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Editorial
A hora e a vez do presidencialismo (democrático)
A Constituição Federal de 1988 teve o mérito, após o governo dos militares, de estabelecer entre nós um regime democrático. Houve eleições periódicas livres, poderes constitucionais independentes e um avanço no campo dos direitos fundamentais. A democracia se fez após um século de instabilidades: governos aristocráticos, intervenções federais, estados de sítio, levantes, golpes e o emprego recorrente da força. Os reveses do passado, quase sempre, foram provocados pela intervenção, direta ou indireta, da figura presidencial. Pensava-se que era uma herança sepultada. Hoje, não se tem a mesma certeza!
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Outros sistemas constitucionais têm assistido a emergência de líderes que no poder se levantam contra a democracia. São contrários ao pluralismo e professam um credo excludente da diferença. Dizem-se senhores da verdade, não aceitam críticas, chamam os nãopartidários de mentirosos. Ao mesmo tempo, falsamente, denunciam os opositorese os outros poderes como elitistas, sendo eles os únicos a conhecerem e expressarem a vontade do povo. Eleitos pela democracia, destroem-na de dentro restringindo a participação, ocupando e corrompendo os órgãos de Estado. A Turquia, a Hungria, a Polônia e os Estados Unidos deDonald Trumpoferecemumtristeexemplodestecenário.São chamados de“neopopulistas” porque, sem mediação das instituições representativas, se relacionam diretamente com o povo.
Háo perigo deque as instituições brasileiras, dado asua história constitucional, sejam particularmente frágeis para resistir a arroubos parecidos. Não é sem espantos que se vê o desmonte diuturno e acelerado das conquistas de 1988. Está em curso uma agenda de destruição!
A sociedade, por meio de mentiras, é diariamente radicalizada. Um discurso ideológico obscurantista difunde a existência de inimigos imaginários, despreza o conhecimento científico, combate as instituições de controle e levanta suspeitas infundadas contra o procedimento eleitoral democrático.
Unilateral, pois rejeita e não admite o debate e o pensamento contrário. A liberdade de imprensa o incomoda. Sugere a violência para a solução de várias questões e glorifica o passado de crimes da ditadura militar.
A confluência de omissão dolosa, mudanças inconstitucionais de prioridades, ocupação da burocracia do Estado por agentes ociosos esem qualificação técnica e deliberada restrição orçamentária possibilita o desmanche de políticas públicas há muito consolidadas. Indicadores sociais e econômicos evidenciam retrocesso em vastas áreas, com destaque para a saúde, a educação, a ciência e a tecnologia, o meio- ambiente, a cultura e o emprego.
Os poderes constituídos são frequentemente fragilizados. A lógica atomizada dos decretos e das medidas provisórias mascara a ausência de uma proposta ampla e sistematizada de governo a ser discutida publicamente pelo legislativo. Como não há um projeto para engajar os parlamentares, o apoio de deputados e senadores ocorre pelo direcionamento a pedido de receitas, orçamento secreto. Também pela entrega de secretarias e espaços na administração. Há prodigalidade na edição intencional de atos normativos ilegais ou inconstitucionais, o que sobrecarrega o poder judiciário, que, por sua vez, por exercer sua função constitucional, é desautorizado, ameaçado e vilipendiado, inclusive pela difusão anônima de inverdades pela rede mundial de computadores. Os órgãos e agências de investigação têm comprometida sua independência pela captura e ocupação dos órgãos de cúpula por quem é insensível a este estado de coisas. O pacto federativo é degradado pela recusa de a União exercitar suas atribuições “genéricas” de coordenar o todo. Estados e municípios veem-se no dilema de cumprir sozinhos políticas públicas que, em uma situação de normalidade constitucional, exigiriam a colaboração coordenada de todos os entes federativos.
Não é mais segredo, pois dito publicamente, a partir de uma interpretação esdrúxula da Constituição, que seria dado à administração militar tutelar os poderes constituídos. Não há vexame em exprimir o absurdo com naturalidade! A soma de todos esses fatos coloca na agenda, como questão de sobrevivência do pacto constitucional, a necessidade do debate franco, aberto e público das atribuições em um sistema de governo presidencialista. Sendo o populismo um perigo para uma democracia consolidada, é um perigo em dobro em uma experiência republicana marcada por crises.