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Sexta-feira | 9 Dezembro 2016 | publico.pt/culturaipsilon FOTO BEN MARTIN/THE LIFE IMAGES COLLECTION/GETTY IMAGES ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 9733 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE

John le Carré

O grande mentiroso 62af0d6e-b518-49d9-b43a-b85d05c0f9d7


6: John le Carré O grande mentiroso 10: Hitchcock/Truffaut Um filme tributo a um livro imprescindível para uma aproximação à maneira de ver e pensar do tortuoso autor de Psico 16: Satie Joana Gama, Luís Fernandes e Ricardo Jacinto deslumbram-nos com o compositor francês 20: Vaiapraia e as Rainhas do Baile Um disco português para não perder de vista

Os vizinhos de Álvaro Siza chegam ao CCB no final de 2017

22: Augusto Brázio Um fotógrafo em m périplo pelo país

Simon Reynolds escreveu sobre o movimento que enterrou o sonho hippie e abriu a pop ao sexo e às máscaras: o glam. Págs 12 e segs 2 | ípsilon | Sexta-feira 9 Dezembro 2016

ESTATE OF KEITH MORRIS/REDFERNS

Ficha Técnica ca Director David Diniss Editor Vasco Câmara a Design Mark Porter, Simon Esterson Directora de Arte Sónia Matos valho Designers Ana Carvalho e Mariana Soares blico.pt E-mail: ipsilon@publico.pt

JORDI BURCH

Flash

Sumário

Como é que se transforma uma exposição que se transformou num edifício novamente numa exposição? É esse o desafio dos comissários Nuno Grande e Roberto Cremascoli quando trouxerem para Lisboa, em Novembro de 2017, a exposição Vizinhança, que deu forma ao chamado “Pavilhão de Portugal” na XV Bienal de Arquitectura de Veneza e que este ano ocupou um edifício inacabado de Álvaro Siza nesta cidade italiana, parte da sua importante obra dedicada à habitação social, e por concluir há 32 anos. “Espero que num ano esta exposição se transforme num edifício [acabado]”, disse Nuno Grande na finissage da representação oficial portuguesa em Veneza, no final de Novembro, referindo-se ao anúncio feito pela ATER Veneza, a agência pública que promove a habitação na região, de que brevemente teriam o resultado do concurso de construção para o qual já tinham recebido várias propostas. Esta obra de Siza na ilha da Giudecca, composta por dois blocos que desenham um “L” no Campo de Marte, é resultado de um concurso público que o arquitecto português ganhou nos anos 80 e para o qual convidou outros arquitectos a participar, como o italiano Aldo Rossi ou o espanhol Rafael Moneo. Se o projecto do primeiro foi construído, o segundo também está ainda por realizar, mas, ao contrário do de Siza, não foi agora repescado. “Ainda não pensámos como vamos remontar a exposição da Giudecca no CCB, porque não nos sentámos com a equipa do centro e não sabemos que orçamento dispomos”, explicou Nuno Grande já em Portugal. Se em Veneza a exposição foi “um site-specific”, “uma ocupação” do edifício por

concluir na ilha da Giudecca, mesmo em frente à praça de São Marcos, no CCB será mais convencional e terá provavelmente mais fotografia dos projectos sociais para Veneza, Berlim, Haia e Porto, além dos vídeos feitos com os “vizinhos” (os habitantes) destes bairros sociais. “O ambiente de squat perdeu-se, mas isso não é necessariamente mau e vai obrigar-nos a pensar para conseguirmos evocar a informalidade da Giudecca.” Sobre o balanço que faz da representação nacional, com este formato inusitado para o Pavilhão de Portugal, Nuno Grande está contente com o resultado, “porque as pessoas da Giudecca perceberam a importância de ter a bienal na ilha”, uma vez que “lhes trouxe a possibilidade de ter a obra acabada”, elas que estão habituadas a ser “marginalizadas” pela cidade rica que vêem mesmo em frente. E trouxe 7280 visitantes, incluindo os resultados da semana da finissage, uma boa presença nos jornais italianos, bem como em revistas especializadas como a Domus, com um investimento de 190 mil euros da DGArtes (fora mecenas). No centro histórico de Veneza, onde a bienal acontece entre os Giardini e o Arsenale, “há todo um lado um bocadinho nacionalista, em que cada país leva para o pavilhão o melhor que tem”. “O nosso pavilhão é um statement político do que pode ser a acção de cada país neste evento.” Talvez não se consiga fazer todos os anos, porque é uma dor de cabeça de autorizações instalar uma exposição internacional num edifício que não está acabado — “foram seis meses a lutar contra a natureza”, como disse o comissário durante a cerimónia de encerramento. Mas,quando pensa

Nuno Grande e Roberto Cremascoli trarão a Lisboa a exposição Vizinhança, que deu forma ao “Pavilhão de Portugal” na Bienal de Arquitectura de Veneza

na possibilidade de arranjar um pavilhão definitivo para a representação oficial nas bienais de arquitectura e de arte (a nova directora-geral das Artes, Paula Varanda, disse ao PÚBLICO em Veneza que o assunto voltou a estar em cima da mesa), Nuno Grande acha cada vez “mais interessante ter um lugar fora dos Giardini”. Na Giudecca, diz o comissário, Portugal estava mesmo “na frente dos problemas”, como o tema da habitação social em linha com o tema geral - Reporting From the Front (onde estavam sete arquitectos portugueses representados) -, escolhido pelo chileno Alejandro Aravena, comissário-geral da XV Bienal, a que já chamaram “a Bienal dos pobres” ou “a Bienal social” e que levou a Veneza 260 mil visitantes em seis meses. Segundo a DGArtes, na anterior Bienal de Arquitectura (2014), em que não houve propriamente um pavilhão mas foi publicado um jornal — Homeland: News From Portugal, com comissariado de Pedro Campos Costa -, contabilizaram-se 43.300 exemplares distribuídos nos Giardini e no Arsenale; já a edição de 2012, com Inês Lobo como comissária e três meses de duração, levou 6900 visitantes à Fondaco Marcello, à beira do Canal Grande, que apresentava duas dezenas de projectos para Lisboa, entre os quais o de Siza para o Chiado, que nesse ano recebeu em Veneza o Leão de Ouro pela Carreira. Isabel Salema


Bowie, Beyoncé, Ocean ou Cave em destaque nos melhores de 2016 O ano ainda nem acabou mas já é possível avaliar, a partir das listas de melhores álbuns do ano já publicadas, quais serão os discos em destaque na generalidade dos topes feitos pelas publicações mais influentes do planeta. Todos os anos é a mesma coisa: ao longo dos meses diz-se que existe demasiada música a ser lançada e que será impossível seleccionar a meia dúzia de álbuns que acabam por evidenciar-se. E todos os anos, inevitavelmente, existe um núcleo restrito de discos que se destacam. Os derradeiros discos de David Bowie (Blackstar) e de Leonard Cohen (You Want It Darker), bem como os álbuns de Beyoncé (Lemonade), Frank Ocean (Blonde), Nick Cave (Skeleton Tree), Kanye West (The Life Of Pablo), Radiohead (A Moon Shaped Pool), Angel Olsen (My Woman), Solange (A Seat At The Table), Chance The Rapper (Coloring Book), A Tribe Called Quest (We Got It From Here), Anohni (Hopelessness) ou Car Seat Headrest (Teens Of Denial) estão entre esse lote restrito. A revista Mojo põe no pódio Bowie e nos dez primeiros há também lugar para Nick Cave, Leonard Cohen, Iggy Pop, Lambchop ou PJ Harvey. O NME surpreende colocando os 1975 (I Like it When You Sleep.) no primeiro lugar, para logo de

Lemonade leva Beyoncé às listas dos melhores discos do ano

Música, música-cinema, música-instalação no 2017 do gnration seguida tudo voltar à normalidade com Kanye West, Bowie, Iggy Pop, DIIV, Chance The Rapper ou Ocean entre os dez melhores. A Rolling Stone não tem dúvidas: é de Beyoncé o melhor álbum do ano, seguida de Bowie, Chance The Rapper, Car Seat Headrest, Frank Ocean, Radiohead ou Cohen. Os Rolling Stones do novo álbum Blue & Lonesome, também por lá andam numa muito digna sétima posição. A Consequence Of Sound elege também Beyoncé, secundada por Chance The Rapper, Bowie, Ocean, Anohni, Nick Cave ou Angel Olsen. A Paste opta por Bowie, mas Beyoncé, Car Seat Headrest, A Tribe Called Quest, Mitski e Radiohead surgem logo de seguida. A Stereogum prefere Beyoncé, seguida de Ocean, Chance The Rapper, A Tribe Called Quest, Bowie, Solange ou Angel Olsen. O jornal inglês The Independent opta por Beyoncé, com Cohen, Jenny Hval, Ocean ou A Tribe Called Quest bem classificados, enquanto a revista Uncut nomeia Bowie, Radiohead, Cave e Cohen. A Time opta por Ocean, secundado por Solange, Mitski, Angel Olsen, enquanto a Crack Magazine tem no pódio Cave, Solange e West. Nas próximas semanas, claro está, muitas outras listas se seguirão, mas as escolhas principais não deverão andar muito longe disto. Vítor Belanciano ANA BANHA/ARQUIVO

E uma comédia alemã está no top das revistas Sight and Sound e Cahiers du Cinéma

Ainda não chegou o Natal e, quando dermos por ela, já andará tudo a fazer as promessas que nunca cumprirá na noite da passagem-de-ano. Ou seja, ainda não chegou o Natal, mas já podemos começar a olhar para 2017. O espaço multidisciplinar gnration, em Braga, por exemplo, já sabe o que poderemos fazer no início do próximo ano. Anote-se na agenda. A 24 de Janeiro, o compositor vanguardista americano Phil Niblock mostrará o conjunto de filmes que compõem The Movement of People Working, registados na década de 1970 em países como o México e o Peru e que se concentram nos gestos que acompanham diversos tipos de trabalho manual. Além do filme-

Não acabará aqui o diálogo entre música e cinema. Quatro dias depois da passagem de Tigerman por Braga, os Xiu Xiu apresentam a sua banda-sonora para Under the Blossoming Cherry Trees, o clássico de terror realizado por Masahiro Shinoda. Mais à frente, no mesmo dia em que Duquesa nos mostra novas canções, provavelmente as de um sucessor do celebrado EP de estreia homónimo, o gnration acolherá o novo espectáculo dos @c de Pedro Tudela e Miguel Carvalhais. Intitulado Lâminas, criado com acompanhamento de harpa, percussões e violoncelo, será apresentado no Teatro Maria Matos, em Lisboa, dia 2 de Março e sobe a Braga no dia seguinte (o

Já aqui dissemos a partir do Festival de Cannes que Toni Erdmann é um filme art-house com coração mainstream — e isso não é obrigatoriamente um elogio -, e é ele que está à cabeça das primeiras listas relevantes de filmes do ano. A comédia da alemã Maren Ade está no topo das listas das revistas Sight&Sound e Cahiers du Cinéma, duas das mais influentes publicações especializadas europeias. Esta longa-metragem de uma das realizadoras da “escola de Berlim” conta a história de um pai que quer aproximar-se da vida bemsucedida da sua filha adulta. Na lista britânica, a revista saúda a surpresa de anunciar uma comédia alemã como vencedora e também a diversidade. Em segundo lugar surge Moonlight, do afro-americano Barry Jenkins, sobre o drama do crescimento de um gay negro, com a Sight&Sound a escrever que este é também um ano com filmes dirigidos por mulheres a fazerem a maioria entre os cinco primeiros lugares. Depois de Toni Erdmann e de Moonlight, surge em terceiro lugar Elle, de Paul Verhoeven, que pode ser visto como um interregno nesta lógica das mulheres (embora nós aqui consideremos que o filme também é de Isabelle Huppert), seguido de Certain Women, de Kelly Reichardt (EUA), e de American Honey, de Andrea Arnold (EUA, UK). Na lista do top-5 dos Cahiers du Cinéma, aparece Elle em segundo lugar, seguido de The Neon Demon, realizado por Nicolas Winding Refn, Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, e Ma Loute, de Bruno Dumont.

concerto, o octagenário Niblock participará numa sessão em que discutirá a sua vasta e longa obra. No mês seguinte, nova viagem em som e imagem, agora pelos Estados Unidos. How to Become Nothing é o resultado da colaboração de Legendary Tigerman com a fotógrafa Rita Lino e o realizador Pedro Maia (que, assinale-se, assegurará a componente visual do primeiro concerto de 2017 do gnration, a cumprir dia 14 de Janeiro, quando subir a palco Vessel, pseudómino do músico de Bristol Sebastian Gainsborough, nome emergente da electrónica mais exigente, inclassificável). Pensada originalmente como um complemento daquele que será o próximo álbum de Legendary Tigerman, a viagem do trio pela zona de Joshua Tree e Twentynine Palms transformou-se num objecto autónomo: um filme-concerto que chega ao gnration dia 4 de Fevereiro, e uma exposição, que poderá ser vista no espaço desde a actuação até dia 18 do mesmo mês.

Legendary Tigerman, a fotógrafa Rita Lino e o realizador Pedro Maia viajaram pela zona de Joshua Tree e Twentynine Palms; eis o resultado

Toni Erdmann, de Maren Ade, evidencia-se nas escolhas cinematográficas do ano

gnration acolherá ainda, até 22 de Abril, A/B, instalação sonora da dupla portuense). Presente em Braga estará ainda o artista visual e sonoro Tarik Barri, cujo trabalho se cruzou, por exemplo, com Thom Yorke, Monolake ou Nicolas Jaar. Barri é o convidado do programa Scale Travels, uma parceria entre o gnration e o INL — Laboratório Ibérico de Nanotecnologia. Dará uma palestra a 25 de Fevereiro e terá patente no espaço uma instalação entre 24 de Março e 17 de Junho. O trimestre será encerrado em festa, com o gnration Club Night. Acontece dia 25 de Março e terá como protagonistas The Field, Photonz e o colectivo de djs bracarenses Consórcio. Mário Lopes ípsilon | Sexta-feira 9 Dezembro 2016 | 3


John le Carré Minto, logo existo

O Túnel de Pombos é um livro de memórias dispersas, textos que atravessam a vida de John le Carré. Este é o homem que se construiu na mentira, à procura da sua verdade enquanto se ri dela. John le Carré não existe” diz-nos o seu biógrafo.

Isabel Lucas 4 | ípsilon | Sexta-feira 9 Dezembro 2016

“E

u sou um mentiroso (.) nascido para a mentira, criado para ela, treinado para ela por um sector que mente para ganhar a vida, treinado nela como romancista. Como fabricador de ficções, invento versões de mim próprio, nunca a coisa real, se é que ela existe.” David Cornwell, autor de romances com o pseudónimo John le Carré, apresentou-se assim a uma dupla de detectives que contratou para descobrir factos que o ajudassem a escrever a sua autobiografia. A ideia era juntar factos e imaginação. “Deixarei a minha memória imaginativa à solta na página da esquerda e porei o vosso relato factual na página da direita, sem altercações nem enfeites. E dessa maneira os meus leitores verão por si mesmos até que ponto a memória de um escritor velho é a prostituta da sua imaginação.” Os detectives iriam atrás da história da sua infância e juventude de que o pai


DUDLEY REED/CONTOUR BY GETTY IMAGES

deixara um rasto mínimo e que, por sua vez, ele reinventara desde criança construindo para si uma identidade fantasiada. Os factos não foram descobertos e a autobiografia não seria escrita. O mais próximo dela é o livro de memórias O Túnel de Pombos, conjunto de episódios burlescos, nostálgicos, carregados de humor, ricos em detalhe e narrados apenas com recurso à memória. O discurso do escritor aos detectives é o melhor aviso aos leitores: quando se está perante John le Carré a verdade pode ser uma boa ficção ou vice-versa. Onde é que o enigma começa? Ou, como pergunta o biógrafo Adam Sisman, quem é John le Carré? “‘John le Carré’ não existe. O nome é uma máscara para alguém chamado David Cornwell”, escreveu na introdução de John le Carré: the biography, o disfarce do agente secreto que não quer ser confundido com o escritor. Quem é David Cornwell? “Claramente um homem que colecciona talentos, que poderia ter feito uma bela carreira enquanto artista ou actor e que se tornou num dos autores com mais sucesso no mundo”, continua Sisman na biografia que resultou de 50 horas de entrevistas com o escritor, do acesso aos seus papéis pessoais, de conversas com familiares e amigos, da consulta de múltiplos arquivos, da leitura de correspondência. Não é uma biografia “autorizada” porque Le Carré se opôs ao uso do adjectivo. “Ele quis manter a distância”, refere Adam Sisman. A biografia saiu no Outono de 2015. Um ano depois Le Carré publica O Túnel de Pombos, Histórias da Minha Vida (D. Quixote). Sisman sabia do livro. “Trabalhei na biografia quatro anos e no fim ele começou a falar em escrever as memórias. Pedi-lhe para não o fazer antes de o meu ser publicado, respondeu que o melhor era despachar-me porque não viveria para sempre.” Le Carré cumpriu, mas Sisman não esconde o desapontamento perante o “acto pouco amigável”. Manifestou isso num artigo no Guardian em Setembro. “John le Carré e eu trabalhámos quatro anos na sua biografia. Porque é que ele está a contar a sua própria história 12 meses depois”, questionava, ensaiando uma explicação, a do seu editor: “Ele está a tentar recuperar o controlo da agenda”. Ao Ípsilon, diz: “Vejo O Túnel de Pombos como uma série de histórias divertidas, que podem ou não ser verdade. É uma espécie de verdade emocional. Ele acredita no que está a escrever.” Será? O Túnel de Pombos é um volume de textos cronologicamente dispersos, alguns vistos pelo autor como “incidentes isolados” que integram a sua vida enquanto espião ao serviço do MI5 e MI6 nos anos da Guerra Fria, e contemplam o princípio da escrita, o nascimento da personagem George Smiley, o encontro com figuras históricas como Margaret Thatcher ou Yas-

mmmmm O Túnel de Pombos John le Carré (Trad. Ana Saldanha) D. Quixote

ser Arafat, o testemunhar de momentos cruciais da história moderna. Na Alemanha, Rússia, Vietname ou Beirute. Ou a sua relação com os realizadores que foram adaptando aos seus romances ao cinema, o contacto com a alta sociedade londrina, e talvez o mais brilhante de todos, aquele onde descreve a relação com Robert Cornwell, que tratava por Ronnie - “vigarista, fantasista, preso ocasional e meu pai” -, e que descreve assim: “Era viciado em crises, viciado na teatralidade, um orador do púlpito desavergonhado que procurava as luzes da ribalta. Encantava e persuadia com as suas fantasias, via-se como o menino de ouro de Deus e deu cabo da vida de muitas pessoas.” Na relação com o pai está a génese da vida e arte de David Cornwell (n. 1931). “Foi uma infância complicada”, sublinha Adam Sisman. “Havia sempre gente famosa a entrar e a sair de casa, e a casa nunca era a mesma. O pai era muito promíscuo, tinha muitas mulheres diferentes. E tão depressa eram muito ricos como andavam a contar tostões. A mãe fugiu tinha David cinco anos por não aguentar a violência do marido. De vez em quando a polícia aparecia e o pai desaparecia. Ele e o irmão ficavam entregues aos avós paternos.” Se David não perdoa o pai, o seu coração gelou para a mãe. A retirada da sua vida sem uma explicação matou qualquer tipo de afecto que sentia ou pudesse vir a sentir por ela, mesmo quando a voltou a encontrar, aos 21 anos. Le Carré resume desta forma a herança que recebeu: “Recordo a dissimulação ao longo da infância e da adolescência e a necessidade de criar uma identidade para mim mesmo e de como, para o fazer, fui surripiar aos modos e ao estilo de vida dos meus pares e dos seus superiores, chegando até ao ponto de fingir que tinha uma vida doméstica estável, com pais reais e póneis.” Mentia para existir e ser aceite. E conclui: “Tudo isto me tornou indubitavelmente um recruta ideal para a bandeira do secretismo”.

Um aviso aos leitores: quando se está perante John le Carré a verdade pode ser uma boa ficção ou vice-versa

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HORST TAPPE/PIX INC./THE LIFE IMAGES COLLECTION/GETTY IMAGES

O primeiro espião É ai, na infância, que nasce uma das primeiras mentiras. Foi contra a culpa. “Neste país, sobretudo na geração de David, o que o pai de cada um fazia durante a II Guerra Mundial era assunto de extrema importância na escola. Esse conflito é modelar da identidade britânica, a luta contra a Alemanha nazi. Todos tinham os pais fora a lutar. O pai de David tinha o papel mais desprezível: ganhava dinheiro com a guerra. Ele sentia muita vergonha e inventou que Ronnie era um agente secreto a espiar os alemães. Uma mentira compreensível e o princípio do fabrico de muitas histórias”, conta Adam Sisman, que remete para a afirmação de Le Carré, ideia presente na biografia e que surge assim em O Túnel de Pombos: “Graham Greene diz-nos que a infância é o saldo credor do escritor. Por essa medida, pelo menos, eu nasci milionário”. Na vida de David Cornwell havia muita matéria sobre a qual romancear e manter secretismo. Teve consciência disso muito cedo ao fazer do próprio pai o seu primeiro espião perfeito. Publicado na revista New Yorker, em 2002, o texto sobre o pai que agora aparece nestas memórias - Filho do Pai do Autor - conta, com recurso a boa dose de ironia e zanga, o molde de uma personalidade que se desenvolveu criativa para poder sobreviver. Enquanto criança que quer ser aceite, como professor em Eton, funcionário no MI5 e no MI6, escritor de romances de espionagem. Era espião quando começou a escrever e a publicar sob pseudónimo de John le Carré. Além do nome não encontrou qualquer incompatibilidade entre as duas funções. “A espionagem e a escrita de romances foram feitas uma para a outra. Ambas pedem um olhar atento à transgressão humana e às muitas vias para a traição”, confessa, sublinhando que nunca encontrou melhor editor do que os velhos espiões do MI5. “A instrução mais rigorosa sobre como escrever em prosa que alguma vez recebi não a obtive de um professor do colégio ou lente universitário, muito menos de algum curso de escrita criativa. Veio dos agentes seniores com estudos clássico no último andar da sede do MI5 (.) que se iam aos meus relatórios com um pedantismo deleitado, manifestando desprezo pelas minhas orações incompletas e pelos meus advérbios desnecessários e riscando as margens da minha prosa chã com comentários como: redundante - omita - justifique - vago - quer realmente dizer isto?” Não esclarece, no entanto, escolha do nome com que assinaria 23 romances em mais de 50 anos de vida literária, onde se destacam O Espião que Saiu do Frio, A Toupeira, A Rapariga do Tambor, o autobiográfico Um Espião Perfeito, A Casa da Rússia ou O Alfaiate do Panamá. Uma obra que na opinião de Adam Sisman o coloca, nos melhores momentos, ao nível de Charles Dickens, “pela qualidade de escrita, Na vida de David Cornwell havia muita matéria sobre a qual romancear. A sua personalidade desenvolveu-se de forma criativa para sobreviver 6 | ípsilon | Sexta-feira 9 Dezembro 2016


“Desde criança que ele constrói a sua memória, ficciona-a, a ponto de acreditar que é verdadeira. Todos fazemos um pouco isso. Ele levou isso mais longe” conhecimento da natureza humana e das suas motivações, atenção aos detalhes de classe, poder de observação. Além disso, distingue-se pelo modo como tratou os conflitos morais de quem desempenha funções nos Serviços Secretos durante o período da Guerra Fria ou como fala da busca dos ingleses por uma nova identidade, póscolonial, de império perdido. Capta e transmite o espírito de um tempo”. Por isso, perante a pergunta da praxe “quem é melhor escritor de espionagem do pós-guerra, Ian Fleming ou John le Carré?”, Sisman não tem dúvidas: “Esta semana estive num debate em Londres onde se discutia isso e ficou clara a preferência por Le Carré. Foi essa admiração e o secretismo, à volta da figura de John le Carré/David Cornwell que o fez avançar para a biografia depois do escritor Robert Harris abandonar o projecto. “Escrevi-lhe em 2010 a dizer que gostava de fazer a biografia e respondeu a explicar que havia problemas. Tivemos uma conversa e fizemos um acordo. Ele não queria ter influência no que eu escrevesse, gostava de ler antes de qualquer pessoa, de poder dizer o que estava errado e pedia que respeitasse os sentimentos das pessoas que estivessem vivas; tudo razoável”, conta Sisman a partir da sua casa em Bristol onde escreveu a biografia que considera contraponto ao livro de Le Carré. “O dele segue a memória, o meu suspeita de tudo, até dos factos”. Na introdução de O Túnel de Pombos, Le Carré esclarece que “estas são histórias verdadeiras, contadas de memória”, distingue entre facto e criatividade: “Para o escritor de obras criativas, os factos são a matéria-prima bruta, não o seu capataz, mas o seu sentimento, e a sua tarefa é fazê-los cantar. A verdade real reside, se reside algures, não nos factos, mas nos matizes.” Esse território de nuances, onde verdade e ficção se contaminam, é o do livro e o que tem definido a existência do seu autor, um contador de histórias sempre a aperfeiçoar, a acrescentar detalhes sedutores, até as transformar noutra coisa. “Desde criança que ele constrói a sua memória, ficciona-a, a ponto de acreditar que é ver-

dadeira. Todos fazemos um pouco isso. Ele levou isso mais longe”, diz Sisman que também vai mais longe, afirmando que Le Carré/Cornwell “tem uma relação complicada com a verdade e uma espécie de dor. Podemos pensar na sua identidade como uma quase construção. É como as bonecas russas, em que se tira uma e outra e depois não há nada no centro. Ele receia que não haja nada no seu centro. É uma pessoa complexa e brilhante, talentosa, engraçada, esperta, charmosa, um homem muito bonito que atraiu muitas mulheres. Mas tem esta dor. Isso surpreendeu-me. Quando o vemos na televisão ou a fazer uma leitura vemos um homem sofisticado, famoso, seguro, bem-sucedido.”

A história cada vez melhor contada Durante quatro anos, Sisman visitou David - é assim que o trata - na casa de Hampstead, Londres. “Chegava pelas onze da manhã e umas horas depois ele sugeria: ‘e se almoçássemos?’ Íamos a um restaurante nos arredores, a conversa continuava. Voltávamos e pelas quatro e meia, cinco: ‘e se tomássemos uma bebida?’. Ele trazia um Armagnac, um whisky ou um Cavados, e depois de quatro ou cinco desses já não me sentia em condições de fazer perguntas sensatas. Ele tem uma capacidade prodigiosa de aguentar bebida, muito mais do que eu. Gostava de estar com ele. Ríamos muitas vezes, mas havia também uma tensão.” Porquê? “Eu confrontava-o com o passado e muitas vezes detectava imprecisões. Era o meu trabalho.” Conta ainda como Le Carré gostava de o apanhar desprevenido e sem reacção, antecipando a resposta a uma pergunta que ainda não lhe fora dirigida ou usando a arma do humor. “Já perto de terminar o livro, fui visitá-lo e ele disse-me que estava a escrever novo romance. Perguntei-lhe sobre o que era e respondeu que era sobre um velho espião reformado que recebe visitas de um homem mais novo que lhe faz perguntas acerca do passado. Respondi-lhe: ‘isso soa-me familiar’, e perguntei se esse homem era pouco subtil, se tendia a perceber tudo mal e estava sempre a desviar-se do que interessa?” Sisman estava perante a sua própria caricatura traçada por um mestre da imitação. Le Carré não estava a escrever esse livro. Passava por um bloqueio que terá sido resolvido com O Túnel de Pombos, título que remete para um casino em Monte Carlo, onde havia uma linha de tiro aos pombos que saíam por um túnel até ao céu do Mediterrâneo. Lidos biografia e memórias, um não substitui o outro. Mas com um e com o outro percebe-se que John le Carré possa ter sentido desconforto com o livro de Sisman. “Deve ser muito desagradável ter alguém a escrever sobre nós em vida”, argumenta o biógrafo. Apesar de o acordo ter sido respeitado, o seu retrato tem traços do pai. Mulhe-

rengo, capaz de seduzir pela palavra, com uma “relação difícil com a verdade”. O livro de Sisman quer a precisão do detalhe; o de Le Carré é solto, na técnica do exímio contador de histórias que se olha com auto-ironia. Na vida pessoal ou enquanto peão na história do seu tempo. Deixou de ser espião quando o sucesso do terceiro romance, O Espião que Saiu do Frio (1963), lhe permitiu viver da escrita. Tinha 32 anos, três filhos, um divórcio e um pai que de vez em quando lhe ligava para que o livrasse de apuros. Havia uma diferença entre os dois. Havia? Agora, 85 anos, dois casamentos, quatro filhos, Le Carré coloca-se perante esse dilema. “Haverá realmente uma grande diferença (.) entre o homem que se senta à secretária e imagina esquemas na página em branco (eu) e o homem que veste uma camisa lavada todas as manhãs e, sem nada no bolso a não ser a sua imaginação, se põe em marcha para enganar as suas vítimas (Ronnie)?” É o seu dilema pessoal sobre o qual quer ter as rédeas. “O guionista da adaptação televisiva do seu romance autobiográfico Um Espião Perfeito disse que quando o David está a falar sobre o pai não fala sobre a pessoa real, mas da personagem Rick Pym, o pai corrupto, ou seja, fala da recriação ficcional. Ela substitui o pai na sua imaginação. Ele tem uma imaginação prodigiosa”, justifica Sisman. Estará David Cornwell a procurar a sua verdade no pai ficcionado? A mentira, no sentido de engano, efabulação, fantasia, construção literária, cresce e com ela o enigma Le Carré. Pede-se a Sisman um exemplo de uma contradição entre a sua biografia e as memórias, ou seja, aponte uma “mentira”. Página 236 de O Túnel de Pombos. David tem 16 anos e vai à embaixada do Panamá em Paris a pedido do pai para cobrar 500 dólares ao embaixador, um conde. “A porta da rua da casa elegante foi aberta pela mulher mais desejável que eu jamais tinha visto” Era a mulher do embaixador que entretanto se juntou e acabaram os três a jantar num restaurante. Os diálogos e a descrição estendem-se por seis páginas. “Na minha recordação, é um local minúsculo (.) Durante o jantar, enquanto o conde falava sobre algo mais agradável, a condessa descalçou o sapato e acariciou-me a perna com o dedo do pé com meias. Na minúscula pista de dança, cantou-me Dark Eyes apertando-me a si e mordiscando-me o lóbulo da orelha (.) e o conde assistia àquilo indulgentemente. Ao voltarmos para casa, o conde decidiu que estávamos prontos pra ir para a cama. A condessa, apertando-me a mão, secundou a moção.” Não foi assim?, pergunta-se a Sisman. “É uma história completamente inventada”, garante. Porquê? “Porque ele estava lá com o irmão. Mas quando ele conta esta história quem quer saber da minha?”

COLECÇÃO SANDMAN

Levar aos limites as expectativas do leitor JIRO TANIGUCHI NA PRIMEIRA PESSOA

VOLUME 10 As Benevolentes 2

Já nas bancas com o PÚBLICO Hy Bender: As Benevolentes foi a história mais longa da série Sandman, durou 13 meses. Neil Gaiman: A audiência manteve-se fiel, apesar de alguns resmungarem. Alguns dos leitores mensais queixavam-se que a história não era para eles, que eram usados para subsidiar o livro, o que até um certo ponto era verdade. Outro factor difícil para os leitores mensais era o regresso às ilustrações do Marc Hempel, diferentes dos restantes comics. Na altura muitos leitores mensais consideraram As Benevolentes a pior história de Sandman. Quando publicamos na integra em livro os leitores alteraram a sua opinião considerando-a a melhor história.

HB: Mencionaste o Marc Hempel definindo a sua arte como fora do convencional. Porque o escolheste? NG: Porque As Benevolentes é sobre formas e sombras, formato e fogo. Eu sabia que a qualidade da arte alienaria alguns leitores, mas também sabia que a história seguinte seria ilustrada pelo Michael Zulli, cujo traço era muito realista, pelo que precisava do Marc para fazer um trabalho excelente nesta.

HB: Quais as cenas que mais prazer te deram a escrever? NG: Muitas das que giravam em torno de Loki. A velha anedota: “És feio, peludo e coberto de porcaria. Mas és meu e adoro-te!”. E o seu discurso sobre morte e teologia: “Existe uma teoria sobre um humano ser morto por um Deus ser a melhor coisa que poderá acontecer. Elimina todas as questões sobre crença, enquanto coloca a vida humana nas mãos e ao serviço de um poder superior.” Excerto da entrevista realizada por Hy Bender em 1999, e publicada no livro The Sandman Companion, da DC Comics. Edição e tradução de Levoir.

Colecção de 11 livros. PVP unitário: €11,90. Preço total: €130,90. Data início: 6 de Outubro. Data fim: 15 de Dezembro. Dia da semana: Quinta-feira. A aquisição do produto implica a compra do jornal. Limitado ao stock existente.

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Histórias morais de redenção e culp à medida de actores interessados e Philip Seymour Hoffman, no seu último papel, O Homem Mais Procurado de Anton Corbijn (2014); James Mason em Duas Plateias para a Morte de Sidney Lumet, em 1967; Richard Burton no Espião que Veio do Frio, Martin Ritt (1965)

No cinema, o realismo moral de John le Carré fez sempre contrapeso ao espectáculo technicolor das aventuras de espionagem. Por Jorge Mourinha

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omecemos por uma ironia que talvez não desagradasse a John le Carré. Duas das criações mais influentes da cultura popular do pós-Segunda Guerra Mundial pertencem a um outro mundo que já não existe e a um país que acreditava ainda poder recuperar o estatuto que outrora tivera. De um lado, a Coroa britânica e a sua ideia vitoriana-eduardiana de civilização ordeira que criou o chamado heritage cinema (que se mantém hoje, quase intocado, como o prova Downton Abbey). Do outro, James Bond, o agente secreto com ordem para matar, ícone do homem de acção criado pelo romancista Ian Fleming. O impacto de John le Carré, na literatura tal como no cinema, não teria sido o mesmo se não tivesse havido Bond e se os romances inspirados na própria experiência de Le Carré nos serviços secretos

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britânicos não oferecessem um contraponto ao heroísmo escapista da criação de Fleming (no cinema, porque nos livros a coisa fiava mais fino). As personagens do escritor moviam-se nos bastidores, como uma espécie de “exército das sombras” (para usar a referência Melvilliana), meras peças num tabuleiro geopolítico que os ultrapassava. O reverso da medalha do technicolor espectacular e panorâmico de 007, mesmo que a simultaneidade fosse mais circunstancial do que procurada: o arranque da série Bond no cinema data de 1962, Le Carré publicou o primeiro romance em 1961 mas O Espião que Veio do Frio, o livro que marcou a sua “explosão” pública, é de 1963. E a sua versão cinematográfica, dirigida por Martin Ritt em 1965, era, programaticamente, a preto e branco. Como convinha a uma história muito mais ambígua, e aos

dramas pessoais, humanos, morais que se tornariam na marca registada dos romances de espionagem de Le Carré. Pequenas histórias apanhadas no meio da Grande História, temas perfeitos para o questionamento que o pós-Segunda Guerra Mundial trouxera ao cinema. Bond podia ser o herói que sonhávamos ser, mas Le Carré falava de quem éramos realmente. Também por isso, Le Carré era talhado à medida dos actores que gostavam de esmiuçar uma personagem, de a compor paciente e detalhadamente, e é por isso que, se Bond era maior que um actor, os espiões do Circo britânico eram prendas para os seus actores. Falar de George Smiley, a personagem recorrente dos livros de Le Carré, é falar de Alec Guinness, imortal nas duas séries televisivas que a BBC adaptou de A Toupeira (1979) e A Gente de Smiley (1982). Gary Oldman fez-lhe também justiça na menos interessante mas ainda assim sólida versão para cinema de Tomas Alfredson em 2011, e James Mason em Duas Plateias para a Morte de Sidney Lumet, em 1967 (mesmo que Smiley aparecesse aí com outro nome); mas foi Guinness que ficou na história. Logo a seguir: Richard Burton no Espião que Veio do Frio, Pierce Brosnan no Alfaiate do

As personagens do escritor movem-se nos bastidores, como um “exército das sombras”, meras peças num tabuleiro geopolítico que os ultrapassa

Panamá de John Boorman (2001), Ralph Fiennes no Fiel Jardineiro de Fernando Meirelles (2005). E, sobretudo, Philip Seymour Hoffman, no seu último papel, em O Homem Mais Procurado de Anton Corbijn (2014), que reencontrava no seu Günther Bachmann, espião em busca de redenção, a medida exacta de desencanto e cansaço que Guinness soubera dar a Smiley. Redenção parece ser uma palavra que reencontramos constantemente nos filmes adaptados de Le Carré. Redenção implica sempre culpa, central ao mundo desapaixonado, brutalmente cerebral do Circo, onde a vida humana é sempre medida e contrapesada por um valor puramente funcional. Todos


pa, em dúvidas

John le Carré convenceu Alec Guinness a aceitar o papel de Smiley dizendo-lhe que ele tinha os “maneirismos existencias” da personagem

Smiley, o agente silencioso

O cinema nunca se desinteressou do escritor, apesar de os seus livros elípticos não serem candidatos evidentes às necessidades lineares de um filme de duas horas, encontrando na televisão a sua “tradução” natural

os filmes adaptados de obras de Le Carré jogam com a tentativa de compensar ou redimir um erro de julgamento, de tentar manter um grama que seja de humanidade pelo meio do tabuleiro de xadrez onde tudo decorre. Isso liga-se com outra ideia recorrente (esta, é certo, muito Hitchcockiana): a de atirar “amadores”, gente “normal”, para o meio desse xadrez geopolítico — como em A Casa da Rússia (1990, que Fred Schepisi veio em parte filmar a Portugal), O Fiel Jardineiro, A Rapariga do Tambor (1984) ou o mais recente Um Traidor dos Nossos (2015). (O que teria Hitchcock, que tanto explorou essa ideia do inocente apanhado num turbilhão, feito com Le Carré?) O cinema nunca se desinteressou do escritor britânico, apesar de — como o crítico Terrence Rafferty escrevia no New York Times em 2011 — os seus livros não serem candidatos evidentes às necessidades lineares de um filme de duas horas, devido às suas construções elípticas, cheias de avanços e recuos, de flashbacks e memórias. É por isso que Rafferty defendia ser na televisão que o escritor encontrava a sua “tradução” natural, considerando as duas séries da BBC como exemplares (e a recente adaptação televisiva de O Gerente da Noite com Tom Hiddleston e Hugh Laurie também teve notas mais elevadas que muitos dos filmes). Mas é, também, por isso que voltamos à ironia — e esta também não desagradará, temos certeza, a Le Carré: é que o escritor não teve de mudar nada no seu olhar para continuar a fazer sentido no século XXI. Já James Bond abandonou há muito a pose do herói de acção puro e duro para absorver todas as dúvidas que John Le Carré trouxe ao de cima. Hoje, 007 é impossível sem pensarmos também em George Smiley.

Observador e de grande estrutura moral, George Smiley é o grande protagonista da ficção de John le Carré. Criado por oposição à imagem do pai. Um ideal?

Q

uando John le Carré imita sir Alec Guinness, o primeiro actor a dar corpo ao velho espião George Smiley na série da BBC A Toupeira, sublinha-lhe em simultâneo características pessoais e da personagem. O ar angélico, a tensão, uma quietude invulgar, o ar extremamente vigilante, a suavidade de maneiras. “Ele tem o instinto de actor, e as suas imitações de pessoas são muito boas”, admitiu Guinness ao biógrafo Adam Sisman que referiu por sua vez ao ípsilon que a imitação de Alec Guiness está entre os seus desempenhos mais brilhantes. Em John le Carré, a biography (2015) Sisman conta como John le Carré convenceu Guinness a aceitar o papel de Smiley. “Escrevi para si como um admirador sem limites do seu trabalho desde há muitos anos”, disse-lhe. E disse mais, que ele tinha os exactos “maneirismos existencias” de Smiley. Perante estes argumentos, Guinness aceitou e pediu para se encontrar algumas vezes com o escritor, seria uma ajuda para compor a personagem central da obra de Le Carré. O primeiro desses encontros aconteceu num restaurante em Berkeley Square e teve a companhia inusitada de um terceiro elemento, um velho espião reformado, que permitiu a Guinness apurar detalhes. Quando o convidado saiu, Guinness perguntou a Le Carré se todos os espiões usavam botões de punho “de tão mau gosto” e os “botins camurça de um cor de laranja berrante com sola de borracha” eram para “andar furtivamente”? Le Carré respondeu-lhe que deveria ser por questões de conforto já que “a borracha chia”. Foi um almoço

histórico: “É matéria para a história da televisão que os botins de camurça de Oldfield, com ou sem solas de borracha, e o seu guardachuva apontado para a frente para abrir caminho se tornaram adereços essenciais para Guinness retratar George Smiley, o velho espião apressado. [.] O outro legado do nosso almoço foi menos agradável, embora artisticamente ais criativo. A repugnância de Oldfield pelo seu trabalho — e, suspeito, por mim próprio — calou fundo na alma de actor de Guinness, que não deixava de mo recordar quando sentia a necessidade de acentuar a sensação e culpa pessoal de George Smiley; ou, como gostava de dar a entender, da minha”, escreve John le Carré no seu livro de memórias O Túnel de Pombos. Personagem central, secundária ou apenas aparição esporádica, Smiley está em todos os livros de John le Carré. O escritor não lhe atribui uma biografia específica, completa. A sua identidade vai sendo definida ao longo da obra nos detalhes sobre a sua condição física e psicológica. A primeira vez

Em Túnel de Pombos, Le Carré não desenvolve, mas percebe-se que tem pouco do homem silencioso e moral que é George Smiley

que sabemos dele, acabara de ser abandonado pela mulher. Seria o primeiro de muitos abandonos. Foi em 1961. David Cornwell estava em Bona, ao serviço do MI6. Numa tarde de chuva quando guiava em direcção ao aeroporto de Colónia para comprar jornais britânicos soube que o seu primeiro romance, Chamada para a Morte, assinado com o pseudónimo John le Carré, fora publicado. “Os críticos mostraram-se benevolentes, embora não tão extasiados como eu esperara. Aprovavam George Smiley. E subitamente aquilo era tudo.” O episódio está em O Túnel de Pombos, e é revelador do quanto essa aprovação seria determinante para a longevidade de George Smiley, o espião que trabalha para o Circus, um departamento dos Serviços Secretos Britânicos que Le Carré cria para a sua ficção. Juntando a informação sobre Smiley, temos alguém nascido no início do século XX, filho de uma família de classe média, admirador de literatura alemã do período barroco que em 1928 foi recrutado para trabalhar no Circus. Serviu na Europa Central, África do Sul, Alemanha, Suíça e Suécia. Depois da II Guerra regressou a Inglaterra e casou com uma aristocrata que trabalhava como secretária, Lady Ann Sercomb. “É curioso que David tivesse escolhido o nome da própria mulher para mulher da sua personagem principal”, escreve Adam Sisman em John le Carré, a biography, acrescentado que elas não podiam ser mais diferentes. Ann, a primeira mulher de David, era “convencional, monogâmica e de classe média, enquanto Lady Ann é boémia, promíscua e aristocrática”. Apesar de ter elementos comuns com David Cornwell, Smiley está longe de ser feito à sua imagem. Em Túnel de Pombos, o escritor não desenvolve, mas percebe-se, pelas suas histórias, que tem pouco do homem silencioso e moral que é George Smiley. Mas refere Vivian Green, seu mentor e reitor de um dos colégios em Oxford. Foi ele quem lhe “deu a vida interior” de Smiley. Mas é Sisman quem dá pistas. Diz que a consciência de Smiley deriva do “forte intelecto moral” de Green e acrescenta outro detalhe humorístico: se Geen era conhecido pelo seu modo de vestir excêntrico, Smiley — refere, citando Le Carré — “aparenta gastar muito dinheiro em roupas realmente más”. Parece no entanto haver uma justificação acima de todas para Smiley ser como é. Vivian Green e George Smiley são o oposto de Ronald Cornwell, pai de David. “Talvez Smiley seja um ideal”, admite Sisman, alguém com dúvidas, preocupado com o facto de estar ou não a fazer a coisa certa. I.L. ípsilon | Sexta-feira 9 Dezembro 2016 | 9


Q

uando Alfred Hitchcock e François Truffaut se encontraram, em 1962, para longas sessões de conversa com um gravado ligado à frente deles, ambos tinham qualquer coisa a provar. Nenhum deles era ainda “o Truffaut” ou “o Hitchcock” tal como os seus nomes retinem hoje. Truffaut era um jovem ex-crítico de pluma afiada, que tinha passado a década anterior (e na boa companhia de gente com Godard, Rivette, Jean Douchet, entre vários outros), nas páginas dos Cahiers du Cinéma e de outras publicações, a zurzir o cinema francês corrente e a tecer loas a cineastas americanos (ou como no caso de Hitchcock, a trabalhar na América, no coração da indústria hollywoodiana) a que os parâmetros da altura não reconheciam nenhuma importância especial, e muito menos consideravam merecedores do epíteto de artistas. Foi a génese da famosa “política dos autores”, que tantos mal-entendidos gerou e continua a gerar, mas que partia deste princípio: o de que mesmo (e sublinhe-se, mesmo) em Hollywood, numa cadeia de produção industrial, alguns realizadores tinham o talento suficiente para marcar os filmes que faziam e, serem, portanto, os seus autores. A “política dos autores”, ao contrário do que muitas vezes se diz, não inventou nem o nome nem a noção de “autor”. Toda a gente reconhecia que Renoir ou Carl Dreyer, ou mesmo

O medo está no cinema de Scorsese: Cabo do Medo, Shutter Island

James Gray a falar de Vertigo: o romantismo intenso, a encenação da paixão e da sua força

David Fincher, ainda o medo: Panic Room, Zodiac 10 | ípsilon | Sexta-feira 9 Dezembro 2016

Como é que não se pode ser

Luís Miguel Oliveira

hitchcockia


Orson Welles, eram autores dos seus filmes; a novidade estava em encontrá-los, e afirmá-los, no contexto da produção industrial americana. Depois era uma questão de escolha, ou de “política”, que como Godard disse anos mais tarde era o termo mais importante na formulação “política de autores”: escolher uns em detrimento de outros. Hitchcock, que Truffaut defendera ardentemente em belíssimos textos absolutamente certeiros (foi ele quem disse que Hitch filmava assassínios como se fossem cenas de amor e cenas de amor como se fossem assassínio), e Howard Hawks, que era acima de tudo a praia de Jacques Rivette, foram nomes instrumentais na história da “política dos autores”, e foi por isso que André Bazin, o director dos Cahiers, se viu forçado a escrever um artigo a defender os supostos “excessos” dos seus jovens colaboradores, artigo também ele tornado celebérrimo e que se chamou Como se Pode ser Hitchcocko-Hawksiano?

Disponível para falar Truffaut, que no final da década de 1950 passara à realização com enorme sucesso, contribuindo para o lançamento da curta euforia da nouvelle vague, já tinha essa conta ajustada: o catalisador de muito ódio do “meio” cinematográfico francês provara, na prática, que tinha razão. Faltava uma prova teórica: que um dos seus ídolos, Hitchcock, podia e devia ser considerado um dos grandes artistas contemporâneos. Para isso, era preciso pô-lo

Hitchcock/ Truffaut, documentário de Kent Jones, conta os bastidores de um encontro entre um jovem crítico e um cineasta. Vaise tornando um filme sobre Hitchcock e sobre o cinema de Hitchcock e sobre as suas consequências.

Para os cineastas americanos, a lição hitchcockiana tem a ver com a manipulação colectiva a falar. Era uma altura - Hitch, como Lang, Ford ou Hawks, já tinha mais de 60 anos - em que a grande geração dos pioneiros se aproximava do seu crepúsculo, em que Hollywood mudava, em que o caos pós-clássico se aproximava. E a história daquela Hollywood, e dos seus protagonistas, não tinha sido feita, ou apenas mal feita, ou apenas lacunarmente. Esta era a ideia dos jovens cinéfilos franceses, criados numa admiração enorme pelo cinema americano. E foram os jovens franceses que foram em socorro dos velhos americanos, fazer uma coisa que raramente alguém tinha feito: ouvi-los. O ano de 1962 foi o arranque disso, porque foi não foi só o ano do encontro entre Truffaut e Hitchcock, foi também o ano em que Serge Daney e Louis Skorecki, ambos com menos de vinte anos, seguiram igualmente numa excursão americana de onde trouxeram entrevistas com gente ainda menos estimada do que Hitchcock, como Leo McCarey ou Raoul Walsh. A semente lançada teve outros frutos ao longo da década - ainda em França, com a série Cineastas, do Nosso Tempo, animada por André S. Labarthe e Jeanine Bazin, e um pouco mais tarde nos EUA, onde Peter Bogdanovich se aproximou de John Ford e de Orson Welles como se fosse (e acabou por ser) o “Truffaut” deles. Hitchcock, por seu lado, estava disposto a falar. Também ele tinha qualquer coisa a provar. Conhecia o que em França se dizia dele, e fora sensível a isso (como aliás a generalidade dos cineastas americanos, menosprezados em casa e louvados em França, conhecia e fora sensível ao que estes críticos diziam deles). Ficou radiante - e comovido, como mostram os documentos, correspondência e telegramas, exibidos no filme de Kent Jones, Hitchcock/Truffaut. Cem por cento disponível para Truffaut, usou toda a sua verve. O resultado foi um dos mais notáveis livros de cinema de sempre, prova

iano?

irrefutável da profunda consciência artística de Hitchcock e, mais ainda, talvez o primeiro momento em que um “pensamento cinematográfico” se espraiou, páginas a fio, em forma escrita. Tinham os dois razão, e o livro foi a derradeira, e definitiva, reivindicação dessa razão. O filme de Kent Jones conta um pouco dos bastidores e das consequências deste episódios. Inevitavelmente, aos poucos vai-se tornando um filme sobre Hitchcock e sobre o cinema de Hitchcock. Os realizadores que convoca não são necessariamente “hitchcockianos”: não seria o primeiro adjectivo de que nos lembraríamos para caracterizar Martin Scorsese, David Fincher, James Gray, Paul Schrader, Wes Anderson, Richard Linklater, Olivier Assayas, Kyoshi Kurosawa. Ao mesmo, hoje a pergunta a fazer seria mais “como se pode não ser hitchcockiano?”. A lição de Hitchcock - e não há muitos mais candidatos ao título de maior cineasta de todos os tempos - tornou-se uma peça tão elementar da educação cinematográfica que qualquer cineasta letrado a interiorizou e digeriu sem que isso forçosamente se revele de forma explícita. O mais explícito hitchcockiano da história, Brian de Palma, que com resultados melhores ou piores passou uma vida a fazer tangentes e remakes mascarados da obra de Hitch, curiosamente não foi convocado. Talvez fosse demasiado óbvio. Mas é interessante ver, por exemplo, James Gray a falar de Vertigo, quer da cena em que James Stewart espreita Kim Novak no museu quer do momento em que Novak, já transmutada em reencarnação da mulher morta, aparece (como “aparição”) a Stewart porque esse romantismo intenso, levado a um nível quase barroco, essa encenação da paixão e da sua força, é algo que está no cinema de Gray, mormente em A Imigrante. Como o medo está, por vezes, no cinema de Scorsese (pensamos no seu remake do Cabo do Medo, ou em Shutter Island) e no de David Fincher (pensamos em Panic Room mas sobretudo no seu melhor filme, Zodiac). Mas talvez a manifestação hitchcockiana mais evidente nos últimos tempos esteja num filme de Jean-Claude Brisseau, A Rapariga de Parte Nenhuma, que tem tonalidades “Vertigo-ianas” e se funda num credo muito caro a Hitchcock, o da associação entre a beleza e o medo. Em todo o caso, e sobretudo para os cineastas americanos que continuam a trabalhar no regime de severidade industrial, a grande lição hitchcockiana tem a ver com a “condução” da audiência, no sentido orquestral do termo, com a manipulação colectiva. Algo que - hélas! - não é hoje uma questão de ordem estritamente cinematográfica. Já Godard o dizia, no episódio das História(s) do Cinema dedicado a Hitch, intitulado O Controlo do Universo: que fora Hitchcock a concretizar o sonho de todos os ditadores, de Hitler a Estaline, e ter o mundo na mão. Não se vê hoje nenhum cineasta com esse poder.

Teatro Nacional São João

8-18 Dez 2016

direção artística

André Braga e Cláudia Figueiredo criação

Circolando

cocriação e interpretação Costanza Givone Daniela Cruz Gil Mac Margarida Gonçalves Paulo Mota Ricardo Machado

qua 19:00 qui-sáb 21:00 dom 16:00 M/14 anos estreia

coprodução Circolando Culturgest CMA/Teatro Aveirense TNSJ

bilhetes Fnac, TNSJ, TeCA, www.tnsj.pt

Ver crítica de filme págs. 27 e segs. ípsilon | Sexta-feira 9 Dezembro 2016 | 11



O glam trocou as roupas da pop S

imon Reynolds estava nas últimas palavras de Shock and Awe quando a notícia caiu, seca e bruta: David Bowie morrera, aos 69 anos. “Foi estranho. Estava literalmente a acabar o livro”, conta. Naquela noite de 10 de Janeiro de 2016, em Beverly Hills, na Califórnia, havia cerimónia de Golden Globes e Reynolds estava atento a Lady Gaga, revivalista glam premiada com um globo pela sua participação em American Horror Story: Hotel. “Foi bizarro ele morrer naquela noite. Tirou do palco todas as estrelas.” Não foi a primeira vez que o fez. Por ser figura definidora dos anos 70, Bowie está em destaque nas 700 páginas do novo livro do britânico Simon Reynolds, um dos mais importantes jornalistas musicais contemporâneos. Shock and Awe olha para a era do glam, o fenómeno cultural que enterrou os anos 60 e abriu caminho ao punk e aos anos 80 mais espampanantes. O glam era tudo: radical e reaccionário; teatral; libertário sexual; orgulhosamente decadente e falso. Mais do que um estilo, era um quadro mental que unia bandas e artistas como Bowie, Alice Cooper, Queen, The Sweet, Slade, Marc Bolan,

os protopunks New York Dolls, Suzy Quatro (excepção feminina num mundo de homens), Roxy Music, Jobriath, Cockney Rebel e Sparks. Em 1970, os Beatles tinham terminado, Janis Joplin e Jimi Hendrix morreram, Jim Morrison era uma sombra decadente de si mesmo e ainda se choravam as vítimas do festival de Altamont, na Califórnia, o fim simbólico do sonho hippie. O glam era a reacção, o reverso dos anos 60: depois do protesto, do nudismo, da verdade (”Gimme Some Truth”, pedia Lennon), vieram a fantasia, a ironia, a pose camp, as mil e uma roupas e máscaras. E uma enorme carga sexual, capaz de, como nunca tinha acontecido na pop, ultrapassar as barreiras do género e desmontar normas e papéis. A pop segundo o glam: “extraterrestre, sensacionalista, histérica nos dois sentidos, um lugar onde o sublime e o ridículo se fundem e tornam indistinguíveis”, escreve Reynolds no livro. Sintomaticamente, Shock and Awe significa choque e pavor. No início da década de 1970, o rock era um adulto, fazedor de álbuns maduros. Parecia cansado de si mesmo. “As pessoas perguntava: o rock morreu? O passado é mais excitante do que o presente? Olhando agora

para os setentas, parece que havia muitas coisas interessantes a acontecer, mas as pessoas estavam muito deprimidas e desiludidas. Depois dos anos 60, sentiam que tinham entrado em declínio.”

No reino da fantasia Simon Reynolds era uma criança, mas recorda-se do impacto de ver Marc Bolan no programa televisivo Top of the Pops. O episódio é contado na introdução do livro: “Foi o aspecto de Bolan, mais do que a sensualidade ameaçadora do som de T. Rex, que me petrificou. Aquele frisado eléctrico do cabelo, as bochechas com pós de glitter, um casaco que parecia feito de metal - Marc parecia um senhor da guerra vindo do espaço.” A fantasia atraía adolescentes com um ego em construção. Bolan, que saiu da era hippie para se reinventar como pioneiro do glam, teria rapidamente companhia nesta fúria fantasista. Os ingleses The Sweet inventaram um rock simultaneamente pesado, para os padrões da época, e industrializado, sensacionalista, capaz de fazer palpitar corações adolescentes - usavam perucas e carteiras de mulher, mudavam de indumentária durante os concertos, onde havia fumos e vídeo (o glam era “quase uma

De Bowie aos Slade, de Alice Cooper a Marc Bolan, o glam foi radical e reaccionário. Enterrou o sonho hippie e abriu a pop ao sexo e às máscaras. Uma deliciosa mentira que Simon Reynolds pôs em livro.

Pedro Rios

O glam era radical e reaccionário; teatral; libertário sexual; decadente e falso. Mais do que um estilo, era um quadro mental que unia bandas e artistas

mmmmq Shock and Awe Simon Reynolds Faber and Faber/ Dey Street

paródia do glamour”. Mais do que glamorosos, os seus artistas procuravam o “bizarro” e o “excessivo”, como se fossem um Frankenstein resultante da “colagem louca de diferentes elementos de diferentes eras de glamour”, diz Reynolds ao Ípsilon). Os Slade, andróginos com receita idêntica, venderam 2,5 milhões de singles em 1973 e formaram um exército de fãs com botas de plataforma e vontade de dançar - neles, “tudo é um grito”. Nos Estados Unidos, Alice Cooper não parou enquanto o concerto rock não fosse uma gigantesca peça de teatro. Fantasiosos eram também o mundo dos ingleses Roxy Music, futuristas musicais fixados num passado de glamour, e as múltiplas personas de Bowie. Os adolescentes já não suportavam a música dos irmãos mais velhos. Fartos do rock dos anos 60, que se ouvia sentado ou em danças desconchavadas pelo efeito de substâncias psicadélicas, os fãs do glam queriam rock directo, dançável - por isso, nas produções glam o ritmo é tão ou mais importante do que as guitarras. O rock torna-se, pela primeira vez, nostálgico, sobretudo das formas simples dos anos 50, pré-psicadelismo. “Tentei voltar à sensação de ter de novo 15 anos. a pri-

meira excitação rock’n’roll”, contou Gary Glitter, em 1974. O rock tinha já um stock de ideias que podia explorar e reciclar, constatou Simon Reynolds na investigação que fez para escrever Retromania, o antecessor de Shock and Awe, lançado em 2011, e a reflexão definitiva sobre a força da nostalgia na música popular. “O que me interessou no glam foi esta mistura de elementos nostálgicos, que olhavam para trás, com elementos que olhavam para a frente, sendo experimentais em termos visuais, de género, performance e, de certa maneira, no som também”, afirma. “Grupos como os Roxy Music são uma mistura de [elementos] retro, elementos pós-modernos e outros muito futuristas, experimentais, avant-garde.” Para Reynolds, o glam chega, por conta própria e sem academismos, ao pós-modernismo. “Versões criativas, citações de canções antigas, regresso a formas antigas de música que estavam obsoletas, actualizando-as, referências a estrelas de outras eras, o uso da paródia”, “o colapso da alta cultura com a baixa cultura”, “tudo isto são técnicas muito pós-modernas. A ideia de que não precisas de ir sempre para a


GIJSBERT HANEKROOT/REDFERNS

moroso em que paras de ligar a outra coisa que não apenas o teu prazer. ‘Divine decadence, darling’ era a frase forte do filme Cabaret [um musical de 1972 com Liza Minnelli e acção passada na Berlim de 1931].” Esses anos da Berlim pré-nazi, período breve de libertação sexual e boémia decadente, inspiraram Cooper, Lou Reed e Bowie. “O mundo pode estar a chegar ao fim, por isso vamos divertir-nos agora”, resume Reynolds. O mundo a acabar? “Havia a ideia de que havia algo de terrível ao virar da esquina. Havia muitas preocupações sobre o que estava a acontecer: estaria o Ocidente em declínio, viria aí uma sociedade totalitária (fascismo ou comunismo), um golpe militar? Havia muitas preocupações sobre o ambiente, a população excessiva, um sentimento geral de que as coisas estavam a correr muito mal.”

Artista no trono Reynolds encontra paralelos com a situação actual. No mundo de Trump e Le Pen, “a palavra ‘decadência’ não é muito usada”, mas “o conceito anima muito pensamento, seja com pessoas que querem restaurar valores tradicionais, a força da nação, a fibra moral da cultura, seja na cultura popular em que o que é celebrado, particularmente no rap, é indulgência total e a decadência”. O livro aponta outros ecos do glam na cultura contemporânea, de Lady Gaga a Kanye West, que “rappa” sobre si mesmo e as contradições da fama - um famoso preso no seu mundo milionário, a música como câmara de eco.

“Houve tantas estrelas pop dos anos 80 britânicas que são abertamente gays. São filhos de David Bowie” frente, que a música não precisa de progredir sempre, que pode regredir e ser nova ao mesmo tempo.”

A festa do fim do mundo Com o glam, o ”gimme some truth” de Lennon vira um “gimme some untruth” escrito a rosa-choque. “O glam chama a atenção sendo falso”, escreve Reynolds. Ambicionava-se a inverdade, apostava-se na mentira meticulosamente construída, esquecia-se a vontade de mudar o mundo. Bowie criou Ziggy Stardust, falando dele na terceira pessoa (“aquela criatura querida”), e outras máscaras. Bowie deu conselhos de maquilhagem nas páginas da revista Creem. Ron Mael, dos Sparks, aparecia com um bigode idêntico ao de Hitler. Alice Cooper aumentou a megalomania

de digressão em digressão, chegando ao cúmulo de simular ser guilhotinado em palco - rodeou-se de gente da Broadway para montar o seu circo. “Alice Cooper adorava Hollywood e a Broadway”, aponta Reynolds. “Isso era algo de muito diferente dos anos 60 quando coisas como Hollywood, a Broadway e o mundo do espectáculo eram consideradas o inimigo, o contrário do que o rock era.” Cooper chocava, mas era puro capitalismo, fúria apolítica - não por acaso a Forbes deu-lhe uma capa devido à digressão de Billion Dollar Babies (1973). Alguns comentadores relacionaram a reeleição de Richard Nixon, em 1972, com uma reacção moral ao deboche de Cooper. Ele e outros músicos da era glam

mostravam-se decadentes e faziam a apologia da decadência. Gary Glitter, que dizia que podia ter sido um designer de moda, foi descrito como sendo o “boneco da Michelin do glam”, o “titã do trash”, “tão mau que é podre de belo” (isto muito antes de ser condenado por vários crimes de abuso sexual e pedofilia), graças aos seus espectáculos onde cabiam motas, fumo, pirotecnia, botas de plataforma com alturas proibitivas e roupas espampanantes. Bowie declarou que uma sociedade em que pessoas como ele e Lou Reed têm sucesso “está perdida”. “Nos anos 70 o conceito de decadência era muito forte”, diz Simon Reynolds. “Algumas pessoas pensavam que era uma coisa divertida a que se podia aspirar, um estado gla-

O artista glam assume o trono, longe da ideia hippie de que quem está em palco vale tanto como o fã na audiência. No glam, há “o potencial do autoritarismo”: “multidões num estado de histeria, todos a olhar para uma figura dominante”, o performer, que é “excepcional” e digno de ser venerado. Steve Harley, dos Cockney Rebel, afirmou que “estar em palco é ser um Messias”. O uso de máscaras autorizou ou estimulou o aparecimento de referências fascistas. Muitos músicos glam usavam suásticas como táctica de choque. Numa fase em que se entregou aos braços da cocaína, Bowie interessou-se pela história nazi, inventou uma persona “muito ariana”, The Thin White Duke, e fez o que pareceu ser uma saudação nazi em público.

Os Queen foram buscar o hard rock, o barroco e as produções ao estilo Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band para fazer rock que pedia a adesão do povo. Numa crítica ainda hoje polémica, Dave Marsh escreveu na Rolling Stone: “Os Queen não estão aqui apenas para entreter. Este grupo surgiu para mostrar claramente quem é superior e quem é inferior. O hino deles, We Will Rock You, é uma ordem de marcha: tu não nos vais rockar, nós é que te vamos rockar. Os Queen podem ser, de facto, a primeira banda rock verdadeiramente fascista.”

Fluidez sexual Para Reynolds, uma das maiores conquistas do glam foi a libertação sexual. Os anos 1960 serão a década da paz e do amor, mas, para os seus principais ícones, pelo menos publicamente, o amor era heterossexual, sempre heterossexual. Um músico afirmar-se homo ou bissexual era tabu. Bolan fê-lo primeiro, mas foi Bowie que o disse com mais veemência e impacto. “I’m gay, and always have been, even when I was David Jones”, afirmou em 1972 ao Melody Maker (David Jones era o nome real de Bowie). Era mentira (ou meia verdade), mas fez-se história pop. Noutras declarações, Bowie procurou nunca se fixar sexualmente - o seu interesse na homossexualidade seria mais cultural do que sexual, acredita Reynolds. Mas com aquela declaração chocante - para a época - Bowie foi 100% Bowie: cristalizou os ares do tempo e deu um arrojado passo em frente. A experimentação sexual estava um pouco por todo o lado, dos Velvet Underground, que falavam de drag queens, sadomasoquismo e outras “coisas que estavam nos limites”, aos New York Dolls, que se apresentavam em palco em roupas de mulher (Morrissey diria na sua autobiografia que o Jerry Nolan da capa do disco de estreia dos Dolls foi “a primeira mulher” pela qual se apaixonou). Neste domínio, o glam teve dois efeitos: primeiro, jovens a acordar para a sua homossexualidade viram no que Bowie e companhia estavam a fazer algo de “encorajador”; segundo, “pôs na mente dos homens heterossexuais a ideia de que poderiam ter mais do que uma sexualidade convencional - talvez pudessem experimentar”. A androginia e o gender bending estavam na ordem do dia. “Muitos homens heterossexuais experimentaram com imagem, roupas, maquilhagem, exploraram, pelo menos, a ideia de ser mais flexível sexualmente, mais femininos. Foi libertador em vários aspectos e vimos isso nos anos 80 em que tivemos muitas estrelas pop explicitamente gay: Boy George, Culture Club, Pete Burns, dos Dead or Alive, que morreu recentemente, [Holly Johnson dos] Frankie Goes to Hollywood, Marc Almond, dos Soft Cell”. E resume: “Houve tantas estrelas pop dos anos 80 britânicas que são abertamente gays. São filhos de David Bowie”.


E no início de tudo, eis Marc Bolan Um ano antes de Bowie, os T. Rex de Marc Bolan, andrógino, de fato prateado e purpurinas no rosto, inauguravam a era glam-rock. Por Mário Lopes

O

início aponta Abril de 1972, quando o cabelo laranja e a guitarra azul de Bowie hipnotizaram a Inglaterra ao som de Starman. Porém, o epicentro dessa microrevolução de efeitos duradouros a que se chamou glam-rock encontrase um ano antes. Em Março de 1971, o homem que pouco antes actuava sentado de pernas cruzadas, entre fumo de odor adocicado, perante hippies e outros agentes da contracultura, renascia perante as câmaras do Top of The Tops. Aquele não era o Marc Bolan que, nos Tyranossaurus Rex, acompanhado pelo percussionista Steve Peregrine Took, criava música cósmica, de base acústica, sobre mansões mágicas, feiticeiros de Tolkien e outras fantasias. Aquele, o que cantava o ritmo sincopado de Hot Love e o seu longo singalong final, ESTATE OF KEITH MORRIS/REDFERNS

Em Agosto de 1977, Bolan comentou com Steve Harley, dos Cockney Rebel, que a morte não lhe cairia bem. “Detestaria morrer agora. Só teria um parágrafo na página 3”. Dia 16 de Setembro, depois do despiste de automóvel que o vitimou, foi o seu rosto que fez as capas da imprensa britânica. Bolan gostaria de saber que estava errado

canto comunitário oferecido à nação, era o início de algo novo. Diziam-no o cabelo aparentemente penteado a choques eléctricos, o casaco e as calças de prateado brilhante e as purpurinas que lhe iluminavam o rosto. Diziam-no o sorriso oferecido às câmaras, como se soubesse o efeito que a pose e os vibratos andróginos do canto provocavam, e que a música, naquele boogie rock’n’roll adornado com orquestração opulenta, acentuava. De um dia para o outro, Marc Bolan passou de músico de culto patrocinado pelo atento John Peel a responsável pela T. Rexstasy que varreu a Inglaterra. “O seu corpo ondula de verdade. É demais. Ele bombeia sentimento em ti e deixas-te ir, simplesmente”, escreveu por essa altura ao Melody Maker uma miúda de 15 anos. O feitiço de Marc Bolan estava lançado. Ele seria o instigador, a estátua perene do glam, aquele que lhe deu corpo e som, o seu cometa mais precioso - depois, David Bowie tratou de lhe dar sentido enquanto novas bandas e novos músicos se multiplicavam em redor de ambos. Um ano e 16 milhões de discos vendidos depois da actuação no Top of the Pops, na sequência do concerto de entronização no Empire Pool de Wembley, base do documentário Born to Boogie, realizado por Ringo Starr e agora reeditado em DVD pela Edsel, com distribuição portuguesa da VGM (dois CD e dois DVD compõem a caixa), alguém escrevia na imprensa britânica. “Os Beatles e os Stones podem ter visto cenas semelhantes, mas mesmo eles não conseguiriam persuadir durões obstinados de nariz achatado e botas de biqueiro de aço a colar estrelas douradas à volta dos olhos”. A frase é interessante por nela se exprimir com precisão a natureza de Bolan e os seus T. Rex. Habitaram o fim de uma era e o início de uma nova, a da fantasia, festim hedonista e libertação sexual do glam. Born to Boogie, que alterna o concerto de 1972 com gravações em estúdio (Ringo, Elton John e restante banda a mostrar a ainda não editada Children of the Revolution) e sequências nonsense (um lanche à Alice no País das Maravilhas nos jardins da mansão de Lennon, com freiras e vampiros e Bolan, cartola de Chapeleiro Louco na cabeça, a tocar acompanhado de secção de cordas), é um curioso documento de época. A euforia glam fica em parte explicada, quer na presença física de Bolan em palco, quer na recuperação para aquele presente do puro prazer do rock’n’roll de Chuck Berry. Perante Bolan estava uma multidão de miúdos que gritavam o seu nome, que tinham brilhando na cara as mesmas purpurinas que o ídolo usava. Mais importante é a forma como, em Get it on, Jeepster ou Hot love, eles cantam e dançam como se aquelas canções fossem hinos de libertação, porta de entrada na fantasia escapista que

“O seu corpo ondula de verdade. É demais. Ele bombeia sentimento em ti e deixas-te ir, simplesmente”, escreveu ao Melody Maker uma miúda de 15 anos Bolan, estrela desde que nasceu, como o próprio dizia, lhes proporcionava. Paralelamente à reedição de Born to Boogie, chega-nos Unchained: Home Recordings and Studio Outtakes 1972-1977 (Edsel/VGM). É o que o título indica. Uma colecção em oito CD de todas as gravações que Bolan não editou em single ou álbum, desde curtos excertos inferiores a um minuto de ideias nunca terminadas a canções de corpo inteiro que poderiam ter tido lugar na sua discografia oficial. Em conjunto cria-se um percurso paralelo à sua carreira, tão fascinante quanto errático, que segue desde o auge da febre T. Rex, atravessa o período do declínio criativo de meados da década de 1970 e termina no momento em que um possível renascimento em pleno período punk, de que Bolan se reclamou “padrinho”, sem desmentido dos envolvidos, é eliminado pela morte precoce aos 29 anos. Essencial para admiradores assolapados, tem uma desvantagem. Bolan foi o mestre da grande ilusão: parecia ter surgido do nada, plenamente formado, para iluminar os nossos sonhos pop e testemunhar todo o trabalho de estúdio desfaz essa ilusão em que se fundou o mito. Ao vê-lo, ao ouvir os seus grandes singles e álbuns do período glam (principalmente Electric Warrior, de 1971, e The Slider, de 1972, se bem que os flirts posteriores com o funk sejam tudo menos negligenciáveis), somos invadidos pela sensação que toda aquela música, imaculadamente registada por Tony Visconti, nasceu no momento em que é interpretada. Marc Bolan sonha e a obra nasce. À sua volta, toda uma geração seguiu com ele. Em Agosto de 1977, comentou com Steve Harley, dos Cockney Rebel, que a morte não lhe cairia bem. “Detestaria morrer agora. Só teria um parágrafo na página 3”. Dia 16 de Setembro, depois do despiste de automóvel que o vitimou, foi o seu rosto que fez as capas da imprensa britânica. Bolan gostaria de saber que estava errado.


As ruínas de

Satie

dão um cenário belíssimo

Para o projecto original a partir da música de Satie, Joana Gama chamou Luís Fernandes - dos Peixe:Avião - e Ricardo Jacinto

Gonçalo Frota Em ano de comemoração do aniversário de Erik Satie, Joana Gama, Luís Fernandes e Ricardo Jacinto criam um deslumbramento sonoro com vista desafogada para a obra do compositor francês.

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D

evido à sua escassez de meios para poder custear a interpretação de Socrate, peça de Erik Satie para orquestra e voz, o coreógrafo Merce Cunningham pediu a John Cage que adaptasse a música para um formato comportável. Cage fez então uma transcrição para dois pianos do primeiro movimento da obra, material que se tornou o acompanhamento musical do solo do coreógrafo e bailarino norte-americano Idyllic Song, em 1947. Confesso

apaixonado pela obra de Satie, Cage propôs-se mais tarde completar a transcrição de Socrate, desafiando Cunningham para ampliar igualmente a sua partitura coreográfica. Passados 20 anos sobre Idyllic Song, a notoriedade alcançada por ambos já não lhes permitia fintar com a mesma destreza o publisher de Satie. E Cage viu-se obrigado a trocar a transcrição por uma composição própria que mantinha a linha vocal e citava a melodia orquestral de Socrate, sobre a qual se espraiavam os gestos de Second Hand (1968), de Cunningham. A essa música, assumindo o movimento de fancaria, Cage chamou Cheap Imitation. Joana Gama nomeia Cheap Imitation como exemplo de “toda uma história de apropriação do Satie” prévia ao projecto Harmonies, lançado esta quarta-feira. A pianista dedicou 2016 a uma série de concertos e conferências por todo o país em que visitou e reinterpretou a obra do compositor francês numa comemoração distendida dos 150 anos do seu nascimento, sob o título Uma celebração em forma de guarda-chuva. Foi levantando essa óbvia ponta do véu que Pedro Santos, programador de música do Teatro Maria Matos, instigou Joana a construir um projecto original a partir da música de Satie, deixando-a livre para escolher os seus cúmplices. Mais uma vez com a bênção de John Cage, a pianista chamou Luís Fernandes - dos Peixe:Avião, com quem mantém o duo de piano e electrónica Quest - e Ricardo Jacinto, músicos com quem se cruzara no programa de aniversário 100.Cage que o mesmo teatro lisboeta organizara para celebrar o legado do compositor. “O John Cage está sempre connosco”, ri-se Joana, num reconhecimento de que se tornou uma figura central na sua vida criativa recente. Mas em Harmonies, que não restem dúvidas, a figura de proa é apenas Satie. Ou, talvez seja mais justo dizê-lo, o seu fantasma. Joana, Luís e Ricardo seguem pistas propositadamente vagas, descontextualizadas ou sobrepostas, tentando encontrar-se com a obra do compositor a partir de fragmentos das suas peças retrabalhados em conjunto até quase se esvaírem. Daí que não haja no disco e no concerto do trio qualquer intenção de fazer vénias diante das

Harmonies, música tão obsessiva e bela, é uma construção musical a três em que Satie se descobre como por detrás de uma cortina de fumo 16 | ípsilon | Sexta-feira 9 Dezembro 2016


peças de Satie repetidas uma e outra vez com fins publicitários ou para introduzir sentimentalismo em quaisquer imagens televisivas. “A ideia era não ir de encontro àquilo que seria mais expectável; quisemos evitar os temas mais famosos, que são conhecidos pelas melodias - belíssimas e que se colam na cabeça”, reconhece Luís. “Pensámos em trabalhar sobre um conjunto de peças menos conhecidas chamado Harmonies.” Satie é, portanto, uma (boa) desculpa. É um ponto inicial que não condiciona o caminho; é um tiro de partida com meta em lugar incerto. “Nalguns casos usamos melodias de peças, mas tão estendidas no tempo que a própria relação melódica é difícil de identificar”, descreve Joana Gama. E recuperando novamente os ensinamentos de John Cage, a pianista fala da procura “do som pelo som”, em que os compassos de uma composição podem ser samplados e levados a colidir com elementos de outra obra, desvirtuando a sua intenção melódica e tornando-os um campo minado dedicado ao confronto. Mesmo quando Joana toca notas mais agarradas às partituras, “a electrónica e o violoncelo acrescentam camadas a essa base a que chamamos as ruínas da música do Satie”. Oiça-se Piège, por exemplo, em que as notas do piano são seguidas por um rasto espectral, como se desprendessem do teclado e ficassem a planar, devedoras tanto de uma beleza transcendente quanto de um desconforto fúnebre. Ao pensarem na forma de “colocar a obra de Satie nos nossos dias” e nas abordagens criativas naturais a cada um, Harmonies havia de ir tomando forma nesta ideia de “rasurar, destruir ou reconstruir o material”, segundo Ricardo Jacinto. E que se percebe logo na introdução, em que os holofotes se viram para a electrónica, esboçada por Luís Fernandes numa residência partilhada com Joana Gama no festival Tremor, nos Açores, quando se fecharam no hotel a “cortar acorde a acorde uma das peças que a Joana tocou lá, Ogives”. “Depois montei um sistema em que os acordes iam sendo disparados de forma aleatória, mas como eram quase sempre consonantes em termos harmónicos iam criando um trecho musical a partir do Satie”, conta Luís. Se a ideia de samplar Satie para originar novas composições é natural em quem tem estes recursos como inatos, a pianista nota que “o próprio Satie usava excertos de músicas de outros compositores nas suas peças”. “Fez isso com Chopin, por exemplo, e era mesmo descarado inseria dois ou três compassos de outro compositor e continuava a sua música. Esta ideia de colagem também é uma referência a essa atitude descomplexada.”

Satie está nos detalhes Se a ligação musical de Joana Gama a Luís Fernandes o tornava uma escolha óbvia para o desenvolvimento de Harmonies, Ricardo Jacinto apareceu à pianista como alguém ideal

para a construção de um disco e espectáculo a partir de Satie devido a “esta vida dupla que ele tem de músico e de artista plástico”, justifica. Quando Ricardo fala de um procedimento em que se propunham “fazer uma espécie de respigar em torno da obra de Satie”, refere-se igualmente à adopção desse tipo de lógica à obra do compositor para além da música. “Houve um processo de descoberta”, recorda o violoncelista, “em que fomos criando relações com os textos dele, alguns desenhos e com a própria caligrafia. E acabou por ser central o cenário do bailado Relâche, do Picadia, e para o qual o Satie compôs a música. Tudo isso foram pequenos apontamentos que fomos samplando e colando. A cenografia do espectáculo deu continuidade a este trabalho.” Quer isto dizer que no palco de Harmonies (depois da apresentação em Lisboa o concerto passará por Coimbra, Porto e Braga, em Janeiro e Fevereiro) o cenário incluirá um conjunto de reflectores em fundo a que Ricardo chama “um quarto instrumento”. Aquilo que acontece em Harmonies, e de onde resulta uma música tão obsessiva e bela quanto esquiva e intrigante, é uma construção musical a três em que Satie se descobre como por detrás de uma cortina de fumo ou de uma chuva intensa, como um vulto sempre presente e para o qual a atenção é por vezes desviada, mas suficientemente desfocado para que nunca ocupe o centro da acção. Mesmo quando Ricardo Jacinto assume no contrabaixo o baixo completo de Vexations ou Joana Gama segue à risca as notas imaginadas pelo compositor, a música nunca se fecha num único ponto de interesse e as atmosferas são cenários sonoros armadilhados previamente com uma obra alheia, mas em que seguem sempre os seus próprios instintos e se negam a adoptar um livro de estilo cuja autoria não lhes pertence ou a tentar habitar uma outra cabeça. “O Satie gostava da microescala e da microestrutura”, compara Joana Gama. “Nunca foi essa a nossa ideia. Quisemos pegar no material harmónico e em determinadas secções ou características e mudá-las.” Tanto assim que, à excepção de Piège - “em que há um toquezinho de viragem de século à la Satie”, concede a pianista -, quase se diria que Harmonies existe em permanente negação do seu rastilho inicial. Não porque haja uma intenção de nos enganar quanto à origem do projecto, mas porque os temas se inscrevem num outro território, menos ancorado em linhas melódicas persistentes do que entregue a paisagens desprendidas, às quais uma pequena melodia pode fugazmente colar-se mas logo sai de órbita e desaparece na imensidão do espaço. A isto, Ricardo Jacinto chama “uma certa informalidade na presença de Satie”. Tal como o diabo, também Satie está nos detalhes - que em Harmonies são um deslumbramento constante.

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ípsilon | Sexta-feira 9 Dezembro 2016 | 17


À flor da pele, paranóico, desordenado e inquieto: o mundo pessoal do americano confunde-se com o estado do mundo em Serpent Music. É o fascinante álbum que apresentou há dias no Madeira Dig. “Aqui, com o infinito do Atlântico, tudo parece mais sereno”, afirma ele.

Vítor Belanciano

P

arece deslocado ali, alto, elegante, de roupas exóticas, logo pela manhã, na sala onde é servido o pequeno-almoço na Estalagem da Ponta do Sol, com vista para o imenso Atlântico. Ele parece ser mais das confusões urbanas. Naquele contexto sossegado não passa despercebido o multiinstrumentista, performer e produtor Yves Tumor, que lançou Serpent Music, um dos álbuns mais sedutoramente estranhos dos últimos meses. O americano esteve há dias na ilha da Madeira, no contexto do festival Madeira Dig, e em Abril de 2017 actuará em Lisboa. Foi entre as localidades da Ponta do Sol e da Calheta, o vértice onde se realiza o festival, que o encontrámos. Tem fama de ser renitente ou até belicoso com a imprensa, mas ali revelou-se o oposto, aparentando até alguma timidez e sentido de humor. “Passam a imagem que sou muito enigmático mas isso acontece porque não faço questão em transmitir muita informação sobre mim”, diznos, rindo-se de seguida, gerando uma analogia sobre si próprio. “Dizem que a minha música é fantasmagórica, por isso, no fim de contas, devo ser mesmo um fantasma!” A sua vida até agora tem sido vulgar. É a habitual história do adolescente que se foi isolando, construindo o seu próprio universo. Mais cedo ou mais tarde essa mundovisão haveria de ser projectada cá para

O estado do mundo

no interior

Cresceu num meio conservador, o Sul dos EUAU, sentindo que tudo o que fugisse aos padrões mais consensuais, ao nível das relações sociais ou das identidades sexuais, era subtilmente reprimido

de Yves Tumor 18 | ípsilon | Sexta-feira 9 Dezembro 2016

fora. No seu caso foi-o em forma de música, arte e performance. “Aquilo que faço não é uma mera sublimação da minha existência, mas sim, por vezes é difícil diferenciar a pessoa que sou do artista. É uma fronteira ténue.”

Alienígena Ele não é fácil de situar. Cresceu em Knoxville, no estado do Tennessee, mas já circulou por Los Angeles, Miami, Berlim e Leipzig, vivendo agora na cidade italiana de Turim. O seu último álbum foi lançado pela berlinense PAN, casa da electrónica mais conceptual (M.E.S.H., Lee Gamble, Helm) mas antes já havia gravado para a Dogfood Music Group de Mykki Blanco, conotada com o queer rap de Nova Iorque, ou a NON Worlwide. Algumas pessoas referem-se a ele como Rahel Ali, outras chamam-

lhe Sean L. Bowie, mas seja qual for a sua identidade é como Yves Tumor que se tornou conhecido, apesar de já ter efectuado lançamentos com outros pseudónimos como Bodyguard (com James Ferraro), Teams ou Bekelé Bernahu. A sua música contém traços de várias linguagens (dub, pop, hiphop, electrónicas, ruído, ambientalismo, soul, música concreta, psicadelismos) mas o todo é de difícil decifração, parecendo algo transcendente e longínquo, entre a pop etérea, a electrónica psicadélica, atmosferas hipnóticas, cenários pósindustriais e o canto bíblico, de onde se destaca uma voz que por vezes diz coisas indecifráveis, ruminando sobre batimentos cardíacos. Muitas vezes é conotado com nomes como Mikky Blanco, Le1f ou Lotic, ou noutra perspectiva, com


Arca ou até com FKA Twigs, mas a sua música e atitude perante a realidade é ainda mais alienígena. Cresceu a ouvir Nirvana ou Velvet Underground, mas são os Throbbing Gristle dos anos 1970 e 1980, e o seu mundo industrial, apocalíptico e paranóico, e a reflexão performativa sobre as identidades sexuais do seu membro mais icónico, Genesis P-Orridge, que reivindica como principal referência. Por vezes parecem canções que evocam a lembrança nebulosa de algo que já foi, com espaços emotivos abertos mas desolados, e uma grande carga espiritual, como se fosse, em termos formais, uma descontextualização da música gospel, transpondo-a para novas funções artísticas e sociais. “Não sou religioso e parece-me até que as religiões podem ser negativas, mas isso não significa que a espiritualidade não possa ser importante para o equilíbrio. Não tenho que ser devoto de Deus, de um qualquer Deus, para acreditar na minha transcendência.” Essa relação ritualista com a vida sente-se também nas performances. Se em disco a sua música é claustrofóbica, em palco sente-se uma atmosfera irrespirável, mas com a dimensão catártica e interactiva das suas prestações a vir ao de cima, como testemunhou quem o viu na última segunda-feira no Mudas, museu de arte contemporânea da Madeira, na Calheta. “Gosto da comunicação com o público a partir do palco ou até de ultrapassar essa

Se em disco a sua música é claustrofóbica, em palco sente-se uma atmosfera irrespirável, mas com a dimensão catártica e interactiva das suas prestações a vir ao de cima

Yves Tumor Serpent Music Pan

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fronteira e a maior parte do tempo quando estou em palco sinto prazer porque sou eu próprio o que é um privilégio”, diz, reflectindo que “se no final as pessoas se sentirem estimuladas, desconfortáveis ou diferentes, fico muito satisfeito.” Ao longo de um festival que aposta de forma consistente em músicas exploratórias, outras actuações deixaram rasto, como as de Peder Mannerfelt, Sonic Boom, Helm ou Zeena Parkins, mas ele está numa outra fase do seu percurso. Sente-se uma vontade indómita de expor o seu trabalho. “Tudo isto, a música, a minha arte, as pessoas que se interessam pelo que eu faço, viajar, este lugar e esta ilha tão bonita onde estamos, faz parte daquilo que sempre desejei para mim próprio, por isso sinto que tenho de devolver tudo isso através da forma que sei: em palco, dando-me. Poder actuar em frente às pessoas é o que sempre desejei.” Cresceu num meio predominantemente conservador, o Sul dos Estados Unidos, sentindo que tudo o que fugisse aos padrões mais consensuais, ao nível das relações sociais ou das identidades sexuais, era subtilmente reprimido. A solução era fechar-se no quarto, na adolescência, tomando contacto com o resto do mundo através da internet ou da música, que começou a praticar de forma autodidacta aos 17 anos, tocando uma panóplia de instrumentos como o piano, a guitarra, o baixo ou a bateria.

Aos 20 anos resolveu rumar para outras paragens dos Estados Unidos. Primeiro, São Diego. Depois, Los Angeles. “Sentia que não era muito compreendido onde estava, estava fechado num mundo onde não era necessariamente infeliz, mas também não era feliz, tinha que sair, viajar, conhecer de perto outras realidades e confrontar-me”, reflecte. Em L.A. tornouse amigo de Barron Machat, da editora Hippos in Tanks, para onde gravaram muitos dos nomes que iriam tornar-se referência para si (Arca, Hype Williams, Dean Blunt, Inga Copeland, James Ferraro). Depois, o ano passado, surgiu When Man Fails You, e em Outubro deste ano, Serpent Music, que foi sendo gravado entre viagens, em diferentes locais, ao longo dos últimos três anos. “Foi sendo feito em estúdios caseiros, desde 2013, quando vivia em Berlim, e depois fui gravando também na Flórida, em Turim, ou quando viajava para visitar os meus pais e família no Tennessee. Mais tarde quando a editora Pan se aproximou mostrando-se disponível para a edição gravei ainda mais música e tentei que existisse alguma consistência sonora final, até porque o processo havia sido caótico e fragmentado.” É como se no final tivesse criado uma colagem a partir das mais diversas fracções, para completar um caleidoscópio onde caos e ordem andam sempre a par, compondo uma paisagem urbana capaz de reflectir um não menos

desarrumado cosmos interior. “Inicialmente tinha imaginado fazer um álbum de música soul, num sentido mais clássico, com canções um pouco confessionais”, admite. Nno final resultou algo muito diferente, reflectindo o seu universo pessoal, mas de uma forma mais diluída, tocando as paranóias e ansiedades sociais de forma universal, num disco de experimentações com electrónica saturada, gravações de campo, vozes e ruídos ambientais. Ou seja, é um disco onde a intrigante e solitária jornada pessoal de Yves Tumor se confunde com o momento desordenado e caótico do mundo actual, devolvendo-nos vulnerabilidade, mas também ansiedade. Um dos últimos sintomas dessa tensão tem origem na recente eleição presidencial de Donald Trump, que revelou um país dividido. Nada que o tenha apanhado desprevenido. “Socialmente, economicamente ou politicamente não me surpreendeu a vitória de Trump. Venho do Sul, conheço bem a realidade das várias américas, e sentia que o consenso em torno de Clinton era artificial, ao mesmo tempo que o Brexit fora um aviso sobre como a insatisfação das pessoas tolda o resto”, reflecte, acrescentando que esses sintomas de descontentamento não se circunscrevem ao seu país. “Há um mal-estar generalizado, embora aqui, com o infinito do Atlântico, tudo pareça sereno.”

16 de Dezembro - 23H | Casa da Música - Sala 2

OS QUATRO E MEIA ípsilon | Sexta-feira 9 Dezembro 2016 | 19


Mariana Duarte

Enfrentar os medos para respirar melhor a seguir Há urgência emocional, tensão e emancipação em 1755, álbum de Vaiapraia e as Rainhas do Baile onde o punk, o garage e a pop se encontram. E onde se fala de temáticas queer. Vaiapraia e as Rainhas do Baile 1755 Spring Toast Records

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uvimos o medo a ser transformado em raiva, e a raiva a ser transformada em empoderamento, emancipação. Ouvimos 1755, primeiro álbum de Vaiapraia e as Rainhas do Baile. As letras vêm sem subterfúgios, a música, turbulenta, sem rendilhados - o sentimento punk ainda está vivo por aqui, alicerçado num coração pop. Há urgência emocional, franqueza, tensão, sangue a ferver, num disco de temáticas explicitamente queer ocorrência rara no panorama da música portuguesa, e em português - em que se abordam também questões ligadas à saúde mental. “Este disco é sobre mim e sobre como é ser queer, mas além das questões de identidade fala sobre saúde mental. Estou diagnosticado com síndrome de bipolaridade tipo 1”, introduz Rodrigo Araújo, 22 anos, mais conhecido como Vaiapraia, neste disco coadjuvado pelas Rainhas do Baile, Shelley Barradas (Frankie Wolf ) e Helena Fagundes (entretanto substituída por Lucía Vives, baterista das Ninaz). “Para mim é importante dizer isto porque cresci sem ter nenhuma referência”, sublinha o também representante da promotora Maternidade. “Esta categorização patológica vale o que vale. É um handicap nesta sociedade, mas se eu compactuar com isso e me silenciar, vai continuar a ser um tabu. É importante falar e formar uma rede de apoio.” Neste disco, Rodrigo reclama o direito à fragilidade. A utilizá-la como um “instrumento de poder”, para ele e para outros, numa estrutura social normativa e estigmatizante que valoriza e procura produzir pessoas de ferro, empreendedores inquebráveis - e o resto que vá para debaixo da almofada. O que nos atira para o título do álbum, 1755, data do terramoto de Lisboa. “O disco é sobre os meus medos, e

o medo de terramotos é um deles. E também é sobre Lisboa, sobre viver aqui, agora.” Agir e reagir são palavras-chave para Rodrigo. Quando ainda vivia em Setúbal, tentava contornar “o jugo da periferia” marcando alguns concertos de bandas lisboetas, estando atento “ao que se andava a passar”, da FlorCaveira ao desabrochar da Cafetra (“Para mim as Pega Monstro representam a esperança do-it-yourself e do-it-together”), indo a Lisboa para ver concertos e exposições. Em 2013 mudou-se para a capital, para estudar História da Arte. Com a Maternidade, promotora criada em 2014 e partilhada com amigos, como os músicos Filipe Sambado e Luís Severo, foi tornando-se num nome dinamizador do circuito de música independente, de uma comunidade vital de jovens músicos e promotores sub-30. Este ano lançou o festival feminista e queer Rama em Flor, numa parceria com a ZDB, onde apresentará o novo disco a 7 de Janeiro, subindo a 21 ao Maus Hábitos, no Porto. Tal como 1755, a Maternidade é também uma tentativa de aproximar o circuito queer, o activismo feminista e o milieu do rock. Mas Rodrigo não quer só pregar aos convertidos. “Não quero que me ponham só a tocar em sítios em que as pessoas estejam mais radicalizadas nem que isto seja só para pessoas queer”, assinala. “É preciso haver contacto.”

Panelei punk Antes de 1755 vimos Rodrigo Vaiapraia a dar concertos em nome próprio, em espaços como o Lounge e as Damas. A fazer canções que não nos passaram ao lado, como Licas, Morre Se Queres Morrer ou Panelei Punx. As letras afiadas, entre o confessional e o confronto, a provocação e o humor, não atiravam o sexo e a homossexualidade para um canto escuro, nem os embrulhavam numa subtileza pudica - não é todos os dias que se ouve em português, num país de brandos costumes e moralidade judaico-cristã, versos como “Se eu não me vim, não me leves a mal/ Nem o Tom Cruise é sempre sensacional /Não-bicha, não-macho, olha no que eu virei/ Sou o teu favorito, sou o teu panelei” (Panelei Punx). Um discurso sem rodeios, influenciado em boa parte pelas letras full frontal de Liz Phair. “Como músico, há um antes e um depois de ouvir o Exile in Guyville”, conta Rodrigo. Em 1755, as palavras (e a voz) crescem ainda mais, arranham ainda mais, fazem pensar ainda mais. A parte instrumental ajuda: se antes, a solo, havia um peso gótico, muito emo-pop rudimentar de quarto, agora as letras são projectadas pelas

guitarras esgatanhadas e o ranger garage punk e riot grrrl das Rainhas do Baile. Mas sem floreados. “Eu e a Helena somos muito directas, tornámos as letras mais poderosas com pouco”, diz a guitarrista e baixista Shelley Barradas, que com Helena forma também a dupla Clementine. As histórias vêm primeiro. “A Kathleen Hanna [de Bikini Kill] disse que a Poly Styrene [X-Ray Spex] a ensinou a cantar sobre ideias. Relacionome com isso. No meu trabalho as canções são subsidiárias às minhas ideias”, refere Vaiapraia, que também toca teclados. Isso sente-se em canções como Piropo, de tom ameaçador, fúria que borbulha contra a normalização do assédio e abuso sexual das mulheres, ou Yuppie Casado, balada lo-fi dorida a arder em fogo lento, um alerta para evitar que “a vergonha que os outros têm de nós seja a vergonha que temos de nós próprios”. Coelhinho (“não é Fátima, nem Meca/ mas vi Deus nas tuas cuecas”), Kate Winslet e Perfeito são acidez punk de embate frontal e ginga pop contagiosa, voz que ora se insinua, ora se torce, ora detona (Germs e Hole andam por aqui). Hey Rocky é uma festa de garagem com Seth Bogart (Hunx His Punx), Ronnie Spector e Vivian Girls, e Cosmotusa, “sobre a cidade universitária, o sítio não oficial de cruising de Lisboa”, joga às escondidas com o ska, com final libertador e anfetaminado, qual toque final do recreio. Há não-conformidade de género, contra identidades fixas e essencialistas, contra a masculinidade tóxica (“levo as jóias, levo o meu bikini”), e referências à cultura pop: o início delicioso de Rapaz #1 é uma menção ao filme Música no Coração; Augustín, onde se alude ao “pavor do HIV” (“bora olhar na cara do Vírus/ bora fazer uma zine sobre isso”), joga com Ele e Ela de Madalena Iglésias, sacudindo a heteronormatividade; Sinos ”é inspirada” na canção Chapel of Love, das Dixie Cups. 1755 é um disco biográfico onde a biografia é extensível. 1755 é um disco que Rodrigo, e muitos outros, gostavam de ter ouvido na adolescência. “Quando tinha 13 anos e me chamavam paneleiro na escola eu não tinha música que pudesse ouvir e com a qual me pudesse relacionar em português, por isso também é importante estar a expor-me”, diz. “A porem-me uma categoria não ponham queer punk, ponham panelei punk. Pego em paneleiro, uma palavra suja, que me estremece, aplicada à minha realidade, e uso panelei, a minha subversão da palavra.” Subverter para representar, representar para empoderar - e respirar um bocado melhor. Venham mais discos assim.


Concertos de Domingo 17 + 18 Dezembro

sábado, 16:00 | domingo, 11:00 / 16:00 — M/6

Natais do Mundo Coro e Orquestra Gulbenkian

29 Janeiro

11:00 / 16:00 — M/6

Grandes Coros de Ópera Coro e Orquestra Gulbenkian Coro Infanto-Juvenil da Universidade de Lisboa

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN mecenas estágios gulbenkian para orquestra

gulbenkian.pt/musica

mecenas música de câmara

mecenas concertos de domingo

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Isto não é a volta a Portugal em bicicleta Sérgio B. Gomes

Augusto Brázio é um fotógrafo em périplo pelo país. Quer olhar para os lugares que aparecem pouco, mas sem metas de chegada nem contra-relógios. Uma exposição e um livro mostram as voltas que deu em Ponte de Sor.

A

s palavras e as imagens fotográficas deviam ter uma relação igual à dos casais que vivem em casas separadas e que se encontram só às vezes, quando têm a certeza que existe alguma coisa para dizer um ao outro. O trecho de José Luís Peixoto que abre o livro Sor, o mais recente trabalho de fotografia de Augusto Brázio, é um desses encontros felizes, onde a economia de palavras se alia a um aviso à navegação para o que vem a seguir. Algo como: podem ficar por aqui o tempo que quiserem, mas não vão chegar a lugar nenhum. Durante os meses em que entrou e saiu de Ponte de Sor, concelho do Alto Alentejo que abarca a freguesia

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de Galveias, de onde Peixoto é natural, Brázio foi assumindo as dificuldades em captar um lugar que lhe é familiar (também é alentejano), mas que não é o seu. “Os nossos lugares não podem ser comparados porque são demasiado íntimos. Onde existem só nós os podemos ver. Há muitas camadas de invisível sobre as formas que todos distinguem.” Lidas antes de se virarem as páginas de Sor, estas palavras do escritor parecem ter sido injectadas no fotógrafo para lhe dar uma predisposição errante, um estado de aceitação do impossível ou, pelo menos, a consciência mínima das armadilhas presentes nas tentativas de captar fotograficamente “a realidade” de um sítio onde acaba de


FOTOGRAFIAS DE AUGUSTO BRÁZIO

“Há algo que atravessa estas imagens que é um mistério. O facto de terem essa carga ambígua permite-lhe descolar do local para o geral. E isso talvez faça com que se aproximem do que é comum, de alguma ideia de portugalidade”

aterrar, de um sítio de onde não é “natural”. Avisados da dificuldade de se chegar ao que é profundo nos lugares que não são os nossos, Peixoto deixa ainda outra certeza: “Não vale a pena explicarmos o nosso lugar, ninguém vai entendê-lo. As palavras não aguentam o peso dessa verdade, terra fértil que vem do passado mais remoto, nascente que se estende até ao futuro sem morte”. As palavras que nos podem guiar pelas imagens (ou estimular-nos para elas), afinal não servem, segundo o escritor, para descrever a força íntima que resulta da ligação de um pedaço de terra a alguém. E aqui entra o fotógrafo. Mas muito longe da figura de salvador. Ao longo do último ano, o caminho que Augusto Brázio escolheu para chegar a Ponte de Sor foi sempre o mesmo, passando primeiro pela barragem de Montargil e pelo imenso lago artificial por ela criado. Daí, seguia a montante o curso da Ribeira de Sor, derivando depois ao sabor do instinto, dos pequenos acontecimentos (não das notícias) e dos sinais que o espaço lhe foi dando. Aquela massa de água “construída”, que se impôs e se acrescentou à paisagem, acabou por influenciar a procura de imagens que não escondessem a artificialidade e que transmitissem uma dose generosa de mistério. Esse lado postiço (sublinhado pela luz artificial que atravessa as imagens) é uma constante na sequência de fotografias que acabou nas páginas de Sor. E é uma maneira de Brázio contrariar a ideia de que está a “dar a conhecer o país”, como se tratasse de uma missão topográfica, naquela que é a sua segunda abordagem a cidades do interior ou fora dos grandes centros urbanos, depois de um ensaio semelhante em Torres Novas, do qual também resultou uma publicação, desta vez construída a meias com as fotografias de Nelson d’Aires. A ideia de Augusto Brázio (que pa-

ra este trabalho recebeu o apoio da Fundação das Casas de Fronteira e Alorna) é prosseguir para outras paragens que estão um pouco fora do radar da reflexão pela imagem. E com elas, gradualmente, tentar chegar a “alguma ideia de portugalidade”, não tanto pela qualidade própria do que é português, nem da sua história, amor ou afeição pelo país, mas mais pelos modos de ser e de estar das pessoas e da relação destas com um espaço definido. (Peixoto: “Todos temos um lugar onde a vida se acerta.”)

Como um realizador Quem olhar para as imagens de Sor não encontrará muitos sinais “distintivos”. Mas estão lá “as coisas mínimas” a que o fotógrafo se agarrou e que permitem vislumbrar as alterações na paisagem, o trabalho, o lazer, a velhice, a juventude, a intimidade, o novo e o velho. Nessa “frequência” imagética em que Augusto Brázio se colocou (e que tem como orientação mínima a delimitação do espaço geográfico de um concelho alentejano) o mistério ganha mais protagonismo do que a realidade. O objectivo, diz ao ípsilon, é “criar um ambiente a partir de um lugar” e não “tentar retratar esse ambiente”. “Há algo que atravessa estas imagens que é um mistério. Não queria que elas ficassem agarradas ao seu lado local, ainda que o sejam, mas o facto de terem essa carga ambígua permitem-lhe descolar do local para o geral. E isso talvez faça com que se aproximem do que é comum, de alguma ideia de portugalidade.” Preparado para receber os estímulos particulares de cada lugar e recusando qualquer tipo de fórmula que já tenha adoptado noutra série de imagens, nomeadamente na de Torres Vedras, no concelho de Ponte de Sor Brázio sentiu-se “como um realizador”. Munido de “luz, guião e cenários” foi à procura de intérpretes. “Alguém me dizia que este trabalho tem um lado Twin Pe-

aks [a série de TV de mistério irresolúvel]. A diferença aqui é que não contrato os actores para irem para um sítio, eles já lá estão. Quando vou a um almoço com 300 reformados e escolho dois ou três pessoas para fotografar, na verdade o que estou a fazer lá é um casting.” Em muitas imagens de Sor, sobretudo nas paisagens, há uma estética ligada à fotografia de cinema, com a luz muito trabalhada e forte. Ou seja, é nas estratégias da ficção que o fotógrafo se apoia para “transmitir os vestígios de determinado lugar”. Por outro lado, a delimitação geográfica é uma imposição que lhe agrada, porque lhe dá a possibilidade de olhar demorada e repetidamente para o mesmo espaço. “Gosto de entrar no ritmo de cada lugar e no das pessoas que lá estão. Quando vou para estes trabalhos sinto que o fascínio maior é estar com as pessoas, conhecê-las, ser convidado por elas. Para isto acontecer, preciso de estar com total disponibilidade mental dentro de um território bem definido.” Augusto Brázio, que paralelamente ao livro apresenta uma exposição no Centro de Artes e Cultura de Ponte de Sor (até 7 de Janeiro de 2017), não é um fotógrafo de grandes distâncias, mas de grandes estadias e de rememoração dos lugares. Gosta de voltar a eles até sentir “que as coisas se alinham num ponto” em que precisa de as registar. Por vezes acontece fotografar por via de um impulso mais imediato, mas raramente é assim. “Fotografo pouco e no dia-adia não ando de câmara. Mas o meu cérebro não pára de pensar visualmente, é quase obsessivo. Quando vou para um lugar fico tomado por ele.” Para construir Sor fotografou de dia e de noite, mas interessou-lhe sobretudo o crepúsculo, altura em que “as pessoas mudam de uns sítios para outros” e em que “existe mudança e instabilidade”. Qualquer que seja o momento do dia, Augusto Brázio não sente necessidade de viajar até muito longe para encontrar aquilo que mais gosta de mostrar: “Não preciso de atravessar o mundo para fazer fotografia, para encontrar boas histórias. As que estão aqui, perto de mim, chegam-me. O ponto central são as pessoas. Sempre elas.” Para além de as trazer fotografadas (e de tentar compreender o seu “centro”, o seu lugar), o fotógrafo partilha a experiência dessa aproximação. É por isso que Sor é o tipo de trabalho que não quer dizer apenas alguma coisa a quem vê. Mas o tipo de trabalho que acrescenta vida a quem o faz. “Na verdade, o que estou a fazer quando fotografo é viver.” sergio.gomes@publico.pt

Augusto Brázio gosta de sentir a limitação geográfica de um território enquanto fotografa. Em Ponte de Sor deixou-se guiar pela ribeira que deu nome ao trabalho, Sor, para encontrar paisagens e pessoas que o ajudassem a criar “um novo lugar” ípsilon | Sexta-feira 9 Dezembro 2016 | 23


Sofia Areal dança sobre o papel Dança, alegria e cores numa exposição de Sofia Areal. Feita de vários caminhos e desfechos. José Marmeleira Variações Sobre Um Mesmo Tema Sofia Areal

mmmmm Galeria João Esteves Oliveira. Até 6 Jan.

A uma alegre e sossegada distância da publicidade que as grandes instituições e dos grandes eventos granjeiam aos artistas, Sofia Areal (Lisboa, 1960) nunca deixou de pintar, desenhar e expor. Desde 2010, que continua a trazer ao nosso olhar aquilo que faz no seu atelier: telas, círculos, tracejados, cores, movimentos do corpo e espírito, dos seus braços e mãos sobre o papel. Um gosto e um acto que se repete pela pintura, pela tinta que goteja, pelo júbilo de misturar as cores e de descobrir o que revelam. Variações sobre um mesmo tema insere-se nesse modo de fazer, enquanto momento de um trabalho sem fim, afirmativo de uma intuição, de um desejo irreprimível, de um desempenho que se materializa. Na galeria lisboeta, a exposição pode começar, entre outros lugares, pela série M-J. Aqui, mostram-se desenhos a tinta-da-china que não cabem nas pequenas molduras. Ou melhor, não se adequam, não se conformam à geometria. Irrequietas e irregulares, fogem, caem, arrastando consigo um recorte de papel branco. Terão escapado da mesa para a moldura? O preto da tinta avança em diferentes tonalidades — o cinzento de nuvens ou de um nevoeiro espesso — e, por

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vezes, deixa ver lampejos de branco, de luz, desenhando a forma de uma lua (o negro não apaga tudo), enquanto a irregularidade do papel tapa a moldura, mas segura o desenho, protegendo a relação que o preto estabelece com o branco. Na outra parede, em desenhos de maiores dimensões, aparecem o vermelho, o azul, o laranja. Vê-se o tracejado a negro e irregular de um círculo imperfeito, mas forte, tão forte que contagia o rectângulo vermelho irregular e os azuis horizontais e marítimos em que a superfície se conclui. Energia, tensão, rapidez, liberdade: sim, são palavras com significado nesta exposição. O azul manifesta-se noutro desenho, em linhas generosas que vibram, ainda que delimitadas pelos contornos pretos de um quadrado (como se presas). Mas há cores que espreitam (o vermelho a sair de azul, o azul a surpreender o branco) ou deixam que o branco se mostre. Serão formas, manchas, cores apanhadas em flagrante numa fuga impossível. O movimento permanente, quase juvenil, do desenho e das cores de Sofia Areal prossegue no segundo piso da galeria, apresentando-se aí como marca, rasto uma dança guiada pelos braços, o pincel e a tinta. Ritual lúdico, necessário da artista. Os círculos, os rectângulos dão lugar ao serpentear do desenho, a uma dança feita de curvas, de voltas sinuosas e redondas. É difícil fixar, capturar estes traços que continuam para lá dos limites do desenho e que chegam do seu exterior. A dimensão performativa é evidente: Sofia Areal dançou sobre o papel, manchou-o (vislumbram-se marcas de calçado): estes desenhos apareceram sob o seu corpo. Diga-se o mesmo a propósito do trabalho que parece, no entanto, serenar esta agitação: uma composição de formas horizontais nas quais se revela, de novo, a presença dos círculos (as “bolas”, ou as “bolachas” como a artista lhes

chama, numa alusão aos objectos banais do quotidiano), o fluxo da tinta, o contraste ora suave, ora tenso entre as cores. Desenho que quer fugir, que não é domesticável, mas que também não é “selvagem” ou agressivo, eis o que aparece nesta exposição que um convívio gracioso e risonho com os materiais da pintura proporcionou. Mas que termina com uma nota dissonante: um desenho de e no chão, pequeno e terroso, quase mineral, no qual o preto tomou toda a superfície do papel. Nada espreita ou foge do seu interior. Assinalará o fim de Variações sobre um mesmo tema ou, antes, o seu princípio? Ao espectador, a última palavra.

Livros

Exposições

Telas, círculos, tracejados, cores, movimentos do corpo e espírito, dos braços e mãos da artista sobre o papel


Ficção

O fim de um mundo Um retrato da grande feira de vaidades do mundo centro europeu imperial, antes da sua queda anunciada. José Riço Direitinho A História da 1002ª Noite Joseph Roth (Trad. de Vanda Gomes) E-Primatur

mmmmm Joseph Roth (1894-1939), um dos grandes escritores da Europa Central nas primeiras décadas do século passado, nasceu no império austro-húngaro, em Brody (actual Lviv, na Ucrânia). Era um ostjuden, um judeu do Leste, mal visto nos círculos culturais vienenses judeus, e começou a sua carreira nas letras como jornalista, voluntário no exército, durante a primeira guerra mundial, assistindo de perto à queda anunciada do império. Em 1920 mudou-se para Berlim, onde começa a escrever nos mais importantes jornais alemães, e torna-se num cronista da República de Weimar; são os tempos que precedem a ascensão do Nazismo. Anos mais tarde, vai viver para Paris, onde continua a ganhar a vida como jornalista, e não tornará a residir em Berlim. Escreveu centenas de artigos e reportagens que retratam uma Europa convulsa à beira da guerra. É já em Paris que se começa a dedicar com mais afinco à escrita de ficção, abandonando um pouco o seu interesse no retrato dos dias que então corriam, e dirigindo-o para tempos passados, sobretudo os da queda do império austrohúngaro. É por esses anos que escreve e publica a sua obra-prima, A Marcha Radetzky, a crónica do declínio da família Trotta que acompanha os últimos dias do império dos Habsburgo. Escreve ainda alguns livros de ficção, e outros de ensaio sobre a vida, os hábitos e as migrações dos judeus de Leste (Os Judeus Errantes, Sistema Solar, 2013). É neste seu interesse que se insere o seu último romance, agora pela primeira vez traduzido para português, A História da 1002ª Noite: algures na Primavera de um ano do século XIX, o Xá da Pérsia, aconselhado pelo chefe dos eunucos, e para afastar a melancolia que o tolhe, viaja para ‘terras exóticas’ do Ocidente, para a cidade de Viena, capital do império austro-húngaro. Num Joseph Roth honra avista a

Um dos grandes escritores da Europa Central nas primeiras décadas do século passado: Joseph Roth

bela condessa Heléne W., defensora dos direitos das mulheres e com uma personalidade forte, e decide que tem de passar uma noite com ela. As autoridades ficam encarregues de tratar do assunto, pois o poderoso Xá “não estava acostumado a reprimir um capricho, quanto mais um desejo”, e a forma que encontram é entregar-lhe uma sósia da condessa sem que ele se aperceba que não se trata da mesma pessoa. O Xá, que parecia ter grandes expectactivas sobre as artes amorosas e eróticas do Ocidente, pelo que antes observara, acaba quase desiludido. “Sentia-se ofendido pelo Ocidente. Não cumprira nada do que prometera. Uma mágoa profunda propagou-se sobre o seu rosto suave e amarelado e, por um segundo, o seu rosto pareceu envelhecido, apesar dos joviais pêlos pretos e brilhantes da sua barba.” Em A História da 1002ª Noite, Joseph Roth faz um retrato da grande feira de vaidades do mundo centro europeu imperial, sendo a personagem do Xá da Pérsia quase uma espécie de o último dos Trotta, a personagem central de A Marcha Radetzky. Neste romance, as personagens parecem desfilar numa parada de cavalos e cavaleiros, na feira vienense do Prater, ora a trote ora quase a galope, sem esquecer os habilidosos números de escola equestre; é mais uma vez uma crónica admirável, ainda que ficcionada, sobre o declínio de uma concepção de vida, e dos seus valores, que décadas depois a primeira guerra mundial acabará por enterrar de uma vez, dandolhe a devida sepultura por há muito se encontrar ferida de morte. Roth

disseca neste romance todas as classes sociais do império, desde a aristocracia inútil, que vive completamente afastada da realidade, até ao povo inculto e ignorante que apenas se interessa por sugar a qualquer custo dinheiro aos ricos, e passando também pelos banqueiros, pelos burgueses, pelos polícias e militares sempre ao serviço do poder. A noite número 1002 é a noite que se segue aos sonhos das 1001 noites, ao acordar, ao retorno do Xá ao seu mundo, o fim de uma época, o crepúsculo de um mundo.

Assombrações Hurley manobra habilmente a história na fronteira ténue entre o espantoso e o delirante. Helena Vasconcelos Santuário Andrew Michael Hurley (Trad Ana Falcão Bastos) Bertrand editora

Preston, uma terra perdida com a reputação de ser, nas suas próprias palavras, “um antro de bêbados e de gente pouco recomendável”, e criou uma história meio fantástica, meio realista, em torno de dois irmãos, Hanny e Smith que, em crianças, passam as férias da Páscoa nesse local assombrado. No romance chama-lhe o Loney ( título original), uma zona costeira bravia do noroeste de Inglaterra, um lugar de marés vivas, correntes, lama e vegetação rasteira, onde as mudanças de atmosfera são rápidas e brutais, as distâncias difíceis de calcular e as hipóteses de se ser arrastado ou de se perder são incontáveis. É aí, em Coldbarrow — que, tal como Little Hagby, Brownslack Wood, Moorings, etc. fazem parte de uma toponímia inventada a partir do Inglês antigo e do Velho Norse — que os restos mortais de uma criança desconhecida, morta há muito, são devolvidos pelo mar à terra. Trata-se de um mistério que perturba o narrador e lhe aviva as recordações de um determinado ano, era ele adolescente, quando algo terrível aconteceu. Contada em retrospectiva, a trama desenvolve-se em torno da última visita ao santuário perdido no Loney, um lugar visitado pela família com o intuito de pedir um milagre que cure Hanny, o irmão mudo do narrador. A Mãe (Mummer), o Pai (Farther), o senhor e a senhora Belderboss e o padre da paróquia de Londres deslocam-se em peregrinação, ano após ano. Mas dessa vez, em particular, tudo se desenrola de forma mais dramática: o anterior padre Wilfred, uma figura de inquisidor severo e inflexível, torturado por demónios e arrastado para um abismo sem salvação, perdeu a fé e morreu em circunstâncias estranhas; em seu lugar acompanha-os o padre Bernard, um irlandês simpático e alegre, com ideias mais “práticas” que enfurecem a irredutível e fanática Mãe. Os irmãos fogem de casa e exploram o território selvagem onde acabam por se encontrar com um gangue de criminosos que mantém em seu poder uma jovem grávida que terá,

hipoteticamente, o dom de curar. Chove sempre muito, ouvem-se estranhos sons, objectos tilintam no nevoeiro, animais são sacrificados e toda a paisagem se confunde numa névoa que torna indistintos céu, mar e terra. Santuário foi classificado como um romance “gótico” e poderia limitar-se a explorar o sobrenatural, o crime e a loucura, tornando-se um produto apetecível para adaptações ao cinema ou à televisão. No entanto, vai mais longe, ao focar o tema dos fanatismos religiosos — neste caso, o da religião católica — e o confronto ciclópico com a Natureza e as respectivas forças que formam a base de um paganismo mais “livre” e avesso a imposições. Na realidade, o maior perigo, o “horror”, não provém de ameaças fantasmagóricas mas sim do “mundo real”, dos actos praticados em nome da fé, da família, de uma crença, de uma ideia. Quem é mais tenebroso? O velho padre Wilfred, que ameaça todos com as agruras fumegantes do inferno, que exerce o poder através do medo e se debate com culpas inomináveis? Ou os antigos habitantes do Loney, com as suas superstições enraizadas e os seus rituais macabros? Será a Mãe uma cristã devota e teimosamente agarrada à sua fé ou uma louca que arrasta todos na sua cegueira e desvario? Qual a diferença entre os ritos da Semana Santa, religiosamente cumpridos, e as arrepiantes manobras dos donos dos pântanos que remetem para personagens como as do clássico de Daphne du Maurier, Jamaica Inn? Será a natureza, com a sua fúria, uma cruel substituta da divindade ou apenas a manifestação do caos necessário à renovação?. Santuário, com as suas arrebatadoras descrições de uma paisagem desoladora e infinitamente sedutora — os dois irmão vagueiam livremente, como almas penadas, atraídos pelo mar e pela planície, eternamente presos de um feitiço inexplicável — é, ainda, sobre o amor familiar, o peso da culpa e o esforço por uma redenção que a memória repele EAMONN MCCABE/GETTY IMAGES

mmmmm Andrew Michael Hurley demorou dez anos a escrever Santuário, o seu primeiro romance, a princípio recusado por sucessivas editoras, finalmente publicado e imediatamente galardoado com o Costa Award 2015 para obras estreantes. Autor de contos — reunidos em Cages e em The Unusual Death of Julie Christie — Hurley convoca aqui as suas memórias de infância passadas em

Andrew Michael Hurley demorou dez anos a escrever Santuário ípsilon | Sexta-feira 9 Dezembro 2016 | 25


VALÉRIO ROMÃO

Estação Meteorológica António Guerreiro

A pós-literatura e a sua sombra

E

ntre Dezembro de 1919 e Fevereiro de 1920, a revista francesa Littérature, dirigida por Aragon, Breton e Soupault, publicou as respostas de uma série de escritores a um inquérito: “Pourquoi écrivez-vous?”. A pergunta pressupunha a ideia de que o “escrever” é uma questão para si mesmo e é aí que começa a literatura. Quando a questão literária começa a incidir de preferência naquilo sobre o qual se escreve e tudo se resolve no “escrever sobre” é porque passámos para uma pós-literatura. A noção de pós-literatura surgiu timidamente há alguns anos (sem o potencial anedótico de um outro “pós” mais recente, a pósverdade) para designar o triunfo de um género hegemónico: o romance muito internacional, tão internacional que parece ter sido escrito numa língua traduzida. A pós-literatura tem de ser entendida à luz de um sistema literário mundial que um importante teórico da literatura chamado Franco Moretti (irmão do cineasta Nanni Moretti), comparou ao sistema económico mundial, “que é simultaneamente uno e desigual, com um centro, uma periferia e uma semiperiferia”. Usando um método a que chamou “distant reading” (a literatura vista de longe), Franco Moretti tem-se dedicado a apreender a forma do nosso horizonte literário. Encontrei recentemente uma resposta a uma pergunta mais ou menos equivalente ao “Pourquoi écrivez-vous” no blog de um escritor português que vive em Bruxelas desde 1968. Alberto Velho Nogueira (AVN) é o nome desse escritor e o seu blog chama-se “Homem à janela”. Nesse texto de enorme alcance teórico, datado de 3 de Dezembro, AVN desenvolve a ideia de “uma crítica exercida fora das fronteiras” (no seu blog, ele escreve longos textos de crítica literária, quase sempre sobre livros de autores portugueses), e discorre logo a seguir sobre a sua condição de português, vivendo em Bruxelas, mas que enquanto escritor está completamente desvinculado de qualquer “referência ao solo” nacional e à linguagem ficcional da sua Muttersprache (ele utiliza a palavra alemã para dizer “língua materna”). Nos seus texto críticos, faz análises próprias de uma “close reading” e sínteses que só são possíveis a partir de uma “distant reading”. Esta radical desterritorialização prolonga-se nos seus romances (cerca de duas dezenas, em cuidadosas edições de autor; o último, deste ano, chama-se Plaatz!). Essa é uma das razões, diz ele, pelas quais a sua “literatura de ficção” não tem leitores, o que o leva mesmo a perguntar: “Não é para ser lida?”. Seja-me permitido responder com base na minha experiência: é para ser lida, em doses moderadas de cada vez, por quem aceite entrar no abismo de uma literatura borderline como não há outra na literatura portuguesa contemporânea. É uma escrita que está do lado do informe, da agressão contra a língua materna (o português), do delírio (atenção: não projectar sobre o autor qualquer estado clínico), traçando direcções móveis, numa sintaxe que desconhece a linha recta. E, no entanto, deste delírio parece libertar-se uma saúde: a saúde da literatura autónoma que se elabora como um joyciano “caosmos”, isto é, um caos composto. A palavra que devemos sublinhar é esta: autonomia, essa grande reivindicação de toda a literatura moderna. Os romances de AVN não instalam o leitor em nenhum território conhecido, o autor não escreve “sobre” nem escreve “com”. E a geografia física e mental dos seus romances é um “fora”, não radica em nenhum solo nacional. Olhando do observatório radical para onde ela nos solicita, vemos com nitidez, à volta, os vultos coloridos da pós-literatura e os seus jogos florais. 26 | ípsilon | Sexta-feira 9 Dezembro 2016

e rejeita. O Bem e o Mal, a luz e as trevas, a Razão e o instinto travam uma luta sem tréguas num texto que raramente se afasta de um certo tom apocalíptico, embora o relato sombrio — humidade, escuridão, lugares recônditos, visões, ruídos aterradores, desaparições e aparições — seja atravessado por alguma ironia. Santuário aborda assuntos incómodos para um tempo de descrença. A capacidade para apreendermos totalmente, por exemplo, o papel das bruxas em Macbeth ou as habilidades do mágico Próspero, coadjuvado por Ariel, na Tempestade shakespereana é cada vez mais diminuta. O maravilhoso, o “mágico”, o uncanny — nos termos de Freud — pertence a um género que poderá ser circunscrito aos amantes do folclore e do grotesco. No entanto, Hurley tem o dom de manter a narrativa quase sempre no limiar do credível e manobra a história na fronteira ténue entre o espantoso e o delirante, com apenas algumas falhas, visíveis apenas no final do livro.

Quadros numa narração Por Mão Própria pertence à estirpe difusa, daqueles textos que vagueiam entre a ficção em prosa, o texto ensaístico e o poema, sem reconhecerem fronteiras. Mário Santos Por Mão Própria Luís Carmelo Abysmo

mmmmm Segundo tomo de uma trilogia ficcional iniciada no ano passado com Gnaisse, e que se completará com a publicação de Sísifo, o presente livro de Luís Carmelo (n. 1954) — autor de uma obra literária e ensaística que soma já mais de uma trintena de títulos — talvez só por convenção (preguiçosa?) seja arrumável na categoria de “romance” ou na de “novela”. Pertence à estirpe mais difusa, flutuante e compósita, daqueles textos que vagueiam entre a ficção em prosa, o texto ensaístico e o poema, sem reconhecerem fronteiras ou passando-as a salto. Abstenham-se, portanto, os leitores que buscam só entretenimento, não obstante tratar-se este pequeno livro de um exercício lúdico e até, por vezes, gulosamente lúbrico: “Fechei os olhos e imaginei-me a escalar as peles mais ínfimas daquele umbigo (de polpa branca de líchia) que, ao invés de um

Luís Carmelo é autor de uma obra literária e ensaística que soma já mais de uma trintena de títulos

recôncavo, era uma cicatriz de pregas muito doces que se elevava até ao céu. E lembrei-me de Petrarca […]” (p. 59). Poderíamos ler Por Mão Própria segundo três perspectivas, pelo menos. Enquanto narrativa dos devaneios e desastres — oníricos ou factuais, sonhados ou pressentidos — do protagonista narrador; enquanto luxuriante, e talvez até desgarrada, colecção de imagens; e enquanto ensaio de poética (prática). Esta última seria a mais interessante das perspectivas. Avista-se daí um programa do qual este livro será apenas uma afloração, entre outras possíveis: “Um texto nunca conta tudo. Um rosário nunca se acaba, pois regressa sempre à sua cruz. Uma oração nunca altera tudo de uma só vez. Um sintagma, que é um campo de batalha, também nunca termina, pois regressa sempre ao seu ponto de partida que é o sangue que nos corre nas veias.” (p. 98) Logo adiante se lerá que “A brincadeira (a virgem mãe do jogo) é um plano sempre a desfazer-se e a refazer-se, ao contrário do texto monoplanar, que, ao fechar sobre si um perímetro, não apenas não diz o mundo como persuade a morte a comparecer […]”. E já antes se lera que “A voz apresenta-se, não como uma sequência, mas como uma melodia circular.” (p. 14) Daí que a acção narrativa propriamente dita seja fragmentária, e seja fragmentada numa sucessão de quadros (ou capítulos ou segmentos) dispostos segundo uma temporalidade circular de

repetições e variações, que têm curso num espaço enigmático cuja topografia, quando mais realista, apenas sublinha e releva aquelas “dobras geométricas que folheiam a penumbra” onde “os fantasmas continuarão a bater as palmas, à moda das sombras chinesas”. O protagonista, que é designer, resume a “essência” do seu ofício: “transplantar o informe para a pureza concreta dos objectos”. Eis o “milagre da forma”, alcançado nesta narrativa mediante uma saturada e faustosa proliferação de imagens. Que fluem por vezes tão intempestivamente que têm o efeito (ambíguo) de coagularem o texto e o tempo e a nossa atenção: “Mas agora o céu desce sobre a fronte da mulher e concede-lhe a sensação de frescura que é própria das guilhotinas” (p. 40); “O corredor é o fio-de-prumo que avança como cobra sem pele para sacudir as desordens” (p. 94). Dir-se-ia que a “história” que somos chamados a compor mentalmente, jogando com os “azulejos mágicos” que o narrador nos oferece, reposicionando-os eventualmente ao longo da leitura, é apenas subsidiária (é o que sobra) da “gnose interior” perseguida pelo protagonista. E, no entanto, há até mesmo uma brevíssima história dentro da história neste livro, a de um certo Nicéforo que “descendia de uma família que empurrava portas”, e que é contada por uma velhinha a uma criança, numa livraria que o narrador frequenta. Embora não goste de ler. Nós gostamos.


Estreiam

O dinossauro e o bébé Hitchcock/Truffaut é o tributo a um livro que é imprescindível para uma aproximação à maneira de ver e pensar do tortuoso autor de Psico. Luís Miguel Oliveira Hitchcock/Truffaut De Kent Jones

mmmmm O livro resultante do encontro entre François Truffaut e Alfred Hitchcock – que em Portugal, numa edição da Dom Quixote em 1987, se chamou Hitchcock – Diálogo com Truffaut – é um ponto absolutamente fundamental numa bibliografia de cinema, de que é por certo um dos cinco ou seis maiores livros alguma vez publicados (ao mesmo tempo é história, é crítica, é biografia), e por maioria de razão um documento imprescindível para uma aproximação à maneira de ver e pensar desse tortuoso indivíduo que foi o autor de Vertigo ou de Psico. O filme de Kent Jones, há décadas um dos mais relevantes críticos americanos, é um tributo ao livro, que foi originalmente publicado em 1966, e ao seu papel na formação de inúmeros cinéfilos e autores de cinema das gerações subsequentes. A representá-las aparece uma boa selecção de realizadores, sobretudo americanos, indivíduos a que se reconhece, goste-se mais ou menos dos filmes que fazem, uma prática e um pensamento próprios: entre outros David Ficher, Martin Scorsese, James Gray, e muito breve e simbolicamente Peter Bogdanovich (que foi, pelo seu trabalho com John Ford ou Orson Welles, uma espécie de “continuador” americano de Truffaut). Alguns dos melhores momentos de Hitchcock/Truffaut vêm das suas observações, sobretudo quando comentam cenas e momentos precisos dos filmes de Hitchcock e ao olhar de espectador que também é o deles se sobrepõe o olhar dos cineastas que são (e nesse sentido é mesmo muito bom o que James Gray diz de duas cenas de Vertigo, por exemplo). Kent Jones deixa as coisas confundirem-se, o que não é necessariamente mau mas retira ao filme um centro forte – e às tantas não é claro se o seu trabalho é sobre o livro, ou sobre o cinema de Hitchcock em geral, ou sobre a relação pessoal entre o cineasta anglo-

Espectadores rodados e neófitos têm aqui motivos suficientes de satisfação

americano e crítico-cineasta francês. O que confere a Hitchcock-Truffaut, na maior pecha que lhe podemos apontar, uma vagueza estrutural que faz pensar nele como um super-extra de uma edição DVD (e a outra pecha, já agora, é o relativo

subaproveitamento dos registos concretos do encontro entre Hitch e Truffaut, das fotos às gravações sonoras, ainda que se mostrem documentos escritos dos contactos entre os dois, quer prévios quer posteriores ao encontro, que são bem significativos). Nada

que obste ao enorme interesse, nem que seja “didáctico”, que um filme como este representa, e que o torna imprescindível para os espectadores rodados como para os espectadores neófitos. Todos encontrarão motivos suficientes de satisfação.

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AS ESTRELAS DO PÚBLICO

Jorge Mourinha

Luís M. Oliveira

Vasco Câmara

Animais Nocturnos

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Custe o que Custar

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Elle

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Eu, Daniel Blake

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Estive em Lisboa e Lembrei...

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Hitchcock/Truffaut

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A Infância de um Líder

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Exame

Custe o que Custar joga com a iconografia do western para a desmontar: mais uma imagem do “sonho americano” brutalmente de desintegrar

O velho Oeste Jeff Bridges é imperial num filme que tem tudo de western moderno mas apenas prova como o género apenas pertence ao passado. Jorge Mourinha Custe o que Custar Hell or High Water De David Mackenzie Com Jeff Bridges, Chris Pine, Ben Foster

mmmmm Há ladrões de bancos, um xerife que os persegue, e um rancho hipotecado que precisa de ser salvo das garras dos latifundiários, e uma perseguição com tiros por planícies poeirentas. Mas, como às tantas diz um velhote que não tem mais nada que fazer a não ser jogar dominó no café, ladrões de bancos é coisa que hoje já não há; o xerife está à beira da reforma por velhice; o latifundiário que quer o rancho é um banco, daqueles que não tem problema em expropriar propriedades por falta de pagamento das hipotecas. E a perseguição com tiros? Em vez de cavalos, são carrinhas, camiões de caixa aberta e todo-o-terrenos, e em vez de pistolas são espingardas e metralhadoras. Não é difícil perceber porque é que se olha para Custe o que Custar como um western moderno, mas o que torna o filme do britânico David Mackenzie mais do que apenas isso é a consciência desarmante que o atravessa de que, mesmo hoje que as planícies do Texas continuam poeirentas e as comunidades habitadas por um punhado de gente teimosa continuam espalhadas pelo território, o tempo já não volta atrás. O que os irmãos Howard querem fazer, roubando pequenas quantias em bancos para “lavar” o dinheiro jogando em casinos e salvar no processo o rancho da família, é travar o ciclo da pobreza, da exploração do rancheiro pelo barão de gado que agora é o banqueiro: logo no

espantoso primeiro plano do filme, um longo travelling silencioso que estabelece tudo o que se vai seguir sem palavras, há uma pichagem numa parede que diz “três comissões de serviço no Iraque mas para gente como nós não há resgate”. Se o velho western se construía sobre a esperança de um novo recomeço, sobre a capacidade e resiliência de indivíduos que desbravava território, hoje sobra apenas o desalento e a sobrevivência e o “cada um por si” num mundo onde os dados estão viciados à partida. Custe o que Custar, então, joga com a iconografia toda do western para a desmontar como uma simples projecção, mais uma imagem do “sonho americano” que a realidade se encarrega brutalmente de desintegrar. Fá-lo apegando-se àquilo que de mais telúrico e permanente ela tem – a paisagem e os homens - mas sem se deixar iludir pela esmagadora grandeza de uma nem pela postura sólida dos outros, e, sobretudo, desfazendo-se por completo do maniqueísmo bemcontra-o-mal. Em seu lugar, apenas uma paleta de cambiantes queimados pelo sol e cobertos pela poeira, com um Jeff Bridges imperial no papel do velho ranger que já viu tudo, testemunha impotente do modo como os tempos mudaram e como o velho Oeste já desapareceu. E um

A Mãe é que Sabe A Vida e os Filmes de Ken Loach

a Mau mmmmm Medíocre mmmmm Razoável mmmmm Bom mmmmm Muito Bom mmmmm Excelente

encontro improvável mas certeiro entre a visão desencantada de um argumentista (Taylor Sheridan, já responsável pelo excelente Sicario de Denis Villeneuve) e o olhar exterior de um realizador de visita (o britânico David Mackenzie, que assina aqui, de muito longe, o seu melhor filme). Uma surpresa. A Mãe é que Sabe De Nuno Rocha Com Maria João Abreu, Filipe Vargas, Dalila Carmo, Manuel Cavaco

mmmmm Nem todos os caminhos para o reencontro de uma vocação popular do cinema português têm que desembocar naquela boçalidade agressiva que se tem visto nalguns casos recentes. Esse aspecto – uma bonomia genuína e quase modesta – é o mais assinalável em A Mãe é que Sabe, que tenta filmar uma família portuguesa contemporânea no momento em que ela se reúne para um almoço comemorativo. O tempero, através dos flash-backs, vem da lembrança do país nos anos 70, 80 e 90, e de um pouco de “fantástico” a soltar o pensamento mágico da protagonista (Maria João Abreu) e o seu poder de influir sobre o passado. Não é muito sofisticado, ou não é mesmo nada sofisticado, no seu registo muito colado ao

O naturalismo televisivo: A Mãe é que Sabe

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naturalismo televisivo, feito com um profissionalismo sem surpresas nem inspiração digna desse nome. Ainda assim, denota um genuíno interesse pelos actores, sempre bem tratados, sobretudo os mais velhos (o recentemente falecido Carlos Santos, Manuela Maria, Margarida Carpinteiro, Manuel Cavaco). Visto na grande escala das coisas, é um filme completamente irrelevante. Mas reconhecê-lo não anula uma certa simpatia pela sua atitude, a de procurar uma espécie de elegância que em momento algum hostiliza o espectador ou o trata como um alarve.LMO

Continuam Eu, Daniel Blake I, Daniel Blake De Ken Loach Com Dave Johns e Hayley Squires

de realismo e de ficção que confundiu enormemente os espectadores e que antecipou as hoje tão apaparicadas “ficções do real”; e que tem sido fiel, orgulhosamente fiel, ao pacto que estabelece com as personagens, o centro irredutível do seu cinema mais do que qualquer pacto com o espectador – por isso, mesmo quando acusado de ser manipulador ou sectário, os filmes de Loach são insensíveis a qualquer tendência de espectacularização. E é aqui, neste pacto com as personagens, que Eu, Daniel Blake se evidencia como um dos mais comoventes gestos de uma obra. Foi para contar a história deste marneceiro de 59 anos de Newcastle que sobreviveu a um ataque cardíaco – não pode trabalhar, segundo os médicos – mas que não vai sobreviver à burocracia do Estado Social, que o cineasta interrompeu a sua reforma (que anunciara por alturas de O Salão de Jimmy, 2014). História de pobres, de um combate ancestral pela sobrevivência, é um filme indignado com a devastação social e humana mas com uma delicadeza de olhar a resistir no espaço dos sentimentos e da intimidade. Isso mesmo, possibilidade de resistência: as relações íntimas a contrariarem a violência da retórica social (e resistência contra a retórica do filme de denúncia e de mensagem política). É essa a política: os sentimentos. Vasco Câmara Estive em Lisboa e Lembrei de Você De José Barahona Com Paulo Azevedo, Renata Ferraz, Amanda Fontoura

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Eu, Daniel Blake, um pequeno ciclo na Cinemateca e o documentário Versus, A Vida e os Filmes de Ken Loach (Louise Osmond) levam-nos à descoberta do cineasta britânico. Se tem hoje 80 anos e filma há cinco décadas, não é arriscado dizer que o seu cinema está à espera de ser (re)descoberto, e que o homem merece ser revelado. Não porque se desconheçam os filmes, mas porque foram surgindo tapados pela cortina do engajamento e da militância, até mesmo produzindo um certo efeito de automatismo de relojoaria. Dizer que Loach é sempre igual a Loach também é uma forma de o espectador encolher os ombros, desobrigando-se do esforço. Teremos de fazer um mea culpa pelo enevoamento do olhar e dos sentidos. E voltar a ele, que nos anos 60 na TV, juntamente com os seus companheiros que por aqueles anos entravam pela BBC adentro, aventurou-se por um misto

Há muito de intrigante no modo como, para a sua terceira longametragem, o português José Barahona se apropria do romance de Luiz Ruffato sobre um imigrante brasileiro que tenta a sorte de uma vida melhor em Lisboa para nele inscrever as próprias experiências dos actores não-profissionais que nele participam, e para o transmutar numa ficção em permanente contaminação pelo documentário. Mas, assim que o filme abandona Cataguazes para se instalar na capital portuguesa, Estive em Lisboa e Lembrei de Você soçobra quase sem salvação: não consegue fugir ao esquematismo de uma narrativa incapaz de transcender um melodramatismo quase novelesco, desbarata o modo naturalista como regista espaços e corpos, tomba nas armadilhas narrativas do “filme social” a que tanto quer escapar. É pena, porque a espaços se entrevê o filme que Barahona quis fazer e que Estive em Lisboa e Lembrei de Você podia ter sido. J.M.


Opinião Manoel de Oliveira, que tanto contribuiu para o prestígio internacional do cinema português, foi o alvo de uma piada de Herman José que, nos anos 80, reduziu o seu cinema à imagem de meia hora de uma árvore, veiculando a ideia de coisa chata e intransponível

Miguel Gonçalves Mendes

Portugal: brincar aos países e ao cinema Abandonemos a síndrome de “povo menino” ou a síndrome do império. Identifiquemos os erros de base, para que possamos melhorar os que nos atrofiam. Eis algumas propostas. Portugal necessita urgentemente de se interrogar. Foi esta a força que perdemos há muito (Europa incluída) em relação ao mundo. Deixámos de nos questionar enquanto povo, perdemos o presente e, consequentemente, o futuro. Entrámos num processo letárgico, cujo resultado está à vista. Para abandonarmos a síndrome de “povo menino”, diagnosticado por Cesariny, ou a síndrome do império ou de uma certa sobranceria parola, é necessário que identifiquemos os erros de base, para que possamos melhorar aqueles que nos são endémicos e que atrofiam o desenvolvimento social do país. Aqui estão eles. Em Portugal, a normalidade da convivência pura e simples não existe. Persiste uma visão infantil e bipolar, em que coexistem o “nós” perfeito e os “outros”, uma cambada de inúteis e oportunistas. Existe uma total ausência da noção do que é o bem comum.

Entretemo-nos em guerras inúteis, destruindo o caminho uns dos outros. Nada se constrói, nada tem continuidade. E o “outro” é um alvo permanente a abater. É, pois, fundamental reforçar a ideia de bem comum, acima da tradicional turbulência quando muda a cor política ou emerge um novo grupo de interesses. É como se brincássemos com o país, ficando claro o embaraçoso amadorismo nacional das instituições, dos agentes, da falta de planeamento e estratégias a longo prazo. Se a ausência de noção de bem comum na política é gritante, esta é extensível a todos os sectores da sociedade. Não será difícil para qualquer português constatar que a grande maioria das nossas instituições despendem a maioria do seu tempo em tarefas de manutenção administrativa e legitimação procedimental. E se gastarem 10% a tentar construir políticas e acções

controla. Fossem estas as elites do séc. XVI e a Gioconda nunca existiria. Os intelectuais e “fazedores de opinião” falam sobre tudo e sobretudo dos partidos que apoiam. Existe ainda a chamada escola “à la” Pulido Valente (Alberto Gonçalves, João P. Coutinho, etc.), gente que despreza o povo “indígena” (de onde eles vêm é que eu não sei), que se limita a destilar ódio em tudo quanto escreve e cuja capacidade para contribuir para o país (que tanto criticam) permanece uma eterna incógnita. Na comunicação social o jornalismo cultural raramente existe, seja por políticas estranguladoras dos conselhos de administração dos meios, seja por impreparação dos jornalistas. Por outro lado, a informação é concentrada de modo quase totalitário na rede de eventos da Grande Lisboa.

estratégicas consistentes — isto é, resolver os problemas para os quais foram criadas —, já será muito. Demitem-se assim do papel reflexivo e mobilizador que deveriam ter na sociedade que as justifica e sustenta. Mas as instituições e o Estado somos nós e, connosco, as elites. É nesta dimensão que tem residido ao longo da nossa História um dos principais problemas de Portugal. Quando me refiro às elites, refirome à intelligentsia da sociedade, elites que deveriam ser fonte de inspiração e reflexão para os seus concidadãos. Mas em Portugal, desde Quinhentos, temos tido predominantemente elites endinheiradas, deformadas, conservadoras (mesmo quando de esquerda), provincianas na sua vergonha e repulsa pela própria origem. Enclausuradas numa visão do séc. XIX — em que a cultura se resume à música clássica, às belasartes, à literatura e ao património edificado e a algum fino apreço por antiguidades. A ignorância torna-se clara quando se odeia o que não se compreende, o que não se conhece e o que não se

Vox populi

O mito popular diz que os cineastas vão ao bolso dos portugueses para financiar os seus filmes parasitas. Mas nenhum dos nossos impostos custeia a produção nacional NFACTOS/LARA JACINTO

Em Portugal, salvo honrosas excepções, a crítica não faz crítica, ou fá-la como uma criança de cinco anos: ama ou odeia. E nesta falta de consistência, confundida com exercício de poder, o crítico sentese crítico apenas no momento em que determina a selecção daquilo que deverá integrar o corpus cultural do país — ou seja, a crítica não perdoa e só reconhece quem foi criado por si. Os colegas de profissão, em geral, desprezam-se e digladiam-se como se não existisse espaço suficiente, sem perceberem que o mundo é diverso e que, na arte, ninguém ocupa o lugar de ninguém. Num país de dez milhões de habitantes, onde se produz uma média de menos de 20 longas-metragens por ano, coabitam duas associações de realizadores e duas de produtores que rivalizam entre si. É mais do que triste: é confrangedor. E existem ainda os “brilhantes falhados”, aqueles que desprezam tudo o que os rodeia porque nunca fizeram nada — e geralmente odeiam o sucesso do outro por ser esse o espelho da sua própria inacção. Existe ainda a moda de tratar os cidadãos como consumidores, esquecendo que todos temos o direito inalienável ao conhecimento e à educação. Falamos, de novo, do bem comum. Se o Estado social está em perigo, também a cultura está em perigo. Ou consideramos que todos temos direito a ela, ou tornamo-la um luxo. Quando a vox populi (com o beneplácito político) afirma que a cultura é um luxo, esquece-se de que a História de um povo é construída pela ciência e pela cultura. As pessoas tomam como natural a condução dos seus impostos para a electricidade ou para o futebol, mas estranham o apoio à arte. E não percebem que, sem esse apoio (seja estatal ou mecenático), a arte nunca existiria. Podem ficar descansados: em Portugal, a arte não é, na verdade, apoiada. Salvo raras excepções,

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O cinema e o bolso dos portugueses: um mito Para falar dos problemas do cinema português com abrangência, irei focar-me em quatro pontos centrais: o público; as produtoras e distribuidoras; o ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual] e as insuficiências da sua actuação; as escolas de Cinema e o seu fundamental papel na transmissão de identidade. Infelizmente, temos uma cinematografia renegada pelo público. E uma das grandes ironias da vida é o facto de Manoel de Oliveira, que tanto contribuiu para o prestígio internacional do cinema português, ter também contribuído, sem saber e sem ser sua responsabilidade, para o efectivo divórcio dos portugueses do cinema nacional — graças à piada de Herman José que, nos anos 80, reduziu o cinema de Oliveira à imagem de meia hora de uma árvore, veiculando a ideia de um cinema chato e intransponível. A piada ficou e virou marca que perdura até hoje. E, se é verdade que existem filmes portugueses maus, também os existem notáveis — como em qualquer cinematografia do mundo. O mito popular diz também que os cineastas vão ao bolso dos portugueses para financiar os seus filmes parasitas. Mas, ao contrário do que muitos pensam, nenhum dos nossos impostos custeia a produção nacional. O fundo que apoia o cinema é suportado apenas pelas operadoras de televisão e cabo (Nos, Meo, etc.), ao abrigo do

que se considera serviço público — isto é, contribuir para a sociedade da qual retiram os seus proveitos. Ora, num público que considera o cinema português mau por natureza e ainda julga que está a ser roubado, não surpreende que muitos defendam que o Estado não deva financiar “coisas dessas” (especialmente se não tiverem como objectivo a obtenção de lucro). O que muitos não sabem é que o que permite aos países europeus financiar a sua própria cinematografia é uma cláusula de excepção, que tem por base a necessidade de apoiar a produção de filmes que de outra forma nunca poderiam ser concretizados, garantindo assim a existência do cinema como forma de arte e não apenas como entretenimento — porque os dois podem, e devem, complementar-se. No caso português, nem um cinema dito “comercial” sobreviveria sem apoios estatais diante de uma população tão reduzida (leia-se: mercado) — por isso, a discussão comercial vs autor, além de não fazer sentido, não tem utilidade prática no caso português. A pergunta que fica é: será o cinema de Pedro Almodóvar comercial ou autoral? Ou essa tentativa de distinção não é apenas uma eterna guerra de egos, estúpida, e sobretudo sem qualquer utilidade prática? Em teoria, a maneira de avaliar o sucesso de um filme oscila de forma complexa e bastante relativa: entre os números de bilheteira, a presença e prémios em festivais, e a recepção pela imprensa. Mas, se analisarmos a última década, talvez se contem pelos dedos de uma mão os filmes portugueses que conseguiram vingar em todas estas frentes. E seria importante tentar perceber porquê. Ainda antes de chegar ao seu público, o cinema português atravessa canais de distribuição que, além de naturalmente entupidos pela oferta estrangeira, são de manutenção duvidosa por parte de algumas entidades. É o caso de permitirmos que uma única pessoa possa ser, em simultâneo, produtor, distribuidor e exibidor. Quantas vezes certo produtordistribuidor detentor de salas rejeitou exibir filmes de outros produtores portugueses? Um problema que os americanos resolveram com o “Paramount case” há 70 anos, em nome da concorrência justa, ao impedirem que os estúdios pudessem operar em mais de duas dessas três frentes. Por cá, a Nos, a nossa maior distribuidora, aquela que ainda nos vai dando alguma projecção, podia assumir uma missão de serviço público ao ceder duas das suas cerca de 450 salas (uma para Lisboa, outra para o Porto) para exibição exclusiva de cinema português (como existe a Sala Cinema Francês, no Amoreiras). Seria importante para criar hábitos de assiduidade por parte de um público interessado. Poderia ainda

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exibir cinema português em algumas salas do resto do país, um dia por mês. Parte da culpa é também das próprias produtoras que, mal habituadas a reconhecer a importância de uma promoção forte para o sucesso dos filmes, tendem a suborçamentar a promoção e distribuição, achando que promover um filme se limita a imprimir postais ou no máximo colocar um anúncio no jornal. Existe ainda a Festa do Cinema dinamizada pela ICA, que durante três dias convida as pessoas a visitar qualquer sala de cinema do país com bilhetes a 2,5€ — uma iniciativa de sucesso. Mas quem também necessita de ajuda é o cinema português. Por isso, poder-se-ia juntar a esta festa uma iniciativa simbólica, anual, lançando em todas as salas do país o desafio de exibirem um filme português à sua escolha, aproveitando o assinalar de alguma efeméride — o dia do cinema português. É necessário analisar aquilo que se configura como o problema base do cinema em Portugal: afinal, qual a função do Instituto de Cinema, ao fim de 40 anos? Para a escrita deste artigo, foram enviadas 12 questões aos membros da direcção do instituto que, por disporem de apenas uma semana, lamentaram não ter tido tempo para responder. Mas entre elas havia uma que considero crucial: “Quais as principais linhas mestras do plano de actuação do ICA para os próximos anos? E onde se pode encontrar a estratégia da actual direcção para o fomento do cinema português?” Na minha ingenuidade, pensava que para responder não seria necessário nem uma semana, pois, supostamente, esta estratégia já deveria estar há muito definida e redigida, bastaria um simples copy paste como resposta. Aparentemente, não. Se temos de admitir que somos um país sem grande margem financeira, também há que reconhecer que o sistema actual está totalmente bloqueado. Vários realizadores são considerados instituições, vacas sagradas do regime, e, ao serem continuadamente apoiados, vão deixando de fora qualquer hipótese de regeneração e o surgimento de novas formas de linguagem. Estranhamente, também somos um país em que os filmes parecem ter todos a mesma exigência orçamental: uma primeira obra de ficção, quer seja um exercício poético sobre o azul filmado num único espaço, ou uma recriação histórica com uma batalha naval, recebe no máximo os mesmíssimos 600 mil euros de apoio à produção. Existe, pois, uma necessidade premente de revisão do actual sistema de concessão de apoios. Talvez a forma mais eficaz de tentar colmatar este problema seja a criação, por cada linha de apoio à produção, de candidaturas a montantes máximos escalonados

MIGUEL MADEIRA/ARQUIVO

a maioria dos criadores, actores, realizadores, artistas plásticos, etc., vivem uma situação de precariedade laboral, social e vivencial quase absolutas. É fácil encontrar um criador que admiramos atrás de um balcão de um bar para conseguir sobreviver e ainda ser alvo de crítica por ser subsidiado, quando não o é. Mas não faz mal: o ideal romântico é o artista morrer na miséria, como Camões, e ser depois agraciado com uma estátua e apropriado pelo regime. Como Eduardo Prado Coelho dizia, tem de se assumir, de uma vez por todas, que o investimento na cultura e na ciência é a fundo perdido e que, se em 50 anos um país conseguir uma obra-prima ou uma revolucionária descoberta científica, será um milagre — o nosso contributo para a humanidade. Posto isto, o problema não é só o Estado, não são só as elites, não são os outros. No fundo, o problema somos todos nós (grandessíssimos filhos da puta uns para os outros e sobretudo para nós mesmos), que, enquanto não tivermos como máxima a contribuição para o bem comum, não iremos a parte alguma. A verdade é que só tornando construtiva a energia que temos despendido ao longos destes anos a autodestruir-nos é que conseguiremos transformar Portugal.

As pessoas tomam como natural a condução dos seus impostos para a electricidade ou o futebol, mas estranham o apoio à arte RUI GAUDÊNCIO

Tem de se assumir, de uma vez por todas, que o investimento na cultura e na ciência é a fundo perdido

— por exemplo, um concurso para 600 mil euros; um para 400 mil euros; um para 100 mil euros. Desta forma, os produtores seriam obrigados a apontar a mira com precisão às suas reais necessidades, em vez de, como sempre se fez em Portugal, inflacionar o orçamento, atirar o barro à parede e esperar que saia a sorte grande. Para os novos cineastas, defendo a existência de um concurso específico para jovens até aos 30 anos. Mas, em sentido totalmente inverso, o ICA propõe a agora a fantástica aberração de que os

projectos escolares sejam considerados “primeiras obras”, anulando qualquer hipótese de as gerações mais novas acederem aos concursos. Poderia também ser criada uma linha de apoio a curtas-metragens de baixo orçamento para alunos recém-formados, para que não concorressem taco a taco com realizadores sexagenários consagrados. Caso contrário, parece ser necessário que toda uma geração de realizadores morra para finalmente o sistema se regenerar. Aliás, pergunto ao meus colegas com carreiras já firmadas se realmente consideram justo disputar o único e exclusivo espaço de apoio a que a nova geração de realizadores pode aceder. Defendo ainda que, tal como os concursos estão divididos em longas ou curtas-metragens de ficção, documentário ou animação, se acrescente um concurso para cinema experimental e de ensaio — por ser um cinema de natureza muito distinta, não passível de ser exibido em salas comerciais, mas sim em museus e galerias, sem que nada de errado exista nisso. Caberá assim ao produtor a honestidade de decidir à partida para que segmento de mercado está o seu objecto fílmico direccionado e a que linha de apoio concorrer. Nenhuma destas propostas obriga a um reforço dos fundos,


MIGUEL MADEIRA/ARQUIVO

mas antes a uma melhor distribuição dos mesmos. Encontra-se actualmente em preparação um projecto de decretolei que visa alterar as regras de apoio financeiro ao sector do cinema. Faço votos para que, no final, incorpore alterações significativas que contribuam para o fortalecimento do sector. Contudo, e desconhecendo ainda a redacção final, numa primeira leitura sou levado a concluir que não se encontram sequer considerados os dois principais problemas: a necessidade premente de desbloquear o sector, garantindo a acesso de novos realizadores às linhas de apoio, e a definição de estratégias a longo prazo. Comecemos pela composição dos júris e o claro tráfico de influências, um problema nunca consensualmente resolvido. É essencial que Portugal reconheça e assuma a sua escala familiar e respectivas consequências: todos no meio estão, de alguma forma, interligados. Para tornar o processo transparente, defendo que as candidaturas sejam feitas por apresentações públicas de projectos (inclusive abertas à comunidade), sendo o júri composto por dez pares sorteados (ou pela Academia de Cinema ou pelas “cinquenta” associações do sector), mais quatro elementos indicados pelo ICA, incorporando alguém da direcção, e, em caso de empate, um voto de qualidade para o presidente. Acredito que perante a exposição e exigência pública a que estariam sujeitos o ICA e as produtoras se veriam obrigados a ser mais criteriosos. Apenas uma nota anedótica sobre o que hoje se passa nos projectos a concurso: é inexplicável, para não dizer surreal, a não exigência da apresentação de uma ou várias sequências narrativas com planificação/storyboard do que irá ser filmado. O júri limita-se assim a avaliar argumentos. Ora, o mesmo argumento realizado por cinco realizadores distintos resulta em cinco filmes completamente diferentes. Se a função do ICA é trabalhar pela sustentabilidade da produção cinematográfica, então é gravíssimo que não exista a mínima estratégia para a promoção internacional da mesma. Não basta estar presente com stands em mercados como Cannes ou Berlim, e limitar-se a distribuir uns catálogos com os filmes produzidos nesse ano, que nem os DVD dos filmes contêm. São necessárias acções concretas, concertadas com as associações do sector para direccionar os filmes para os seus potenciais mercados internacionais. Onde está o trabalho de estruturação e profissionalização do sector? Onde está a promoção interna e externa de filmes? É confrangedor que, ao fim de 41 anos de vida, o instituto se tenha demitido de promover uma campanha de marketing que procurasse superar o divórcio entre

os portugueses e o seu cinema. Ou que não tenha trabalhado parcerias com entidades como a TAP, companhia de bandeira, para que, à semelhança das suas congéneres, criasse uma categoria permanente de cinema português a bordo, ou exactamente o mesmo com a Netflix. Ou promover algo tão básico como um estudo que procure perceber quais as expectativas e reticências que têm os frequentadores das salas de cinema em relação ao cinema português. Como pode o ICA manter-se passivo, sabendo que, daquele que é o meu conhecimento, cidades como Bragança, Portalegre, Évora e Terceira não têm salas de cinema com programação regular, minimamente abrangente, a par e passo com a distribuição feita no resto do país? Porque não avançarse com uma proposta que revolucionou o mercado brasileiro, procurando adaptá-la ao nosso contexto, impondo aos canais temáticos de TV (AXN, Fox, etc.) que exibam X horas semanais de produção original portuguesa?

Que raio de cinema pensavam que iriam fazer? Quase sempre ausentes da discussão, as escolas superiores e universidades têm um papel fundamental na aproximação dos futuros profissionais da sua cinematografia. Das dez instituições de ensino que contactei, apenas quatro têm cursos com unidades curriculares exclusivamente dedicadas à história do cinema português — Restart, Universidade da Beira Interior, Universidade Católica e Lusófona. Outras dedicam-lhe apenas algumas horas em

No caso português, nem um cinema “comercial” sobreviveria sem apoios estatais diante de uma população tão reduzida — por isso, a discussão comercial vs autor, além de não fazer sentido, não tem utilidade prática no caso português

unidades curriculares mais gerais. A ausência mais chocante é, contudo, a Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC), encarada como a principal escola de Cinema em Portugal — mas nada que surpreenda, vindo de uma escola que, à boa maneira soviética, manteve durante 30 anos o mesmo presidente do Departamento de Cinema. Enquanto por lá fui aluno, foime dado a ver um único filme português. Anos mais tarde, já como profissional, regressei para dar uma palestra — naquele mês haviam-se estreado cinco filmes nacionais, mas os alunos não tinham visto nenhum, nem conheciam cinema português em geral. Era “chato”, diziam. Perguntei, afinal, que raio de cinema pensavam eles que iriam fazer? E sejamos claros: é exigível, no mínimo, a obrigatoriedade de um semestre de uma cadeira dedicada à história da cinematografia nacional em todo e qualquer curso de Cinema e Audiovisual leccionado em Portugal. Caso contrário, como poderão futuros profissionais saber o que falhou ou resultou antes de si? Ou como chegámos aqui. Por fim, penso que também seria útil que as diferentes escolas do sector se reunissem, contactassem as respectivas associações (e, posteriormente, tentassem estabelecer diálogo com as suas congéneres brasileiras) e se articulassem para definir um glossário comum, para não termos dois profissionais formados na mesma língua a designar de modo diferente termos técnicos de idêntico significado. Na realidade, toda a terminologia cinematográfica é passível de ser traduzida para português. Por isso seria bom que os “nossos” anglófonos e francófonos percebessem que o mundo mudou, que o português é uma das línguas mais faladas no mundo e que está na altura de contribuir para afirmar o nosso próprio idioma. Para terminar, é importante esclarecer que muitas destas questão não me têm afectado directamente — não só tenho sido apoiado pelo ICA, como pela Nos, como tenho sido em geral bem recebido pelos media e pela crítica. Mas não é por isso que posso ignorar o modus operandi do sistema e como este afecta os meus colegas e o nosso cinema em geral. Desejo apenas que estas propostas possam contribuir para a defesa e fortalecimento da cinematografia nacional, pois a futura memória visual do país será também o resultado do nosso cinema. É por essa imagem que irá perdurar que devemos lutar. A verdade é que tudo está por fazer e, como tal, não nos podemos demitir de agir. Caso contrário, continuaremos a ser uns eternos amadores a brincar aos países e ao cinema. * cineasta ípsilon | Sexta-feira 9 Dezembro 2016 | 31


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