Jornal Plural N.1

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plural JORNAL CULTURAL

NÚMERO 1 | ABRIL A JUNHO 2013 | BH | MG

CONTO DOs DIAs DE HOJE

Pós-modernidade Por Barroso da Costa Praça Sete, região central de Belo Horizonte, 9:00 horas. Dirijo-me para o serviço enquanto converso ao celular. O burburinho é ensurdecedor. - Marque a reunião para as onze... Uma buzina prolongada. - Hein, Marcelo? Não escutei, me desculpe... Eu... Freada brusca. - Hein? É... eu tô no Centro... Sei... Sei... Ambulância. Carro de polícia. Outra freada. - Hein? Não tô te escutando, Marcelo... Eu sei que seria às dez, mas... Tá bem! Dez e meia. Fechei o aparelho celular e olhei para os lados. De repente, silêncio absoluto. A turba continuava seu movimento. Via as bocas se mexendo, umas se dirigindo às outras. O motorista do ônibus, com a cabeça para fora do veículo, gesticulava e parecia xingar o ciclista, mas não havia palavras. O velho com a placa de “raCopm-es rOuo”, olhava para mim, abrindo e fechando sua boca murcha. Esbarrei no sujeito do i-pod, que vinha mexendo as pernas e a boca num ritmo imaginário, que olhou para mim, mexeu a boca com o dedo em riste e saiu dançando. Alguém levantava uma bíblia, olhava para o céu e abria muito a boca escura como um vácuo. Parei, me concentrei, mas não consegui ouvir nada. Nenhum som, nenhuma palavra. Era como se minha existência estivesse suspensa. Senti uma vertigem, me apoiei numa pessoa. Tentei pedir desculpas, mas ela parece não ter ouvido. Olhou para mim com cara de interrogação – o cenho franzido –, depois de pena – as sobrancelhas em parênteses. Mexeu a boca, virou as costas e seguiu seu rumo. Parei em frente a uma loja de eletrodomésticos, vários televisores expostos. O chef cozinhava, manuseava uma longa colher de madeira com a mão direita, gesticulava com a esquerda e mexia os lábios olhando para uma mulher de meia idade com o cabelo arrepiado e a cara esticada, que parecia gargalhar, mas sem o som. Nova vertigem, desta vez mais forte. Caí. Uma multidão se formou em volta de mim. Todos me olhavam com ar de espanto, mexendo suas bocas freneticamente, enquanto olhavam uns para os outros e depois, de novo, para mim. O homem da bíblia, ajoelhado, projetava os lábios e o corpo para frente segurando o livro com as duas mãos como que para se proteger de um inimigo invisível. Depois colocou o livro sobre mim, ergueu o braço esquerdo, olhou para as pessoas à sua direita e passou a mexer a boca, ora abrindo muito, ora mantendo-a semi-cerrada. Tentei gritar e lajfhuia\njuhakuhgkajbrfakrbajhrbg.


editorial

crônica da vida na tela

Nascer é arte

Que tal um cineminha?

Por Bernardo G.B. Nogueira

Apresentamos o Jornal Cultural Plural, que nasce com a intenção de propor uma nova mirada ante a existência. Não se trata de um Jornal temporal, tampouco, preso a tal ou qual direção política e/ou filosófica. Nossa intenção com esse periódico bimestral é propiciar ao leitor um momento de “duração” ante uma existência “líquida” que retira do humano sua condição de artista da vida. Assim, como nos ensinaram os gregos antigos, o Jornal Cultural Plural, quer ser um momento em que o leitor se coloque em condição de cumprir essa face do existir, a artística! Esperamos cumprir nossa proposta com os diversos autores que gentilmente nos emprestam suas reflexões, idéias e ideais. Autores que nos escrevem de diferentes partes do Brasil e do mundo, portanto, a proposta motriz esta a ser acesa, incutir arte em nossa vida, e para isso, há apenas e todas as formas de realizar: a plural. Desejamos a todos nossos leitores bons momentos em companhia do Plural, que sua arte permita uma nova subjetividade, mais colorida e menos institucional, mais poética e um tantinho menos racional. Tudo que nos permita uma existência PLURAL! expediente

Por Fábio Almeida Até que enfim é sexta feira. Ainda bem que não é Sexta-feira 13 e mal posso esperar Os embalos de sábado à noite. Também pudera, hoje tive Um dia de cão. De cão não, foi O dia do chacal, pois com o calor que estava fazendo, tomaria Um drink no inferno. Aliás, Inferno na torre, porque fui a um edifício que, de tão alto, parecia ter Uma janela para o céu. De lá, se avistava O Parque dos dinossauros, um circo novo que chegou à cidade, e o Aeroporto 75, setenta e seis quadras adiante. Como diria um amigo meu, O céu pode esperar, mas eu não vejo a hora de ir para o Studio 54, ao Cabaré ou a um Cassino, encontrar-me com os amigos e ficarmos Perdidos na Noite, ou num Horizonte perdido, tanto faz, afinal sexta-feira sempre parece A primeira noite de um homem. Renovam-se suas energias, sente-se forte como King-kong, perverso como O tubarão e guerreiro como O Gladiador. É na sexta que saímos Sem Destino e qualquer lugar é bom, nunca você é Um estranho no ninho, todos são iguais, O pequeno grande homem, Todos os homens do presidente, do mais simples até O iluminado, sem distinção. Seja um ou Sete homens e um destino, pois todos desejam uma coisa só: ter as Asas da liberdade.

Alguns extrapolam, se sentem O poderoso chefão e preferem confusão ao invés de divertimento. Eu prefiro as festas e se me chamam, sou O convidado trapalhão. Falou que é bagunça, vou até Em algum lugar do passado ou De volta ao futuro. E se a festa for boa, faço até 2001, Uma odisséia no espaço, dançando com Alien ou bebendo com O Dragão Vermelho. Faço Dança com lobos, dou Um tiro na noite, chupo Laranja Mecânica, aceito Proposta indecente, atravesso As pontes de Madison e vou ao Mississipi em chamas. E se me machuco, não importa Onde dói mais. Sei que parece esquisito, mas chega o final de semana, sinto uma Atração fatal; parece Feitiço da lua, me transformo e adquiro A outra face, e Acima de qualquer suspeita, abandono o serviço. E se tem um companheiro, são Dois perdidos numa noite suja. Mas veja bem, se é para festejar, Faça a coisa certa, desarme o espírito. É Uma questão de honra. Deixe Os estranhos vizinhos para trás e não se preocupe com O preço do sucesso porque, de repente, até se vira um Herói por acaso. E, quando tudo acabar, sobrarão as Lembranças do passado e na hora de dar explicação ao chefe pelo atraso na segunda, nunca se esqueça, dirija-se Ao mestre com carinho.

Seja um ou Sete homens e um destino, pois todos desejam uma coisa só: ter as Asas da liberdade.

JORNAL CULTURAL PLURAL Editor: Bernardo G.B Nogueira APOIO TÉCNICO: Núcleo de Publicações Acadêmicas Newton: Cinthia Mara da Fonseca Pacheco Projeto Gráfico e Editora de Arte: Helô Costa - RG: 127/MG Diagramação: Geisiane de Oliveira (estagiária da CPJ)

Contatos, sugestões e anúncios: jornalplural@yahoo.com.br

Os textos são de inteira responsabilidade dos seus autores.

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Die Rubrik

Por Thalita Dittmaier

O complexo da brasilidade

É com grande prazer que aceitei não só o convite para escrever neste espaço, como também o desafio de falar sobre questões culturais sem cair no enfado e aborrecer o caro leitor com lugares-comuns. Se, por acaso, vier a fazê-lo, já antecipo meu pedido de perdão. Sou brasileira com entusiasmo, mineira de nascimento e de coração, apesar do sobrenome alemão. Professora e tradutora apaixonada pelo que faz, moro na Alemanha há quase dois anos. Assim, aproveitando o ensejo do Ano da Alemanha no Brasil e da união do gosto pelas Letras à situação de imigrante, deixo algumas divagações que somente a distância e a saudade do “Hotel Mama”, como dizem os alemães, seriam capazes de fazer aflorar. Em primeiro lugar, quanto à Alemanha, país que me acolheu tão abertamente, há que se considerar, indubitavelmente, a pontualidade, a eficiência e a organização que tanto nos faltam em solo tupiniquim. Aliás, abro parênteses e menciono o meu querido pai, o qual veio me visitar há pouco e que, em estado de estupefação e incredulidade, saiu tirando fotos de todos os banheiros que encontrava como prova de atestado da limpeza germânica. Fecho parênteses. Não nego que o país da cerveja (deliciosamente sedutora!) assemelha-se, sem exagero, a uma maquete de Playmobil. Tudo certinho, tudo no lugar. Inspiração seja para as mentes poéticas, seja para os corações racionais. Ultimamente, no entanto, tenho refletido acerca do que considero uma verdadeira patologia cultural, consciente ou não, que se manifesta na forma de uma subalternidade dos brasileiros perante o resto do mundo. Sob esta ótica, ser brasileiro pode implicar qualquer coisa, menos algo de bom. Sim, é inegável que, em se tratando de governo, educação, saúde e educação, estamos há anos-luz de muitos países, mas, não menos verdade, é que nós acreditamos pouco no Brasil. Como promessa é dívida, não entrarei em discussões político-ideológicas, uma vez que somente gostaria de destacar o quanto esse sentimento de pequenez me assusta. Por outro lado, curiosamente, experimente perguntar a um estrangeiro, por exemplo, como ele vê o Brasil. Ainda que o leitor obtenha uma resposta-clichê do tipo samba/mulheres/ carnaval, atrevo-me a dizer que os aspectos negativos e degradantes originam-se, na maioria dos casos, dos nativos e não dos estrangeiros, os quais, também sem adentrar o campo das generalizações, falam sobre “as terras do sul” com respeito e com um sorriso no rosto. Não sou especialista na área e, sinceramen-

te, não sei se esse complexo de inferioridade relaciona-se à nossa história de país colonizado ou se resume a uma mera autodepreciação de cunho um tanto quanto masoquista. De qualquer forma, aprendi a ver com outros olhos o que antes nem mesmo enxergava. Se um país limitado em recursos naturais como a Alemanha consegue reciclar seu próprio lixo, por que nós, em nossa abundância cantada em verso e prosa, não seríamos capazes? Se os alemães, com um inverno longo e rigoroso, além de um histórico de guerras e destruição no seu currículo, não têm piedade de si mesmo, acredito poética e racionalmente que podemos, do mesmo modo, superar inúmeros problemas, inclusive toda essa complexidade, ambigua-

mente falando, a que me refiro. O que não faz sentido é dar a volta ao mundo, elogiar as ruas limpas do terreno do “outro” e, ao pisar em terras brasileiras, jogar lixo pela janela do carro, só porque, por lá, nada vale a pena. Tenho aprendido coisas outrora inimagináveis a respeito do meu país, como a não reclamar do calor, das chuvas de verão e do barulho das festas. Gostaria ainda de dizer que, afinal, a diferença está, muitas vezes, transvestida na amarga ilusão do melhor ou pior, conceitos perigosamente estigmatizados. Enfim, contrapondo duas realidades tão distintas é possível igualarmo-nos ao que nos resta ser, humanos imperfeitos e bonitos por natureza, sem mais nem menos.

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CONTO ETÉREO

Asas

Por Márcia Tiburi Cigarro aceso é tempo para pensar. Coisa que não deixo que me roubem no meio desse caminho de palavras espalhadas pelo chão. Na bolsa, espaço para estrelas sem destino. Já me roubaram tudo, a ampulheta que controla o futuro, meu corpo, cílios postiços, meus olhos piscando. Sigo de salto alto no pé direito, descalço é o esquerdo. Me doem as costas, as coxas, a unha. Um soco rasgou-me a maçã, sujando de sangue a blusa de malha. Ficou a segunda pele mais fácil de lavar. Meus seios ardem como queimados. Deve ter sido o susto. Às vezes, chegam exigindo dinheiro. Nunca é o sexo, cujo perigo eles conhecem. Esta noite, só o que queriam era olhar-me sem olhos. O que me dói, no entanto, é a falta de Agnes. Agnes era a solidão que me faltava. Uma conquista verdadeira, como disse a ela quando

nosso guarda-chuva foi devorado pelo vento e pude tocar em seus braços miúdos, as costas tesas, aqueles cabelos de luz. Eu a esperava na saída da fábrica no fim da madrugada, acompanhava-a pela rua, carregávamos juntas os dias, as noites, todos os segredos. De sua língua, surgia ora um gosto, ora um desgosto. Eu só escutava. Agnes dizia que meus pensamentos vinham de nuvens contadas. Me pedia um dinheiro qualquer para comprar pão, falando dos filhos, do marido, do pai doente. O salário não dava para o mínimo. Eu acudia com meu pouco, que era muito pouco, menos, coisa nenhuma. Ela agradecia escondendo o que sabia. Não ficava bem andar ao meu lado. Perguntou-me uma única vez se eu fazia programa. Eu só faço tricô, menti. E essa voz tão forte, e essa barba que cresce, e esses pés enormes? Sentia-me a vovó da Chapeuzinho

explicando-lhe que meu corpo era todo, era inteiro, um casal completo a ocupar um mesmo lugar no espaço. Pedia-me que eu mostrasse, mas eu tinha vergonha de ficar nu diante daquela falta de maldade. Uma dia ela veria apenas as asas, dizia, prometendo o mundo. Ela silenciava tentando ouvir o som dos pássaros a despertar a cidade. Andava comigo até o portão e seguia uns cinquenta metros adiante, desaparecendo na entrada do arvoredo. Esperei na porta da fábrica por dias. Ela nunca mais apareceu. Roubaram-me um pouco a cada dia, o que eu tinha e o que não tinha. Me roubaram também Agnes. Me pergunto o que farei agora, quando as margens dessa rua se tornam tão estreitas. Tive a ideia de subir no morro. Voarei para bem longe. Agnes verá as asas. Saberá, como eu sei, que tudo vai ficar bem. Conto originalmente publicado no blog da autora: http://filosofiacinza.wordpress.com/

POEsIA DE POEsIA

Por Bernardo G.B. Nogueira - Outono Flor, porque você é mesmo uma flor. Como eu quero ver todo dia essa flor. Chamar flor, e mesmo que não seja atendido com outra voz, que seja flor em silêncio. Porque até sem falar ainda é flor, porque flor não precisa falar, só ser flor mesmo já está bom, porque o cheiro da flor já diz tanta coisa que se ela ainda falasse iria conquistar o mundo. E essa coisa de conquistar mundo também não passa pela cabeça de uma flor. O mundo é ela mesma e não teria razão para querer conquistar a si mesma. E também porque o mundo já está cheio de pessoas que querem conquistá-lo. Porque flor que se preze não fica com acaso por causa de um mundinho qualquer, no máximo, deixa um rastro de cheiro e logo volta à sua formosura e desdém em relação ao mundo. Porque o mundo é que precisa conquistar a flor, não é? Sem o mundo ela ainda é a mais bela flor, mas sem ela o mundo nem tem mais cor. Porque ainda que mundo houvesse sem flor, ninguém ousaria pensar que não era um mundo menor pela falta da flor. Porque também ela simplesmente brota no campo ou no jardim e depois fica a deixar os outros apaixonados por e através dela. Porque o amor sai de suas pétalas e toma o nosso olhar, e “ai” de quem não se curva diante da flor, sai espinhado. Porque ela é brava também, como tem que

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Flor

ser tudo que é imprescindível. Nem dá para se importar quando a gente erra o caminho a pensar na flor. Aliás, acabo de descobrir outra face da flor, ela serve para desviar caminhos. E como seria essa vida sem os caminhos desviados?, iríamos todos para o mesmo rumo e sem sequer ver uma flor ou mesmo tê-la em mente. Nosso pensamento além de tudo depende da flor, porque sem ela seria como não precisar levantar-se da cama ou abrir os olhos. Seria chato abrir os olhos e não ver a flor, e é impossível viver sem que tenha uma flor. E essa flor, também é muito misteriosa, porque tem a cada primavera uma pétala que não se viu na outra, e aí ficamos apaixonados sempre e a cada primavera pelas novas pétalas e pelo cheiro novo que aparece sempre e mais forte de manhã. Além de tudo, as manhãs também só têm todo esse charme porque as flores abrem um sorriso para elas. Porque sem flor também não há manhã que aguente acordar todo dia. E os dias só tem alguma chance de sobreviver, se porventura tiverem dentro de seus minutos, longos momentos em dedicação à flor, porque senão ele vai ficar tão vazio que logo cansará e ficará a implorar para que venha logo a noite. Porque a noite já se rendeu à flor, ela deixa tudo mais escuro para que o cheiro da flor possa ser sentido de maneira mais clara. A noite é escura para que os odores da flor possam passear por entre ela

sem serem percebidos. É porque a flor é também uma forma de existir quase enigmática. Ela não fica por aí se mostrando para qualquer. Tem que ter olhos e olfato sensível, senão não vê, senão não flutua e não sente. Daí que para um dia perceber o que uma flor quer dizer, realmente é preciso mais que um olhar apurado e um ouvido aguçado. Tem mesmo é que largar de lado a razão. É precisamente por causa disso que a flor aparece. Porque ela é também irracional e prefere um louco a roubá-la do que um são que quer comprá-la. Porque ela não se vende. E é por isso que em algumas vezes ganha-se flor sem ganhar. De vez em quando a ornamentação com flor fica parecendo uma coisa cheia de nada e sobrando tudo. Isso é também pela face subversiva da flor. Ela aparece quando o relógio não interessa e quando o horário já foi perdido. Quando a grade da casa é grande ou quando o muro é alto. Porque para chegar perto tem que ter insanidade de poeta e toda a falta de medo e razão que só quem é apaixonado por uma flor poderia ter. E toda essa aventura da vida só tem sentido se no fim do arco-íris tiver uma flor à sua espera, porque se você não colorir o caminho, ele não será arco-íris, e muito menos terá uma flor ao final à sua espera. Porque flor não espera e arco-íris não existe. Só existe sonho e só existe criação. Quem souber pintar invente e quem souber plantar que viva. Porque flor...

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conto da existência

Saudade ocre Por Tânia Cristina Dias* Subiu no muro para ver o passado. Depois do imenso esforço investido, a fim de alçar o canto, onde ficava o veio da parede do barracão e o muro, ficou a contemplar a fileira de casas baixas, atarracadas, agarradas ao chão. O peito arfava, subia e descia em descompasso. O quadrado de 8 casas siamesas, o quintal único, o muro alto e a ramificação de outras casas pequenas, grandes e médias que margeavam a rua, até o cume da mesma, finalizando o quarteirão. Início do dia, silêncio ainda, a neblina começava a dissipar. As cores do dia se definiam lentamente, entre o laranja e o verde, o dia ocre, e ele, a observar cada resto do passado esquecido em algum canto. O balde verde, guardado debaixo do tanque, a tela do galinheiro e o olhar atento e redondo das galinhas, à caça de alguma formiga, minhoca ou aranha, uma porta que se abre, a janela bate suas abas, o ar varrendo o chão da pequena casa. Uma e outra criança chora, desperta de um sonho a espera do leite morno e do colo da mãe. Tudo é início, o café, o bule, o pão, o berço. Um homem sai para o trabalho, como ele fazia, a despedida no portão, o beijo da esposa, a criança com o nariz de catarros e cabelos amarelos enevoados a balançar as mãos da janela. Os filhos, os filhos. Por eles o esforço diário, as idas e vindas, o cartão de ponto, a cesta de Natal, a família entrelaçando o fio do macarrão às aventuras de cada um, tenros a acreditar na façanha do vôo, do tatu no buraco, o molho grosso que a esposa fez com tanto zelo, a tosse seca da avó no canto da cozinha, os cheiros subindo de cada canto, os risos, o jantar. Vestir os pijamas, alguns curtos outros cumpridos, escovar os dentes, deitar um por um, a coberta até o pescoço, o beijo no rosto, coçar as orelhas de um e outro, as histórias do serviço a embalar os sonhos dos filhos. Todos dormem, ele se levanta, estende a mão para a esposa, aproximam da cama da avó, beijam lhe a fronte e rumam para o outro quarto - o dos adultos. Arrematam mais um dia, oram, graças à Deus. Dormem. E de novo, a esperança da manhã, do dia todo a se fazer, os vizinhos, tantos jeitos e formas, histórias únicas e se costurar de porta em porta, de casa em casa – vila. Tamanha lembrança lhe arromba cada canto do peito, feito a primeira derrubada do muro, deste mesmo que agora o sustenta. Os

detalhes são muitos e foi bem assim. Uma pequena infiltração, boba de início, sorrateira de um banheiro suspeito, constatada quando já era tarde, teve que ser posto ao chão. A casa da Aparecida, que apossou do muro vizinho, ficou exposta por algumas semanas, feito um teatro de marionetes, do canto de cá do terreno era possível ver a cozinha, o banheiro e um dos quartos. Os vizinhos eram assistidos, pelos moradores da vila, desde a hora do café, até a chegada do Geraldo. Magro, alto, alcoólatra, desempregado a mais de 6 meses. Nesta hora, formava-se uma fileira de crianças que sentavam no chão batido para assistir. Vez por outra, corria um dos pequenos a puxar a cortina improvisada do banheiro, na esperança de um personagem na privada ou no banho. Por conta de tamanha exposição, a briga foi feita, discórdia tremenda. Do dono do muro que descobrira a infiltração e dos agregados, que se sentiram desrespeitados, aviltados, assim descobertos. Depois de vários efes e erres bem ditos, à medida que o muro subia, tijolo a tijolo, cada farpa era posta de lado e no final, já eram de novo vizinhos, amigos, cooperativos. Ele, do muro, atento ao que passava por fora e por dentro viu dona Joaninha surgir através da porta da cozinha, trazia uma pequena bacia com roupas limpas e torcidas, estendeu uma a uma, olhou de soslaio para o muro, mas não viu que era observada. Quanto tempo não via a dona Joana e suas três filhas, meninas pequenas e caladas; que mais tarde saíram em revoada, uma a uma, feito as roupas retiradas, já secas do varal e como os filhos sempre fazem quando as asas já estão muito grandes. As cores da casas, a cada quarto de hora, eram mais evidentes, o rosa, amarelo, o azul e o dia ainda ocre, o vestígio das cores, matizes de uma antiga tela. Aturdido em meio às lembranças, algo o desperta da letargia que se encontra, e que de tão entregue não observou o tempo despendido entre a reforma do muro e aquele dia. Escutou a sirene, primeiro longe e depois bem alto, a encher-lhe os ouvidos, em seguida a visão a tremeluzir vermelha. Próximo ao carro do asilo, alguém lá embaixo grita: Cuidado, senão ele se assusta e cai. E uma voz conhecida recomenda aflita: - Vô, não mexe, a gente vai tirar você daí. O velho ainda não entende, vê as casas evaporando, a querida vila etérea, alguns moradores dos prédios, fazem fila nas minúsculas varandas suspensas, para assistirem ao resgate. Alguns fotografam, passo a passo, o aconteci-

do, em seus celulares. O bombeiro avança da escada e o enlaça por trás. Ele sente-se fisgado, feito um pequeno peixe do aquário, sem a mínima possibilidade de se defender. Suspense, enquanto a escada encurta, até que cheguem com ele ao chão. A filha que agora há pouco lhe acenava da janela com o nariz de catarros o repreende, e lhe aparece com os cabelos cumpridos e escuros. Vestida em um penhoar colocado sobre a camisola às pressas, ainda conserva no rosto, vestígios do sono desfeito. O tempo, o maldito tempo, como corre... - Pai, pai, o senhor está bem? O velho balança a cabeça em negativa, os cabelos ralos e brancos saboreiam o vento, balbucia algumas palavras desconexas, mas não consegue dizer tudo que lhe passa no peito. E, não tem respostas, já que ainda se pergunta, porque todos se foram e o deixaram. Onde estão as casas da vila tão cheias de lembranças? - Filha, é preciso ver esse muro...a infiltração... A filha, em parte aliviada e pelas rebarbas, mordida de raiva, emenda: - Pai, assim está agindo feito louco, olha o que me faz fazer? - Mas, eu não fiz nada, só queria olhar do muro... Um homem de branco se aproxima. As lembranças vão pouco a pouco se apagando, a esposa, o macarrão cumprido enrolado no garfo, enrolando, embolando, a dona Joaninha, o laranja, o verde, o teatro de marionetes, todos mortos, restaram somente o muro em lascas, ele e um antigo dia ocre a lhe confundir a realidade. O velho, da maca, segura a mão da filha, antes que o ponham na ambulância. A filha chora: - Pai... por quê? A neta enrodilha as pernas da mãe e segura a chupeta. O velho olha a menina e esboça um sorriso. A pequena esconde o rosto com medo. E ele queria, apenas segurar a filha, mais uma vez no colo, e soprar os seus joelhos e acalmá-la do tombo. - Desculpa filha. - Olha o que me fez fazer, pai, que mania absurda! O pai vasculha os olhos da filha e pensou dizer que lembrava do tempo em que os velhos tossiam nos cantos da cozinha, participavam do jantar e da vida dos netos, mas apenas balbucia: - Absurdo é um dia com essa cor filha... * contista

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Todos os tempos acontecem agora, ou, Walter Benjamin e a força da memória Por José Luiz Quadros de Magalhães Existimos em nossa memória. O que é memória? Rubem Alves escreve que existem memórias sem vida própria (aquilo que a gente decora para fazer a prova) e memória com vida própria, que aparece quando menos esperamos, que se manifesta sem nossa intenção, a partir de uma imagem, um cheiro, uma situação. Memória é onde se guarda as coisas do passado, diria. Entretanto, com Benjamin, aprendemos que cada vez que lembramos, esta lembrança ocorre em uma situação diferente, e para uma pessoa diferente, uma vez que mudamos, mesmo que não queiramos. Assim, as memórias são muitas, são milhões, bilhões, infinitas, pois cada um guarda uma memória, e a memória vive, muda com a gente. Guimarães Rosa diz que a “estória não quer tornar-se história” e a mesma revolta de Fernando Pessoa contra os gramáticos, também toma conta de mim. Agora vêm os donos da forma e dizem que não existe mais “estória”, tudo tornou-se “história”! Ora, ninguém pode querer ser dono da linguagem: como esses caras querem acabar com a estória? Isto é sem dúvida muito autoritário. Rubem Alves nos diz que “a história acontece no tempo que aconteceu e não acontece mais. A estória mora no tempo que não aconteceu para que aconteça sempre”. Assim podemos pensar a his(es)tória para Benjamin. Os caras no poder escrevem a história oficial, linear, lógica, contada por eles, morta, numa sucessão de nomes e fatos em uma lógica linear. Para nós, diante desta história oficial, como desejam os que estão no poder, só nos resta reproduzir os fatos, decorar as datas e os nomes, e repeti-los. Benjamin nos chama à revolução. A his(es)tória nos pertence. A his(es)tória é memória viva, múltipla, plural e pertence a todos nós e a cada um de nós. Assim, visitar as múltiplas memórias é um recontar permanente da his(es)tória (em um conceito quântico da história e estória que se fundem em um terceiro incluído). Alias, em Benjamin, temos um conceito quântico de história: todos os tempos acontecem agora, e a maneira como contamos nossa his(es)tória, da forma como construímos coletivamente nossa memória, dependerá o nosso futuro. O futuro e o passado acontecem agora, na “agoridade” revolucionária de Benjamin, quando com coragem tomamos a palavra e construímos nosso passado a partir da construção de nossa his(es)tória memória, coletiva, dinâmica e plural, direcionando ou redirecionando o nosso futuro. Benjamin nos mostrou que é possível sim, como propõe a física quântica, romper com os conceitos lineares de tempo e espaço. É possível viajar no tempo, isto está no nosso alcance: todos os tempos acontecem agora! [1] “Agoridade” é a permanecia infinita do agora, a única coisa que existe(?) esta interrogação é a dúvida que também deve ser nossa companheira de viagem, sempre, dolorosa mas amiga.

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PsICANALIsE POLITICA

Crise de identidade em plena modernidade Por Tatiana Ribeiro de Souza A construção da identidade é fenômeno essencialmente histórico e, por isso, reflete não apenas o lugar ocupado pelo sujeito em uma dada sociedade, mas a própria visão de mundo dessa sociedade. Quando elegemos a modernidade como divisor de águas, para uma análise das identidades, percebemos facilmente que o sujeito pré-moderno resultava de uma combinação inevitável do seu Eu com a sociedade na qual vivia. Dessa maneira, o núcleo interior do sujeito, apenas quando somado à sua relação com as outras pessoas, era formador da sua identidade. Embora existisse um Eu real (essência interior), a identidade era construída a partir da interseção entre esse Eu e a sociedade. De maneira oposta, a modernidade investiu, sob os auspícios da razão iluminista (sapere aude!), na concepção individualista do sujeito, fazendo do centro essencial do Eu sua própria identidade. Contemporânea à formação dos primeiros Estados europeus, a identidade iluminista poderia ter sido uma ameaça á potestade dos monarcas, que desempenhavam a difícil tarefa de manter a unidade entre diferentes povos que integravam o território sob seu governo. A solução mais bem sucedida para esse desafio, de manter a autoridade do príncipe sobre a multiplicidade de identidades existentes no interior dos estados recém-criados, foi a da cultura nacional. Para isso foram acionadas diversas estratégias representacionais (brasão, bandeira, hino, herói, passado, idioma ou religião comuns), a fim de construir o senso comum sobre o pertencimento a uma determinada comunidade, o que explica por que a narrativa da cultura nacional é quase sempre contada com ênfase nas origens, na existência de um povo original, na continuidade, na tradição ou mesmo em um mito fundacional. Ao contrário do que pode parecer, os Estados contemporâneos (mesmo os europeus) são praticamente todos híbridos culturalmente, como é o caso dos ingleses (formados por célticos, romanos, saxões, vikings e normandos), dos franceses (formados por célticos, ibéricos e germânicos), dos alemães (formados por germânicos, célticos e eslavos) e os

italianos (formados por gauleses, etruscos, pelagianos e gregos). Portanto, a cultura nacional não passa do desejo de viver em conjunto, para perpetuação de uma herança cultural quase inteiramente forjada. Na medida em que constatamos que as identidades são formadas e transformadas no interior de representação, percebemos que a nação não tem sido apenas uma entidade política, mas um sistema de representação com poder de gerar um sentimento de identidade e lealdade. Nas palavras de Hall (2004, p. 59), “Não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à mesma e grande família nacional”. Assim, a cultura nacional atuou na modernidade como verdadeira estrutura de poder cultural, constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Aquilo que aqui chamamos de “crise de identidade em plena modernidade” corresponde essencialmente ao declínio das velhas identidades, do “sujeito unificado”, que emergiu em um momento particular, mas que revela sinais de esgotamento. Se a modernidade proporcionou o nascimento do sujeito em sua individualidade, e a identidade unificada pelo discurso de nacionalidade, é muito provável que seja também responsável pela morte desse sujeito/indivíduo/nacional, o que para alguns autores corresponde a traços do que pode se chamar de “pós-modernidade”. Se assim considerarmos, esse sujeito “pós-moderno” emerge como resultado da crise da identidade iluminista, causada principalmente pelas mudanças no quadro de referência, que dava aos indivíduos modernos uma ancoragem estável no mundo social. O sujeito pós-moderno, ao contrário, não possui uma identidade fixa, essencial ou permanente, mas assume diferentes identidades em diferentes momentos. E se as identidades têm mudado de acordo com a forma como sujeito é interpelado ou representado, essa nossa crise de identidade sinaliza para uma identificação não automática, permitindo uma constante recriação do sujeito.

JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 1 | ABRIL A JUNHO DE 2013


Literatura pra sempre

A contemporaneidade de Nelson Rodrigues Por Elenilson Nascimento Bem-vindos ao universo rodriguiano! Em 23/08, passado, o grande Nelson Rodrigues, meu exemplo de escritor maior, completaria 100 anos se estivesse vivo. Mas o autor de “Vestido de Noiva”, “Doroteia”, “A Mulher Sem Pecado”, “O Beijo no Asfalto”, “Bonitinha, mas Ordinária” e outros textos imperdíveis (*foram 17 peças no total – sem contar as crônicas geniais eternizadas na coluna “A Vida Como Ela É...”) permanece muito, muito, muito atual. Com seu olhar ao mesmo tempo trágico e épico, o centenário dramaturgo nunca deixou de ser nosso contemporâneo. Todas as vezes que vou escrever alguma coisa, por exemplo, sempre leio algum texto do Nelson, olho alguma foto sua nos meus arquivos ou no Google, vejo trechos de algum filme ou de algum documentário como se isso, por si, fosse capaz de me dá um pedaço da unha do dedo do pé do talento desse grande artista. Da precoce carreira jornalística nos anos 30 à fama que lhe rende homenagens até hoje, assim como anda acontecendo com Jorge Amado, em que se comemora seu centenário, a vida e a carreira de Nelson percorreram a história brasileira no século 20. Foi ele quem criou o teatro moderno nacional, em 1943, quem mais exaltou o futebol da geração de Pelé nos anos 60, quem conquistou inimizades por se alinhar à ditadura dos anos 1970 e o responsável por me fazer ter gosto pela literatura. Jornalista, escritor, cronista, apaixonado por futebol e por narrações de traições ambientadas no subúrbio carioca, Nelson é o maior especialista da alma do brasileiro suburbano. Com sua obra, suas frases chocantes, suas controvérsias e a própria biografia, inscreveu-se como um dos polemistas mais bem-humorados

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nesse país de falsa alegria, o hiperbólico e fanático cronista do futebol e nosso maior dramaturgo. E apesar de nunca ter sido agraciado como imortal da Academia de Letras, como se isso fizesse alguma diferença, Nelson conquistou seu lugar na literatura nacional com seus textos, crônicas esportivas, pseudônimos, produzidos em sua famosa máquina de escrever Remington Portable. Eu ainda vou ter uma dessa! O autor que, em vida, conheceu a glória e a maldição, o aplauso e a agressão e, no fim, o desprezo e o esquecimento, foi reabilitado há 20 anos e, hoje, tornou-se aquilo que ele mais temia: uma unanimidade nacional. Se bem que eu também não acredito em unanimidades, principalmente num país de ignorantes. Só depois de sua morte, no entanto, em 1980, passaria a ser um raro caso de unanimidade inteligente (o que, para ele, era um oxímoro), com montagens do diretor Antunes Filho para suas peças, o estudo de sua obra pelo crítico Sábato Magaldi e, em 1992, o lançamento da biografia “O Anjo Pornográfico”, do jornalista Ruy Castro. Desde então, Nelson foi rediscutido, remontado, relançado. Mas ganhou mesmo o gosto popular quando a Globo produziu a série “A Vida Como Ela É”, dirigida por Daniel Filho, e apresentada em horário nobre no “Fantástico”. Influência para escritores, jornalistas, cineastas, dramaturgos e cronistas, Nelson comemora 100 anos sem ter envelhecido. Nos momentos transcendentais que pontuam suas histórias de traições e mortes, no retrato cru que fez da sociedade brasi-

leira, nos temas e personagens que povoam sua obra, a única marca do tempo é a da eterna atualidade. Muitas homenagens lhe foram dedicadas em seu centenário de nascimento – e ele merece todas. Mas coube ao SESI-SP, com o projeto “Nelson Rodrigues 100 anos”, a programação que mostrou o autor por inteiro – envolvendo teatro, exposição, peças de teatro, relançamentos de obras, tradução para outras línguas, lançamento da nova versão do filme “Bonitinha, mas Ordinária”, dirigido por Moacyr Góes e estrelado pela “empreguete” Leandra Leal, debates e oficinas, entre outras ações. “Todo o autor é autobiográfico e eu sou também. O que acontece na minha obra são variações infinitas do que aconteceu na minha vida”, disse em entrevista ao JT em 1974. Se em outro tempo, em que o Brasil era mais imemorial, era a época em que as mães e as viúvas tinham furores de Sarah Bernhardt, a célebre atriz francesa do século 19; onde as moças na rua, as datilógrafas, as professoras, as colegiais andavam pelas calçadas com um charme de Joana d’Arc, a sabedoria ácida do dramaturgo, romancista, jornalista, cronista esportivo, autor de folhetim, de roteiro de novela e até de consultório sentimental fez acordar os demônios, imagina agora onde o próprio tempo é apenas uma convenção que não existe nem para o craque do futebol, nem para o marido traído e nem para a mulher insaciável no coletivo cheio. Viva Nelson Rodrigues sempre! Venha fazer o seu seguro com quem entende de seguros. Consulte-nos!

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conto de imaginar

De um azul que não se acredita

Por Carlos Renatto

Não entro do mar. Levanto-me todas as manhãs e vejo o mar. Logo cedo há dezenas de pessoas caminhando na areia ou na calçada. O sol baixo, o vento brando, o mar calmo estimula estas pessoas. Às vezes tenho vontade de entrar em suas águas. Sentir o sal no corpo, o sol na pele, mas limito-me a acender um cigarro. Ao acordar a primeira coisa que vejo é o mar, o mar e suas ondas e ao longe as jangadas passando perto de grandes cargueiros. Perto é o que me parece, o horizonte me confunde a essa hora. Então imagino que um dia eu possa me juntar aos pescadores e acompanha-los numa pescaria, penso isso enquanto fumo, mas limito-me a esperar ferver a água do café. Todas as manhãs enquanto tomo meu café, vejo passar correndo Seu Ulisses, logo atrás vem o Sofista, seu cachorro mal humorado. Ele me convida a correr, mas limito-me a sorrir, contra a vontade, e acenar com a caneca, pois a outra mão está no bolso do roupão e tenho preguiça de tirá-la só para cumprimentá-lo. Sei que o Seu Ulisses entra no mar, ele e o Sofista, então às vezes penso: - “como deve ser bom entrar no mar”. Mas limito-me a sentar na varanda do meu apartamento e olhar o vai e vem das ondas e dos banhistas. Esta semana um rapaz foi pego por um tubarão, só a cabeça dele foi encontrada dois dias depois bem aqui em frente. Então pensei: - “nem tão lon-

Tenho tanto sentimento

O cúmplice

Tenho tanto sentimento Que é frequente persuadir-me De que sou sentimental, Mas reconheço, ao medir-me, Que tudo isso é pensamento, Que não senti afinal. Temos, todos que vivemos, Uma vida que é vivida E outra vida que é pensada, E a única vida que temos É essa que é dividida Entre a verdadeira e a errada. Qual porém é a verdadeira E qual errada, ninguém Nos saberá explicar; E vivemos de maneira Que a vida que a gente tem É a que tem que pensar. Fernando Pessoa, in “Cancioneiro

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ge ele estava, e para um tubarão a praia deve ser um prato cheio”. Por essas e outras nunca entro no mar. Daqui de cima o mar é de um azul que não se acredita, no inverno chego a confundi-lo com o céu e chego a querer entrar em suas águas, mas aí me vem a imagem do tubarão e de como o sol queima a pele e de como me incomoda a areia, então fumo um cigarro e me distraio criando histórias para cada navio que parte no horizonte. Quando acordo de madrugada, pouco vejo do mar. A orla não me interessa, não há pessoas e as ondas me dão náuseas, mas se é lua cheia, vejo as pequenas ondas que se formam mar adentro. Então acendo um cigarro, mas não tomo café. Café a esta hora me tira o sono e eu gosto de acordar cedo e ver os banhistas pela manhã e ver o Seu Ulisses correndo logo cedo. Ver um homem de 60 anos correr logo pela manhã me dá ânimo para pensar em um dia, talvez, correr também, e quem sabe até entrar no mar. Às vezes, vejo Seu Ulisses voltando de sua corrida. Ele e o Sofista, seu cachorro mal encarado. Então aceno com a caneca de café como a dizer: - “sigam sem mim!”. E ele se vai, ele e o Sofista. Às vezes, penso na possibilidade do Sofista ser comido pelo mesmo tubarão que comeu o surfista, então imagino que sem o Sofista o Seu Ulisses quereria que eu o acompanhasse, aí não penso mais, não suportaria a idéia de ter que substituir um cachorro. Embora queira muito, um dia, entrar no mar.

Crucificam-me e eu tenho de ser a cruz e os pregos. Estendem-me a taça e eu tenho de ser a cicuta. Enganam-me e eu tenho de ser a mentira. Incendeiam-me e eu tenho de ser o inferno. Tenho de louvar e de agradecer cada instante do tempo. O meu alimento é todas as coisas. O peso exacto do universo, a humilhação, o júbilo. Tenho de justificar o que me fere. Não importa a minha felicidade ou infelicidade. Sou o poeta. Jorge Luis Borges, in “A Cifra” Tradução de Fernando Pinto do Amaral

Hibernação É inverno Faz frio Estou quieto, imóvel Estou preso Parece um inferno Preso em mim Dentro de mim Frio que dói Corrói Destrói Frio dentro de mim Frio fora de mim Não desperto Espero Emerson Luiz de Castro

Quando todos partirem quando todos partirem eu vou ficar sem muros e o silêncio dos cachorros vai desabar sobre mim penso nas ladainhas a rezar nos bancos que serão meus assentos e na ausência das aves as pedras do meu olho vão cair nos rios e a minha mão vai moer as cordas do tempo pela noite minhas facas saberão das noites a cortar dos bichos a saber e do meu corpo desfraldado as carnes não deixarão rastros e o ferro das ruínas não caberá no poema. quando o mundo acabar vou mutilar meus braços meu hálito, meu desacerto. quando o mundo acabar vou desatar a glória dos deuses correntes: todos os diabos vão ficar nos cantos das vias destratadas os sóis serão banidos e o começo de tudo estará pronto (cozido, costurado, morto) no adro do tempo nem o meu coração tremido vai bater. Romério Rômulo - poeta

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http://romerioromulo.wordpress.com/


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