Jornal Plural N.6

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plural JORNAL CULTURAL

NÚMERO 6 | JUNHO A AGOSTO 2014 | BH | MG

“TEMPO RAINHA”

Abaixo o Photoshop! Por Barroso da Costa Como nunca, a passagem dos anos tem afligido as pessoas, que fazem de tudo para se livrar de suas rugas, de alguns quilos que consideram a mais ou de qualquer coisa que as faça lembrar que, dia após dia, estão envelhecendo. As cirurgias plásticas nunca estiveram tão em alta e as academias vomitam homens e mulheres com mais – às vezes bem mais – de trinta anos, em roupas muito justas e coloridas, à caça da eterna juventude que o mercado lhes impõe como conditio sine qua non para a felicidade. Nada contra uma vida mais saudável ou belos corpos, a qualquer idade. Pelo contrário, limitando-me à estética feminina, a que me rendo com fascínio, posso afirmar sem constrangimento que acho lindas as bundas durinhas e os seios exibidos em decotes, sem falar nas pernas bem torneadas cheias de promessas de tirar o fôlego. O problema é que, em nossa cultura adultescente, tudo isso muitas vezes não passa de promessa, que se esvazia à menor aproximação. Parece que as plásticas, regimes e lipoaspirações têm suprimido não só rugas e gorduras dos que a estes se submetem, mas também a capacidade de ser adulto, com outras ocupações e preocupações que levam a um bom papo, boas risadas, à possibilidade de compartilhar experiências e dividir boas lembranças. Sem isso, só nos resta o desencontro de que tanto se reclama. O encontro capaz de trazer alguma felicidade pressupõe pessoas, que vão muito além de corpos sarados. Pessoas que malharam na vida, na luta do dia-a-dia. Sujeitos que erraram, acertaram, mas que entre venturas e desventuras foram capazes de construir uma

história, que faça rir, chorar e que, em algum ponto, possa amarrar-se à história de outras pessoas. Corpos podem até se unir, porém, por si só, não são capazes de definir laços. Mulheres perfeitas, só com Photoshop, que, além dos defeitos – digo por mim –, faz sumir todo tesão. Mulher gostosa é de carne e osso, tem mais carne que osso e normalmente fala pelos cotovelos, não podendo ser encontrada na banca mais próxima, a não ser que trabalhe nela. Pra ser mais gostosa ainda, tem que saber e gostar de conversar, ter um pouquinho de celulite e braços deliciosamente carnudos, que é pra gente poder puxar num vem cá meu bem, sem medo de rasgar a folha da revista. Se tiver muita sorte, pode exibir refinadíssimos pés-de-galinha e leves parênteses que envolvam toda uma história desvelada por seus sorrisos e expressões. Agora, a mais delícia de todas, que merece um parágrafo especial, é aquela que tem isso tudo e ainda sabe fingir que é frágil, deixando a impressão de que precisa de você para protegê-la de todos os males do mundo. Sabe deitar no seu peito e deixar que você lhe faça um carinho, sem por isso se culpar, achando que com este gesto abandonado repete a submissão que tanto abomina no comportamento da mãe. Ela acorda despenteada, espreguiça gostosamente e, enquanto você faz um café, constata que está tarde para ir à academia, irá amanhã. Então, sem neuras, toma um banho, te dá um beijo e deixa você lhe dar uma carona para o trabalho. Dito isso, conclamo todas vocês, lindas mulheres do meu Brasil, a, numa cruzada metafórica, unirem-se contra o Photoshop! Mas, por favor, a não ser em rituais íntimos, jamais queimem seus sutiãs meias-taças...


EDITORIAL

PRENDER POSTES?

De novo Por Bernardo G.B. Nogueira De novo esse Plural é sobre o tempo. Acho que sempre ele o será. Não tem mesmo como falar de pluralidade sem falar de tempo. Haveria um tempo da pluralidade? Algo mais colorido, e outro tempo incolor? Incolor também é uma cor? Ausências. Delas são feitas o tempo. Daquilo que falta e é sentido. Do movimento de ir e vir que fecunda as existências. Entre o que se dá e o que não fica. Fica então a dica. Nem sempre o tempo foi de vacas coloridas. Penso que poder ter havido um tempo em que não se via cor. Talvez sejam as lentes que estavam a venda neste momento. Mas nem sempre houve vendas. Escambos ideológicos constroem nossa realidade – ela há? Mas e a coisa de trabalhar e fazer arte. Seria possível se funcionário e bailarina? Há um tempo além do presente? E ele, seria aquilo que escrevi ali atrás enquanto era presente ou o porvir que rabisca a folha em branco? Talvez só não exista essa questão de tempo no amor – talvez aos quatorze, quiçá aos vinte, vinte e nove. Já é tempo de perceber que não há photoshop que dê conta disso. Amor, com luz ou sem poste, vai sempre falar de tempo. A coisa boa fica mesmo nos intervalos, entre a última edição do Plural e esta que nasce, algumas bolas a mais entraram na rede de nossa seleção, mas sei que agora as ruas vão cheirar diferentes, vêm cores por ai... De novo o Plural é sobre o amor.

EXPEDIENTE JORNAL CULTURAL PLURAL Editor: Bernardo G.B. Nogueira APOIO TÉCNICO: Núcleo de Publicações Acadêmicas Newton Paiva: Cinthia Mara da Fonseca Pacheco Projeto Gráfico, Editora de Arte e Diagramação: Helô Costa - Registro Profissional: 127/MG

CONTATOS, SUGESTÕES E ANÚNCIOS: jornalplural@yahoo.com.br

Os textos são de inteira responsabilidade dos seus autores.

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Vai faltar poste! Rafhael Lima Ribeiro1 Em uma aula do semestre passado uma aluna me surpreendeu com a seguinte questão: Professor, o que o senhor acha da frase: Bandido bom é bandido morto! Pensei: todo cuidado é pouco, quando esse mantra midiático é feito em forma de pergunta: Bandido bom é bandido morto? Afinal, atualmente sempre a ouvimos como uma tonitruante afirmação. Convidei a todos a revisitar os últimos acontecimentos: jovens amarrados a postes. Como não conhecia bem os casos, conjecturei as seguintes hipóteses: os jovens amarrados eram criminosos1 perversos e reincidentes, seres que não dariam qualquer garantia de obediência às normas penais2, são os que alguns chamam de BANDIDO e que outros, não sei por que (na verdade sei!) ainda insistem em chamar de pessoas. Os que amarram(aram) “pensam” e dizem: são BANDIDOS e “bandido bom é bandido morto, ou, não sendo o caso, ao menos lesionados e presos a postes”. Afinal, eles ferem nossos direitos de cidadãos de bem3 e não vemos outra saída a não ser exercer a autotutela – fazer a justiça com as próprias mãos. O raciocínio é simples: os cidadãos de bem consideram aquele que subtraiu algo de alguém como bandido. Até ai tudo bem (na verdade, não, mas vamos lá), afinal é o nome pejorativo para aquele que comete crime, alguns até dizem que eles teriam realizado a conduta típica descrita no art. 155 (furto) ou art. 157 (roubo), ambos do Código Penal.

Assim, antes mesmo de qualquer julgamento feito por um Tribunal competente, “podem” agredi-lo e se veem no dever de prendê-lo a um poste. Ocorre que nesse momento, para o pesar desses “cidadãos de bem”, há um milagre: o nascimento do bandido, pois aquele que agride o bandido torna-se, nesse raciocínio bandido, alguns vão até dizer que esse novo bandido realizou a conduta típica descrita no art. 129 (lesão corporal) e/ou art. 345 (exercício arbitrário das próprias razões) todos do Código Penal. A frase comporta um paradoxo insuperável: Todos serão bandidos! Aqueles que querem fazer autotutela “justiça com as próprias mãos” por que não lutam por justiça social? Vocês podem me perguntar por que falar sobre esses fatos que ocorreram a dias, a reposta é muito simples: esses fatos são mais antigos do que se pensam, por exemplo, Foucault inicia seu imperdível “Vigiar e Punir” com um esquartejamento de Demian em praça pública. O poder punitivo se reproduz e repete suas cenas como se fosse um filme novo e naturaliza o nosso modo de ver esse filme e o próprio mundo através dele. Se não se consegue pensar com o coração ao menos pensemos com a razão ou vai faltar poste! Endnotes 1 Nesse ponto, a fim de hipótese exclui-se a discussão a respeito da seletividade penal e rotulação. 2 O chamado direito penal do inimigo proposto desde 1985 por GUNTHER JAKOBS. 3 Cidadão de bem era o nome do jornal da Ku KLus Klan.

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O poeta e o operário o que difere o poeta do operário? na maquinaria o trabalho braçal dá lugar à escolha de substantivos verbos metáforas se um carrega cimento terra areia o outro esculpe o ser talha a essência se um usa espaçador de piso espátula roldana o outro opera em silêncio na construção do poema A Maiakóvski Poema extraído do livro “A ETERNIDADE DOS DIAS”, Luiz Otávio Oliani, Editora Mutlifoco, RJ, 2012

Canto de Primavera Ao lembrar-me dos lábios tão amados, o medo do silêncio esquece a hora e todas as histórias e os guardados da mente explodem músicas. Lá fora, o sol recebe as lágrimas da aurora, a aluz atinge a planície, veste os prados e com o verde da página decora uma rosa de ausência. Enamorados, a terra, a água e as pétalas das flores pintam o quadro e o cântico do dia com seus pincéis de impávida poesia. O verso solidário traz sabores dos beijos e dos cálidos abraços... -Saudades, nossos lírios e estilhaços. Nathan de Castro

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TRANSPIRA INSPIRA

Suor ou magia? Tatiana Ribeiro de Souza Durante o mundial de futebol no Brasil foi veiculada a propaganda de uma famosa marca de bebida, desenvolvida para repor rapidamente os líquidos e sais minerais perdidos com o suor, além de fornecer energia para os músculos em movimento na atividade física. Embalados pela trilha sonora do clássico Cinderela, Bibbidi-Babbidi-Boo, atletas famosos como Messi e Davi Luiz apareciam em pesados treinamentos físicos, até que ao final davam verdadeiro espetáculo com suas habilidades futebolísticas. Qual era a mensagem da campanha publicitária? “O suor faz mágica”. Exatamente! Não tem magia para bom desempenho. Esse é o segredo. Para pensarmos um pouco sobre o tema, escolhi dois fatos que me pareceram bastante ilustrativos: uma entrevista de Felipão ao Jornal da Globo, após a partida do Brasil contra a Colômbia, e uma palestra do técnico da seleção brasileira de vôlei masculino, Bernardinho. A partida contra a Colômbia rendeu ao Brasil dois desfalques que pareceram determinantes para o fatídico 7 a 1 que se seguiu no jogo contra a Alemanha: a suspensão do zagueiro Thiago Silva e a lesão do atacante Neymar Júnior. No dia seguinte à partida, em entrevista ao Jornal da Globo, o técnico Felipão comentou o episódio cobrando punição ao jogador colombiano Zuñiga, pela lesão causada em Neymar, e anunciou que a CBF já havia recorrido à FIFA para tentar reverter a suspensão de Thiago Silva, sob o argumento de que o defensor não fez nada de errado. A grande surpresa durante a entrevista foi a reação do técnico da seleção brasileira de futebol quando perguntado sobre a irregularidade da punição dada ao zagueiro brasileiro, pois admitiu desconhecer as regras. O final dessa história nós já conhecemos, e não vamos esquecer tão cedo. Duas semanas após a entrevista de Felipão, que me causou tanto espanto, a seleção brasileira de vôlei masculino vencia a Itália por 3 sets a 0, chegando à final da Liga Mundial contra a equipe dos Estados Unidos. Depois de vencer a partida, enquanto deixava a quadra e se dirigia ao vestiário, um dos jogadores brasileiros foi abordado pela equipe de TV, que pedia algumas palavras sobre aquela vitória. A parte da entrevista que me chamou atenção foi a que o atleta afirmou que naquele momento (minutos após o encerramento da

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partida) o técnico Bernardinho já devia estar no vestiário estudando o adversário do próximo jogo. O “estilo bernardinho” de dirigir uma equipe fica muito claro na palestra motivacional proferida pelo técnico da seleção masculina de vôlei, chamada “A Roda da Excelência”, onde ele conta um episódio curiosos ocorrido em uma das temporadas em que esteve à frente da Seleção. Ao tomar conhecimento de que o treino programado para a próxima parada da Seleção não seria possível, Bernardinho se descabelava, enquanto os jogadores riam e relaxavam com o descanso não programado. No entanto, ao chegarem no hotel, para onde os jogadores subiriam tranquilos para os seus respectivos apartamentos, o técnico viu um estacionamento, segundo ele “lindo, lisinho, vazio, ninguém no asfalto...”. Bernardinho não pensou duas vezes e determinou: - Pessoal, sobe e desce, mete um agasalho, nós vamos treinar. - Treinar? Tá maluco? Aonde? - Aqui no asfalto. - Aqui no asfalto, tá louco? Ensandeceu de vez? - É, mas não interessa, sobe e desce. De acordo com o técnico, depois disso, os jogadores passaram vários dias sem falar com ele. Na mesma temporada, quando foi jogar na Itália, a equipe brasileira chegou em Milão, onde teria 5 horas de espera no aeroporto até a saída do seu voo. O que o técnico Bernardinho pensou? Exatamente! Ele pensou que em 5 horas de espera dá para treinar. Então, colocou os jogadores, sob protestos, para treinar. Naquele ano a Seleção brasileira chegou à final da liga mundial, contra a Sérvia e Montenegro, e venceu depois de resistir a 6 oportunidades da equipe adversária fechar a partida. Quando chegaram ao aeroporto de Cumbica, os jogadores participaram de uma coletiva de imprensa e foram perguntados como conseguiram frieza para reverter o placar negativo tantas vezes, como conseguiram tanta raça e determinação. A resposta de um

deles foi: - Esse ano a gente não ia perder nunca! Até no asfalto a gente treinou. Esse maluco (referindo-se ao Bernardinho) fez a gente treinar até no aeroporto. A diferença entre a equipe cujo técnico não conhece as regras e aquela que não conhece obstáculos para sua preparação nem sempre é a vitória, pois nem o Brasil do futebol nem o Brasil do vôlei faturou o título de 2014. A diferença está no espetáculo. Dito isso precisamos desmistificar algumas falácias desportivas herdadas no mundial que sediamos. A Alemanha não venceu a copa porque é uma equipe solidária e beneficente, mas porque levou o campeonato a sério e cumpriu rigorosamente uma agenda de treinamentos e preparação que envolveu vários especialistas, em futebol, marketing, psicologia, etc. O “Campo Bahia”, como tornou-se conhecido o centro de treinamento da Seleção Alemã, não foi uma construção relâmpago planejada para receber a equipe técnica e os jogadores, trata-se de um empreendimento idealizado em 2010 como um projeto de condomínio e apoiado, a partir de 2013, pela Federação Alemã de Futebol. É bem provável que a estrutura montada no complexo imobiliário dos empresários Kay Bakemeier (ligado à seguradora Allianz Seguros) e Christian Himer (magnata do mundo da moda), maiores investidores da obra, tenha favorecido o desempenho da equipe alemã, ao fortalecer o espírito de grupo, como sustentaram seus ilustres hóspedes durante as entrevistas sobre a concentração. Mas ao que tudo indica, quem saiu ganhando mesmo não foi a comunidade local, como a imprensa tenta convencer. Acreditar que a Alemanha veio ao Brasil fazer caridade e ganhou o título do Mundial porque teve bom coração, só por magia mesmo! Quanto à seleção brasileira, não podemos atribuir a vergonha dos 7 a 1 nem à falta dos jogadores Neymar e Thiago Silva, nem ao desempenho pífio dos que entraram em campo. Os torcedores não devem se esquecer que até o jogo anterior ovacionavam e endeusavam aqueles atletas que depois crucificaram. Aquela partida foi completamente atípica e sua explicação não pode ser reduzida a um ou dois fatores. Talvez a explicação esteja nos bastidores e jamais fiquemos sabendo. Talvez ela esteja diante de nós, numa campanha publicitária que ensina o óbvio: “o suor faz mágica”.

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“IDEOLOGIA! EU QUERO UMA PRA...”

Desvendar o presente Por José Carlos Henriques Falo aqui sobre a desafiadora compreensão do momento no qual nossa existência está situada. Isto mesmo, momento. E, com isto, já nos remetemos ao tempo. O existir se passa, estendido entre um antes e um depois. É um momento, irreptível, em todo o seu percurso. Do antes, se podemos algo saber, sempre o fazemos a partir da memória, própria ou de outros, de narrativas. Mas, paciência! Se não há fatos, mas tão somente interpretação dos fatos, como ensinara Nietzsche, não há reclamar: também no nosso presente, não há fatos, mas sim suas interpretações. Bem assim, no plural. Fatos, puros, em-si, é metafísica, no mal sentido: indecifrável, afinal eles não falam por si, precisam de nossa voz, nós os intérpretes do mundo. Do depois, céticos, melhor esperar. É verdade que, também sobre o depois, outros já construíram suas narrativas. Não se deve negar que alimentamos as nossas, sejam quais forem. Mas, certeza, este porto seguro que sempre procuramos, nem no dito sobre o antes, nem no dito sobre o depois, ousamos ter, não ao menos de uma vez por todas. Certos estamos, até que tudo se agite, novamente. De crenças a dúvidas, de dúvidas a crenças, nos fazemos a meio termo entre saber e esperar saber. Então tudo, o antes, o depois e o agora, é desafio. É parte do existir este susto diante do mundo que vem a mim e me exige que responda, antes mesmo que perguntem, antes mesmo

que eu me pergunte. A história é um fio com o qual tecemos um nosso destino e por ele nos empenhamos. Mas o tempo do agora é o mais desafiador a uma compreensão justa. Talvez, por isto mesmo tantos engrossam as fileiras dos erros históricos crassos e incompreensíveis. Nesta lista, grande certamente, podem ser incluídos muitos filósofos, literatos, médicos, sociólogos, teólogos, gente de letras de todo gênero. Pensam, pensaram ter vivido um tempo outro, que não foi o seu. Ansiaram por ações, ou as praticaram, movidos por objetivos e móbiles que não alcançaram. As tragédias humanas históricas que o digam: elas têm uma história própria, arraigada na existência de seus protagonistas. Quando muito de perto avistamos algo, se turba a visão. Aquele algo talvez esteja ali, num em si indizível. Mas ganha vida apenas pelo que dele se vê. E, visto muito de perto, turbada a vista, os maneirismos comparecem: a-vistamos. Nega-se o visto turbado que não se quer ver, não quer deixar-se ver, vê-se como se queira, a vista se dá mais aos anseios. O feio, o torpe não é visto, ou sim, depende dos propósitos, confessáveis ou não. Assim mesmo, como para Merleau-Ponty, somos sendo no mundo. O movimento nos joga daqui para ali, de lá para cá, jogamo-nos nele, pertencemos a ele e, como parece, ver em movimento requer atenção redobrada. Mover-se, sabendo-se movente, pode tornar visível o que

parece estagnado, mas é volta ou ida de nossos próprios pensamentos sobre o real. Não sei muito sobre o presente. Melhor que dizer “sei tudo sobre ele”. Enquanto penso no presente como algo a desvendar, permanece aberta a possibilidade do engano, de resto sempre existente e insistentemente ameaçadora. Mas tudo isto não deve fazer cessar o esforço: avistar o presente, de perto e de longe, tirar-lhe os véus, arrancar pela raiz a ignorância cega sobre o que me cerca. Esta uma disposição invejável! Sobretudo, em tempos ruidosamente apequenados, de valorização extremada do anti-gosto e das ranhuras e arremedos de interpretação. Mas será isto um charme de nosso tempo, uma sua marca flagrantemente procurada. Ou já estamos vendo de forma turbada o presente, o que hoje vige. A filosofia poderá, quem sabe, mais tarde dizer, quando este ora presente for passado, afinal ela pode compreender somente o já realizado, o real já feito, como a coruja da velha Minerva que, à noite, vê os trabalhos do dia. É Hegel a ensinar. O momento é o que nos desafia, o presente há de ser desvendado. Mas os véus, todos, podem mesmo se esvair? Talvez não, mas compreender o tempo em que se vive segue sendo a maior das tarefas. Ah, cuidado! Sempre se pode tender a pensar o presente como o pior dos mundos, a idade de ferro. O tempo vivido por outros alimenta um enigma especial: parecem melhores do que o nosso. Quem sabe seja este um primeiro véu a se remover. Coragem!

Ela é dançarina O nosso amor é tão bom O horário é que nunca combina Eu sou funcionário Ela é dançarina Quando pego o ponto Ela termina Ou: quando abro o guichê É quando ela abaixa a cortina Eu sou funcionário Ela é dançarina Abro o meu armário Salta serpentina Nas questões de casal Não se fala mal da rotina Eu sou funcionário Ela é dançarina Quando caio morto Ela empina Ou quando eu tchum no colchão

É quando ela tchan no cenário Ela é dançarina Eu sou funcionário O seu planetário Minha lamparina No ano dois mil e um Se juntar algum Eu peço licença E a dançarina, enfim Já me jurou Que faz o show Pra mim Ela é dançarina Eu sou funcionário Quando eu não salário Ela, sim, propina

No ano dois mil e um Se juntar algum Eu peço a Deus do céu uma licença E a dançarina, enfim Já me jurou Que faz o show Pra mim

No ano dois mil e um Se juntar algum Eu peço uma licença E a dançarina, enfim Já me jurou Que faz o show Pra mim

Eu sou funcionário Ela é dançarina Quando esquento a sopa Ela cantina Ou quando eu Lexotan É quando ela Reativina Eu sou funcionário Ela é dançarina Viro o calendário Voa purpurina

Ela é dançarina Eu sou funcionário Quando eu não salário Ela, sim, propina No ano dois mil e um Se juntar algum Eu peço uma licença E a dançarina, enfim Já me jurou Que faz o show Pra mim Chico Buarque


HÁ REAL OU REALIDADES?

Os olhos veem, a cabeça entende, mas usa formulários Por Carlos Magalhães No livro “Arte e Ilusão”, Gombrich faz referência a três imagens de rinocerontes. Uma xilogravura feita por Albrecht Dürer (1471-1528) em 1515. Uma gravura que aparece em um livro orgulhosamente “científico” de história natural do século XVIII. Uma fotografia contemporânea. A xilogravura de Dürer é um marco da iconografia científica. Os europeus nunca tinham visto um rinoceronte. Em 1515, o rei português quis presentear o papa com um elefante e um rinoceronte capturados na Índia. Na viagem de Portugal para a Itália, o navio afundou e os animais desapareceram no mar. Mesmo sem os terem visto, os europeus falaram muito dos animais. Dürer aproveitou um desenho feito pelos portugueses, colocou sua imaginação para funcionar, e criou o seu rinoceronte. Enquanto desenhava, tinha na cabeça um monte de histórias sobre dragões. Por isso o seu animal ganhou umas placas sobre o corpo e um chifre adicional nas costas. O curioso é que a imagem, feita por alguém que nunca tinha visto um rinoceronte de perto, tornou-se uma referência para todos os que procuraram representar o bicho até o século XIX, antes da invenção da fotografia. Os desenhistas iam a campo, olhavam para o rinoceronte bem de perto, e desenhavam alguma coisa parecida com o rinoceronte de Dürer. Saiam alardeando que “agora sim o mundo saberia cientificamente como era um rinoceronte de VERDADE!” Mas não se livravam do fantasma do rinoceronte de Dürer que, a bem da verdade, é muito mais interessante que o verdadeiro. No século XIX, descobriu-se a fotografia. Mas não nos apressemos em concluir que somos mais bem informados e conhecemos o rinoceronte real que os antigos não conseguiam ver por causa da insistente xilogravura de Dürer. A fotografia não é mais do que uma imagem bidimensional impressa em um pedaço de papel (ou exibida em uma tela). Não é o rinoceronte. Nós também precisamos da nossa imaginação e de algum APRENDIZADO para entender essa informação como a representação de uma figura tridimensional. Como a coisa funciona? Todo mundo já deve ter passado pela situação de ter que preencher um formulário

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qualquer e não encontrar a opção em que se enquadraria. Por exemplo, entre “casado” e “solteiro”, como ficam os que não são nem um nem outro? Entre o sim, o não e o talvez, como ficam os que não são nada disso? Pois então. Muitas vezes somos obrigados a descartar alguma característica singular para nos encaixarmos em um padrão geral. O formulário destaca da infinidade de aspectos de que somos constituídos uns três ou quatro que são suficientes para nos definir. O mesmo acontece quando olhamos para alguma coisa e tentamos desenhá-la em um papel (ou quando tentamos descrevê-la usando palavras, mas o exemplo do desenho é mais prático). Quando desenhamos figuras humanas, quase sempre usamos o velho e simples “formulário” que nos oferece cinco riscos e um círculo. Cabeça, troco e membros. Claro que sabemos que aqueles riscos NÃO SÃO uma pessoa. Mas concordamos que em certas situações “representam” adequadamente uma figura humana. O fato é que o “ver” depende muito daquilo que APRENDEMOS a ver, do que QUEREMOS ver e do que QUEREM que a gente veja. Quem for mais cético pode fazer uma experiência. Olhe para alguma coisa. Digamos que você olhou e enxergou um cachorro. Pegue agora uma folha em branco e tente desenhá-lo. Para a maioria das pessoas deve ser difícil ou quase impossível. Mas por que é tão difícil? É difícil porque a maioria das pessoas não tem um esquema ou um formulário que as ajude a selecionar, dentre uma variedade enorme de informações, o que interessa de fato. Simplesmente não saberiam por onde começar. Às vezes, menos é mais, ou seja, quem não tem um formulário para filtrar a realidade pode ver em excesso. A pessoa que desenha (e a que VÊ e DESCREVE, afinal) não começa pela impressão visual, mas por um conceito ou por uma fórmula básica pré-definida que ela aprendeu. Aquilo que é único é acrescentado posteriormente. É muito parecido com o preenchimento de um formulário. Vamos supor que uma pessoa tinha um esquema pronto para desenhar cachorros. Ela colocou então o esquema no papel e depois acrescentou alguma informação para ajudar na identificação daquela figura como o cachorro singular que ela vê. Imaginemos que o cachorro era preto com uma mancha

branca nas costas e tinha a cauda cortada. O desenho pode ser bem diferente da realidade, mas, por isso mesmo, o seu autor vai caprichar na mancha e na cauda cortada, que significarão uma espécie de afirmação: “ESSE É O REX, OLHA A MANCHA E O RABO DELE!” Há formulários mais detalhados do que outros. Uns perguntam idade, sexo e estado civil. Outros perguntam até o nome da sua bisavó paterna. Mas o princípio é o mesmo. É uma questão de mais ou menos informações. Compare um desenho a lápis com uma fotografia. Mais ou menos informações. Em nenhum deles a realidade está inteiramente presente, e não poderia. No caso dos rinocerontes, a xilogravura de Dürer foi, durante quase quatro séculos, o formulário cognitivo próprio para desenhá-los. E Dürer nunca tinha visto um bicho desses de perto. Repetindo: O fato é que o “ver” e o “representar” dependem muito daquilo que APRENDEMOS a ver, do que QUEREMOS ver e do que QUEREM que a gente veja. Precisamos ficar atentos e críticos em relação aos formulários que utilizamos. Na maior parte das vezes, incorporamos esses formulários na interação com os pais, com os pares, com professores, com os livros, com a mídia e não nos damos conta dos significados que carregam. Pense bem: as palavras que usamos para representar o mundo à nossa volta funcionam como os formulários. Guardam esquemas conceituais que direcionam o nosso olhar e a nossa compreensão. Não são neutras. Somos reféns desses esquemas se não os investigamos criticamente. Toda observação se baseia em pressupostos interpretativos que filtram a realidade. Toda descrição resulta de um olhar, mas também de uma cegueira. Precisamos saber o que os nossos formulários escondem para descobrirmos o que eles estão, de fato, mostrando. Se não ficamos atentos a essas questões, ainda mais nos dias de hoje em que as informações circulam numa velocidade estonteante e numa quantidade indigesta, corremos o risco de repetir o que fazia o desenhista do século XIX que ia a campo para retratar “cientificamente” o rinoceronte. Enxergava o fantasma do rinoceronte de Dürer e não via o animal que estava bem na sua frente.

JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 6 | JUNHO A AGOSTO DE 2014

(Referência: Gombrich, E. H. Arte e ilusão. São Paulo: Martins Fontes, 1986.)


SAMBA, FUTEBOL E KANT

Os índios de Berlim

Por Thalita Dittmaier Julho de 2014. E lá se foi uma Copa do Mundo. E Suassuna, Rubem Alves, João Ubaldo Ribeiro. Não que uma derrota no futebol possa ser comparada à dor infinita do vazio literário, mas, no sentido de relacionar cenários tão diversos, tomo emprestado o fatídico jogo Brasil vs. Alemanha para falar de algumas ideias que me levaram a Ubaldo. Instalados no Campo Bahia, centro de treinamento no município de Santa Cruz de Cabrália, os jogadores alemães interagiram com a comunidade. Dançaram com índios pataxós e visitaram escolas. Os meninos também jogaram bola com os anfitriões brasileiros, brindando-nos com sete gols numa partida de semifinal. Comemoração alemã comedida, aqui e acolá. Ao invés do escárnio, os tedescos ofereceram-me consolo. Meu marido, alguns amigos e conhecidos, até mesmo o carteiro, em piedade sincera. Daí em diante, um mundo de teorias. De chavões como “a vitória da competência sobre a malandragem”, o que mais me chamou a atenção foram as conspirações a respeito da simpatia alemã, genuína para muitos, para outros, nem tanto. Inclusive uma doação em dinheiro da Federação alemã para os índios da região motivou a comoção brasileira, coletiva e midiática: de um lado, uma turma ensandecida e seus bordões brasileiro-definitivamente-não-presta; por outro, uma facção munida do slogan antineocolonialista (amparado, sobretudo, pela força emblemática da figura do “espelhinho”, em tempos de escambo), enfim,

como se Lukas Podolski fosse o Cabral pós-moderno. O povo anda desconfiando até da gentileza. Aliás, responsabilizo parte de tais extravagâncias às manhas do politicamente correto, que além de ser tendência contemporânea, tem tornado o ser humano uma chatice que só. Marketing alemão? Certamente existiu. Entretanto, não creio que a equipe do DFB não tenha sido autêntica. Na verdade, confesso que o choque em relação à afetuosidade alemã me deixou um tanto quanto intrigada. Alemão bonzinho? Não pode, gente. Absorta, retornei à época do colégio (Sehnsucht, na língua de Goethe, ou saudade, em português brasileiro). Devia ter uns 16, 17 anos quando conheci um pedacinho de João Ubaldo Ribeiro, através de sua obra, a qual gostaria de me referir. A passagem do autor pela capital germânica, no início dos anos 90, rendeu-lhe um apanhado de crônicas engraçadas reunidas em Um Brasileiro em Berlim. Por mais de um ano, Ubaldo vivenciou a experiência de ser estrangeiro, ao mesmo tempo em que ressaltou a percepção alemã sobre o Brasil, ambas as perspectivas cheias de expectativas e preconceitos. Afinal, nunca me esqueci da maneira com que o autor desconstruiu a imagem do índio “selvagem” numa de suas palestras, relatada nos contos. Um senhor alemão havia lhe perguntado se ele, de fato, nunca tinha visto um índio, no que Ubaldo responde: “Isso é mentira de jornal, jornal mente muito. Todo dia eu vejo índios. Quando eu era menino, os índios costumavam sair da selva do

outro lado da rua e pulavam o muro do nosso quintal para flechar as galinhas. Ultimamente eu estava morando no Rio de Janeiro, onde há relativamente poucos índios, mas assim mesmo dá para a gente ver uns duzentos ou trezentos por dia”. Representações culturais envolvendo nossa própria cultura e a cultura do Outro são mais que naturais. É o fator humano, sem exclusividade de cor, sexo, idade ou religião. As representações positivas, associadas a atitudes xenófilas e práticas de abertura àqueles que nos são diferentes contrapõem-se às representações negativas, que levam a comportamentos tais como a rejeição xenofóbica e a negação das diferenças. Dentre as inúmeras categorizações, destaco, por exemplo, a que encerra os alemães na gaveta da frieza. Os teutos, por sua vez, adoram nos vincular à selva, só para citar uma. Etnocentrismos à parte, os caminhos para uma interculturalidade com menos estereótipos negativos são vários, mas, hoje, lembrei-me de Ubaldo. Há que se encarar a Alteridade de frente. Há que se deixar os clichês de lado. Caso contrário, estaremos fadados ao pseudointelectualismo, bem como aos exércitos formados por pseudo-revolucionários, ou seja, dando com os burros n’água. E o perigo mora ao lado, pois é justamente o pseudo-qualquer-coisa que se converte na indiferença e no ódio gratuito, rechaçando a diversidade, fazendo guerras. Assim, num mundo cada vez mais próximo e plural, por que não aprender ou (re)aprender a nos servir mais do humor e da leveza, como Ubaldo fazia?

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TEMPO (DO)AMAR?

Aos quatorze Por Carlos Renatto Eu amo uma garota chamada Nina, mas Nina parece não me amar. Digo a ela todos os dias que a amo e a quero perto de mim, mas ela só quer outro tipo de garoto, destes com franjas a cobrir-lhes a testa e maquiagem escura nos olhos. Garotos que usam roupas pretas e camisas do AC/DC. Por causa deles Nina não presta atenção em mim. Eu amo essa garota chamada Nina, mas Nina pouco se importa com o que sinto. Ela quer apenas meu ombro para chorar a mágoa que os outros garotos lhe causam. Nina não percebe, eles querem garotas com franjas a cobrir-lhes um dos olhos. Garotas de unhas pintadas de roxo e camisa do Red Hot Chili Pepper. Cada vez que Nina sorri meu amor aumenta mais e eu acredito em tudo o que sinto e que ela também me ama e que nós dois seremos felizes e caminharemos de mãos dadas para sempre. Porém, Nina me conta dos garotos legais que andam de preto e deixam suas franjas caírem nos olhos, com quem quer sair. Eu quero sair com Nina, mas ela não percebe que estou ao seu lado e que meu amor é sempre assim tão frágil. Eu quero esquecer essa garota chamada Nina. Eu amei uma garota chamada Nina, no entanto, Nina não me amou. Ela queria outros garotos e ela sabe que eles não a quereriam porque ela é como eu. Não usa preto, não tem franja nos

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olhos, nem unhas roxas. E ela quer apenas parecer legal também, mas se esqueceu de mim sempre ao seu lado e que eu a achava mais legal que as garotas de unhas roxas e camisas pretas. Eu amei essa garota chamada Nina e hoje nem saímos mais para tomar sorvete para ela me falar dos garotos legais. Ela diz que está confusa como todos eles e que meu amor por ela está só na minha cabeça. Eu acredito que sim, mas quando ela sorri acredito que o amor que senti por ela foi real e por isso não chegará nunca a acontecer. Nina me perdeu para sempre. Eu amo uma garota chamada Clara, mas Clara parece não me amar. Digo a ela todos os dias que a amo e a quero, mas ela só quer garotos mais velhos, estes de cabelos espetados apontados pro céu, os garotos de roupas largas que atravessam a cidade em seus skates, patins e bicicletas. Clara não presta atenção em mim. Quer apenas o meu ombro para chorar a mágoa que estes garotos lhe causam. Eu amo Clara e Clara parece não me amar. Diz que isso é coisa da minha cabeça. Eu acredito que sim, mas quando ela sorri acredito que meu amor por ela é tão real, no entanto, ela diz que eu ainda não entendo dessas coisas, embora saiba que isso não seja verdade. Vou esquecer Clara pra sempre. Eu amo uma menina chamada Sandra, mas Sandra parece não me amar...

JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 6 | JUNHO A AGOSTO DE 2014


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