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A apuração oficial da Operação Juriti
Ficha de Onofre Pinto – DOPS/SP
Ou seja, “boatos” corriam, e não se consegue completar esse quebra-cabeças. Muitos sabiam que algo estava para ocorrer, mas quem sabia exatamente o que e como ocultou seus registros essenciais. A rede Uruguai pode bem ser os contatos de Johnson, inclusive citamos o documento levantando a hipótese. Alberi reaparece e vai fazer esse serviço usando seus conhecimentos no interior do Rio Grande do Sul até chegar no Paraná, em lugares de muito conflitos 6. O SNI indicou um documento do CIEX, mas não tem todas as informações. Paso de los Libres é próximo do Uruguai, dista 1000 km de onde as fontes indicam ter sido de fato a entrada do grupo, em Santo Antonio do Sudoeste, local sempre indicado pela Inteligência do Brasil como problemático quanto à possibilidade de entrada de armas e subversão.
A apuração oficial da Operação Juriti
Segundo a apuração de Palmar, Onofre, Lavecchia, Victor, Daniel, Joel e Ernesto saíram de Buenos Aires – acompanhados por Alberi – no dia 11 de julho de 1974, cruzaram dia 12, em Santo Antonio do Sudoeste, Paraná, a fronteira da Argentina com o Brasil e foram para um sítio ou serraria que seria a estrutura da organização.7
6 Um documento de 1/8/1974 indica que Alberi passava a ser um problema, pois estava espalhando em Cerro Novo-PR, que ele era um agente do SNI, junto com mais 5 companheiros, e que viajava com frequência para outros países, tendo Porto Alegre como lugar de encontro. DCI/SSP/RS, 1/8/74. Informe 22-165/74. 7 PALMAR, 2006, p. 177.
Portanto, o ex-militante, agora “cachorro”, Alberi dos Santos, ajudou na busca e morte dos militantes da Chacina no Parque Nacional. Ele figura na lista dos grandes traidores da luta contra a ditadura. Se junta a vários outros que participaram da Operação Juriti, a última grande ação contra a VPR, que redundou no assassinato de seis militantes no oeste do Paraná. Muito embora eles não fossem todos da VPR, o fato de terem adentrado o território brasileiro na companhia de Onofre Pinto fez com que fossem assim classificados. O relatório da Comissão Nacional da Verdade atribui ao Centro de Inteligência do Exército um papel central na operação:
173. O CIE comandou algumas das principais operações de repressão política, como a chacina do grupo de Onofre Pinto, da VPR, conhecida como Chacina do Parque Nacional do Iguaçu, em julho de 1974 [...]. O CIE manteve também centros clandestinos de tortura e execução de presos políticos, como a chamada Casa da Morte, de Petrópolis. [...] Os destinos de vários desaparecidos políticos estão ligados a esse centro clandestino do CIE.8
Há, portanto, um registro oficial da responsabilidade do Estado brasileiro. A Comissão Estadual da Verdade do Paraná qualifica o caso como Massacre de Medianeira: Parque Nacional do Iguaçu – estrada do Colono. Foram mortos e desparecidos Joel José de Carvalho, Daniel Carvalho, José Lavecchia, Victor Carlos Ramos; Ernesto Ruggia e Onofre Pinto. Não podemos descartar que outras pessoas também tenham sido mortas nesse mesmo processo. A saída de Buenos Aires, a considerar a data de desaparecimento de Enrique Ruggia é 6 julho de 1974. A cadeia de comando da Operação é apontada pela CEV como sendo: “Doutor César” (coronel José Brandt Teixeira); “Doutor Pablo” (coronel Paulo Malhães); “Doutor Marco Antônio Luchinni” (major Sebastião Rodrigues de Moura, major Curió); Otávio Camargo (Centro de Inteligência do Exército); Alberi Vieira dos Santos. Os casos são enquadrados como “grave violação dos direitos humanos”, sendo “desaparecimento forçado”, ou seja, permanecem em suas consequências jurídicas até que os corpos sejam encontrados”. Ou seja, em 12 ou 13 de julho de 1974, cinco pessoas – das quais quatro brasileiros e um argentino foram executadas e tiveram seus corpos
8 Relatório da CNV, vl. 1, p. 156.
ocultados em uma vala em local incerto, na floresta onde se localiza o Parque Nacional do Iguaçu, próximo à estrada do Colono. Os dados são confirmados por Marival Chaves Dias do Canto, agente do DOI-CODI de São Paulo, que “confirmou o massacre e o fato de que a emboscada foi executada por Alberi, além da conexão com a Operação Condor”. Onofre teria sido morto logo depois, separado do grupo, como explica Aluízio Palmar.
A CEV repete como fonte a informação de Palmar, de um agente policial que trabalhou com Alberi e participou diretamente dessa operação como motorista, cujo nome fictício era Otávio Camargo, e que os conduziu até o local do massacre. A ele coube buscar as pessoas que vinham de Buenos Aires no dia 11 de julho, levando-os para o sítio de Niquinho Leite, parente de Alberi. O sítio se localizava em Boa Vista do Capanema, onde chegaram no dia 12 de julho. Otávio Camargo era do Centro de Inteligência do Exército, que monitorou o grupo desde que este deixou Buenos Aires. Segundo Palmar (2006), a CEV-PR indica que
Durante a viagem pela Argentina, desde que saíram de Buenos Aires, os exilados foram monitorados por agentes do CIE. Marival Chaves foi um deles. Toda a operação foi controlada a distância pelos coronéis Brandt e Malhães. Os agentes fizeram rodízio e acompanharam o retorno dos revolucionários até chegarem ao sítio de Niquinho. Para cumprir a ordem de extermínio, um grupo comandado pelo cão de guerra major Sebastião Rodrigues, o major Curió, que usava o pseudônimo de ‘doutor Marco Antônio Luchinni’, iria esperar no Caminho do Colono, seis quilômetros mata adentro do Parque. Ao anoitecer do dia 13, Alberi e Otávio saíram com Joel, Daniel, Vitor, Lavecchia e Ernesto, justificando que iriam executar uma ação revolucionária, uma expropriação na agência do Banco do Estado do Paraná, em Medianeira. Foram desviados para o Parque Nacional, havendo fortes e desencontrados disparos de armas de fogo.9
O registro indica ainda que “o pelotão de fuzilamento limpou a área, enterrando os corpos em uma cova ali mesmo. Onofre foi executado depois, e seu corpo teria sido jogado em um rio”. E “Otávio Camargo” recebeu o agente da Polícia Federal Adão Almeida e foi até o local onde estariam os corpos”. Esta é a versão oficial.
9 Relatório CEV-PR.
Buscas já foram realizadas, tentando localizar os corpos. Palmar narra em seu livro que quando começou a denunciar esse caso recebeu falsas informações, que buscavam desviar a procura para o município de Nova Aurora. Posteriormente foram feitas buscas no Parque Nacional. Na última delas, em 2018, tivemos a oportunidade de conhecer o local, novas buscas foram feitas com escaneamento de terreno e detectores de metal, mais uma vez sem resultados.
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Fotografia da autora na busca no Parque Nacional do Iguaçu, junho/2018
O PNI é espaço fechado, conservado, onde não é permitida a entrada. Isso torna, em tese, a conservação mais viável, pois para adentrar na área para escavação foi necessário chegar de helicóptero, supervisionado pela Direção do Parque. Entretanto, muita coisa pode ter ocorrido nesses anos que se passaram, e é preciso lembrar que o sério trabalho da Comissão dos Mortos e Desaparecidos investiga a partir da fala de agentes da repressão (que indicaram o local provável), e sempre podem ter criado uma versão mentirosa dos fatos. A busca dos familiares é dolorosa, vai ficando cada vez mais distante a possibilidade de localizar os corpos, sobretudo no contexto que vivemos no Brasil, em que o presidente da República coaduna com os
repressores.10 Eles morrem e levam consigo o segredo e a garantia de impunidade. Lilian Ruggia é irmã de Enrique, um jovem argentino que recém havia feito 18 anos, iludido com a expectativa de luta no Brasil. Ela conta da tristeza da busca jamais abandonada, mas que pouco tem avançado. Em conversa com ela em novembro de 2019 em sua residência em Buenos Aires, ela nos mostrou uma série de recordações das tentativas de manter contato com os demais familiares envolvidos, a fim de não perder os vínculos que um dia possam vir a esclarecer os ocorridos. São caixas de documentos de décadas de busca de um caso peculiar. Ao ser trazido pela repressão brasileira Enrique não era reconhecido como desaparecido na Argentina, até pouco tempo atrás. Afinal, ele não foi “sequestrado, saiu por vontade própria”. Lilian ainda luta por provar que essa ação só pode ocorrer porque houve algum tipo de colaboração da repressão de seu país.
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Carta de Jairo Carvalho e Laura para Lilian, 22/5/1975. Cartão de Natal
Quando as palavras faltavam, um simples cartão mantinha uma lembrança de um laço de amizade e humanidade. A pergunta realizada por Palmar segue sem resposta, “onde foi que vocês enterraram nossos mortos?”
10 Dia 7/5/2020 Jair Bolsonaro recebeu visita de Curió no Palácio do Planalto.
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Depois dessa operação a repressão brasileira seguiu ativa, buscando e caçando militantes. A colaboração, nos tempos da Operação Condor seriam muito mais aprofundadas, e podemos encontrar indícios desse aprofundamento na documentação do CIEX. Ainda em 1974 a preocupação se jogava sobre o “Plano Mesopotâmia”, parte do Movimento Comunista Internacional. No contexto de fronteira, a preocupação recaía sobre o Ejercito Revolucionario Popular – ERP “um alinhamento da IV Internacional trotskista”, indicando uma ação que abarcaria Missiones, Entre Rios e Corrientes. O CIEX indicava a “adesão de agrupações subversivas chilenas, bolivianas, uruguaias e brasileiras”.11 Os mapas anexados no documento remetem para área onde estava a “a base da VPR” que vimos no capítulo XX:
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Legenda: INF. 44, EMAER, Secreto. No centro do mapa 1 está assinalado Aristóbulo del Vale; o mapa 2 dimensiona Tucuman e Cordoba, pontos explosivos na Argentina.
Um relatório de 1976 sobre a JCR indicava que Apolônio de Carvalho, José Maria Crispim, Darcy Rodrigues e Antônio Prestes de Paula se reuniram em Lisboa, em maio de 1975, lançando “a ideia da criação de uma Frente única e um Movimento de Ação Socialista”.12 O estudo esmiúça o que seria a organização desse Movimento Comunista Internacional, indicando pontos de guerrilha de norte a sul do Brasil. Chega a ser cruel a citação, na página 10, dos “contatos de organizações brasileiras” com a
11 VAZ, CISA, SNI. Argentina “o Exército Revolucionário do Povo – ERP”, 23/9/1974. 12 Estudo Especial n.02/16/AC/76, fl03
Coreia do Norte que cita a participação de Daniel José de Carvalho, que já havia sido assassinado um ano antes. O indignante é que a Operação Juriti ocorreu no restrito silêncio, nenhum documento foi encontrado por mais que tenhamos buscado nos mais variados arquivos. Os registros dos militantes eram minuciosos, como vimos ao longo deste livro, exceto quando eram levados para a morte. Os poucos que sabem o destino desses desaparecidos vão morrendo, impunes, felizes em paz, como Paulo Malhães, vivendo em um pacato sítio, numa pacata vida. Quando resolveu falar algo, foi vítima de um incompreensível assalto e morto a tiros no seu refúgio. A impunidade é paga por toda a sociedade brasileira.