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REALIDADE SOCIAL

Considerando os critérios de índices de maior exclusão social e viabilidade

de acesso aos territórios pelos/as pesquisadores/as, entre os 96 distritos em que se divide a administração da cidade foram escolhidos para aplicação da pesquisa – em base de dados estatísticos num primeiro momento – um de cada região: Centro: Bom Retiro; Leste: Guaianases; Oeste: Raposo Tavares; Norte: Brasilândia; Sul: Grajaú, caracterizados mais à frente. Como base comparativa, levantaram-se alguns dados estatísticos totais da cidade e de um distrito classificado com maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano4), que é o distrito de Moema, localizado na zona sul da cidade.

Para fundamentar o caminho da pesquisa, partiu-se de alguns conhecimentos já disseminados sobre a realidade social e o acesso ou não aos direitos sociais pelas crianças, adolescentes, jovens e suas famílias, como exposto a seguir.

2 CRIANÇAS, ADOLESCENTES E JOVENS NO BRASIL – MARCAS DA

REALIDADE SOCIAL

Nas Varas da Infância e da Juventude (VIJ), da Família (VF), da Violência Doméstica (VVD), nos Serviços de Acolhimento Institucional de Crianças e de Adolescentes (SAICAs), nos Serviços de Acolhimento em Família Acolhedora (SAFA), em serviços dos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS) e dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), em serviços que executam Medidas Socioeducativas (MSE) destinadas a adolescentes a quem se atribui autoria de ato infracional, em unidades de serviços de saúde, tem sido recorrente e com índices cada vez mais ampliados5 o atendimento de crianças, adolescentes, jovens, mulheres/mães, famílias. Estas, em geral, são encaminhadas, denunciadas, ou procuram os serviços em razão de alguma forma de desproteção social/violação de direitos, muitas vezes expressos em situações de violência intrafamiliar e violência urbana, ruptura de vínculos familiares e sociais, desenraizamento territorial e social, exclusão do trabalho, do direito à profissionalização, à saúde, à alimentação, à educação, à moradia, à cidade, enfim, vivenciando uma realidade na contramão da efetivação de princípios e diretrizes da Doutrina da Proteção Integral que pressupõe, entre outros aspectos, a desjudicialização do atendimento. De acordo com o Relatório de Direitos da Criança no Brasil (ChildRightsNow – CRN, 2019), desde 2015 avançam no país retrocessos em relação aos direitos sociais

4 IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) é uma medida de comparação de riqueza, alfabetização, educação, esperança de vida, natalidade, entre outros aspectos. Ver PNUD. Disponível em: https://www.br.undp.org/content/ brazil/pt/home/idh0/conceitos/o-que-e-o-idh.html.Acesso em: 7 jul. 2021. 5 Informações trazidas por pesquisadoras do NCA-SGD que atuam na área judiciária, com base em suas experiências cotidianas e conhecimento de dados do próprio Movimento do Judiciário (MovJud) – que se trata de publicações periódicas da Corregedoria Geral da Justiça/TJSP, com dados estatísticos da Primeira Instância, sobre processos em andamento e novos, audiências realizadas e sentenças proferidas.

entre outros aspectos, a desjudicialização do atendimento. De acordo com o Relatório de Direitos da Criança no Brasil (ChildRightsNow –CRN, 2019), desde 2015 avançam no país retrocessos em relação aos direitos sociais de crianças e adolescentes, em especial os direitos à educação de qualidade, à saúde, à de crianças e adolescentes, em especial os direitos à educação de qualidade, à saúde, convivência familiar, constatando-se também ampliação das desigualdades – aumento de à convivência familiar, constatando-se também ampliação das desigualdades –número de crianças e adolescentes vivendo na pobreza, abusos e violências de gênero aumento de número de crianças e adolescentes vivendo na pobreza, abusos e e intrafamiliar, e extermínio de adolescentes e jovens negros/as: violências de gênero e intrafamiliar, e extermínio de adolescentes e jovens negros/as: Sobre violência contra crianças e adolescentes, os índices mais expressivos referem-se à violência e exploração sexual e à negligência. O Relatório do Disque 100 registra que em 2019 ocorreram 86.837 denúncias de violências, sendo 17.029 relativas à violência sexual (BRASIL, 2020). Por sua vez, dados do Ministério da Saúde informam que no ano de 2018 ao menos 32 mil casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes foram registrados no país, sendo o maior índice de notificações que o Ministério já registrou (MPPR, 2020). No contexto da pandemia do coronavírus, deflagrada no início de 2020, que atingiu o trágico número de 618.000 mortos no Brasil por ocasião da revisão final deste texto (dezembro do ano 2021) e que teve/tem como alguns dos meios de enfrentamento o distanciamento social – com maior permanência das pessoas em casa e com acesso restrito a serviços – e a vacinação em massa, os índices de violência aumentaram de maneira alarmante, sem contar a subnotificação que a maior dificuldade de acesso a serviços de denúncia e de proteção nesse período propicia. A título de exemplo, dados levantados junto ao Conselho Tutelar dos distritos do Rio Pequeno e Raposo Tavares (um dos distritos abrangidos por esta pesquisa), em

CRIANÇAS, ADOLESCENTES, JOVENS E IMPACTOS DA DESIGUALDADE SOCIAL

[...] são cerca de 33 milhões (61% do total) vivendo na pobreza ou em situação de privação de direitos, 2,5 milhões fora da escola, cerca de 47 mil vivendo em serviços de acolhimento, mais de 9 mil vítimas de homicídio por arma de fogo, 109 mil meninas de 15 a 19 anos que se casaram em 2017 e mais de 100 mil meninas que se estima sofrerem violência sexual todos os anos.

(CRN, 2019, p. 7-8)

Sobre violência contra crianças e adolescentes, os índices mais expressivos referem-se à violência e exploração sexual e à negligência. O Relatório do Disque 100 registra que em 2019 ocorreram 86.837 denúncias de violências, sendo 17.029 relativas à violência sexual (BRASIL, 2020). Por sua vez, dados do Ministério da Saúde informam que no ano de 2018 ao menos 32 mil casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes foram registrados no país, sendo o maior índice de notificações que o Ministério já registrou (MPPR, 2020). No contexto da pandemia do coronavírus, deflagrada no início de 2020, que atingiu o trágico número de 618.000 mortos no Brasil por ocasião da revisão final deste texto (dezembro do ano 2021) e que teve/tem como alguns dos meios de enfrentamento o distanciamento social – com maior permanência das pessoas em casa e com acesso restrito a serviços – e a vacinação em massa, os índices de violência aumentaram de maneira alarmante, sem contar a subnotificação que a maior dificuldade de acesso a serviços de denúncia e de proteção nesse período propicia. A título de exemplo, dados levantados junto ao Conselho Tutelar dos distritos do Rio Pequeno e Raposo Tavares (um dos distritos abrangidos por esta pesquisa), em fevereiro de 2021, indicaram expressivo aumento de casos de maus-tratos e violência sexual contra crianças6 . Em relação à negligência, correspondeu a 62.019 do total das denúncias de violências feitas ao Disque 100 no ano de 2019 (BRASIL, 2020). Sobre esse fenômeno, entretanto, faz-se necessário especial atenção na análise, pois recorrentemente tem sido

6 Ver em: “Abusos contra crianças crescem até 12 vezes na pandemia em São Paulo”. Disponível em: https://noticias. r7.com/sao-paulo/abusos-contra-criancas-crescem-ate-12-vezes-na-pandemia-em-sao-paulo-10032021. Acesso em: 11 mar. 2021.

violências feitas ao Disque 100 no ano de 2019 (BRASIL, 2020). Sobre esse fenômeno, entretanto, faz-se necessário especial atenção na análise, pois recorrentemente tem sido utilizado para culpabilizar e responsabilizar famílias – quase sempre representadas utilizado para culpabilizar e responsabilizar famílias – quase sempre representadas pela pela mulher/mãe – que vivem em situação de pobreza e sem acesso à proteção social, mulher/mãe – que vivem em situação de pobreza e sem acesso à proteção social, o que as o que as leva em grande parte das vezes à impossibilidade material de cuidar de leva em grande parte das vezes à impossibilidade material de cuidar de seus/suas filhos/ seus/suas filhos/as conforme as expectativas sociais. Pesquisas apontam que tem as conforme as expectativas sociais. Pesquisas apontam que tem ocorrido banalização ocorrido banalização da palavra/conceito na nomeação de famílias como “negligentes”, da palavra/conceito na nomeação de famílias como “negligentes”, sobretudo no meio sobretudo no meio judiciário e em serviços de saúde e de assistência social, com judiciário e em serviços de saúde e de assistência social, com redução da realidade redução da realidade social ao imediato, sem articulação com a violência social ao imediato, sem articulação com a violência social/estrutural que a produz. Uma realidade que “expressa conteúdos pautados em valores morais, do senso comum, de social/estrutural que a produz. Uma realidade que “expressa conteúdos pautados em juízos de valor, de julgamento e de discriminação das famílias atendidas...” (GOES, 2019, valores morais, do senso comum, de juízos de valor, de julgamento e de discriminação p. 194), com investimento maior na separação e responsabilização da família do que no das famílias atendidas...” (GOES, 2019, p. 194), com investimento maior na separação fortalecimento da rede de atendimento. e responsabilização da família do que no fortalecimento da rede de atendimento. Em relação aos/às jovens (15 a 29 anos), o Atlas da Violência (IPEA/FBSP, 2020, p. 20) revela que 30.873 deles/as foram vítimas de homicídio no ano de 2019, significando “uma taxa de 60,4 homicídios a cada 100 mil jovens, e 53,3% do total de homicídios do país”.

É DESPROTEÇÃO SOCIAL, NÃO É NEGLIGÊNCIA

A respeito das análises das situações que supostamente envolvam negligência, Berberian (2015) propõe que, no Serviço Social, seja utilizado o “termo desproteção em substituição a negligência”, na medida em que, conforme estudos e pesquisas que realizou, “o conceito negligência por si já tem em seu conteúdo um teor valorativo negativo, e que, de antemão, ao ser utilizado largamente sem a perspectiva crítica, indica de alguma maneira um juízo de valor preconcebido que tende a discriminar o sujeito.

(BERBERIAN, 2015, p. 62)

Em relação aos/às jovens (15 a 29 anos), o Atlas da Violência (IPEA/FBSP, 2020, p. 20) revela que 30.873 deles/as foram vítimas de homicídio no ano de 2019, significando “uma taxa de 60,4 homicídios a cada 100 mil jovens, e 53,3% do total de homicídios do país”.

JOVENS E HOMICÍDIOS

[...] a principal causa dos óbitos da juventude masculina, responsável pela parcela de 55,6% das mortes de jovens entre 15 e 19 anos; de 52,3% daqueles entre 20 e 24 anos; e de 43,7% dos que estão entre 25 e 29 anos. Para as mulheres nessa mesma faixa etária, a proporção de óbitos ocorridos por 6Ver em: “Abusos contra crianças crescem até 12 vezes na pandemia em São Paulo”. Disponível em: homicídios é consideravelmente menor: de 16,2% entre aquelas que estão https://noticias.r7.com/sao-paulo/abusos-contra-criancas-crescem-ate-12-vezes-na-pandemia-em-sao paulo-10032021. Acesso em: 11 mar. 2021. entre 15 e 19 anos; de 14% daquelas entre 20 e 24 anos; e de 11,7% entre as jovens de 25 e 29 anos. -

(IPEA/FBSP, 2020,p.20)

Os/As adolescentes e jovens aos/às quais é atribuída autoria de atos infracionais vêm sendo cada vez mais colocados/as na berlinda e, em vez de ampliação de investimentos sociais para efetivação de seus direitos – enquanto “sujeitos de direitos” –, incluindo programas socioeducativos qualificados, a eles/as são direcionados

Os/As adolescentes e jovens aos/às quais é atribuída autoria de atos infracionais vêm sendo cada vez mais colocados/as na berlinda e, em vez de ampliação de Os/As adolescentes e jovens aos/às quais é atribuída autoria de atos infracionais vêm investimentos sociais para efetivação de seus direitos – enquanto “sujeitos de direitos” sendo cada vez mais colocados/as na berlinda e, em vez de ampliação de investimentos –, incluindo programas socioeducativos qualificados, a eles/as são direcionados sociais para efetivação de seus direitos – enquanto “sujeitos de direitos” –, incluindo programas projetos de lei visando a redução da maioridade penal, a ampliação da socioeducativos qualificados, a eles/as são direcionados projetos de lei visando a redução da maioridade penal, a ampliação da responsabilização e da punição e o encarceramento. responsabilização e da punição e o encarceramento. Ainda que reiteradamente esses Ainda que reiteradamente esses apelos sejam evocados para fazer frente à violência que, apelos sejam evocados para fazer frente à violência que, indiscriminadamente, os/as indiscriminadamente, os/as adolescentes e jovens são acusados/as de praticar, os dados de adolescentes e jovens são acusados/as de praticar, os dados de realidade não realidade não sustentam essa narrativa. Tomando por base levantamento anual do Sistema sustentam essa narrativa. Tomando por base levantamento anual do Sistema Nacional Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) sobre atos infracionais (de 2014), de Atendimento Socioeducativo (SINASE) sobre atos infracionais (de 2014), Azevedo e Azevedo e Terra (2018, p. 29) analisam que roubo, furto e atos contra o patrimônio são os Terra (2018, p. 29) analisam que roubo, furto e atos contra o patrimônio são os mais mais praticados por adolescentes, refutando “a noção do senso comum que alardeia um praticados por adolescentes, refutando “a noção do senso comum que alardeia um suposto aumento de crimes contra a pessoa (latrocínios e homicídios).” O que é reafirmado suposto aumento de crimes contra a pessoa (latrocínios e homicídios).” O que é no levantamento anual do SINASE de 2017 (BRASIL, 2019). reafirmado no levantamento anual do SINASE de 2017 (BRASIL, 2019).

ADOLESCENTES, INTERNAÇÃO/RESTRIÇÃO DE LIBERDADE

Dos/as 26.109 adolescentes em cumprimento de medidas de internação e restritivas de liberdade nesse ano, a maioria dos atos infracionais que lhes foram atribuídos não é contra a vida: 38,1% são classificados como roubo; 26,5%, como tráfico de entorpecentes; 5,6%, como furto; e 8,4%, como homicídio. O mesmo levantamento indica, ainda, “[...] outros[as] 937 adolescentes/jovens em atendimento inicial (3,6%),306 em internação sanção (1,2%) e 63 em medida protetiva (0,2%)”.

(BRASIL, 2019, p. 29)

O acesso à escolarização tem se revelado desigual para adolescentes e O acesso à escolarização tem se revelado desigual para adolescentes e jovens, jovens, envolvendo diversos fatores, como o abandono da escola pela envolvendo diversos fatores, como o abandono da escola pela necessidade de trabalhar, necessidade de trabalhar, o fator racial, a falta de transporte público, a violência o fator racial, a falta de transporte público, a violência nos territórios de moradia ou no ambiente de estudos. Novaes (2019, p.12), citando a Agenda Juventude Brasil (2016), informa que na faixa dos 15 aos 29 anos as taxas de frequência à escola diminuem. O número de jovens negros/as analfabetos/as nessa faixa etária é quase duas vezes maior que o de jovens brancos/as. Aliado à desigualdade do acesso à educação de qualidade, a insegurança do trabalho num mundo globalizado – permeado por intensas e extensas transformações, desregulamentações e precarização do trabalho e de suas relações – se faz presente em suas vidas. O Brasil tem atingido nos últimos anos altas taxas de desemprego – por volta de 12,7 milhões de desempregados/as em 20197. Conforme

7 O que se tem ampliado significativamente nos últimos meses, no contexto da pandemia do coronavírus.

anos altas taxas de desemprego – por volta de 12,7 milhões de desempregados/as em 20197. Conforme estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), com base em dados da Pesquisa Nacional por estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), com base em dados da Amostra de Domicílios Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia (IBGE), a população mais jovem é a mais afetada por essa situação, sendo que, e Estatística (IBGE), a população mais jovem é a mais afetada por essa situação, sendo que, “além de registrar uma retração de 1,3% na ocupação no trimestre móvel encerrado “além de registrar uma retração de 1,3% na ocupação no trimestre móvel em janeiro, o grupo entre 18 e 24 anos possui a menor probabilidade de ser contratado e encerrado em janeiro, o grupo entre 18 e 24 anos possui a menor probabilidade tem a maior chance de ser demitido” (IPEA, 2019, s/p). Esses índices se ampliaram ainda de ser contratado e tem a maior chance de ser demitido” (IPEA, 2019, s/p). Esses mais no contexto da pandemia do coronavírus. índices se ampliaram ainda mais no contexto da pandemia do coronavírus.

JOVENS, ESCOLARIDADE, TRABALHO E A PANDEMIA

Os indivíduos mais jovens e os menos escolarizados têm sido os mais impactados pela pandemia: “No quarto trimestre de 2020, a taxa de desocupação dos[as] trabalhadores[as] com idade entre 18 e 24 anos atingiu 29,8%, o que significa que há quase 4,1 milhões de jovens à procura de um emprego”. Em relação à escolaridade, o estudo aponta que “a crise acentuou ainda mais a desocupação entre os[as] trabalhadores[as] com ensino médio incompleto, cuja taxa aumentou de 18,5% para 23,7% entre o quarto trimestre de 2019 e o mesmo período de 2020”.

(IPEA, 2021, s/p)

Em relação às medidas de proteção dispostas no ECA (Art. 101, I a IX), têm se Em relação às medidas de proteção dispostas no ECA (Art. 101, I a IX), têm acentuado nos anos recentes as investidas na inversão de prioridades, ou seja, o se acentuado nos anos recentes as investidas na inversão de prioridades, ou seja, o incentivo da colocação da criança em família substituta, especialmente mediante incentivo da colocação da criança em família substituta, especialmente mediante adoção, última das medidas legalmente previstas (num rol de nove), em detrimento do adoção, última das medidas legalmente previstas (num rol de nove), em detrimento investimento na permanência da criança com a família de origem, mediante do investimento na permanência da criança com a família de origem, mediante implementação de políticas públicas de proteção social, sempre que a separação implementação de políticas públicas de proteção social, sempre que a separação tenha tenha como base a ausência ou fragilidade de condições materiais para os cuidados. Nesse sentido, tem sido recorrente a apresentação de projetos de lei no Congresso 7 O que se tem ampliado significativamente nos últimos meses, no contexto da pandemia do coronavírus. Nacional visando alterar o ECA e, em muitos casos, a fragmentá-lo, num processo de desconfiguração do paradigma da proteção integral que sustenta sua proposta original.8

8 Vários desses projetos de lei focam na “agilização” da adoção de crianças e “agilização” da destituição do poder familiar – como exemplo, o PLS sobre o Estatuto da Adoção (PLS 394/2017 – atualmente aguardando designação de relator), que pretende a adoção como política pública, além de PLs voltados para a adoção “intuitu personae”, como é o caso do PL 1050/2020, com vistas à facilitação da “entrega direta” da criança pela família de origem à pessoa/família adotante, sem o devido controle do processo social e legal da adoção. Em monitoramento legislativo no Congresso Nacional sobre projetos de lei voltados para alterações na legislação relativas aos direitos de crianças e adolescentes, realizado em 2018 pela Fundação Abrinq, foi constatada a existência de 4.175 proposições que poderão afetar o ECA. Destas, 2.314 estão relacionadas à área da proteção social, 1.248 à área da educação, e 613 à área da saúde. Analisando 810 dessas proposições (principais e apensados), constatouse que 197 delas têm relação com a convivência familiar. Conforme apresentação da Fundação Abrinq em reunião do Movimento pela Proteção Integral de Crianças e Adolescentes, em São Paulo/SP, 2018. Dados de monitoramento sobre projetos de lei/matérias afetas à convivência familiar podem ser localizados em: https://observatoriocrianca.org. br/agenda-legislativa/temas/convivencia-familiar. Acesso em: 04 out. 2021.

Esses e outros projetos de lei (PLs) têm como foco crianças, adolescentes e famílias que não tiveram acesso aos direitos inerentes à proteção social em suas trajetórias de vida, enfatizam a retirada do Estado enquanto um dos principais responsáveis pela garantia da proteção integral, e priorizam a adoção como política pública “salvacionista”, em detrimento de política pública redistributiva, que assegure a proteção social e a prioridade ao direito da criança e do/a adolescente à convivência com a família de origem, sempre que eventual perspectiva de separação se anuncie em razão das condições de pobreza e desproteção social que vivencia, e não por falta de afeto/desejo de cuidar. Como principal justificativa dos PLs voltados para a adoção como política pública e para celeridade da destituição do poder familiar, geralmente aparecem dados disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como: a existência de 32.791 crianças e adolescentes acolhidos/as em instituições; destes, 5.026 “disponíveis” para adoção (isto é, cujos/as pais/mães foram destituídos/as do poder familiar). Por outro lado, o número de pretendentes à adoção cadastrados/as soma 32.773 (CNJ, 2020). Entretanto, importa observar outras informações, disponibilizadas pelo próprio CNJ, relativos às indicações feitas pelos/as pretendentes à adoção sobre raça/etnia, faixa etária, grupo de irmãos/ãs e condições de saúde, e dados sobre a realidade das crianças cadastradas, que poderiam ser adotadas: no caso de pretendentes à adoção já vinculados/as a uma criança, a grande maioria deseja crianças abaixo de 7 anos de idade; em relação aos/às pretendentes e crianças/adolescentes não vinculados/ as, a maioria deseja crianças “com até 4 anos de idade e apenas 0,3% desejam adotar adolescentes”. A mesma fonte informa que os/as adolescentes “representam 77% do total de crianças e adolescentes disponíveis para adoção e não vinculados/ as” a algum pretendente. Existem, portanto, “mais adolescentes cadastrados/as no SNA (Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento) do que pretendentes que desejam adotá-los/as”. As crianças em condições de serem adotadas (isto é, que passaram por todo o trâmite legal e poderiam ser inseridas em famílias substitutas) são em sua maioria pardas (49,1%), e a minoria (28,4%) é branca. O relatório do CNJ afirma que a maioria dos/as pretendentes não tem preferência por determinada etnia, exceto na região Sul do país, onde a maioria aponta preferência por crianças brancas (CNJ, 2020, p. 27-29). Os dados do CNJ evidenciam o descompasso entre a idealização da criança por significativa parcela de pretendentes à adoção e as condições reais daquelas/es que vivem em SAICAS e que estariam em condições de serem adotadas/os. Em relação às demais crianças e adolescentes que não se enquadram no perfil buscado pelos/ as pretendentes à adoção, observa-se que continua a ênfase na institucionalização,

vivem em SAICAS e que estariam em condições de serem adotadas/os. Em relação às demais crianças e adolescentes que não se enquadram no perfil buscado pelos/as pretendentes à adoção, observa-se que continua a ênfase na institucionalização, em em detrimento da efetivação de serviços e programas sociais de apoio para que detrimento da efetivação de serviços e programas sociais de apoio para que retornem retornem à sua família, ou para que sejam colocadas/os em serviços de acolhimento à sua família, ou para que sejam colocadas/os em serviços de acolhimento familiar, por familiar, por exemplo. Os dados expostos pelo CNJ (2020, p. 43) no referido relatório exemplo. Os dados expostos pelo CNJ (2020, p. 43) no referido relatório evidenciam evidenciam que a questão racial está presente na institucionalização de crianças e que a questão racial está presente na institucionalização de crianças e adolescentes e adolescentes e na sua não adoção: na sua não adoção: Essas e outras marcas da realidade social sustentam a conclusão de que, no Brasil, as condições concretas de vida de grande parte da população que necessita do trabalho para viver não asseguram dignidade a todos os membros da família, impactando diretamente no direito de crianças, adolescentes e jovens à convivência com sua família e comunidade. Nessa perspectiva, a publicação do IBGE, divulgada em novembro de 2020, denominada “Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2020”9, revelou as desigualdades que afetam o padrão de vida, a distribuição de renda e a igualdade racial, tais como:

QUESTÃO RACIAL E INSTITUCIONALIZAÇÃO DE CRIANÇAS

“[...] a maioria das crianças e adolescentes acolhidos[as] são da etnia parda (48,8%), 34,4% são da etnia branca, 15,5% preta, 0,8% indígena e 0,4% amarela” (CNJ, 2020, p.43), o que provavelmente tem relação com o racismo institucional e estrutural que acompanha a história da sociedade brasileira e que tem sido escancarado na atualidade, graças à movimentação/denúncias pela população negra organizada.

Essas e outras marcas da realidade social sustentam a conclusão de que, no Brasil, as condições concretas de vida de grande parte da população que necessita do trabalho para viver não asseguram dignidade a todos os membros da família, impactando diretamente no direito de crianças, adolescentes e jovens à convivência com sua família e comunidade. Nessa perspectiva, a publicação do IBGE, divulgada em novembro de 2020, denominada “Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2020”9, revelou as desigualdades que afetam o padrão de vida, a distribuição de renda e a igualdade racial, tais como:

⇒ O rendimento domiciliar per capita médio da população preta ou parda, ao longo do

período compreendido entre 2012 e 2019, permaneceu cerca de metade do observado

para a população branca. Esse rendimento foi, em 2019, de R$ 981 para a população

preta e parda e R$ 1.948 para a branca. (p.55)

⇒ No Brasil, o rendimento domiciliar per capita mediano equivalia a cerca de 60% do

rendimento médio e foi de R$ 861, em 2019, inferior, portanto, ao valor do salário-mínimo

nacional vigente nesse ano (R$ 998). (p.57)

⇒ 11,8% da população brasileira, em 2019, viviam com até o valor de 1/4 de salário-mínimo

per capita mensal (cerca de R$ 250) e quase 30% com até 1/2 salário-mínimo per capita

(R$ 499). (p.59)

9 Publicação elaborada a partir da análise dos indicadores da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (- PNAD Contínua) 2012 a 2019 também do Instituto. Fonte: IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população

9 Publicação elaborada a partir da análise dos indicadores da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (- PNAD Contínua) 2012 a 2019 também do Instituto. Fonte: IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira 2020. Estudos e Pesquisas Informação Demográfica e Socioeconômica, n.43. Rio de Janeiro: IBGE, 2020. 148p. Disponível em: https:// biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101760.pdf.Acesso em: 29 ago. 2021.

⇒ O peso de aposentadorias e pensões no rendimento domiciliar para as pessoas com até

1/4 de salário-mínimo per capita, que era de 8,0%, em 2012, reduziu-se ainda mais, em

2019, passando para 7,0% (queda de 12,1%). (p.60)

⇒ O público-alvo potencial do programa Bolsa Família (pessoas com rendimento abaixo de

R$ 178) era de 16,2 milhões de pessoas em 2019. Se considerar a linha recomendada

internacionalmente para o Brasil, o total de pobres mais que triplica e supera 51 milhões

de pessoas no mesmo ano. (p.64)

⇒ A desigualdade de gênero é mais bem evidenciada no mercado de trabalho, quando

se consideram os rendimentos de trabalho e não o domiciliar per capita, a partir dos

quais o rendimento médio das mulheres ocupadas foi de 77,2% em relação aos homens

ocupados. (p.67)

⇒ No cruzamento das informações sobre sexo e cor ou raça das pessoas, foram as

mulheres de cor ou raça preta ou parda que se destacaram entre os/as pobres: eram

28,7% da população, 39,8% dos/as extremamente pobres e 38,1% dos/as pobres. (p.67)

⇒ O arranjo domiciliar formado por mulheres de cor ou raça preta ou parda responsáveis,

sem cônjuge e com presença de filhos/as menores de 14 anos, também foi aquele que

concentrou a maior incidência de pobreza: 24% dos/as moradores/as desses arranjos tinham rendimento domiciliar per capita inferior a US$ 1,90 e 62,4% inferior a US$ 5,50.

(p.67)

⇒ A pobreza é maior entre as crianças, tendência observada internacionalmente. Entre

aquelas até 14 anos de idade, 11,3% eram extremamente pobres e 41,7% pobres. (p.67)

⇒ Entre as pessoas residentes em domicílios alugados, as proporções de ocorrência

de ônus excessivo com aluguel chegavam a 25,6% na população em geral e a 54,7%

na população com rendimento domiciliar per capita inferior a US$ 5,50 PPC por dia.

(p.76)

⇒ No conjunto da população, 90,6% residiam, em 2019, em domicílios com coleta direta

ou indireta de lixo, 84,7% em domicílios com abastecimento de água pela rede geral, e

65,8% em domicílios com esgotamento pela rede coletora ou pluvial. Destacando apenas

as pessoas com rendimento domiciliar per capita inferior a US$ 5,50 PPC por dia, os

resultados são de 78,9% em domicílios com coleta de lixo, 73,5% com abastecimento

pela rede geral e 44,8% com esgotamento por rede coletora ou pluvial. (p.79)

⇒ Na faixa de 18 a 24 anos, um/a jovem de cor ou raça branca tem, aproximadamente,

duas vezes mais chances de frequentar ou já ter concluído o ensino superior que um/a

jovem de cor ou raça preta ou parda – 35,7% contra 18,9%. Um/a jovem morador/a

de um domicílio urbano tinha, em 2019, cerca de três vezes mais chances de estar

frequentando ou já ter concluído o ensino superior que um/a jovem morador/a de um

domicílio rural – 28,1% contra 9,2%. (p.90)

⇒ Em 2019, 23,8 milhões de jovens, de 15 a 29 anos de idade, sem ensino superior

completo, não frequentavam escola, pré-vestibular ou curso da educação profissional.

(p.101)

⇒ 42,8% dos jovens que não estudavam e não estavam ocupados/as, em 2019, estavam

no quinto da população com os menores rendimentos domiciliares per capita e apenas

4,7% no quinto com os maiores rendimentos. (p.108)

A grande parte da população brasileira, formada por trabalhadores/as (com ou sem vínculos trabalhistas, inseridos/as ou não no trabalho formal ou mesmo informal), vive, portanto, em situação de desproteção social e de pobreza, com rendimentos aquém do necessário para a manutenção de uma vida digna. No Brasil, “os rendimentos mensais médios do 1% mais rico representam 36,3 vezes mais que aqueles dos 50% mais pobres. Considerando os dados das declarações de IRPF, tal razão seria de 72 vezes” (OXFAM, 2018, p. 18, em análise de dados do IBGE).

O relatório da OXFAM registra ainda o aumento da desigualdade de renda entre grupos raciais, assim como entre homens e mulheres. Ao mesmo tempo, reduzem-se os gastos sociais nos últimos anos (como em previdência, assistência social, saúde e educação), como projeto de diminuição do Estado para os/as pobres – gastos que já significavam, no ano de 2016, “a redução de 13 pontos percentuais em relação ao espaço fiscal ocupado pelos gastos sociais de anos anteriores, num retorno repentino para níveis de 2001. Trata-se de um retorno de 17 anos de priorização de investimentos sociais contra desigualdades” (ibid., p. 45)10 - atingindo mais fortemente aqueles[as] que mais dependem dos serviços do Estado, com consequente aumento da pobreza e das desigualdades sociais. No interior dessa caótica, multifacetada e bárbara realidade, nos anos recentes têm sido ampliados discursos e ações governamentais, assim como por alguns grupos religiosos fundamentalistas, na direção de retroceder em avanços conquistados especialmente a partir da CF/88 no que se refere aos direitos fundamentais e sociais, e enfatizando os chamados valores da “família tradicional”. Cada vez são mais presentes na vida pública acontecimentos e posicionamentos conservadores, com teores preconceituosos, permeados por expressões de violências em relação ao que entendem por família(s) e relações familiares, por exemplo. Posições que rebatem em espaços sócio-ocupacionais do Serviço Social e de outras áreas das ciências humanas, sociais e da saúde, e, com relativa frequência, a judicialização das relações sociofamiliares tem sido acionada para fazer frente à ausência e/ou ineficiência de políticas públicas,

10 A Emenda Constitucional nº 95/2016instituiu novo regime fiscal, por meio do qual os gastos públicos federais são congelados por 20 anos com base em valores de 2016.

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