A Menina no Maréu

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MarÉu



MarÉu

a presença do masculino e feminino

texto e ilustrações de Nicole Schlegel diagramação de Fernanda Guizan orientado por Miguel Carvalho e Amador Perez



À Omi dedico o mar. À Vovó Ely dedico o céu. À Bianca dedico a alegria da menina.


O banheiro da casa do Vov么 era grande e todo verde. Azulejo verde, vaso verde, cortina verde e banheira verde. O que n茫o era verde era a luz que entrava pela janela e batia nas conchas. Lindas conchas, grandes e rebuscadas, que jaziam ali, ao lado da banheira.


Seu fascínio pelas conchas cresceu tanto que seu avô lhe presenteou com uma delas lhe contando que ela fora a casa de alguém, um lar que o recolhia e que agora a protegia.

A menina pegava as conchas e se encantava com o barulho do mar: pensava na poesia de trazer junto a si suas raízes. Assim, a água da banheira virava mar e o banheiro verde virava por inteiro praia; e a menina brincava em suas ondas. Cresceu trazendo junto a si suas raízes praianas e aprendendo com as conchas que o bom é relembrar brincando.


A menina se acostumou a ser embalada pelo som do mar todas as noites. Era como um canto de ninar: a voz rouca do seu av么 lhe enchia as orelhas e os sons dos ventos preenchiam as ondas. Entrava em uma esp茅cie de transe, em sonhos que nadava e voava, em um entrelace do mar e do ar, descobrindo sempre pequenas majestosas criaturas.



Um dia, porém, o cheiro de maresia parou de chegar às suas narinas e percebeu que estava no meio de uma tempestade. Uma rajada de vento a pegou em meio ao salto da tênue linha do horizonte e a atirou ao infinito. Acordou de pronto. Sua concha estava estilhaçada sobre o piso.



Seu avô havia falecido e levado junto a si sua casa, sua concha. Não lhe pareceu novidade e aquilo a princípio lhe atingiu tão fortemente quanto achava que deveria. Naquela noite, porém, não pôde dormir.

Uma vez que seu avô se fora, a concha havia se desconstruído. Agora a menina se sentia perdida, sem poder ouvir canções de ninar e sons do mar.


A menina procura conchas entre as

ondas,

banhando

seus cabelos

flu t

u

que

am


O mar n達o a deixa tocar nas conchas,

leva elas para longe com sua correnteza sempre que as tenta pegar.


Ela entende o porquê: dentro dessas conchas tem outras pessoas, dormindo sossegadas. Essas já pertencem a outros – a menina precisa construir a sua própria concha. Assim, ela percebe que com pequenos pedacinhos conseguirá montar a mais bela de todas.


Cantarolando, cata fragmentos de conchas à beira-mar. Risca o dedo na areia, escrevendo “Oi Mar”. O mar lambe suas palavras, e ela sorri, satisfeita que ele tenha respondido. Segue catando conchas e cantarolando.

Novamente se dirige ao mar, com as conchas em uma das mãos e pergunta: “Poss...” - mas a onda vem e não a deixar completar a frase. Obediente e triste, a menina segue rumo à sua casa, deixando as conchas na areia.


“ Como pode ela pensar que agora,

depois de tanto tempo, pode simplesmente voltar a se banhar em mim e levar junto a si meus fragmentos? Que vá procurar casas nas nuvens, se é do céu que ela tanto gosta!

Sem a permissão do Mar, a menina não poderia levar as pequenas conchas, da mesma forma que não poderia levar as grandes, pertencentes a outros – pois a conchas são oferendas do Mar. Mal ela sabia que o mar morria de ciúmes do céu e pensava ter sido usado pela menina – afinal, sempre que ela dormia, ouvia o canto de ninar dos ventos e esquecia do barulho das ondas.


Nesse dia, a menina olhou pela janela para o cÊu. As estrelas se transformaram em conchas e dançaram na sua frente atÊ que ela dormiu ali mesmo, sobre o parapeito.


Na manhã seguinte, saiu a buscar mais conchas. O mar estava muito zangado com a menina, pois em seus sonhos ela confirmara suas queixas: olhara apenas para o céu e esquecera das ondas, cobiçando apenas suas belas conchas – desprezara o mar em sua amplitude.


Novamente a menina se dirige ao mar, com as conchas em uma das mãos e pergunta:

“Posso le...” – e o mar vem com tanta força que lhe dá um caixote! Cheia de areia, a menina se decepciona com o mar. Não entende porquê ele a respondera com tamanha agressividade. Chorando, corre para casa.

“Se é do céu que

ela gosta, que vá procurar seus sonhos nas nuvens, e não no mar!

“Poss...” – mas o mar vem e não a deixa completar a frase. Ela tenta escrever mais rápido:


A menina olha para as estrelas que já são conchas girando por todo o céu – chora tanto que suas lágrimas se transformam em maré que só enche, inundando o parapeito e a levando para o fundo do mar. A menina nada em busca do ar da superfície, mas o horizonte nunca chega, e quanto mais ela nada, mais água parece a separar do céu. Acorda de súbito: já é manhã.


A menina chega na praia e nem sequer encosta no mar. Cata conchas onde a areia está seca.

O mar se arrependeu. Viu que estava errado, que a menina sonha sim com as ondas e que quer construir sua casa junto a ele – afinal, qual prova é maior do que lágrimas salgadas? A menina é mar e ar, mas não quer as nuvens e sim as conchas. Ela está decidida em pegar as conchas. Cata todas elas e sai correndo, para longe do mar, sem lhe pedir permissão.


Ele não a julga, pois sabe que ela se decepcionara com ele – tudo que queria era que ela voltasse a lhe perguntar se podia levar as conchas, e assim ele a deixaria, e tomaria conta de seus sonhos.

Em meio a sua correria, a menina

para, respira e volta.


Percebe que mesmo que quisesse muito aquelas conchas, não as poderia roubar. Coloca seus pés dentro d’água, cumprimentando o mar.

Ela se agacha na areia e tenta fazer novamente a pergunta. Dessa vez o mar a deixa completar a frase:

“Posso levar?”



A menina vira pura alegria e saltita em direção à sua casa.


Sentada ao chão, a menina passa cola nos pedaços de concha e os junta,

formando

uma

concha

gigante.

Sorri satisfeita com sua nova companhia.



Já de noitinha, se põe a escutar o barulho da concha e, ouvindo a canção da grande Mãe Mar, cai em sonho profundo, embalada no berço das ondas junto ao conto de ninar do vento, querido Pai Céu.




Esse conto foi escrito com a fonte Leander, impresso em ofsete sobre papel reciclado artesanal de capim do campo de Yú Papéis, na gramatura 90g/m2 – em 2014.


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