Olhares do Mundo - Edição Especial África

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OLHARES do MUNDO

2016 edição 05

Universidade Presbiteriana Mackenzie



OLHARES do MUNDO Revista produzida pelos alunos do Curso de Jornalismo do Centro de Comunicações e Letras (CCL) do Instituto Presbiteriano Mackenzie Direção do CCL Prof. Dr. Alexandre Huady Torres Guimarães Coordenação de Curso Prof. Dr. André Cioli Taborba Santoro

digital_ o mundo em suas mãos

Coordenação Editorial Prof. Drª Márcia Detoni Projeto Gráfico Anne Caroline Gonçalves e Bruno Leão Endereço: Rua Piauí, 143 – CEP 01241-001 Fone: (11) 2114-8320 – São Paulo – SP www.mackenzie.com.br

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ao leitor África em foco Praticamente invisível no noticiário internacional, a África foi o continente escolhido para esta edição especial de “Olhares do Mundo”. Nossa equipe de reportagem encarou o desafio de olhar com mais atenção para países com os quais o Brasil compartilha tanta história e cultura e abordar questões, muitas vezes dramáticas, que raramente aparecem na mídia nacional. Sabemos que as verdades do continente africano são cruéis e inconvenientes demais para os que leem o jornal no café da manhã ou para os telespectadores do horário nobre, mas ignorar os conflitos que assolam o continente é permitir a perpetuação da violência e da exploração gananciosa de recursos naturais. Enquanto a guerra na Síria recebe espaços diários no noticiário internacional, o mundo fecha os olhos para o holocausto na República Democrática do Congo, onde seis milhões de pessoas morreram desde os anos 1990 no mais sangrento conflito desde a II Guerra Mundial.


O Jornalismo Internacional é estratégico na mediação entre as nações. É pela janela da mídia que sabemos o que se passa fora de nossas fronteiras e desenvolvemos uma noção sobre o mundo e outros povos. A quase ausência da África no noticiário fortalece e enraíza o pensamento eurocêntrico no Brasil, impedindo o país de valorizar suas próprias raízes e de adotar políticas externas mais solidárias. O objetivo desta edição foi aproximar os estudantes do 6° semestre de Jornalismo de um continente até então desconhecido por eles e apresentar ao leitor de “Olhares do Mundo” alguns dos acontecimentos de maior relevância na área social, política e econômica da África sem medo do desassossego que alguns fatos possam causar. O conhecimento e a indignação provocam reação e mudança de atitudes, algo tão necessário no momento em que o Brasil recebe tantos refugiados africanos, castigados pela violência ou pela fome.

A elaboração da pauta foi precedida de discussões em sala de aula sobre a história do continente e os seus desafios atuais. Todas as reportagens contam com entrevistas originais, realizadas por e-mail, troca de mensagens em redes sociais ou videoconferência. O interesse por países de língua portuguesa, como Angola e Moçambique, era natural, mas a maioria das matérias foi redigida a partir de informações e entrevistas em inglês. Como coordenadora do grupo de jovens repórteres que assinam esta edição, sou testemunha de um trabalho feito com grande dedicação e um imenso respeito pelas nações africanas. Confira nas páginas a seguir.

Prof. Drª Márcia Detoni São Paulo, junho de 2016.


sumário 9. Holocausto no Congo deixa seis milhões de mortos Por Daniele Rodrigues, Danielle Fernandes, Deborah Delaye e Vivian Estrela

14. Corrupção e cobiça impedem a paz, lamenta brasileiro que comandou a missão da ONU no Congo Por Ane Macedo, Bruna Pinheiro e Juliana Fernandes

21. Investimentos chineses ajudam a África, mas mantêm o continente subdesenvolvido, dizem analistas Por: Daniel Zanata, Raphael Taets e Victor Silva

27. Após uma década de intensas relações comerciais com Moçambique, Brasil interrompe investimentos Por Anne Caroline Gonçalves, Bruno Leão, Cibele Mendes, Rebeca Bergue e Victor Reche

32. Brasil ajuda Moçambique na luta contra o HIV Por Beatriz Benfatti, Rodrigo Bitar e Sonia Cury

39. Crianças transformadas em máquinas de guerra Por Camila Vietri, Cláudia Custódio, Júlia Falconi e Louise Daud

44. Eliminar casamento prematuro é grande desafio para o desenvolvimento de Moçambique Por Isabela Lisboa, Marina Moreno, Tayná Rudge, Rebeca Lucena e Isabela Imbimbo


48. Uma corrida para salvar vidas Por Guilherme Veloso

52. Financiamento saudita de seita islâmica radical incentiva o terror na Nigéria Por Gabriel Neves e Vitória Mantovani

57. Em 15 anos, Angola alfabetiza a maioria de suas mulheres Por Camila Eneyla, Danielly Bezerra e Jéssica Moraes

62. Ativistas lutam por respeito aos direitos humanos em Angola Por Débora Duarte, Larissa Maida, Mariana Souza e Rubia Chikos

67. Fugindo da crise econômica em seu país, angolanos encontram dificuldades semelhantes no Brasil Por Lucas Valim, Matheus Riga e Vinicius Ribeiro

72. Disputa por empregos provoca ataques xenófobos na África do Sul Por Aline Oliveira, Douglas Oliveira, Mariana Perbone e Victoria Köhler

78. Negros encontram representação na ancestralidade egípcia Por Beatriz Araújo, Beatriz Izzo, Hanna Oliveira e Marinna Guglielmoni


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ÁFRICA CENTRAL

Holocausto no Congo deixa seis milhões de mortos Considerado o maior e mais sangrento conflito desde a Segunda Guerra, o combate na República Democrática do Congo já dura 23 anos. Milícias e grupos rebeldes interessados no contrabando de minérios atacam vilarejos, estupram mulheres, matam inocentes e provocam ondas de refugiados. A comunidade internacional e a mídia silenciam.

Por Daniele Rodrigues, Danielle Fernandes, Deborah Delaye e Vivian Estrela

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ica em recursos naturais, a República Democrática do Congo poderia ser a representação de um paraíso tropical no coração da África não fosse a cobiça de países vizinhos e empresas internacionais por ouro, diamante, cobalto, cobre, carvão e coltan (usado na indústria eletrônica). A disputa por minérios envolve a região numa guerra que já deixou cerca de seis milhões de mortos desde 1993. O conflito, praticamente ignorado pela imprensa e a comunidade internacional, é considerado o maior holocausto da história.

As chacinas, estupros e sequestros de mulheres e crianças se tornaram armas de guerra e servem para desestabilizar as comunidades, provocando miséria e ondas de refugiados. Cerca de 80% da população vive abaixo da linha da pobreza, com menos US$1,25 por dia. A guerra no leste do Congo está vinculada aos conflitos étnicos da vizinha Ruanda. No início da década de 1990, milhares de hutus ruandeses buscaram refúgio no leste do Congo temendo perseguições das novas forças tutsis no poder. Entre eles, estavam rebeldes hutus que haviam

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participado de chacinas em Ruanda. Tropas tutsis invadiram o Congo numa caçada aos rebeldes, apoiadas por milícias de Uganda. Vilarejos locais foram tomados por homens armados que até hoje controlam as ricas áreas do leste do país e lucram com o tráfico ilegal de matérias primas. No total, 200 grupos rebeldes atuam no país, entre eles o poderoso e temido FDLR (Forças Democráticas para a Libertação de Ruanda). A principal dificuldade para conter as milícias, segundo a organização de ajuda humanitária internacional Friends of the Congo (Amigos do Congo), com base em Washington, é a falta de um governo legítimo que possa exercer autoridade e controle sobre todo o país. A ONG, criada em 2004 para ajudar na busca de uma solução de paz, diz que o fim dos combates depende de maior pressão internacional sobre Ruanda e Uganda para que cessem suas intervenções destrutivas e pilhagens, além da eleição de um governo responsável e confiável. Acusado de corrupção, o presidente do Congo, Joseph Kabila, filho do ex-ditador Laurent Kabila, está no poder desde 2001 sem conseguir pacificar o país. “O Congo continua a ser roubado por seus próprios

líderes, por outros países, por governos estrangeiros, por corporações estrangeiras e instituições multilaterais, como o FMI”, disse a Friends of the Congo em entrevista a nossa reportagem. O professor de História da África da PUC-Rio Alexandre dos Santos observa que a paz depende de uma grande vontade política, não apenas do presidente Kabila ou de seu eventual sucessor, mas de todos os chefes de Estado e de governo da região. Ele lembra que que a sobrevivência dos grupos armados se dá também pelo apoio que recebem dos países vizinhos.“O mais importante seria restabelecer essas autoridades regionais e locais para que o processo de reestruturação do país comece por elas e que se dê o devido apoio de segurança por meio de tropas do governo ou da Monusco (Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo) para que se evite o medo e se restabeleça o direito de representação e de expressão”, disse o professor. Santos observa que a distância entre as regiões em conflito e a capital é apenas um dos fatores que atrapalha o controle da atuação dos grupos rebeldes. A porosidade das fronteiras, a distância dessas regiões da

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capital Kishansa, a dificuldade de acesso e a grande área florestal na qual esses grupos se escondem são grandes empecilhos, mas nada se compara, segundo ele, a falta vontade política efetiva de alguns governos em combater determinados grupos. O jornalista Anjan Sundaram, correspondente no Congo do jornal “The New York Times” e da agência Associated Press, autor de dois livros sobre a guerra no Congo, condena a comunidade internacional por apoiar desmandos de Kabila. “Infelizmente, o mundo apoia líderes congoleses que usam o Exército para manter a paz, mas são corruptos e destroem instituições nacionais. Isso apenas fortalece o ciclo de violência”, disse ele em entrevista por e-mail.

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Segundo o jornalista, a vida dos congoleses é vista como algo menor. “O mundo não lamenta as mortes no Congo, só lamenta quando há mortes ocidentais. Isso faz com que a violência no Congo seja legitimada.” O refugiado congolês Lubangi Muniania, produtor musical que hoje vive em Nova York, também culpa a comunidade internacional pelos acontecimentos. O jovem congolês perdeu familiares e amigos na guerra e teve parentes deslocados por causa dos combates. “Há uma única coisa que importa para a comunidade internacional: o dinheiro da mineração. Eu aprendi que o meu povo e os nossos sonhos não importam.”


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Corrupção e cobiça impedem a paz, lamenta brasileiro que comandou a missão da ONU no Congo Em entrevista por videoconferência a “Olhares do Mundo”, o general Carlos Alberto Santos Cruz, atualmente em Brasília, critica a falta de esforços das lideranças políticas locais e internacionais para por fim aos conflitos na República Democrática do Congo.

Por Ane Macedo, Bruna Pinheiro e Juliana Fernandes

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general Carlos Alberto Santos Cruz liderou as forças de paz da ONU na República Democrática do Congo por dois anos e meio, de junho de 2013 a dezembro de 2015, comandando um efetivo de 20 mil soldados. O general foi escolhido para a missão depois do sucesso na operação de paz do Haiti, que contou com tropas brasileiras. Quando Santos Cruz chegou ao Congo com uma brigada de intervenção, o país estava sendo ameaçado pelo grupo rebelde M-23, milícia guerri-

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lheira que instaurou o terror no país africano com o apoio de Ruanda e Uganda. O general conta que, no último ano em que esteve lá, o M-23 matou cerca de 500 pessoas com facões e machados. Os corpos estavam decapitados ou mutilados. Vilarejos inteiros foram dizimados para o espólio de minérios e outros recursos naturais. A brigada de intervenção, comandada pelo brasileiro, conseguiu fazer com que os rebeldes recuassem, mas o país continua mergulhado em violência. Em entrevista a “Olhares do Mundo” por


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videoconferência, o general, que retornou a Brasília no final da operação contra o M-23, relatou o que vivenciou no Congo.

Por que esse conflito é tão sangrento, com os rebeldes massacrando a população indefesa? É uma história muito longa de agressão e opressão civil. Os grupos armados vêm de uma herança onde os mais fortes podem fazer o que quiserem com os mais fracos, são o senhor da vida e da morte dos mais fracos. Assim foi na escravidão, assim foi no colonialismo e assim continua. Estupram mulheres, entram na casa e comem o que querem, pegam tudo, botam fogo na casa. Sequestram e levam as crianças para o grupo armado. Fazem uma distorção histórica de violência e impunidade. E, para o grupo dominar aquele ambiente, aquelas vilas que controla, impõe o terror. E o terror é para todo mundo. Então, as pessoas mais vulneráveis, mais fracas, sofrem muito. Por isso, as pessoas arrumam tudo, e fogem, vão para o campo de refugiados. Nele, há comida e existe uma segurança fornecida

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pelo Exército. Mas, para elas, é uma realidade muito triste, pois no campo de refugiados não existe nada que seja seu. Você tem uma barraca de palha; tudo o que você tem é a roupa do corpo, e a sua próxima refeição depende de quem vai te dar. Há muitas críticas à comunidade internacional por falta de ajuda às populações vulneráveis. Como o senhor analisa a ajuda humanitária levada ao Congo? Tem as agências de fundos de programas e as ONGs. A coordenação e a visibilidade são precárias, quase zero. Há algumas muito boas e outras não. A “Médicos sem Fronteiras” é uma das boas. A administração deles é extremamente boa. O dinheiro que recebem, gastam em torno de 10% com a própria administração. Então eles conseguem ser produtivos. Um outro problema é de investimento em infraestrutura. Eu ajudei muito as ONGs. Muitas têm pessoas muito novas que não sabem o que fazer, pois não têm experiência, mas querem ajudar. Todas as agências e ONGs, tinham que usar 30% de seu dinheiro em infraestrutura. Pois sem, não há acesso. Não adianta só ter boa von-


tade. Se construírem um poço de água perto da casa de uma mulher que anda 5 km com um galão de 20 litros de água na cabeça, já vai melhorar. Ela pode andar 2 km. Tem que investir até o problema ser resolvido, se não, não será reduzido nunca. E quem desvia verba tem que ser preso. A prestação de contas devia estar na internet para todo mundo ver.

vida muito sofrida. Na zona rural, nessas vilas onde existem grupos armados em volta, tem problema de água, de infraestrutura, não tem escola, não tem saúde, não tem nada.

Como é a vida dos moradores do Congo nas regiões que não estão enfrentando conflitos?

Isso é muito difícil. Em primeiro lugar, o que eu vejo internamente é que as disputas pelo poder são muito acirradas, complicadas, ela é mais importante que as pessoas. Outra coisa, na área internacional, [obter] ajuda internacional financeira é mais importante que [ajudar]as pessoas. Não só no Congo, isso tem que melhorar nos outros países também. As pessoas têm que ter mais motivações dos que os objetivos políticos. Por exemplo na Síria, onde os objetivos políticos eram tirar o Bashar Al Asaad; para isso, é preciso destruir o país? Matar 300 mil civis? Milhões de refugiados? Não tem saída. É sim um sofrimento humano, mas com o qual você não pode se acostumar. Tem que ser inconformado com aquilo que se vê todos os dias, para querer mudar.

O Congo é um país que tem algumas cidades muito grandes. A capital, por exemplo, tem 10 milhões de habitantes. É uma cidade moderna, com tudo o que você imagina, com telefonia celular melhor que a nossa. E há algumas cidades grandes, como Goma, que tem de tudo, como restaurantes muito bons. Há muita gente com muito dinheiro, mas a grande massa da população é extremamente pobre. Parece que todo mundo tem uma criança. Todo mundo anda com um neném amarrado nas costas, carregando lenha na cabeça, galão de água… Estão sempre transportando alguma coisa, caminhando quilômetros e quilômetros. É uma

Quais são os caminhos para a paz no Congo?

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Qual é a sua opinião sobre o silêncio da imprensa internacional sobre a guerra no Congo? Há muitas coberturas na Síria e poucas sobre o massacre de congoleses. A imprensa é que ela é muito pobre nessa parte de cobertura internacional. Há um centro de influência do jornalismo. Por exemplo: “New York Times”, “Washington Post”, “Miami Herald”, na televisão, “CNN”. Na França, há o “Le Monde”. Na Inglaterra, a “BBC”. E o Brasil, infelizmente, fica muito afastado dessa cobertura internacional. Na África, só as grandes redes têm correspondentes. A cobertura jornalística da África é feita por veículos de comunicação dos EUA, da Europa e pela Al Jazeera (do Catar). A Europa (cobre) porquê tem 14 países na África que falam francês. No Brasil a mídia chamou atenção um pouco para o Congo porque eu fui para lá. Às vezes, morre oito ou dez em um atentado terrorista na Bélgica. Na França, Alemanha ou seja onde for, tem uma grande cobertura internacional. Lá 50 morrem em um dia ou mais e não sai em nenhum jornal. Ou seja, nossa imprensa é muito isolada dos acontecimentos internacionais. Ela compra alguns programas como o Big Brother, que tem 15 edições, 20, mas não faz cobertura internacional séria.

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Há previsão de eleições para o final de 2016. Seria o começo de uma solução para a paz? No Congo, este ano, está prevista uma eleição para Presidência, mas ainda está indefinido se vai acontecer ou não. Está previsto na Constituição, mas, para fazer a eleição, tem uma distância. Nos últimos cinco anos, não houve cadastramento eleitoral. Então todo mundo que tem ou fez 18 anos nestes últimos cinco anos está fora das eleições porque não tem título de eleitor. Deixa-se de fora 5 milhões de pessoas. Isso vai gerar uma frustração. É onde está a energia, a força. Você olha as manifestações na rua, a quantidade de gente nova querendo participar do processo. Fazer eleição, mas não fazer o cadastramento num pais de 75 milhões de habitantes, que é a metade do Brasil em tamanho e que não tem estrada, não tem nada, é muito complicado. É tudo muito difícil. Então, a chance de ter violência no processo político é muito grande.


Entenda o

Congo A República Democrática do Congo passou a ser patrimônio pessoal do rei Belga Leopoldo II em 1885. Movido pela ganância, o monarca ordenou atrocidades na exploração das riquezas naturais da região, principalmente o látex e o marfim. Submetidos ao trabalho escravo na extração, os congoleses carregavam cargas pesadíssimas e eram brutalmente açoitados e castigados quando não conseguiam cumprir as metas estabelecidas pelos feitores. Muitos tiveram pés e mãos decepados.

Entre 1890 e 1910, 8 milhões de africanos foram mortos. As denúncias do genocídio fizeram com que o rei perdesse o território, transferido para o domínio da Bélgica, mas os abusos continuaram. Em 1960, a busca pela independência foi marcada por violência e muitas mortes. Presidentes autoritários permaneceram no poder, mantendo privilégios para seus correligionários em meio a um cenário de corrupção e pobreza. O massacre de tutsis por hutus, em 1994, em Ruanda, trouxe ainda mais sofrimento. O governo de Ruanda invadiu o Congo em busca dos rebeldes hutus responsáveis pelos atos, iniciando intensos conflitos armados. A vizinha Uganda também financiou muitos grupos rebeldes em apoio a repressão contra os hutus. Atualmente, 80 grupos rebeldes e milícias atuam no leste, perto da fronteira com Ruanda e Uganda. Há uma forte disputa pelos recursos mineiras da região, com expulsão e massacre de moradores locais. A violência, que inclui saque de vilarejos, chacinas, estupros e sequestros de meninos, usados como soldados, e de meninas, usadas como escravas sexuais, provocou o deslocamento de quase 2,5 milhoes de pessoas.

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ÁFRICA SUBSAARIANA

Investimentos chineses ajudam a África, mas mantêm o continente subdesenvolvido, dizem analistas Chineses injetam bilhões de dólares em países africanos em busca dos recursos naturais necessários ao seu crescimento, porém, a fraca indústria local pode ser destruída pela concorrência com os produtos baratos do gigante asiático.

Por: Daniel Zanata, Raphael Taets e Victor Silva

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á quatorze anos, a China ocupou o lugar dos Estados Unidos como o principal parceiro econômico e comercial da África. Países como Zimbábue, Angola, Gana, Zâmbia, Sudão e Etiópia são hoje grandes parceiros dos asiáticos, que avançam pelo continente africano em busca de recursos naturais, como petróleo, minérios e terras cultiváveis para garantir o próprio crescimento. Analistas ouvidos por “Olhares do Mundo” dizem que a parceira é altamente benéfica para o

desenvolvimento do continente, mas pode manter a África como um provedor de matérias primas, dificultando a industrialização local. A China anunciou, recentemente, um investimento de cerca de US$ 70 bilhões no continente africano, valor superior ao PIB anual de países como Grécia e Portugal (2014). Na última década, segundo uma pesquisa da organização AidData e do Center for Global Development (CGD), o gigante asiático já havia investido US$ 75 bilhões

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em aproximadamente dois mil projetos que abrangem desde o desenvolvimento de infraestrutura e indústria, até a redução da pobreza e melhorias na saúde pública. Robert Rotberg, professor da Universidade de Harvard, especializado em governanças globais, direitos humanos, democracia e África Subsaariana, observa que a prosperidade da África depende de um contínuo crescimento chinês, além de aumentos cada vez maiores de repasse em forma de investimentos no continente. Sem o capital injetado pelos asiáticos, a África, como um todo, voltaria a uma posição de difícil evolução e desenvolvimento social e econômico, um futuro com poucas perspectivas ou, como nas palavras do professor, “sombrio”. Ele, no entanto, adverte que o capital chinês traz também enormes desafios para o continente, como a possibilidade de os produtos baratos da China destruírem a já muito enfraquecida e pouco desenvolvida indústria local. A geração de empregos, ao invés de incentivada, seria cada vez mais desmotivada. Para o professor, “o resultado disso seria o sofrimento enorme que as indústrias locais enfrentariam”, com cada vez mais pe-

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quenos e médios negócios sendo fechados e funcionários sendo demitidos. A economia dos países, ao invés de prosperar nos mais diversos ramos, ficaria, assim, restrita somente à agricultura. “A China falha em não transferir tecnologia. A China não gosta de africanos. Ela está mais interessada na influência que conseguirá do que na melhoria do continente africano”, disse o professor em entrevista por e-mail à nossa reportagem. Altair Maia, economista especializado em comércio exterior, diretor do site Africanner e autor do livro África, um negócio da China, salienta que os interesse da China na África tem visão de longo prazo: “Somente a presença dos chineses em território africano já seria motivo para largo consumo dos produtos chineses”. Os negócios, desta forma, se tornam altamente lucrativos para os asiáticos, uma vez que eles conseguirão adquirir matérias primas por preços baixos e ainda expandir o comércio de seus produtos industrializados, aumentando o lucro. Os investimentos da China na África estão diretamente relacionados às necessidades do país por terras agrícolas e recursos naturais. O acelerado crescimento econô-


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mico fez da China um dos mais potentes países do mundo nos últimos anos. A sua expansão comercial e investimentos na indústria, somado a sua enorme população, que beira a casa do 1,4 bilhão de pessoas, também passou a exigir mais investimentos governamentais. Isso porque a China já não consegue mais dar conta da produção de alimentos para consumo interno e suas fábricas demandam muita matéria prima, que precisa ser comprada de outras nações. As parcerias na área de agricultura tem muita importância por conta do alto número de habitantes que a China precisa alimentar. A população chinesa tem deixado o campo para trabalhar nas grandes cidades, o que poderá ocasionar uma crise alimentícia em pouco tempo – há menos de 25 anos, 80% da população morava no meio rural. Em 2013, já são 60% nos centros urbanos e apenas 40% vivem no meio rural. Para evitar este problema, os chineses precisam de novas alternativas de fornecedores de alimentos, como a África, que possui terras férteis e território vasto, podendo servir como um grande celeiro para a China, assim como a América Latina é para boa parte do mundo. No setor industrial, segundo os especia-

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listas, existem tópicos que precisam ser seguidos para que os investimentos chineses na África sejam bem aproveitados. Há, principalmente, a necessidade de transferência de tecnologia, recursos financeiros e de mão de obra especializada, que colocariam as novas indústrias para funcionar e iniciariam a movimentação do mercado no continente. Mas quem também se beneficiaria com isso é o setor de infraestrutura, que poderia se desenvolver com o investimento chinês. Mas há toda uma questão envolvendo a transferência de tecnologia da China para o continente africano: se as relações comerciais entre os dois são tão intensas, por que não se vê essa cooperação para o desenvolvimento tecnológico? A geração de empregos para os africanos, apesar dos avanços, ainda é uma incógnita, diz Maia. Isso porque, a cada ano, mais chineses chegam no continente, formando espécies de colônias na África. A necessidade de mão de obra especializada poderia gerar uma concorrência desigual entre os povos, mantendo os nativos sem condições de prosperarem financeiramente. Para o economista, a pergunta, que somente será respondida em cem ou duzen-


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tos anos é: “Teriam as jovens e incipientes nações africanas força suficiente para segurar essa ‘onda amarela’, ou nesse espaço de tempo veríamos o continente negro se transformar em continente amarelo?” Invasão pela moeda Os chineses também pretendem usar sua moeda, o yuan, para aumentar a influência na África. A expansão para novos mercados fortaleceria a divisa chinesa, assemelhando-a ao dólar e ao euro, que têm aceitação mundial. “À medida que a influência chinesa for aumentando, num país ou no outro, haverá a necessidade de se agilizar as negociações, adotando-se a moeda onde o comércio for mais forte”, explica Maia. Para ele, esta seria uma boa decisão, principalmente para os asiáticos, pois “no médio e longo prazo, esse é o caminho para a consolidação da presença chinesa no continente.” Países africanos, como o Zimbábue, acham positiva a adoção da divisa chinesa. Em 2009, a moeda zimbabuana atingiu altos índices de inflação, levando o país a utilizar o dólar norte-americano e abrir mão do dólar local. “O Zimbábue sofre de um problema

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de escassez de cédulas em sua economia, então ele aceita notas de outros oito países, incluindo a China, como moeda corrente”, explica Mark Ellyne, professor da Universidade do Cabo, especializado em política macroeconômica em países de baixa renda, política monetária e cambial. Recentemente, o Zimbábue chegou a um acordo que prevê o perdão de uma dívida de 40 milhões de dólares em troca da adoção da moeda chinesa. Além do dólar americano e do yuan, o país tem como moedas oficiais o euro, a libra esterlina (Reino Unido), o yen (Japão), o rand (África do Sul), o pula (Botswana), a rupia (Índia) e o dólar australiano. Para Ellyne, os países que têm a economia sob controle não gostariam de substituir suas moedas. “Essa ‘dolarização’ geralmente ocorre porque a moeda nacional tem um crescimento rápido em valor e os residentes não querem segurá-la”. Com isso, o sistema multimonetário do Zimbábue não é interessante para os outros países, que preferem converter as moedas estrangeiras em bancos comerciais na taxa de câmbio da moeda local.


ÁFRICA ORIENTAL

Após uma década de intensas relações comerciais com Moçambique, Brasil interrompe investimentos Durante o governo Lula, o país buscou uma aproximação maior com a África, mas a crise política e econômica do governo Dilma alterou este cenário. Com uma retração de 20% nas trocas comerciais, empresas como a Vale vendem ativos.

Por Anne Caroline Gonçalves, Bruno Leão, Cibele Mendes, Rebeca Bergue e Victor Reche

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crise econômica e política brasileira tem repercutido em suas relações exteriores, afetando diretamente o relacionamento com países africanos. Muitas empresas brasileiras que a partir do governo Lula (2003-2011) iniciaram ou intensificaram projetos no continente agora encerram seus investimentos, mantendo apenas as obras já iniciadas. Uma das grandes responsáveis pelas iniciativas desenvolvidas na cidade de Tete,

no noroeste de Moçambique, a mineradora brasileira Vale chegou a vender 15% de seus ativos de carvão na região para a japonesa Mitsui & CO. Ao mesmo passo, países como China e Índia vem conquistando território, figurando entre os principais investidores do continente. Os chineses tornaram-se o maior parceiro comercial africano em 2012, com investimentos em extração de minério, petróleo e em obras de infraestrutura. Para Celso

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Marcondes, coordenador dos projetos de África do Instituto Lula, o interesse chinês é preocupante. “A China tem uma visão extremamente pragmática. Em geral, se oferece para construir algo que os países africanos precisam, como hospitais ou aeroportos, e em troca pede para explorar determinadas regiões do país, em busca de produtos agrícolas e petróleo”. Paulo Rage, diretor da Câmara de Comércio Brasil-Moçambique, enxerga “um potencial de mercado em crescimento na África”. Ele explica que o desenvolvimento de projetos brasileiros no território moçambicano traz um retorno significativo, apesar do pequeno mercado consumidor e do baixo Produto Interno Bruto (PIB). “Em Moçambique, a concorrência é pequena. Isso possibilita um melhor aproveitamento do mercado, levando grandes empresas (internacionais) a investirem lá”, completa Rage. Além das questões econômicas, a relação entre os dois países permite uma troca cultural e de experiências nas áreas de educação, saúde e assistência social, melhorando a imagem do Brasil no exterior. Já Moçambique, ganha um aprendizado por meio da experiência brasileira, além de oportuni-

dades de desenvolvimento e emprego. Segundo Marcondes, este é o diferencial brasileiro no continente. “O maior produto que o Brasil tem de exportação são suas políticas públicas”, explica. Um exemplo claro disso é o Programa de Aquisição de Alimentos na África, com um modelo semelhante aos implantados no Brasil. Nele, o governo moçambicano oferece assistência social e financiamento aos produtores rurais, comprando essa mesma produção para distribuir em merendas escolares, gerando benefícios aos dois setores. Entretanto, nem sempre os moçambicanos veem com bons olhos as iniciativas estrangeiras no país. O morador de Moatize, Mohomed Rafique, é um exemplo claro disso. Em entrevista por e-mail, o jornalista da Radio Moçambique reclama que os projetos desenvolvidos por empresas estrangeiras visam apenas o lucro, havendo pouca preocupação com a população. Alguns empreendimentos brasileiros em Moçambique também geram desconfiança. O ProSavana, por exemplo, é um programa desenvolvido pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) em parceria com o Japão, ganhando destaque como um

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dos principais projetos brasileiros em andamento. Vários agricultores temem, no entanto, perder a soberania sobre suas terras. O projeto busca implantar um modelo de produção agrícola que destaque a produtividade por meio do uso de tecnologia no norte de Moçambique, envolvendo 14 milhões de hectares. “De um lado se tem um apetite das grandes empresas preocupadas exclusivamente em ganhar dinheiro, querendo que parte desta produção seja levada aos seus países. Por outro lado, tem a necessidade de se administrar milhares de pequenos produtores que precisam adquirir confiança no processo e ter de fato o acordo cumprido”, explica Marcondes. A presença da Vale também causou protestos no país. Aproximadamente 400 pessoas bloquearam uma estrada, em 2013, contra a realocação de moradias promovida pela empresa para a construção de uma mina. A indenização oferecida às famílias foi o equivalente a R$4.000. Para Marcondes “criou-se uma situação de pressão muito grande na Vale e fez com que ela perdesse prestígio não só nacionalmente como até internacionalmente”.

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Apesar dos percalços, a imagem do Brasil em Moçambique é positiva. João Bosco, presidente do Instituto Brasil-África, ressalta que o governo brasileiro tem promovido esforços para esclarecer as questões em disputa. “Os acidentes de percurso podem ser resolvidos e eu tenho confiança de que os vários interesses de ambos os países serão colocados sobre a mesa”, acrescenta. Foi durante o governo Lula que as relações entre Brasil e África se intensificaram. O Ministério das Relações Exteriores adotou uma política voltada para os países africanos e sul-americanos, mudando o cenário comercial brasileiro, uma vez que sua política externa era centrada na Europa e na América do Norte. A intenção, segundo o coordenador de África do Instituto Lula, Celso Marcondes, era deixar de lado a submissão que havia nas políticas entre o Brasil e os países europeus ou norte-americanos, procurando novos parceiros comerciais. Porém, com a presidente Dilma, esta relação com o continente africano acabou perdendo força. A política externa se modificou


e o empenho para manter este canal não foi mantido. “Dilma tem um perfil bastante diferente do Lula, ela é mais uma gestora, uma técnica. Uma pessoa mais vinculada ao trabalho do cotidiano do que alguém com carisma, força e com nome internacional”, afirma Marcondes. Além disso, a atual situação política do Brasil gera uma imagem negativa do país para parceiros comerciais. Isto é um agravante que dificulta a gestão da atual presidente, fazendo com que a política se volte para as questões internas. Para Bosco, é importante que “se resolva internamente, de

forma endógena, os problemas que o país tem, pois, o mundo olha para isso com um certo cuidado”. De janeiro a março deste ano, houve uma retração de 20,1% no intercâmbio comercial brasileiro com a África em relação à 2015, evidenciando as dificuldades econômicas que o país tem enfrentado. Somada à crise política e a mudança na estratégia de governo, temos um cenário que explica o desaquecimento da cooperação entre Brasil e África.

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Brasil ajuda Moçambique na luta contra o HIV Com apoio da Fundação Oswaldo Cruz e de pesquisadores e médicos brasileiros, moçambicanos conseguem deter a doença, que já chegou a atingir 20% da população, mas especialistas dizem que falta de vontade política e cultura local ainda dificultam o trabalho nos vilarejos.

Por Beatriz Benfatti, Rodrigo Bitar e Sonia Cury

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orte no combate à AIDS, o Brasil é nome certo no cenário mundial quando se trata de pesquisas e formas de tratamento da doença, principalmente na África, onde vírus HIV ainda representa uma grande ameaça. Em Moçambique a epidemia atinge cerca de um milhão e seiscentas mil pessoas, mais de 5% da população. Mas já foi muito pior. Chegou a 20% no inicio dos anos 2000. Atualmente, a faixa etária mais afetada está entre 19 e 25 anos, com 11,5%. Com a ajuda da Fundação

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Oswaldo Cruz (Fiocruz) e de pesquisadores e médicos voluntários brasileiros, a doença começa a ser controlada. Atualmente, Moçambique compra remédios antirretrovirais mais baratos produzidos no Brasil graças a quebra de patentes. A Farmanguinhos, fabricante dos medicamentos, doa 226 milhões de unidades desses por ano para o país, beneficiando cerca de 2,7 milhões de pessoas. Além disso, a Fiocruz está investindo desde 2009 na construção de uma fábrica de antirretrovirais e


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na formação de profissionais que possam atuar nelas para acelerar a distribuição dos medicamentos. Nas comunidades, a grande contribuição brasileira se da por meio de voluntários no programa Médicos Sem Fronteiras (MSF), que desde 2001 apoia o Ministério da Saúde moçambicano na oferta de cuidados a pessoas vivendo com HIV. O trabalho inclui a atenção direta a pacientes, ajuda no treinamento de equipes locais e a manutenção de laboratórios que realizam exames de carga viral, fundamentais para que se saiba se o tratamento com antirretrovirais está sendo seguido pelos pacientes e se está funcionando. Em Moçambique, uma em cada três pessoas abandona o tratamento antirretroviral depois de um ano. O país ainda é majoritariamente rural e muitas pessoas moram em vilarejos isolados, com dificuldade de se locomover até os postos de saúde. Isso faz com que 41% dos moçambicanos não tenham acesso aos medicamentos. “O que as pessoas em tratamento com antirretrovirais mais precisam não são só medicamentos, mas também conselheiros que conheçam suas realidades diárias e possam apoiá-las para superar obstáculos

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para aderir ao tratamento e permanecer sob cuidados efetivos”, disse Saar Baert, coordenadora do apoio a pacientes de Médicos Sem Fronteiras, em entrevista por e-mail a nossa reportagem. Na província de Tete, no noroeste do país, uma das estratégias desenvolvidas pelo MSF para aumentar a adesão ao tratamento foi a criação de grupos de apoio comunitários, formados por pacientes de um mesmo vilarejo. Eles se revezam na ida mensal aos postos de saúde e incentivam uns aos outros a persistir no tratamento. Quem vai ao posto apanha os medicamentos para todo o grupo e aproveita para fazer seus exames de avaliação. Até o fim de 2014, mais de 10.500 pessoas participavam desses grupos. Pesquisas realizadas desde os anos 1990, pelo Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, em parceria com o Conselho Nacional de Combate a Sida e Ministérios, indicam, no entanto, que ainda falta vontade política, investimento e acompanhamento. “Há muita teoria e pouca prática”, afirma Isabel Maria Casimiro, pesquisadora no Centro de Estudos Africanos na cidade de Maputo em Moçambique. Segundo ela, não


tem havido por parte da mídia ou do go- verno, campanhas permanentes e direcionadas para públicos especiais, com figuras publicas servido de exemplo. Além disso, não há preservativos suficientes para distribuir a população. Falta esperança e é isso que as equipes brasileiras no país tentam trazer um pouco a cada dia, comenta Isabel. São muitas as dificuldades. Na cidade de Maputo, por exemplo, Isabel conta que as pessoas chegam a esperar 12 horas para serem atendidas em um hospital, muitas vezes não há medicamentos nas farmácias, os gabinetes de testagem e aconselhamento não têm camisinhas. Outro grande problema, de acordo com a pesquisadora moçambicana, e que falar de Aids na África ainda é um tabu. As famílias não sabem o que se passa entre seus membros. “Em parte, este silêncio também tem a ver com o fato de a AIDS ter ligação com sexo, outro assunto que é tabu na sociedade e que não pode ser tratado por qualquer membro da família”, diz Isabel. É aí que entram as associações que lutam pelos direitos das pessoas com HIV e trabalham firme orientando-as.

A brasileira Ana Piedade Armindo Monteiro é vice-reitora na UniZambeze, em Beira, Moçambique. Seu foco em relação a AIDS é a prevenção, procurando entender os bloqueios e avanços no acesso aos serviços de saúde, analisando a sociedade e suas fragilidades como um todo. “O Brasil desde 1996 tem uma lei que garante os antirretrovirais às pessoas com HIV. Isso, entretanto, não acontecia em todos os países. A África do Sul e Moçambique só aprovaram distribuição gratuita de antirretrovirais recentemente, e essa demora levou esses países à alta prevalência da doença”, explica. O uso dos antirretrovirais corretamente pode fazer com que o vírus fique sob controle e a pessoa infectada adquira menos doenças relacionadas à baixa imunidade. No Brasil, houve a descentralização dos serviços de saúde para pessoas com HIV/ AIDS. Ana Piedade acredita que essa seria a melhor forma para Moçambique a-tender a grande demanda por tratamento. “Em meu estado, Pernambuco, há serviços específicos em várias cidades no interior: Petrolina, Salgueiro, Serra Talhada, Afogados da Ingazeira, Garanhuns, Carua-

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ru e outros municípios. São serviços criados com apoio dos governos estaduais, mas organizados e mantidos pelos governos municipais”, exemplifica. Em qualquer país, unidades de saúde são necessárias, e também a garantia de direitos sociais. Facilita o acesso à informação e o enfrentamento da doença pelas pessoas infectadas. Através da testagem para conhecimento da sorologia, distribuição de preservativos e atualmente há a terapia pré-exposição e pós-exposição, onde antes mesmo da AIDS se manifestar - através de doenças oportunistas - a pessoa em que foi detectado o vírus, tem acesso à medicação, o que não ocorria há dois anos. A preocupação, além do impacto que a AIDS tem na mortalidade do país, é o efeito devastador em outras áreas, como economia e educação. De acordo com o Banco Mundial, Moçambique tem cerca de 70% de sua população morando em área rural - o que dificulta o acesso das pessoas a hospitais com qualidade - e 49% da sociedade moçambicana é analfabeta. Cerca de 500 mil crianças perderam pelo menos um dos pais pela doença, com isso, os jovens se veem obrigados a se tornarem

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adultos antes do tempo, tendo que cuidar da casa e dos irmãos e abdicando dos estudos para poder trabalhar, em sua maioria, no campo. Falta tempo e dinheiro para estudar. No livro “Moçambique: O Brasil é aqui”, a jornalista Amanda Rossi fala da relação entre ambos os países e de como o Brasil investe na mineração, construção civil, agronegócio e é protagonista no combate a AIDS. Em seus relatos, ela conta como a cultura brasileira é forte no outro lado do mundo, as novelas são transmitidas para o país, as pessoas consomem mais o Brasil do que os próprios brasileiros. Talvez, por isso, os projetos transcorram com maior facilidade. Existe um diálogo direto entre ambas as partes, é como se as pessoas vissem o Brasil como o primo rico que deu certo. Falta um maior envolvimento do governo com esses projetos internacionais, apesar de darem apoio para que ocorram, o programa de combate ao HIV em Moçambique é quase todo financiado por doações internacionais, incluindo o Fundo Global. Isabel conta que não há a mesma atenção e que os fundos não são equilibrados. “A forma em como a saúde funciona em outras regiões não é a mesma de cidades maiores


onde concentra os setores públicos, privados, etc. Há coisas que funcionam devido a organizações, projetos, mas que têm um tempo de duração e não são sustentáveis, já que o Estado não garante a continuidade”. A AIDS é um problema de desenvolvi-mento, afeta a sociedade com maior incidência nas camadas com menos de 25 anos de idade, faixa etária sexualmente mais ativa e mais infectada pela epidemia. Moçambique é um dos países com maiores índices de pobreza, há problemas no acesso ao ensino secundário e superior, devido às fragilidades nas estratégias e políticas adotadas no país.

Em Moçambique, certos hábitos culturais, como casamentos poligâmicos, relacionamentos intergeracionais, podem contribuir para espalhar o HIV. Recentemente, foi proibida uma prática cultural típica do país, onde a mulher ao ficar viúva tinha que ser ‘purificada’ fazendo sexo com o irmão mais velho do falecido. Essa prática contribuía para disseminar o vírus e com sua proibição e substituição por outros rituais, espera-se reduzir a disseminação. As mulheres são a maioria contaminada pela doença, acredita-se que o motivo seja justamente os costumes.

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Crianças transformadas em máquinas de guerra Ex-menino soldado, Albino Forquilha relata suas experiências ao ser recrutado, aos 12 anos de idade, para lutar na guerra civil moçambicana. Hoje, como fundador de uma ONG que promove o desarmamento, ele já ajudou na reintegração de centenas de crianças em famílias próprias ou adotivas.

Por Camila Vietri, Cláudia Custódio, Júlia Falconi e Louise Daud

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os 12 anos, em 1977, o moçambicano Albino Forquilha foi raptado pelos guerrilheiros da Renamo (Resistência Nacional Moçambicana) para lutar na guerra civil que assolou o país após a independência de Portugal, entre 1975 e 1992. A vida rodeada por mortes e traumas enraizou-se em Albino, assim como em tantas outras crianças que tiveram sua inocência roubada. Hoje, aos 51 anos, ele atua como diretor de uma associação não governamental que tem por objetivo recolher armamentos e promover a paz para que nenhuma outra criança experimente o que ele sofreu.

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De acordo com a ONU, cerca de 300 mil crianças-soldados estão servindo exércitos ou grupos rebeldes ao redor do mundo. O recrutamento acontece pela abdução das crianças de suas casas e famílias, seja por acordos locais das facções com as comunidades em troca de segurança, ou por ação forçada, onde a criança muitas vezes presencia o assassinato de seus familiares. Em casos extremos, ela é obrigada a matar um de seus parentes para que o laço seja quebrado. A violência, além de física e sexual, é também psicológica. Instalada de maneira brutal com raízes profundas, priva as crianças de alguns de seus direitos básicos, como moradia e educação. Segundo um relatório da Unesco, publicado em 2013, cerca de 29 milhões de crianças que moram em locais de conflitos têm entre seis e onze anos e deveriam estar no Ensino Fundamental, mas não têm acesso à escola. Dessas, 12 milhões vivem na África. “Eu dormia com um revólver embaixo do travesseiro no internato onde eu estudava. Era uma zona de guerra. Cada estudante tinha uma arma para se defender contra os ataques, que não eram raros”, relata Albino,

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em entrevista por e-mail. Mas o pior ainda estava por vir. No primeiro dia de férias, o garoto de 12 anos foi recrutado no caminho de volta para casa, com mais dois amigos, pelos rebeldes da Renamo. A partir de então, a morte nunca foi tão familiar. Aprendeu a matar como quem jogava bola com os irmãos. A única formação que as crianças-soldados têm, segundo ele, é matar, roubar, violar, queimar e assaltar bens das comunidades e suas residências. “Em muitas situações, as crianças são transformadas em máquinas de guerra, de matança. As meninas são violadas sexualmente pelas figuras hierárquicas militares nas bases, tornam-se mulheres de comandantes e algumas são usadas para espionagens. Todas essas atrocidades as traumatizam de forma grave e requerem intervenções psicológicas”, comenta Albino. Depois de 90 dias de frieza e tiros sem propósito, um ataque a bombas lançado pelas Frelimo (Forças Armadas de Libertação de Moçambique), grupo de esquerda no poder, foi a oportunidade de Albino explorar sua coragem e resgatar parte da infância roubada. Correu por quatro horas em busca da calmaria e de outro som que não fossem bombas e gritos. “Cada


um dos presentes na base fugia a sua maneira e para o seu lado, sem direção.” Em 1995, três anos depois do acordo de paz entre Frelimo e Renamo em Moçambique, Albino fundou a Força Moçambicana Para a Investigação de Crimes e Reinserção Social (Fomicres), organização humanitária que já chegou a 26 mil famílias dirigidas por ex-combatentes de guerra através do projeto “Desarmamento Comunitário”. O projeto estimula a entrega de artefatos de guerra em troca de incentivos, ferramentas, equipamentos agrícolas e material escolar. O processo de trocas é feito por etapas que incluem eventos públicos pela promoção da paz liderados por aqueles que antes estavam na guerra. Essa interação promove a reinserção do indivíduo na comunidade que ele um dia atacou. A Fomicres também já promoveu a reintegração de 973 crianças em famílias próprias ou adotivas. Nos últimos 10 anos, o UNICEF, em parceria com diversas organizações não-governamentais, tem dado atenção especial ao problema das crianças-soldados, atuando em diversas regiões afetadas na África. Mas, segundo Albino Forquilla, há pouco atendimento psicológico. O mineiro Ricardo

Pires, que atua como voluntário do UNICEF em Nairobi, capital do Quênia, confirma que o processo de recuperação de uma criança traumatizada pelo recrutamento é muito complexo, e em alguns casos quase irreversível. “O impacto físico e psicológico nas crianças e em suas comunidades através de gerações não podem ser subestimados, e os traumas podem sim ser irreparáveis. Se recrutadas por grupos armados, a criança irá experienciar, testemunhar e até cometer assassinatos e outros tipos de violência, incluindo sexual”, afirma o brasileiro em entrevista a nossa reportagem. Algumas comunidades têm seus próprios rituais para ajudar a criança a superar a violência sofrida. Em Moçambique, por exemplo, qualquer pessoa que retornasse da guerra era acolhida com um ritual de purificação, próprio da cultura local. “São cerimônias dirigidas por curandeiros anciãos tradicionais da zona que, com todos os instrumentos para o efeito, processam a purificação da criança retornada da guerra na presença de toda comunidade, com o objetivo de lavá-la de todos os espíritos malignos adquiridos durante a guerra. Esse ritual tem um impacto psicológico bastante penetran-

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te na pessoa purificada, assim como nos membros da sua comunidade, pois todos passam a acreditar que o ex-militar ou ex-criança-soldado passou a ser uma pessoa normal, imediatamente aceita por todos da comunidade, podendo se casar e assumir responsabilidades na família e na mesma comunidade”, conta Albino. O UNICEF tem como missão dar assistência básica às crianças recém-chegadas, realizando parecerias com ONGs e governos. “Esses esforços são focados no tratamento imediato, que inclui comida, abrigo, roupas e cuidados básicos de saúde, também como o reencontro de crianças com suas famílias ou comunidades, dando suporte psicológico e oferecendo assistência de longo prazo para suas comunidades”, relata Pires. Segundo o voluntário brasileiro, embora o recrutamento de crianças continue sendo um grave problema, o UNICEF obteve um notável progresso nas últimas décadas, com milhares de meninos e meninas sendo libertados como resultado de planos de ação aprovados pelo Conselho de Segurança da ONU. “Nos últimos dois anos, alguns resultados concretos foram alcançados. Por exemplo, a Somália ratificou a Conven-

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ção de Direitos da Criança em setembro de 2015, e o governo estabeleceu uma unidade de proteção à criança nas forças armadas, pondo em prática mecanismos de entrega à ONU de crianças achadas em seu exército. No Sudão do Sul, desde o começo do conflito – e especialmente depois do acordo de paz assinado em 2015 – pelo menos 1300 crianças foram libertadas pelas forças armadas”, observa. Outros avanços podem ser verificados ao redor do mundo, como a criação de um dia internacional contra o recrutamento de crianças-soldados, o Red Hand Day, ou Dia da Mão Vermelha, celebrado em 12 de fevereiro. Além disso, em agosto de 2015, o Tribunal Penal Internacional ordenou, pela primeira vez, o pagamento de indenizações. Recursos do “Fundo Mútuo para as Vítimas” estabelecido pelo tribunal devem ser destinados a vítimas do ex-líder rebelde congolês Thomas Lubanga, o único condenado até hoje pela exploração de crianças como soldados. A condenação a 14 anos de prisão ocorreu em 2012. O Tribunal considerou a prática um crime de guerra. Muitas crianças que lutaram na organização rebelde de Lubanga foram indenizadas.


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Eliminar casamento prematuro é grande desafio para o desenvolvimento de Moçambique País ocupa a 10ª posição em número de uniões envolvendo crianças e adolescentes; gravidez precoce causa graves problemas de saúde e afasta as meninas da escola.

Por Isabela Lisboa, Marina Moreno, Tayná Rudge, Rebeca Lucena e Isabela Imbimbo

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casamento precoce em Moçambique é um dos principais desafios relacionados ao desenvolvimento humano no país. Segundo um levantamento do UNICEF, uma em cada duas moçambicanas com idade entre 20 e 24 anos tornou-se esposa antes dos 18 anos e uma em dez casou-se antes dos 15. Os dados colocam o país na 10ª posição no ranking dos mais afetados pelo casamento prematuro, em uma lista liderada pelo Níger. As uniões precoces ocorrem em áreas

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urbanas, mas são mais comuns em áreas rurais, onde pais forçam as meninas a se casarem com homens mais velhos em busca de um dote ou de uma redução nas despesas domésticas (uma boca a menos para alimentar). Outro fator que contribuiu para o casamento de adolescentes são os ritos de iniciação à vida adulta, que estimulam relacionamentos sexuais após a primeira menstruação.


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O sociólogo moçambicano José Gil Vicente, atualmente ligado à Universidade Salgado de Oliveira, em Niterói, afirma que o matrimônio prematuro não apenas reduz as oportunidades de progresso econômico e social das adolescentes, afastadas da escola, mas tem graves implicações para a saúde das meninas. A gestação e o parto nessa faixa etária estão associados a problemas tanto para a mãe, quanto para a criança. A taxa da mortalidade infantil em Moçambique está entre as mais altas do mundo, 150 bebês a cada mil nascimentos, reflexo de insatisfatórias condições de higiene e da saúde precária. No Brasil, a taxa é de 22 mortes a cada mil nascimentos e, nos países ricos, de apenas 3. Persilia Muianga, gerente da área de Proteção à Criança da organização não governamental World Vision Moçambique (Visão Mundial Moçambique), observa que a gravidez precoce, associada à falta de assistência médica, leva a um alto índice de fístulas obstétricas, uma abertura entre a vagina e a bexiga ou canal retal resultante de complicações no parto, através do qual urina e fezes escapam continuamente. Há também sério risco de morte durante a gravidez.

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Para enfrentar o problema, o governo Moçambicano, com ajuda da ONU e de organizações civis, divulgou em abril de 2016 um plano de ação com uma série de metas a serem atingidas nos próximos três anos, a Estratégia Nacional de Prevenção e Combate aos Casamentos Prematuros. Segundo Erika Miranda, especialista em proteção à criança do UNICEF Moçambique, os principais objetivos a serem alcançados até 2019 incluem a criação de um ambiente favorável à redução progressiva e à eliminação dos casamentos prematuros, com retenção das meninas na escola, prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, mudanças nos ritos de iniciação sexual e uma reforma legal para a proteção da criança e do adolescente. As ações também contam com grupos religiosos de diversas fés, rádios comunitárias e líderes comunitários. “A mobilização da sociedade como um todo é crucial para declarar o país livre da prática dos casamentos prematuros”, afirma. Para Vicente, as políticas públicas e as leis são fragmentadas, dispersas por diferentes códigos, e, mesmo onde parecem conferir um direito específico, como educação ou acesso à saúde, são pouco detalhadas, pre-


judicando uma execução bem sucedida. É fundamental, segundo ele, a formação dos núcleos de Comitês dos Direitos da Criança nas escolas contra o abuso e assédio sexual e a participação de diferentes setores da sociedade no desenvolvimento de ações concretas de proteção, defesa, garantia de direitos das crianças em situações difíceis e em via de casamento prematuro. Para a ativista Percina Meque Pérezo, do coletivo feminista moçambicano MovFemme, o combate ao casamento prematuro começa com a desconstrução do pensamento de que essas uniões são, de fato, casamentos. “São uniões forçadas. Casamento tem consentimento em ambas as partes e ninguém pode ser obrigado a casar”, afirma. A partir disso, são necessárias ações de conscientização a fim de combater esse tipo de união. O Movfemme promove e participa de diversas ações pelos direitos das meninas e mulheres moçambicanas. São debates em TV e rádio, reuniões regionais e internacionais e campanhas como a Marcha Mundial das Mulheres. “Nós criamos espaços de reflexão (como fogueiras feministas, conversas, palestras em escolas e marchas), com

vista a apoiar e fortalecer o conhecimento sobre os direitos humanos de forma geral e direitos humanos das mulheres de forma específica com o intuito de despertar a consciência de meninas e mulheres jovens”, diz Percina. Um dos desafios do governo e das organizações de defesa das crianças é convencer comunidades tradicionais a mudar os ensinamentos nos ritos de iniciação sexual após a primeira menstruação. Muitas meninas menstruam com apenas dez anos e, depois da cerimônia, são vistas como prontas para casar e ter filhos. Persilia, da World Vision Moçambique, salienta que as noivas jovens são, em sua maioria, dependentes dos maridos e sem acesso à saúde, educação e segurança. “Elas não estão fisicamente, nem emocionalmente prontas para se tornar esposas e mães. A nação também sente o impacto: um sistema que subestima a contribuição de mulheres jovens na sociedade limita suas próprias possibilidades. O casamento infantil drena países da inovação e de um potencial que poderia prosperar, reforça a desigualdade de gênero e viola os direitos humanos”, afirma a especialista.

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ÁFRICA SUBSAARIANA

Uma corrida para salvar vidas Na África, um dos maiores problemas de milhares de pessoas é a carência de remédios e de atendimento médico. As péssimas condições das estradas dificultam o acesso aos vilarejos. A ONG “Riders For Health” (Pilotos pela Saúde) treina médicos e motociclistas para chegarem aos lugares mais remotos da região subsaariana.

Por Guilherme Veloso

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os anos 1980, a África Subsaariana era praticamente inacessível, e muitas pessoas morriam por falta de cuidados médicos e de medicamentos. Havia grandes remessas internacionais de ajuda humanitária, mas o maior problema era a sua distribuição, muito precária na época, feita a pé e de bicicleta, atingindo apenas as pequenas comunidades próximas às grandes cidades.

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Especialistas diziam que isso se dava porque era impossível manter veículos funcionando naquela região da África. A falta de estradas e as péssimas condições existentes resultavam em avarias e muitos pneus furados. A situação impressionou o casal britânico Andrea e Barry Coleman, ambos apaixonados por motocicleta. Ao visitar comunidades atendidas pelas organizações assistenciais que apoiavam, em 1986, Barry e Andrea perceberam que as motos e veículos quebrados e


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abandonados pelas ONGs poderiam voltar a funcionar com pequenos reparos e manutenção adequada. Foi assim que o casal, com o apoio do americano Randy Mamola, uma das lendas do moto GP, criou a organização não governamental “Riders For Health” (Pilotos pela Saúde), propondo uma nova logística de distribuição de medicamentos e a adoção de motocicletas, mais adequadas às condições da África. Pilotos e mecânicos locais foram contratados e treinados. O projeto foi implantado inicialmente em Uganda, Gâmbia e Lesoto. No Lesoto, a frota inicial de 47 motos prestou serviços durante cinco anos sem sequer um acidente. Posteriormente, a ONG adquiriu também caminhões refrigerados, minivans e ambulâncias. Hoje, a “Riders For Health”conta com 470 funcionários, 95% deles baseados na África, gerenciando 1.700 veículos, viajando 12.986.668 km por cerca de 30 países, entre eles Uganda, Gâmbia, Quênia, Lesoto, Malawi, Nigéria, Zâmbia e Zimbábue. Um dos mecânicos treinados no programa foi Ngwarati Mashonga, do Zimbábue, atual diretor de operações da ONG. “Em outubro de 2001 comecei a supervisionar

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uma equipe de 41 funcionários e gerenciava cerca de 600 veículos. Com essa estrutura, a gente conseguia atender cidades que antes não possuíam nenhum acesso à saúde”, lembra ele em entrevista por e-mail. Uma das grandes dificuldades da organização, segundo Mashonga, é encontrar e treinar pilotos. Para suprir essa carência, a “Riders For Health” desenvolveu sistemas de treinamento para profissionais da saúde, inclusive de médicos, que incluem o ensino de técnicas de viagem e de manutenção dos próprios veículos. A gestão e operação da logística na área de transporte é tão importante para o funcionamento do projeto que Mashonga, após a graduação em Comércio numa universidade local, se especializou em economia de transportes pela Universidade da África do Sul (UNISA). Mashonga também estudou em diversas instituições no Reino Unido e na Bélgica, realizando mestrado em Logística Internacional e Gestão de Cadeia de Abastecimento pela Universidade de South Wales, no Reino Unido. A “Riders For Health” leva cuidados médicos a aproximadamente 21 milhões de pessoas e conta com o apoio da Organização


Mundial da Saúde. A ONG também presta aconselhamento a outras organizações humanitárias. “Nós estamos sempre abertos para ajudar, com diversos planos para estender o alcance da organização”, salienta Mashonga. Segundo ele, muitas instituições não têm a menor ideia do custo de se manter uma operação de distribuição na África. “No geral, o apoio prestado por algumas instituições não é consistente porque os veículos utilizados por elas não são muito resistentes e têm difícil manutenção”, comenta. “Além disso, os veículos não são trocados quando ficam velhos, aumentando ainda mais os custos de funcionamento e manutenção.”

Outro desafio da ONG é a alfândega. “As peças dos veículos, no momento da importação, não são consideradas como medicamentos. As taxas são muito altas e isso torna muito difícil a obtenção de peças para os veículos”, comenta. Atualmente, Mashonga conduz um novo projeto da “Riders for Health” em resposta ao Ebola na Libéria, atuando no planejamento, coordenação e controle das equipes para implementar, além dos projetos de gerenciamento de frotas, o transporte de amostras.

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ÁFRICA OCIDENTAL

Financiamento saudita de seita islâmica radical incentiva o terror na Nigéria De acordo com professores de Política Internacional ouvidos por “Olhares do Mundo”, o ensino da fé saudita, o wahabismo, no Norte da África induz a conflitos com a sociedade secular e leva muitos grupos muçulmanos a optar pelo terrorismo.

Por Gabriel Neves e Vitória Mantovani

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Nigéria, país mais populoso da África, com 174 milhões de habitantes, foi classificada em terceiro lugar, numa lista de 163 países mais atingidos por ataques terroristas, de acordo com o Índice de Terrorismo Global de 2015. O país fica atrás apenas do Afeganistão e do Iraque. Um dos principais grupos radicais que castigam a Nigéria é o Boko Haram, contrário à educação ocidental, principalmente de mulheres. Só no ano de 2014, o grupo matou 6.644 pessoas. Analistas

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ouvidos por “Olhares do Mundo” dizem que a violência no norte da África só irá acabar com a redução da miséria e com o fim do financiamento de seitas muçulmanas fundamentalistas que defendem a adoção da Sharia, o código de leis do islamismo. Em 2010, 60,9% dos nigerianos viviam na pobreza, segundo o relatório publicado pelo Escritório Nacional de Estatísticas da Nigéria. De acordo com esta porcentagem, 112 milhões de nigerianos suprem apenas mínimas necessidades com relação a alimentos,


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habitação e roupas. Segundo o professor de Relaçōes Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Flávio Pedroso Mendes, a baixa renda da populaçāo impulsiona o crescimento dos grupos fundamentalistas. “A população vivendo com baixa qualidade de vida material é introduzida a uma visão radicalizada da religião islâmica, criando condições para comportamentos radicais que se expressam na forma de terrorismo.” Os três grupos terroristas de maior relevância no continente africano, de acordo com o Departamento de Estado dos Estados Unidos são: Al-Qaeda, com ramificações por diversos países do Norte da África; Boko Haram, situado na Nigéria, principalmente na porção norte do país, e Al-Shabaab, estabelecido na Somália e atuante nos países da região. Ambos seguem wahabismo, uma vertente do islamismo sunita criada no século XVII por Muhammad ibn Adb Wahhab, que é conhecida pela intolerância e extremismo. O movimento sofreu um “crescimento explosivo” nas décadas de 1970 e 1980 e causou, na época, aproximadamente quatro mil mortes. Sérgio Gouvêa, pesquisador do tema na Universidade Fe-

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deral de Santa Catarina (UFSC), afirma que “esses três grupos compartilham, a grosso modo, dos mesmos ideais e objetivos, que seriam, resumidamente, o estabelecimento de um Estado Islâmico fundado sobre a Sharia.” O wahabismo é a seita islâmica oficial da Arábia Saudita, país que tem contribuído para a difusão de dogmas radicais. O pesquisador Maurício Silva Elder, professor de Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) observa que o ensino da fé saudita tem prejudicado os países africanos com população muçulmana. “Com o passar do tempo, crianças se tornam adolescentes e adultos, sua visão de mundo cunhada no ensino financiado por dinheiro saudita acaba por induzir a conflitos com a sociedade secular que os cercam’’, afirma. Para o professor da UFSC, uma “ajuda real a esses países seria cessar o financiamento para ensino das versões mais radicais do Islã e intensificar um ensino de uma vertente mais suave, de forma a criar uma próxima geração menos propensa a atos extremos, como a que foi gerada nos últimos 30 ou 40 anos.”


A religião tem sido preponderante na política nigeriana, já que o pais reúne etnias distintas. Em termos de religião, 50% da população é mulçumana, 40% cristã e 10% seguem outras crenças, em geral de origem tribal. Muzha Kucha, jornalista nigeriano e estudante de sociologia na Universidade de Kaduna, no centro-norte do país, salienta que as pessoas votam e apoiam líderes políticos baseadas em suas visões religiosas, o que intensifica o conflito em um país polarizado entre cristãos e muçulmanos. ‘’Politicamente, a parte sul da Nigéria tem argumentado que a parte norte dominou as posições do governo federal ao longo dos anos, é importante notar que a região sul é dominada pelos cristãos, enquanto a região norte é dominada pelo Islã. Isso também tem afetado a filiação partidária política e candidaturas’’, relata o jornalista. No norte do país, muitos se identificam mais com o Islã do que com sua etnia tribal de origem e foram, por isso, negligenciados política e economicamente durante décadas. Segundo Bright Onyekachi, professor de Ciência Política da Universidade de Covenant, no sudoeste da Nigéria, o prin-

cipal fator para o crescimento de grupos fundamentalistas é a insatisfação com a liderança do país. “Os países africanos foram amalgamados por seus mestres coloniais (europeus) devido à ganância, e, na minha percepção, esses países não sāo realmente unidos. Isso pode ser atribuído à presença de ocidentais, europeus e estrangeiros de outras partes que continuam mantendo posiçōes que aumentam a desuniāo das pessoas e das lideranças desses países.” Aproveitando-se do sentimento de abandono do governo central nigeriano para com os grupos muçulmanos do país, o Boko Haram surgiu com objetivo de tornar a Nigéria uma república islâmica. Tal islamização seria uma forma de compensar os muçulmanos pelas décadas de esquecimento e exclusão. Criado em 2002, o grupo acredita que a cultura ocidental reproduzida na sociedade seria a principal razão para os males no país e é necessário erradicá-la para combater a corrupção. Apesar dos eventuais conflitos causados pelo extremismo religioso, a intolerância de credo não havia sido fator de divisão fundamental na Nigéria até o iní-

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cio dos anos 2000. Desde 1980, setores da sociedade muçulmana do norte do país se mostravam descontentes pela impossibilidade do estabelecimento da Sharia em seus territórios. Foi apenas com a transição democrática de 1999 que a lei islâmica passou a ser aceita legalmente nas regiões muçulmanas do país, causando grande reboliço e sendo fator motivacional para os conflitos que assolam a região.

MUNDO 56 OLHARES do

Para Kucha, a solução de conflitos religiosos, que se tornaram politicos no norte da África, depende muito da ajuda dos guias islâmicos. “Grupos religiosos têm o dever supremo de pregar a tolerância em relação aos demais, porque os africanos são muito fervorosos e tendem a ouvir seus líderes religiosos. Os líderes religiosos tendem a afetar positivamente ou negativamente a Nigéria e a África como um todo”, conclui o jornalista.


Em 15 anos, Angola alfabetiza a maioria de suas mulheres Apesar dos avanços, os desafios ainda são muitos. Dentre eles, criar mais espaços dedicados ao ensino formal e implantar políticas públicas que garantam o desenvolvimento das mulheres.

Por Camila Eneyla, Danielly Bezerra e Jéssica Moraes

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o longo de 15 anos, Angola conseguiu um feito fundamental para o desenvolvimento dos países africanos: aumentar significativamente o número de mulheres alfabetizadas. Em 2001, apenas 25% das angolanas sabiam ler e escrever, enquanto 76% dos homens haviam frequentado a escola. Atualmente, segundo Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a população feminina dos 15 aos 24 anos apresenta uma taxa de alfabetização

de 66,6%, enquanto 79,8% dos homens de mesma faixa-etária são alfabetizados. O Ministério da Família e Promoção da Mulher tem desenvolvido, com o apoio de ONGs, políticas públicas para a população do sexo feminino nos mais diversos âmbitos, mas ainda há necessidade de medidas para amparar mulheres que mantêm suas famílias através do trabalho informal. A escritora e advogada Ana Zulmira da Silva, 24, funcionária do Ministério das Finanças, diz que as angolanas enfrentam enormes dificuldades para conciliar trabalho e criação

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dos filhos. “Muitas mulheres andam com os filhos recém-nascidos amarrados às costas porque não têm um centro infantil público para deixá-los. Elas percorrem as ruas da cidade dia e noite, enquanto vão à busca de sustento, expondo as pobres crianças a situações de risco.” Guida Manuel Gambando, 26, vende legumes e frutas em feiras de rua e sente a falta de apoio em relação às crianças. “As mulheres angolanas são muito trabalhadoras, esforçadas, elas fazem de tudo para manter a família. A sociedade angolana precisa construir escolas e ajudar as crianças e jovens desamparados.” A economista Dúrcia Feijó de Souza, 24, afirma que a mão-de-obra feminina tem grande valor para a construção de uma economia mais sólida e plural. “Muitas mulheres atuam no mercado informal, pois o processo pós-guerra, ainda em manutenção, dificultou em grande parte o ingresso de indústrias e investimento privado em Angola. Apenas nos últimos anos se vem refletindo em números consideráveis a entrada e a criação de novas empresas, propiciando o acesso dessas mulheres ao mercado formal”, explica Dúrcia.

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No ano de 1975, Angola mergulhou numa guerra civil que se desenrolou por 27 anos. Nessa conjuntura, o desenvolvimento do ensino formal foi prejudicado. As mulheres tiveram de sair de suas casas para prover o sustento das famílias. Não havia, assim, a oportunidade de passar pelos bancos escolares. “A maior parte dos homens não voltou para casa e as mulheres tiveram de levantar o país, reergue-lo. Elas passaram a ocupar os altos cargos e, então, hoje, você chega a Angola e encontra mulheres que têm muito dinheiro, mas elas ainda estão inseridas numa sociedade muito machista e conservadora”, relata a ativista e estudante de Relações Internacionais Suzana Maurício de 20 anos. A escritora Zulmira da Silva concorda. “A sociedade africana ainda é muito conservadora e machista. Ela inibe certas mulheres de aproveitarem as oportunidades que implicam em se ausentar do lar. Para a maioria dos homens africanos uma mulher bem-sucedida profissionalmente não será uma boa esposa.” A necessidade de se construir mais espaços dedicados ao ensino formal torna-se mais evidente através do depoimento de Su-


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zana. O pai da feminista se formou no Brasil e hoje reside em Angola. A mãe – que continua a estudar – ainda mora no Brasil. “Em Angola, o bom ensino é extremamente caro e a educação pública não tem qualidade. As escolas infantis são pouquíssimas. Minha prima de cinco anos estuda em uma escola turca em que a mensalidade custa R$6 mil. Muitas pessoas veem que estudar no exterior é mais em conta e muitos jovens acabam saindo do país. Se você quer dar uma boa educação para o seu filho, você tem de mandá-lo para fora.” Ela enfatiza ainda que, além de o estudo ser economicamente mais acessível no exterior, as oportunidades de se conseguir um bom emprego, com uma melhor remuneração, são maiores para os que estudaram fora. “Meu pai estudou na PUC e voltou para Angola para trabalhar. Lá, quem se formou fora, ganha um salário realmente digno e por isso ele voltou.” A economista observa que atualmente não há qualquer distinção de gênero no acesso às escolas em Angola. Há, entretanto, particularidades sociais, econômicas e culturais que determinam os diferentes destinos dados às mulheres e homens. “Al-

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gumas famílias, em dado momento, dificultam o acesso das mulheres às escolas por entenderem que elas têm a obrigação de se ocupar das tarefas domésticas. Tais fatos normalmente podem ser verificados entre as famílias com baixa condição social.” No que diz respeito à presença da mulher na política, a participação é maior que no Brasil. Aqui, são 45 deputadas em meio a 468 homens. Em Angola, são oito mulheres ocupando ministérios num universo de 36 homens. “São 83 deputadas entre 216 homens. Temos secretárias de Estado e não só, temos mulheres em posições que realmente transformam a situação da camada feminina angolana”, acrescenta a economista. Nesse panorama, veem-se duas Angolas: aquela em que progressos são alcançados e a outra, em que parte do estrato feminino ainda precisa ser incluído na agenda dos avanços sociais. “Aqui, ainda há necessidade de se elaborar mais políticas socais para mães e trabalhadoras. Por exemplo, quanto à licença de maternidade que é de apenas três meses e o número de faltas justificadas por doença dos filhos, consultas de rotina e outras situações”, comenta Dúrcia.


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Ativistas lutam por respeito aos direitos humanos em Angola Repressão aos movimentos de oposição ao governo, com força excessiva contra manifestantes, faz do país um dos maiores violadores das liberdades individuais e políticas, segundo relatório da Anistia Internacional.

Por Débora Duarte, Larissa Maida,

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Mariana Souza e Rubia Chikos

oaquim Moniz de Andrade, 23 anos, conhecido como Kim, milita num dos vários movimentos pela defesa dos direitos humanos em Angola desde os 18. Como outros jovens da capital Luanda, não teme sair às ruas para denunciar as arbitrariedades do governo de José Eduardo dos Santos, no poder há 37 anos. Kim conta que os órgãos de repressão no país são violentos e ele já foi agredido várias vezes. “O policial me dava soco na boca, imediatamente, fomos levados para um local onde fomos torturados. Nos batiam com ferro, chicote”, disse em entrevista via Facebook. Estudante de relações internacionais,

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Kim já trabalhou como repórter do site Central Angola 7311 e diz viver pela causa. “O anseio popular é maior em ver a mudança no país, desejo este que nos motivou a levar a cabo debates sobre os direitos humanos.” Angola aparece como um dos maiores violadores dos direitos humanos no Relatório da Anistia Internacional publicado em 2015 justamente pela forte repressão aos movimentos de oposição ao governo. Segundo a Anistia, os agentes de segurança usam força excessiva contra pessoas que criticam o governo, expõem a corrupção ou denunciam violações de direitos humanos. O exercício do direito à liberdade de expressão tem sido restringido, com “defensores dos direitos humanos e críticos do governo sendo presos e submetidos a ações penais em um Judiciário cada vez mais politizado”, denuncia o relatório. Para fugir desse cenário, Alexandre Divua, 25 anos, veio ao Brasil estudar pedagogia. Ele também é um ativista angolano e faz parte de um movimento estudantil conhecido como Movimento Revolucionário. Nele, jovens inspirados pela primavera árabe, desde 2011, fazem manifestações contra o longo mandato do presidente angolano e lutam

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por reformas políticas. Em alguns protestos, o grupo tem conseguido reunir centenas de milhares de pessoas. Hoje, mesmo morando em São Paulo, Divua segue lutando pela causa: “Continuo fazendo isso pelas redes sociais. E a gente faz ativismo também aqui no Brasil”, conta o angolano, que pretende voltar para seu país depois de terminar os estudos. Angola é um país democrático, mas semipresidencialista, com eleições para uma lista fechada de deputados por partido, que têm o poder de escolher o presidente e todos os ministros de Estado. Segundo Divua, o sistema de eleições de Angola faz com que o país viole direitos básicos, pois, na visão dele, o presidente tem poder absoluto. “Ele manda do mercadinho até os policiais, e, quanto mais a polícia reprime (manifestantes), melhor para o governo”, comenta. O codiretor do jornal angolano “Folha 8”, Orlando Castro, observa que Angola, na prática, continua funcionando com um partido único, o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), como no passado, quando o país mantinha relações próximas com a União Soviética. “O regime foi obrigado a adotar o multipartidarismo (o próprio presi-


dente Eduardo dos Santos diz que a democracia ‘foi imposta’), mas continua a funcionar como nos tempos do partido único, na altura sustentado pela URSS. Assim sendo, usa a força para calar os opositores, pouco se importando – como é comum nas ditaduras – com os direitos humanos e as liberdades individuais e coletivas.” Angola é signatária de todas as convenções da ONU para os direitos humanos, mas, segundo Divua, a prática é bem diferente: “Tem muita perseguição de jornalistas e violação dos direitos de ir e vir”. O jornalista Orlando Castro confirma. “O regime está procurando calar os jornalistas que teimam em pensar pela própria cabeça e que só prestam explicações a quem devem: os seus leitores”. Em entrevista por e-mail, o jornalista conta que “põe a força da razão acima da razão da força” e, por isso, se considera um ativista. Para o pesquisador do Centro de Estudos Internacionais (CEI) do Instituto Universitário de Lisboa, o angolano Eugénio Costa Almeida, a situação política no país tem relação direta com a violação dos direitos humanos. “Por ter o predomínio de um partido político, seus dirigentes parecem não respei-

tar os limites de liberdade dos que não seguem a sua linha de pensamento”, observou o pesquisador, que também colabora com publicações jornalísticas de Angola, como o “Novo Jornal” e “Zwela”. Segundo ele, o problema está na restrição das liberdades e, até mesmo, na falta de informação. “O principal órgão diário informativo escrito, o “Jornal de Angola”, bem como a Rádio Nacional – única com autorização para emitir para todo o país – ou a Televisão Pública, não cumprem com o disposto no artigo 40 da Constituição angolana (sobre liberdade de expressão)”, diz Almeida, referindo-se ao fato de as principais mídias serem silenciadas. O português Fernando Jorge Cardoso é coordenador da área de estudos do Instituto Marquês de Valle Flor, uma organização não governamental que procura promover o desenvolvimento das populações mais carentes. Especialista em assuntos africanos, possui cinco publicações sobre o tema, entre elas “Diplomacia, Cooperação e Negócios: o papel dos atores externos em Angola e Moçambique”. Cardoso observa que a situação em que Angola se encontra, principalmente nas questões relacionadas aos direitos humanos, tem relação maior com abusos da

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polícia. “Esses relatórios são feitos muito na base de opiniões de membros da sociedade civil, bastante críticos do governo. Não tenho conhecimento de situações de tortura, assassinato ou desaparecimento de pessoas por motivos políticos. Por outro lado, existe e isso é visível, uma imprensa escrita fortemente contestatária do poder e que circula com relativa liberdade.” Os ativistas ouvidos por “Olhares do Mundo” afirmam, no entanto, que, embora não haja tortura sistemática como nas piores ditaduras, as violações aos direitos humanos

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em Angola são constantes. Para Alexandre Divua, o caminho para reverter essa situação seria uma reforma política que permitisse mais participação e mais pressão da comunidade internacional sobre as lideranças políticas. “Os países que assinam acordos (de proteção aos direitos humanos) devem pressionar Angola a respeitá-los. Ao mesmo tempo é necessário, segundo ele, que a população seja conscientizada sobre o assunto. “Nas universidades eles não ensinam, eles não falam de direitos humanos”, lamenta.


Fugindo da crise econômica em seu país, angolanos encontram dificuldades semelhantes no Brasil A queda do preço do petróleo no mercado internacional teve forte impacto sobre a economia de Angola. O Brasil foi o destino de milhares de imigrantes, que, diante da recessão no país, já pensam em voltar para casa.

Por Lucas Valim, Matheus Riga e Vinicius Ribeiro

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ara um imigrante, seja de qual nacionalidade for, quando o dinheiro falta, e a família, que está em outro lado do mundo, começa a sofrer com isso, é hora de parar e repensar se viver em outro país compensa. Um angolano ouvido por nossa reportagem, que está há dois anos em São Paulo e prefere não ser identificado, reflete a decepção de muitos imigrantes econômicos com a opção de construir uma nova vida no Brasil. “Não vale mais a pena tentar uma vida aqui no Brasil. Com as

poucas oportunidades que há, fica difícil enviar dinheiro para casa”, disse o imigrante de 30 anos. Centenas de angolanos que cruzaram o Atlântico por causa da crise econômica provocada pela queda na cotação internacional do petróleo, principal produto do pais, acabaram por encontrar, no Brasil, o mesmo inimigo do qual estavam fugindo: recessão e desemprego. O angolano que encontramos na Paróquia Nossa Senhora da Paz, uma casa de amparo a imigrantes e refugiados

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de todas as nacionalidades, vivia de maneira estável e confortável com um salário de US$ 700 até a empresa em que trabalhava falir. Desempregado, desembarcou em São Paulo, onde conseguiu apenas um emprego de garçom. “Gostaria de começar cursos aqui no Brasil para que meus ganhos crescessem, porque as vagas que são oferecidas nos Centros de Ajuda, como a Missão Paz, não são suficientes para pagar as contas durante meu tempo no Brasil”, diz ele. A Missão Paz, ligada à paróquia, é um dos vários projetos que tentam auxiliar os imigrantes e refugiados no Brasil. O diretor da missão, o padre italiano Paolo Parise, diz que houve um aumento de africanos atendidos pela paróquia. “Há dez anos, em nosso banco de dados, os africanos atendidos eram 0,8%. Hoje em dia, esse número já está entre 14% e 15%”, conta. De acordo com dados da Polícia Federal, a imigração africana aumentou 30 vezes desde 2000. O relatório diz que, no início deste século, viviam no país 1.054 africanos regularizados de 38 nacionalidades, mas o número cresceu, em 2012, para 31.866 cidadãos legalizados, de 48 das 54 nações do continente. A procura pelo Brasil cresceu

muito com a crise de 2008 na Europa e o bom desempenho da economia brasileira na época. Em relação aos angolanos com status de refugiado por algum tipo de perseguição em seu próprio país, o Ministério da Justiça diz que eles são o segundo maior grupo no Brasil, só perdendo para os sírios. Dados oficiais divulgados em abril deste ano, apontam 1.420 refugiados angolanos em solo brasileiro, de um total de 8.863. O Itamaraty confirma o crescente afluxo de angolanos. O número de vistos expedidos na Embaixada Brasileira em Luanda, capital da Angola, no primeiro trimestre do ano foi de 3.886, o que implica dizer que, em média, 2 angolanos por dia entram no Brasil. No entanto, os vistos, a maioria de turismo, acabam por ser uma tática para permanecer no pais. O padre Parise relata que muitos angolanos chegam ao aeroporto de Guarulhos, apresentando-se como refugiados, e a Polícia Federal, pelas convenções internacionais “não pode recusar e então faz o protocolo de solicitação de refúgio. “Com isso, os angolanos ganham status de refugiados por cerca de dois anos, que é a média de duração da análise do pedido. Hoje, ainda segun-

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do o Ministério da Justiça, existem 2.281 solicitações pendentes de refúgio para os angolanos. Sendo o visto só concedido, na maioria das vezes, em casos de desrespeito aos direitos humanos, como, por exemplo, perseguição religiosa ou de raça, os refugiados econômicos adicionam, à incerteza do visto, a dúvida da permanência no país, devido aos salários baixos, que não sustentam a eles mesmos e suas famílias, no país de origem. É o caso de Daniel Belo, 27 anos, outro angolano ouvido pela reportagem. Receoso de falar sobre sua situação no Brasil, ele diz apenas que veio em busca de emprego no Brasil. Na capital paulista há aproximadamente três meses, Daniel conta com o apoio da Missão Paz. Otimista, ele diz que foi muito bem recepcionado e que não teve dificuldades em se adaptar, pois em Angola já conhecia muitos brasileiros, que o auxiliaram a entender a cultura local. “Primeiro eu preciso saber como estão as condições no Brasil e depois decidir tudo, saber como são as leis no Brasil e só depois pensar no que fazer”, afirma o jovem, que pretende, futuramente, trazer a família.

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Para Marcelo Haydu, diretor executivo da Adus, Instituto de Reintegração do Refugiado, ONG destinada a promover a valorização e inserção econômica, social e cultural dos refugiados em São Paulo. Dentre as principais dificuldades dos africanos em solo brasileiro, a inserção no mercado de trabalho é uma das mais comentadas pelos refugiados. “A falta de conhecimento sobre a realidade do refúgio gera medo, desconfiança, o que leva a casos de preconceito, e isso certamente dificulta a inserção laboral de todos eles”, afirma. Haydu, falando especificamente de Angola, aponta a relação histórica do país africano com o Brasil como principal motivo da preferência pelo Brasil. Segundo ele, a presença de empresas brasileiras em Angola e os convênios realizados entre universidades dos dois países geraram um maior fluxo de migração. Além disso, no que se diz respeito à inserção no mercado de trabalho, o diretor afirma que os angolanos têm um trunfo em comparação com os companheiros de continente. “A dificuldade para conseguir emprego é a mesma para todos os africanos, mas os angolanos têm a facilidade do idioma, pois também falam português.”


O angolano Paullo Macongo, de 23 anos, vice-presidente da Associação dos Angolanos em São Paulo, discorda. “Mesmo com a Angola tendo a língua oficial o português, ainda assim existe muito preconceito na fonética, e acredito que isso pode ser uma das causas principais de reprovação em algumas entrevistas, principalmente na área de atendimento”. Macongo, que chegou a São Paulo há quatro anos para cursar o ensino superior, diz que o objetivo da associação é auxiliar

qualquer estudante angolano que venha ao Brasil, desde a recepção até a documentação. “O principal objetivo de todos os estudantes angolanos, assim como eu, é se formar e depois regressar para Angola para então poder ajudar a resolver problemas que a nossa sociedade enfrenta”, afirma. A crença de que sua vinda ao Brasil tem um propósito e fará a diferença no futuro de seu país é o que mantém Macongo firme para continuar estudando.

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OLHARES do MUNDO


ÁFRICA AUSTRAL

Disputa por empregos provoca ataques xenófobos na África do Sul Mesmo com políticas públicas de igualdade racial e social, população ainda se ressente por crescimento econômico de estrangeiros no país.

Por Aline Oliveira, Douglas Oliveira, Mariana Perbone e Victoria Köhler

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África do Sul é o país mais xenófobo da África, segundo uma recente pesquisa realizada em 33 países africanos pela organização não-governamental Afrobarómetro e que apontou os sul-africanos como os menos tolerantes quando o assunto é imigração. Mais de 60% dos sul-africanos entrevistados disseram não gostar de imigrantes. Os dados vieram a público em 2016, um ano após uma série de ataques contra estrangeiros deixar sete mortos e 307 presos no país. O grande número de imigrantes na África do Sul se deve, principalmente, à Moçambi-

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que. A proximidade e a boa relação entre os dois países, faz com que as pessoas se desloquem de um para o outro constantemente. Estima-se que atualmente existam cerca de um milhão de moçambicanos na África do Sul. Durante os ataques xenófobos, os imigrantes moçambicanos se tornaram os principais alvos. Isso fez com que o governo sul-africano enviasse para casa cerca de 600 imigrantes que estavam refugiados em centros de acolhimento na cidade de Durban. Outros 1500 moçambicanos teriam regressado ao país por meios próprios.


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Para David Dickinson, professor de sociologia da Universidade de Witwatersrand em Joannesburgo, na África do Sul, os ataques xenófobos são resquícios do Apartheid. Ele explica que a constituição pós 1994 consolidou direitos iguais a todos, porém não conseguiu diminuir a desigualdade econômica no país. Com isso, pessoas que não conseguiram aumentar o poder aquisitivo acabaram culpando os estrangeiros e os pegaram como bode expiatório das suas expectativas frustradas. “A vida da maioria dos africanos melhorou, mas menos do que esperavam”, disse Dickinson em entrevista por e-mail. No Apartheid, que vigorou entre os anos de 1948 a 1994, a minoria branca era a única com direito a voto e detentora do poder político e econômico do país, enquanto a imensa maioria negra sofria grave discriminação e era obrigada a obedecer rigorosamente a legislação separatista. Naquele período ainda, foram criadas pelos brancos, cidades separadas e essencialmente negras, chamadas “townships”. Era nestes lugares que os negros podiam morar e construir suas vidas, porém sem nenhum direito político ou econômico. Enquanto isso, os brancos desfrutavam de um alto padrão de vida, com mão-de-obra barata negra.

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Com o fim do regime, os negros esperavam uma vida melhor, com rápido crescimento econômico e social, o que, em parte, aconteceu. Surgiu uma classe média africana negra, influenciada principalmente por subsídios sociais. Porém, não houve tanto crescimento quanto o esperado. “A criação de pequenas empresas nos ‘townships’ torna esses direitos acessíveis à maioria africana, e alguns (negros que não progrediram) se ressentem pelo sucesso econômico aparente deles”, explica Dickinson. A partir disso, os ataques xenófobos começaram e a violência tornou-se recorrente no país, que recebe cerca de dois milhões de imigrantes africanos documentados, fora os ilegais. Segundo Dickinson, a violência contra o imigrante negro continua acontecendo. Semanalmente, donos de lojas estrangeiras instalados em cidades que eram essencialmente negras sofrem com ataques. Os anos de 2008, com 42 mortos e 2015, com sete mortos, marcaram o auge dos conflitos, que chegaram à grande mídia.


Para entender o motivo real dessa reação no país, Dickinson explica que, mesmo com o constante apoio do governo para melhorar qualidade de vida da maioria, as políticas sociais não foram capazes de criar emprego para todos. Atualmente, o desemprego está por volta de 25-35%, e muitos sul-africanos acreditam que os estrangeiros podem tirar os empregos dos negros no país. “Muitos dos empregos que estão disponíveis para aqueles com pouco estudo são os que podem ser descritos como ‘precários’. Eles fornecem o suficiente para sobreviver, mas não o suficiente para melhorar a situação econômica de uma pessoa, ou para ajudar seus filhos a alcançar uma vida melhor. Isso cria um terreno fértil para ataques a estrangeiros que mantem empresas nos municípios”, esclarece Dickinson. Segundo Loren Landau, pesquisador de Mobilidade e Política da Diferença do Centro Africano de Migração e Sociedade da Universidade de Witwatersrand, algumas iniciativas do governo sul-africano para tentar contornar o problema, acabam por aumentar ainda mais a distancia entre imigrantes e moradores.

Em abril de 2015, logo após os ataques que deixaram vários mortos no país, o governo sul-africano lançou a “Operação Fiela”, com o objetivo de proteger os imigrantes e aumentar a segurança no país. Em vez disso, selecionou e prendeu milhares de imigrantes sem documentos. “Isso foi aparentemente feito para (a) combater o crime e (b) assegurar que os imigrantes que permanecessem fossem aceitos como legítimos e legais por parte dos cidadãos”, afirma Landau. Ainda não há solução concreta para a resolução do problema. Enquanto os negros não se sentirem totalmente reintroduzidos na economia do país, o sentimento de não pertencimento à nação e repulsa aos imigrantes que conseguiram se levantar continuará causando reações das mais adversas no país.

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Moçambicanos Em Moçambique, a recepção da notícia sobre os ataques xenófobos aos conterrâneos não foi das melhores. As imagens do assassinato do moçambicano Emmanuel Sithole em Alexandria, nos arredores de Joanesburgo, correram o país e sentiu-se, na imprensa, nos espaços públicos e nas conversas de rua, uma profunda revolta sobre o que tinha acontecido, até mesmo pelos dois países serem aliados históricos. No período do apartheid, o atual presidente sul-africano Jacob Zuma chegou a ficar exilado por anos em Moçambique por conta das perseguições durante o regime. A consequência dessa recepção negativa foi a retaliação por parte de alguns grupos de moçambicanos contra sul-africanos residentes no país. Em abril de 2015, trabalhadores sul-africanos em algumas mineradoras do pais não puderam trabalhar durante um largo período, e, na petrolífera Sasol, funcionários moçambicanos exigiram o repatriamento em menos de 24 horas dos seus colegas sul-africanos. No mesmo mês, trabalhadores do complexo industrial de Ressano Garcia, que fica pró-

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xima à principal fronteira entre Moçambique e África do Sul, pararam de trabalhar e exigiram à expulsão dos sul-africanos empregados no local. Nessa mesma região, foram armadas barricadas que impediam à circulação de viaturas com matrícula sul-africana. Henrique Botequilha, correspondente da Agência Lusa em Moçambique, explica que, para a África do Sul, a base da crise estava na imigração ilegal, associada à criminalidade. “É incerto o número total de moçambicanos no país vizinho, mas são pelo menos um milhão, muitos deles ilegais, à procura de melhores condições de vida na principal economia da região, trabalhando nas minas, nos campos ou em vendas informais nos grandes centros urbanos”, observa o jornalista em entrevista por e-mail. Para os moçambicanos, a África do Sul é vista como o país com as melhores condições de vida do continente e aquele no qual o acesso é mais fácil por conta da proximidade entre os territórios. Já para os sul-africanos, a principal justificativa para a dependência ocorre devido à hidroelétrica de Cahora Bassa (HCB), principal fonte de energia da África do Sul, que está localizada em solo moçambicano.


“Não foi por acaso que os ex-presidentes moçambicanos Joaquim Chissano e Armando Guebuza se declararam satisfeitos com as explicações de Pretória sobre a crise xenófoba e que Zuma se apressou a deslocar-se a Maputo, não só para pedir desculpa como para salvaguardar a dependência energética que o seu país mantém em relação a Moçambique”, explica Botequilha. Os ataques xenófobos, no entanto, diminuíram o movimento migratório. Apesar dos momentos turbulentos pelos quais passa o país sul-africano, Moçambique sofre com uma forte crise na sua economia, aliada a uma grande subida de preços e acompanhado de uma seca sem precedentes no centro e sul do país. Para Francisco de Assis, diretor executivo do Centro de Estudo e Transformações

de Conflitos da ONG Justapaz em Moçambique, é necessário fazer um trabalho de base entre os dois países para entender o real motivo da ocorrência dos casos e desenvolver um conjunto de políticas públicas para desenvolver empregos no país e reduzir a imigração e a dependência do trabalho mineiro e das fazendas sul-africanas. “Os moçambicanos não podem ter a África do Sul como a única alternativa aos seus problemas, temos que conceber soluções domésticas para os nossos próprios desafios”. Para tentar por um fim à essa crise, no dia 27 de fevereiro de 2016, os presidentes Filipe Nyusi de Moçambique e Jacob Zuma da África do Sul inauguraram um monumento aos “mártires da Matola”, num gesto simbólico interpretado como o capítulo final da crise xenófoba.

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ÁFRICA SETENTRIONAL

Negros encontram representação na ancestralidade egípcia Com base nas teorias do antropólogo senegalês Cheikh Anta Diop, que encontrou vestígios de DNA correspondente a negros nas múmias egípcias, africanos reivindicam protagonismo na história do Egito.

Por Beatriz Araújo, Beatriz Izzo,

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Hanna Oliveira e Marinna Guglielmoni

movimento negro espalhado pelo mundo está, há muito tempo, pedindo uma revisão da história do Egito com base nos estudos que comprovam a origem negra da nação localizada no norte da África, diferentemente do que é retratado nos livros. Para o movimento, o motivo do silêncio sobre a cultura negra na história do país é o racismo. A icônica representação de Cleópatra protagonizada por Elizabeth Taylor, de pele branca, olhos azuis turquesa, traços finos, delicados e cabelos negros lisos, em um longa-metragem de 1963 produzido por Es-

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tados Unidos, Reino Unido e Suíça, em nada se assemelha aos traços das múmias egípcias encontradas por arqueólogos ao longo da história: narinas largas, cabelos trançados e escuros, grande quantidade de melanina no DNA e genética classificada como “negróide”. O filme “Cleópatra” é um exemplo de como a cultura negra é eliminada na representação de grandes civilizações da antiguidade. Foi contra essa narrativa que o antropólogo Cheikh Anta Diop (1923-1986), considerado um dos maiores estudiosos da cultura africana pré-colonial no século XX, se voltou. Durante mais de 30 anos de sua vida acadêmica, Diop aprofundou estudos científicos, históricos e antropológicos para provar que o Antigo Egito era negro. E o atual ainda é, 60% da população egípcia é negra. O antropólogo e historiador senegalês conseguiu, com testes em múmias datadas de 6 mil anos a.C., rebater a ideia de que os negros egípcios de hoje são imigrantes de países mais ao sul da África. Diop encontrou altos níveis de melanina, classificando as múmias como inquestionavelmente pertencentes a negros, o que foi comprovado também com evidências ósseas e de tipo

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sanguíneo compatíveis aos dos negros da África ocidental e diferentes das dos brancos europeus e árabes. O antropólogo também descobriu uma unidade linguística do dialeto egípcio e senegalês e registros de como os próprios egípcios se viam na antiguidade como um povo negro. Se hoje, para a cultura eurocêntrica a cor branca é associada ao angelical e a escuridão ao mal, Cheikh Anta Diop descobriu que, para a civilização egípcia, em oposição à cultura europeia, o negro era associado ao divino, ao bom. De acordo com a professora paulista Juliana Aparecida de Souza Guilherme, especialista em história da cultura afro-brasileira e africana, a história ainda é muito eurocêntrica e por isso resiste em aceitar os negros como protagonistas. “Alguns acadêmicos ainda relutam em aceitar a ideia de um Egito negro. Por conta do imperialismo no século XIX, foi necessário criar a ideia de um Egito branco, portanto, fora da ideia de inferioridade a qual os povos africanos foram submetidos”, disse Juliana, administradora da página “O Egito Negro de Cheikh Anta Diop” no Facebook, com mais de três mil curtidas.


O debate sobre a ascendência negra dos egípcios não agrada a todos. O historiador e antropólogo Rukono Rashid, autor de vários livros sobre a representação africana no mundo, rejeita a ideia de a questão ser discutida fora do movimento negro. Quando consultado por nossa reportagem sobre os estudos do professor Diop, respondeu que “o fato de procurar entender os porquês da falta de crédito aos negros na história do Egito é também uma forma de segregação e preconceito.” Autora da monografia “O papel do racismo na construção do Egito branco” defendida em 2013 no curso de especialização do Centro Universitário Claretiano (Batataes-SP), Juliana discorda da posição de Rashid. Ela ressalta que a academia está cada vez mais empenhada em inserir o protagonismo negro nas pesquisas históricas e sociais, trabalhando no resgate da história africana. Esse empenho, porém, é mais observado nos historiadores ligados a movimentos sociais, que buscam estudar a trajetória e a contribuição africana na história mundial. Nas salas de aula, ao contrário, a realidade,segundo ela, são livros didáticos que pouco absorvem o que está sendo produzido na

universidade, com referências rasas ou inexistentes sobre o Egito como parte da nação africana. Para ela, inserir essas pesquisas nos materiais didáticos é o que poderá contribuir para uma educação antirracista. Outra questão importante, segundo ela, é oferecer aos alunos negros representatividade nos grandes feitos da história. “Quando falo da origem negra dos antigos egípcios, os alunos negros se sentem representados em algum momento da história que não seja a escravidão. Mas ainda precisamos avançar muito nessa questão, pois ao mesmo tempo que apresento um Egito negro e africano em sala de aula, a televisão apresenta um Egito branco e distante de toda africanidade possível”, observa a professora. Neste contexto, o ativista egípcio Abdel Rahman Sherif diz que ainda há muito caminho a percorrer, os egípcios continuam isolados e estereotipados como os servos que vemos nos filmes. “O Egito moderno não é negro. O Egito é um país árabe do Oriente Médio que está localizado na África. Assim, os egípcios não se consideram da África.Se você lhes dissesse que eles são africanos, interpretariam como um insulto”, comentou o ativista em entrevista por e-mail.

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Sherif, que só recentemente conheceu as contribuições de Cheikh Anta Diop, afirma que a maioria dos egípcios não sabe sobre sua ascendência africana. “Os egípcios consideraram a pele negra como algo feio e do qual, de modo algum, devemos nos orgulhar. Então, apesar de não saberem à respeito do estudo feito, eles jamais aceitariam.”

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Para Sherif, se os estudos feitos por Cheikh Anta Diop fossem aceitos pelos egípcios, haveria uma nova oportunidade de representação dos negros na mídia. O único negro famoso no país, segundo ele, é um cantor chamado Mohammed Mounir, que por muitas vezes em sua vida, perdeu chances apenas por ser negro.


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