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OLHARES do MUNDO Revista produzida pelos alunos do Curso de Jornalismo do Centro de Comunicações e Letras (CCL) do Instituto Presbiteriano Mackenzie Direção do CCL Prof. Dr. Marcos Nepomuceno Duarte Coordenação de Curso Prof. Dr. André C. T. Santoro Coordenação Editorial Profa Ms. Márcia Detoni Projeto Gráfico Elisa Maria Fontes Rua Piauí, 143 – CEP 01241-001 Fone: (11) 2114-8320 – São Paulo – SP www.mackenzie.com.br
digital_ o mundo em suas mãos
acesse @olharesdomundo.mackenzie www.olharesdomundo.wordpress.com
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Ao leitor Lutas coletivas A reportagem internacional é um grande desafio, seja para quem a faz no local dos acontecimentos ou para quem apura os fatos à distância. A compreensão do que se passa em outro país exige muita pesquisa, apuração e entrevistas com fontes diversas. É um exercício de empatia e de enxergar em diferentes perspectivas as decisões que impactam nações e cidadãos. A editoria internacional tem a responsabilidade de fazer a mediação entre os povos, exercendo grande influência sobre a opinião pública e as pressões geopolíticas. Nesta edição do Olhares do Mundo, nossos repórteres usam a tecnologia para atravessar fronteiras e contar histórias que envolvem justiça, direitos humanos, política, reação e resistência. As reportagens, realizadas ao longo de 2018 e 2019, apresentam situações que repercutiram na época ou que sequer chamaram a atenção de boa parte
da mídia. Orientados pela professora Márcia Detoni, os alunos do quinto semestre de Jornalismo do Mackenzie abordaram novos movimentos mundo ocidental e oriental, além de aprofundar algumas questões históricas. Começando nossa viagem pela Eurásia, observamos as mais de duas décadas de poder de Vladimir Putin na Rússia, país marcado por violações à liberdade de imprensa e de expressão. Na Ásia Oriental e Meridional, a China e a Índia lidam com manifestações por mais autonomia em diversos territórios. A juventude pressiona por democracia em Hong Kong, enquanto a Índia registra novos protestos na Caxemira, região ao norte do país de maioria muçulmana que clama por autodeterminação. A repressão policial marcou as manifestações de 2019 nestes países asiáticos. Além disso, completou-se 40 anos da Revolução Islâmica de 1979 no Irã, período
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marcado pela tensão interna entre conservadores e moderados e por embates com os EUA que impactaram sobretudo a política e a vida de milhares de iranianos. Os conflitos do Oriente Médio também ganharam novos capítulos de violência. A Palestina registrou mais mortes diante dos conflitos com os israelenses na Faixa de Gaza. A desumanização dos povos palestinos passa também pela estrutura precária pela qual eles estão submetidos nesta guerra sem fim. A luta das mulheres por mais direitos ganhou destaque na Líbia e na Tanzânia. As libanesas se uniram para ter representação na política do país, ainda muito conservador. Elas enfrentam constantes ataques misóginos pela atitude. Já na África Oriental, mulheres conquistaram leis sobre direito à terra, mas, na prática, ainda precisam percorrer um longo caminho por conta das tradições patriarcais.
O resultado de todo este trabalho jornalístico nos convida à reflexão sobre o futuro da humanidade. Muitas questões parecem pontuais ou locais, mas podem impactar a história e o rumo de gerações, além de se assemelharem muito às que enfrentamos no Brasil diariamente. O jornalismo, em seu esforço documental, mostra como o mundo chegou até aqui, com seus percalços, conquistas e desafios. Espero que você, leitor, goste desta edição e que possamos comemorar avanços nos próximos anos e o fim de guerras que destroem os sonhos de um mundo menos desigual. A luta deve ser de todos.
Elisa Maria Fontes Subeditora São Paulo, maio de 2021 5
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Sumário 8. Criticado no Ocidente, Putin completa 20 anos no poder sem forte oposição interna Por Izabel Rodrigues, Mariana Oliveira e Natália Peixoto
13. Minorias religiosas denunciam perseguição na Rússia Por Beatriz Penalva, Giovana Ventura e Julia Flores
17. Conservadoras, russas acham que feminismo é ideologia pró-ocidental Por Beatriz Bari e Bruna Berti
20. Em combate digital com o Ocidente, Rússia lança servidor de internet próprio Por Camilla Jarouche, Larissa Souza e Maithe Martins
23. Juventude democrática de Hong Kong representa desafio para China, dizem especialistas Por Julia Tamelini e Thainá Samolão
29. Retirada da autonomia da Caxemira pelo governo indiano aumenta a tensão na região Por Marlana Zanatta, Thaís Mariano, Tiago Durães, Vitória Berçot, Viviane França
33. Indústria têxtil mantém exploração de trabalhadores em Bangladesh apesar de denúncias Por Priscila Augusto, Fernanda Antônia, Karolline Alves e Victória Theonila
37. Ao completar 40 anos, revolução islâmica comemora redução da pobreza Por Amanda Smera, Antônia Martins, Gabriella Ariel Canhos
43. Faixa de Gaza: o maior cárcere a céu aberto do mundo Por Bianca Santos, Luana Dorigon e Taisa Donato
49. Quem tem medo das mulheres na política libanesa? Por Beatriz Mazur, Marco Wolf, Rafaela Damasceno, Renata Cerdeiras
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52. Talibã cresce e ameaça a estabilidade na região Por Deisi Gois, Danielle Leite, Luiza Lorenzetti, Rafaela Frigério e Tárik El Zein
58. Governo nigeriano mantém mais de 3.600 crianças presas, denuncia organização de direitos humanos Por Maíza Costa, Mariana Apolinário e Thais Paiva
63. Resistência à medicina dificulta o combate ao ebola no Congo Por Priscila Palermo, Thiago Lopes, Carolina Denari, Açucena Barreto e Felicio Henrik
67. Omissão do Estado favorece estupros em massa no Congo, dizem especialistas Por Bruno Andrade, Joice Martins e Thais Oliveira
72. Mulheres africanas lutam pelo direito à terra Por Bruno Roque, Clara Valdiviezo, Julia Alves e Leticia Moura
76. Ameaça de guerra nuclear entre potências não deve ser subestimada, dizem especialistas Por Amanda Adachi, Maryane Sales, Nathália Corominas e Talita Alves
84. Nova Constituição cubana aceita a desigualdade social, dizem especialistas Por Amanda Oliveira, Bruno de Castro, Raquel Pryzant e Rodrigo Loturco
88. Em meio à crise política e econômica, porto-riquenhos falam em independência Por Gabriela Cunha, Larissa Guiguer, Luana Figueiredo e Victoria Claramunt
93. Para analistas, esquerda democrática pode surpreender nas eleições americanas de 2020 Por Gabriela Cunha, Larissa Guiguer, Luana Figueiredo e Victoria Claramunt
99. Ameaça de intervenção militar na Venezuela é descabida, dizem analistas Por Larissa Iole
104. LGBTs denunciam intolerância na Polônia Por Gustavo Kolonko, Letícia Rafael e Lucas Caspirro
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Criticado no Ocidente, Putin completa 20 anos no poder sem forte oposição interna Com popularidade do líder russo ainda em alta, analistas especulam a possibilidade de ele buscar a permanência no poder ao final do quarto mandatoagrícola mais cobiçada pelo mercado internacional.
Por Izabel Rodrigues, Mariana Oliveira e Natália Peixoto
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om imagem de líder forte, próximo ao povo e disposto a resgatar a posição da Rússia como grande potência mundial, Vladimir Putin completa 20 anos no poder em meio a questionamentos sobre seus planos políticos após o fim do mandato em 2024. Apesar das críticas dentro e fora do país de que governa de forma autoritária, há expectativas de que o líder russo busque se manter no poder por alguma manobra legal, já que seu partido domina o Parlamento. “Com 67 anos e considerando a média dos mandatos russos e sem opositores, ele
pode ficar no poder, tranquilamente, por mais 12 anos”, afirma o historiador russo formado pela Universidade de Moscou, Sergio Lessa. Segundo ele, apesar de a Constituição russa não permitir uma nova candidatura, Putin é beneficiado pela ausência de uma forte frente opositora e pode criar mecanismos para uma nova eleição e para anular qualquer competição política. Além disso, ele domina a mídia tradicional, que o enaltece em reportagens pró-governo. “Na TV, sempre vemos Putin como uma pessoa muito social, com bom senso de humor e grande simpatia pelo povo russo”, comenta
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Vadim Klokov, 55, morador de Moscou. A estudante de engenharia Daria Kolortnova, 22, também moradora de Moscou, observa que, com o uso da mídia estatal, “o governo ganha influência sobre os idosos em diversas esferas de suas vidas, inclusive no âmbito político”. Os jovens, segundo ela, têm feito oposição através da internet e de manifestações nas ruas. Mas a estudante não vê outro candidato mais qualificado que Putin para liderar o país. “Estou realmente assustada com a possibilidade de ele se aposentar”, afirmou. Apesar dos constantes esforços de marketing político, a popularidade de Putin, que chegou a quase 80% nos primeiros anos, tem caído gradualmente. Antes da Copa do Mundo de 2018, ele tinha 64% de aprovação. Pesquisas mais recentes, de julho de 2019, mostram que o apoio caiu para 56%. Um dos maiores motivos para a perda de popularidade foi a decisão do governo de elevar a idade da aposentadoria, que passou de 55 anos para 60, no caso das mulheres, e de 60 para 65, no caso dos homens, gerando fortes críticas já que a expectativa de vida do homem russo é de 66 anos. O professor de marketing político da Universidade Mackenzie em São Paulo Roberto Gondo observa, no entanto, que a possibili-
dade de Putin encontrar um opositor forte nas próximas eleições é quase nula. “É importante entender a ótica de governabilidade de que, quanto mais tempo um líder fica no poder, mais tempo ele tem para criar mecanismos de monopólio e aparelhamento do estado”, explica. “Putin, conseguiu reestruturar a organização russa com o domínio do estado e o cerceamento da população. A tendência de ele conseguir segurar mais as oposições, ser líder de parlamento e ter influência nos partidos que representam o sistema é muito maior”, observa Gondo. O professor salienta, ainda, que o aumento da população que vai às ruas não é tão significativo quando o sistema do país “se encontra sob o poder completo de um líder”. A imagem de Vladimir Putin como governante comprometido com o povo foi favorecida pela boa gestão da economia russa após o colapso da União Soviética e a crise gerada pela transição do comunismo para o capitalismo no governo Iéltsin (1991-1999). Com o petróleo em alta nas primeiras décadas deste século, Putin conseguiu quintuplicar os salários, mas a mudança no preço das commodities e as sanções econômicas impostas pelo ocidente após a anexação da Crimeia, em 2014, trouxeram dificuldades para o país. 11
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Minorias religiosas denunciam perseguição na Rússia Alegações de torturas, falsificação de evidências e prisões sem provas aumentam a cada ano. Especialistas ouvidos pelo “Olhares do Mundo” dizem que Putin quer eliminar a influência de qualquer religião não ligada ao Estado.
Por Beatriz Penalva, Giovana Ventura e Julia Flores
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m uma madrugada de fevereiro de 2019, às 6h15, Timofey Zhukov acordou ao ouvir batidas assustadoras na porta de casa. Pouco mais de três horas depois, o russo estava algemado em sua própria casa, que fora arrombada por forças não identificadas, sendo interrogado sob tortura. Esse caso não é o único entre membros da denominação cristã Testemunhas de Jeová na Rússia, proibidos, desde 2016, de praticar sua religião. O governo Putin persegue essa e outras minorias religiosas sob a alegação de que representam uma “ameaça terrorista”. Willy Fautré, diretor e cofundador da organização não governamental Direitos Huma-
nos Sem Fronteiras, afirma que Putin e a Igreja Ortodoxa compartilham de uma causa em comum: proteger o povo da influência e de valores estrangeiros. Por isso foi aprovada, em 2016, a lei Yarovaya, com o pressuposto de diminuir as ameaças terroristas de fundamentalistas islâmicos e proibir todas as atividades missionárias de grupos considerados “extremistas”. Mas a Comissão de Liberdade Religiosa Russa diz que a nova lei viola os padrões internacionais de tolerância religiosa, perseguindo, em suma, qualquer religião que não seja a oficial Ortodoxa Russa, principalmente Testemunhas de Jeová. De acordo com Roman Lunkin, pesquisa13
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dor de cultura e religião na Rússia e Eurásia, pela lei, todos podem ser presos se falarem sobre Deus ou qualquer fé. “Cada cidadão estrangeiro que pregar ou ativamente participar no serviço de domingo está sujeito a ser expulso do país, e até a missa privada, dentro das casas, também é proibida”, salienta. A Constituição russa de 1993 declara que a Federação Russa é um estado laico que garante a liberdade de religião e de crença para todos, sem discriminação. “Mas isso é, infelizmente, apenas na teoria”, afirma Fautré. “O Kremlin e a Igreja Ortodoxa Russa trabalham de mãos dadas para limitar e prevenir qualquer presença ou influência de outras religiões”, disse o ativista, em entrevista por e-mail para a “Olhares do Mundo”. Ele se refere aos artigos 28 e 29 da Constituição russa, que garantem liberdade de consciência, religião, pensamento e expressão a todos cidadãos, “incluindo o direito de professar, individualmente ou em conjunto com outras pessoas, qualquer religião, escolher livremente, possuir e difundir crenças religiosas e outras convicções, e agir de acordo com elas”. Lunkin observa que a perseguição religiosa se dá também pelo pensamento ideológico intrínseco no país. “Acredito que a perseguição
às minorias na vida real é implementada por pessoas formalmente ortodoxas, mas com uma consciência comunista soviética. Essa é a abordagem de alguns juízes e policiais. Eles não entendem religião ou a temem”, disse o pesquisador em entrevista por e-mail. a A escritora e jornalista Anna Arutunyan diz que há uma fobia religiosa. Várias Testemunhas de Jeová alegam ter sofrido torturas como eletrochoque, asfixia e afogamento ao serem presas, ou terem suas casas e igrejas revistadas por causa de sua crença. O porta-voz da denominação na Rússia, Ivan Belenko, denunciou as arbitrariedades das autoridades russas à agência de notícias internacionais EFE, declarando que os privam de sua liberdade garantida tanto pela Constituição russa quanto pelas leis dos Direitos Humanos. A intolerância atingiu cristãos, muçulmanos, budistas, judeus, hare krishnas e mórmons, que têm sido perseguidos pelas autoridades. Devido à lei, minorias religiosas estão sujeitas à deportação, multas pesadas e até seis anos de prisão. Todas as atividades missionárias foram proibidas e a religião Testemunhas de Jeová se tornou criminalizada no país. Alexander Verkhovsky, diretor do Centro Russo de
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Pesquisas Sociológicas (SOVA), explica que a lei exige que praticantes de certas religiões tenham autorização de autoridades de organizações religiosas registrada. “Essa norma foi criada, acredito, contra pregadores muçulmanos russos ‘não tradicionais’ (que é o eufemismo para radicais islâmicos), por isso a lei anti missionária foi incluída no pacote anti terrorista”, contou ele por e-mail, “mas de fato a lei trabalha contra protestantes, hare krishnas e em alguns casos outras religiões também, e é
extremamente excessiva, não necessária para fins constitucionais. De fato ela abusa de minorias religiosas pacíficas”. Verkhovsky duvida que a campanha antiprotestante tenha sido planejada desde a implantação da lei, mas acredita que autoridades locais e regionais usam a lei como uma ferramenta contra minorias religiosas de que não gostam e que antes da lei não tinham instrumentos suficientes para persegui-las. “Qualquer grupo religioso pode praticar sua fé, se
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não cometer crimes. O problema é que os crimes encontrados nas práticas não seriam considerados como tais por observadores neutros. As Testemunhas de Jeová estão banidas por causa da sua declaração de superioridade religiosa, de acordo com seus textos bíblicos que dizem que sua religião é a melhor, o que é natural de qualquer religião”. Emily Baran, professora na área de religião da Rússia na Universidade do Estado do Tennessee (EUA), salienta que as Testemunhas de Jeová têm apelado repetidamente à Convenção Europeia dos Direitos Humanos e ganhado, mas a situação deles continua terrível e Putin não é sensível a pressão externa sobre o assunto. Segundo Rachel Denber, vice-diretora de Direitos Humanos da Europa e da Ásia Central nas Nações Unidas, é essencial o apoio da ONU para que a medida não chegue a outros países. Em entrevista por e-mail ela conta que oficiais da Igreja Russa tem chamado as Testemunhas de Jeová de seita totalitária e perigosa. “As instituições internacionais, nomeadamente no âmbito da ONU, devem condenar a perseguição religiosa que está acontecendo na Rússia e incitar o governo a acabar com isso”, diz Denber. Já Baran não acredita que as Nações
Unidas ou qualquer outra instituição externa possa, de fato, influenciar o governo russo a repensar o uso de leis anti-extremistas como arma contra minorias religiosas. “A CEDH tem ajudado muito nesses apelos, mas foram ineficazes em persuadir a Rússia a modificar suas leis ou oferecer uma solução permanente para restaurar todos direitos religiosos das minorias”, disse ela a “Olhares do Mundo”. A perseguição religiosa na Russia não é algo novo. O regime soviético, juntamente com suas as táticas, incluía o confisco de propriedades da igreja, ridicularização de religiosos e propagação do ateísmo nas escolas. Foram criadas diversas campanhas antirreligiosas desde 1917 até 1941. E, no final de 1950, a perseguição voltou no governo de Nikita Khrushchov, quando houve uma série de proibições a atividades religiosas. Em 2010, a Corte Europeia dos Direitos Humanos declarou que a proscrição da Comunidade das Testemunhas de Jeová de Moscou é uma violação aos direitos humanos. Já em 2014, das 16 Testemunhas de Jeová julgadas em Taganrog, sete foram condenadas criminalmente por praticar sua religião. Quatro anos depois, um total de 25 Testemunhas foram presas.
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Conservadoras, russas acham que feminismo é ideologia pró-ocidental Ativistas dizem que a maioria das mulheres ainda prefere as atividades domésticas e vê com suspeição a luta pela igualdade de gênero, mas o movimento começa a crescer em grandes cidades.
Por Beatriz Bari e Bruna Berti
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a Rússia, em pleno século 21, o lugar das mulheres ainda é em casa, mesmo que o país tenha sido um dos pioneiros a aprovar o voto feminino, em 1918, e que, durante o comunismo, as mulheres tivessem igualdade no mercado de trabalho, A pesquisa mais recente realizada pelo Centro Levada, é de 2013, e mostra que a Rússia ainda é um país extremamente conservador: 78% das mulheres e homens russos acreditam que a mulher deve se limitar a vida doméstica. Em 2017, uma lei aprovada pelo presidente Vladimir Putin causou indigna-
ção entre grupos defensores da igualdade de gênero, permitindo a violência doméstica que não gere lesões. Daria Zhuk, jornalista da emissora de televisão Independent Rain (Dozhd) explicou a “Olhares do Mundo” que a maioria das jovens russas sonha em casar e construir uma família antes de começar a pensar em carreira. “O movimento feminista na Rússia não é tão popular, desenvolvido e forte. Temos algumas mulheres que realmente lutam por nossos direitos, mas suas ações são consideras pró-ocidentais (pró-americanas e pró-europeia).” 17
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Os homens, segundo ela, também são criados de forma muito conservadora. “ Eles são filhos de sua sociedade e sua cultura e, a partir do momento em que até os filmes nacionais demonstram todo o conservadorismo do país, torna-se difícil viver de outra maneira”, lamenta. A jornalista critica a proteção legal dada aos homens que maltratem as mulheres. “É uma lei maluca e horrível. Eu não consigo entender isso! Eu acho que não é possível ter esse tipo de leis no mundo moderno.” Na última década, alguns grupos feministas ganharam destaque em sua luta pelos direitos da mulher, mas ainda são pequenos e restritos as grandes cidades. “Nosso país é conservador e ortodoxo, e este movimento existe apenas nas grandes cidades, como em Moscou e São Petersburgo, mas a maioria das pessoas nas pequenas cidades e aldeias russas vive de maneira mais patriarcal”, afirma Daria. Aleksandra Vyuzhnaya, professora de Relações Internacionais da Samara University, no sudoeste do país, diz que, apesar da globalização e do maior contato com as culturas ocidentais, a mulher russa não tem consciência da importância da luta feminista . “Eu acho que o conceito de feminismo está longe da maioria
das mulheres daqui. É um comportamento incomum para a mulher na Rússia baseado em nossas tradições e educação em família”, diz Aleksandra Vyuzhnaya em entrevista via Whatsapp. O grupo punk rock feminista “Pussy Riot”, famoso por suas ações radicais, virou notícia internacional quando protestou contra Putin cantando uma “oração punk” no altar da catedral de Cristo Salvador, em Moscou. As três manifestantes pediam que a Virgem Maria “livra-se a Rússia de Putin” e foram sentenciadas a dois anos de prisão por vandalismo motivado por ódio religioso. Durante Copa de 2018, o grupo voltou ao noticiário quando quatro ativistas vestidas como policiais invadiram a partida final para novamente denunciar o autoritarismo de Putin e suas políticas machistas. Para Aleksandra, a emancipação feminina na Rússia só vai ocorrer quando as mulheres começarem a se importar mais com suas carreiras. Mas Daria já consegue observar algumas mudanças “Hoje temos mais e mais homens que começam a pensar em parceria e igualdade de direitos. Espero que nossa sociedade pense mais sobre o problema das mulheres e realmente mude alguma coisa”. Moradora no país há quase seis anos, a
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brasileira Cauana Cristina de Souza, estudante de medicina na Universidade Estatal de Kursk, sente o machismo no dia a dia. “Na faculdade ainda há muitos professores que acreditam que as mulheres não precisam aprender tanto quanto os homens”, conta. “Acho que, às vezes, as mulheres não pensam em si mesmas e não querem mudar essa situação. Estão na sua zona de conforto.” Gabriela Martins, que passou um mês na Rússia durante os jogos, se espantou com diversas atitudes dos homens – até mesmo de policiais – e ainda mais com o desprezo da situação pelas mulheres: “Um russo pediu
para trocar a camiseta da seleção pela minha do Brasil, pois queria me ver sem a camiseta. Foi assim mesmo que ele falou, com a maior naturalidade.” Cauana se sente, no entanto, mais segura em Kursk, a 500 km ao sul de Moscou, que no Brasil. “Lá eu tenho medo de um homem mexer comigo e realmente acontecer algo a mais, como um estupro, mas a Rússia é mais segura. Apesar do abuso ser absurdo, você sabe que os homens vão mexer com você na rua ou vão te inferiorizar, mas não vão te tocar sem sua permissão”. 19
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Em combate digital com o Ocidente, Rússia lança servidor de internet próprio Pesquisador da USP destaca que a rede mundial de computadores vem se consolidando como plataforma de disputa na “guerra híbrida” travada por países com alta tecnologia. Temendo censura, russos organizam protestos em algumas cidades.
Por Camilla Jarouche, Larissa Souza e Maithe Martins
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internet transformou-se nos últimos anos na nova arma da Rússia em disputas internas e internacionais. O governo Putin não só é acusado de interferir nas eleições de outros países, como EUA e França, por meio de hackers e notícias falsas, como também acaba de aprovar um servidor de internet próprio, a Runet, para não depender da rede mundial e filtrar conteúdo estrangeiro. O pesquisador Vicente G. Ferraro Júnior, membro do Laboratório de Estudos da Ásia
(LEA) da USP e mestre em Ciência Política pela Higher School of Economics de Moscou, destaca que existem motivos políticos externos e internos para essa iniciativa. Segundo ele, o governo russo considera a ação necessária para evitar possíveis punições e sanções do ocidente, que o acusa de promover ciberataques na região. Após ser aprovada com 307 votos a favor e 68 contra pelos legisladores russos, a Runet, internet autônoma do país foi sancionada por Putin no início de maio e vai entrar em vigor em
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novembro. Ferraro explica que a situação se tornou emergencial para a Rússia após os EUA divulgarem a Estratégia Nacional de Cibernética, na qual anunciaram o desenvolvimento de novas formas de proteção e punição a países que colocassem em risco a segurança americana. “A internet vem se consolidando como plataforma de disputa. Não por acaso o Estado russo vem investindo em recursos na área de comunicação, como a agência de notícias Sputnik”, afirmou. O pesquisador observa que países com alta tecnologia, como EUA, Rússia e China, vêm travando uma “guerra híbrida”, com combate também no ambiente digital. Segundo o pesquisador, a busca por um servidor próprio estaria relacionada a um endurecimento do regime. O governo russo já aprovou, em 2016, o pacote de leis “Yarovaya”, que permite aos órgãos de segurança reforçarem o controle sobre a internet e as redes sociais em conteúdos considerados extremistas. “Com o novo sistema, órgãos de segurança poderiam bloquear sites sem depender de provedores terceiros e, diferentemente do firewall chinês, que pode ser contornado por VPN (Rede Virtual Privada), seria praticamente impossível
driblá-lo”, afirmou o pesquisador. Em uma pesquisa desenvolvida pelo HackerRank, uma das principais plataformas para avaliar desenvolvedores e programadores, a Rússia ficou em segundo lugar como país que possui os melhores programadores do mundo, ficando atrás somente da China. A expertise em tecnologia pode ser explicada pelo grande investimento feito no setor da educação. Desde o ensino básico, os alunos são incentivados a estudar matemática, imprescindível à área de Tecnologia da Informação, e informática, posteriormente se consolidando como aula obrigatória e complementada pela disciplina “Tecnologia”. Noções básicas de programação e diversas aulas optativas também são ensinadas para os alunos se aprofundarem no assunto. Quando passam para o ensino superior, as áreas relacionadas à TI são extremamente valorizadas. Ferraro aponta, tambem, que durante a corrida armamentista, “o governo soviético abriu muitos institutos politécnicos de engenharia, o que contribuiu para a formação de gerações altamente especializadas”. Nem todas as acusações de ciberataques feitas por países ocidentais estão, no entanto,
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relacionadas ao governo russo, muitas ações são atribuídas diretamente a cidadãos. “Uma hipóteses já apontada para o fenômeno é que o mercado de trabalho não consegue absorver toda essa mão de obra qualificada, frequentemente mais valorizada no exterior, ou oferecer oportunidades econômicas condizentes.” Isso levaria muitos a realizar crimes cibernéticos em busca de lucro, tanto de forma autônoma quanto por contratação por órgãos de segurança internos, diz Ferraro. Ele também aponta a ausência de leis rígidas para crimes realizados na internet e de mecanismos políticos como fatores que levam à perpetuação de ciberataques, dentro e fora do território russo. Tanto que muitos sites com conteúdo pirata de livros, filmes e série, estão hospedados em servidores russos. O mesmo ocorre em outras ex-repúblicas soviéticas. “Há indícios apontados pelo Ocidente de que alguns hackers são incorporados por órgãos de segurança para fins geopolíticos, como no caso da invasão da conta de Hillary Clinton e a suposta interferência nas redes sociais a favor de Trump durante as eleições americanas de 2016”, afirmou Ferraro. Para ele, essa é outra estratégia que se insere no
contexto da “guerra híbrida” e sua vertente cibernética, fomentada para garantir a manutenção dos interesses russos dentro da comunidade internacional. Desde o anúncio em fevereiro até a aprovação da lei pelo congresso em abril, surgiram diversos críticos à implementação da Runet. Muitos se preocupam com a possibilidade da censura se fortalecer ainda mais no âmbito da internet, tendo em vista que o país vive sob um governo autoritário. No início de março, um protesto reuniu mais de 15 mil pessoas no centro de Moscou e outras duas cidades contra a criação do servidor. Os manifestantes alegam que a medida seria uma nova “cortina de ferro” na região. A manifestação foi considerada uma das maiores na história do país. Além do uso da rede mundial pelo Kremilin em disputas internacionais, críticos na Rússia consideraram a criação da Runet uma reação do governo ao crescente potencial da internet de incitar e organizar protestos e atos de desobediências civis.
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Juventude democrática de Hong Kong representa desafio para China, dizem especialistas A nova onda de manifestações iniciada em junho pressiona Pequim por mais autonomia política e liberdade de expressão.
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rotestando nas ruas desde o mês de junho e enfrentando as bombas de gás lacrimogêneo da polícia com coquetel molotov, os jovens de Hong Kong não parecem dispostos a recuar nas demandas por mais democracia, apesar da violência das forças de segurança. A jornalista e cientista política brasileira Luiza Duarte, correspondente na Ásia para o Grupo Globo e Folha de S.Paulo, observa que os protestos representam um grande desafio para o presidente
chinês, Xi Jinping. “Isso pode ser usado pelos adversário políticos contra ele, então é um desafio porque é um movimento de grande porte e que não parece ter solução de curto prazo”, comentou. A nova onda de protesto, considerada a mais longa da China nos últimos 30 anos, começou quando o governo propôs um projeto de lei permitindo a extradição presos de Hong Kong para a China continental para que pudessem ser julgadas pelo governo comu25
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nista. Segundo Pequim, a lei visava conter os criminosos chineses que fugiam para Hong Kong, mas a população percebeu que o dispositivo poderia ser usado contra oposicionistas acusados de subversão. “Os manifestantes conseguiram impedir o projeto de lei de seguir em tramitação e com isso frearam outras políticas que vão nessa direção’’, observou Luiza. O governo voltou atrás na lei fez diversos anúncios propondo melhorias econômicas para reduzir a pressão financeira sobre boa parte dos manifestantes e apaziguar os jovens. Mas o movimento evoluiu para uma luta pró-democracia, com os manifestantes reivindicando também a designação de um governo local por meio do voto universal, a manutenção do status de autonomia no território ao final dos 50 anos do acordo firmado com o Reino Unido, e uma investigação da violência das forças de segurança. Hong Kong é um território que pertence à China, mas foi colônia britânica por quase 200 anos. Em 1997, o Reino Unido devolveu o território aos chineses sob o princípio de “um país, dois sistemas” até 2047. Pelo sistema atual, o parlamento em Hong Kong conta com 70 representantes; 35 são escolhidos pelos eleitores
locais, os demais são diretamente designados por grupos de poder da ex-colônia, vários deles ligados ao governo de Pequim. Os manifestantes querem o voto universal para todos os assentos. A jornalista brasileira, que tem acompanhado o movimento, observa que os manifestantes têm entre 15 e 35 anos, a maioria é formada por universitários ou jovens profissionais atingidos pelo custo alto de vida e piora de perspectiva econômica. ”Estamos apenas exigindo o sufrágio universal prometido na Lei Básica, nossa mini constituição que a China elaborou para nós. Estamos apenas pedindo à China que mantenha sua palavra”, esclarece o advogado Alvin Yeung, líder do Partido Cívico e membro do Conselho Legislativo de Hong Kong. “Antes de Hong Kong ser entregue à China pela GrãBretanha em 1997, os dois países assinaram um pacto prometendo que Hong Kong gozará de um status autônomo sob a China após a entrega”, explica Yeung. “Esse pacto, conhecido como Declaração Conjunta Sino-Britânica, que foi registrado nas Nações Unidas e é oficialmente um tratado internacional e deve ser respeitado.”
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Para Antony Dapiran, escritor, fotógrafo e advogado que vive há 20 anos entre Pequim e Hong Kong, a China dificilmente vai cumprir plenamente o tratado assinado em 1997, porque deseja manter o controle sobre Hong Kong. Yeung concorda que a China já deu fortes sinais de que não respeita a liberdade em Hong Kong. “Três mil manifestantes foram presos por
tomar as ruas nos últimos cinco meses, e, todo fim de semana, nossas ruas estão cheias de gás lacrimogêneo com balas de borracha voando; esses são sinais óbvios de que nossas liberdades estão em risco”, observa Yeung. “Na semana passada, um proeminente ativista Joshua Wong foi desclassificado da disputa nas eleições distritais locais. Nossa autonomia está diminuindo. Dito isto, espero que no final
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do túnel haja luz, porque estaremos praticando e defendendo ativamente nossas liberdades e autonomia o máximo que pudermos’’, disse o líder do Partido Cívico. Houve um tempo, segundo ele, que a população de Hong Kong se identificava fortemente com a China, afinal maioria da população é etnicamente chinesa e existe uma afinidade natural baseada em uma língua e cultura comuns. “No entanto, como Pequim reforça seu domínio autocrático de Hong Kong, especialmente rapidamente nos últimos cinco anos, talvez seja uma resposta razoável que o povo de Hong Kong se sinta fortemente desencantado e consternado”, explicou Yeung. Para ele, o nacionalismo crescente da China tem uma tolerância muito baixa à diversidade, evidente na retórica exclusiva do estado que coloca o domínio do Partido Comunista acima de tudo. Há pouco espaço para discordâncias, não apenas politicamente, mas também cultural e religiosamente enquanto Hong Kong valoriza sua diversidade e liberdades, comenta o advogado e membro do Partido Cívico. ”Essa diferença entre Hong Kong e China não era um problema tão grande no relacionamento no passado, mas a China
tem muito menos paciência com a insistência em nossa democracia agora, então o relacionamento está ficando tenso, é claro”, explicou. A jornalista Luiza Duarte ressalta que as manifestações atuais são uma continuação do movimento ocorrido em 2014, que também reivindicavam o voto universal, assim como os protestos atuais. “Mesmo que o protesto cesse, a questão não estará resolvida, a chama pode reacender mais pra frente, como aconteceu em 2014 e aconteceu de novo agora, mesmo que cesse a gente pode voltar a ver pessoas nas ruas em Hong Kong, por absolutamente a mesma razão”, observa. “Na maioria das circunstâncias, a consolidação da democracia não acontece apenas magicamente, tem sido um longo caminho para muitos e parece que será o mesmo para nós. Então nós continuaremos”, finaliza Alvin Yeung.
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Retirada da autonomia da Caxemira pelo governo indiano aumenta a tensão na região Para conter o separatismo no território de Jammu e Caxemira, a Índia retirou o status especial da região e anexou integralmente o território à nação hindu; cinco mil pessoas foram presas e 20 morreram desde agosto em confrontos entre manifestantes e forças de segurança
Por Marlana Zanatta, Thaís Mariano, Tiago Durães, Vitória Berçot, Viviane França
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esde a anulação do status especial de Jammu e Caxemira pelo governo indiano, que retirou a autonomia administrativa da região em agosto de 2019, a população muçulmana vive em constante tensão. Protestos nas ruas têm levado a confrontos entre manifestantes e as forças de segurança, com a prisão de cerca de cinco mil pessoas e a morte de 20, três delas soldados. Essa região do Himalaia possui maioria
muçulmana, mas é administrada pela Índia, de maioria hindu. A região é reivindicada pelo Paquistão, e grande parte da população caxemire quer a independência ou a anexação ao país vizinho, muçulmano. Até agosto de 2019, a Caxemira possuía independência sobre todos os assuntos internos, garantidos pelo artigo 370 da constituição indiana. A região tinha uma carta magna e uma bandeira própria. O artigo garantia à Jammu e Caxemira direitos 29
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administrativos amplos, com exceção das políticas de segurança, relações internacionais e telecomunicações. Em outubro, em mais um ato para reduzir o poder local e conter o separatismo, a região de Jammu e Caxemira foi separada e transformada em dois “territórios da União”, em uma condição inferior à que tinha antes, de estado federado. A mudança confere maior poder ao governo central na gestão dos assuntos locais. Para o jornalista caxemire Yunus Dar, a revogação do status especial da Caxemira intensificou o conflito pelo território entre Índia e Paquistão, gerando uma nova onda de pânico na população. O governo indiano impôs toque de recolher temporário em todo o estado, suspendeu os serviços de internet e telefonia móvel para evitar mobilizações e proibiu reuniões públicas em algumas cidades. “Agora é o terceiro mês, e a Internet ainda permanece desligada, algumas conexões móveis foram restauradas há uma semana, mas a Internet ainda não está lá. Os telefones fixos também foram desligados”, contou o jornalista em entrevista por e-mail. “As crianças não frequentam a escola desde os últimos três meses. Não há acesso
a serviços de saúde de emergência, também é difícil conseguir um veículo no toque de recolher para levar um paciente ao hospital. Há relatos de escassez generalizada de medicamentos importantes em todos os hospitais do vale. Como nenhum veículo estava sendo autorizado a sair, o suprimento de medicamentos foi drasticamente reduzido”, relatou. Dar trabalha há oito anos na capital Nova Délhi como correspondente da revista “Force Magazine”, mas viaja regularmente para Pulwama, cidade da Caxemira onde nasceu e sua família reside. Na opinião dele, a população da Caxemira foi pega no meio da rivalidade entre Índia e Paquistão. “Enquanto os dois países reivindicam os direitos sobre o território, ninguém está preocupado em saber o que os próprios caxemires tem a dizer”, lamenta. “Caxemires não são permitidos na tomada de decisões. Nunca houve voz à liberdade na Caxemira.” A divisão religiosa no território acirra ainda mais o conflito local, a população é majoritariamente muçulmana (67%); apenas em Jammu a maioria é hindu. Segundo Dar, os caxemires estão do lado do Paquistão, uma das razões é justamente a religião. A professora e historiadora paquistanesa 31
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da Universidade de Yale, Zaib un Nisa Aziz, estuda a região e acompanha com preocupação os novos desdobramentos e a violência utilizada pelas forças de segurança contra ativistas e manifestantes. “A Índia aplica uma repressão muito forte sobre a Caxemira. É complicado falar sobre o assunto porque ambos os países censuram muito o que acontece”, relatou Aziz. O corte nos serviços de comunicação dificulta mais ainda a obtenção de informações sobre a real situação na região. “Como sou paquistanesa, sou proibida de entrar na Caxemira, por isso nunca fui ao território. O próprio Paquistão deixa todos os acontecimentos no sigilo, revela pouquíssima coisa”, salientou a historiadora, que passa por dificuldades para encontrar informações para suas pesquisas. O historiador inglês Andrew Whitehead, autor do livro “A Mission in Kashmir” (Uma missão na Caxemira) e professor na Asian College of Journalism, na Índia, observa que as novas medidas visam evitar o crescimento do separatismo na região. “Existe uma insurgência armada no vale da Caxemira mas é relativamente em pequena escala. Além disso, houve grandes protestos – manifestações contra o domínio indiano e sup-
ostos abusos dos direitos humanos pelo exército indiano”, disse. “É difícil ter certeza de que lado está a opinião pública, mas é provável que a maioria das pessoas no Vale da Caxemira queira fazer parte de uma Caxemira independente.” Para Whitehead, a independência da Caxemira parece improvável, porque “uma Caxemira independente só poderia prosperar com a boa vontade da Índia e do Paquistão”. Segundo estimativas da ONU, desde o início do conflito na região, em 1947, 45 mil pessoas morreram em ataques terroristas. O total de mortes é estimado em 70 mil pessoas.
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Indústria têxtil mantém exploração de trabalhadores em Bangladesh apesar de denúncias País asiático é o segundo maior exportador de vestuário do mundo; grandes marcas internacionais lucram com as condições degradantes de trabalho imposta pelas fábricas locais.
Por Priscila Augusto, Fernanda Antônia, Karolline Alves e Victória Theonila
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os 11 anos de idade, a bengali Nazma Akter teve de largar a escola para trabalhar em uma fábrica têxtil e ajudar no sustento da família. A pequena costurava entre 12 e 14 horas em troca de alguns trocados. “Quando criança, eu queria ir à escola e brincar, mas minha pobreza não me permitia ter as normalidades da infância”, comenta Nazma em entrevista a “Olhares do Mundo”. “Foi uma experiência muito difícil e dura.” Hoje, aos 43, Nazma lidera a Awaj Foun-
dation, organização internacional que luta pelos direitos dos trabalhadores em Bangladesh, fundada por ela mesma. Com a globalização, o pobre país asiático passou a atrair empreendimentos de grandes empresas internacionais de confecção interessadas em mão de obra barata e abundante. O país é o segundo maior exportador de vestuários do mundo, perdendo apenas para China, onde os salários são alguns dólares mais altos. Marcas de moda e varejo, como Zara, 33
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H&M, WalMart, Gap, e até grifes como Hugo Boss, Ralph Lauren e Giorgio Armani transferiram a produção para a Ásia. A exploração de mulheres e crianças em Bangladesh causou indignação internacional, e a atuação de grupos como o de Nazma ajudou na organização dos trabalhadores. “Nós mulheres éramos privadas de todas as facilidades. Não havia nenhuma segurança, licença maternidade, políticas anti assédio e, não ganhávamos um salário justo”, diz Nazma, que decidiu, aos 16 anos, sair do emprego e lutar por melhorias. Em 2013, o salário mínimo do país aumentou de R$ 38 para US$ 67 (cerca de R$ 268), e as empresas foram obrigadas a garantir licença maternidade e seguro médico e de vida. Mesmo assim, os trabalhadores das indústrias têxtil e de confecção enfrentam árduas condições de trabalho. Um levantamento feito pelo Overseas Development Institute em 2016, “Trabalho infantil e educação: um estudo dos bairros de lata em Daca”, mostrou que 15% das crianças de 6 a 14 anos da capital deixam de ir à escola para trabalhar. Embora a lei determine uma remuneração mínima aos trabalhadores e um ambiente de trabalho seguro, um outro estudo feito em
2017 pela BRAC University em Daca, mostrou que um terço das instalações da indústria têxtil não está registrada em nenhuma associação industrial bengali, o que dificulta as inspeções. Segundo a Organização Mundial do Comércio, esse setor emprega mais de 4 milhões de pessoas no mundo, das quais 85% são mulheres. A ativista Marienna Pope-Weidemann da ONG “War On Want” (guerra pelo querer, em tradução livre), instituição com sede em Londres que luta contra a pobreza global, afirma que as empresas possuem grande poder político e econômico e usam de um sistema complexo legal para não cumprir com suas responsabilidades. “Com a liberdade para fazer isto, as corporações sempre colocarão lucro acima de pessoas”, comentou Marienna em entrevista por e-mail. Organizações internacionais intensificaram as campanhas pelo respeito aos direitos humanos e trabalhistas em Bangladesh depois do desabamento, em 2013, de um prédio de oito andares que abrigava oficinas de confecção em Daca, o Rana Plaza. A estrutura desabou por falta de manutenção, deixando cerca de 1.100 mortos. A tragédia sensibilizou a todos, inclusive estrangeiros. Marienna observa que, embora o caso
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tenha saído do noticiário algum tempo depois, a tragédia ajudou a “ampliar as vozes dos trabalhadores”. No mesmo ano, foi criado o Acordo de Segurança contra Incêndios e Construção, que pressionou empresas de Bangladesh a adotarem uma política de inspeção de segurança e reparos obrigatórios. A medida possibilitou a união legal dos trabalhadores para discutirem suas condições de trabalho. A ativista da “War On Want” conta que o número de empresas signatárias passou
de 150 em 2013 para 1.600 no ano seguinte. A repercussão do acidente, segundo Nazma, foi fundamental para que os consumidores passassem a refletir sobre quem produzia as roupas e em que condições. “A partir de então, começamos a falar sobre liberdade de associação, salário, segurança, respeito e dignidade dos trabalhadores. Depois do incidente de Rana Plaza, a situação está mudando, mas ainda temos um longo caminho a seguir”, salienta. Grupos que reivindicam melhorias laborativas continuam enfrentando repressão e demissões e é comum que gerentes impeçam a formação de sindicatos. Um relatório divulgado em 2015 pela organização de direitos humanos Human Rights Watch (HRW) reúne depoimentos de trabalhadores que foram agredidos, forçados a fazerem horas extras e até impedidos de voltar a trabalhar por conta da sua militância.
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ORIENTE MÉDIO
Ao completar 40 anos, revolução islâmica comemora redução da pobreza Analistas ouvidos por “Olhares do Mundo” ressaltam que, apesar da rigidez religiosa e da falta de liberdade política, a teocracia beneficiou as classes mais baixas. O desafio atual é chegar a um acordo com os EUA para destravar a economia.
Por Amanda Smera, Antônia Martins, Gabriella Ariel Canhos
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Revolução Islâmica no Irã completa 40 anos em meio a novos conflitos com os Estados Unidos, que voltaram a impor sanções contra o país, dificultando o crescimento econômico da nação persa. Analistas observam que, mesmo com todas as restrições do Ocidente à teocracia iraniana, os aiatolás, no poder desde 1979, conseguiram melhorar a vida dos mais pobres, embora haja críticas à condução da economia e à falta de liberdade política. “Se, anteriormente, você estava entre as
classes mais baixas, a revolução trouxe muitos benefícios para os padrões de vida; mas, se você estava entre os industriais ligados ao antigo Estado, os oligarcas, as classes médias altas orientadas pelo o Ocidente, então a Revolução abalou sua ordem socioeconômica e cultural”, salienta Mehran Kamrava, cientista político e professor na Universidade Estadual da Califórnia, em entrevista por e-mail. O professor de Sociologia em Dartmouth, no estado de New Hampshire, Misagh Parsa, especialista em revoluções sociais, observa 37
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que os países em desenvolvimento, particularmente aqueles sob pressões econômicas como o Irã, muitas vezes têm de ser seletivos na forma como percebem e implementam o processo de desenvolvimento. “Alguns optam por se concentrar em projetos de desenvolvimento urbano que beneficiam principalmente as classes média e alta. Outros se concentram em melhorar a vida do campo, erradicar doenças básicas, construir infraestrutura rural, melhorar as taxas de alfabetização entre os pobres”, diz ele a “Olhares do Mundo”. O foco do Estado pós-revolucionário no Irã, segundo Parsa, foi a melhora nas necessidades básicas das camadas mais baixas. “O Estado da República Islâmica adotou políticas econômicas amplamente redistributivas e, nesse aspecto, as classes mais baixas da sociedade foram as principais beneficiárias da revolução. Houve avanços significativos na melhoria da vida no campo – a disponibilidade de água corrente e limpa, eletrificação, estradas, infraestrutura rural e alfabetização.” A jornalista e escritora iraniana Kamin Mohammadi, residente na Inglaterra, observa que a revolução, ao contrário do que muitos pensam, também trouxe benefícios às mul-
heres, como o acesso à educação. Hoje elas têm forte presença nas universidades, algo inimaginável antes de 1979. “Eu sempre dou o exemplo da minha mãe, que se casou nos anos 60 em uma minissaia e parecia viver em um mundo muito liberal e ocidentalizado, mas não conseguiu completar seu ensino superior. A sociedade ainda era muito tradicional e conservadora, mesmo que parecesse bastante moderna. E eu tenho várias primas agora, garotas jovens que saem de casa e vão para outra cidade para estudar em uma universidade, moram sozinhas compartilhando apartamentos com outras meninas, e algumas delas conseguem até encontrar trabalho e ficar lá, mesmos sem suas famílias, e esse é o paradoxo”, contou em entrevista por telefone. “Quando o Irã era mais ocidentalizado, muitas famílias eram bastante tradicionais, e as meninas não eram necessariamente autorizadas a entrar nessa sociedade que era ‘misturada’.” Misagh Parsa confirma as conquistas. “O regime islâmico merece seu devido mérito com a expansão do ensino superior após a revolução. Eles expandiram o número de universidades e aceitaram um número muito maior de estudantes, principalmente pelo fato de as
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mulheres terem ganhado o direito de frequentar essas universidades.” Em 1975, na monarquia autocrática do xá Rezah Pahlevi, o índice de desenvolvimento humano (IDH) era de 0,556 e subiu para 0,798 em 2017. No governo do xá, a população pobre do Irã se via completamente insatisfeita com a concentração de riquezas, a corrupção e a proximidade com a cultura ocidental, que distanciava o país dos costumes islâmicos. A desigualdade levou ao crescimento de um movimento religioso liderado pelo Aiatolá Khomeini, que apresentava como solução para os problemas sociais a instauração de uma república islâmica teocrática, onde não haveria leis civis, apenas as leis do Islã. A maior dificuldade para os iranianos em relação à revolução islâmica é a falta de liberdade política e respeito aos direitos civis, embora as mulheres tenham conquistado alguns direitos nos últimos anos. “Para os iranianos obterem direitos econômicos e políticos, a teocracia precisa acabar. A teocracia é incompatível com a democracia”, diz o professor Parsa. “Toda oposição ao regime é vista como contrária à vontade de Deus e, portanto, obtém castigos de punição extrema: execução.”
Na teocracia iraniana, o atual líder supremo, Aiatolá Kamenei, tem o poder de vetar todas as decisões do presidente eleito e do parlamento. Os governantes islâmicos rejeitam as tentativas de mudança favoráveis à democracia. Na última década, observou-se, no entanto, resistência por parte da população. A maior manifestação ocorreu nas eleições de 2009, quando a população foi às ruas para contestar a vitória do conservador Mahmoud Ahmadinejad. As manifestações ficaram conhecidas como Movimento Verde. “Mesmo os agricultores iranianos se tornaram politizados e expressaram oposição ao clero dominante. Também é chocante para analistas como eu descobrir que os agricultores conservadores em Isfahan, uma das cidades mais religiosas do país, recentemente gritaram slogans: ‘Eles mentem ao dizer que os EUA são nossos inimigos; nosso inimigo está bem aqui’, ou os mesmos fazendeiros que deram as costas para o líder religioso quando ele começou o sermão e gritaram: ‘Encare a nação, dê as costas ao inimigo’”, afirma o professor de Dartmouth. Outras frases bastante repetidas pela oposição, segundo ele, são “morte ao ditador” e até mesmo “nós fizemos
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uma revolução e isso foi um erro”. Parsa conta que apesar das reivindicações, cada vez menos o Estado toma atitudes democráticas. “É um país realmente complicado, enquanto há algumas coisas bastante progressistas, há outras coisas que parecem andar na direção oposta”, disse Kamin. As mulheres, hoje presentes nas universidades e no mercado de trabalho, lutam agora pela liberdade. Um aspecto muito polêmico dos ganhos e perdas pós-revolução, socialmente falando, é a obrigatoriedade dos trajes religiosos para as mulheres, obrigadas a usar o véu tradicional, o Hijab. O lenço, agora, além de representar um aspecto religioso, também tem significado político. Há protestos constantes contra o uso obrigatório. A escritora Kamin Mohammadi, destaca, porém, que essa não é a principal luta das mulheres no Irã. “Na verdade, mulheres ativistas no Irã, vão focar muito mais na questão da falta de igualdade dos direitos, na lei, esse tipo de coisa, a última coisa que elas vão dizer é “Eu realmente não quero mais usar esse lenço na cabeça”. O que realmente as preocupa, segundo a escritora, são coisas como igualdade com o homem no sistema judiciário, possibilidade de divórcio, o fim penas
de morte em situações em que os homens não são nem sequer punidos.” “A única coisa que nós temos que as mulheres iranianas não têm, e esse é o único ponto relevante sobre a questão do Hijab, é escolha. E mesmo antes da revolução quando o Xá demandou que tirassem os véus das mulheres nas ruas, ele também tirou essa escolha, e isso também não era correto, mas não vemos isso como algo negativo, porque isso combina com a nossa visão, combina com o que consideramos certo.” A revolução foi rejeitada pelos Estados Unidos, que impuseram sanções econômicas internacionais contra o governo teocrático. Um acordo seria assinado quase 30 anos depois pelo presidente Barack Obama, em 2015, mas foi rejeitado por Donald Trump em 2018. O atual governo americano acusou o Irã de não interromper seu programa nuclear. A tensão entre os dois países voltou a crescer em abril de 2019, quando a Casa Branca declarou que não iria renovar as isenções para importadores comprar petróleo iraniano. Trump ainda ameaçou destruir o Irã será caso houvesse um confronto contra os EUA. A nação persa respondeu ameaçando bloquear o 41
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Estreito de Ormuz, por onde grande parte do petróleo mundial é transportada e anunciou ter quadruplicado sua produção de urânio enriquecido. Parsa destaca, no entanto, que, para reverter os problemas econômicos decorrentes da Revolução, é necessário um bom relacionamento com Washington. O professor de Dartmouth observa que, no passado, o regime promoveu um antagonismo com os Estados Unidos em busca de coesão nacional. “Constantemente culpam os EUA pelos problemas
do país. Enquanto o antiamericanismo e a guerra contra o Iraque promoveram o nacionalismo e solidificaram o poder do clero por meio da repressão de dissidentes e da eliminação de rivais, a retórica antiamericana já não é eficaz para sustentar o apoio social ao regime”, conclui o professor. O maior desafio da teocracia iraniana, segundo os analistas, é encontrar um consenso com Washington para garantir a sua entrada no comércio mundial e aproveitar as oportunidades geradas pela globalização.
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Faixa de Gaza: o maior cárcere a céu aberto do mundo Palestinos tentam sobreviver em meio à pobreza, infraestrutura precária, falta de saneamento básico e escassez de água e alimentos.
Por Bianca Santos, Luana Dorigon e Taisa Donato
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aixa de Gaza, palco de conflitos entre palestinos e o Estado de Israel, possui território de 360 km² para abrigar cerca de dois milhões de habitantes. A área tem 41 km de extensão e uma largura que varia entre 6km e 12km. Segundo dados da Agência de Estatísticas da Palestina, o território é considerado o lugar com maior índice de desemprego do mundo, chegando a 60% em 2017. Estima-se que 53% da população vive em extrema pobreza. “A maioria dos jovens de Gaza atualmente tenta encontrar ma-
neiras de sair e encontrar empregos em outros países, como na Turquia ou qualquer nação europeia”, salienta o palestino Mohammad Arafat, 26, autor do livro “Still Living There” (tradução livre para Ainda Vivendo Lá) em entrevista por e-mail a Olhares do Mundo. “Muitos jovens procuram outras alternativas, como trabalhar online, com traduções ou até mesmo em organizações estrangeiras com fotojornalismo e edição de vídeo. Outros vão para as fronteiras de Gaza, onde há espaço para vender cigarros, brinquedos ou sorvete, 43
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e isso, é claro, é um negócio muito perigoso já que dezenas deles foram mortos ou feridos devido a área perigosa para qual eles vão”, comenta Arafat, que vive em Gaza. Hasan Zarif, 45, dono do restaurante árabe Al Janiah, é filho de refugiados palestinos da Cisjordânia, que chegaram ao Brasil em 1967. O nome do restaurante é o mesmo do vilarejo palestino em que morava sua família. Zarif tem dupla cidadania e acompanha de perto tudo o que acontece na região. “Há alguns anos [2014], mataram quatro crianças que brincavam de bola próximo ao mar de Gaza, pois é um lugar proibido, justificado como ‘questões de segurança para Israel’”, conta. “Entre a Cisjordânia e Gaza, a única coisa que nos separa é a fronteira territorial. No final, somos todos palestinos.” “Minha mãe morou no Brasil por 30 anos e nunca aprendeu a língua portuguesa, pois ela sempre acreditou que no ano seguinte poderia voltar à Palestina, mas isso nunca aconteceu. A Palestina não voltou. Nem ela. Minha mãe costurou um vestido entre 1961 e 1962, trouxe-o para o Brasil, mas nunca usou. Ela esperava pelo dia que voltaria à Palestina para usá-lo. Ela morreu sem chegar esse dia”,
lamenta Hasan. Desde a criação do Estado Judaico, Israel, em 1948, os palestinos buscam reconhecimento diplomático para seu estado e seus territórios ao longo da Faixa de Gaza, além da Jerusalém Oriental, que é parcialmente ocupada por Israel. O governo israelense, ao lado de alguns outros países, se recusa a reconhecer a Palestina como uma entidade independente política e diplomaticamente, apesar das objeções da Organização das Nações Unidas (ONU). A ONU tentou apaziguar a disputa em 1947, quando a Palestina foi partilhada entre árabes e judeus. Mas os países árabes não aceitaram, lançando uma ofensiva contra Israel e ocupando as áreas designadas aos palestinos. Em 1967, Israel atacou os países árabes vizinhos e integrou a Cisjordânia e a Faixa de Gaza ao seu território. “A situação se arrastou porque foi permitido a Israel transformar Gaza em um massivo experimento humano para a guerra e prolongar o cerco sem qualquer responsabilização séria ou uma resposta internacional significativa. Gaza está paralisada entre a máquina de guerra israelense, a desunião árabe, o apoio 45
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cego americano a Israel, a cumplicidade europeia, a inação da ONU e assim por diante”, afirma o jornalista palestino, Ramzy Baroud, que vive nos Estados Unidos. Ex-editor do Middle East Eye e Al Jazeera online, Baroud cresceu em Gaza, onde viveu até os 20 anos. “Entre os anos de 1980 e 1990, viver em Gaza já era uma luta constante: o encontro diário com as forças armadas israelenses, que frequentemente terminam com violência; o sempre crescente ‘cemitério dos mártires’, adjacente à minha casa, e a falta de tudo, incluindo água e eletricidade”, lembrou Baroud, em entrevista por e-mail. “Quando jovem, meu campo de refugiados era uma tapeçaria de sofrimento e desejo humano, mas também um incrível testamento da vontade humana, a insistência em sobreviver, apesar de todas as probabilidades. Várias vezes nos reuníamos com nossos amigos e vizinhos na sala de estar de nossa casa em decadência para recitar poesia, compartilhar uma refeição, falar de um futuro melhor. Gaza ainda é um lugar de esperança, poesia e fé”, conta. Atualmente, a população de Gaza sobrevive com apenas 4h30 de energia elétrica por
dia, com água contaminada e com os hospitais em situação de calamidade permanente. “As coisas ficaram muito mais difíceis desde então. A natureza da guerra israelense mudou, beirando o genocídio; a pobreza tornou-se ainda mais extrema, pois foi associada a um cerco perpétuo e a destrutivos ataques militares que mataram milhares de pessoas”, afirma o jornalista. Para tentar garantir o mínimo de assistência e melhores condições de vida aos refugiados palestinos, a Assembleia Geral da ONU estabeleceu, em dezembro de 1949, a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina (UNRWA), que presta serviços de educação, saúde, assistência social, infraestrutura, microfinanças e atendimento de emergência em 58 campos de refugiados e outros locais do refúgio palestino: no Líbano, Síria, Jordânia, Gaza e Cisjordânia. No entanto, em agosto de 2018, os Estados Unidos cessaram a ajuda financeira à UNRWA. O país era o maior doador individual da organização, financiando quase 30% de suas operações na região. De acordo com o Departamento de Estado americano, a decisão de cortar os recursos para a agência da ONU
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deve-se ao fracasso da instituição em reformála. “Os Estados Unidos já não dedicarão mais fundos para a operação irremediavelmente defeituosa”, comunicou na época Heather Nauert, porta-voz do Departamento. O governo de Trump já havia feito cortes no começo do ano justificando que assumia um peso desproporcional na ajuda humanitária. Atualmente, a UNRWA apoia cerca de cinco milhões de palestinos. Segundo o escritor Mohammad Arafat, a agência continua fazendo reuniões internacionais para arrecadar doações. “Há quatro anos, a organização vem lidando com um agravamento do problema financeiro”, afirma. Para Arafat, a decisão pode ter consequências graves para a região: “Se a UNRWA não chegar a uma solução adequada para corrigir o seu déficit, mais de cinco milhões de refugiados palestinos serão sentenciados à fome e ao sofrimento. Além disso, a educação de centenas de milhares de estudantes da UNRWA será afetada, e milhares de professores da UNRWA serão demitidos de suas posições”. Baroud vai além: “O objetivo de Israel na guerra contra a UNRWA é minar a organização
que fornece aos palestinos o status de refugiados. Sem a representação da UNRWA, Israel espera, de alguma forma, cancelar o direito de retorno dos refugiados palestinos às suas casas na histórica Palestina”, declara o jornalista. Arafat acredita que, internacionalmente, a maior parte dos países árabes e os EUA querem uma solução entre Israel e Palestina que funcione para os dois povos. “Ainda assim, palestinos e israelenses têm várias complicações em relação a isso, principalmente agora que Israel reconheceu a si mesmo como um Estado Judeu”, observa. Em 2007, após as eleições parlamentares da Palestina, o grupo Hamas assumiu o poder de Gaza. Com isso, situação piorou, uma vez que o grupo, considerado terrorista pelas lideranças de Israel, União Europeia e EUA, defende a extinção do Estado de Israel. Para Hasan, o Hamas tem um importante papel como força contra o ataque israelense. “Eu sou contrário à política deles. Agora, como movimento de libertação nacional, são meus heróis. As divergências ideológicas nós, como palestinos, resolvemos com eles. Em primeiro lugar está o fim da ocupação”. 47
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Quem tem medo das mulheres na política libanesa? Mulheres ainda se deparam com muitas barreiras para conquistar espaço e avançar politicamente em uma sociedade patriarcal.
Por Beatriz Mazur, Marco Wolf, Rafaela Damasceno, Renata Cerdeiras
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as eleições parlamentares libanesas de 2018, cinco mulheres da rural e conservadora região de Akkar, no norte do país, resolveram desafiar a hegemonia masculina na política. Seguidoras de diferentes correntes religiosas, elas lançaram o primeiro partido feminino do país, defendendo igualdade de direitos, combate ao desemprego e investimentos na saúde e educação. Não demorou muito para as “Mulheres de Akkar” receberem ameaças. Assim que as candidaturas foram lançadas, elas e os maridos começaram a receber ligações tele-
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fônicas com pedidos de desistência, chantagens e até mesmo tentativas de suborno. Mas por que tanto medo das mulheres na política? Marguerite Helou, professora de direito e ciências políticas na Universidade do Líbano, explica que “qualquer tentativa de aumentar os direitos e o ‘status’ da mulher no Líbano é altamente difundida como uma invasão cultural que pretende mudar os ensinamentos religiosos e as tradições culturais, acabando com a família e com a estrutura social - ameaçando a identidade da seita (política)”. Esses argumentos são suficientes para que os 49
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líderes religiosos consigam apoio de grande parte da população e dificultem a candidatura de muitas mulheres. Ghida Anani, fundadora e diretora do ABAAD - Centro de Recursos para Gênero, destaca o impacto direto que isso tem na sociedade: alguns partidos baseados em religião estão colocando obstáculos no caminho de reformar leis discriminatórias contra mulheres e crianças. Além disso, segundo Ghida, a situação das mulheres é influenciada pelo sistema confessional libanês. “Esse sistema promove a ideia de que as mulheres não são feitas para ter esse tipo de papel”, ela explica. Ghida também conta que apesar de dizerem ser a favor dos direitos das mulheres, os outros parlamentaristas e o presidente do Parlamento não encorajam a candidatura feminina. “Durante eleições, a maior parte dos partidos políticos não fornecem espaço para mulheres se candidatarem em suas listas”, Anani reflete. Helou explica que nenhum dos estados árabes têm um sistema livre multi partidário com cada um representando uma seita - como o Líbano tem. Existe, no país, o medo da possível formação de uma massa crítica das mulheres no parlamento que conseguiria realizar
as mudanças desejadas por elas. “Nisso, os interesses de líderes religiosos e parlamentares homens (que não querem perder seus lugares) coincidem”, Helou afirma. A heterogeneidade da política libanesa, ou seja, a alta discordância entre as partes envolvidas, somada com a cultura patriarcal que ainda é resistente, faz com que muitas mulheres só consigam entrar na política se forem membros de famílias tradicionais do parlamento ou se aceitarem serem colocadas por partidos da seita para disputar cargos de pequena importância e baixa concorrência. Mulheres não são vistas como capazes de defender os interesses da seita. As próprias famílias só colocam as mulheres como candidatas quando não há um herdeiro homem ou até que seu herdeiro tenha idade suficiente para ser nomeado. A questão das cotas Segundo Ghida, as cotas garantiriam que mais mulheres tivessem chance de ser eleitas e de estarem presentes no parlamento. A adoção desse recurso também pode proporcionar mais oportunidades para que sejam apresentadas legislações a favor da abolição
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de leis discriminatórias contra as mulheres libanesas e da proteção delas. “Quando eu comecei a estudar a participação feminina na política, eu era fortemente contra as cotas”, diz Marguerite. “Mas, depois de conduzir uma pesquisa de campo desde 1996, eu estou convencida de que cotas são extremamente necessárias para aumentar a participação feminina no Líbano”, conta. Além dos impactos na política, a adoção das cotas pode levar a uma mudança na percepção do papel social das mulheres no Líbano, uma vez que elas também estariam em posição de tomada de decisão. Isso gera grande preocupação nas “seitas políticas” atuais porque as parlamentares poderiam aprovar leis que possibilitariam a transmissão da cidadania dessas mulheres para seus maridos estrangeiros, que podem alterar o cenário político-social atual do Líbano. Financiamento de campanha
Elas são introduzidas a um cenário na maior parte controlado por homens há muito tempo. A professora Marguerite afirma que muitos dos políticos que lançam candidaturas são, por exemplo, donos de redes ou canais de televisão - o que permite que tenham acesso à mídia muito mais facilmente. Ela ainda comenta que a “lei de proporção” - que garante um número de assentos proporcional ao número de votos que o distrito recebeu -, adotada em 2018, não pareceu ajudar as mulheres tão claramente. De acordo com Ghida, a crise sócioeconômica na qual o Líbano se encontra, além de ser a maior preocupação do governo nesse momento, também é utilizada por vários parlamentaristas como desculpa para não priorizar os problemas das mulheres, ao menos por enquanto. Mas Marguerite considera o progresso feito até agora como um sinal de que se está indo pelo caminho certo. “Em relação ao futuro, não sou tão pessimista”, diz. “É um processo lento, mas nós chegaremos lá”, completa a professora.
A falta de oportunidade e encorajamento para que mulheres se candidatem é refletida na quantidade monetária disponível a essas mulheres para seguirem com suas campanhas. 51
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ORIENTE MÉDIO
Talibã cresce e ameaça a estabilidade na região Grupo radical islâmico domina várias áreas do Afeganistão; China e Índia reconhecem a força dos rebeldes e realizam reuniões secretas para garantir a preservação de seus negócios locais
Por Deisi Gois, Danielle Leite, Luiza Lorenzetti, Rafaela Frigério e Tárik El Zein
A
pesar da presença militar norteamericana no Afeganistão e de um governo democraticamente eleito, o grupo radical islâmico Talibã domina várias cidades e vilarejos, impedindo a governabilidade do país e ameaçando negócios chineses e indianos na região. De acordo com dados oficiais das forças armadas americanas, apenas 56% do território afegão está sob o controle do governo, enquanto 30% sofrem com conflitos de insurgência. Em 2015, o governo controlava cerca de 70% dos territórios e os insurgentes mantinham apenas 7%.
“O Talibã continua a representar a ameaça mais significativa à estabilidade do Afeganistão”, salienta Harsh V. Pant, professor de Relações Internacionais da universidade britânica King’s College, em entrevista a “Olhares do Mundo”. “A capacidade do Talibã de capturar prédios do governo, controlar e contestar territórios-chave, torna isso um incômodo contínuo para o governo afegão.” O grupo defende a implantação da lei islâmica (sharia) no Afeganistão e controla 14% dos distritos do país, com forte presença militar na fronteira porosa com o Paquistão. “O
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conflito em curso chegou a um impasse com o Talibã no controle de grandes extensões. O governo, que tem procurado se reconciliar com os insurgentes e por fim a guerra, está negociando a partir de um ponto de fraqueza, dada a incapacidade dos EUA e do Afeganistão de derrotar o Talibã”. Nos últimos meses, membros dos governos da China e da Índia reuniram-se secretamente com representantes do Talibã com o intuito de garantir que a facção permita as transações comerciais na região e não prejudique a segurança nos países vizinhos. No entanto, segundo o professor Pant, ao abrir espaço para diálogos não oficiais com membros do grupo, China e Índia acabam legitimando os insurgentes e enfraquecendo ainda mais a posição do governo afegão. No início de 2018, após 16 anos de conflito com o grupo extremista, o presidente afegão Ashraf Ghani propôs reconhecer o Talibã como partido político em troca de um cessar fogo. Os talibãs teriam direito a uma sede política, os prisioneiros seriam libertados e todas as sanções impostas a eles seriam revogadas. Para Pant, a consolidação do Talibã como um partido político traria desgastes para
o vizinho Paquistão, onde o grupo fundamentalista também atua. “Soldados, autoridades de segurança e membros do governo, durante décadas, utilizaram seus recursos e treinamentos para combater os Talibãs”, reitera. Segundo ele, a integração do Talibã no processo político-eleitoral seria uma solução temporária porque haveria outras disputas, principalmente porque o grupo defende um Estado religioso. Em agosto de 2018, o Talibã recusou o cessar fogo de três meses que estava sendo negociado com o presidente Ghani – a trégua começaria no feriado muçulmano de Eid al-Adha, uma festa seguida por uma peregrinação à Meca. O líder talibã xeique Haibatullah Akhunzada negou o pedido alegando que o acordo apenas favorecia as tropas inimigas. Os talibãs continuaram promovendo ataques e sequestros em várias regiões. O grupo quadrilateral formado por China, Índia, Paquistão e Estados Unidos busca uma resolução para o impasse. “O Talibã vê a guerra em curso com uma consequência direta à invasão norte-americana ao Afeganistão e, portanto, é improvável que as discussões continuem sem a retirada dos Estados Unidos”, diz Pant.
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Vinay Kaura, professor de relações internacionais da Universidade Sardar Patel Univer, na Índia, concorda com o fracasso das negociações de paz. “Este experimento foi um desastre total. A principal limitação tem sido a firme recusa do Talibã em se envolver diretamente com o governo afegão. As perspectivas divergentes dos EUA e do Paquistão, por um
lado, e do Afeganistão e do Paquistão, pelo outro, minaram esse mecanismo”, afirma. Para Kaura, a China tem buscado dialogar separadamente com o Talibã para assegurar seus projetos desenvolvimentistas na região. “A China tem suas próprias razões para cortejar o Talibã. Eles não querem que o caos e a instabilidade no Afeganistão afetem a província
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de Xinjiang, que enfrenta o radicalismo islâmico. Além disso, eles precisam estar do lado do Talibã para garantir seus investimentos no Afeganistão – particularmente o CPEC (Corredor Econômico Chino-Paquistanês), o qual será expandido naquele país.” O Talibã foi criado em 1994 com o objetivo de organizar e instaurar um Estado ditatorial teocrático no Afeganistão, além de estabelecer domínio territorial em regiões adjacentes. O grupo ficou no poder de 1996 a 2001, quando se negou a entregar o líder terrorista Osama Bin Laden aos EUA. Com apoio do Reino Unido, Washington, invadiu o país, depôs o Talibã e implantou um sistema político democrático e laico. Os Estados Unidos treinam as forças armadas de segurança afegãs e soldados em técnicas de combate ao terrorismo desde o início da guerra, mas os talibãs têm influência sobre a etnia pashtun e os fundamentalistas islâmicos. “O grupo continua a contar com o apoio de milícias locais que, frequentemente, são os provedores de segurança nomeados pelo governo em uma região, bem como com o apoio externo de outras nações”, observa Pant.
Segundo ele, os talibãs também se beneficiam do narcotráfico. “A incapacidade do governo e das forças lideradas pelos EUA de impedir o tráfico de ópio no Afeganistão permitiu que o Talibã enchesse seus cofres, financiando sua guerra contra o Estado”. De acordo com Kaura, o fracasso das negociações com o Talibã se deve a diversos fatores, como divisões étnicas, rivalidades políticas, egos pessoais, paralisias administrativas, corrupção e, o mais importante, o apoio declarado e encoberto do Paquistão ao Talibã afegão. O especialista acredita que “o Talibã continuará a ser um desafio para a segurança afegã se o grupo não desistir do caminho violento e executar ataques devastadores em todo o Afeganistão, atingindo equipes de segurança e pessoas comuns.”
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Governo nigeriano mantém mais de 3.600 crianças presas, denuncia organização de direitos humanos A ONG Human Rights Watch (HRW) afirma que crianças e adolescentes suspeitos de pertencer ao grupo terrorista islâmico Boko Haram estão aprisionadas em condições sub-humanas.
Por Maíza Costa, Mariana Apolinário e Thais Paiva
O
combate ao grupo extremista Boko Haram, na Nigéria, por forças do governo tem levado a grandes abusos contra crianças e adolescentes, segundo grupos humanitários que atuam na região. A organização Human Rights Watch (HRW) denuncia que os militares estão mantendo crianças e adolescentes como prisioneiros em condições sub-humanas. Estima-se que eles tenham aprisionado mais de 3.600 crianças entre janeiro de 2013 e março de 2019 por suspeita de envolvimento delas com o grupo terrorista.
Em entrevista a assistentes sociais da HRW, 32 crianças presas afirmaram não ter sido levadas a tribunal em meses, em alguns casos, anos, e não sabiam nem o motivo de o governo mantê-las no centro de detenção. Apenas uma relatou ter tido contato com um adulto que ela acreditava ser um advogado. Segundo a HRW, as crianças são mantidas em locais superlotados, submetidas a fome, sede, altas temperaturas e sem contato algum com o exterior ou seus familiares. O governo nigeriano insiste que os militares agiram de maneira profissional e que as crianças flagradas em
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atos de terrorismo estão em condições seguras, sendo reabilitadas e preparadas para reintegrar a sociedade. A complexidade entre política e religião no cenário nigeriano faz com que crianças entrem em disputas ideológicas no norte do país, de maioria muçulmana. Amina Salaudeen é exprofessora dos campos que abrigam habitantes internamente deslocados e incapazes de voltar às suas casas. Segundo ela, a falta de escolas é um dos fatores decisivos no alistamento de jovens nigerianos ao grupo terrorista Boko Haram. “Na parte norte do país a população é menos educada, há níveis maiores de analfabetismo, pobreza e fome. A maioria não têm uma razão para viver”, disse Amina em entrevista a “Olhares do Mundo”. Os jovens muçulmanos são doutrinados por grupos e instituições religiosas que entrelaçam a pobreza existente no país com a corrupção do governo. “É assim que as pessoas compram a ideia do Boko Haram. Primeiro elas recebem o básico para lutar e depois um ‘motivo’, se sentem parte de algo”, explica ela. Temidire Balogun é membro da AIESEC Nigéria - organização mundial que promove liderança através de intercâmbios sociais - e soldado do serviço militar obrigatório nigeriano. Ele concorda que a falta de qualidade na
educação é um agravante no cenário nigeriano e um dos principais motivos do alistamento de jovens no Boko Haram. “É claro que existem pessoas educadas entre os terroristas, mas a maioria dos soldados da linha de frente são analfabetos.” A química e membra da AIESEC Mayowa Osanyinbe ressalta que falta de estrutura educacional permite que o fundamentalismo religioso recrute militantes e faça uma “lavagem cerebral nos jovens que acreditam na sharia e não entendem o efeito em suas vidas de se juntar à organização”. Ela ressalta a importância da educação para o bom funcionamento de uma sociedade. “Uma vez que a educação for instaurada, será mais fácil entender as leis, decretá-las e executá-las. Elas precisam ser entendidas para poderem ser respeitadas e não vistas como uma ameaça à religião e crenças.” Amina afirma que o governo, as organizações internacionais, os filantrópicos e até mesmo as professoras dos campos IDP precisam “mirar na educação para que as crianças não repitam os passos que estão sendo dados pelos membros do Boko Haram”. Fundado por Mohammed Yusuf na cidade de Maiduguri, capital do estado de Borno, o Boko Haram iniciou uma crise nigeriana que envolve o governo do país e prejudica o es-
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tabelecimento dos direitos básicos dos cidadãos, principalmente de crianças e jovens. O grupo terrorista têm como objetivos combater a influência ocidental deixada pela colonização britânica e globalização, além de implantar radicalmente a sharia (lei religiosa), construindo assim uma República Islâmica fundada no livro sagrado Alcorão. Desde seu surgimento, em 2002, a organização realiza ataques com homens bomba, sequestro de mulheres e recrutamento de jovens, causando mais de 30 mil mortes e cerca de 2 milhões de deslocamentos forçados. Segundo Amina, é preciso entender a complexidade do grupo terrorista e como ele afetou a vida da população. “Se você perguntar para uma criança residente dos campos IPD da Nigéria o que ela quer ser quando crescer, ela provavelmente responderá: um soldado para combater o Boko Haram.” Após
os ataques da última década executados pela organização criminosa e a denúncia contra o governo nigeriano de sequestrar e manter em cativeiro crianças suspeitas de envolvimento com o grupo islâmico fundamentalista, coloca-se em dúvida a existência e a proteção dos direitos humanos dos cidadãos. Balogun observa que o problema dos direitos humanos não é algo pontual da nação nigeriana, mas presente no continente africano. “A corrupção da África afeta profundamente o sistema, a implementação e cumprimento das leis. Para fazer a leis funcionarem, o governo precisa educar os cidadãos sobre os direitos 61
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que cada um tem como ser humano.” Também para Mayowa, a corrupção é um alvo que deve ser erradicado . “O governo nigeriano precisa garantir que os fundos destinados a operações de combate ao terrorismo não sejam desviados, evitando a corrupção envolvida nos tratados de armas.” Com a corrupção, a população não recebe assistência e cuidados básicos e a atuação do Boko Haram desestabiliza a identidade do país. O preconceito contra islâmicos se reforçou na Nigéria. Para Amina, a nação se construiu baseada na diversidade, mas as ações do Boko Haram e a forma como a mídia transmite as notícias sobre o grupo criaram instabilidade e fizeram com que a população nigeriana passasse a sentir medo dos muçulmanos. “Estamos perdendo um dos nossos principais aspectos.” A ex-professora também ressalta que a identidade nigeriana sofre com a comumente associação entre Boko Haram e a Nigéria em sua totalidade. “A Nigéria possui quase 200 milhões de habitantes e a ação do grupo terrorista se concentra nos estados do Norte mas qualquer um que ler ‘Nigéria, meninas de Chibok e terrorismo’ na mesma frase, não quer visitar o país africano. A ideia de ter um grupo terrorista que reside aqui aterroriza”, comenta
Amina. Para Bagolun, a associação sem precedentes entre Nigéria e Boko Haram é reforçada pela mídia internacional. “A mídia faz parecer que a Nigéria inteira está sofrendo ataques do Boko Haram, mas isso não é verdade. O mundo está vendo uma Nigéria totalmente assustada, atacada e controlada pelo terrorismo.” As consequências dessa imagem negativa e efeito causado impactam na economia do país que “perde investimentos estrangeiros”, afirma Amina. Para a ex-professora do IPD, transmitir cada ação do Boko Haram como notícia urgente e lembrar constantemente a população de que o grupo é uma ameaça diária dá mais visibilidade aos terroristas. “Isso é o que eles querem.” Por outro lado, Mayowa, da AIESEC, afirma que a mídia internacional garantiu que “o governo do país levasse assuntos como o sequestro das meninas Chibok mais a sério” e que “após a campanha #bringbackourgirls, o governo fez medidas mais eficientes para resolver a situação. Pela primeira vez, a Nigéria se juntou como uma nação para exigir que ‘devolvessem nossas garotas’. Foi um momento histórico para o país”.
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Resistência à medicina dificulta o combate ao ebola no Congo Mais de 2000 pessoas já morreram no novo surto da doença que assola o leste da Republica Democrática do Congo. Enquanto a população desconfia da vacina, grupos rebeldes atacam centros médicos.
Por Priscila Palermo, Thiago Lopes, Carolina Denari, Açucena Barreto e Felicio Henrik
A
epidemia de ebola na República Democrática do Congo (RDC) já matou mais de 2.000 pessoas desde agosto de 2018, quando a doença voltou a se manifestar na região leste, na fronteira com Ruanda e Uganda. Há cerca de 3.000 infectados. Apesar dos avanços da medicina e do desenvolvimento de oito vacinas contra o vírus, o Congo está longe de combater o novo surto. A resistência da população em geral em aceitar a vacina tem levado a uma alta mortalidade: 90% das pessoas que contraem ebola falecem, sendo um terço delas crianças.
Kivu do Norte, província onde o surto está localizado (principalmente nas cidades de Butembo, Beni e Goma), vive em guerra há mais de vinte anos, com dezenas de grupos rebeldes locais e estrangeiros de diferentes etnias disputando territórios ricos em minérios. De acordo com analistas, a situação de constantes conflitos, a corrupção governamental e o baixo investimento em saúde e segurança levaram a população à desconfiança generalizada, a teorias de conspiração e à propagação de rumores. Muitos habitantes acreditam que o ebola 63
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seria uma manobra política, o que fez milicianos atacarem centros de tratamentos médicos, destruindo equipamentos, ferindo e matando profissionais da saúde, enfatizando que não queriam esse tipo de ajuda. Os rebeldes deixaram, inclusive, avisos escritos de que não queriam a presença dos agentes. Com medo, a população deixou de procurar ajuda nos centros de tratamento, o que aumentou o número de casos de ebola de fevereiro para cá. Também, devido ao desconhecimento sobre a doença, os infectados resistem em procurar os hospitais da cidade, porque quase todos que foram internados não saíram com vida. Embora seja uma característica da doença ter mortalidade alta, muitos congoleses acham que são os cuidados médicos que matam e não o vírus em si. A biomédica Maria Isabel Nogueira Caño, professora da Faculdade de Medicina da UNESP de Botucatu, salienta que questões culturais também impedem o combate ao vírus. “Uma boa parte da população não acredita nas vacinas, prefere acreditar em curandeiro”, comenta. Segundo ela, seria necessário fazer grandes campanhas de vacinação para o combate à doença. Mas há outros problemas a serem enfrentados, como a falta de higiene
e o ritual de lavar o corpo dos mortos, além da dificuldade de levar a vacina aos animais silvestres, transmissores da doença. Prudence Kalambay Libonza, congolesa, modelo e ativista pelos Direitos Humanos que veio para o Brasil em 2008, mostra indignação com a indiferença do mundo às tragédias de seu país: “Do Congo, com uma guerra que matou mais do que a Síria, ninguém fala”. Prudence saiu de seu país fugindo dos conflitos e de perseguição política. Segundo ela, o grande problema em relação à doença é a desinformação, principalmente das pessoas que vivem em zonas rurais e não têm dimensão do perigo que correm diariamente. “A gente que está aqui de fora sabe mais, aqui de fora ficamos mais conectados e sabendo das notícias”, afirma. Apesar dos sete ataques que os médicos e enfermeiros locais e da OMS (Organização Mundial da Saúde) sofreram em 2019, os Médicos Sem Fronteiras (MSF) permanecem no Congo, com cerca de 2.800 profissionais. Além de médicos, há enfermeiros, psicólogos e profissionais de outras áreas, como logística, administração e comunicação, entre expatriados (profissionais estrangeiros) e pessoas contratadas. Igor Moraes, Diretor Internacio65
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nal da área de Recursos Humanos do MSF no Brasil, explica que há protocolos que os profissionais devem cumprir em caso de perigo: “Podem ser determinados toques de recolher ou redução dos contatos e da exposição”. O vírus do ebola é transmitido através do contato com sangue, saliva, urina e fezes de animais e humanos infectados. Sua transmissão só ocorre após a manifestação dos sintomas, que são, febre, dor de cabeça, fraqueza muscular, diarreia, vômitos, dor de garganta, falta de apetite e hemorragias internas e externas.
No início da doença, muitos desses sintomas podem ser facilmente confundidos com uma virose mais simples, como a gripe, o que pode retardar a procura por um médico. O principal hospedeiro do vírus são os morcegos não frugívoros que vivem na floresta, mas macacos e chimpanzés também podem hospedá-lo. Provavelmente, o vírus descoberto em 1976, foi transmitido aos humanos a partir do contato com fluídos, sangue ou órgãos desses animais. E as epidemias são recorrentes por conta do frequente contato que muitas das populações africanas mantêm com esses animais. “O animal fica infectado pelo vírus ebola e lá, a população tem costumes, rituais religiosos ou até por questões de alimentação, comem o animal infectado e acabam se contaminando”, afirma Nogueira Caño.
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Omissão do Estado favorece estupros em massa no Congo, dizem especialistas Desde 1994, milhares de mulheres foram atacadas nos conflitos da República Democrática do Congo; o estupro é usado como arma de guerra para desmoralizar os homens e destruir as famílias.
Por Bruno Andrade, Joice Martins e Thais Oliveira
O
prêmio Nobel da Paz conferido em 2018 ao médico ginecologista Denis Mukwege em reconhecimento ao trabalho contra a violência sexual na República Democrática do Congo (RDC) chamou a atenção internacional para o problema no país africano. No início deste mês, o ex-líder rebelde congolês Bosco Ntaganda foi condenado a 30 anos de prisão por escravizar e violentar mulheres e crianças. Ntaganda foi o primeiro membro de facções criminosas a ser condenado pelo Tribunal Penal Internacional,
mas os avanços na proteção da mulher são graduais. Especialistas ouvidos por Olhares do Mundo dizem que o estupro como arma de guerra e a agressão contra a população feminina só serão combatidos quando houver uma efetiva política de Estado. “A principal responsabilidade pela prevenção de crimes de guerra, incluindo o estupro, cabe ao Estado. Foram os Estados que falharam com as vítimas na violações dos direitos humanos”, disse Stefan Kirchner, professor de Direitos Humanos da Universidade 67
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da Lapônia e autor de “War, Rape and Failure in the Congo” (guerra, estupro e fracasso no Congo). De acordo com os estudos realizados no início desta década pela ONU e por organizações de direitos humanos, 40% das mulheres da RDC e 24% dos homens já foram vítimas de violência sexual em ataques oriundos dos conflitos entre as facções políticas. O jornalista americano Michael Deibert, autor de “The Democratic Republic of Congo: Between Hope and Despair” (a República Democrática do Congo: entre esperança e desespero), não vê a possibilidade de uma redução da violência a curto ou médio prazos. “O fato de que a eleição de 2018, na qual o presidente Félix Tshisekedi substituiu Joseph Kabila, foi alcançada por meio de fraude e de negação de vitória do candidato Martin Fayulu, não é encorajador em termos de perspectivas de responsabilidade por crimes cometidos sob o governo de Kabila”, disse o escritor. “Kabila ainda detém muito poder no atual governo, mesmo que, talvez, nos bastidores.” Deibert observa que, além das milícias apoiadas por governos estrangeiros (Ruanda e Uganda), “há evidências substanciais de que os aliados do governo em Kinshasa também
cometeram abusos terríveis, incluindo violência sexual”. As leis em relação a agressões sexuais na República Democrática do Congo são brandas e os ataques contra mulheres continuam ocorrendo de forma frequente não só nas zonas de confronto, em Kivu do Norte, Kivu do Sul, Ituri e Kasai (no leste do país), mas na própria capital, Kinshasa. Noella Bénie, 23 anos, imigrante congolesa que vive em São Paulo, lamenta que o país não tenha uma política que proteja as mulheres. Não há, por exemplo, uma lei que ampare uma mulher que sofre estupro após os 18 anos. De modo geral, segundo ela, a população vê a mulher como “madura e responsável por tudo”. O estupro seria uma consequência das escolhas da própria vítima. A violência tem gerado protestos, reprimidos pelas forças de segurança. Noella participou de alguns quando morava na RDC. Ela e sua irmã faziam parte do grupo que organizou vários protestos em 2013 para reivindicar melhores condições de vida. “Vestimos camiseta branca e sujamos com um pouco de sangue [falso] e fizemos diversos protestos que duraram cerca de dois meses”, contou Noella. “Quando o presiden-
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te descobriu que eu e minha irmã estávamos envolvidas com esse projeto eles vieram nos ameaçar. Tentaram nos sequestrar, nos matar e outras coisas assim, por isso viemos para o Brasil”, afirmou. A imigrante diz que o governo congolês chegou a pedir seu retorno, mas o governo brasileiro nunca permitiu e sempre a protegeu. Gloria Shala, estudante da Universidade de Kinshasa, diz que, além de ser alvo dos grupos rebeldes, as congolesas enfrentam uma forte cultura machista. “Ser mulher na RDC é estar a serviço do marido, ficar em silêncio entre os homens, trabalhar apenas na cozinha, ser objeto de marketing e publicidade política. Ser mulher é ser inferior ao homem”, diz Gloria. Chris Boseyi, estudante universitária também de Kinshasa, conta que se sente insegura de andar sozinha pelas ruas, uma vez que as agressões ocorrem de maneira generalizada e sem uma fiscalização de guardas civis. “Nosso governo é corrupto. Acontece [estupro] a qualquer momento do dia. Não posso andar na rua se houver homens, com medo de ser sequestrada à noite. A partir das 20 horas tenho que estar em casa.” Boseyi teve sua irmã morta ainda criança devido a uma agressão sexual. A fragilidade política e a violência exis-
tentes no país remontam ao neocolonialismo, quando o rei belga Leopoldo II transformou a RDC em sua propriedade pessoal. Ele escravizou violentamente os povos que viviam na região e acirrou as disputas entre as tribos. A independência foi conquistada em 1960, porém o país nunca conseguiu se recuperar totalmente do passado de autoritarismo e violência. O professor de direitos humanos Stefan Kirchner esclarece que o estupro está intrínseco à cultura africana como um todo, mas sobressai-se na República Democrática do Congo. “O conflito na RDC se destacou em termos de número de vítimas e brutalidade dos crimes, mas, infelizmente, o problema persiste em muitos países.” Para Kirchner, as ONGS da República Democrática do Congo são fundamentais no processo de apoio às vítimas e visibilidade mundial das desigualdades e conflitos do país. “No caso da RDC, houve alguma atenção internacional graças principalmente ao trabalho do Dr. Denis Mukwege e sua equipe, que também foi reconhecido no ano passado quando o Dr. Mukwege recebeu o Nobel da Paz.” Mukwege criou o Hospital Panzi e trabalha com políticas ativistas em prol da dignidade, defesa e recu-
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peração de mulheres violentadas. A mídia internacional tem ajudado a chamar atenção para o problema. A jornalista Lauren Wolfe foi uma das primeiras no ocidente a relatar os abusos em um grande veículo. O seu artigo “The village where dozens of young girls have been raped is still waiting for justice” (A vila onde dezenas de meninas foram estu-
pradas ainda está esperando por justiça) foi realizado como uma forma de desafiar o governo a tomar medidas. “Quatro horas após a publicação no [jornal inglês] The Guardian, 68 homens e um membro do parlamento foram presos. Mostra o incrível poder da mídia”, disse Wolfe.
Trabalho de Denis Mukwege com as vítimas de estupro na RDC (Mukwege Fundation) 71
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ÁFRICA
Mulheres africanas lutam pelo direito à terra Apesar dos avanços na lei obtidos pelos movimentos feministas em todo o continente, a tradição no campo ainda impede que elas herdem uma propriedade.
Por Bruno Roque, Clara Valdiviezo, Julia Alves e Leticia Moura
N
o Nordeste da Tanzânia, na região de Mara, uma tradição tribal leva mulheres mais velhas a viverem com mais novas em arranjo semelhante a um casamento para poder herdar as terras da família. Em várias tribos, as mulheres não têm direito à terra, e as mais velhas, sem marido ou filhos, “se casam” com uma mulher mais nova – e geralmente, divorciada – na esperança de que ela engravide de algum membro da tribo e gere um herdeiro. O direito da mulher à terra é garantido por
lei na Tanzânia, mas a prática ilegal mantémse até hoje porque as tradições as discriminam, diz o advogado Geofrey Massay, da ONG Landesa, organização internacional de defesa dos direitos femininos à terra que atua no país. Segundo ele, a pressão familiar, as ameaças e a falta de conhecimento e de habilidade para lutar pelos direitos através do sistema legal impedem o acesso da mulher a um pedaço de chão. Massay destaca que às restrições à terra geram outros graves danos à mulher. “Elas
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perdem os meios de subsistência, sofrem efeitos psicológicos, não conseguem cuidar da educação e das necessidades nutricionais das crianças, se tornam vítimas de abuso doméstico, perdem a autoconfiança e a habilidade de participar de decisões em relação à terra, além de não poderem participar do gerenciamento de recursos naturais na comunidade.” Mami Estrela, educadora e ativista caboverdiana, ressalta que, sem o controle da terra, as mulheres se tornam cidadãs de segunda classe. A tradição patriarcal na África perpetua um ciclo de desvantagens e preconceitos. O direito à propriedade é uma questão econômica, por não permitir às mulheres que tenham uma fonte de renda baseada na agricultura, sem a dependência masculina. Entretanto, a questão também é social por implicar cidadania e direitos. Para a ativista, parte dos problemas enfrentados pelas mulheres africanas está ligada à brutalidade da colonização europeia. “Há provas de várias sociedade matrilineares que viram as suas organizações transformadas pela imposição do patriarcado levado pelos europeus”, ressalta. Segundo ONGs que lutam pelos direi-
tos da mulher na África, o continente ocupa o mais baixo lugar no índice global da igualdade de género, tem os índices mais elevados de violência doméstica e de circuncisões e mutilações femininas, além de outras tradições prejudiciais. Quase 40% das economias mundiais têm pelo menos uma restrição legal ao direitos das mulheres à terra, segundo o Banco Mundial. A instituição diz, ainda, que 39 países do mundo permitem que filhos herdem uma proporção maior de bens do que filhas. O direito internacional exige que os governos adotem todas as medidas necessárias para pôr fim à discriminação e garantir o respeito aos direitos humanos das mulheres. No entanto, 28 estados ainda não ratificaram a Carta Africana de Direitos Humanos e das Pessoas. De acordo com dados da ONU, 66,2% da população da Tanzânia é rural, este número implica na falta de moradia e de ferramentas para subsistência feminina. O mais importante, segundo Massay, é que essas práticas não são estáticas e vem mudando aos poucos. “Em algumas áreas as pessoas já as abandonaram”, salienta o advogado.
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As recentes conquistas da mulher na África são o resultado da luta feminista e do trabalho de ONGs locais e internacionais na defesa da mulher. O movimento feminista africano começou no início do século XX, com as mulheres lutando contra o colonialismo e o patriarcado na guerra pela libertação das colônias. “Os movimentos de mulheres, tanto na área rural como urbana, organizaram a causa por anos e pressionou por reformas políticas que garantiram os direitos da mulher à terra”, diz Massay. “Elas usaram a mídia e processos administrativos e judiciais para obter mudanças nas leis e nas Constituições.” Um exemplo de sucesso, segundo ele, foi a Iniciativa Kilimanjaro, um movimento panafricano de mulheres rurais por direito à terra com 15 reivindicações posteriormente adotadas pela União Africana. “Em nível global, organizações feministas apresentaram propostas à Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW), da ONU, e exigiram que o governo da Tanzânia reconhecesse e protegesse o direito da mulher a herança de propriedade.” 75
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AMÉRICA
Ameaça de guerra nuclear entre potências não deve ser subestimada, dizem especialistas Com a saída da Rússia e dos EUA do tratado de redução de armas e o desenvolvimento de novas tecnologias bélicas por Irã e Coreia do Norte, aumentam os temores de um conflito atômico
Por Amanda Adachi, Maryane Sales, Nathália Corominas e Talita Alves
A
guerra comercial entre China e EUA, a retirada dos EUA e da Rússia do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF) e a preocupação sobre o fim do Tratado de Redução de Armas Estratégicas têm alarmado a comunidade internacional. Segundo Pavel Luzin, professor universitário sênior na Universidade de Perm, na Rússia, todos os cenários possíveis de confrontos nucleares na atualidade não consideram a guerra nuclear como a Guerra
Fria, mas enfatiza que a ameaça da guerra nuclear existe e que não deve ser subestimada. O consenso entre os especialistas ouvidos pelo Olhares do Mundo é de que não haverá guerra sem um motivo claro ou um acontecimento catalisador relacionado aos militares, o que não ocorreu até o momento. Dinshaw Mistry, especialista em proliferação de armas nucleares da Universidade de Cincinnati, ressalva que o evento catalisador sozinho não é suficiente para resultar em conflito.
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“Eventos catalisadores podem escalar em diversas etapas, variando de ações militares de pequena escala até grande escala, e envolvendo decisões políticas de retrair ou se estender, antes que se torne uma guerra nuclear. E mesmo guerras nucleares podem variar de pequenas escalas (envolvendo de uma a cinco armas nucleares) a uma maior escala”, afirma. Estados Unidos e Rússia se retiraram em agosto de 2019, gerando novos rumores de uma guerra nuclear. Sem o principal pacto, ambos países podem voltar a produzir e testar novas armas. Meses antes de encerrar sua participação no INF, Washington havia acusado a Rússia de quebrar tal pacto, com base na suspeita de que o país estaria transportando um sistema de mísseis novator 9M729, com alcance de 4000 km, superior ao permitido (que é de 500 quilômetros), para próximo da fronteira com outros países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Em razão disso, os americanos ameaçaram deixar o pacto caso a Rússia não destruísse seu armamento. A Rússia argumenta, em contrapartida, que o míssil só chega a 480 quilômetros, ou seja, está dentro dos padrões permitidos pelo pacto. Por esse motivo, recusam o pedido
americano e anunciam que também vão se retirar do tratado. No início de novembro, a Rússia fez um exercício de guerra nuclear utilizando um submarino. O objetivo do submarino é infiltrar-se nos mares do Atlântico Norte sem ser identificado e assim, lançar um ataque nuclear contra a costa leste americana. Exercícios como este eram constantes na Guerra Fria, evidenciando que há chances de um retorno desse embate no mar. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, Estados Unidos e Rússia viveram um clima de tensão política, ideológica e nuclear. Ao decorrer das décadas, armamentos pesados como mísseis cruzeiros foram criados e modificados, gerando tensões a respeito de um possível alarme de disparo das bombas, que trariam consequências terríveis para as duas nações e o mundo. Contudo, em dezembro de 1987, foi assinado pelo então presidente americano, Ronald Reagan, e pelo russo, Mikhail Gorbachev, o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (INF). Após os dois países se retirarem do INF, em agosto de 2019, um outro acordo, o Tratado de redução de armas estratégicas (START), sancionado em 2010, está com os dias conta-
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dos. O pacto prevê uma diminuição de 30% das ogivas nucleares. No entanto, o START durará somente até 2021, e a principal questão em voga é se americanos e russos darão continuidade a ele. Para o cientista político russo Pavel Luzin, da Universidade de Perm, o fim do START e a falta de um acordo para seu prolongamento representam uma ameaça para o Tratado de Não Proliferação e possivelmente para o Tratado Espacial. Por isso, ele acredita que existam várias possibilidades de resolução, mas o mais provável é que ambos países determinem algum prolongamento formal. Na opinião do especialista, existem diversos cenários para este conflito. Um radical, onde o START não será prolongado, representando um desafio crucial para os tratados de não proliferação. O outro seria uma solicitação do governo russo para que haja mais um desarmamento, visto que o país possui menos armas nucleares do que o permitido pelo START. “A Rússia não é mais um ator confiável, não tenho certeza de que os Estados Unidos estejam prontos para assinar um novo tratado para a substituição do START”, comentou Apesar de possuírem o título de maiores potências nucleares do mundo, a Rússia e os
Estados Unidos não são os únicos a possuir o poder de ameaça através de bombas atômicas. Outras nações também estão desenvolvendo seus armamentos nucleares, como forma de demonstrar que também são capazes de defender seus interesses políticos e ideológicos, por intermédio de mísseis atômicos. Entre as nações estão Coreia do Norte, China, Paquistão, Irã, Israel, Índia e Japão.
Rússia x Japão Entre o Japão e a Rússia, o motivo de tensão é resultante de um tratado de paz pendente desde o século XX e a disputa territorial das ilhas Curilas (Iturup, Shikotan, Habomai e Kunashir), reivindicadas por Tóquio e sob controle russo desde o fim da Segunda Guerra Mundial, no qual, ainda no começo do ano, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o primeiro-ministro do Japão, Shinzo Abe, se reuniram para começar negociações. Os preparativos da cúpula foram perturbados quando Tóquio deixou claro que seu objetivo ainda era para recuperar as ilhas Curilas. Por outro lado, para o cientista político Alexandre Ratsuo Uehara, especialista em política japonesa pela Universidade de São Paulo 79
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e ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos Japoneses, um dos fatores que pesa sobre essas negociações são os interesses geopolíticos russos, uma vez que a região é importante para garantir o acesso da frota russa ao mar aberto. “É um ponto difícil para que a Rússia abra mão e para que se tenha um acordo com o Japão”, disse a Olhares do Mundo. A Rússia coloca importância nas Ilhas Curilas, pela defesa do Mar de Okhotsk, ao norte do Japão. A área é estratégica para a instalação de forças nucleares contra os Estados Unidos, mas é reivindicada pelo Japão. Tóquio já havia manifestado oposição a um acúmulo militar na região. Isso, segundo os especialistas, poderia fazer com que os EUA se unam ao Japão em uma possível tentativa de enfraquecer a Rússia, visto que Washington já possui armamento militar em ilhas japonesas. Por outro lado, para Alexandre Ratsuo, se a Rússia e o Japão não chegarem a um acordo, o cenário da Ásia deve continuar o mesmo, com as reivindicações japonesas e as resistências russas, o que não significa que haverá uma guerra entre os dois países. “Uma guerra internacional envolvendo países como a Rússia e os EUA seria bastante problemática, para
não dizer catastrófica, para as economias do mundo como num todo”, afirma Ratsuo. Além disso, Putin também manifestou preocupação com a possibilidade de expansão militar dos EUA e com o plano de Tóquio de implantar um sistema de defesa antimísseis desenvolvido pelos americanos, afirmando que um tratado de paz é difícil de ser concluído, a menos que o Japão explique sua futura política de segurança.
Irã Outro país que tem preocupado as potências é o Irã, que há cerca de quatro anos está em constante confronto com Israel, um dos motivos é a forte presença iraniana no conflito sírio. Neste período as duas nações se confrontam através de mísseis, o que já causou diversas mortes. O Irã é acusado de patrocinar os mísseis disparados da Síria pelo grupo libanês xiita Hezbollah. A preocupação com o Irã é em relação às pressões internas que o país vem sofrendo para sair do acordo de não-proliferação de armas nucleares, tratado do qual o país é um dos signatários. Os EUA e o Reino Unido foram os primeiros a não renovar o acordo alegando
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que Considerando que outras potências têm investido em armas nucleares e que o país persa continuava desenvolvendo seu programa nuclear. Em resposta, o país ter anunciou em novembro que retomou as atividades de enriquecimento de urânio – usado na fabricação de armas nucleares – e que estava reduzindo os compromissos assumidos com a comunidade internacional sobre seu programa nuclear. O programa conhecido como Plano de Ação Conjunto Abrangente (JCPoA), assinado em 2015, contava com os EUA, França, Alemanha, Reino Unido, Rússia e China e estabelecia que o Irã não podia manter uma reserva maior de trezentos quilos de urânio enriquecido.
EUA e China Os conflitos entre EUA e China se intensificaram em 2018, quando ambos países começaram a escalar tarifas alfandegárias. Mesmo após a tentativa de acordo, as tarifas sobre os produtos continuaram, afetando tanto os produtos americanos quanto os produtos “made in China”, resultando na “Guerra Comercial entre China e EUA.” Simultaneamente a esse embate, a China
tem investido em poderes nucleares, enquanto os EUA continuou realizando testes de mísseis. Apesar disso, na visão do cientista político Scott Moore, diretor do programa Penn Global China na Universidade da Pensilvânia, uma guerra nuclear é o cenário menos provável de se tornar realidade.“A liderança da China é muito relutante a riscos para contemplar o uso de armas nucleares sob quase qualquer cenário imaginável”, afirma. Já para Michael Klare, Professor de Estudos de Paz e Segurança Mundial do Five College, é provável que aconteça confrontos armados entre os EUA e a China sobre as ilhas contestadas no Mar da China Meridional e no Mar da China Oriental. Klare explica que “esse conflito pode começar muito pequeno: um navio chinês colide com um navio americano quando ambos navegam perto de uma das ilhas. Mas poderia escalar muito rapidamente para algo muito maior, com muitos navios ou aviões envolvidos (e até armas com armas nucleares”. Um fator de possível embate apontado tanto por Klare quanto por Scott é a disputa em torno de Taiwan. Se a China radicalizar o empenho para reunificar Taiwan e o continente chinês, os EUA poderiam intervir a favor 81
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de Taiwan, o que elevaria o risco de escalada acordo de desnuclearização, ou seja, tem o nuclear. intuito de diminuir o número de armas nucleares. De acordo com o professor de engenCoreia do Norte haria quântica e nuclear da KAIST (Korea Advanced Institute of Science and Technology), Devido aos constantes testes balísticos, o Yim Mang-Sung, com este acordo a Coreia do país é um dos principais focos da questão nu- Norte teria benefícios, como garantia de seclear. Atualmente, o presidente norte coreano gurança dos EUA, prosperidade e progresso Kim Jong-Un está negociando termos de um econômico por meio da relação cooperativa 82
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normalizada com a Coreia do Sul e a integração na economia global. Os encontros para decidir os termos do tratado, iniciados em fevereiro, não resultaram em avanço e permanecem em um vai e vem. Neste cenário, a Coreia do Norte tem seguido um padrão, no qual anuncia que vai retomar as negociações e realiza um teste nuclear logo em seguida. O professor Mang-Sung acredita que estes testes são uma tentativa de pressionar os EUA a assinar o acordo nos termos norte-coreanos. Com a aproximação do fim do ano, data limite imposta por Kim Jong-Un para a assinatura do acordo, as tensões tendem a aumentar ainda mais. O teste que preocupou a comunidade internacional foi realizado no início de outubro e consistiu no lançamento de um míssel nuclear com capacidade submarina, o que significa que a Coreia do Norte pode lançar mísseis de longo alcance. No fim de outubro, de acordo com as forças armadas sul-coreanas, a Coreia do Norte disparou dois projéteis não identificados no Mar do Leste (também conhecido como Mar do Japão), que, de acordo com Tóquio, aparentam ser balísticos. Os projéteis aterrissaram fora da zona econômica marítima exclusiva do
Japão. O Primeiro Ministro Shinzo Abe condenou os testes afirmando que este “é um ato de ameaça a paz e segurança do Japão e região”. Com o disparo dos projéteis norte coreanos efetuados no último dia 31 de outubro, a Coreia do Norte computa 12 testes de mísseis neste ano, número que preocupam os sul coreanos e japoneses. No Japão, um possível acordo entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul e diálogos entre Estados Unidos e Coreia do Norte são vistos com ceticismo. Tóquio teme que um conflito entre EUA e Coreia do Norte afete o país, deixando o Japão vulnerável a ataques. O Japão não possui qualquer tipo de armamento nuclear para responder a ataques além de escudos antimísseis balísticos. O ministro da Defesa do Japão, Takeshi Iwaya, considera os foguetes testados pelos norte-coreanos são um novo tipo de mísseis balísticos de curto alcance e uma evidência clara de um programa desenvolvido para superar as defesas japonesas, que foram implementadas no mar e em terra com a ajuda de tecnologias norte americanas.
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Nova Constituição cubana aceita a desigualdade social, dizem especialistas Carta magna substitui o termo “comunismo” por “socialismo” e formaliza a propriedade privada. Cubanos mais velhos temem extinção dos valores revolucionários na nova economia dual.
Por Amanda Oliveira, Bruno de Castro, Raquel Pryzant e Rodrigo Loturco
A
nova Constituição cubana, aprovada pela Assembléia Nacional em julho deste ano, retirou da carta magna o termo “comunismo”, causando surpresa dentro e fora do país. Especialistas ouvidos por Olhares do Mundo observam que, embora a substituição do termo por “socialismo” não traga alterações políticas profundas, ela gera um conflito para as gerações mais velhas. Os cubanos que cresceram acreditando na construção uma sociedade comunista, sem
classes e igualitária, estão decepcionados com o fim do ideal. O professor Albert Manke, do Centro de Estudos Interamericano da Universidade Bielefeld, na Alemanha, observa que, para as gerações cubanas dos anos 1960 a 1990 educadas para o comunismo, a nova Constituição, que será submetida a referendo em fevereiro, representa uma perda de valores. “Mesmo que Cuba continue sendo um Estado onde sua única força política é o Parti-
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do Comunista, o objetivo de alcançar o comunismo ideal no futuro foi eliminado. Apesar de irrelevante para a geração jovem, que quase não tem acesso à grandes poderes na política, para os idosos cubanos, isso mostra que a geração mais jovem, interessada no consumismo e nas mídias sociais, perdeu seus valores”, analisa Make. “Esta e outras mudanças propostas no texto constitucional trazem para a superfície um conflito geracional que permeia a sociedade cubana. O conflito envolve: para onde querem ir; o que querem para o futuro e como podem mudar a sociedade sem perder as conquistas sociais da revolução.” Apesar de não ter mais o comunismo como meta, Cuba continua sendo controlada pelo Partido Comunista. Mesmo assim, com a introdução gradual da propriedade privada, há dúvidas sobre o futuro das conquistas sociais da revolução. Desde a crise econômica gerada pelo fim dos subsídios soviéticos na década de 1990, Cuba permite investimentos privados diretos no setor de turismo, mineração e petróleo. Também foram liberados pequenos negócios internos na área turística, como restaurantes, pousadas, serviços de transporte e beleza.
“A permissão de pequenas empresas privadas não é novidade, mas a reforma proposta [na Constituição] codifica pela primeira vez a propriedade privada desse setor em crescimento. Esperamos que isso signifique maior segurança jurídica para os trabalhadores autônomos e empresários estrangeiros”, diz Manke. O professor reconhece, no entanto, que a Constituição aceita silenciosamente as crescentes desigualdades que surgem nesta economia dual. O professor emérito de Harvard Jorge Dominguez, especialista em América Latina, observa que o governo de Raúl Castro expandiu significativamente o setor privado a partir de 2010, com a predominância de pequenos empreendimentos. Há, atualmente, dois segmentos no setor privado: o de firmas estrangeiras que atuam em parceria com o Estado e o de cubanos autônomos, cujo maior empreendimento são os restaurantes. “A principal diferença nas últimas semanas é a seguinte: na época do último Congresso do Partido Comunista, em 2016, havia preocupação com o setor privado, que poderia crescer muito rápido e ser muito lucrativo. A abertura para microempresas e pequenas
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empresas não foi revertida, mas novas licenças não foram emitidas e houve uma parada no crescimento”, afirma Dominguez. Com a aprovação do texto constitucional, o governo anuncia a volta da distribuição de licenças de trabalho autônomo, explica o professor. Contudo, cada cidadão poderá ter somente uma empresa, e restaurantes não poderão ultrapassar a marca de mais de 50 clientes. Segundo Dominguez, o único setor da economia cubana que cresceu significativamente nos últimos anos foi o setor privado, que também é a principal fonte de receita para o regime cubano. “O governo tem um incentivo econômico para permitir o crescimento do setor privado e um incentivo político para evitá-lo. Essa é a razão para o vai-e-vem”, observa o professor emérito de Harvard.
Poder
o presidente deverá ter entre 35 e 60 anos. Para Manke, será interessante ver como o sistema de partido único será afetado pela separação e interação de poderes entre dois líderes. Por enquanto, segundo ele, DíazCanel tem de seguir a linha determinada por Raúl Castro.“Mas o que acontecerá depois que Raúl Castro morrer? Outros líderes e grupos de pressão podem querer reivindicar legitimidade e acesso ao poder, como já pode ser visto nas opiniões públicas compartilhadas pelos líderes das igrejas católicas e evangélicas, dois grupos que usufruem de proteção constitucional desde 1992 e que dependem de financiamento do exterior”, observa. Manke acredita no processo gradual de abertura política e econômica na ilha caribenha. “Cuba continuará seu processo de modernização ou atualização, termo mais usado, de seu sistema socialista e continuará chegando a outros governos e investidores para expandir a cooperação econômica”, prevê o professor.
Entre as novidades da organização estatal cubana proposta pela nova Constituição estão: a presença de um primeiro ministro, o limite de cinco anos para o mandato presidencial e a possibilidade de reeleição. Além disso, 87
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Em meio à crise política e econômica, porto-riquenhos falam em independência A ilha caribenha vive como colônia dos EUA, mas anseia por autonomia, principalmente após os comentários preconceituosos de Trump sobre latino-americanos.
Por Gabriela Cunha, Larissa Guiguer, Luana Figueiredo e Victoria Claramunt
A
chegada de Donald Trump à Casa Branca e os constantes ataques do líder americano aos imigrantes latinos aumentou o mal-estar na população de Porto Rico, território depende dos EUA com 3,5 milhões de habitantes e status de estado livre associado. Os apelos pró-independência vêm crescendo em meio à crise política e econômica que assola a ilha caribenha. Recentemente, mais de um milhão de porto-riquenhos foram às ruas para pedir a renúncia de Ricardo Rosselló, que governou 88
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Porto Rico em 2017 a 2019 e foi acusado de trocar com seus assessores mensagens racistas e homofóbicas contra seu próprio povo. O mandatário renunciou em julho e foi substituído pela ex- secretária de Justiça Wanda Vasquez. “Não somos um estado e muito menos somos livres. Somos uma colônia”, lamentou Itxamarie Jimenez, cidadã porto-riquenha, que participou dos protestos contra Rosselló. “Porto Rico vive em total dependência de um país opressor. Embora o mundo tenha uma
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visão distorcida sobre a vivência de seus habitantes e acredite que o país viva com estabilidade, a realidade é bastante diferente. Há muita injustiça, pobreza e falta de educação de qualidade na ilha”, comentou a estudante de pedagogia na Universidade Pública de Porto Rico, única universidade pública do país. Hiraida Velez, estudante de psicologia na mesma universidade, também foi às ruas. Além de protestar contra a postura preconceituosa de Rosselló, reclamou do aumento de 115% o custo da matrícula. “Há dois semestres, paguei US$58 e neste semestre paguei US$125. Não tinha pago pela minha educação antes, mas agora tenho de pagar. Não acho justo pagar para estudar em uma universidade pública”, comenta a estudante. O descontentamento tem gerado também apelos por mudanças em artigos na imprensa. “Sem dúvida, há muitos grupos que expressaram suas diversas posturas em relação à esperança de mudança. Muitos acreditam que a independência é a solução”, confirma Laura González, jornalista do “El Vocero”, jornal diário de San Juan, a capital. Milagros Bauzá, professora de história na Universidade de Porto Rico e cidadã porto-
riquenha, explica que dentro do país existem vários movimentos que acreditam, de formas diferentes, no futuro da colônia. Segundo Bauzá, há três principais movimentos: um quer a separação total dos EUA, a independência; outro quer que o país continue do jeito que está, sendo um Estado Livre Associado; e o terceiro, que se intitula estadista, querem que Porto Rico se torna o 51º estado dos Estados Unidos. Para Itxamarie Jimenez, a situação é muito complicada. Ao mesmo tempo que considera a independência o melhor para a ilha, ela teme pelo futuro. “Desde que os EUA nos invadiram, dependemos economicamente deles, porque não temos liberdade para exportar nossos produtos, nem temos qualquer tipo de contato político, social ou econômico com outros países.” Já Hiraida ressalta que, para o movimento de independência tomar força e ser colocado em prática, é indispensável que a população porto-riquenha tenha consciência dos fatos que levam o país a ser uma colônia. “É preciso ter educação e ter conhecimento da situação para poder agir”, completa a estudante. Segundo analistas locais, a entrada de 89
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Donald Trump na presidência dos Estados Unidos também prejudicou a vida dos portoriquenhos que tentavam uma vida melhor fora da ilha. As falas preconceituosas do presidente reforçaram uma ideologia racista contra os moradores de Porto Rico, que antes já sofriam por ser um povo dependente dos EUA. Hiraida menciona que aqueles que se mudaram para outros estados dos EUA sentiram o racismo mais forte do que antes. Porto Rico está vinculado à Washington desde 1898, quando a Espanha perdeu a guerra hispano-americano para os Estados Unidos e a ilha ficou sob o controle político de Washington. Em 1952, Porto Rico foi declarado como Estado Livre Associado, significando que, por um lado, os porto-riquenhos têm direito a votar em sua Constituição e eleger seu governador, o direito de um passaporte estadunidense e de usar o dólar como moeda, mas, por outro lado, Porto Rico cede parte de sua soberania aos Estados Unidos, ou seja, grande parte das decisões em questões fiscais, financeiras, políticas e econômicas, bem como as questões de defesa e migração, dependem de Washington. A economia de Porto Rico é um dos pontos cruciais que mantém a ilha estagnada.
Atualmente, há um Conselho de Controle Fiscal para pagar a dívida que a ilha tem com os EUA. No entanto, esse pagamento prejudica severamente a população, que sofre com cortes na saúde e na educação. Por mais de 60 anos, a economia de Porto Rico tem sido baseada em incentivos fiscais. Várias empresas estadunidenses, especialmente empresas farmacêuticas, de produtos eletrônicos e roupas, se instalam no país. Elas eram atraídas por dois fatores: os benefícios fiscais oferecidos pelo governo dos Estados Unidos e os baixos custos de mão de obra, por sua vez, o que permitiu os habitantes de Porto Rico atingir um nível médio de riqueza superior ao resto da América Latina. Contudo, em 2005, quando os Estados Unidos decidiram eliminar esse benefício, as empresas começaram a deixar a ilha e a economia de Porto Rico entrou em recessão. Começaram a surgir problemas para pagar pelos serviços, levando o governo a fazer empréstimos cada vez mais, assim, conduzindo o governo porto-riquenho a declarar falência. Isso forçou o governo de Barack Obama, em 2016, aprovar a chamada Lei Promessa, que promete oferecer um caminho para a reestruturação da dívida de Porto Rico, mas que 91
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desde sua criação não levou a muitas mudanças na economia local. A jornalista Laura González observa que, atualmente, os problemas são crescentes para a população. “O mais recente foi o corte de 10% para os aposentados e que recebem pensão. Esses grupos são os mais afetados e vulneráveis ao impor essas medidas para reestruturar a dívida pública neste país”, diz. Além da má administração política, Porto Rico é uma região que sofre com desastres naturais constantes o que prejudica o desenvolvimento da ilha. Furacões não são estranhos no território e diversas tempestades marcaram a história. Ao longo dos anos, os ilhéus desenvolveram respostas e técnicas comunitárias que lhes permitam sobreviver após tempestade. Os furacões Irma e Maria, de 2017, estão entre os mais
catastróficos e não houve planos para lidar com as tragédias e promover a recuperação. O Departamento de Saúde declarou que as autoridades não estavam preparadas para furacões de categoria 1. A infraestrutura e serviços básicos levaram meses para serem restaurados. Donald Trump foi criticado e acusado por políticos locais de ter demorado a conceder ajuda federal a Porto Rico, em comparação com a rapidez que chegou em Flórida e Texas, após os furacões Harvey e Irma. Isso aumentou a insatisfação local.
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Para analistas, esquerda democrática pode surpreender nas eleições americanas de 2020 Vertente social ganha força no Partido Democrata e, na visão dos especialistas ouvidos por “Olhares do Mundo”, não deve ser subestimada; jovens americanos tem uma imagem positiva de políticas públicas para a redução da pobreza e a preservação ambiental
Por Gabriela Cunha, Larissa Guiguer, Luana Figueiredo e Victoria Claramunt
O
crescente apoio à Elizabeth Warren, senadora por Massachusetts, como candidata à Casa Branca pelo Partido Democrata nas eleições do próximo ano aponta o fortalecimento das propostas de esquerda na oposição ao presidente Donald Trump. Warren tem defendido políticas públicas para reduzir a desigualdade social nos Estados Unidos, onde 11,8% da população (38.1 milhões de habitantes) vivem na pobreza. Uma das propostas polêmicas da
senadora é o aumento dos impostos sobre os ricos, algo inaceitável pelos conservadores do Partido Republicano. Embora as pesquisas de opinião apontem, até o momento, uma preferência pela candidatura, no Partido Democrata, pelo senador por Delaware de Joe Biden, a presença de Warren na disputa mostra a forte preocupação de boa parte do eleitorado com questões sociais e ambientais. Outra congressista democrata que tem 93
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se destacado por propostas mais à esquerda, Alexandria Ocasio-Cortez, deputada por Nova York, propõe o “Green New Deal”, plano ambiental que busca transformar o país em uma economia de carbono neutro até 2030. A proposta contraria o governo Trump, que retirou o país do Acordo Climático de Paris, assinado em 2015. Bernie Sanders, senador de Vermont e também pré-candidato a presidente dos EUA, defende a posição ousada de aumentar os impostos de grandes indústrias. Mas propostas mais à esquerda teriam aceitação nos EUA? O historiador e analista político americano Michael Barone acha que, se os eleitores, em 2016, votaram nas propostas nacionalistas de Trump, também podem surpreender em 2020 votando em mais igualdade social. “Eu acho que a eleição de Donald Trump - uma surpresa para quase todos os observadores - foi um choque para muitos democratas, não só políticos mas também eleitores. A conclusão que muitos deles parecem ter tirado é que um candidato democrata pode violar todas as regras convencionais da política e ainda ganhar. Afinal, o Trump conseguiu”, disse Barone em entrevista por e-mail. O analista diz que algumas das propostas defendidas atualmente pela esquerda do Parti-
do Democrata seriam impensáveis no passado do ponto de vista eleitoral: legalização de imigrantes, aborto em qualquer situação, saúde para todos e impostos sobre riqueza. “Todas estas são propostas que os consultores políticos democratas teriam dito aos seus clientes alguns anos atrás que eram uma abominação para a maioria dos eleitores”, comentou. “Eles teriam dito que um candidato que ocupasse esses cargo não poderia ser eleito presidente ou, pelo menos, teria reduzido muito seriamente as suas hipóteses de ser eleito”, comenta Barone em entrevista por e-mail. John Aldrich, professor de ciência política na Universidade Duke e autor de “Why Parties? The origin and transformation of Political Parties in America” (Por quê partidos? A origem e transformação dos partidos politicos na America), observa que a polarização entre Republicanos e Democratas têm levado ao crescimento dos polos extremos nos dois partidos. “Moderados no dois partidos acham cada vez mais difícil vencer eleições, e aqueles que vencem acham mais fácil se tornarem cada vez menos moderados ao longo do tempo. Esse conjunto de elites políticas estabelece uma mensagem para o público que se parece muito
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com polarização”, disse Aldrich. Segundo ele, o maior problema para o público não é que os candidatos estão ficando mais extremo nas suas opiniões políticas, mas o fato de aquilo que costumava ser transversal aos partidos e, consequentemente, facilitar o diálogo e o consenso, tornou-se, lentamente, em “clivagens reforçadas”, separando ainda mais os dois lados. “Como resultado, mesmo os membros do público começaram a gostar cada vez menos da oposição, no sentido de que ‘o outro partido não está mais certo em nada’, e isso leva a mais visões negativas e emoções contra o outro lado”, explicou. Para Alrich, a eleição para a Casa Branca em 2020 de um democrata mais à esquerda ofereceria esperança de tempos melhores para aqueles que se encontram vivendo em um sistema mais populista e autoritário, o que também poderia mudar. “E também poderia oferecer uma solução que poderia levar à diminuição da desigualdade econômica e à promessa de enfrentar a mudança climática.” O especialista aponta como prováveis mudanças, mais investimentos na saúde. “Suspeito que a primeira coisa que aconteceria em termos de política seria revigorar a imple-
mentação do Obamacare. Em segundo lugar, é quase certeza, na minha opinião, que qualquer democrata começará a tomar medidas sérias para enfrentar as alterações climáticas. Isso acontecerá com qualquer democrata. Se um verdadeiro esquerdista fosse eleito, isso dependeria de quem ele é, mas eu prevejo algo sobre o financiamento do ensino superior e sobre a desigualdade econômica, como um imposto sobre a riqueza, mas qualquer que seja sua forma, depende do candidato que vencer”. Hugo Albuquerque, cientista político e mestre em Direito Constitucional pela PUCSP observa que a vitória de um democrata de centro-esquerda “mudaria os EUA e o mundo como conhecemos”. É justamente por isso, segundo ele, que variados setores da elite americana trabalham para que isso não aconteça. “Por isso ressuscitam uma figura como Bloomberg, um multibilionário que já foi filiado ao Partido Republicano, para impedir que nas prévias do partido algum candidato como Liz Warren ou Bernie Sanders vençam a disputa”, comentou. Ele observa que o apoio a Trump está restrito a uma parcela do eleitorado. “Trump faz um tipo de discurso que apaixona um setor da sociedade americana. Mas esse setor não
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chega a 30% do total’’, afirma. ‘’De certa maneira, Trump polariza, mas ele não divide os EUA em metades iguais, mas sim em algo em torno de 40% a favor dele e 50% ou um pouco mais contra”. Muitos americanos demonstram insatisfação com o individualismo estimulado pelo governo republicano, observa o cientista político. De acordo com uma recente pesquisa Gallup, 51% dos jovens americanos entre 18 e 29 anos têm uma opinião favorável do socialismo, enquanto apenas 45% têm uma visão positiva do capitalismo. “As frustrações em relação à desigualdade e à sensação de que a classe média está perdendo quando comparada com a alta podem justificar o crescimento da esquerda”, explica Todd Corbin, soldado americano, disposto a votar nos democratas. A organização política Democratic Socialists of America (Socialistas Democráticos da América) passou de 5.000 membros para 52.000 entre 2015 e 2018. O objetivo principal é propor medidas que regulamentam a economia americana de forma democrática, aumentando o salário mínimo e acabando com a desigualdade social. Dessa forma, o Estado deverá intervir através de políticas sociais para
áreas como saúde, educação, imigração e armamentista. O crescimento da esquerda se em áreas mais liberais do país e por sua presença nas redes sociais, o que ampliou o número de seguidores em todos os estados. Para o casal Amy e Craig Lambert, ela enfermeira e ele técnico na Microsoft, residentes em Seattle, parece haver mais representantes de esquerda no partido democrata com voz ativa. Mesmo diante de um cenário incerto, observa-se algo até então impensável: uma jovem socialista democrata e latina do Bronx, Alexandria Ocasio-Cortez, membro do DSA, derrotou um veterano de dez mandatos para conquistar seu assento no congresso de Nova York e tornou-se uma força política tão concreta que a fez ser conhecida simplesmente por suas iniciais: “The AOC”. Sanders ajudou a melhorar a percepção pública do socialismo e, mesmo não estando diretamente envolvido com a DSA, mantém-se como uma aposta de indicação dos democratas em 2020.
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Ameaça de intervenção militar na Venezuela é descabida, dizem analistas Especialistas ouvidos por “Olhares do Mundo” salientam que, no cenário político atual, a invasão teria altos custos em termos de vida humana e provocaria caos político e econômico.
Por Larissa Iole
A
pesar das ameaças dos Estados Unidos ao governo de Nicolas Maduro e das declarações pró-guerra do presidente Jair Bolsonaro ao país vizinho, a hipótese de intervenção militar estrangeira na Venezuela é insustentável, dizem analistas ouvidos por Olhares do Mundo. Segundo eles, a intervenção ate poderia pacificar as relações venezuelanas com os países vizinhos, mas traria o caos. “Ela não deve acontecer, não pode acontecer e não é viável acontecer”, afirma o pro-
fessor e pesquisador do Instituto de Relações Internacionais da USP, Alberto Pfeifer Filho. “Dizer que essa possibilidade está sob a mesa é apenas para pressionar o outro lado.” O cientista politico Pedro Feliú Ribeiro, pesquisador do Centro de Estudos das Negociações Internacionais da USP, concorda: “O elevado custo e a baixa clareza no apoio do Grupo de Lima, que já se posicionou contra a intervenção militar, é um dos principais fatores para essa baixa probabilidade”. A ONU autoriza o uso da força para de99
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fesa própria, no caso de agressão ou grave ameaça, e em intervenções humanitárias, na ocorrência de violações amplas e sistemáticas de direitos humanos, o que, segundo os especialistas, ainda não ocorreu. Para Pfeifer Filho, operacionalizar uma intervenção militar fora do marco da ONU é praticamente inviável. “Evidentemente, se Nicolás Maduro cometer atos que justifiquem uma intervenção externa, ela pode vir a acontecer”, comenta. Mas só em casos de grande violência, como “o índice de mortalidade estar muito grande, as chapas [pro-governo] partirem contra a população, o fechamento do congresso, o assassinato ou prisão dos opositores, qualquer coisa que fira os direitos humanos”. Ribeiro também considera outros possíveis motivos para uma intervenção: instabilidade nas fronteiras, imigração massiva, envolvimento do governo venezuelano com narcotráfico ou um forte aumento do preço internacional do petróleo. Segundo os especialistas, o apoio russo e eventual apoio chinês no fornecimento de empréstimos e armas, além da atual capacidade militar venezuelana, com destaque ao sistema de defesa antiaérea, tornam qualquer ação
militar incerta. Ribeiro observa que Trump tem claramente como estilo negociador o blefe. “Vide guerra comercial com a China, renegociação do NAFTA, e política migratória nos EUA”. Ele não vê vantagens em uma intervenção militar. “Quais vantagens para os EUA? Petróleo? Eles teriam que quebrar o monopólio a PDVSA, que é estatal, para abrir caminho para as empresas americanas que operavam antes de 1975 no país caribenho. Esse elemento não encontrará respaldo no âmbito doméstico venezuelano, o que demandaria uma invasão semelhante `a do Iraque. Além de ser muito custosa para um país com elevado déficit fiscal como os EUA, a garantia de resultados positivos, como a exploração do petróleo venezuelano, é muito baixa”, salienta o cientista politico. O jornalista venezuelano Cesar Barrios, ex-professor da Universidade Bolivariana da Venezuela e coordenador da Associação Nacional de Imigrantes Venezuelanos (ANIV) em São Paulo, também considera as ameaças de Trump e Bolsonaro esforços de pressão: “Pelos elementos atuais afirmo que é uma tenta101
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tiva midiática, parte da psicologia do terror, da guerra psicológica. Os EUA teriam de enfrentar a Rússia, e uma possível intervenção acarretaria em um conflito com a Rússia e a China e afetaria diretamente ao convênio, que existe há mais de 17 anos, chamado de convênio China-Venezuela”. Na opinião dos especialistas, o Brasil deveria intermediar o conflito, ser uma alternativa aos EUA e seus aliados tradicionais, como a Colômbia. O Brasil, segundo Ribeiro, só teria desvantagens na intervenção, podendo perder aliados importantes no continente e mundo, além de vidas humanas. O professor da USP alerta para o perigo de o Brasil virar mera massa de manobra americana em uma guerra terceirizada por Washington.
Alcântara Outro fator importante de ser analisado no contexto de uma possível intervenção militar, em que o Brasil tome partido a favor, é o do uso da base de Alcântara para lançar mísseis contra a Venezuela. Para o professore Alberto Pfeifer o uso da base é improvável. “Se alguém
fosse fazer uso dos mísseis seriam os Estados Unidos a partir das unidades navais e áreas de combate no Caribe, mais bem posicionadas. A base de Alcântara é destinada a fins pacíficos, civis e militares. Servindo muito mais como um instrumento nosso de persuasão do que propriamente para utilização contra os países vizinhos”. Ribeiro salienta que, pelo acordo assinado em março deste ano, não há a possibilidade de os EUA lançarem mísseis militares da base, a não ser que a Força Aérea Brasileira conceda permissão. “O princípio da soberania, segundo o próprio ministro de ciência e tecnologia afirmou em audiência no Senado federal, permanece intacto no acordo. O Brasil, entretanto, pode decidir usar.” Barrios destaca, por sua vez, a grande força de reação venezuelana. “A base representa de fato uma ameaça ao norte e nordeste do país sendo a Venezuela sua divisa. Mas é um elemento importante destacar que o expresidente Chavéz fez um alto investimento em mísseis aéreos. Levaria muito tempo para um míssil disparado do Maranhão chegar ao palácio em Caracas, ele seria interceptado pe-
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los mísseis aéreos da Venezuela”, explica. Para o jornalista César Barrios a pacificação só pode vir pela diplomacia. “As balas não possuem valor político. Os exércitos não conhecem os militantes defensores de uma outra bandeira política. As marinhas norte americanas e soldados da OTAN estão muito longe de
serem ajudas humanitárias, são mercenários pagos para prestar esse serviço. Seriam muitas mortes inocentes, porque é muito complexo entender a cultura política venezuelana, e como operam. O número de mortes seria muito alto, seria uma catástrofe pior ainda que a atual”.
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EUROPA
LGBTs denunciam intolerância na Polônia Conservadorismo do governo ultranacionalista estimula a perseguição de gays pela sociedade; comunidade homossexual reagem com protestos e mobilização.
Por Gustavo Kolonko, Letícia Rafael e Lucas Caspirro
M
aciej Gosniowski, ativista polonês e responsável pelo grupo teatral Lamella Queer of Arts, formado por drag queens, se veste todos os dias com perucas e vestidos glamourosos para performances na cidade de Cracóvia, no sul da Polônia. A repressão contra homossexuais que cresce no país desde a chegada ao poder do presidente de ultradireita Andrzej Duda, em 2015, não o intimida. “A cultura queer na Polônia é como uma sopa no fogo: o governo tenta nos cobrir com uma tampa, mas por dentro estamos fervendo”, explica o
ativista. Ser chamado de queer (palavra inglesa pejorativa para designar homossexuais) não mais ofende. O grupo usa a palavra como referência, provocação e resistência. De acordo com um estudo realizado pela Universidade de Varsóvia, mais de 2/3 da população LGBT polonesa já enfrentou algum tipo de abuso físico ou psicológico. Além disso, 70% dos adolescentes LGBT já pensaram em suicídio devido às represálias que sofrem. Segundo a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersex-
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uais na Europa, a Polônia é o 9º no ranking de piores países para um homossexual viver. Além disso, o casamento entre pessoas do mesmo sexo não é válido, mesmo que 5% dos quase 40 milhões de habitantes sejam homossexuais. O preconceito e o ódio são tantos que o jornal “Gazeta Polska”, de Varsóvia, chegou a distribuir adesivos, na edição de julho de 2019, que determinavam quais áreas da capital eram “livres” de LGBTs. A intenção era induzir os comerciantes locais a usarem o adesivo para mostrar aos moradores daquela região que seus estabelecimentos não aceitavam homossexuais. “Nós ficamos chocados. Era um forte símbolo de que o fascismo é tolerado na Polônia. Essa onda dos adesivos fez pessoas da cidade, até mesmo de outras partes do país, dizerem que os LGBTs são oficialmente um inimigo”, comenta Gosniowski. O jornalista Jakub Kwieciński é outra vítima do preconceito polonês. Ele buscou reparação na Justiça. “Levamos ao tribunal algumas ameaças que recebemos e quase 40 pessoas foram acusadas. Os julgamentos ainda estão em andamento”, conta. Ele trabalhou durante nove anos na Televisão Nacional Polonesa, mas foi demitido quando o conservador Jacek
Kurski assumiu a presidência da emissora e alegou que o jornalista infringia as leis polonesas por ter relação estável com um homem. “Isso mudou minha vida um pouco, então foi muito difícil”, afirmou. Hoje Kwieciński possui um canal no Youtube com o companheiro. Para parte dos poloneses, os LGBTs são uma ameaça à família tradicional. Muitos temem a diferença ou acham uma forma de atacar grupos homossexuais seja por meio físico ou verbal. “O que eu mais ouço é que é melhor que se mantenham discretos e assim o fazem, acredito eu”, relata a brasileira Nadja Moraes, que se mudou para o país dois anos atrás. Em um dos seus vídeos mais famosos, “Como ser gay na Polônia”, Nadja conta uma história vivida por um amigo dela, que namorava um polonês e tinha pudor de demonstrar afeto, mesmo dentro de casa. “O preconceito não se deve ao catolicismo, talvez a inúmeros fatores que eu nem saiba explicar. Tem essa pressão para o homem mostrar virilidade, homem de verdade não tem delicadeza ou muita sensibilidade, então, ‘homem tem que agir como homem’”, comenta a youtuber. O ex-primeiro ministro Jasoslaw Kaczynsk (2007-2015) e líder do partido Lei e Justiça, atualmente no poder, diz que seu grupo está
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reformulando o país para apagar as sombras do comunismo e impedir que o liberalismo social surja. O preconceito contra a comunidade LGBT é reforçado por alguns setores da igreja católica, para quem ser gay faz parte da ideologia liberal. O ativista Gosniowski explica que o número de jovens envolvidos com o catolicismo vem diminuindo, mas os que decidem seguir a igreja são bastante conservadores. “Eu não diria que os jovens estão se tornando mais mente aberta. Muitos estão expandindo as perspectivas,
mas outros estão ficando ainda mais fechados do que nunca”, relata Gosniowski sobre a nova geração polonesa. Kwieciński mostra-se, no entanto, otimista em relação ao futuro. “Acredito que mudaremos nosso governo em quatro anos e introduziremos uniões civis na Polônia. A situação não é fácil para nós [homossexuais], mas também mostra às pessoas o quanto a introdução de direitos LGBT na Polônia é importante”, afirmou o jornalista. 107
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Créditos capa: mulheres palestinas enfrentam ocupação da polícia por Rrodrickbeiler/Istok | p. 9 Sputinik | p. 10 Portal Global Business | p. 12 Reprodução | p. 15 Reprodução | p. Reprodução | p. 21 DonSimon | p. 24 Reprodução | p. 27 Wikimedia Commons | p. 30 Reprodução | p. 36 Awaj Foundation | p. 39 WORLD News Group | p. 42 Reprodução | p. 44 Mustafa Hassouna | p. 48 Reprodução | p. 53 Reprodução | p. 55 Reprodução | p. 56 Reprodução | p. 59 U. S. Air Force | p. 61 Pixabay | p. 64 Unicef/Tremeau e Aurelie Marrier d’Unienville/Irin | p. 69 OMS | p. 71 Mukwege Fundation | p. 73 Reprodução | p. 77 GODL-Índia | p. 82 KCNA/ Reprodução | p. 85 Reprodução | p. 90 Reprodução/El Nuevo Dia | p. 92 Reprodução | p. 95 Chuck Kennedy | p. 97 Reprodução | p. 100 Susan Melkisethian | p. 103 Borowskki | p. 105 Adela Sznajder/ Flickr | p. 107 A.Davey/Flickr 108
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