Jornal Plural N. 7

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plural JOrNaL cuLTuraL

NÚMerO 7 | seTeMBrO a NOVeMBrO 2014 | BH | MG

issN 2319-0000

Divulgação Marcelo Jeneci

eXcLusiVO Montanhas sem fim: graças! Nosso encontro com Marcelo Jeneci é feito mesmo de mistura. Na explosão do encontro. Quando a rua vem pra dentro da casa. Quando o impossível é trazido pra conversar. O cume das montanhas de Minas têm infinitos. Na música de Jeneci também. Por isso ele iniciou a turnê aqui. Por isso ela se encerrou aqui. Mas a gente sabe né: “isso nunca vai ter fim”. Faz-se a caminhada de perguntas. Elas nos levam, nem sempre a respostas. Por vezes e quase sempre. “Prosa e música com Jeneci”. PÁGINAS 5 A 7


eDiTOriaL

HOsPiTaLiDaDes?

quanto mais Maria fala sobre João, mais eu não quero saber o preço do feijão Por Bernardo G.B. Nogueira Helô, melhor diagramadora, e que faz o Plural ser lindo. Queria, particularmente, escrever um editorial cool. Pra ficar assim contemporâneo com sua arte. Mentira! Eu não gostaria e nem sei escrever nada cool. Carlos Magalhães, seu texto não me apanhou. Isso não seria recalque? Vou me dirigir ao outro. Por isso Tatiana Ribeiro, eu careço de doses enormes de “ayenteko” - para me salvar do “rodo cotidiano”. Sacou Barroso da Costa? Pois é, porque há momentos em que parece estar-se a delirar, não José Luiz? Há linguagens que destroem o outro sob a maquiagem de uma sua construção. Em outros momentos parece que o muro é alto demais. Ele esconde o sol. Esconde as flores. Talvez seja interessante pensar em uma existência sem eles. O que pensa disso Thalita? Carlos, o outro é um muro? Márcia Tiburi, será que estamos abortando vidas sem ao menos ouvi-las morrer? Que sociedade mais falante né?!?! Engraçado, muitos falantes em um só tom: do macho! Samba sem nota. Canto sem cor. Tânia, talvez as aparências enganem não é mesmo? Corações podem se fantasiar: de bois, pedras e tais. Menos não existir. Ou não pulsar. A gente planta o que colhe não Marco Túlio? Ou estamos errando os ditados? Sei só que o “melhor da vida é de graça” e quem não concordar com esse ditado que escreva ao Marcelo Jeneci, a quem agradeço o carinho da prosa e a inspiração para esta edição do nosso Plural. Feito de gentes, todas elas, “de graça”!!!

eXPeDieNTe JOrNaL cuLTuraL PLuraL

Projeto de Extensão Direito e Cultura da Escola de Direito do Centro Universitário Newton Paiva editor: Bernardo G.B. Nogueira APOIO TÉCNICO: Núcleo de Publicações acadêmicas Newton Paiva: Projeto Gráfico, editora de arte e Diagramação: Helô Costa - Registro Profissional: 127/MG

cONTaTOs, suGesTÕes e aNÚNciOs: jornalplural@yahoo.com.br

Os textos são de inteira responsabilidade dos seus autores.

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aYeNTeKO Por Tatiana Ribeiro de Souza Era quarta-feira, mais de 40 indígenas Avá-Guarani dividiam o auditório com antropólogos, estudantes, professores e representantes de outras comunidades indígenas de diversas partes da América-Latina. Quando a palavra foi franqueada ao Cacique Ilson Soares, liderança Avá-Guarani Tekoha l’Hovy, sua primeira intervenção foi um pedido de licença, para falar com o seu povo no seu idioma, enfrentando a mesma questão exposta e problematizada por Derrida no discurso proferido na Cardozo Law School, em 1989, que resultou no livro traduzido para o português como Força de Lei. “Devo endereçar-me a vocês em inglês (...) Se ao menos desejo fazer-me ouvir, preciso falar na língua de vocês”, afirmou o Filósofo. A preocupação do orador francês, naquela ocasião, não podia ser atribuída exclusivamente à hospitalidade, que lhe era tão cara, mas também à falta de correspondência que outros idiomas apresentam em relação ao que se quer traduzir. “Peço licença para falar com o meu povo em guarani”, foram as primeiras palavras do Cacique. O discurso que se seguiu parecia agradar seus destinatários, que não eram meros ouvintes, mas verdadeiros interlocutores. Entre aplausos e outras manifestações, ecoava repetidamente a palavra “ayenteko”, que já começava despertar minha curiosidade. A musicalidade do idioma desconhecido revelou-se permeada por palavras conhecidas. Aos poucos me dei conta que as palavras familiares aos meus ouvidos haviam sido incorporadas pelo guarani exatamente pela falta de correspondência naquele idioma. Diante dessa percepção, tive o cuidado de anotar o português captado em meio à fala guarani, na intenção de perceber o que

aquele povo desconhecia até ser confrontado com o colonizador. “Integração”, “excluído”, “religião”, “enfraquecer”, “sobrevivência”, “sociedade” e “poder público”. Tudo dito alto e em bom som. Tudo agora parte do “novo mundo”, novo para os europeus e também para este “outro” (os nativos) desconhecido. Quando já falava em português, dirigindo-se aos demais integrantes da plateia, em meio a manifestações de “ayenteko”, o Cacique se queixava de ter sua identidade indígena permanente questionada pelo “homem branco”, sob o argumento de que índio não anda vestido, não fala português e tampouco usa celular. “Mas Cabral também não chegou aqui usando terno, nem computador, nem celular. As coisas mudaram” redarguiu o cacique. E acrescentou: “se homem branco andar pelado não vai virar índio por isso (...) Andamos vestidos porque senão seremos acusados por isso”. Se por um lado, o uso de roupas pelos guaranis é considerado um sinal descaracterizador da sua condição de indígena, por outro lado revela a hospitalidade diante do outro que vem. Para que o estrangeiro, que tomou suas terras, não se escandalize o guarani se apresenta diante dele da forma como ele veio. Portanto, se vestem os guaranis. As intervenções permanentes da plateia, deixavam claro pra mim o caráter coletivo daquela narrativa, intercalada permanentemente pelas manifestações de “ayenteko”. Com a curiosidade incontida decidi perguntar ao homem que sentava à minha frente, afinal de contas o que significa “ayenteko”, ao que ele me respondeu: “tá certo”. E seguiu confirmando a fala do Cacique. Foi assim que me dei conta que é para uma fala coletiva e participativa, confirmada permanentemente pelo “ayenteco”, que ainda não temos correspondência na cultura do colonizador.

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Do que sai do coração

O Boi de pedra Por Tânia Cristina Dias* Para Samuel e vovô Beto

Era uma vez uma cidade pequena, tão pequena que mais parecia um grão de feijão. E, talvez, por ser tão pequena, seus habitantes guardavam seus muitos segredos em potes de conservas e caixas de sapatos. Vicinal a essa pequena cidade estava o campo, com homens fortes e rudes. Bronzeados. Curtidos pelo sol. Como todo trabalhador da terra. E, em meio a esse campo, em uma minúscula propriedade, estava uma casa amarela de poucos cômodos. O agricultor, sua mulher e quatro filhos. Uma viçosa horta, vasto campo, muitas sementes, algumas galinhas vermelhas, carijós e d’ángola, vacas malhadas e um único boi. Um boi de pedra. O boi era cinza, enorme. Ficava em sua forma de estátua durante dias e noites seguidas ao lado de um ranchinho. Cercado por uma mangueira, um latão azul e uma mesa onde recebiam às visitas. A única função desse boi era ficar parado em sua pedridão, de olhos fechados a assustar as crianças e entreter os adultos curiosos. Estático. Imóvel. Exceto nos dias de chuva. Quando a água caia impiedosa do céu sobre a carapaça petrificada do boi. Ele movia. Exatamente. Em dias de chuva ele andava, pastava como qualquer outro. Da pequena casa era possível ver um boi irreconhecível. De longe via seu corpo forte, seus chifres longos e o contorno dos olhos abertos. Bem abertos. A observar a vastidão do mundo. Eram olhos de se ver a primeira vez a vida. Primeira luz. Primeiro dia. Início de tudo. Bastava a água ralear, ele retornava para seu estático posto. E por muito tempo, o boi pedra viveu na cidade pequena feito feijão, onde as pessoas guardavam seus segredos em potes de conservas e caixas de sapatos. Por simples precaução. Por conta de viver em meio a várias sementes e cidades, que se amontoavam em estados, países e continentes. E tudo cabia em um infinito mundo, que resistia em um pequeno coração de menino, neto daquele homem forte que trabalhava a terra. O menino contava feliz e esperançoso, a história do boi pedra, com aquele olhar de quem vê a vida pela primeira vez. Os viajantes ouviam atentos, alguns se importavam, já outros apenas levantavam as mãos e as abanavam em frente ao rosto, como a espantar uma mosca. Espantando as ideias e qualquer outra forma de incômodo. Mas o incômodo maior era o medo. O medo no olhar do menino. Às vezes, alguns adultos saboreavam a história e gostavam de ouvir. Mas crer, acreditar mesmo, nenhum, nenhunzinho. Com o tempo o menino perdeu o medo do boi de pedra. Passou a temer muito mais os homens e a gostar da função estática do boi, que viveu em uma pequena cidade, que de tão pequena, mais parecia um grão de feijão. Foi quando começou a guardar seus segredos e histórias em potes de conservas e caixas de sapatos. Hoje, quando algum viajante curioso o surpreende com a pergunta sobre a veracidade e a utilidade daquela antiga história, ele simplesmente diz: É melhor um corpo de pedra, do que o coração sem função. *Contista

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“O aVessO, DO aVessO, DO aVessO”

Delírio Por José Luiz Quadros de Magalhães Temos discutido, em vários textos, o significado diverso da palavra “ideologia”, que ganha contornos distintos em diversos autores. Um dos primeiros a tratar o termo, com um significado negativo de distorção e encobrimento, foi Karl Marx. Marx utilizou inicialmente a palavra “inversão” se contrapondo à ideia de Hegel. Para Hegel, “inversão” seria a passagem (ou conversão) do subjetivo para a objetivo e vice-versa: “o estado prussiano surge como autorrealização da Ideia, como o ‘universal absoluto’ que determina a sociedade civil, em lugar de ser por ela determinado.” Para Marx, a fonte da inversão ideológica é uma inversão da própria realidade. Marx aceita inicialmente o princípio básico de Feuerbach de que o ser humano cria a ideia de religião e de deus, e que a ideia de que deus criou o ser humano é uma “inversão”. Marx, entretanto, vai muito além. Para Marx isto não é apenas uma ilusão ou uma alienação filosófica, isto é produto de uma “inversão” que está presente na realidade das relações de poder. A única maneira de eliminar este ocultamento, estas inversões, é, para Marx, a mudança da realidade social. Assim Marx afirma no seu texto “Critica da filosofia do direito de Hegel: introdução” que o estado e a sociedade criam, inventam, a religião, “que é uma consciência invertida do mundo porque o próprio estado e sociedade estão invertidos. O mundo está de cabeça para baixo (sensação que se amplia a cada dia) e não basta a filosofia para desvirá-lo, é necessário a transformação da realidade social e econômica. Nos seus escritos Marx nos sugere uma ideologia negativa (a partir do conceito marxiano de inversão) enquanto distorção e encobrimento. No texto, “A ideologia alemã”, podemos pensar em uma ideologia no sentido positivo, enquanto um sistema de ideias. Neste texto Marx chama a atenção sobre a impossibilidade de uma “ideologia positiva” (Marx não usa esta expressão isto sou eu) acabar com uma “ideologia negativa” (também não usa esta expressão - mas a

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ideia geral pode ser encontrada nos textos). A única forma de acabar com a ideologia no sentido negativo (inversão) é transformando a realidade invertida, ou melhor, revolucionando a realidade social e econômica. Esta é uma inspiração fundamental em Marx: uma filosofia engajada na transformação social. Convido o leitor a ler Marx, assim como ler o livro de Slavoj Zizek “Um mapa da ideologia”, publicado no Brasil pela editora Contraponto, em 2010, no Rio de Janeiro. Leiam também os textos e vídeos sobre ideologia publicados no blog (www.joseluizquadrosdemagalhaes.blogspo.com). Compreendendo o processo ideológico de encobrimento uma questão se apresenta neste início de século. O problema contemporâneo está em uma radicalização do processo de alienação. Os discursos não mais guardam contato com qualquer traço do real. Como cantaria Cazuza, “suas ideias não correspondem aos fatos”. Lembrando Zizek, as palavras não mais correspondem aos seus conceitos historicamente construídos e transformados, ou seja, se afastam do caminho histórico conceitual de seus significados. Citando Zizek: “a luta pela hegemonia ideológico-política é por consequência, sempre a luta pela apropriação dos termos ‘espontaneamente’ experimentados como ‘apolíticos’, como que transcendendo as clivagens políticas.”s Não há mais uma preocupação mínima com qualquer coerência ou construção lógica do discurso ideológico. A ideologia (a distorção, alienação e encobrimento) se apresenta de forma pura, desavergonhada e brutal. As ações não se sustentam em argumentos. Estes resistem pouco e rapidamente se transformam em raiva, no rebaixamento do outro e na desqualificação do seu argumento. Um exemplo interessante se apresenta na Argentina, final de 2012: o jornal “O Clarin” detém mais de 250 licenças de rádio e televisão. Uma nova lei aprovada pela Câmara e Senado argentinos, sancionada pela presidenta da República, limita a propriedade dos meios de comunicação seguindo orientação da Unesco, o que permitirá que a pessoas possam ter acesso a mais meios, que repre-

sentem interesses diversos, compreensões distintas, e assim possam formar livremente seu pensamento. Entretanto, os proprietários privados do “Clarin” defendem seu monopólio fundamentando seus argumentos na liberdade de expressão e na liberdade de consciência. Como? Como é possível alguém defender a liberdade de expressão, de imprensa e de consciência defendendo um monopólio, seja ele governamental ou privado? Como confundir o direito das pessoas, dos jornalistas, dos diversos grupos de interesses presentes em uma sociedade expressarem suas ideias com o fato (posto como direito) do exercício individual do proprietário ou proprietários de uma mídia, expressar suas convicções individuais em um meio monopolizado ou oligopolizado? Como é possível sustentar, que é liberdade de imprensa, o fato de um pequeno grupo de proprietários ocuparem 60% do espaço da mídia para dizer suas convicções, sua visão de mundo e defender seus interesses? Esta impossibilidade lógica se choca com a possibilidade de exercício de poder real, concreto, capaz de desestabilizar um governo democraticamente eleito. Este uso radical e brutal da ideologia (enquanto distorção) ultrapassa uma argumentação jurídica, política ou econômica: entramos no espaço das ciências “psi” (psicanálise, psicologia e psiquiatria). As pessoas no poder e mais um grupo de seguidores crentes estão DELIRANDO. É o comportamento de torcida de futebol aplicado à política. As pessoas que se encontram no poder, acumularam tanto poder que estão delirando. Os seus argumentos são delirantes tal o absurdo do poder que acumularam. E a torcida destes grupos deliram coletivamente, com o agravante que ainda defendem interesses que não são os seus, e mais, são contra os seus. No dicionário Aurélio encontramos no verbete para “delírio”: “Distúrbio de julgamento devido a alteração global da consciência da realidade e que, em face de um raciocínio correto, não se modifica, ou pouco se modifica.” O delírio ainda causa (e é fácil identificar os delirantes) “imoderada excitação do espírito; agitação, desvairamento”

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eXcLusiVO

Montanhas sem fim: graças!

Faz-se a caminhada de perguntas. Elas nos levam, nem sempre a respostas. Por vezes e quase sempre. A outras perguntas. Na quinta-feira última houve o último show da turnê “De Graça” de Marcelo Jeneci. O show fez parte do projeto MPB Petrobrás e se deu no Sesc Palladium em Belo Horizonte. Aliás, de fato, é de horizontes que vivemos. O show de Jeneci é um horizonte aberto na carne por vezes maltratada pelo dia a dia líquido dos tempos de hoje. É uma graça o show. Graça de show. Graças nascidas. Saímos de lá agraciados. A música ali foi uma graça. Os sorrisos arrancados, de graça. A inspiração, de graça. Encontros que viram amor, amizade, de graça. Não havia chuva nesse dezembro chuvoso em Beagá. Dentro do palco chovia emoção, ela também, de graça. Se há algo que atravessa o show, sem dúvida, é uma aura de abertura que permite imensas dimensões de viver. Isso por causa de uma mistura que envolve os ouvidos, os olhos, os braços, as pernas e os corações de quem se permite à esse encontro. De Graça, como o próprio Jeneci faz questão de dizer sempre no decorrer do espetáculo, são as melhores coisas da vida. Mas, se acaso pensares, você que lê esse texto despretensioso, que há uma “ingenuidade” ou um ar de pretensão de descobrimento do que é o melhor da vida, então, penso que há em sua leitura uma boa direção, e uma má. Ora, é exatamente nesse local em que por vezes passamos direto que esse show toma a gente. Há um intervalo, entre um sintetizador, uma imagem distorcida no cenário do show, uma voz terna e uma letra bonita que nos recebe. Então, o show de Marcelo Jeneci é um espetáculo de verdadeira hospitalidade. Recebe ali os olhares fatigados de nossa contemporaneidade. Colore a cidade. Acalenta os ouvidos cheios de buzinas. Por isso, é um show que não tem pretensão. Mas que também possui. Na exata ambiguidade que é o ser humano que a música ali nos embala. Vale a pena tentar entender esse terceiro elemento que o show nos dá. Antes da razão, depois da emoção, antes da emoção, depois da razão. Com verdade, sem nome. De graça. Ouçamos “dar-te-ei”. Essa ideia que estamos querendo trazer do show é isso mesmo que transita entre a efemeridade do momento do show, a rapidez de um acorde, e também a eternidade do momento dos encontros. Jeneci traz ao seu público o som do intervalo. O filósofo Jacques Derrida poderia chamar isso de rastro. A física quântica de terceiro incluído. Isso tudo com um tom bastante minimalista, ou seja, querendo talvez, manter o maior silêncio, para escutar a voz mais fina. A música de Jeneci recebe uma dimensão muito especial quando figura ao seu lado Laura Lavieiri, parece que nessa união outra daquelas fendas men-

cionadas se abre. A voz feminina presente ali nos dá a exata dimensão do momento de fecundação. Transcendências. Somos fecundados de inspiração pela intervenção de Laura. Assim se derrama o espetáculo sobre nós. Com uma fluência interessante entre a sutileza de Laura e a intensidade de Marcelo. Um cara que entendeu o momento e se jogou a ele. Literalmente ao descer do palco e tomar das mãos de uma fã o seu telefone e fazer ali mesmo um clipe seu cantando um de seus clássicos. Essa relação com o tempo torna o show muito interessante. Ora, as canções, dispostas entre baladas românticas e letras com questões altamente existenciais, mesmo com essa variação, há nelas um fiat lux que acompanha o show. São pedaços de uma história que é contada ali, que só poderia ser feita daquela maneira, com a mistura dos instrumentos, de uma sanfona familiar até um efeito digital que projeta no cenário várias faces do cantor. O show se une exatamente pela comunhão dele com o público. Sua música é hospitaleira com seu público. Esse o ponto alto do show. Enquanto estamos ali sentados, dispostos com nossos sentidos para o show, pode-se esperar, não vai tardar, essas canções nos desafiarão a deixar nascer algo que sempre esteve ali. À espreita. Ao nosso lado mora esse sentimento que brotaria fácil ali. O show é inspirador. Ensina e emociona. Com acordes profundos, letras verdadeiras e descomplicadas. Talvez seja um show para desatar nós e criá-los, pois sabemos, como nos ensina em uma das canções, “não tem cadeado no seu pensamento”. E a felicidade viraria até verbo com Jeneci, “é só questão de ser.” Belo Horizonte e Marcelo Jeneci estão próximos, mesmo que exista distância especial. Aqui vivemos de horizontes que nos são dados pela nossas montanhas. A música “Felicidade” diz isso. Ao mesmo tempo, há palavras constantes no repertório que dão a noção desse encontro com Minas. Jeneci fala de mar, há aqui um mar de montanhas, e de horizontes infinitos, nos provocando a isso com seu cenário “psicodélico”. Nos abraça e chama pra dentro de casa depois e durante o temporal. Aqui em Minas gostamos de conversar dentro da cozinha. Seu show é da cozinha e da rua. Plural. Ri. Chora. Sanfona e guitarra. Homem e mulher. Palco e multidão. Horizonte belo e estradas sem fim. Nosso encontro com Jeneci é feito mesmo dessa mistura. Na explosão do encontro. Quando a rua vem pra dentro da casa. Quando o impossível é trazido pra conversar. O cume das montanhas de Minas têm infinitos. Na música de Jeneci também. Por isso ele iniciou a turnê aqui. Por isso ela se encerrou aqui. Mas a gente sabe né: “isso nunca vai ter fim”.

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B. Beagá, primavera, 2014.

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eXcLusiVO “Uma das coisas que eu mais gosto na vida, é que cada um inventa o mundo que vive sabe? Cada cabeça, cada olhar e tal... E aí dentro disso, nesses milhares de planetas, todos são singular... Só você é você, só eu sou eu, só você tem o peso da sua vida, as suas questões e a vontade de dizer o que você quer dizer...”

“Prosa e música com Jeneci” Marcelo: Alô... Bernardo: Marcelo? Ô Marcelo, é o Bernardo aqui de Minas que tá falando, tudo bem? M: Tudo bem Bernardo? B: Jóia... Eu peguei seu telefone com a sua produtora, ela me ligou agora a pouco... M: Unhum... B: Aqui, então... A gente pode trocar uma prosa rapidinho aqui então? M: Pode sim, tô aqui à sua disposição... B: Ah, pô, que legal, cara. Bom, primeiro é um prazerão falar com você assim... A gente é muito fã das suas canções e tal... Tive que fazer uma peripécia aqui pra gente poder falar, porque eu tava no meio de uma viagem assim no trânsito, mas tá ótimo. Bom cara, assim... M: Cê tá no trânsito? B: É, eu consegui encostar aqui, que eu tava na via né, tive que fazer um malabarismo, mas agora tá jóia.... Então cara, seguinte, na verdade só pra te dizer assim, né, a nossa prosa eu vou colocar lá no jornal, como a gente havia falado, o Jornal Plural, sai na próxima edição dele, e... E na verdade eu... A prosa que eu gostaria de falar com você assim, porque aquelas perguntas que as pessoas fazem pra gente são sempre as mesmas... M: É chato quando são as mesmas, né... B: É, pois é, cara (risos). E assim... Eu vejo que na sua música cara, tem uma... Não sei se a gente escuta com aquilo que a gente quer tirar da canção, mas como eu escrevo poemas e tal... Eu sempre vejo uma relação muito próxima da sua musicalidade com a poesia... Eu acho que todas as letras de música acabam sendo um pouco poéticas, mas eu gostaria de saber se você tem essa inten-

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ção, de trazer um tom poético pras canções... Mesmo que não nas letras propriamente mas até na composição da música e tal... Se você tem esse interesse assim, nessa relação... M: Com certeza, porque.... Acho que música, letra, arte, no sentido geral assim da... Afirmação da vida... A gente vai sempre procurando o sentido da arte que tem a ver com a comunicação, com a afirmação da vida, com a emoção, com o coração ali, dentro daquilo tudo, então... Eu acho que não tem nada que eu não deixo sair de casa se não tiver esse coração imenso, balizando o que tá sendo dito, o que tá sendo tocado, que melodia que tá nascendo, é... E atrás dessa singeleza, dessa beleza, que eu caminho na hora de fazer as minhas músicas né... B: Pô, legal... Porque isso assim... Como eu lhe disse, eu não sei se eu escuto com ouvidos de quem quer escutar, mas a mim me parece muito claro essa sua... Essa sua sensibilidade pra esse trânsito dentro da arte, fazendo esse diálogo aí, mesmo que silencioso, é até interessante falar silencioso com música, mas eu acho que tá lá. Tá lá na sua música essa... Essa poesia toda. E... Uma coisa assim ô Marcelo, que me chama atenção na sua música... É o uso quase constante assim, do acordeão... Cê tem lá uma tocada muito particular assim... E aí, depois de assistir alguns clipes seus, até de uma volta a uma... A uma raiz assim não é? Eu queria saber se você tem uma influência de raiz familiar ou até.... De construção. Ou se é uma influência musical de algum outro artista pra você inserir o acordeão nas suas canções de uma maneira bastante peculiar inclusive... M: Ó, na verdade a sanfona, ela atravessa a história da minha família né, o meu

pai que é pernambucano, ganha a vida desde os vinte e poucos anos trabalhando com sanfona, fazendo eletrificação pra sanfona, arrumando sanfona. Então todos os acordeonistas primeiro que a gente pensar, assim, os primeiros dez grandes nomes, eu desde moleque vi tocar perto. Vi lá em casa. Dominguinhos, Oswaldinho, Sivuca, todos os outros...Iam lá em casa pra fazer cenas com meu pai, então... Inevitavelmente, acabou que eu assumi o instrumento, sou o único de casa que toca, então pra... Na vida do meu pai, chegou um lance de trabalhar, arrumar e eletrificar sanfona, pra mim chegou o lance de tocar. Então vai atravessando a história da nossa família... B: Ah cara, pô, que legal... Agora a coisa fica com mais sentido ainda... E falando então. Aproveitando uma coisa... Falando em sentido ... Eu acho que rótulos são coisas que atrapalham o infinito que o outro tá criando com cada gesto dele ali, então eu acho isso desinteressante... Mas de alguma maneira, você tá aí numa pegada com outros artistas também, com uma musicalidade nova no meu entendimento assim... Uma musicalidade quase existencialista, né... E isso você, de dentro do furacão, que tá vivendo, que tá agora com essa nova turnê... Você acha que tá rolando um novo movimento de MPB assim, no Brasil como um todo e obviamente como que você se veria dentro dessa questão toda assim... M: Eu acho que a vida, ela segue numa espiral ascendente sabe... Trazendo momentos parecidos que já foram vividos na história da humanidade... Então quando uma coisa chega a exaustão, aí volta aquela outra de novo que ninguém queria mais saber, enfim...

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“...a gente tá vivendo um período em que muito do mundo começou a produzir muita coisa simultaneamente com uma necessidade de expressão muito grande nesse começo de virada de século...”

Eu acho que a gente tá vivendo um período em que muito do mundo começou a produzir muita coisa simultaneamente com uma necessidade de expressão muito grande nesse começo de virada de século, de 2000 pra cá né B: Unhum... M: Então, os ecos disso são as manifestações de artistas tocando no mundo, seja na street art, seja na música popular de cada país, seja na incansável velocidade da informação. Então eu vejo que apareceu uma nova frota de ônibus para serem ocupados por artistas novos que tavam ali tentando alguma coisa e aí vem disso muita gente... Muita gente embarca nessa ao mesmo tempo, Criolo, Emicida, eu, Tulipa, é... Cidadão Instigado, Curumin, é... Todos os novos não tão novos e os novos também, né acho que... Veio uma... Uma aparição de muita gente ao mesmo tempo, pra mim tá ligado a isso, a uma necessidade de expressão atual. Como já foi vivido também nos anos 60 com outra cor. B: Claro, claro... Ô, que legal... E assim cara, pra eu também não te tomar muito tempo e cumprir a minha promessa né, e não ficar um cara muito fã, né, se não daqui a pouco eu fico fã e aí daqui a pouco eu falo, e aí cê gosta de futebol e tal? (risos) E a coisa perde um pouco o sentido, eu quero só, eu vou te falar uma coisa e depois vou te fazer uma pergunta, e a gente... Porque assim, eu acho importante te dizer como é que rolou essa coisa de eu chegar até você, porque porra, eu não trabalho em rádio, enfim... Eu sou professor universitário, e tal, mas eu tenho escrito a um tempo já alguma... Já tenho alguma coisa de poesia e foto publicada, alguma coisa de cinema, tô fazendo um livro com o pessoal do Rappa agora sobre as can-

ções deles e tal, porque no meu entendimento essas coisas tão todas juntas, entende? Então quando eu entro pra sala de aula, eu acho meio absurdo fechar a porta, sabe... E assim, eu começo a perceber, é... Desde talvez o Los Hermanos assim, uma coisa muito interessante, que é assim, é... Vocês... Quando eu falo vocês é porque eu penso que tá rolando um momento né, desde... Não vou colocá-los como marco, mas enfim... Tá rolando uma coisa diferente... Eu vejo muita mistura, sabe, do mesmo jeito que você cria uma canção, digamos romântica, com um violão que aí acaba remetendo a gente pra sei lá... O início de um banquinho, um violão, e tal... Ao mesmo tempo vocês trazem uma reflexão existencialista que é, que acaba de alguma maneira se tornando universal e isso cria, aí que eu queria chegar e porque que eu te falei isso tudo, me parece que quando a gente vai unindo esses pontos você acaba criando uma identidade própria, né, então dessa pluralidade toda, dessa diversidade toda, acaba cada luz acendendo com a sua cor própria, né... Então o que eu queria te provocar com essa minha fala é... Você me disse que pô, que a sanfona, que o acordeão, que meu avô também tocava, atravessam a história da sua própria família, você hoje, me parece que tá alocado assim em São Paulo que é uma cidade extremamente diversa, como que você vê hoje essa mistura de artes, como que ela chega na sua música e como que isso cria o Marcelo Jeneci? Assim... Como é que você se vê de novo né, dentro dessa babel, dentro dessa miscelânea toda que é o tempo que a gente tá agora? M: Uma das coisas que eu mais gosto na vida, é que cada um inventa o mundo

que vive sabe? Cada cabeça, cada olhar e tal... E aí dentro disso, nesses milhares de planetas, todos são singular... Só você é você, só eu sou eu, só você tem o peso da sua vida, as suas questões e a vontade de dizer o que você quer dizer... E assim vai numa escala imensa, então eu acho que... Justamente, tipo, viver nessa babel é interessante pra caralho, acho que é uma das coisas que eu mais gosto na vida, me pergunto: o melhor da vida é o que? (sons do telefone) De ouvir a vida através do olhar do outro, isso pra mim é um absurdo, então eu acho que dentro de tudo isso, quem tem algo pra dizer vai tentando da maneira mais sincera e mais honesta, e acho que quando a gente carrega sinceridade e honestidade, a gente acaba sendo escutado. E aí musicalmente eu sou influenciado por todas as coisas que eu ouço e que eu não ouço, mas que eu mais busco me aproximar das coisas verdadeiras, das pessoas verdadeiras. Eu acho que o que mais me influencia são as verdades sabe? Tipo, quando a gente se depara com alguma coisa verdadeira, seja um trabalho ou seja uma sala, seja uma música... Qualquer que seja, você vê que é verdadeiro, isso te influencia, isso vai, alimenta o seu coração pra hora de fazer algo que seja, nesse intuito gratuito de fazer arte sabe? De ser puro isso, isso me instiga muito... Esses dias eu fui ver um... Sai tão feliz, tem dois caras que me deixam feliz assim, sabe, recentemente, que é... Esqueci o nome dele, que é o diretor de um filme argentino que chama Relatos Selvagens... B: Nóh, cara, não acredito que você tá falando isso...

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eXcLusiVO Continuação da entrevista com Marcelo Jeneci

Divulgação Marcelo Jeneci

“Tipo, quando a gente se depara com alguma coisa verdadeira, seja um trabalho ou seja uma sala, seja uma música... Qualquer que seja, você vê que é verdadeiro, isso te influencia, isso vai, alimenta o seu coração pra hora de fazer algo que seja, nesse intuito gratuito de fazer arte sabe? De ser puro isso, isso me instiga muito...”

M: Eu achei tudo esse cara, esse menino é um gênio, bicho, eu sai do cinema tipo wow que legal que eu tô vivo pra ver um cara como esse quase da minha idade botando pra foder... A outra coisa foi o show do Tame Impala, o Kevin Parker que é a frente do Tame Impala, do cacete sabe? Então você vê que a galera tá sem preguiça, muito na verdade, muito em busca de algo muito sólido e aí é... É essa, eu acho que o caminho é esse (risos) B: Aí fica realmente impossível né, a gente ficar parado (risos) M: É, é... (risos) B: É, assim cara, cê tocou, putz, olha, aí agora eu vou até ter que me conter porque assim, eu tenho uma coluna de cinema, o último filme no qual eu escrevi é o Relatos Selvagens e assim... Eu ainda não consegui assistir mais nada depois daquilo, porque assim, eu falei, cara, tá ali, tá ali entendeu? M: É o chute no saco da humanidade, tipo ó, o fruto do Tarantino com o Almodóvar. Então pega isso de um jeito, meu, tão legal, eu fiquei tão feliz e eu acho que é isso. Me influencia esse tipo de coisa, independente de ser da música ou não. B: Pô cara, bom demais, todos nós queremos explodir alguma coisa né, então (risos). Seja de que maneira for, mesmo que não seja com explosivos, mas assim, seguinte

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cara, muito obrigado pela sua prosa assim... Pô eu tô super feliz assim... M: Eu também... B: Eu acho que na hora que eu publicar essa coisa assim o povo “nó Bernardo, não precisa ser tão fã”... Mas assim, eu não tenho compromisso, eu não sou repórter, eu digo assim, quando eu lancei o último livro “Cinema com Filosofia” eu falei, cara, eu sou um cara super a vontade, eu não faço cinema, eu não sou filósofo e escrevi... E não sou escritor, então esse livro na verdade ele é um acontecimento, então cada um chama ele do que for, e assim eu acho que tá muito nessa onda do que você falou sabe... Sem ser jornalista eu consigo talvez ouvir de você aquilo que talvez um jornalista, por força da profissão, obviamente, não consegue, que é essa coisa viva, e eu vejo isso na sua canção, então foi isso que me atraiu “de graça” , já pra fazer o link assim com a sua coisa, é uma atração pela arte de graça, pela coragem e assim, então... M: Que legal... B: Queria te agradecer demais, dizer que tem uma galera muito fiel a ti e as suas canções aqui em Minas, a gente vai lá pro show e tal... M: Que legal, cê vai no show? B: Vou, vou no show, cara, vou lá. M: Vamos trocar ideia depois, dá um to-

que lá depois tipo se ficar por ali B: Beleza... M: Eu sou brother do Marcelo Santiago, sabe quem é esse cara que é produtor aqui? B: É eu sei, sei, sei quem é... M: Fernanda Alves, esses dois mais, então eu vou estar com eles depois do show B: Beleza, eu vou fazer o seguinte então, eu te mando uma mensagem, pode ser nesse número aqui e aí a gente combina? M: Pode, pode... B: Então beleza... M: Não sei se vai rolar, se rolar alguma coisa coletiva aí a gente vai ver, se não a gente se encontra, cumprimenta e se conhece pelo menos... B: Porra, super, maravilhoso, eu vou te comunicar, deixa comigo. Brigadão, foi lindo assim, essa prosa, com esse improviso aqui... M: Adorei a prosa também, adorei também. B: Com esse improviso no final da bateria é isso aí cara, a gente é “feito pra acabar”, uma hora a bateria acaba e a gente recarrega e “chega o reio”, cara. M: É isso aí... B: A gente vai se falando então, muito obrigada viu, Marcelo. M: Aê, valeu mestre! B: Valeu! Abraço, cara, tchau, tchau...

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TriNcOs siLeNciOsOs

Die Mauer (O Muro) Por Thalita Dittmaier Berlim. Domingo, 09 de novembro de 2014. 25 anos da queda do Muro. Concertos e shows reuniram milhões de pessoas em uma festa ao ar livre no Portão de Brandemburgo, símbolo da unidade alemã. Alinhada ao longo de quinze quilômetros, uma instalação luminosa, com seus oito mil balões brancos, marcava o lugar por onde passava o Muro. Ao som de Beethoven, os balões invadiram o céu. O Brasil pós-eleições, mesmo ano. Supostamente dividido. Nenhuma novidade. Se antes existia um Brasil riquíssimo e um Brasil faminto, hoje, embora continuamos a ser o país dos ricos e dos pobres, graças às políticas sociais dos últimos governos, o bolo finalmente passou a ser partido de forma mais justa. Mas a independência do próprio Estado ou a defesa da construção de um muro adquiriu ares de contemporaneidade. Sugeriu-se, por exemplo, a divisão Brasil vs. Nova Cuba, esta constituída pelas regiões Norte e Nordeste, além do Rio de Janeiro e Espírito Santo, enquanto as demais regiões seriam o Brasil, com exceção de Minas Gerais, que seria implodida para a construção de um lago. Em primeiro lugar, com a globalização e o consequente esmorecimento do Estado-nação parece equivocado apegar-se a resoluções separatistas. Com o advento de um mundo inter-relacionado, dispomos sim de um espaço-tempo menos centralizado, ou seja, com a inevitabilidade do fenômeno globalizador, encontramo-nos diante das inquietações de uma nova ordem mundial, a qual vem cedendo lugar,

ainda que a passos lentos e muitas vezes controversos, a uma sociedade mais igualitária e multicultural. A globalização, por outro lado, separa crenças e convicções culturais, despertando novas formas de nacionalismo étnico e fundamentalismo religioso, bem como os ditames capitalistas. Portanto, face a uma nova era, surgem novas necessidades, novas missões. Enveredar-se no e pelo multiculturalismo é comprometer-se com a abertura do diálogo mutuamente benéfico, respeitando tanto as liberdades individuais quanto os valores democráticos, os quais se definem a partir do reconhecimento do Outro, da diversidade. Devemos estar dispostos a abandonar muradas e abrir portões. Precisamos ser mais audaciosos, olhar para além das fronteiras, contudo, críticos de nosso passado e presente. Enfim, cá ou lá, ninguém se iluda. O Muro de Berlim caiu já que sua materialidade não era mais significativa na segregação de pessoas. Com a globalização e a manipulação midiática, as divisões permanecem e se recriam, cada vez mais profundas, mais abstratas. E os muros abstratos são, de fato, os mais perigosos. A Europa, mergulhada numa crise provocada pelo colapso do mundo financeiro, lança na miséria milhões de pessoas que até então desconheciam a pobreza. Além disso, o que dizer do muro erguido contra os palestinos, o muro nas imigrações em aeroportos e todos os demais muros concretos e impalpáveis que existem no mundo e, sobretudo, como derrubar o muro existente na mente das pessoas que fazem do ódio e da intolerância o seu princípio de vida? Em pleno 2014?

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“Aquele que diz sim, aquele que diz não”

O Aborto dos Outros (1) Marcia Tiburi O documentário de Carla Gallo “O Aborto dos Outros” é o enunciado direto da dissimulação com que se trata a questão do aborto no Brasil atual. Há motivos distintos para os pronunciamentos sobre a questão do aborto nos dias de hoje. Motivos formulados como opiniões que, atenciosamente lidos, mostram-se acobertadores do que realmente se visa com a proibição legal desta prática tão familiar. Tais motivos devem ser analisados na intenção de colocar a questão no seu lugar devido, a saber, que o aborto é um problema das mulheres e que homens e instituições, para os quais o sexismo – a determinação da diferença sexual em que a mulher é vista como o “sexo” em si mesmo - é um método de controle, buscam o domínio do discurso sobre o aborto. Não poderia ser diferente já que o aborto no modo como é tratado no Brasil atual apenas faz ver o estatuto do poder na mão – e mais precisamente na ordem do discurso dos homens contra as mulheres. Neste sentido, cabe também levar em conta que há para além da proibição da prática, certa evitação do ato de teorizar em torno do aborto por parte das mulheres. Homens falam sobre o aborto, mulheres – com raras exceções – parecem não se sentir confortáveis em defender a própria causa. Mas é claro que não se trata apenas disso. Deixar que as mulheres decidam não é uma prática desejável em um sistema patriarcal e é preciso começar impedindo que falem. A propósito, o patriarcado é o lugar em que mulheres são submetidas pelo discurso. Não deve, portanto, ser entendido apenas como um modelo universal da racionalidade, da ética e da estética que dele decorrem organizando-se como ideologia, mas como a prática cotidiana desta racionalidade que instrumentaliza mulheres. Ora, o patriarcado não é apenas metafísico, mas deve ser visto em seu fundamento ético-político que se define pela ação contra as mulheres. Assim é que ele se constitui como o nome próprio da violência que costura um pensamento e uma prática contra mulheres da família à publicidade, da maternidade à pornografia. Dizer contra neste caso é definir rigorosamente que as mulheres que ainda podem ser subjugadas pela ilegalidade do aborto são as social e economicamente desfavorecidas. Aquelas que permanecem sob comando biopolítico, sem supor que possam ser senhoras de seus corpos. Sem interpretações próprias sobre o que seja seu corpo, sua vida própria, mulheres pobres são reduzidas à condição de fêmeas procriadoras para logo depois serem rebaixadas, caso pratiquem o aborto, à condição de meras rés por terem ido contra

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a ordem. No senso comum brasileiro vige o discurso de que a realização das mulheres está na maternidade e na feminilidade. Quem não obedecer a esta ordem do discurso poderá ser punida cruelmente. Que a sociedade se torne mais democrática quer dizer que o patriarcado cede diante da escolha das mulheres sobre seu próprio corpo. E esta escolha se afirma em um discurso como reação contra a ordem patriarcal sexista que até os dias de hoje é mal quisto em várias instâncias deste Brasil subjugado política e ideologicamente ao patriarcalismo. Duas formas de silêncio Mulheres, as verdadeiras implicadas na questão do aborto raramente se pronunciam sobre ele. Há pelo menos duas formas de silêncio em jogo nesta questão. Em primeiro lugar o silêncio derivado do comodismo e da alienação. Um silêncio cultural que define o poder da fala como algo masculino e, por contraste, “anti-feminino”. Mesmo hoje em dia muitas mulheres caem na armadilha essencialista, aquela que defende que mulheres não devem falar demais para evitar a tagarelice de que são acusadas desde a tradição filosófico-literária. No discurso essencialista, tem-se que “a mulher” é uma essência não-falante. Desconsidera-se a formação cultural, histórica e social que constitui o gênero. Desconsidera-se o controle discursivo que está por trás de toda definição. Assim é que uma mulher deve calar, como se a fala articulada, que expõe idéias, fosse contra a natureza das mulheres e não uma construção jurídico-cultural. Este silêncio é alienado, ele é produzido. Sua conseqüência é o fato histórico de que as mulheres como “classe” ou grupo não construíram teorias, não foram autorizadas, nem se autorizaram a serem teóricas, cientistas, ou políticas, ou seja, seres que dominam o funcionamento do discurso e podem exercer poder a partir dele, seja no campo do conhecimento, seja no campo da política profissional. Mas há outro silêncio. Aquele que é praticado sem alienação por mulheres ideologicamente livres do patriarcado. Moralmente descomprometidas, ou financeiramente livres não precisam responder às suas imposições. Praticam abortos conforme necessidades pessoais/corporais sem que ninguém ou nenhuma estatística precise sabê-lo. Não dependem do sistema público de saúde, não precisam se confessar ao padre, muitas vezes nem mesmo tem uma vida de casal com um homem ao qual devam prestar satisfação sobre seus atos. Quem são, o que desejam, como e onde o fazem é algo que permanece sob o véu da clandestinidade que, neste caso, não é mais do que o fato da realidade. Clandestina é toda prática possível que mostra a insuficiência da lei e as

contradições da moral. Kafka no conto “O silêncio das sereias” afirmou que o silêncio das sereias é uma arma mais terrível que seu canto. Talvez alguém tenha escapado de seu canto, mas certamente ninguém escapou de seu silêncio, diz Kafka. Tal silêncio é a liberdade das mulheres insuportável ao patriarcado. É também sua arma. Infelizmente, no entanto, como arma ele não está ao alcance de mulheres desfavorecidas cultural e economicamente. O documentário de Carla Gallo mostra mulheres que são vítimas do discurso e do sistema quanto à impraticabilidade do aborto, mulheres que sofrem sob o jugo do patriarcado como se fossem meros animais que desobedeceram seus senhores. Habeas Corpus O documentário O Aborto dos Outros é, neste sentido, a exposição de uma reivindicação real do direito sobre o próprio corpo. Ele faz pensar que a questão do aborto no Brasil deve ser tratada segundo o direito do habeas corpus. Válido para aqueles que podem pagar por um advogado, o direito de habeas corpus deveria ser elevado a princípio mais que jurídico quando se trata da relação entre mulheres e seus corpos. O habeas corpus deveria ser tomado culturalmente, tornando-se uma verdadeira ética no combate à apropriação que o patriarcado exerce sobre o corpo das mulheres. O corpo das mulheres deve ser devolvido às próprias mulheres. Ou se perdeu no tempo ou nunca existiu o consentimento para que homens - a sociedade como um todo? - comandassem corpos de mulheres particulares, seu desejo de ser ou não ser mães. A discussão sobre a abstrata questão da vida do embrião presente no corpo de uma mulher que não deseja desenvolver um feto não passa de elemento acobertador do controle biopolítico sobre corpos de mulheres. Do mesmo modo, não podemos mais nos ocupar da discussão que corre no senso comum e que divide a população entre ser a favor ou contra o aborto quando na verdade se trata no Brasil de hoje de ser a favor da legalização do aborto ou contra a legalização do aborto. A questão da legalização é jurídica e como tal, problema de poder, de saber quem comanda, quem decide, quem detém a verdade a seu próprio favor. Somente a luta das próprias mulheres poderá mudar este estado da questão. Enquanto isso, alguns homens mais lúcidos porque livres do discurso patriarcal e percebendo que o tema não lhes diz respeito, associam-se às mulheres na luta por uma sociedade mais justa. Mas somente as mulheres poderão buscar a justiça para si mesmas e para aquelas que como elas sofrem na coleira do patriarcado. (1) Originalmente publicado na Revista Cult

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Xeque LÉViNas?

Viver é ser outro

Por Carlos Magalhães Entre as chamadas feridas narcísicas a mais recente, e talvez mais desconcertante, foi a causada por Freud quando disse que “não somos mais senhores em nossa própria casa”. O Eu foi despejado pelo inconsciente. Quem guarda o silêncio como algo precioso e tem o costume de olhar para dentro talvez intua isso. Olhar para dentro é perigoso. Mas como não tenho competência psicanalítica, deixemos o Freud sossegado. Vamos com Fernando Pessoa: é o exterior que tem existência real. “Ser real quer dizer não estar dentro de mim. Da minha pessoa de dentro não tenho noção de realidade. Sei que o Mundo existe, mas não sei se existo. Creio mais no meu corpo do que na minha alma. Porque o meu corpo apresenta-se no meio da realidade. Podendo ser visto por outros. Podendo tocar em outros. Mas a minha alma só pode ser definida por termos de fora. Existe por um empréstimo da realidade exterior do Mundo.” Não há uma alma, não há um lá dentro desconectado do lá fora. Se olharmos para dentro procurando alguma coisa originada dali não vamos achar nada, ou melhor, vamos achar carne, vísceras e outras coisas piores. Se a alma viesse antes do corpo e se o interior fosse mais real do que o exterior, estaríamos todos e cada um de nós isolados, inacessíveis e incompreensíveis. Estaríamos nos debatendo em nossa insignificação. Mas que fora é esse que se nos impõe agora em comparação com o fora de outros tempos e lugares? O que o mundo de fora nos fala a todo o momento ultimamente? Que esse corpo que habitamos de favor, e de onde falamos e pensamos, é uma bomba relógio. É o mês do câncer de mama, o mês do câncer de próstata, semana da doença tal, dia do risco de contaminação pelas onipresentes e malignas bactérias. É o ebola ali na esquina. É a outra gente que deseja nos aniquilar. O fora é medo. E ainda é preciso trabalhar cada vez mais e ser avaliado pela capacidade de envergar, mas não quebrar. Andam chamando isso de resiliência. Ficou difícil ser generoso e espontâneo. Ser bom e desarmado é correr o risco de se perder na roda da vida que gira um tanto aleatoriamente cortando cabeças aqui e ali. O pul-

so ainda pulsa, mas o corpo não aguenta mais. E tomem-se remédios dos mais variados tipos para dar um passinho à frente. Pois bem, a existência é exterior. É no mundo lá fora que nos movemos, nos encontramos ou desencontramos, nos ajudamos ou nos matamos. Enfim, existimos. Vivendo e convivendo no mundo que é exterior por excelência, vivemos do e no fora. Viver do que aparece por fora não é defeito de caráter ou mal dos tempos atuais. É apenas uma condição irremediavelmente humana. Podemos nos espantar com as aparências que se apresentam hoje em comparação com as que se apresentavam ontem. Mas não podemos falar de uma época ou lugar em que as pessoas seriam mais verdadeiras, sinceras e autênticas em contraposição a outra época ou lugar em que prevaleceriam a mentira, a falsidade e a inautenticidade. No mundo que nos foi dado (em qualquer tempo ou lugar), não basta e talvez não seja possível ser, como se houvesse um tesouro puro interior subjetivo pronto a se expressar no mundo. É preciso se expor e se fazer no atrito com o que há do lado de fora. Ora, é irrelevante ser se não aparentamos o que somos. O que somos, mas não aparentamos, não existe para o mundo e talvez simplesmente não exista. Marshall McLuhan numa conferência (O fim da ética do trabalho) de 1972, impressionante pela atualidade, diz que “o homem civilizado, o homem euclidiano, cujas faculdades foram aguçadas e especializadas pela literacia greco-romana, esse empreendedor agressivo, orientado por objectivos e seguindo uma só direcção foi simplesmente desalojado e desacreditado pelo novo ambiente fabricado pelo homem da informação eléctrica simultânea”. No mundo inundado por informações eletrônicas simultâneas, a orientação para um objetivo individual estável não é mais viável. Só é possível representar papéis. Papéis são, por definição, algo que vem do lado de fora. Mais do que indivíduos, somos todos atores representando papéis para outros atores. “Devido à simultaneidade da informação e da programação elétrica, já não existem espectadores. Toda a gente passou a fazer parte do elenco”. (De fato, não acredito que a era eletrônica tenha trazido algo novo. Apenas exacerbou características inerentes à vida social e

restringiu fortemente a representação social do homem que McLuhan chama de euclidiana.) Representar papéis é viver o fora e deixar-se permeável e suscetível ao outro e a tudo que ele representa de bom, ruim, assustador, violento. Jogar com o fora é correr o risco de não ser “cool” (vou manter as palavras cool e coolness sem traduzir, mas têm a ver com ser frio e com frieza). Cito a partir daqui o ensaio “Coolness in everyday Life”, do livro “A Sociology of the Absurd”. Coolness é apresentada e definida como preservação do equilíbrio em situações de pressão. Pressão significa presença de carga emocional forte ou risco. “Coolness refere-se, então, à capacidade de executar atos físicos, incluindo a conversa, de um modo harmonioso, calmo e auto-controlado em situações de risco, ou manter distanciamento afetivo durante encontros que envolvem forte emoção”. O risco social é o mais importante, pois pode surgir toda vez que ocorre um encontro. Em todos os encontros sociais as pessoas levam uma face ou uma máscara que constituem os valores que reclamam para si mesmas (e que foram moldados em encontros passados). Dado que colocam esses valores em jogo a cada encontro, segue que encontros são ocasiões moralmente sérias, repletas de perigos, em que as pessoas colocam as suas personas públicas na berlinda. Encontros são perigosos porque está sempre presente a possibilidade de o comportamento, próprio ou do outro, negar ou danificar a identidade e a subjetivação pretendida pelo ator. Qual é a possibilidade de sustentar com aparente frieza um improvável Eu fingidamente coerente e estável? Lacan teria respondido a Freud dizendo que “o homem encontra a sua casa num ponto situado no Outro para além da imagem de que somos feitos”. “Esse lugar representa a ausência em que estamos”. É nesse lugar que vamos amarrar as nossas máscaras? Na alteridade? Pois só existe a alteridade. Ser cool talvez seja saber “ser” sabendo que não se é de fato coisa alguma. “Saber ser sabendo que não se é de fato” é saber viver no mundo que está aí. Como não sou psicanalista e estou citando Freud e Lacan de orelhada, volto ao Pessoa, que pelo menos leio há 25 anos. “Viver é ser outro”. Viver é puro estranhamento e esforço para fazer parecer o contrário. Fazer parecer que estamos em casa.

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“Rodo cotidiano”

F.D.P. Por Barroso da Costa

Semea(dor) Brilhava E ele não via Semeava E ele não via Olhavam O que queriam Comiam Voavam Voltavam Era o fim Do dia Marco Tulio Figueiredo

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Já podia ouvir o barulho das sirenes que se aproximavam do pé do morro. F.D.P. passou a mão na barriga e percebeu que o sangue não parou de descer. Não dava mais para correr, sentia-se cansado. Só podia ficar ali, sentado no canto escuro do Beco da Saudade, que ficava no ponto mais alto da favela. Apertou contra o peito sua .12 de estimação e viu que a única opção que tinha era esperar para ver o que a sorte lhe reservava. Àquela ora, os canas já deviam ter cercado tudo. Sem saber o porquê, olhou para o céu e viu que era noite de lua cheia. Há muito não parava para observar o céu. Tentou lembrar sua infância. Esforço em vão. Nem do rosto de sua mãe, P.Q.P., conseguia lembrar-se. E nem podia. Segundo F.M.P., seu irmão, sua mãe morreu de tanta cachaça, logo depois de seu nascimento. A vovó falava que ela começou a beber depois que meu pai foi embora. Conseguiu lembrar as brincadeiras de pique no Cemitério da Consolação. O Sô Zé Coveiro ficava puto. Será que se morresse seria enterrado lá? Claro que não. Para lá só ia granfa. Seria enterrado como indigente, isso se não fosse jogado no rio como o N.S.J. e o Z.N.S., para aparecer dali a três dias com a boca cheia de bicho. Deus me livre e guarde! Puta-que-pariu, por que pensava nisso agora? Tratou logo de afastar os pensamentos. Sentia sede. Pensou em R.M.G., a menina de coxas grossas mais safadinha da região, que se encarregou de lhe tirar a virgindade. Depois foi só alegria. Fez fama de gostosão e, em pouco tempo, papou até a E.T.M., mulher do cara que, antigamente, comandava todos os negócios da área. A dor estava aumentando. O sangue já formava uma poça embaixo de F.D.P.. Depois, começou a se perguntar porque estava ali, enfim quando começou esta merda toda. Pensou no seu primeiro assalto, aos 12 anos, depois de cheirar sua primeira carreirinha para criar coragem. Playboy desgraçado, se ele não tivesse reagido, eu não precisava dar aquele teco nele. O tráfico veio logo em seguida. Parou de cheirar pra vender. Herdou o negócio

do irmão mais velho, F.M.P., que, por sua vez, o havia tomado após matar o marido de E.T.M., e que, logo depois, foi morto em mais uma disputa por pontos de distribuição. Época de vacas gordas, aquela! Não faltava carne em casa. Só pilotava carrões e chovia mulher. Parecia um sonho, viver às custas do vício dessa podridão que eles chamam de nata da sociedade. Um bando de riquinhos que fazia qualquer coisa por um pouco de pó. Tinham umas patricinhas que até valiam a pena. Cheirosas, bem arrumadinhas, cheias de merda na cabeça e fazendo qualquer coisa por uma carreirinha de pó. As coisas estavam indo muito bem, até que aquele chefão do Balança-mas-não-cai começou a crescer os olhos nos negócios das bandas de cá. Chegou tentando botar banca, cheio de cordão de ouro no pescoço e nos braços, com a automática à vista. A camaradagem anda dizendo que ele até vai ser homenageado por uma escola de samba. Ia, ou, se vai, será em homenagem póstuma, depois daquele monte de chumbo que eu acabei de enfiar nele. Se a turma dele não reagisse, seria bem mais fácil. A polícia não estaria aqui e eu não estaria sangrando feito um porco. Já ouvia o latido dos cachorros e alguns tiros. Devem ter acertado alguém, ou da turma, ou o primeiro inocente que eles exibem amanhã em todos os jornais, com aquela velha tarja preta nos olhos e as iniciais, dizendo tratar-se de um dos maiores traficantes do Estado. Arrastou-se até a esquina do beco e pôde ver a galera descendo e se posicionando para dar cobertura. O primeiro cana que apontou na viela foi recebido à moda da casa, três balaços no peito. Aí começou aquela zona. Era azeitona quente pra todo lado. Estaria completando dezoito anos no dia seguinte. Podia entregar-se, sem reagir, passar uns nomes aos homens... Aí ia virar cagueta e, se os macacos não o pegassem, a malandragem se encarregaria disso. Mas, só assim sairia vivo daquela... Pensando isso, sorriu. Levantou-se com algum esforço e começou a retribuir os tiros.

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