plural JORNAL CULTURAL
NÚMERO 4 | DEZEMBRO DE 2013 A FEVEIRO DE 2014 | BH | MG | IssN 2319-0000
CRôNICA sOBRE O INFERNO NOssO DE CADA DIA
O inferno e o capeta Por José Luiz Quadros de Magalhães Participando recentemente de um Congresso sobre o novo constitucionalismo latino-americano, em Pirenópolis, Goiás, assisti uma palestra sensacional do professor Llasag, indígena e equatoriano. Na palestra, o professor descrevia o sistema penal de origem europeia no Equador, fundado na ideia de vingança, punição e cárcere e como este se difere da forma como, em sua etnia, são tratadas as pessoas que erram. Ao contrário do sistema punitivo, vingativo ocidental, as pessoas que erram (nomeadas no nosso sistema como criminosos, infratores, bandidos, nomeações estas que comumente reduzem estas pessoas a este nome coletivo para toda a vida), naquele sistema, são tratadas como pessoas que precisam de uma atenção especial, de acolhimento, na comunidade, e não fora dela (isolados, presos), para que não voltem a errar. Não está presente a ideia de vingança, de punição e de encarceramento. O pior no sistema adotado no Brasil (e na maioria dos estados de direito modernos), é que as pessoas que adoecem, consomem drogas sem controle e se encontram em sofrimento físico e mental, são ainda criminalizadas e punidas. Este sistema punitivo e vingativo se reproduz em diversas esferas da sociedade, inclusive, é claro, na família. A triste sede de vingança e punição da cultura hegemônica moderna, ficou expressa no episódio gerado pela ação penal 470 (chamada pela mídia de “processo do mensalão”). Milhões de pessoas, observando a punição dos condenados nas redes de TV, desejando a punição, com sede de vingança. Não acredito que vingança e punição sejam práticas (e valores) que possam solucionar a violência, pois são práticas e valores violentos. Tampouco são valores que possam sustentar uma sociedade que tenha espaço para todos e cada um. Nas minhas aulas de Teoria do Estado,
quando me refiro às políticas de encarceramento em massa, que agora, em pleno século XXI repetem o século XIX, lembro que, para aquelas pessoas que não se adequavam aos estreitos padrões de legalidade e normalidade estabelecidos pelos poucos (ricos) que se encontravam (encontram-se em geral) no poder, existiam três destinos: o presídio, o manicômio ou o inferno. Sempre brinco que o inferno seria a melhor opção, uma vez que o capeta não teria tanta criatividade para fazer tanta maldade com as pessoas como as maldades diárias que acontecem nos presídios e manicômios. Outro dia, conversando com um colega, um bom cristão protestante, esse me dizia que ele achava que a bondade de Deus era tão grande que, embora o inferno exista, este lugar estaria vazio, pois Deus perdoaria e salvaria a todos. O inferno são os outros diria Camus. O inferno está na terra, experimentaram e experimentam muitos. Os campos de concentração do passado e do presente; os manicômios e presídios do passado e do presente; a violência, a tortura física e mental; a fissura da droga; a violência do estado e da empresa (do poder); a miséria, a fome, a doença e a solidão; o egoísmo; a destruição e a indiferença, a falta de solidariedade. A construção cultural da ideia de inferno está presente em várias culturas. O inferno seria o destino dos pecadores, não adaptados. Efetivamente a ideia de inferno inspirou e inspira as punições aos não adaptados, não enquadrados, e ainda, aos que recusam o enquadramento. Estes, por sua não adaptação (não normalização) devem ser punidos pois ameaçam o poder (ameaçam a sociedade e seu discurso oficial). Logo, a partir da aceitação de um mundo transcendental, dividido entre céu e o inferno (agora mais simplificado depois que o Papa acabou com o purgatório), o mundo terreno também passou a funcionar
neste regime simplificado. O céu para quem merece (quem tem poder diz quem merece) e o inferno para aqueles que ameaçam os que merecem. Nesta construção cultural do bem e do mal, as pessoas se dedicaram a construir infernos cada vez mais infernais, para aqueles que foram (são) considerados maus, pelos que se encontravam (encontram-se) no poder. Surge então um problema de lógica. Ao se esforçarem em tornar a vida dos maus, cada vez mais infernal, os responsáveis pela construção do inferno na terra viraram capetas (ou talvez demônios, os assessores do capeta). Assim, estas pessoas, ao criarem o inferno se tornaram também maus e passaram a merecer o inferno após a morte. Buscando o fundamento cultural religioso, devemos nos perguntar: quem administra o lugar (onde a maldade é instituição) onde estão os maus? Os considerados maus passaram a ser torturados em instituições infernais (os hospícios, presídios, delegacias de polícia, sanatórios, quartéis) por outros maus, funcionários deste espaço de maldade institucional. A maldade autorizada, exercida por especialistas em maldade. Assim uma contradição cíclica se instalou nesta lógica que nos acompanha até hoje: ao criarem infernos para punir os maus, tornaram-se maus, merecedores do inferno. Esta lógica passou a justificar a criação de maus para punir os maus. O problema é que esta lógica, sustentada pelas religiões majoritárias no mundo, faz com que, inclusive os bons, que têm a justiça a seu lado, quando passarem a punir os maus (torturadores de torturadores, ou assassinos de assassinos) se tornem os torturadores dos torturadores de torturados, amparados por uma justiça ainda maior pois estarão punindo severamente os que puniram aqueles que ameaçaram o poder com suas condutas inadaptadas. ConTinuação na Página 3