nas mãos dele. Mas ele garante, rindo, só ter contado porque já queria terminar tudo com ela. Escudeiro não foi o único a ter um relacionamento rompido por causa do emprego. Mas se a história do primeiro provoca risos, a do xará, José da Silva, causa indignação e mágoa: “Eu tinha uma namorada, e ela não sabia o que eu fazia. Quando eu contei que era coveiro, a mãe dela não deixou ela namorar mais comigo, e ela aceitou a vontade da mãe”. A decepção no rosto foi evidenciada nos olhos cabisbaixos. Este sentimento se aprofunda quando ele se lembra de outro episódio ofensivo. Raiva e descrença se juntam a anterior tristeza, enquanto ele narra a situação. Fila do banco, horário de almoço, todos com pressa para serem atendidos e poderem voltar ao trabalho. José também precisava ser rápido, nem mesmo tirou o uniforme quando saiu para pagar a conta. Quando o sepultador se preparava para entrar, a porta giratória o escolheu para travar.

Tal imprevisto causou, além do natural constrangimento, atraso ao homem. Quando conseguiu adentrar o banco, ele olha para traz e vê a impaciência dos demais que estavam na fila. Uma senhora expressa sua inquietude em voz alta. “Olha aí, isso é porque é coveiro, isso é lixo”, destila a mulher. Mesmo hoje “dá vontade de dar um tapa na orelha dela”, desabafa o sepultador. Ele não se conforma em ser posto à margem devido à profissão, que considera tão importante. “Não existe urubu que limpa, que tira toda a carniça? Nós limpamos também. Senão os corpos ficariam no meio da rua. Nós estamos ajudando a limpar a cidade. Infelizmente, ou felizmente, todos nós vamos passar por isso”, desabafa Silva. Marcelo da Silva não se conforma, tampouco, com a forma como é tratado pelos outros em virtude da profissão. “Será que é o fim do mundo trabalhar como sepultador? O fim do mundo!? A pessoa não aceita, né? É um trabalho digno como qualquer outro!”, indignase Marcelo. Até hoje o chateia lembrar do dia em que foi fazer um crediário numa loja com a família, e a vendedora passou a manusear seus documentos com as pontas dos dedos, como que enojada, após ler o ofício... Marcelo não gostaria que o filho Guilherme seguisse esta profissão, provavelmente em razão dessas experiências negativas. Apesar dele mesmo alegar não ser por preconceito, e sim “porque ele já estuda e tudo, tá fazendo curso de inglês, terminando, e já tem o ginásio completo”. Além disso, “ele quer fazer outra coisa, quer trabalhar com manutenção de computador”, conta o pai orgulhoso. Já José da Silva deixa claro que a discriminação é, sim, um motivo forte para se descartar a profissão de sepultador. Ele fica horrorizado

Não existe urubu que limpa, que tira toda a carniça? Nós limpamos também. Senão os corpos ficariam no meio da rua. Nós estamos ajudando a limpar a cidade. Infelizmente, ou felizmente, todos nós vamos passar por isso

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Memorial a Bento do Portão Cemitério Santo Amaro

Cemitério de Santo Amaro – São Paulo Localizado na Zona Sul de São Paulo, no bairro que o intitula, é um cemitério de bairro, “pequenininho” na descrição de Marcelo Antônio da Silva - um dos sepultadores entrevistados. Assim como a Consolação, hoje só abriga jazigos familiares, sem um local público. Desta forma quase não há enterros. Seria apenas mais uma necrópole paulistana, se não fosse a história de Bento do Portão. Mendigo do bairro, ele trocava pequenos serviços, como consertos, por um prato de comida e costumava se sentar nos portões, inclusive do cemitério.No Santo Amaro ele foi encontrado, 29 de julho de 1917, morto, provavelmente por hipotermia durante a noite. E lá foi enterrado. Após sete anos da morte do mendigo, o corpo foi exumado. E algo estranho havia acontecido. O corpo estava intacto. Nasceu, então, um santo no bairro. Até hoje pessoas visitam o túmulo para agradecer as graças concedidas. Em julho de 2002, a então prefeita Marta Suplicy inaugurou um memorial a ele, dentro do cemitério. só de imaginar os filhos dentro do cemitério. “Eu procuro separar o que se passa em casa e o que se passa aqui no trabalho. Não levar os problemas de um para o outro”, diz o homem, com tom de maturidade. Dessa forma, ele poupa as crianças e a esposa do contato com um local tão mal-visto, que segundo ele “é um ambiente muito pesado”. Por outro lado, a vida da 11 | 16 DE JUNHO 2009 | JOB

família de Mauro de Jesus está intrinsecamente ligada ao Parque das Oliveiras, não só pelo período, já mencionado, em que ele residiu lá, mas também por ter sido onde conheceu a esposa, a ex-mulher do coveiro anterior. Sorte de Mauro, pois ela já estava mais do que acostumada com a profissão e os ossos deste ofício. Assim, se torna mais difícil separar família e


trabalho da mesma forma que José faz. Os filhos já estão acostumados com o cemitério, que consiste apenas em gramados e lápides. Menos assustador do que os antigos mausoléus da Consolação. A crendice popular e as especulações são inevitáveis quando o assunto é a morte. E todos os elementos que a rodeiam sofrem estereotipações. A profissão de sepultador pode ser encarada, neste contexto, como a figura que concretiza, de fato, o último ato das pessoas em forma física. O descanso eterno dos que se foram se contrasta com a disposição destes profissionais que enfrentam o preconceito e a hostilidade da sociedade. O sepultador é um homem comum, de carne, osso, sentimentos e valores, que trabalha honestamente para sustentar a família. Na despedida das entrevistas as reações foram o mais natural possível. Após a conversa, Marcelo se disse faminto e logo sacou uma

mexerica da enorme mochila que carregava – iniciara-se o horário de intervalo. O prestativo José Escudeiro foi mexer em uma cova e ao retornar, perguntou como as repórteres se sentiam naquele ambiente e as conduziu até o túmulo do lendário Bento do Portão. José Silva fez poses para fotos, sempre esboçando o característico sorriso. A sessão foi interrompida após seu companheiro de trabalho, Joãozinho, chamá-lo para fechar o “buraco dos Fasano”. O sepultador, de maneira simpática, não titubeou e foi ajudar o amigo. O tímido Mauro ajeitou a roupa e disse ter planejado uns reparos em algumas lápides – apesar de estar dispensado do trabalho naquele sábado. O motivo maior da sobriedade das vestimentas foi revelado: era seu aniversário. A família o esperava em casa para comemorar a data, após a primeira entrevista concedida ao longo destes 38 anos de vida.

FACULDADE CÁSPER LÍBERO Fernanda de Araújo Patrocinio Luma Pereira Nathalie Ayres de Franco Professor Luís Mauro Sá Martino Disciplina: Comunicação Comparada Série: 2ºJOB Telefones: Cemitério Santo Amaro: (11) 5677-6074 Cemitério da Consolação: (11) 3256-5919 Cemitério Parque das Oliveiras: (11) 4728-5233 Assessoria da Imprensa da Prefeitura de São Paulo - Katy: (11) 3396-3814

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