A ADVOCACIA CAMINHANDO EM PARCERIA COM A TEORIA: Breves considerações sobre a relação entre Academia e prática jurídica
Marco Antônio Sousa Alves Pesquisador de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES) em Filosofia na UFMG. Bacharel em Direito e Doutor em Filosofia pela UFMG. .
1
A ADVOCACIA CAMINHANDO EM PARCERIA COM A TEORIA: Breves considerações sobre a relação entre Academia e prática jurídica
Marco Antônio Sousa Alves
Avalia-se a inteligência de um indivíduo pela quantidade de dúvidas que ele é capaz de suportar
Immanuel Kant
Introdução
A advocacia é uma atividade profissional que exige daquele que a ela se dedica uma conciliação de diferentes habilidades e competências, de ordem prática e teórica. O bom advogado não se resume a um mero rábula ou um simples operador medianamente eficaz, assim como não se identifica também com um pensador que especula grandes questões distantes do mundo em que vive, das instituições tais como elas existem e da realidade na qual está inserido. Em suma, o bom advogado deve conciliar uma sólida formação teórica com uma adequada vivência prática. Ao invés de se deixar levar por uma divagação estéril, o bom advogado aprofunda-se teoricamente de maneira aplicada ao mundo jurídico, visando os problemas reais. E ao invés de se deixar consumir pelo dia-a-dia dos processos infindáveis e dos prazos sempre curtos, o bom advogado consegue enriquecer teoricamente sua prática, refletindo sobre as questões pertinentes de fundo.
Uma primeira versão deste texto foi apresentada em 9 de junho de 2014 no Auditório da OAB-MG, no seio das atividades da Comissão de História do Direito. Agradeço especialmente a Isabela de Andrade Pena Corby e ao Ricardo Manoel de Oliveira Morais pelo convite. Pesquisador de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES) em Filosofia na UFMG. Bacharel em Direito e Doutor em Filosofia pela UFMG.
2
Essa conciliação, certamente, está longe de ser a regra. Em geral, os advogados, mesmo aqueles que são sérios e empenhados em seus afazeres profissionais, tendem a realizar apenas de modo aproximado e parcial o ideal retratado acima. Alguns pendem mais para a formação acadêmica, tornando-se especialistas reconhecidos, mas muitas vezes incapazes de dar uma resposta satisfatória aos problemas práticos que caracterizam a atividade da advocacia. Por outro lado, alguns advogados pendem mais para a prática dos escritórios e tribunais, adquirindo inegável experiência e capacidade de solucionar problemas reais, mas muitas vezes incapazes de alçar vôos maiores no que diz respeito à problematização dos temas envolvidos ou ao aprofundamento das questões em jogo. Como nos ensinou Aristóteles, a virtude caracteriza-se por ser uma justa medida entre dois extremos, o que explica a facilidade com que erramos em nossas condutas e a dificuldade de se atingir a perfeição na ação. Nas palavras do sábio estagirita: “é possível errar de muitos modos, mas só há um modo de acertar. Por isso, o primeiro é fácil e o segundo difícil – fácil errar a mira, difícil atingir o alvo” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 1106b30). Na advocacia, não é diferente. Pode-se pecar pelo excesso de especulação teórica e conseqüente falta de aplicabilidade prática, assim como pelo excesso de vivência prática superficial acompanhada de uma falta de aprofundamento teórico-reflexivo. O difícil é acertar o alvo, atingir a medida ideal. E por isso, parafraseando Aristóteles, o bom advogado tanto é raro como nobre e louvável (cf. ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, 1109a29). Nas linhas que se seguem, gostaria de investigar um pouco mais sobre esse desafio e tecer algumas considerações despretensiosas sobre a relação entre teoria e prática no mundo jurídico. Proponho refletir sobre esse tema seguindo o seguinte itinerário, marcado por cinco pontos:
I.
Em primeiro lugar, pretendo aprofundar um pouco os termos em jogo: o que devemos entender, afinal, por teoria e por prática?
II.
Em segundo lugar, gostaria de voltar minha atenção para a constituição histórica desse problema: como, historicamente, construiu-se o estudo teórico do direito e sua relação com a prática jurídica?
III.
Em terceiro lugar, sugiro voltar o olhar para o nosso tempo: como teoria e prática se relacionam no direito hoje?
3
IV.
Em quarto lugar, partindo das observações realizadas, pergunto: o que a Academia e os profissionais do direito podem fazer para mudar o quadro atual?
V.
Por fim, em quinto é ultimo lugar, gostaria de delinear sugestões aos interessados em levar adiante uma vida acadêmica e indicar algumas precauções acerca de como seria adequado conduzir uma pesquisa conciliada à atividade advocatícia.
I
O que devemos entender por teoria e por prática? De que maneira se pode saber como teoria e prática se relacionam no direito se não sabemos ao certo do que estamos tratando? Valendo-me de uma típica estratégia socrática, proponho definir, de partida, os termos chaves da discussão que se pretende levar adiante. Trata-se apenas de avançar algumas significações para iniciarmos a conversa sobre o tema. Analisando rapidamente o que dizem os dicionários, passando pelos usos mais ordinários, pelas acepções pejorativas e também pelos empregos filosóficos e mais técnicos, gostaria de ressaltar quatro sentidos básicos para cada um dos termos em questão. A teoria (θεωρία), em sua origem filosófica, está relacionada à ação de olhar, examinar e especular. O teorizar é entendido como uma prática desinteressada, que tem apenas a contemplação do mundo por objetivo. Nesse sentido, encontramos no dicionário Houaiss a seguinte definição de teoria: “na filosofia grega, conhecimento de caráter estritamente especulativo, desinteressado e abstrato, voltado para a contemplação da realidade, em oposição à prática e a qualquer saber técnico ou aplicado” (HOUAISS, 2001). Outro elemento característico daquilo que chamamos tecnicamente de uma teoria está no fato de ser uma construção meramente hipotética. Ou seja, a teoria não se confunde com uma revelação da verdade ou com uma doutrina de caráter dogmático. Pelo contrário, teorizar pressupõe sempre manter o espírito zetético, aberto à dúvida, ao questionamento e às eventuais objeções e correções. Uma teoria é, em suma, apenas uma resposta provisoriamente oferecida, que apresenta determinadas vantagens explicativas com relação às respostas concorrentes, mas sem nunca estar certa de sua “verdade”, ou seja, mantendo sempre a natureza de uma mera construção hipotética, que sobrevive enquanto não houver uma solução mais completa e satisfatória. Como
4
também se pode ler no dicionário Houaiss sobre a teoria: “conhecimento especulativo, metódico e organizado de caráter hipotético” (HOUAISS, 2001). Em terceiro lugar, o que entendemos em geral por teoria implica a realização de uma síntese entre diferentes elementos por meio de uma representação conceitual. Uma teoria procura, em suma, resolver um problema, desatar um nó, o que se faz por meio de um esforço de conceitualização pretensamente organizado, coerente e simples. Segundo o dicionário Houaiss, uma teoria é um “conjunto sistemático de opiniões e idéias sobre um dado tema”. Por extensão, diz-se ainda: “qualquer noção abrangente; generalidade” (HOUAISS, 2001). Isso porque uma teoria não se resume a dar uma explicação isolada de um fenômeno específico, mas visa, ao contrário, oferecer um quadro explicativo mais geral e abrangente. Por fim, olhando para o uso mais coloquial do termo ‘teoria’ e para sua extensão pejorativa, percebemos que normalmente se chama de teoria tudo aquilo que é visto como oposto à realidade. Nesse sentido, como vemos no dicionário Houaiss, uma teoria seria “construção imaginária; utopia, sonho, fantasia” (HOUAISS, 2001). Já a prática, em seu sentido mais amplo, é entendida como a ação humana ou o que diz respeito a ela (praxis ou πράξις). Esse é sentido clássico, que encontramos, por exemplo, em Aristóteles, e que está ligado ao que é costumeiro ou habitual. Ressaltando esse sentido, lemos no dicionário Houaiss que prática é a “maneira usual de fazer ou de agir; hábito”, ou ainda que se trata de um “modo de agir característico de determinado grupo; uso, costume, convenção” (HOUAISS, 2001). Além desse sentido mais geral, a prática foi muitas vezes pensada em oposição à teoria, como tudo que é o oposto de teórico. Segundo o dicionário Houaiss, prático é “o que é real, não é criação teórica; realidade” (HOAUISS, 2001). Sendo assim, o saber prático era eminentemente interessado, sempre ligado ao agir humano, e não mera especulação. Prático é também tudo aquilo que é facilmente traduzível em ação ou voltado para a produção de algo. Esse sentido, mais coloquial do que técnico-filosófico, ressalta a tradução em ação imediata. Assim, ao invés de fórmulas abstratas e gerais, o prático caracteriza-se por ter uma visão direta da situação. Em sentido positivo, considera-se prática a pessoa simples, engenhosa, que sabe organizar sua vida de forma eficiente. Por extensão, o dicionário Houaiss define como prática o “período em que alunos de certos cursos deixam as salas de aula e têm contato direto com
5
a profissão que escolheram; estágio” (HOUAISS, 2001). É assim que, muitas vezes, é concebida a “prática jurídica” no seio das Faculdades de Direito. Por fim, também no que diz respeito à ‘prática’ há um uso ordinário e pejorativo do termo, que considera prática aquela pessoa que pensa apenas em seu sucesso, em particular no dinheiro ou na carreira pessoal, sem nenhum escrúpulo moral ou freio de ordem sentimental. Em suma, o prático aproxima-se aqui de alguém frio, inescrupuloso e egoísta.
II
Como, historicamente, construiu-se o estudo do direito e sua relação com a prática jurídica? A resposta a essa pergunta não é nada simples e, ao colocarmos em perspectiva histórica, é preciso reconhecer que esse dilema, qual seja, a tensão entre teoria e prática, não é algo particular de nosso tempo e nem restrito ao domínio do ensino jurídico. Trata-se, pelo contrário, de uma questão recorrente e extremamente vasta. Essa tensão já se manifestava de certa maneira no seio do pensamento aristotélico, que podemos considerar como a construção fundadora da ciência ocidental. Aristóteles traçava uma clara distinção no seio do conhecimento científico (episteme) entre a sua forma teorética, voltada para a contemplação da natureza (physis), e a forma prática, dirigida para o agir humano. De um lado, a “razão teórica” (nous theoretikos), de outro, a “razão prática” (nous praktikos). A tradição latina manteve essa oposição, marcando claramente o domínio do “intelecto especulativo” (intellectus speculativus) em oposição ao “intelecto prático” (intellectus practicus). Essa é uma cisão fundamental para a tradição ocidental, que se manifesta mesmo entre os pensadores modernos ou contemporâneos. Não é por outro motivo que Kant, já na Prússia do século XVIII, diferenciou o domínio prático do teórico e fez da razão (Vernunft) algo mais amplo, que inclui uma dimensão prática distinta do entendimento teórico (Verstand). Sem me ater muito a esse longo e complexo tema, o importante aqui é apenas reter a importância dessa questão, percebendo como a oposição entre teoria e prática é fundadora de nossa concepção de ciência e marca dois grandes domínios do saber humano, que envolvem objetos,
6
métodos e desafios bem distintos. No seio dos estudos jurídicos, a tendência antiga, especialmente na tradição romana, foi manter o direito próximo à reflexão prática, em particular ética, direcionada à virtude da prudência (a phrónesis de Aristóteles ou a prudentia dos latinos), que consiste na habilidade de se saber distinguir o certo e o errado nas situações concretas. A jurisprudentia não pretende ser uma ciência em sentido teórico, mas sim um saber prático, voltado para a realização da justiça nos casos que se apresentam sempre de forma circunstanciada, aqui e agora. A imagem que hoje fazemos do direito como uma ciência, ensinada em Faculdades e objeto de grandes construções doutrinárias, talvez fosse vista como algo descabido e esdrúxulo aos homens da Antiguidade grega ou romana. A prática atual de se selecionar os juízes por meio de um concurso público, que exige dos candidatos o domínio de um conhecimento teórico-dogmático do direito, pareceria, talvez, um grande descalabro a eles. Como poderia uma ciência teórica, voltada para a contemplação daquilo que é eterno e imutável, dar conta de um problema tão circunstancial e mutável como o que seria uma decisão justa ou injusta no que diz respeito às ações humanas? Como poderia alguém aprender a ser justo, senão por meio da experiência e do hábito? A virtude, como nos ensinou Platão no diálogo Mênon, não é algo que se ensina como qualquer outro conhecimento científico. Não é algo que podemos aprender lendo livros e adquirindo um saber de ordem teórica. Retomando o ensinamento aristotélico, ser capaz de tomar a decisão mais justa e acertada é uma habilidade prática, um saber prudencial, que depende do exercício e da capacidade de considerar adequadamente os múltiplos elementos envolvidos na ação humana, que é sempre única e situada. Esse quadro talvez tenha começado a modificar-se apenas no final da Idade Média, com o surgimento das universidades na Europa e, no que diz respeito ao ensino jurídico, com a Escola de Bolonha. O direito deixa de ser visto como a ars boni et aequi para assumir cada vez mais a forma de uma nova scientia, um saber teórico capaz de fixar um direito pretensamente universal, o chamado ius commune. O dito “direito erudito”, engendrado no seio das nascentes universidades, nutre um grande desinteresse pelos costumes locais e faz o ensino jurídico assumir uma dimensão muito mais teórica, próxima das reflexões teológicas da época. Em linhas gerais, o estudo do direito não se dá de forma aleatória ou simplesmente casuística. O esforço de teorização fica evidente no novo modelo de trabalho e sistematização de princípios jurídicos comuns ou universais
7
a partir do Corpus Juris Civilis, em particular do Digesto ou Pandectas. Esse texto da tradição jurídica romana é alçado à condição quase mítica de um momento privilegiado na história em que a razão foi posta no papel e tornada lei pelos homens, daí a referência ao direito dos romanos como a própria ratio scripta. Se a tendência à teorização já marca os estudos jurídicos levados adiante pela Escola de Bolonha ainda no final da Idade Média, o que dizer então das grandes especulações jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII? No alvorecer da modernidade, os vôos teórico-metafísicos no seio dos estudos jurídicos alcançaram patamares nunca imaginados. Um novo projeto delineia-se: a ciência racional do direito (Jurisprudentia rationalis). Juristas-filósofos como Samuel Pufendorf, Gottfried Wilhelm Leibniz e Christian Wolff ilustram essa nova postura teórica frente a um direito cada vez mais concebido como um direito natural universal construído por meio de uma rigorosa dedução racional (nexus veritatum). O movimento da codificação, que caracterizou a experiência jurídica do final do século XVIII e do início do XIX, acompanhado da subseqüente emergência das posturas positivistas na ciência do direito, pode nos fazer crer, a primeira vista, que foi desenvolvido um novo interesse pela prática jurídica. De fato, os estudos jurídicos levados adiante pela Escola da Exegese francesa, pela Escola Histórica de Friedrich Karl von Savigny e pelos conceitualistas alemães afastam-se da tradição jusnaturalista. Ao invés de se aproximar da teologia (como fizeram os juristas medievais de Bolonha) ou da filosofia (como fizeram os jusnaturalistas modernos), os novos juristas do século XIX procuraram delimitar um campo autônomo de estudos: o da dogmática ou técnica jurídica. Na França, após a elaboração do Código Civil de Napoleão de 1804, uma postura extremamente legalista dominou o ensino jurídico e fez com que qualquer aproximação entre direito e filosofia fosse vista com desconfiança. O jurista belga François Laurent, um dos grandes nomes da Escola da Exegese, chegou a sugerir aos juristas e juízes que aceitassem sua nova posição de subalternos ao Código e escravos da lei. E o auge do legalismo pode ser verificado na afirmação do jurista francês Jean Joseph Bugnet, professor em Paris, que admitia sem qualquer vergonha desconhecer o direito civil, limitando-se a ensinar o Código de Napoleão. Em suma, o mero estudo literal das leis deveria prevalecer sobre a teoria ou a filosofia do direito. Ainda hoje,
8
muitos professores enaltecem a dimensão “prática” do direito, geralmente entendida como práticas processuais, e classificam o estudo da teoria jurídica como “perda de tempo”. Também a Escola Histórica do Direito alemã nutriu uma grande desconfiança com relação às especulações metafísicas modernas. Ao criticar o jusnaturalismo, Savigny não economiza nas palavras: “vãs abstrações”, “infinita arrogância” e “filosofia barata”. O puro legalismo da exegese francesa cede lugar para a preocupação historicista e para a compreensão do “espírito do povo” (Volksgeist). A nova “jurisprudência científica” ou ciência do direito (Rechtswissenschaft) proposta por Savigny valoriza uma interação entre a pesquisa histórica do direito e a construção sistemática de uma nova dogmática jurídica adaptada às especificidades de cada cultura em cada época. Seguindo a via aberta por Savigny no início do século XIX, seus discípulos, como George Puchta, procuraram levar adiante a idéia de construção de uma civilística sistemática. O projeto jusnaturalista é abandonado e, em seu lugar, uma nova concepção sistemática emerge no seio dos estudos jurídicos, não mais amparada por Deus ou pela Razão natural. O novo modo de pensar de viés positivista exige dos juristas que procurem resolver o direito dentro do direito, apenas sob o ângulo da juridicidade. Um edifício conceitual ou doutrinário é elaborado com esse fim, conduzindo os juristas a um interesse crescente pelo “céu dos conceitos jurídicos” (nas palavras irônicas de Jhering, que se tornou um grande crítico dessa perspectiva) e por uma renúncia à casuística e um enorme desdém pela prática. Engana-se quem pensa que essa nova ciência do direito valorizou a prática em detrimento da teoria. Pode-se dizer que o que veio a nascer não é nem uma coisa, nem outra. Não se trata de um conhecimento propriamente teórico, mas também não se trata exatamente de um saber prático. A nascente dogmática jurídica reside em um terreno intermediário, propondo-se a ser uma técnica para se lidar com as leis que não alça grandes vôos teóricos e nem encontra sua fonte nos problemas práticos que marcam a atividade dos operadores do direito. Molda-se, assim, a tradição de ensino jurídico que é ainda, em grande medida, aquela que prevalece em nossas Faculdades de Direito.
III
9
Como teoria e prática se relacionam no direito hoje? Não considero exagerado afirmar que há um verdadeiro fosso que parece separar a teoria da prática jurídica no Brasil. As razões desse fosso parecem decorrer de descaminhos que marcaram tanto a teoria, quanto a prática. Em realidade, uma coisa puxa a outra: quanto mais estéril e esotérica é a teoria, mais a prática do direito tende a funcionar de forma maquinal e grosseira, e vice-versa. Savigny já havia percebido a necessidade de teoria e prática andarem juntas na formação do jurista, alimentando-se reciprocamente. De acordo com o jurista alemão:
Essa distinção, boa e legítima em princípio, poderia degenerar em isolamento funesto, e é isso que precisamos distinguir claramente. A distinção é boa se não se perde de vista sua unidade primitiva, se o teórico conserva e cultiva a inteligência prática e o prático a inteligência teórica. Quando essa harmonia é destruída, quando a separação entre teoria e prática é uma separação absoluta, a teoria corre grande risco de se tornar um exercício espiritual vão e a prática um trabalho puramente mecânico (SAVIGNY, 1840, p. xxj, tradução minha).
Essa pretensa fusão entre teoria e prática pretendida por Savigny no momento de fundação da ciência sistemática do direito talvez tenha ocorrido de maneira diversa daquela sonhada por seu idealizador. A tradição dos estudos jurídicos do século XIX tendeu a fazer do ensino jurídico um ensino dogmático, doutrinário, que não é propriamente teórico, nem prático. Seguindo nessa linha, as Faculdades de Direito hoje não formam, em sua grande parte, bons teóricos, ou seja, pessoas como olhar crítico, capazes de problematizar o direito e repensar os conceitos jurídicos, nem bons práticos, ou seja, pessoas aptas a assumir plenamente uma profissão jurídica ou de serem agentes capazes de atuar eficazmente na sociedade. Ao invés de juristas e advogados, com embasamento teórico, preparados para agir no mundo do direito, o que vemos sair das Faculdades são geralmente meros rábulas, ou seja, pessoas incapazes de pensar e/ou de agir de maneira satisfatória. Essa minha visão negativa é compartilhada pelo filósofo do direito e teórico social e político brasileiro Roberto Mangabeira Unger, professor na prestigiosa universidade norteamericana de Harvard desde 1971, que não poupou críticas quando realizou em 2005 um balanço da formação jurídica oferecida pelas Faculdades de Direito no Brasil e delineou um projeto de construção de um novo curso a pedido da Fundação Getúlio Vargas. Em meio às duras palavras de Mangabeira Unger, gostaria de citar as passagens abaixo:
10
O problema do ensino de direito no Brasil é um caso extremo. Como está, não presta. Não presta, nem para ensinar os estudantes a exercer o direito, em qualquer de suas vertentes profissionais, nem para formar pessoas que possam melhorar o nível da discussão dos nossos problemas, das nossas instituições e das nossas políticas públicas. Representa um desperdício, maciço e duradouro, de muitos dos nossos melhores talentos. E frustra os que, como alunos ou professores, participem nele: quanto mais sérios, mais frustrados (UNGER, 2005, p. 16-17). O conteúdo do ensino jurídico tem continuado a ser, na maior parte do mundo, o que sempre foi: um escolasticismo doutrinário e exegético, com pouco valor prático para a advocacia e menor valor ainda para o entendimento (UNGER, 2005, p. 17). O que faz o professor na aula é pronunciar uma conferência, repleta de tecnicismos, cuja arbitrariedade é mal disfarçada pela sua antiguidade. Não é nem teoria nem prática. Comumente, é apenas a repetição de fórmulas doutrinárias de pouca ou nenhuma utilidade: as três maneiras de interpretar a norma tal, as duas escolas de pensamento sobre o instituto jurídico qual e assim por diante, numa procissão infindável de preciosismos que não podem ser lembrados (apenas efemeramente decorados) porque não podem ser, em qualquer sentido, praticados. Nem sequer praticados como maneira de analisar (UNGER, 2005, p. 18). O ensino jurídico que se desenvolve sob estas influências continua distante tanto de um pensamento verdadeiramente teórico quanto de uma utilidade profissional imediata. Sem servir nem à teoria nem à prática, resvala na tentativa de casar um amontoado de regras - o conteúdo do direito positivo - com um sistema fossilizado de conceitos doutrinários (UNGER, 2005, p. 18-19). Outro resultado lento e cumulativo deste acanhamento e tradicionalismo do ensino jurídico no Brasil é a marginalização dos advogados e juristas brasileiros do debate nacional. Deixaram de ser participantes centrais. Seu lugar foi há muito tomado pelos economistas e afins, que pelo menos parecem tratar, ainda que através de prisma estreito e distorcido, dos problemas do país. Ficaram os juristas de elite reduzidos à condição de técnicos a serviço dos poderosos e endinheirados. (...) Esse papel de amanuense, de escriba passivo e obediente, contrasta, de maneira chocante, com o papel norteador que os advogados e juristas desempenharam em outros períodos da história brasileira (UNGER, 2005, p. 22).
Quem já passou por uma Faculdade de Direito no Brasil deve concordar que, apesar de severas (e talvez exageradas), as críticas acima são, em grande medida, cabíveis (para não dizer certeiras). Afinal, seja seguindo a advocacia ou outra profissão jurídica, seja optando por uma carreira acadêmica como professor e/ou pesquisador, o mais comum é a pessoa ver-se na situação de buscar a formação necessária por conta própria, geralmente além daquilo que é visto em sala de aula e, muitas vezes, até em contraposição aquilo que lhe é “ensinado”. Difícil não ficar, ao menos em parte, frustrado com a experiência.
11
IV
E como mudar esse quadro? O que a Academia pode fazer? E os profissionais do direito? Como o advogado (ou o futuro advogado) pode evitar isso? Como romper o aparente círculo vicioso? É necessária uma continua atualização tanto teórica, quanto prática, com uma constante constituição mútua entre teoria e prática, mas como realizar isso adequadamente? Em primeiro lugar, devemos precisar melhor qual a formação teórica que se deve buscar. Certamente, o advogado deve teorizar sua prática, mas sem fazer de sua teoria uma mera sombra daquilo que faz em suas atividades cotidianas e nem um mundo aparte, isolado e estéril. Pensar o direito como um problema teórico/prático significa reconhecer que ele envolve uma construção e organização conceitual, mas ligado ao aqui e agora, à aplicação efetiva em uma dada realidade social. O advogado não deve ser apenas um trabalhador acéfalo, absorto completamente em seus afazeres profissionais. Deve manter vivo o olhar investigativo e crítico, a postura de um jurista/pesquisador/filósofo. Mas ao buscar um aprofundamento teórico, o advogado não deve procurar ser um filósofo-guru ou um “intelectual universal”. Sua meta deve ser tornar-se uma espécie de “intelectual específico” nos termos propostos por Michel Foucault, ou seja, alguém que parte de sua atividade específica e problematiza e critica as relações de poder e as formas de saber constituídas. De acordo com o filósofo francês: Um novo modo de “ligação entre teoria e prática” estabeleceu-se. Os intelectuais estão tomando o hábito de trabalhar não mais no “universal”, no “exemplar”, no “justo-everdadeiro para todos”, mas sim em setores determinados, sobre pontos precisos ligados a suas condições profissionais de trabalho ou a suas condições de vida (a moradia, o hospital, o hospício, o laboratório, a universidade, as relações familiares ou sexuais). Eles ganham assim, com certeza, uma consciência muito mais concreta e imediata das lutas. E eles enfrentam problemas específicos e não mais “universais” (...). Assim, os magistrados e os psiquiatras, os médicos e os assistentes sociais, os trabalhadores de laboratório e os sociólogos podem, cada um em seu lugar próprio e por meio de trocas e apoios, participar de uma politização global dos intelectuais (FOUCAULT, 2001, p. 110-111, tradução minha).
12
Como se pode perceber, não se trata de fazer do advogado um “filósofo total”, uma espécie de pensador profundo da totalidade, mas sim um crítico de seu métier, alguém capaz de problematizar sua atividade e de enfrentar problemas de ordem teórica e prática. Não um sonhador imerso em grandes e eternas questões, nem um simples operador que faz funcionar mecanicamente as instituições jurídicas. Fazer do advogado um intelectual específico significa torná-lo capaz de pensar e agir em conjunto, criticamente, colocando em evidências as formas de saber e as relações de poder que constituem e atravessam o mundo do direito.
V
Como conjugar a experiência como advogado com o trabalho acadêmico? Como o advogado deve conduzir sua vida acadêmica? Certamente não existe uma regra para isso, uma fórmula mágica de como conciliar com sucesso a prática do advogado com o trabalho teórico do pesquisador. Indubitavelmente existem diversas possibilidades de conciliação, que variam de acordo com o perfil das pessoas, das condições do momento, das oportunidades oferecidas, etc. Não creio que seja possível dar uma resposta geral às perguntas formuladas no início deste parágrafo. Ao menos eu não me sinto em condição de fazê-lo de maneira satisfatória. O que proponho desenvolver, nas linhas que se seguem, são apenas breves considerações, baseadas, sobretudo, em relatos e em experiências pessoais, acerca do que me parece adequado ou inadequado. Ao advogado, especialmente ao recém-formado, que sonha conciliar sua atividade advocatícia com a docência ou a pesquisa acadêmica, sugiro que uma primeira auto-avaliação seja realizada: afinal, será que tenho realmente perfil acadêmico? Como qualquer atividade, não é toda pessoa que tem propensão e aptidão para se dedicar à teorização do direito. Além disso, a atividade acadêmica, como muitas outras, é aprendida aos poucos e exige exercício e interesse. Mas como saber se tenho “perfil acadêmico”? Algumas perguntas iniciais podem ajudar a responder: Você foi bom aluno e teve boas notas na Faculdade? Já ministrou aulas? Tinha o costume de freqüentar congressos ou seminários? Publicou artigos em periódicos ou apresentou trabalhos em congressos? Já fez alguma iniciação científica, monitoria ou trabalhou em algum grupo de pesquisas? Se ao longo dos anos da Faculdade, além da sala de aula, sua preocupação
13
estava voltada apenas para o estágio ou para a preparação para algum concurso público, é hora de parar e pensar se realmente é a carreira acadêmica que te interessa. Se você não tem grande vontade de lecionar em uma Faculdade, se nunca gostou de estudar e pesquisar por conta própria, pense bem! Talvez a via acadêmica não seja a mais indicada para você. Quem deseja levar adiante uma vida acadêmica deve assumir uma postura mais autônoma, de pesquisador, sem esperar que um tema “caia em suas mãos”. Em geral, não somos estimulados a isso em nossa formação, o que faz muitos bons alunos serem extremamente passivos em seus estudos. Para os advogados que já estão a mais tempo em atividade, que saíram da Faculdade já faz alguns anos, um outro desafio apresenta-se, o que gostaria de chamar aqui de “enferrujamento intelectual”. Trata-se simplesmente da falta de treino, da ausência de esforço de teorização ou de aprofundamento, e do quase inexistente contato com a vida acadêmica, o que tende a fazer da Academia um mundo ainda mais distante e desconhecido. É preciso ter cuidado para não se consumir completamente pelo dia-a-dia do ofício profissional, pois isso nos deixa enferrujados e inseguros para enfrentar questões teóricas um pouco mais complexas. É mais fácil manter o hábito de pesquisa e de constante atualização teórica do que tentar retomar ou iniciar isso anos depois, o que exige muito mais determinação e um esforço hercúleo. Por isso, o melhor é continuar os estudos, mesmo que seja uma única disciplina na pós-graduação, para manter o hábito da leitura mais aprofundada, o exercício de problematização e de enfrentamento de questões teóricas mais sofisticadas, não apenas o estudo do dia-a-dia do advogado para resolver problemas profissionais mais imediatos. Outra questão importante que deixa aqueles que pretendem dedicar-se à pesquisa acadêmica inquietos consiste na escolha da instituição, da linha de pesquisa e do orientador. Afinal, estudar o que? Por que? Onde? Com quem? Parece-me que, acerca desses dilemas, o mais importante é procurar conhecer as possibilidades oferecidas e manter sempre o pé no chão. Verifique a avaliação da CAPES do programa que deseja ingressar e procure acompanhar os editais, pois as exigências para o ingresso são muito diversas, sendo normalmente indispensável o conhecimento (ao menos instrumental) de uma língua estrangeira. É bom cursar disciplinas isoladas antes, para se aproximar dos professores e conhecer melhor seus marcos teóricos, uma vez que seu projeto precisa ser adequado às linhas de pesquisa e às áreas de concentração do programa.
14
E uma vez escolhido o tema e o professor, o melhor é conversar com ele abertamente sobre seu interesse de tê-lo como orientador e sobre o que pretende estudar. Na elaboração do projeto, o mais importante é ter claro o que pretende estudar e como pretende fazê-lo. Não busque por “fórmulas mágicas de sucesso” ou por “temas quentes de pesquisa”. O melhor é dedicar-se a algo que realmente te interessa, procurando em suas inquietações aquilo que pode ser um objeto de pesquisa pertinente e relevante. Quanto ao método, não se deixe consumir excessivamente por preocupações metodológicas pré-fabricadas, como se fossem camisas-de-força às quais todos devessem adaptar-se. Sem dúvida é importante saber como se pretende conduzir a pesquisa, mas a busca por uma etiqueta metodológica é menos importante do que a clareza na exposição do problema e a clarividência do pesquisador quando aos caminhos a serem adotados. É importante também ter em mente que existem diferentes modalidades de estudo, com profundidades distintas e para fins diferentes. Não é mesma coisa realizar uma pesquisa acadêmica, preparar-se para uma prova ou para um concurso, ou ainda estudar para preparar aulas. Se você usar a mesma bibliografia de seu estudo preparatório para um concurso público em seu projeto de pesquisa de mestrado ou doutorado, é caminho certo para um desastre. Se o concurso exige, sobretudo, conhecimentos generalistas e dogmáticos, o que se avalia nas provas de mestrado ou doutorado é a profundidade teórica e a capacidade de o candidato posicionar-se criticamente sobre questões jurídicas. É importante manter o foco, estudando a fundo seu tema e fazendo um bom levantamento bibliográfico (com leitura e fichamento das principais referências). Mas é também imprescindível explorar outros temas e ser capaz de realizar associações e ter uma visão crítica mais ampla. Em geral, não somos formados para sermos pesquisadores. Poucos estudantes de direito realizam alguma iniciação científica e é natural que se sintam perdidos quando desejam ingressar na vida acadêmica. Mas, creio, nem tudo está perdido. Como na prática jurídica, também aqui será exigível uma exploração por conta própria e um bom grau de autodidatismo. É importante não abandonar o espírito investigativo e a postura de pesquisador: aprofundar alguns temas e manter sempre uma atitude crítica e problematizadora, perguntando pelos porquês e apontando para outras possibilidades. Se possível, procure redigir pequenos artigos ou resenhas críticas com o resultado de seus estudos. Há várias revistas discentes abertas a esse tipo de publicação. Trata-se de um
15
excelente exercício de reflexão e produção acadêmica. Além disso, tais publicações contam pontos que podem ser preciosos nos processos seletivos. E, por fim, cabe colocar a pergunta: qual sua dedicação para a pesquisa acadêmica? Não procure no mestrado ou no doutorado uma simples via para ter mais destaque no mercado em que atua e para agregar mais valor ao seu nome (tratado aqui como uma marca). Não faça também da Academia uma espécie de “plano B”. Pense seriamente na vida acadêmica, ainda que conciliando ela com outra atividade profissional (o que pode, aliás, contribuir muito para sua pesquisa). Pareceme um desvirtuamento, uma perda de tempo, e até mesmo uma desonestidade intelectual buscar na Academia alguma forma de status, no seio de uma equivocada estratégia de marketing pessoal e profissional. Seja sério naquilo que faz e envolva-se sinceramente e de maneira correta em seu trabalho, seja ele como advogado, seja como acadêmico. O reconhecimento devido ao bom profissional não deve ser confundido com a aparência disso, que é a busca vazia por status e prestígio.
Bibliografia ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. D. Ross. (Coleção Os Pensadores). São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 45-236. FOUCAULT, Michel. La fonction politique de l’intellectuel (1976). In: _____. Dits et écrits, vol. II (1976-1988). Paris: Gallimard, 2001, p. 109-114 HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. 1 CD-ROM. SAVIGNY, Friedrich Karl von. Traité de droit roman. Tome I. Tradução de Charles Guenoux. Paris: Firmin Didot Frères, 1840. UNGER, Roberto Mangabeira. Uma nova faculdade de direito no Brasil. Cadernos FGV Direito Rio, vol. 1, “Educação e Direito”, Rio de Janeiro: Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas, novembro, 2005.