plural JORNAL CULTURAL
Arquivo pessoal
NÚMERO 10 | JUNHO A AGOSTO DE 2015 | bH | MG
dimensões
As entre o Direito e a arte José Luiz Quadros de Magalhães fala sobre política, ideologia, racionalidade moderna e sobre o Estado Plurinacional. Uma viagem com muitos questionamentos, uma verdadeira reflexão sobre o ontem, o hoje e o amanhã. José Quadros tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Internacional, Teoria do Estado e da Constituição, atuando principalmente nos seguintes temas: plurinacionalidade, diversidade, democracia, federalismo, direitos humanos, poder, ideologia e constituição.
iSSN 2319-0000
editorial
Sonho que se sonho junto é aquarela Por Bernardo G.B. Nogueira Mais uma vez a folha em branco. A folha em branco é, por certo, a confidente mais cruel. Nela derramamos nossas mazelas literárias e existenciais. Enquanto ela, inerte, apenas se delicia com letras que transam a formar palavras. A folha em branco é o fim das letras. As letras nascem nela e jazem também ali. Defuntas do autor e nascituras do leitor. O papel do Jornal Plural não é branco. Por certo, a tela do computador de nossos amigos que escrevem aqui deve ser branca também. Estamos, até o início da escrita, condenados à cegueira de Saramago: branca. De outro lado, o leitor, colorido, torna arco-íris nosso plural. Escrever é alteridade. O leitor, de seu lado, também é sempre escritor, na medida que aceita nosso convite para colaborar na construção de sua existenciação. Tem um cadinho de imaginação que faz o caldo tomar gosto. Quando se imagina, então a cor é infinita. Como são infinitos os brancos. Todos eles à espera da cor. O amor, portanto, é colorido, igual ao amanhã, posto que misturas. Há alguns meses estamos a nos misturar por aqui. Pelo Plural misturamos sentimentos, razões, desrazões, construções e desconstruções. Aquela angústia da folha em branco é deixada para trás com a colorância do encontro. Não há muito o que dizer. São retinas de menos para sentimentos demais. São dez edições coloridas de sonhos. Em jeito de aquarela, agradeço a todos que destinam tempos de si para construir cores em conjunto. Àqueles que passaram pelo Plural, pois que estamos retocados de vós. Aos que irão se sujar aqui. É assim, não dá para atravessar sem ficar colorido. Infanto-juvenil, com dez edições, estamos atravessados de sonhos... Teen-temos!!!
expediente JORNAL CULTURAL PLURAL
Projeto de Extensão Direito e Cultura da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva Editor: Bernardo G.B. Nogueira APOIO TÉCNICO: Núcleo de Publicações Acadêmicas Newton Paiva: Projeto Gráfico, Editora de Arte e Diagramação: Helô Costa - Registro Profissional: 127/MG
Contatos, sugestões e anúncios: jornalplural@yahoo.com.br
Os textos são de inteira responsabilidade dos seus autores.
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Saber é sentir
Mas o que é competência? Por Emerson Luiz de Castro Competência é a capacidade pessoal de articular o saber aprender, o saber fazer, o saber ser e o saber conviver. Esses quatro saberes devem ser utilizados em situações concretas do mundo do trabalho, nas atividades cotidianas de todos os profissionais em qualquer nível em que se encontrem. O saber aprender é a capacidade de aprendizagem constante, importante em uma época onde as novas tecnologias rompem a cada dia a forma como atuamos no mundo. Por isso desenvolver a capacidade de aprender é poder manter-se atualizado nas novas tecnologias e novos conhecimentos que surgem. Por isso a expressão “educação continuada” ou “educação por toda a vida” é tão utilizada. O saber fazer nos possibilita a aplicação do conhecimento que apreendemos e utilizamos no nosso dia a dia em nossas atividades profissionais. É a prática da teoria. Muitos profissionais desenvolvem muito bem a habilidade prática mas não dominam a base teórica, e o contrário também é verdadeiro, muitos profissionais não conseguem aplicar na prática aquilo que eles dominam tão bem na teoria. Já o saber ser e o saber conviver nos possibilita a convivência social dentro de princípios e valores sociais. É o que nos faz respeitar e sermos respeitados, não só pelos valores individuais, mas também os valores sociais e organizacionais. Estes saberes norteiam o nosso comportamento e a nossa atitude perante às inúmeras situações que vivenciamos ao longo das nossas carreiras e da nossa vida profissional. E agora conhecendo o que é competência, precisamos traduzir isso de forma prática. Em síntese competência é a reunião em um indivíduo de quatro elementos: co-
nhecimento, habilidades, atitudes e valores. O conjunto desses elementos é conhecido por meio da sigla C.H.A.V. O importante em dominar o conceito de competência é que podemos a partir da sua aplicação elaborar um plano de avaliação do nosso desempenho acadêmico e profissional e a partir dessa avaliação traçar um plano de ação para melhorá-lo. Identificando uma tarefa posso me avaliar se preciso, para desempenhá-la com êxito, de mais conhecimento, de mais prática ou se minha atitude perante aquela situação precisa ser revista. É claro que se minha tarefa é nova, será desenvolvida pela primeira vez, provavelmente precisarei desenvolver os quatro componentes. E isso é que é muito interessante, pois podemos aplicar em tudo, ou quase tudo, esse conceito e melhorarmos a cada dia nosso desempenho acadêmico e profissional. As organizações sabem que as soma das competências individuais de seus funcionários é que formarão a competência institucional, ou seja, a competência da empresa que é fundamental para ela ser competitiva no mercado. O conjunto dessas competências é o chamado capital intelectual da organização. Por isso não basta ter um único elemento da competência. Não é só saber, ou fazer, ou se comportar. É necessário apresentar todos. Um ponto muito relevante é que segundo os analistas de recursos humanos geralmente as pessoas são selecionadas pelas suas competências técnicas, ou seja, pelo o que conhecem e sabem fazer, e na maioria das vezes são desligadas por não apresentarem comportamento e atitudes desejadas. Assim, faça uma reflexão sobre suas competências, faça uma avaliação e procure melhorar sempre.
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POESiA, “MORADA” DO MUNDO
Dicionário particular – para uma crítica prático-poética do consumismo da linguagem (*) Por Márcia Tiburi Um filósofo alemão disse que poderíamos pensar toda a história da filosofia a partir de palavras. Talvez possamos pensar cada vida. Ou a vida em geral. As palavras fazem a história enquanto há uma história das palavras que não se escreve com letra maiúscula. O dicionário pode chegar perto dela. Assim como cada palavra conta sua própria história, da qual a etimologia é apenas o registro mais simples, uma biografia qualquer é feita de palavras. É que palavras permitem contar. Na falta de uma, inexiste a outra: faltam-nos palavras, falta-nos biografia. Ou temos biografias deturpadas por um uso indevido e interesseiro das palavras. Uma vida é feita de palavras que nos constituem sem que prestemos muita atenção nisso. Mais que signos, as palavras são materialidades, são corporeidades. Não nos conhecemos se desconhecemos as palavras de que somos feitos. Elas são como aquelas partes do corpo que só percebemos quando nos faltam. São essenciais, mas sua experiência só nos ocorre acidentalmente. Assim, uma criança que descobre o corpo, descobre a palavra que a ele se relaciona. Como o inesquecível extremo mágico da ação divina: Fiat Lux, ou duas palavras e se fez o mundo.
Marcia Tiburi, Caneta sobre papel e flor seca, 2015
Assim como há riqueza de palavras, há pobreza, há miserabilidade. Se a nomeação feita por Adão no Paraíso foi o tempo mais rico na prática das palavras que alimenta nosso imaginário quanto à sua potência, o consumismo da linguagem é o seu tempo mais pobre. Em nossos dias o consumismo é também o da linguagem pela falação à qual somos seduzidos. As palavras estão presentes também nos fatos não históricos que compõem o cotidiano. Amarram e truncam o cotidiano. Palavras proliferam como vírus, palavras voam como pássaros, palavras cortam como facas, desabam como pedras. Há um uso anormal das palavras. Elas sobram, como frutas. E, como frutas, apodrecem. Na falação, as palavras contam como dejetos.Ora, o dia a dia é feito de falação e seus restos. As palavras na condição de restos são usadas na prática como materiais úteis, nem sempre limpos. Há algo de virtual nas palavras, então elas são utensílios, ferramentas. Faz-se alguma coisa com elas. As profissões dependem delas. Quando o advogado fala com suas palavras conhecemos uma parte importante de sua vida. Do mesmo modo que o médico é feito de uma terminologia incompreensível, o profes-
sor de filosofia não é ninguém sem as palavras que usa para expressar-se. Se o jornalista nos assusta quando usa mal as palavras, porque ele parece mestre comparado a outros usuários dessas células de expressão que elas são, o cordelista encanta quem não conhece sua cultura de extrema atenção ao que é dito. Uma cultura poética é uma cultura da escuta. Sem a escuta está tudo perdido na vala comum dos dejetos linguísticos. Uma filosofia da expressão poderia nos fazer reencontrar as palavras que podemos falar, mas que precisamos escutar. Quem não presta atenção nas palavras não consegue chegar perto da poesia. Quantas vezes ela nos escapa. Nos escapa a própria vida. Ora, a poesia é o elo essencial entre a palavra e a vida. Uma leva à outra. Uma é o caminho, o método, para a outra. Uma filosofia da expressão sempre nos promete uma ética e uma política, a poesia nos dá imediatamente as duas coisas. A poesia está em falta no mundo porque perdemos a atenção com as palavras de que somos feitos. Como o Fabiano de Vidas Secas que não conseguia dizer o que poderia dizer. Quem lê as palavras de Graciliano Ramos sente a dor de Fabiano ao perceber que algo lhe
faltava. Esse algo, essa potência que lhe faltava, eram as palavras. Por não conhecer a forma e o conteúdo da fala expressiva, diferente dos tupinambás que o antropólogo francês encontrou na floresta, e que fingiram escrever alguma coisa, Fabiano era um homem sem poder. Que sabia o que lhe faltava sem, no entanto, conhecer o mecanismo que poderia emancipá-lo. E, sobretudo, por não saber nem mesmo fingir. Fabiano poderia ter dito palavrões, mas o abuso das palavras não teria resolvido seu problema. Os palavrões nos ajudam a cada vez que queremos expressar muito sem poder expressar tanto. Soam estranhos e, ao mesmo tempo, fundamentais, justamente por definirem, na impotência que se expressa, a expressão de algo inatingível. Uma filosofia da expressão poética precisaria incluir os palavrões e sua força estética e política. Palavrões gordos, sujos, feios, malvados como ogros, como zumbis, como crianças na rua. Uma filosofia da expressão poética exporia a nossa anatomia vernacular em seus excessos. Também os mais prazerosos. Uma parte essencial de nossa gramática existencial, isso tudo que é corpo.
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(1) Originalmente publicado na Revista Cult e gentilmente cedido pela autora.
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“Mentiras sinceras me interessam”
Liberdade para fazer a escolha certa Por Tatiana Ribeiro de Souza Somos chamados a ser livres! A ideia da liberdade habita o nosso imaginário e o discurso oficial. Defendemos uma sociedade livre, eleições livres, liberdade sexual, liberdade de escolha, e tantas outras liberdades, substantivando e adjetivando a cara ελευθερία (eleutheria) dos gregos. Se por um lado a origem grega da palavra liberdade nos remete à ‘ausência de limitações e coações’, por outro lado nos remete à ideia de poder, que nas democracias liberais é, pelo menos em tese, exercido pelo povo. Portanto, as democracias livres do Ocidente se sustentam sobre o argumento de que é o povo quem toma as decisões acerca do seu destino e são, por isso, inteiramente responsáveis pelo seu triunfo e pela sua desdita. O que não é revelado sobre as democracias liberais contemporâneas, e sobre o poder popular sobre o qual elas se sustentam, é que somos chamados a escolher, todavia não nos é dado o direito à ‘escolha errada’. O sistema econômico ao qual estamos submetidos, para ser autorreprodutivo, não permite escolhas antissistêmicas e por isso nos inunda de alternativas com relação a uma infinidade de coisas desimportantes, reservando às coisas importantes uma única alternativa. Mas o que seria do discurso da liberdade se tivéssemos uma única alternativa em relação às coisas consideradas importantes? É por isso que toda decisão importante para o sistema vem acompanhada de uma falsa alternativa, garantindo a retórica e a crença na liberdade e com isso legitimando o sistema. Tomemos como exemplo as recentes experiências eleitorais na Grécia, berço da palavra liberdade, como ressaltado anteriormente. Em janeiro de 2015 a co-
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ligação da esquerda radical Syriza venceu as eleições parlamentares, levando seu líder Alexis Tsipras ao governo do país, com um discurso de resistência às políticas econômicas de austeridade impostas pela União Europeia. Portanto, ao escolher o Syriza o povo grego mandou um recado ao sistema, por meio de sua representante, a chanceler alemã Ângela Merkel: não estamos dispostos a abrir mão das conquistas sociais para salvar o seu joguinho econômico. Muito bem, o povo manifestou a sua vontade, mas fez a escolha errada. Errada para o sistema. E quando isso acontece o próprio sistema encontra uma forma de deslegitimar a escolha ou simplesmente desconsiderá-la. A despeito da resistência dos gregos às propostas dos credores da dívida pública, os estados membros da UE continuaram pressionando o governo grego a tomar a única decisão considerada correta: aceitar o acordo de ajuste fiscal que havia sido proposto. O recado do sistema ao povo grego era: vocês são livres para escolherem desde que façam a escolha certa. Pressionado pelos tubarões da economia europeia, o Primeiro-Ministro Alexis Tsipras, eleito como representante do NÃO às políticas de austeridades, chamou mais uma vez o povo grego a escolher o destino do país, em um plebiscito realizado em julho de 2015 e mais uma vez o povo disse NÃO. Da mesma forma, o sistema disse NÃO ao povo grego, impondo um pacote de medidas antissociais como condição de manutenção do país na zona do Euro. Por fim, o pacote econômico que o governo grego tinha prometido não adotar e que foi recusado por 61% dos gregos em um plebiscito, foi negociado em troca de um plano de ajuda de €86 bilhões à Grécia nos próximos três anos. Sem perdão de dívidas, com medidas de aperto econômico e duras condições a Atenas, a resposta certa para o sistema se impôs sobre a vontade popular. A experiência da Grécia não é a única a ilustrar a falsa liberdade de escolha nas democracias contemporâneas. Há 10 anos atrás assistimos a consulta aos franceses sobre a aprovação da Constituição da União Europeia, que recebeu um categórico NÃO!
O mais interessante é que o governo francês estava, no âmbito da União Europeia, defendendo o projeto representado pela constituição em questão, revelando verdadeiro descompasso entre a vontade popular e a dos seus representantes políticos. Curiosamente a escolha errada (para o sistema) feita pelo povo francês foi rapidamente corrigida por meio da aprovação, em 2007, do Tratado de Lisboa, que estabeleceu os preceitos antes rejeitados no projeto de constituição. A diferença é que desta vez, em razão de ser um tratado internacional (e não uma constituição), a consulta popular era desnecessária, bastando a aprovação governamental que, como vimos, nem sempre defende a vontade e o interesse dos seus representados. Os exemplos acima podem levar à ideia de que as ‘escolhas erradas’ da liberdade contemporânea estão presentes apenas nas disputas eleitorais, no entanto, elas estão por toda parte e passam despercebidas no nosso cotidiano ‘democrático’. O futebol mundial, por exemplo, passa atualmente por uma crise de ‘escolha errada’ sem que as pessoas se deem conta disso. A única coisa que se escuta e se lê a respeito é que, após o Mundial no Brasil, os quatro cantos da Terra se escandalizaram com as denúncias de corrupção na FIFA. Todos ficaram espantados porque provavelmente sempre a consideraram uma organização idônea com interesses exclusivamente desportivos e culturais. Será? Vejamos... Em reação aos escândalos de corrupção na FIFA, onde aparentemente ‘nunca havia ocorrido nenhuma irregularidade’, os países que são defensores da moralidade estão ameaçando abandonar esse antro de corrupção e fundar sua própria confederação do futebol, como é o caso da Alemanha, França e Espanha. Eles devem estar fazendo isso porque se decepcionaram com uma organização que sempre lhes pareceu idônea. Errado! Eles estão fazendo isso porque a FIFA fez a escolha errada e agora é necessário corrigir tal escolha. Ou será coincidência que a exposição da corrupção no interior da FIFA tenha se dado após a escolha da África do Sul e, na sequência, do Brasil e da Rússia como sedes do Mundial? Será coincidência que os três sejam membros dos BRICS, bloco econômico que ameaça a hegemonia do eixo Europa-EUA? Quando se faz a escolha errada, o sistema precisa fazer com que as coisas voltem aos seus devidos lugares. Continua na próxima página.
JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 10 | JUNHO A AGOSTO DE 2015
“CONHECE-TE A Ti MESMO”
Sobre o empreender, sem muito romantismo
Continuação da página 4 Para fechar o repertório de ‘escolhas erradas’ com uma ilustração artística do modelo sistêmico de liberdade, remeto os leitores ao filme “Que horas ela volta?”, dirigido pela Anna Muylaert, que estreou no Brasil em agosto de 2015. Tendo como enredo a história de Val (Regina Casé), uma empregada doméstica que deixou o Nordeste e também sua filha, para arrumar emprego em São Paulo, a estória tem início com a chegada de Jéssica (filha de Val) a SP, para prestar o vestibular. Tendo sido recebida na casa dos patrões de sua mãe, Jéssica não tem nenhum constrangimento em aceitar as ofertas generosas e educadas dos seus anfitriões, mas é reprimida pela mãe por fazê-lo. Uma das situações que ilustra muito bem a teoria da escolha errada, se dá quando Jéssica aceita tomar o sorvete que é tratado como “o sorvete do Fabinho”, o jovem rapaz que foi criado por Val. Quando a mãe recrimina a filha por estar tomando o sorvete que ‘não é para o seu bico’, Jéssica explica que o senhor Carlos (pai de Fabinho) ofereceu. O mais interessante é que, sem refletir sobre o que está dizendo, Val explica o funcionamento do sistema social em que vivemos: “quando eles oferecem fazem isso por educação e porque eles sabem que a gente vai dizer não”. Como Jéssica não se sujeitava às regras do sistema, fez a escolha errada: disse “sim” quando a única resposta correta era “não”. Nossa experiência recente de resposta errada é a da última eleição, quando a democracia brasileira chamou o povo a responder: vocês querem que a Presidenta Dilma continue governando o país? Parece que fizemos a escolha errada, não porque quiséssemos seu adversário, mas porque, ao que tudo indica, não havia alternativas e fizemos a escolha antissistêmica. Talvez isso explique por que o sistema está fazendo de tudo para corrigir a escolha errada e apresentando como novas ‘alternativas’ à política brasileira: ter um governo Dilma como se fosse Aécio, obter a renúncia da Presidenta Dilma ou emplacar o impeachment contra o governo Dilma. Como sabemos que as três ‘alternativas’ são uma única e certa resposta, fica claro que deixar a Dilma governar é a escolha errada para o sistema.
Por Jan Alexandre Kishi Diniz Antes de tudo, acho importante deixar claro como que eu entendo o famoso “empreendedorismo”. Para mim, empreender é conseguir criar as próprias expectativas e ter coragem de caminhar com elas. Ou seja, é conseguir dizer para si mesmo “o que eu espero para minha vida é…”, respirar fundo e se jogar na aventura. Às vezes, esta expectativa é um novo projeto social, outras é uma simples mudança de comportamento e assim por diante. Também pode ser criar o próprio negócio (ou startup, como está na moda ultimamente)! O importante é que você assuma as rédeas da sua vida! Empreendedor é aquele que é responsável pelo próprio futuro, no sucesso e no fracasso! Mas não é tão simples assim… Pode ser bem difícil caminhar com nossas próprias expectativas. Pense no seu caminho, o que você está fazendo agora é resultado das expectativas de quem? O que seus pais esperavam de você na época do vestibular e qual curso você faz hoje? Você queria ter ido para a faculdade? Você é o profissional que você espera ou é o que seu chefe espera de você? Um grande auxílio é ter claro que se você espera algo de si próprio deve haver um motivo, um propósito. Esse propósito nasce de incômodos e/ou paixões que carregamos durante nossa vida e (não me pergunte por quê) acabamos por querer fazer
algo em relação a isso. Ter um propósito nos fortalece e nos ajuda a nos manter no caminho. Depois de encontrar sua motivação, lembre-se que foi só metade do percurso! Existe uma grande armadilha que assombra muitos empreendedores: uma vez que descobrem seu propósito, passam a contar suas expectativas para todos e como farão para chegar lá. Porém, se empolgam, orgulhosamente se denominam empreendedores e nada de caminhar para a segunda fase, que é colocar a mão na massa e realizar! Já trabalho por alguns anos com projetos de empreendedorismo e inovação, desde ajudar jovens a criarem seus próprios projetos sociais até trabalhar com projetos de investimento em startups para grandes empresas. Nesta jornada, aprendi que empreendedores valiosos são aqueles que não perdem tempo. A partir do momento que criaram suas expectativas, começam imediatamente a caminhar. Estão dispostos a correr riscos e agem mais do que falam. Para estes, não vai faltar investimento, apoio, empatia e parceria que faça acontecer (e não que fale que irá acontecer). Para empreender, é preciso se levar a sério. Quando você espera de si alguma coisa, leve a sério. Quando nos comprometemos com alguém, não temos tempo para brincadeiras, egos, preguiça e etc… Temos de buscar realizar e ponto. Existe alguém que mereça mais respeito que você mesmo?
Então sonhe. Respeite seu sonho. E caminhe.
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José Luiz Quadros de Magalhães Arquivo pessoal
já percorreu o mundo em busca das várias formas do Direito. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, graduação em Língua e Literatura Francesa pela Universidade Nancy II, mestrado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutorado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente é professor titular da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, professor associado da Universidade Federal de Minas Gerais e professor da Faculdade de Direito Santo Agostinho (Montes Claros). É coordenador regional (região sudeste - Brasil) da Rede pelo Constitucionalismo Democrático latino americano.
ENTREviSTA
O papel do direito no estado moderno bernardo Nogueira: Caro amigo José Luiz, é uma honra essa prosa, o Plural que tem as suas palavras desde a primeira edição, sente-se feliz com esse encontro. Nossa ideia é falar também de maneira plural. Daí, gostaríamos de ouvi-lo acerca das relações entre o direito e a arte. quais as dimensões que esse encontro pode tocar? Ou inventar? José Luiz quadros de Magalhães: Caríssimo amigo. É sempre uma satisfação participar do Plural e dos diversos eventos artísticos jurídicos literários que você cria. Bem, pra responder esta questão precisamos pensar quais são as dimensões do direito diante da infinitude da arte. Acredito que a arte, em todas as suas dimensões, pode auxiliar o direito para o bem e para o mal. Pode nos ajudar a compreender o seu papel, revelar o que está oculto em sua relação com os poderes e trazer sensibilidade no momento de sua construção e transformação. O direito moderno surgiu com uma tarefa: padronizar, uniformizar e logo, destruir e ocultar o diverso. O papel do direito no estado moderno foi de ajudar na construção de uma identidade nacional que abafou, excluiu, uniformizou ou destruiu o diferente e afastou a diversidade. Neste sentido a estética do “novo” padrão, representado em manifestações artísticas;
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a escolha de formas, de manifestações artísticas; a construção de uma nova arte que traduza e construa um novo sentimento nacional, foi amplamente utilizada na construção destas novas identidades. A observação desta arte pode revelar como se pode utilizar o belo, o sensível, para uma finalidade violenta. Sentimentos diversos estão manifestados nas artes. A expressão de uma vontade, a conformação de uma pulsão. A arte, o espirito e a espiritualidade foram usadas contra muitos. Se a religião escravizou o espirito, o poder do estado e do dinheiro escravizaram a arte. Mas, ao mesmo tempo, o espirito inquieto do artista se rebelou com seu poder inconformado ao poder conformador da modernidade. Uma explosão de sensações se manifestou contra esta arte escravizada e contra este poder destruidor. Desta forma, a arte manifestou todo o absurdo da violência como em Guernica, de Picasso. Para o direito, e contra o uso conformador de certa arte, o que melhor a arte pode fazer é desconcertá-lo. Digo isto em relação ao direito moderno. Contra o seu quadradismo (inclusive dos versos que por vezes o servem) a arte pode trazer formas disformes, geometria sem compasso e palavras sem compromisso com as regras.
“A RACiONALiDADE MODERNA fALHA AiNDA AO TENTAR SEPARAR CORPO E RAzÃO, CORPO E ESPÍRiTO...”
“...iSTO é GUERRA iDEOLÓGiCA E ECONôMiCA”
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BN: Caro José Luiz, sabemos de sua luta intelecto-social, neste sentido, qual o seu sentimento acerca do momento político de nosso país? JL: Acredito que estamos vivendo um momento de reação contra um período de transformação e desocultamento de opressões diversas geradas por este estado e esta economia modernos e capitalistas. Ocorre uma ebulição de sentimentos, empurrados por uma cultura individualista e competitiva, de extrema superficialidade, que sustenta esta economia e é permanentemente divulgada e incentivada por meios de comunicação que mentem, distorcem e encobrem os processos, ideias e manifestações que não lhes interessam. Este momento de reação conservadora se manifesta no ódio nas ruas, no machismo, na homofobia, na mentira da mídia e na parcialidade e simplificação do mundo e em um parlamento que pisa diariamente a Constituição. Para entender este momento é necessário inserir, o que se passa no Brasil, em uma dimensão global. Vivemos uma guerra global que ocorre dentro da cabeça das pessoas. A guerra global é pela construção do senso comum. O ataque aos governos populares democráticos (Venezuela, Uruguai, Bolívia, Equador, e em alguma medida Brasil e Argentina) faz parte de um jogo global por poder. De um lado assistimos a ascensão dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul), o fortalecimento da América-Latina (região que segundo o último relatório PNUDH/ONU mais reduziu a desigualdade) com a criação da CELAC e UNASUL, o crescimento da economia Chinesa que ultrapassa a economia norte-americana, e de outro lado, a crise europeia (sem previsão de terminar) e a superação da economia norte-americana que, tem previsão de crescimento muito menor do que a China. Ora, é claro que a Europa e os EUA não vão assistir isto sem reagir. A desestabilização das democracias latino-americanas, a crise da Petrobrás, o comprometimento de outras empresas brasileiras (na punição seletiva da corrupção) e a campanha diária e brutal, sem nenhuma vergonha de mentir e distorcer os fatos, só pode ser compreendida dentro deste contexto global. Isto é guerra ideológica e econômica e precisamos perceber e compreender o que está acontecendo, para não continuarmos jogando o jogo do inimigo. BN: Marx, onde está hoje? Está? JL: Enquanto existir capitalismo, e espero que acabe logo (pois senão vai acabar com a vida humana), Marx será atual e estará presente. Se pegarmos a obra de Marx e publicarmos alguns trechos específicos em jornais contemporâneos sem a assinatura do autor, as pessoas pensarão que foi escrito agora. Infelizmente, as pessoas criticam sem ter lido. Sempre digo para xs alunxs que devemos
“ideia da complementaridade, superando hegemonias e subalternidades”
“A racionalidade moderna falha ao ser hegemônica”
ter responsabilidade e honestidade intelectual: não dá pra criticar o que não se conhece, estudem primeiro para poder criticar ou concordar. Como disse antes, a superficialidade é um perigo, pois é o caminho para o fascismo. Com os fascistas não há diálogo, pois estes não têm argumentos, logo, só resta a violência. Quando construirmos uma outra sociedade, uma outra economia, então Marx será uma boa recordação: aquele que apontou os equívocos grosseiros do capitalismo e insistiu na necessidade de termos coragem de construir um outro mundo, possível e necessário. BN: O Estado Plurinacional seria, de fato, uma nova construção ou apenas uma outra face do ideal moderno de estado? JL: Hoje percebemos algumas reações distintas com relação ao Estado Plurinacional. Um grupo majoritário não leu e não gostou. Um grupo intermediário que leu pouco e, por isto, não entendeu. Este grupo só conseguirá enxergar mais do mesmo. Alguns enxergarão um Estado e uma Constituição moderna, com alguns acréscimos interessantes e curiosos relativos aos indígenas. Entretanto, acreditamos, juntamente com várias pessoas nas Américas, que o Estado Plurinacional representa um pensamento descolonial, portanto, um projeto de ruptura com a lógica colonial moderna, uniformizadora, bi-
nária subalterna, antropocêntrica, linear, individualista e arrogantemente universalista (o falso universalismo europeu). O estado plurinacional e suas constituições nos trazem uma outra perspectiva para o direito e o estado, fundada em vários princípios, dentre os quais podemos mencionar o bio ou ecocentrismo; a ideia de diversidade para além do direito à igualdade ou diferença; um pluralismo jurídico, de jurisdições e de epistemologias; uma concepção processual do sujeito; e a ideia da complementaridade, superando hegemonias e subalternidades. BN: O pensamento racional moderno falhou, ou em melhores palavras, mostrou-se sem condições de captar a complexidade do humano, logo, gostaria de ouvi-lo acerca de uma proposta, se há a necessidade da existência dela, para pensarmos o humano hoje... JL: As características da modernidade são as razões da incompletude arrogante do pensamento moderno. A pretensão de verdade construída sobre uma hegemonia prepotente que se afirma universal, e logo, como única racionalidade válida, não pode, entretanto, nos levar a negar a riqueza do pensamento moderno. Mas é necessário que este pensamento, e esta filosofia, ocupe o seu lugar no tempo e nos espaços modernos. Desta forma, esta racionalidade será muito mais importante, uma vez que poderá dialogar com outras racionalidades, outras formas de compreensão do mundo, sem anular, subalternizar, ocultar ou destruir os vários outros diversos. A racionalidade moderna falha ao ser hegemônica, e logo perde, e perdemos todos, quando se nega dialogar com muitas outras racionalidades, sistematicamente ignoradas e subalternizadas. A racionalidade moderna falha ainda ao tentar separar corpo e razão, corpo e espírito. Assim, não só justifica toda a brutal violência sobre os corpos ditos “sem razão”, como falsamente pretende uma razão separada da sensibilidade, dos sentidos, da química, da biologia, da física e do espirito. Falha ainda ao estabelecer um conhecimento fragmentado. Não somos máquinas cujas peças podem ser separadas e novamente reunidas. Aí está algo insuperável: nós nunca seremos a soma de nossas partes. BN: Obrigado meu amigo, o Plural é mais bonito com sua presença, e para encerrar nossa prosa, gostaria que nos dissesse algo acerca de suas aspirações intelectuais: o que lhe inspira hoje? JL: Me inspira o desafio e a urgência de participar da construção de algo completamente diverso, diante da falência da modernidade. Me inspira o pensamento quântico e a superação do mundo antropocêntrico moderno, por uma descoberta ecocêntrica da vida. A arte já está lá, também...
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“DOiS PESOS E NENHUMA MEDiDA”
Às izidoras nossas de cada dia Por Arion Escorsin de Godoy e Domingos Barroso da Costa A legislação urbana brasileira é considerada por muitos juristas como uma das mais avançadas do mundo. Temos nela instrumentos bastante sofisticados de planejamento urbano, como o plano diretor, e mecanismos jurídicos que, em tese, asseguram a proteção de valores muito caros a um Estado de bem-estar, como a função social da propriedade ou a delimitação de zonas especiais de interesse social. De forma semelhante, no plano individual, temos, desde 2000, o reconhecimento da moradia como direito fundamental e, a partir de 2015, a distinção do transporte como garantia de idêntico prestígio. Todos esses instrumentos e direitos permitem, no âmbito jurídico, verificar que o Brasil está na vanguarda no que tange à previsão de institutos que, de forma geral, visam a assegurar o direito à cidade, em toda sua amplitude. Porém, superada a abstração legislativa – o universo de papel –, verificamos que a nossa realidade é regida em muito maior medida por referenciais próprios de um patrimonialismo, que remonta à essência de nossa formação enquanto povo e sociedade, do que propriamente às balizas legalmente estabelecidas. Em Belo Horizonte, por exemplo, observamos a situação que envolve a ocupação Izidora. Trata-se de área que abrange três vilas (Esperança, Rosa Leão e Vitória) situada na zona norte da capital mineira e que abriga cerca de 8 mil famílias ou mais de 30 mil pessoas, havendo decisão judicial que ordenou a desocupação do imóvel, o que foi feito a partir de pedido do Município de Belo Horizonte. Neste momento, há decisão do Superior Tribunal de Justiça suspendendo a desocupação até julgamento de recurso por este Tribunal. É curioso, contudo, perceber como as ocupações de determinadas áreas, por muitos anos, passam despercebidas – tanto que chegam a se estender, como no caso de Izidora, por 9,5 milhões de metros quadrados –, até que, em certo momento, se tornam
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objeto de grande disputa, a qual se busca legitimar a partir de preocupações urbanísticas de última hora. De fato, o que se constata é a supremacia do interesse econômico e especulativo sobre os interesses declarados pela ordem jurídica. Vale dizer: a conveniência de que pessoas pobres residam longe dos olhos dos reis dos camarotes perdura enquanto tais áreas ocupadas não apresentam interesse econômico. Todavia, quando a cidade legal invade as periferias, surge uma repentina preocupação com interesses urbanísticos até então relegados. De outro lado, mas considerando os mesmos parâmetros de análise, menciona-se o tratamento absolutamente distinto que se dedica a ocupações luxuosas. Afinal, como afirma o rapper Emicida na canção Dedo na Ferida, “Alphaville foi invasão, incrimine-os”. Porém, ao contrário do que se verifica relativamente a ocupações como a Izidora, em áreas como as de nossos alphavilles redobram-se as normas de ordenação urbana em prol, é claro, da proteção do direito à moradia (assim como o direito penal, o direito à moradia é aplicado seletivamente). Grifa-se que até definições semânticas, com todo simbolismo que podem carregar, marcam muito bem o tratamento diverso empregado: ocupação de pobre é invasão; ocupação de rico é empreendimento. Nesse contexto, cumpre ressaltar que, invariavelmente, a repentina preocupação com a legislação urbanística vem desacompanhada de semelhante atenção a direitos sociais como moradia, saúde, educação, segurança, além de regramentos específicos, como os que asseguram especial proteção a crianças e idosos. Aliás, não é raro que, décadas depois de instaladas em determinadas comunidades, as famílias sejam enxotadas pela polícia, mais uma vez, portanto, condenadas a reiniciar o ciclo de alojamento e expulsão em um outro local – um pouco mais distante de tudo. Logo, como em tantos outros âmbitos, observa-se que, em verdade, não é o regramento jurídico que rege a vida urbana, mas sim os interesses econômicos – em geral, meramente especulativos. De fato, também
em termos de cidades, o direito se apresenta apenas como a desculpa pronta para uso, o discurso legitimador da força bruta empregada em desfavor dos pobres, mediante seleção casuística de normas a serem aplicadas conforme o interesse reinante no momento - segundo o mercado. E justamente por isso, sem o apoio do agir político da população, não será o instrumental jurídico capaz de, por si só, resguardar seus interesses. As formas não são eficazes em transformar a realidade se desacompanhadas de um agir que lhes dê substância, sendo indispensável que, primeiramente, se desmistifique o direito, desvelando-o como expressão dos valores e interesses dos estratos dominantes – justamente aqueles que o positivam. Isso implica dizer que, em nosso contexto, para além das promessas libertárias e promocionais asseguradas pela Constituição de 1988, o ordenamento jurídico brasileiro deve ser analisado sob uma perspectiva crítica, desfetichizante, até mesmo para que se compreendam as limitações de seus instrumentos, que, ao menos em princípio, não serão aplicados contra aqueles donos do poder que os desenvolveram para que tudo se mantenha como está. Ou seja, os direitos não sairão do papel antes de encontrarem o espírito que os vivifique, no que se refere justamente ao poder popular e à possibilidade dele se manifestar de forma politicamente organizada, ao ponto de fazer oposição aos interesses de mercado que tendem a prevalecer. E a cidade é a cena em que deverá o sujeito fazer-se cidadão ao apropriar-se de seu direito à moradia – dentre outros –, vivificando-o. É justamente o que se observa em relação a movimentos como Ocupe Estelita, no Recife, ou Resiste Izidora, em Belo Horizonte, os quais deixam a postura passiva do cidadão de papel1 para se apropriarem de seus direitos e, a partir deles, agirem e discursarem no mundo, possibilitando a compreensão por parte da sociedade que a conquista de direitos é, antes de mais nada, uma questão política – não só de discurso, mas também de ação.
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Alusão à obra de Gilberto Dimenstein.
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bem que te ouvi
Fala comigo Por Tânia Cristina Dias Ela ficou parada na minúscula área de serviço. As roupas estavam quase secas. E, as que ainda não, iriam para a secadora. O dia estava quase no fim, exatamente naquele entremeio de não ser tarde, nem noite. Entardecia. Adelaide encostou os cotovelos no parapeito e apoiou o queixo entre as mãos. Respirou fundo, como só os tristes respiram. Sua tristeza era incomensurável, inalterável, colossal. Buscou recursos através dos médicos, psicólogos, antidepressivos, chás e em fontes alternativas: cartomante, ioga e reiki. Balela! A tristeza permanecia inabalável. Do lado de fora, diante dela, começou uma chuva fina, mansa, cor de ouro, enquanto ela pensava em si mesma, turbilhão de ideias, convergiam para um mesmo ponto: sua permanente dor. De repente, um pássaro “mascarado” agarrou-se na tela que tinha a função de protegê-la do mundo de fora. Assustou-se com aquela pequena ave cinza chumbo de peito amarelo, olhos brancos, faixa preta nos olhos. Procurou na memória o nome, qual era mesmo... bem-ti-vi. Há tempos não via um. E agora estava ali pousado, tão próximo, a se esconder da chuva. Inusitado. Raro como sua alegria. Adelaide tentou passar os dedos pelas frestas na direção do pássaro, ele voou arisco, livre, como a dizer “sou dono de mim”. Deixou um som de asas e um rastro furando a chuva amarela. Vazio. Era tão lindo, “de doer”. Sem entender, teve uma vontade de (...), de tantas coisas, que não soube definir. Concentrou-se no pássaro, quis segui-lo mais que apenas com os olhos, esforçou-se a ponto de forçar o seu rosto contra a tela, acompanhou o voo e o viu sumir em uma árvore próxima ao BH Shopping. “Ah,” como queria ter feito aquele voo sob a chuva. Lembrou-se de uma fração do passado. Voltava da escola, a chuva a surpreendeu ainda no meio do caminho para casa. Colocou o livro dentro da mochila e continuou caminhando, mesmo que os pingos grossos teimassem em lhe fechar os olhos. Outras crianças também determinadas faziam o mesmo caminho e iniciaram o eterno pular nas poças. Como era divertido pular em poças. Riu da lembrança e também do pito levado em casa, banho quente, chá e sopa. Até o xingo era bom, era uma mistura de preocupação com carinho. Isso quando, no meio de um deles, não surgiam risos, até doer a barriga e
a frase da mãe: “- Ai, minha filha, já nem aguento mais suas travessuras”. Como se dissesse: “- Ai, minha filha, já nem aguento mais ser tão feliz.” Assim era a sua mãe: divertida, leve, colo macio. Nunca quis sair daquela pequena cidade, nada de sonhos altos, só aqueles que parecem já estar aterrissados. Família grande, mesa farta, colchas limpas e cócegas no marido. Do seu quarto escutava os pais conversando, varando a noite. Não entendia as palavras, mas em meio a uma e outra - risos. Essa era a forma de sua mãe ser feliz. Era tão bom pensar nesse tempo. O riso fácil do passado. Quando deixou de ser feliz? Não sabia. Talvez tivesse o início no insistente desejo de ir para a capital. Estudar, formar, ser alguém. República de estudantes, muitos trabalhos para chegar ao final do curso de Administração. Pequenas perspectivas, comuns aos recém-formados. Até que conheceu o marido, executivo, bem-sucedido e todo o ar de “seremos felizes para sempre,” por ele representado. Casamento, a proposta de largar o emprego, a constatação de não ter feito uma boa escolha. Tentou retornar, o marido não admitiu que fosse para a mesma empresa. E, na verdade, administraria o quê? Trabalharia para os outros? Não. “- Mulher minha, não”. Por fim, Adelaide tentou de tudo para se libertar: Herbalife, Natura, Avon, para conhecer pessoas, ampliar o seu pequeno mundo estacionado no oitavo andar, do Belvedere, 153 m², quatro quartos, cinco vagas na garagem e vista definitiva quitada. Som de asas e um rastro furando a chuva amarela. A chuva aumentou: lá embaixo as pessoas zigue-zagueavam entre os carros. Buzinas. Um semáforo estragara. E Adelaide, que há tempo, não via nem chuva, resolveu assistir. Vistoriava cada detalhe. Pequeno acúmulo de água se formava próximos ao meio-fio, de cada lado da avenida. Pessoas com trajes esportivos corriam por outros motivos. Esqueceu-se completamente da tristeza e agora era “só olhos” a contemplar a vida. E, por mais uma vez, o pássaro voltou e pousou na tela. Surpreendentemente, ele estava de novo ali, pousado, sacudindo as penas molhadas de chuva. Pequenas gotas atingiram, em cheio, o rosto de Adelaide. Ela riu, como a mãe ria. Fechou os olhos e sentiu que o pássaro trouxe consigo o cheiro da chuva.
E essa, era completa: cheiro, vento e gotas. Sentiu-se de novo criança, estava no quintal, debaixo do pé de abacate. A mãe encharcada ao seu lado: “- Veja filha, ficamos molhadas. Ai, meu Deus, que cabeça a minha!” Adelaide, enrolada em uma toalha, era carregada pela mãe para dentro de casa. - Olha mãe, olha como a chuva é bonita. - É linda, filha. Agora precisamos entrar. - Espera, espera mãe, deixa eu só falar uma coisa pra chuva... Faz-se o barulho de chave girando na porta da sala. Adelaide abre os olhos. Sobressalto. É o marido chegando. A porta se abre. Ele entra. Coloca o iPad no aparador. A chave, no chaveiro. Alarga o nó da gravata. - Adelaide? Ela não quer responder. - A-de-lai-de... Não saberia o que falar. Fechou os olhos. Coração agitado feito pássaro apertado entre as mãos. Desejou, desejou muito falar para o marido: - Fala comigo... Ele a encontrou na área de serviço, muda feito planta. E dentro dela não tinham palavras, apenas um som de asas e um rastro furando a chuva amarela.
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“O SERTÃO vAi viRAR MAR?”
A pindova que se tornou estrangeira em terra natal: a história de uma dentre as muitas Raimundas e Joãos expulsos pela hidrelétrica de belo Monte Por Luciana Pereira Queiroz Pimenta Ferreira 11 de outubro de 2015. Domingo. Por que escrevo? O que quero ou realizo ao escrever? Por que pergunto? A pergunta que faço é minha ou do outro? Do outro por quem falo ou a quem falo? Escrevo a partir de onde? O lugar onde estou é o lugar da minha escrita? Ela é mesmo minha? Sou eu quem dirige as palavras? As palavras dão conta de dizer o fogo? O fogo que arde sem se ver é o mesmo que deixa em fumaça e cinza a morada de uma vida? A morada não é o ethos? Falarei de ética, cujo sentido fundamental da palavra – ethos – pensa a Verdade do Ser (Heidegger, 1995, p. 88)? Pretendo responder estas perguntas ou elas são apenas a forma que encontro, na linguagem, de acolher Raimunda, de deixar a vida de Raimunda habitar o texto... uma dentre as muitas Raimundas e Joãos expulsos pela hidrelétrica de Belo Monte... a mulher cuja vida atravessou a minha, a partir do texto que narra a história de uma guerra amazônica desconhecida da maior parte dos brasileiros – a excelente reportagem assinada por Eliane Brun, publicada no jornal El Pais, em 22 de setembro de 2015 –, uma vida que é texto... texto que excede estas e aquelas palavras. Isto não é um diário é o título de uma das obras do sociólogo que se qualificou com o célebre conceito de “liquidez”, na qual escreveu: “A questão do “para quê” é difícil de responder (...). Creio que a questão “por quê” é mais adequada nesse caso que a pergunta “para quê” (Bauman, 2012, p. 7). Também não escrevo por utilidade. A vida sempre está para além dela. 31 de agosto de 2015. Segunda-feira. Raimunda Gomes da Silva, 56 anos, recebeu uma ligação da Eletronorte, perguntando-lhe quando poderiam tirar seus “resíduos” da ilha. “Resíduos” eram as poucas posses de Raimunda. Não havendo alternativa, ficou combinado que ela retiraria seus pertences no dia seguinte. 01 de setembro de 2015. Terça-feira. Depois de duas horas e meia de travessia do rio Xingu, Raimunda alcançou sua ilha e viu que sua casa, feita de madeira resistente, queimava. “– (...) eu desci do barco e não senti o solo. Eu não senti o chão no pé, porque aquilo me deu um
branco. Ali, na hora, eu não sei o que senti. Porque, quando eu vi de longe, eu não achei que tinha... Quando nós chegamos lá, que eu vi minha casa queimada, eu desci, subi a barreira, sentei, e me apagou, branqueou, eu não sei. Não sei nem lhe falar o que eu sei, o que eu senti, não sei, porque eu não senti nada... Eu fiquei anestesiada do que vi. Porque, como que eles ligam pra eu tirar o que é meu e queimam a casa toda um dia antes? Fiquei parada, pensando na vida, só, viu. Que mundo é esse que a gente vive?” O fogo da Eletronorte aniquilou a casa de Raimunda. Uma casa que eles não consideravam casa. Eles disseram a ela que era um tapiri, ao que respondeu Raimunda: “Na sua linguagem ela pode ser tudo isso aí. Mas, na minha, é minha casa”. Tempos de liquidez... a abundância líquida da hidrelétrica de Belo Monte vertida em fogo e cinza. “– Eu nunca imaginei que eles iam tocar fogo. Se eu for tocar fogo no escritório deles, fico presa pro resto da vida. Eles botam fogo na minha casa e não acontece nada. É a profecia do fim do mundo que o meu pai falava, a roda grande passando por dentro da pequena”. Raimunda procurou a Polícia Federal de Altamira para fazer o boletim de ocorrência. Lembrou à Polícia da existência de um relatório do Ministério Público Federal, em parceria com uma série de instituições públicas e não governamentais, que levou o IBAMA a suspender as remoções dos ribeirinhos, já que a inspeção realizada em junho revelara uma série de violações contra direitos humanos no processo de expulsão das famílias. Mas nada adiantou. A casa de Raimunda queimava. Ela desabafou: “– Eles têm certeza que podem fazer o que quiserem e nunca vão ser punidos”. O fogo da Eletronorte “apagou” Raimunda, mas apenas por alguns instantes. Diante das cinzas, estrangeira, agora, em terra natal, Raimunda procurou seu pé de pinhão-pajé, plantado na frente da casa. “– Esse pinhão era meu amigo principal. Porque eu acreditava assim. Se eu chegasse de manhã cedo, e ele tivesse com as folhinhas moles, bem coladinhas, naquele dia eu não saía pro rio. Porque ele tava me dizendo algo, na linguagem dele. Tava buscando me proteger de alguma coisa. Mas, se ele tava todo arregaçadinho, eu já tava sabendo que tava tudo bem comigo”.
Raimunda, então, cantou diante das cinzas. Cantou o canto da justiça. A justiça que, sendo incalculável, sempre excede o direito (Derrida, 2010, p.30) . “– É muito difícil você ver o que é seu ser queimado. A única maneira pra me expressar é cantando. Pra que a minhas plantas saibam que eu jamais queria que elas fossem queimadas, ou fossem lesionadas. Pra que elas sintam que eu tou aqui. Como elas não sabem falar, e eu não sei a linguagem das plantas, eu canto pra elas. Digo pra elas que o mundo não acaba aqui porque minha casa tá sendo queimada. O mundo ainda tá de pé. Enquanto Deus me der a vida, eu vou levar comigo isso, esperança e fé. Que um dia a Justiça seja verdadeira. Porque agora a Justiça é uma visagem, uma lenda. (...)”. O fogo da Eletronorte não apagou Raimunda. Raimunda se endereça a mim. A nós. Raimunda me ensina. Raimunda nos ensina. Escrevo este texto que não é um diário. Nem meu, nem de Raimunda. Raimunda é palmeira. Raimunda é pindova. “Sou uma pindova, uma palmeira muito perseguida lá no Maranhão. Quanto mais casca Belo Monte arranca de mim, mais eu me renovo. Fiquei queimada por dentro, como a minha ilha, mas me renovo. A pindova é assim, ninguém mata ela com fogo nem arrancando nem com nada. Ela volta. Como eu. Já venho de uma naturalidade de pessoas muito sofridas, o sofrimento faz parte da nossa história. Não vou morrer porque peguei porrada. De jeito nenhum, sou descendente de escravos e de uma etnia indígena quase extinta. Então, venho de um povo sofrido lá da base. Sou pindova e quero viver”... Enquanto isto, João está morto. Belo Monte o matou. REFERÊNCIAS BAUMAN, Zygmund. Isto não é um diário. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2012. BRUN, Eliane. Vítimas de uma guerra amazônica. Disponível
em
http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/22/politi-
ca/1442930391_549192.html, Acesso em 11 de outubro de 2015. DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 2ª Ed. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2010. HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.
“Por una cabeza”
Um táxi com Gardel Por Carlos Magalhães Vou lhes contar uma história que aconteceu com dois amigos. Repasso o que me contaram. Não sei se é verdade. Mas o importante é que a história mostra como as exigências da segurança, da higiene, da saúde, da ordem, da retidão nos tomaram grande parte da feliz espontaneidade da vida que se vivia no passado recente. Estavam os dois amigos (serão chamados de “amigo número 1” e “amigo número 2”) numa festa chata
desde o início e mais chata ainda no final. Quando já não suportavam mais a chatice, se despediram da anfitriã e dos demais. O objetivo era encontrar um bar qualquer para continuarem a beber. Antes de saírem à rua, a anfitriã os presenteou com uma sacolinha de supermercado cheia de latinhas. Muitos convidados não compareceram e estava sobrando cerveja. Como não sabia o que fazer com aquilo, a dona da casa aproveitou para se livrar de algumas latas. Finalmente meus amigos escaparam aliviados daquela enrascada em que haviam se metido. Ganharam a rua. Cada um bebericava a sua cerveja. Por sorte, do nada, surgiu um improvável táxi. Fizeram o sinal. O táxi parou. Entraram e pediram ao motorista para levá-los a um conhecido bar que nunca fechava. No táxi, soava uma música diferente, que nunca tinham ouvido, mas capaz de criar um clima etílico na medida exata que o momento pedia. Estavam com as suas cervejas, ouvindo aquela música estranha e bonita. Só faltava um cigarro. O amigo nú-
mero 1 pediu um cigarro ao amigo 2. Não tinha. Ouvindo o pedido e se solidarizando com os passageiros, o motorista ofereceu-lhes o seu maço. Aceitaram. Lembraram-se do saquinho de supermercado e ofereceram ao motorista uma cerveja. Foi prontamente aceita, com um grande sorriso de agradecimento. Seguiram, então, tomando a cerveja, fumando os cigarros (o motorista também acendeu um) e ouvindo aquela música estranha e bonita, cantada em espanhol. Meu amigo número 2 perguntou ao motorista que música era aquela. Ele, muito espantado com a ignorância do passageiro, disse, com direito a muitos elogios, que era o grande Carlos Gardel. E agradava mesmo a música do Gardel. Meus amigos fizeram elogios também. O amigo número 2 se empolgou e fez uma proposta de compra da fita cassete. O motorista recusou veementemente. Não venderia em hipótese alguma. Continuaram o caminho ouvindo Gardel, tomando cerveja e fumando. Ao fundo o “tec-tec” da mudança dos números no taxímetro antigo. Chegando ao bar, já eram três velhos amigos admiradores do grande Gardel. O motorista parou o carro. O amigo número 1 deu a ele mais duas latinhas. Ele deu aos meus amigos mais cigarros. Meu amigo número 2 renovou a oferta pela fita, já sabendo que o motorista não venderia. E não vendeu mesmo. Quanto marcava o taxímetro? Não importa. O motorista não cobrou. Disse que nunca tinha ganhado latas de cerveja de passageiros e que não poderia cobrar dos novos velhos amigos. Meus amigos ficaram felizes, não pelo dinheiro que economizaram, mas porque nunca tinham pegado um táxi ao som de Gardel e trocado cervejas por cigarros com motorista. Ocuparam uma mesa na calçada e continuaram a beber cerveja e conversar até o amanhecer.
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