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Omissão do Estado favorece estupros em massa no Congo, dizem especialistas
ÁFRICA
Desde 1994, milhares de mulheres foram atacadas nos conflitos da República Democrática do Congo; o estupro é usado como arma de guerra para desmoralizar os homens e destruir as famílias.
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Por Bruno Andrade, Joice Martins e Thais Oliveira
Oprêmio Nobel da Paz conferido em 2018 ao médico ginecologista Denis Mukwege em reconhecimento ao trabalho contra a violência sexual na República Democrática do Congo (RDC) chamou a atenção internacional para o problema no país africano. No início deste mês, o ex-líder rebelde congolês Bosco Ntaganda foi condenado a 30 anos de prisão por escravizar e violentar mulheres e crianças. Ntaganda foi o primeiro membro de facções criminosas a ser condenado pelo Tribunal Penal Internacional, mas os avanços na proteção da mulher são graduais. Especialistas ouvidos por Olhares do Mundo dizem que o estupro como arma de guerra e a agressão contra a população feminina só serão combatidos quando houver uma efetiva política de Estado. “A principal responsabilidade pela prevenção de crimes de guerra, incluindo o estupro, cabe ao Estado. Foram os Estados que falharam com as vítimas na violações dos direitos humanos”, disse Stefan Kirchner, professor de Direitos Humanos da Universidade
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da Lapônia e autor de “War, Rape and Failure in the Congo” (guerra, estupro e fracasso no Congo). De acordo com os estudos realizados no início desta década pela ONU e por organizações de direitos humanos, 40% das mulheres da RDC e 24% dos homens já foram vítimas de violência sexual em ataques oriundos dos conflitos entre as facções políticas. O jornalista americano Michael Deibert, autor de “The Democratic Republic of Congo: Between Hope and Despair” (a República Democrática do Congo: entre esperança e desespero), não vê a possibilidade de uma redução da violência a curto ou médio prazos. “O fato de que a eleição de 2018, na qual o presidente Félix Tshisekedi substituiu Joseph Kabila, foi alcançada por meio de fraude e de negação de vitória do candidato Martin Fayulu, não é encorajador em termos de perspectivas de responsabilidade por crimes cometidos sob o governo de Kabila”, disse o escritor. “Kabila ainda detém muito poder no atual governo, mesmo que, talvez, nos bastidores.” Deibert observa que, além das milícias apoiadas por governos estrangeiros (Ruanda e Uganda), “há evidências substanciais de que os aliados do governo em Kinshasa também cometeram abusos terríveis, incluindo violência sexual”. As leis em relação a agressões sexuais na República Democrática do Congo são brandas e os ataques contra mulheres continuam ocorrendo de forma frequente não só nas zonas de confronto, em Kivu do Norte, Kivu do Sul, Ituri e Kasai (no leste do país), mas na própria capital, Kinshasa. Noella Bénie, 23 anos, imigrante congolesa que vive em São Paulo, lamenta que o país não tenha uma política que proteja as mulheres. Não há, por exemplo, uma lei que ampare uma mulher que sofre estupro após os 18 anos. De modo geral, segundo ela, a população vê a mulher como “madura e responsável por tudo”. O estupro seria uma consequência das escolhas da própria vítima. A violência tem gerado protestos, reprimidos pelas forças de segurança. Noella participou de alguns quando morava na RDC. Ela e sua irmã faziam parte do grupo que organizou vários protestos em 2013 para reivindicar melhores condições de vida. “Vestimos camiseta branca e sujamos com um pouco de sangue [falso] e fizemos diversos protestos que duraram cerca de dois meses”, contou Noella. “Quando o presiden-
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te descobriu que eu e minha irmã estávamos envolvidas com esse projeto eles vieram nos ameaçar. Tentaram nos sequestrar, nos matar e outras coisas assim, por isso viemos para o Brasil”, afirmou. A imigrante diz que o governo congolês chegou a pedir seu retorno, mas o governo brasileiro nunca permitiu e sempre a protegeu. Gloria Shala, estudante da Universidade de Kinshasa, diz que, além de ser alvo dos grupos rebeldes, as congolesas enfrentam uma forte cultura machista. “Ser mulher na RDC é estar a serviço do marido, ficar em silêncio entre os homens, trabalhar apenas na cozinha, ser objeto de marketing e publicidade política. Ser mulher é ser inferior ao homem”, diz Gloria. Chris Boseyi, estudante universitária também de Kinshasa, conta que se sente insegura de andar sozinha pelas ruas, uma vez que as agressões ocorrem de maneira generalizada e sem uma fiscalização de guardas civis. “Nosso governo é corrupto. Acontece [estupro] a qualquer momento do dia. Não posso andar na rua se houver homens, com medo de ser sequestrada à noite. A partir das 20 horas tenho que estar em casa.” Boseyi teve sua irmã morta ainda criança devido a uma agressão sexual. A fragilidade política e a violência existentes no país remontam ao neocolonialismo, quando o rei belga Leopoldo II transformou a RDC em sua propriedade pessoal. Ele escravizou violentamente os povos que viviam na região e acirrou as disputas entre as tribos. A independência foi conquistada em 1960, porém o país nunca conseguiu se recuperar totalmente do passado de autoritarismo e violência. O professor de direitos humanos Stefan Kirchner esclarece que o estupro está intrínseco à cultura africana como um todo, mas sobressai-se na República Democrática do Congo. “O conflito na RDC se destacou em termos de número de vítimas e brutalidade dos crimes, mas, infelizmente, o problema persiste em muitos países.” Para Kirchner, as ONGS da República Democrática do Congo são fundamentais no processo de apoio às vítimas e visibilidade mundial das desigualdades e conflitos do país. “No caso da RDC, houve alguma atenção internacional graças principalmente ao trabalho do Dr. Denis Mukwege e sua equipe, que também foi reconhecido no ano passado quando o Dr. Mukwege recebeu o Nobel da Paz.” Mukwege criou o Hospital Panzi e trabalha com políticas ativistas em prol da dignidade, defesa e recu-
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peração de mulheres violentadas. A mídia internacional tem ajudado a chamar atenção para o problema. A jornalista Lauren Wolfe foi uma das primeiras no ocidente a relatar os abusos em um grande veículo. O seu artigo “The village where dozens of young girls have been raped is still waiting for justice” (A vila onde dezenas de meninas foram estupradas ainda está esperando por justiça) foi realizado como uma forma de desafiar o governo a tomar medidas. “Quatro horas após a publicação no [jornal inglês] The Guardian, 68 homens e um membro do parlamento foram presos. Mostra o incrível poder da mídia”, disse Wolfe.
Trabalho de Denis Mukwege com as vítimas de estupro na RDC (Mukwege Fundation)
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