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O deboche da paquera

O deboche da paquera

Quando voltou de Cuba para o Brasil, em maio de 1971, Anselmo foi preso, delatou e ajudou a desmantelar a VPR em São Paulo, inclusive o líder, Aloizio Palhano foi um deles. Nessa jogada, Anselmo ascende à liderança da VPR, o que lhe garante credibilidade para agir como agente duplo.

Quando recebeu a missão de contatar a VPR no Chile, produziu um documento debochadamente chamado de “relatório de paquera”, que é estarrecedor. Um acinte, pois debocha da relação entre Anselmo e Onofre, embora tenha como alvos também Maria do Carmo Brito e Marcio Moreira Alves. Relata a estadia que começou no dia 22/11 e terminou em 5/12/1972. O primeiro contato dele no Chile foi com a embaixada cubana, pois com isso buscava os laços que trazia de Cuba. Lá haverá resistência e desconfianças sobre ele. Não só pela forma como o receberam, mas por desconfiar mesmo dele, e ele mesmo relata isso:

Mais tarde soube que Julian, antes de assumir seu posto no Chile visitando todos os brasileiros banidos ou clandestinos em seu país e já contava com uma informação de que ‘o regional S. Paulo da VPR estava infiltrado’ e outra: ‘que o cabo A tinha se entregado à repressão’.10

Ele vai contando como ia mentindo para despistar seus interlocutores. Perguntado sobre Palhano disse que “está preso. (...) caiu em um ponto aberto por um camponês”. E joga a responsabilidade em Moisés (José Raimundo), justificando assim sua ida ao Chile, forma de legitimar sua presença lá. Na embaixada chilena ele deixa “uma carta para Shizuo ou Onofre”. Ele insiste muitas vezes que quer ter o contado da ALN no Chile, mas recebeu evasivas sobre isso. Ele não volta à embaixada cubana, mas diz que “deixei um bilhete com Onofre” para retirar a carta que lá havia deixado. O relatório manda uma série de nomes e endereços para serem investigados e explicita como falar com Onofre:

10 Relatório de Paquera, Cabo Anselmo, p. 6

Fone: 3-5818 (em Santiago) Falar em espanhol que deseja falar com o DR. MORAIS. Atendendo o dr Morais, falar em português que vem da parte do Maurício e deseja falar com Ribeiro. Ribeiro é Onofre. 11

Rapidamente essa informação se difunde no serviço de informação brasileiro, que também indica endereço para telegramas e cita o contato do escritor Mario Benedetti, no Uruguai. Era o endereço usado por Anselmo para se corresponder com Soledad, no Brasil. Indica os pontos para entrada de “pessoal da VPR no Brasil”, que se daria pela publicação de anúncio de classificados no jornal Estado de São Paulo: “vendo a vista. 60 mil. Boa casa Itaim, (telefone), Natan”. Já em Recife, no restaurante, Maxim, a senha seria “será que tem galinha ao molho pardo hoje?”, e a contrassenha seria “tem peixada”. E completa:

Ficamos acertados que, em Recife, entrarão, em janeiro, o mais depressa possível, o agrônomo baiano (casado com a mulher do Jamil e que deseja trazê-la o mais depressa possível). Que acertamos chamar de “Baião”. E Evaldo (“Sergio”) do grupo em que estava sob a direção de A Palhano. Sergio é perito em armas e explosivos.12

O documento registra, a mão, a pergunta: “agrônomo baiano? Sergio – preto – ex-marinheiro”. Evaldo Luis Ferreira de Souza era negro, por isso o registro “preto”. Aos poucos fica claro que seu principal contato no Chile foi Onofre Pinto que lhe passou muitas informações. Não só isso, reconheceu que sabia que pairava suspeita sobre Anselmo para ele mesmo. Ainda assim, passou inúmeras informações. Ele vai narrando encontros que teve. Alguns pontos ele reitera que “Onofre me disse depois”. Relata que teve encontro com “um casal desconhecido (Lia e o marido), que evidentemente desconfia de algo. Ela não conhecia Anselmo. Ele descaradamente descreve que Maria do Carmo estava desconfiada. Diz que “perguntaram-me pelo cabo. Respondi que estava vivo e em segurança”.13 Depois ele registrou: “a moça e o rapaz me reconheceram”.

11 Idem, p. 4. Está reproduzido, por exemplo em documento do CISA, 3/1/1972. 12 Idem, p. 4. 13 Idem, p. 7.

Várias outras situações são narradas por ele, e é importante ressaltar um ponto específico “Onofre Pinto”

Com Onofre, a conversa foi fluida e fácil. A minha ida ao Chile se devia a uma situação rigorosamente calculada: ficaram com o que de positivo dispunha a VPR como organização, enquanto o Comando interno escrevia documentos. Fui parco em palavras durante a minha estadia militante junto a Moises. Com palavras escolhidas e rodeios esotéricos, mostrei-lhe que era o herdeiro moral e político de Palhano e Moisés, os dois esteios da VPR.14

E seguia, descaradamente avaliando a situação da organização que ele mesmo estava ajudando a destruir. Escreveu que relatou a Onofre que

Os ‘comandantes’ no Brasil queriam sair para fazer congresso no exterior. Nós estávamos montando a estrutura ligada à base ‘estratégica fundamental’. Em S. Paulo podíamos receber gente. Ele Onofre se opunha firmemente a essa ideia. Temia por minha segurança. (Idem)

O cinismo desta colocação é gritante. Com isso, reafirmava-se que a atração se daria em torno do nordeste, mesmo que o Cabo estivesse tentando facilitar em São Paulo. Ele relata mais esquemas, como os vínculos com a Argélia, inclusive dizendo que a VPR “controla 9 dos 13 Frentes Brasileiras de Informação”, o que parece ser uma inflação da importância do grupo. Lembremos que Lamarca tinha sido claro quanto a se manter longe da FBI. Ele é meticuloso em analisar a imprensa de esquerda brasileira no Chile, bem como um filme realizado sobre o Brasil e até uma peça de teatro. Busca mostrar-se como um grande patriota, já que mostra que o material produziria uma visão muito ruim sobre o país “os grupos banidos esqueceram-se de sua nacionalidade”. Sua fonte segue sendo Onofre, citado mais e mais vezes. Insisto com isso não apenas para mostrar que ele esteve muito tempo com Onofre, que conversou muito com ele, que criou formas de reiterar sua confiança. Cito porque na página 10 ele escreveu:

14 Idem, p. 8.

Num informe chegado do Rio, constava, com todas as letras esta informação: ‘o cabo Anselmo se entregou à repressão’. O informe, datilografado, estava assinado por OLGA. Mais tarde, Onofre, que me mostrou o informe, explicou que Olga era uma das moças que tinham caído nos últimos meses.15

Ou seja, há, segundo Anselmo, a consulta por parte de Onofre sobre a denúncia de Inês. Finalmente, indica que Onofre era portador de grande quantia de dinheiro, e que estaria disposto para gastar “até 300 mil dólares” para as bases no nordeste serem ativadas. Fica claro que há também um interesse sobre o dinheiro, que seria um botim de guerra para os repressores. Anselmo ainda descreve os nomes que conseguiria levar para Recife, e pede, insistente que para Soledad não fosse aplicada a “solução final”, porque estava muito apegado afetivamente a ela. Não atendido, participaria de seu assassinato. Toda essa carga negativa de ações redunda na Chacina, como já falamos. E gera no Chile o desmantelamento final, mas não de forma fácil. Angelo Pezzutti colocou o tema em discussão, propondo “a rápida evacuação de todo pessoal que estava na área sob seu comando”, mas Onofre “recusava-se a viabilizar essa alternativa. Como resultado, Angelo perde a votação e se decide apenas “formar uma comissão de investigação sobre as suspeitas que recaiam sobre Anselmo”, e ainda pior, “havendo no grupo quem levantasse suspeição sobre Inês Etienne”16. Inês reconheceu a voz de Anselmo na Casa da Morte em Petrópolis, conseguiu avisar aos companheiros, que não acreditaram nela. Com aval de Onofre, Anselmo seguiu firme para a chacina. Quando o irmão de Soledad foi enviado ao Chile, é encaminhado um alerta para ser expressamente entregue a ela. O rapaz acaba entregando direto ao Cabo, e o fim se consolida. Anselmo usou Benedetti para contatar Soledad. Posteriomente o grande poeta uruguaio fez a ela um poema.

Muerte de Soledad Barret

Viviste aquí por meses o por años Trazaste aquí una recta de melancolía Que atravesó las vidas y las calles Hace diez años tu adolescencia fue noticia

15 Idem, p. 10. 16 Carmela Pezzuti, in: PAIVA, 1996, P. 119.

Te tajearon los muslos porque no quisiste Gritar viva Hitler ni abajo Fidel Eran otros tiempos y otros escuadrones Pero aquellos tatuajes llenaron de asombro […] Con tu imagen segura Con tu pinta muchacha […] Pero el abuelo Rafael el viejo anarco Te tironeaba fuertemente la sangre Y vos sentías callada esos tirones Soledad no viviste en soledad Por eso tu vida no se borra Simplemente se colma de señales Soledad no moriste en soledad Por eso tu muerte no se llora Simplemente la izamos en el aire Desde ahora la nostalgia será Un viento fiel que hará flamear tu muerte Para que así aparezcan ejemplares y nítido Las franjas de tu vida Ignoro si estarías De minifalda o quizá de vaqueros Cuando la ráfaga de Pernambuco Acabó con tus sueños completos Por lo menos no habrá sido fácil Cerrar tus grandes ojos claros Tus ojos donde la mejor violencia Se permitía razonables treguas Para volverse increíble bondad Y aunque por fin los hayan clausurado Es probable que aún sigas mirando Soledad compatriota de tres o cuatro pueblos El limpio futuro por el que vivías Y por el que nunca te negaste a morir. BENEDETTI, MARIO

Capítulo XVIII

A CHACINA DO PARQUE NACIONAL DO IGUAÇU: seis desparecimentos impunes

O mais importante trabalho que existe sobre essa chacina é o livro do jornalista Aluízio Palmar, cujo trabalho de investigação nos inspirou para a realização desta pesquisa. Espero ter contribuído para mostrar que a vinda daqueles militantes para o Brasil precisa ser entendida dentro de um amplo contexto de pessoas que acreditavam que ainda era possível resistir em armas, por mais que os fatos provassem o contrário. São pessoas que de alguma forma insistiam em um velho sonho, embalados pelas notícias esparsas sobre as ações de guerrilheiros no norte do Brasil. Ou, simplesmente, desiludidos de tudo, como parece ser o caso de Victor Ramos. Victor estava casado há pouco tempo com uma jovem mi litante da juventude peronista que morreu em um acidente de carro, possível perseguição policial. Ou ainda, profundamente culposos por terem sobrevivido e comprometidos com (a memória de) Lamarca, como o caso de Lavecchia. Ou, dois irmãos de uma família que lutara com todas as suas forças pelo projeto revolucionário, Daniel e Joel. E ainda, um jovem argentino que recém fizera 18 anos, Enrique. Tentamos mostrar que o modus operandi da operação que capturou Cerveira e Rita parece ter criado uma forma de ação dos órgãos de informação. Eles estavam acompanhando os passos daqueles que queriam atrair, tendo Onofre Pinto como chamariz. Se com Cerveira houve todo um trabalho em torno da construção de uma tese de luta (os Doze Pontos), Onofre já havia feito um serviço involuntário de menosprezar o peso de Cabo Anselmo, levando à Chacina no Recife. Faltava atrai-lo definitivamente. Lembrar de Cerveira aqui não é desmedido, pois o CIEX mais de uma vez associava os dois, como em novembro de 1972 em que se informava que

Em 25/10/1972, J.P. Cerveira continuava desaparecido do meio de asilados e banidos no Chile. Consta que o marginado teria viajado para o Brasil, via Argentina e Uruguai.

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