OLHARES do MUNDO
2018 edição 08
Universidade Presbiteriana Mackenzie
OLHARES do MUNDO Revista produzida pelos alunos do Curso de Jornalismo do Centro de Comunicação e Letras (CCL) do Instituto Presbiteriano Mackenzie Direção do CCL Prof. Dr. Alexandre Huady Torres Guimarães Coordenação de Curso Prof. Dr. André Cioli Taborda Santoro
digital_ o mundo em suas mãos
Coordenação Editorial Prof. Drª Márcia Detoni Projeto Gráfico Camila Lopes Endereço: Rua Piauí, 143 – CEP 01241-001 Fone: (11) 2114-8320 – São Paulo – SP www.mackenzie.com.br
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@worldviews1 www.olharesdomundo.wordpress.com
Ao leitor Reportagem internacional A ideia de produzir uma matéria internacional, realizar entrevistas em outros idiomas e falar com fontes de outros países causou insegurança de início. O desafio foi lançado logo no começo do semestre de 2018. A escolha da pauta foi fácil. Após a leitura de alguns veículos internacionais, a campanha de mulheres iranianas contra o uso obrigatório do véu, o hijab, chamou nossa atenção. O tema se tornou o principal assunto em nosso grupo do Whats App e nos intervalos entre as aulas. Ativistas, mulheres, advogados, estudiosos e jornalistas: depois de alguns dias já tínhamos uma longa lista com todas as pessoas com quem queríamos falar. As fontes pareciam tão distantes que, ao enviarmos os e-mails, acreditávamos que nenhuma resposta chegaria. Mensagens enviadas e dedos cruzados. A primeira resposta chegou! Depois de alguns segundos de euforia, o desânimo: a fonte dizia ser impossível conceder a entrevista. Mas não iriamos desistir no primeiro não.
A fotógrafa e ativista Marinka Masséus enviou, em seguida, dois arquivos de Word recheados de informações e um ensaio de fotos da campanha, uma das quais se tornaria a capa desta edição. Isso tornou nossa espera mais confiante. Nasrin Sotoudeh, uma das entrevistadas de quem mais aguardávamos resposta, nos surpreendeu com um pedido. A advogada solicitou que as perguntas fossem reenviadas em farsi. Farsi? Descobrimos, pelo Google, que se tratava de uma outra denominação para o idioma persa, falado no Irã. Recorremos ao tradutor e, sem ter ideia da qualidade do texto, enviamos uma nova mensagem. Em poucos dias a resposta chegou em um alfabeto que parece ser desenhado a mão. Foi neste momento que tivemos a certeza de que, com a ajuda da tecnologia, poderíamos romper qualquer barreira. Traduzimos a entrevista e surpreendentemente tudo fazia sentido. Sentamos novamente para
buscar novas fontes e aumentar nossa lista. A jornalista e ativista iraniana Denise Hassanzade foi nossa terceira entrevistada, respondendo em inglês. Muitas informações e, agora, uma página em branco para preencher. Nosso novo desafio era transformar todo aquele conteúdo em uma matéria que transmitisse a essência do movimento. A escrita compartilhada pelo grupo permitiu que o texto se formasse a partir das diferentes visões que cada integrante adquiriu ao longo de todo o processo de apuração. A edição acompanhada pela professora Márcia Detoni, coordenadora do projeto, foi essencial para transformar um texto universitário em um produto jornalístico. O resultado pode ser conferido nas próximas páginas deste livro, produzido pelos alunos do quinto semestre de jornalismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie; todos eles tomados pelas mesmas inquietudes iniciais que relatamos e pelo sentimento final de conquista de quem investigou e contou, com êxito, uma história.
Elizabeth Matravolgyi Amanda Nascimento Marina Marques São Paulo, junho de 2018
sumário 8. Iranianas desafiam os aiatolás e iniciam campanha contra o uso do véu Por Amanda Nascimento, Ana Julia Paloschi, Elizabeth Matravolgyi e Marina Marques
12. Guerra contra as drogas nas Filipinas deixa mais de 12.500 mortos Por Daniela Kopaz, Gabriela Raineri, Júlia Remer e Mariana Grosche
17. Boko Haram cresce e intensifica ataques na Nigéria Por Cecília Malavolta, Danielle Romanelli e Larissa Martin
22. Presença chinesa cresce na Austrália e gera suspeitas de influência política indevida Por Isabella Ribeiro, Isabelle Taranha, Pedro Fernandes e Vitória Hirata
28. Dez anos após a independência, Kosovo sofre com desemprego e crise econômica Por Beatriz Russo, Gabriela Fonsecca e Giovanna Paternostro
32. Onda de feminicídios alarma mulheres no Peru Por Beatriz Tanabe, Layane Bittencourt, Louise Diório, Olívia Moderno e Vitória Resende
38. Combate ao sacrifício de crianças mobiliza ONGs em Uganda Por Beatriz de Aquino e Rebeca Dias
42. Estrangeiros inflacionam preços de casa e aluguéis em Portugal e deixam jovens sem moradia Por Amanda Cutolo, Ana Lygia Costa e Nathália Sodré
46. Jovens da Caxemira contestam soberania hindu e sonham com independência Por Emily Nery, Carolina Costa, Bárbara Reibel, Isabella Morais e Paola Churchill
50. Contrários à unificação, taiwaneses dizem não à China Por Andrew Santos, Fernando Mazzi, Renan Dantas, Renata Garre e Giovanna Paternostro
ORIENTE MÉDIO
Iranianas desafiam os aiatolás e iniciam campanha contra o uso do véu Ativistas em todo o país fazem protestos nas ruas tirando o hijab em público. O movimento é divulgado por meio das redes sociais
Por Amanda Nascimento, Ana Julia Paloschi, Elizabeth Matravolgyi e Marina Marques
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ida Movahed, 31 anos, mãe de uma garotinha de dois anos, decidiu que não mais se submeteria às ordens dos aiatolás. No final do ano passado, caminhou até uma movimentada rua de Teerã, subiu em uma estrutura de concreto existente na calçada e tirou o véu branco que cobria seus cabelos. Colocou o chamado hijab sobre uma haste de madeira e o estendeu bem alto; 45 minutos depois, estava presa. Sua coragem motivou, no entanto, dezenas de outras mulheres a fazer o mesmo em todo o país. Começava ali uma mobilização crescente de movimen8
tos feministas pelo direito de escolha em relação ao uso de véu, obrigatório no Irã. “A oposição ao hijab obrigatório sempre existiu, mas não havia meio de reunir essas forças. Agora, graças à mídia social, as pessoas que são a favor deste movimento conectam-se umas com as outras e formam um grupo unido”, disse a antropóloga e jornalista iraniana Denise Hassanzade, simpatizante do movimento, em entrevista por e-mail à “Olhares do Mundo”. O protesto público contra o véu, iniciado por Vida, ganhou o nome de White Wednesday (quarta-feira branca), pois às
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quartas-feiras, mulheres saem às ruas de hijab branco, levantam os lenços e deixam os cabelos a mostra. Algumas se manifestam em grupo e outras criam coragem para, sozinhas, fazer sua voz ser ouvida em meio à caótica Teerã. Todo o ato é filmado, fotografado e divulgado no site My Stealthy Freedom (Minha Liberdade Furtiva) e nas páginas do movimento no Facebook e no Twitter. A campanha consiste em desafiar as iranianas a enviarem fotos de si mesma sem o hijab. As imagens são publicadas nas redes sociais e compartilhadas por muçulmanas ao redor do mundo. O grupo enfatiza também a importância das estrangeiras de não usarem o véu em suas visitas ao Irã. É uma forma do ocidente apoiar o movimento, dizem. Marinka Masséus, fotógrafa holandesa residente no Irã e participante do My Sealthy Freedom, criou um projeto solo derivado da campanha. Nele, a fotógrafa retrata, com beleza e arte, o ato das mulheres lançarem o hijab para o alto. “Com as janelas do meu apartamento em Teerã cobertas para o flash da câmera não ser visível lá fora, estávamos seguras para deixar a criatividade voar”, disse Marinka à nossa reportagem. “As mulheres no Irã lutam há décadas por direitos iguais, mas especialmente nos úl10
timos anos, tais esforços se tornaram mais fortes. As iranianas são altamente educadas. Elas estão envolvidas na força de trabalho e as restrições colocadas sobre elas estão em contraste com a sua natureza independente”, salientou a fotógrafa. “Elas são mulheres modernas, que odeiam viver sob um regime repressivo e querem que o mundo saiba como se sentem. Também querem empoderar outras mulheres iranianas em sua luta pela liberdade e democracia.” Segundo ela, todos os dias, os iranianos, especialmente as mulheres, desafiam o regime corajosamente com pequenos atos: usar o hijab mais baixo para mostrar parte do cabelo, escolher roupas com cores brilhantes, vestir calças apertadas ou túnicas mais curtas. Juntos, esses atos de bravura estão provocando a mudança, lenta mas em constante evolução, dizem as ativistas. O regime responde a isso com repressões regulares – quando as militantes são presas e assediadas – e criando novas leis, como a proibição de as mulheres andarem de bicicleta. Em casos de desobediência, elas podem ser multadas ou até mesmo presas. “A punição não-hijab no Irã está entre 10 dias a dois meses de prisão”, contou Nasrin Sotoudeh, advogada e estudio-
sa de direitos humanos. Nasrin é reconhecida por sua atuação na defesa de várias mulheres condenadas por tirar o hijab em público. Ela usa o véu por convicção religiosa, mas apoia as mulheres que o rejeitam. “Eu escolhi um véu, mas acho que isso não deve ser imposto a mulheres que não querem usá-lo. Muitos pensadores islâmicos acreditam que nenhuma rejeição ao hijab deveria ser punida. Fiz esses comentários no tribunal, mas o tribunal não quis ouvir isso. Eles ainda não acreditam no poder das mulheres”, explicou Nasrin. Vida Movahed continua presa. As mulheres estrangeiras não são obrigadas a usar o hijab. Marinka é uma delas e faz questão de apoiar o movimento quando anda pelas ruas de Teerã. “Fiquei espantada com as respostas sinceras. Mulheres chegando até mim, me agradecendo, me abraçando, querendo estar na foto comigo, acenando do outro lado da rua e deixando seu hijab ‘acidentalmente’ cair também”, disse a fotógrafa, considerada por muitas um símbolo de liberdade. O Irã é um país teocrático. Os preceitos do islamismo são utilizados como normas da sociedade e, assim, o que é determinado na religião também é imposto na vida civil. Até 1979, o país era muito próximo do Ocidente;
a população era livre para vestir o que queria, havia bares, danceterias, consumo de álcool, música e filmes ocidentais. Após a Revolução Islâmica liderada por um aiatolá conservador, o Irã impos a sharia (código de leis do islamismo), e as mulheres passaram a sofrer restrições aos seus direitos, embora no Irã elas tenham mais liberdade que na vizinha e também teocrática Arábia Saudita. Denise Hassanzade observa que, ao longo dos anos, as iranianas conseguiram mais liberdade. “No Irã a ‘tradição’ islâmica foi modificada de tal maneira que você não pode compará-la a outros países islâmicos. Eu diria que a tradição islâmica na sociedade iraniana é uma versão diluída do verdadeiro Islã tradicional.” A internet e as redes sociais, que não são censuradas no país, trouxeram uma importante ferramenta de comunicação para as feministas. Os grupos de protesto estão crescendo e as ativistas acreditam no poder de transformação das mobilizações. “Há tantas pessoas por aí que agora fazem parte desse movimento. E elas estão espalhadas por todo o país. A polícia não pode prender todas elas”, salienta Denise.
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Guerra contra as drogas nas Filipinas deixa mais de 12.500 mortos O país aplica a política do “bandido bom é bandido morto”. Comunidade internacional e grupos de direitos humanos criticam o autoritarismo e a violência do governo Duterte
Por Daniela Kopaz, Gabriela Raineri, Júlia Remer e Mariana Grosche Nathália Zagari e Vivian Jordão
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nquanto um número crescente de países, sobretudo no Ocidente, tem aderido a políticas liberais em relação às drogas, as Filipinas chamam a atenção internacional pelo radicalismo no combate ao narcotráfico, que resulta em um número espantoso de mortes: mais de 12.500 só em 2016, segundo dados da Anistia Internacional. A ONU confirmou em 2017 que houve mais de 12.000 mortes na guerra contra as drogas nas Filipinas. No entanto, o governo admitiu “apenas” 4 mil mortes. 12
O país aplica a política do “bandido bom é bandido morto”. Segundo a porta-voz da Polícia Nacional das Filipinas (PNP), Kimberly Molitas, “cerca de 1,3 milhão de pessoas se entregaram voluntariamente desde o início da guerra às drogas para obter a anistia e serem reabilitadas”. Em contraponto, apenas 600 das 10.000 vagas nos programas de reabilitação estão atualmente ocupadas. A diferença alarmante dos dados sobre mortes “reflete um governo que age por debaixo dos panos”, afirma Rosario Sequi-
tin, presidente do Departamento de Trabalho Social da Fundação Universitária do Sul das Filipinas. “A diferença de números ocorre porque o governo desconsidera a morte de criminosos habituais que resistem a ordens de prisão e de policiais que supostamente mataram por autodefesa. Há mais do que as estatísticas apresentadas pelo governo. Há execuções extrajudiciais realizadas por grupos de vigilantes. Nunca houve nenhum vigilante preso (por esses crimes)”, diz ela. “Se 12.500 morreram apenas em 2016, hoje devemos ter chegado a 30.000 mortos. As mortes continuam. Fomos esquecidos pelo mundo e a comunidade internacional, juntamente com a mídia, nos deram atenção suficiente apenas nos primeiros 6 meses de mandato de Duterte.” Desde que Rodrigo Duterte, atual presidente das Filipinas, assumiu o cargo em junho de 2016, com cerca de 40% dos votos válidos, o terror se alastrou por todo país. Em um jantar oficial, um ano antes de sua eleição, Duterte detalhou a promessa de campanha para a política antidrogas: “Esses desgraçados estão destruindo nossos filhos. Se você conhecer algum viciado, mate-o você mesmo!”
Analistas atribuem a vitória dele à campanha para eliminar todos os criminosos no país. No início do mandato, Duterte se comparou ao ditador alemão Hitler, que matou milhares de judeus. “Hitler massacrou 3 milhões de judeus, agora aqui temos 3 milhões de viciados. Gostaria de matar todos”, disse o presidente, ainda enquanto candidato em setembro de 2017, em entrevista à imprensa. Historiadores estimam em 6 milhões o número de mortos no Holocausto. A implementação da nova política antidrogas atingiu não só o mundo do tráfico, mas teve reflexos na sociedade como um todo. Duterte não aniquila apenas traficantes, mas também usuários, assim como os familiares e amigos de ambos, denunciam ativistas de direitos humanos. Rosario Sequitin observa que, nas raízes históricas do Oriente, as drogas sempre foram vistas como um problema criminal que ameaça a segurança da sociedade, enquanto no Ocidente as drogas são vistas como nocivas à saúde. “Infelizmente a narcopolítica ainda controla os sistemas econômicos e sociopolíticos dos países orientais, como as Filipinas.
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Por conta desse fator crucial, o Oriente não tolera as drogas. “Por muitas décadas, as Filipinas viveram sob o controle dos ocidentais, que atuavam no narcotráfico”, explica Sequitin. Ela atribui ao Ocidente parcela de culpa pelos problemas sociais e de tráfico de drogas nas Filipinas. O professor de ciências humanas da Universidade do Havaí, Patrício Abinales, que se formou e trabalhou durante nove anos na Universidade Dilima, nas Filipinas, salienta que a oposição ao governo é fraca. “Há muitas pessoas denunciando Duterte na comunidade internacional, mas, por conta dos problemas 14
históricos das Filipinas com o narcotráfico, o presidente ainda é apoiado por 90% dos filipinos”. O país, diz ele, está cada vez mais autoritário com Rodrigo Duterte controlando a polícia e o parlamento, instituições das quais ele tem total apoio. “Escolas onde há protestos de alunos estão sendo fechadas e as mortes continuam. Usando sua máquina de propaganda e contando às pessoas sobre seu bom desempenho contra as drogas na cidade de Davao, na qual foi prefeito por 21 anos, Duterte fez os filipinos acreditarem que essa questão é um enorme problema que deve ser tratado radicalmente”, afirma o
professor. Davao, de acordo com Abinales, era uma cida-de violenta na ilha de Mindanau que foi radicalmente transformada em uma cidade pacífica e emergente economicamente por Duterte, fato que ele usa para fundamentar suas políticas antidrogas. “Claro que se questiona se Davao realmente é uma cidade tão pacífica, pois todas as mídias do país são controladas pelo presidente, o que dificulta a divulgação de fatos alternativos, tanto em nível nacional como internacional”, destaca Danilo Andres Reyes, doutor em Filosofia no Departamento Asiático de Estudos Internacionais e estudioso da guerra às drogas nas Filipinas. Reyes lamenta que a comunidade internacional tenha feito pouco para coibir os abusos aos direitos humanos no país. “O sistema da ONU é muito fraco, porque depende da cooperação dos chefes dos estados membros. O máximo que podem fazer é impor sanções, mas estas não são coercitivas”. Abinales observa que Duterte retirou as Filipinas do Tribunal Penal Internacional, alegando que os direitos humanos estão indiretamente apoiando o tráfico de drogas, o que passa uma visão ruim do atual presidente. O professor aponta que o governo não é apenas coercitivo na repressão direta,
mas também de modo ideológico. Segundo a presidente do Departamento de Trabalho Social da Fundação Universitária do Sul das Filipinas, as políticas de Duterte ignoram o temperamento pacífico e conciliador da população e a possibilidade de recuperação do ser humano. “Os filipinos são amantes da paz e da compaixão. Membros de famílias que são usuários de substâncias, por exemplo, deveriam ser ajudados e receber uma segunda chance. Os filipinos, sem estarem sob a ira do poder, pensam desta forma. A questão é que o narcotráfico gerou muitos traumas sociais e a guerra contra as drogas, que é uma estratégia de propaganda do atual governo para vencer a eleição, se aproveita disto.”
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Boko Haram cresce e intensifica ataques na Nigéria A violência do grupo extremista islâmico já provocou o deslocamento de dois milhões de pessoas na região norte e desestabilizou parte dos vizinhos Niger, Camarões e Chade Cecília Malavolta, Danielle Romanelli e Larissa Martin
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m primeiro de maio de 2018, a oração do meio-dia dos fiéis nigerianos não foi como todas as outras. O grupo islâmico wahabista Boko Haram realizou dois ataques suicidas na cidade de Mubi, no nordeste do país. O primeiro ataque aconteceu dentro da mesquita; o homem-bomba explodiuse entre os fiéis. O segundo atentado foi um pouco depois, em um mercado próximo onde as pessoas se abrigaram após a explosão anterior. Mais de 60 corpos foram enviados ao necrotério nas primeiras horas. Esse é o mais recente de uma série de ataques realizados pelo Boko Haram desde que o grupo surgiu, em 2002. Apesar das políticas antiterror do governo nigeriano e
da comunidade internacional, os terroristas se mostram cada vez mais forte. “A associação extremista, principalmente após a sua ligação à Al Qaeda e mais recentemente ao Estado Islâmico, tem conseguido perpetuar ataques cada vez mais letais e com elevado grau de sofisticação, assim como tem sabido reerguer-se em momentos que se pensava estar derrotada ou inoperacional”, afirmou António Belo, especialista em relações internacionais pela Universidade de Beira Interior (Portugal) e estudioso do Boko Haram, em entrevista por e-mail à “Olhares do Mundo”. De acordo com dados da Anistia Internacional, o número estimado de
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combatentes do Boko Haram chega a 15 mil. Desde 2014, já são registradas 300 incursões contra civis, sendo 46 a bomba só na região nordeste do país. O número estimado de mulheres e meninas sequestradas está em torno de 2 mil. “Embora o exército nigeriano esteja fortemente presente em todo o Estado de Borno, o Boko Haram continua aterrorizando vilarejos, emboscando patrulhas militares e conduzindo ataques suicidas”, salienta Matthew Page, co-autor do livro Nigeria: What Everyone Needs to Know (Nigéria: o que todos precisam saber). A campanha de terror do grupo deixou pelo menos 30 mil mortos desde maio de 2011; milhares de outros civis nigerianos morreram como resultado das operações de contraterrorismo do governo. O especialista, ligado ao Programa de África do Think Tank (centro de estudos internacionais) Chatam House, em Londres, e membro não residente do Centro para Democracia e Desenvolvimento em Abuja, critica a estratégia do governo centrada apenas numa deficiente força militar. O Exército nigeriano, segundo Page, necessita desesperadamente de modernização, profissionalização e reforma institucional.
“Décadas de corrupção, má administração e fraca supervisão minaram a capacidade do Exército de combater ameaças internas como o Boko Haram. Embora a corrupção seja predominante no setor de segurança nigeriano, o Exército é afetado desproporcionalmente por causa de seu grande orçamento, sigilo e alto ritmo operacional.” Page também critica os parceiros militares internacionais da Nigéria, que pouco fizeram, segundo ele, para desencorajar a corrupção no setor de segurança, encarando incorretamente esforços anticorrupção e ações de contraterrorismo como questões mutuamente exclusivas em vez complementares. O crescimento do Boko Haram gerou uma enorme crise humanitária em toda a região, não só na Nigéria. “O conflito deslocou cerca de dois milhões de pessoas no nordeste do país, deixou milhares mais em risco de fome e desestabilizou partes do leste do Níger, do norte de Camarões e do Chade”, observa Page. Muitos estão vivendo em tendas improvisadas e acampamentos precários em países vizinhos. As mais afetadas são as mulheres, que já enfrentavam poucas oportunidades
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econômicas e educacionais e possuem uma das maiores taxas de mortalidade infantil e materna do mundo. Para Sesugh Akume, porta-voz do movimento Bring Back Our Girls (“Traga de volta nossas meninas”), o governo não tem atuado de forma eficaz para atender a população afetada pelo terrorismo. “Os deslocados internos foram em grande parte esquecidos e deixados para sobreviver por seus próprios meios”, lamentou o portavoz em entrevista por e-mail. A tensão tem afetado a saúde e a educação, que estão deficitárias, prejudicando a economia e levando a um aumento da pobreza e do desemprego. O Boko Haram ficou conhecido depois do sequestro de 276 alunas em uma escola do vilarejo de Chibok, em 2014. Embora uma parte delas tenha sido resgatada e outras tenham conseguido fugir, muitas ainda estão desaparecidas e existem poucas notícias sobre elas. O grupo fundamentalista islâmico não considera a educação nos moldes ocidentais adequada para as meninas. Como punição, são sequestradas, utilizadas como escravas sexuais, traficadas e convertidas para atuar em ataques suicidas.
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Segundo António Belo, a única forma de proteger as meninas e a população da região é o governo reforçar a segurança nas escolas, aldeias e cidades. “A falta de segurança irá fazer com que as meninas desistam da escola devido aos receios de serem raptadas, assim como os professores têm receio de serem feridos ou mortos.” O porta-voz do movimento Bring Back Our Girls acha, no entanto, improvável que o governo promova as mudanças necessárias. “Há esperanças de superar as ameaças, mas somente se o governo estiver disposto a fazer a coisa certa. E ele está?”, questiona Akume. Para Belo, a crise na Nigéria só será superada a longo prazo com políticas de desenvolvimento. “É preciso melhorar as condições econômicas da população, proporcionar melhores cuidados em setores como saúde e educação, combater o desemprego e a corrupção existentes nos serviços do Estado e nas próprias forças de segurança e uma maior conscientização a respeito do extremismo”, diz o especialista. Segundo ele, só uma atuação integrada em vários setores do Estado poderá levar à
erradicação do radicalismo islâmico. Page acredita que a comunidade internacional precisa exercer pressão sobre a Nigéria para resolver os fracassos de governança, corrupção e manipulação política de conflitos que alimentaram a ascensão de Boko Haram e que mantêm a insurgência. “Até o momento, o Estado nigeriano conseguiu fazer com que a comunidade internacional fechasse os olhos para seus comportamentos corruptos e abusivos e ajustasse seu engajamento de acordo com essa visão”.
Segundo o pesquisador, isso fica evidente ao se analisar as atividades das agências internacionais de ajuda no nordeste nigeriano e os esforços dos EUA e do Reino Unido para ajudar o país. Os especialistas ouvidos pela “Olhares do Mundo” definem as perspectivas de qualquer tipo de recuperação na Nigéria como “sombrias”, não por conta das ameaças de segurança persistentes, mas devido à incapacidade e corrupção do governo, já que autoridades e forças de segurança têm monetarizado a situação.
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OLHARES do MUNDO
Presença chinesa cresce na Austrália e gera suspeitas de influência política indevida Mídia australiana e revistas especializadas advertem que os investimentos de Pequim em universidades, centros de estudos, veículos de comunicação e partidos políticos têm a intenção de conter críticas e obter uma posição favorável ao país
Por Isabella Ribeiro, Isabelle Taranha, Pedro Fernandes e Vitoria Hirata
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egunda maior economia mundial, a China já substituiu os Estados Unidos como principal parceiro comercial da Austrália. O país também é a principal fonte de estudantes estrangeiros nas universidades. O número de imigrantes chineses cresceu na última década e já ocupa, segundo dados oficiais, o terceiro lugar entre estrangeiros residentes no país, depois de ingleses e neo-zelandeses. Em uma Austrália que atingiu 24,7 milhões de habitantes este ano, há mais de meio milhão de chineses. A presença crescente do gigante asiático
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ganhou recente destaque na imprensa local, quando foram denunciados pagamentos de Pequim a partidos políticos para evitarem críticas ao Partido Comunista da China e defenderem interesses chineses, principalmente em relação à geopolítica americana na região. Há alertas contra investimentos chineses no ensino superior, em centros de estudo, grupos ativistas e em veículos de mídia com a intenção de difundir uma imagem positiva do país e de suas políticas. A mídia local também denunciou a pressão que empresas chinesas fazem sobre jornais
por meio de publicidade para que evitem notícias desfavoráveis. O professor Clive Hamilton, da Charles Sturt University de Camberra, teve seu livro “Silent Invasion: How China is turning Australia into a puppet state” (Invasão Silenciosa, como a China está transformando a Austrália em um país fantoche), recusado por três editoras. O autor, que finalmente conseguiu lançar o livro em fevereiro de 2018, diz que as editoras ficaram com medo da reação chinesa. O chamado “sharp power”, ou poder afiado em uma tradução literal, exercido pela China na Austrália chegou a ser capa da prestigiada revista britânica “The Economist” em dezembro do ano passado. “Com a China aumentando sua presença global, têm ocorrido reações contrárias à influência chinesa em vários países ocidentais, preocupados com o ‘sharp power’ chinês”, disse, em entrevista por e-mail, o especialista em política externa chinesa Xiaoyu Pu, professor assistente de Ciência Política na Universidade de Nevada, nos EUA. “Sharp power”, conforme observou Pu, é uma ferramenta usada por regimes autoritários, como o chinês e o russo, para desinformar e suprimir o
pluralismo político de países estrangeiros em vista de sua própria soberania. Clement Tisdell, economista, professor da Universidade de Queensland e autor do livro “Crescimento Econômico e Transição da China” observa que, apesar da recente desaceleração do crescimento econômico chinês, o poder político e comercial de Pequim deve continuar crescendo e haverá ênfase em aproximação cultural e diplomática. “Provavelmente, a China vai se apoiar em ‘soft diplomacy’ em vez de força militar para atingir seus objetivos internacionalmente”, salientou Tisdell, em entrevista à “Olhares do Mundo”. Ações como aproximação com governos, partidos políticos e universidades fazem parte da estratégia. Mas a mídia local, em suas denúncias, teme uma forte influência da China nas decisões governamentais e a perda de soberania. A Austrália é um dos principais parceiros dos EUA no Pacífico Sul. Os dois países e a Nova Zelândia são signatários do Tratado de ANZUS, que garante defesa mútua contra a agressão estrangeira. “Por causa desses laços de defesa, os EUA parecem ter muito
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mais influência nas relações internacionais da Austrália do que a China”, observa Tisdell. As pretensões territoriais da China sobre ilhas do Pacífico e sobre Taiwan são vistas com preocupação pelos americanos, que contam com os australianos na pressão sobre Pequim. “A Austrália quer permanecer amiga da China (por questões econômicas). Está, portanto, numa corda bamba em relação às relações com os EUA e a China”, diz Tisdell. Um dos locais onde mais se observa a presença chinesa são as universidades. Segundo dados do governo australiano, há quase 300 mil alunos de outras nacionalidades. Só em 2017, mais de 40 mil vistos de estudante foram aprovados para chineses. “Os administradores das universidades australianas estão interessados em ter estes estudantes porque eles pagam mensalidade integral e contribuem de forma significativa para os recursos das universidades”, comentou Tisdell, criticando o fato de os cursos de graduação estarem cada vez mais orientados por interesses comerciais. “Essa tendência foi encorajada pelo governo, que também reduziu os investimentos públicos nas universidades.”
O professor australiano destaca que os estudantes chineses trazem benefícios ao país porque colocam dinheiro no mercado local e estabelecem contatos na Austrália que podem resultar em bons negócios futuros. A mídia tem denunciado, no entanto, atos de racismo de australianos contra estudantes chineses e o envolvimento do Partido Comunista da China no controle de intercambistas. Os especialistas ouvidos pela “Olhares do Mundo” discordam quanto à possibilidade de esses alunos serem utilizados politicamente por Pequim. “A maioria dos chineses no exterior apenas querem aproveitar a vida diária, eles não querem se meter em questões políticas”, disse Pu. Para Tisdell, a mídia frequentemente exagera na exposição do problema. “As relações sociais entre chineses e australianos são muito boas”, garante ele, observando que há muito mais conflitos com imigrantes islâmicos e africanos. O que falta no país é um governo com recursos, reconhecimento como força legítima, exército estruturado e, sobretudo, um acordo entre os detentores de poder da Líbia que saibam como solucionar seu próprio conflito,
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antes mesmo de uma intervenção por parte da comunidade internacional – que poderia agravar ainda mais a situação. “Qualquer governo respeitável tem de deixar claro que é representativo de todos os líbios, independentemente das identificações regionais, tribais ou outras identificações”, analisa Stephen Zunes, professor de políticas e estudos internacionais da Universidade de São Francisco, Califórnia. Existe uma falta de confiança que é fruto de uma guerra onde existe ressentimento, armas e ninguém que dê segurança. “Não é só uma questão de ser reconhecido, o governo tem que mostrar que é capaz de entregar o que se propôs”, complementa. Desde 2011, depois da derrubada do ditador Muamar Kaddafi por um levante popular auxiliado pelas forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a Líbia enfrenta inúmeros conflitos entre facções rivais. Em 2012, o país realizou as primeiras eleições parlamentares depois de Kaddafi. O eleito Congresso Geral Nacional foi encarregado da formação de um governo interino e da elaboração de uma nova Constituição. Novas eleições realizadas em 2014 não fo-
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ram reconhecidas por milícias islâmicas, que tomaram a capital pelas armas. O eleito Conselho de Representantes teve de fugir para Tobruk. Além destes dois grupos políticos que reivindicam poder, terroristas do Estado Islâmico dominam a cidade de Sirte desde 2015, considerada uma de suas principais bases, depois de Síria e Iraque. Recentemente, a pedido do governo islâmico GNA, com o aval do primeiro-ministro do grupo, Fayez Seraj, da Organização das Nações Unidas (ONU), os EUA bombardearam Sirte como uma tentativa de combater o Estado Islâmico, mas intervenções armadas como essa são consideradas um equívoco por especialistas e condenados por parte da população local.
Dez anos após a independência, Kosovo sofre com desemprego e crise econômica Com apenas dois milhões de habitantes, o jovem e pequeno país europeu não é reconhecido pela União Europeia e 55,3% de seus jovens não encontram trabalho
Por Beatriz Russo, Gabriela Fonsecca e Giovanna Paternostro
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osovo, o país mais jovem e frágil de toda a Europa, completou, em 2018, dez anos de independência. As expectativas de prosperidade parecem, no entanto, longe de se concretizarem. Os kosovares estão entre os mais pobres da Europa, ficando atrás apenas da Moldávia. O país enfrenta um período econômico delicado que afeta, principalmente, os jovens. Mais da metade da população tem até 25 anos. A taxa de desemprego é de 33% e, entre os jovens, esse número sobe para 55,3%. A ONU estima que 29,7% vivem abaixo da linha da pobreza. Apesar da crise econômica, a maioria da população acredita que a separação de Ko-
sovo da Sérvia em fevereiro de 2008, após um violento conflito armado, era necessária. “As pessoas têm mais orgulho e estão mais dispostas a trabalhar pelo desenvolvimento de nosso país, enquanto as empresas estrangeiras veem mais potencial em nosso país agora que é independente”, disse à “Olhares do Mundo” a professora de história albanesa Vala Sylejman, da Escola Americana de Kosovo, na capital Pristina. “O relatório “Doing Business 2018” (Fazendo Negócios, 2018) declarou que Kosovo é o 40º país do mundo a realizar negócios, enquanto em 2010 foi o 113º.” As melhorias sociais, segundo ela, podem ser observadas também no campo da
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liberdade de expressão. “Dez anos atrás havia nenhum ou poucos jornalistas escrevendo sobre a situação política do país, enquanto hoje há vários artigos semanais que discutem a riqueza de políticos e, publicamente, condenam suas ações”. Na opinião da professora, muitas das dificuldades econômicas atuais teriam sido mais bem enfrentadas se Kosovo fosse aceito na União Europeia. A independência de Kosovo foi reconhecida pelos Estados Unidos, França e Reino Unido. Mas cinco países da União Europeia (Espanha, Romênia, Eslováquia, Grécia e Chipre), ainda não aceitam a separação. Rússia e China, aliados da Sérvia, e o Brasil também não reconhecem a independência. A professora de Marketing da Universidade de Osijek, Florentina Dushi, acredita que o país precisa ser mais estratégico e ter uma melhor qualidade de representação política para obter as alianças necessárias. “O governo começou a fazer lobby com outros países para reconhecer a nossa independência, e até agora temos mais de cem nações que reconheceram Kosovo como um país independente e soberano”, salienta a universitária Elda Brada, do Insti-
tuto de Tecnologia de Pristina, entusiasta da autonomia de Kosovo. A estudante de políticas públicas e administração, Arlinda Berisha, de 21 anos, entende a frustração dos kosovares mais velhos, que esperavam uma mudança mais significativa após a independência. “Sabemos que processos políticos levam um tempo, porém, houve um crescimento social e econômico no país em dez anos”. Elda acrescenta que o sistema judiciário e as forças policiais também melhoraram ao longo dos anos. “Os sistemas de saúde e educação ainda precisam de trabalho, mas, comparando com o que havia antes, houve um enorme progresso”, diz a estudante. Para Elda, o foco daqueles que governam Kosovo deve ser na inserção dos jovens na economia. “O governo deve considerar imediatamente fazer algo para este problema, uma vez que a juventude de Kosovo é o futuro do país e eles podem fazer muito mais”, comentou. “Por outro lado, a juventude kosovar está representando Kosovo em diferentes arenas mundiais. Nós temos a primeira campeã mundial de judô, Majlinda Kelmendi. Era Istrefi é uma das cantoras que apresenta o Kosovo em diferentes países,
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além de Dua Lipa e Rita Ora, que são as embaixadoras de Kosovo.” Localizado na península dos Bálcãs, Kosovo, de maioria albanesa e muçulmana, foi controlado por um longo período por países vizinhos, principalmente pela Sérvia. No século XX, a região foi incorporada à extinta Iugoslávia. A independência das antigas regiões iugoslavas contribuiu para o aumento da tensão e fez com que Kosovo entrasse em conflito com a Sérvia entre 1998 e 1999 por autonomia. Elda contou à “Olhares do Mundo” que houve situações aterrorizantes contra os kosovares. “Em 1999, a comunidade internacional enfrentou genocídios no Kosovo, das tropas sérvias, e foi nessa época que eles decidiram realmente intervir por causa da crise humanitária no Kosovo”. A OTAN (Organização do Tratado Atlântico Norte) teve de interferir na guerra. Foram 78 dias de bombardeios contra o exército sérvio. A independência só veio dez anos depois, mas sem o reconhecimento sérvio. Hoje, o país enfrenta as consequências da guerra. A população, de dois milhões de habitantes, ainda sofre danos psicológicos, econômicos, políticos, e a solução, segundo analistas, seria a maior inserção na comunidade 30
mundial. “O governo e a população do Kosovo estão tentando acabar com os problemas com a Sérvia e criar um futuro melhor para os dois países”, ressalta Elda. A agricultura é quase ineficiente e de subsistência, por causa da falta de conhecimento técnico e da mecanização limitada. Apesar de a mão de obra ser barata, problemas como os altos níveis de corrupção, pouca execução de contratos e fornecimento de eletricidade não confiável desestimularam potenciais investidores. Muitos kosovares também encontram problemas para sair do país em busca de condições melhores por conta do visto, já que Kosovo não faz parte da União Europeia. A professora de História Albanesa, Vala Sylejman, acredita que a condição econômica e política do país seria melhor se os fundos públicos fossem investidos em emprego, na exploração de recursos naturais e no setor de manufatura. “A expansão do mercado de trabalho deve ser o foco da política e estratégia global de desenvolvimento do Kosovo, para que hajam melhorias no país para, consequentemente, a taxa de desemprego diminuir.” Florentina, da Universidade de Osijek, é
mais crítica ao falar do futuro do país: “O governo não está tendo uma abordagem proativa para melhorar a situação. Não há estratégia ativa de como combater o desemprego.” O país possui uma das maiores reservas de lignito da Europa. Geólogos afirmam que o lignito é um tipo de carvão e um dos mais recentes. Seu uso é para a geração de energia
a vapor, mas também pode ser minerado pelo gerânio contido nele. Países como Canadá, Estados Unidos, Austrália e Sérvia mineram esse tipo de carvão. Quase metade de toda a energia da Alemanha (45%) vem de usinas de lignito. Kosovo, segundo os analistas, pode aproveitar essa energia para melhorar sua situação econômica.
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Onda de feminicídios alarma mulheres no Peru Só nos primeiros meses de 2018, 13 peruanas foram mortas por companheiros e 44 sofreram tentativas de assassinato. A violência dos ataques revoltou grupos feministas, que intensificaram as campanhas pelo respeito à mulher
Por Beatriz Tanabe, Layane Bittencourt, Louise Diório, Olívia Moderno e Vitória Rezende
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uando tinha oito anos, Eva Machado foi importunada por um homem pela primeira vez. Ela estava com sua mãe em um mercado de rua quando, inesperadamente, sentiu a mão de um homem em seu corpo. Aquele momento a marcou para sempre. “Eu ainda consigo lembrar a surpresa e a sensação de ser abusada em frente a tantas pessoas”, conta ela. “Não há desculpas para o abuso, isso não deveria acontecer com ninguém.” Hoje, aos 34 anos, Eva milita na frente feminista Paro Internacional de Mujeres –
Perú, idealizado pelo coletivo mundial de defesa dos direitos da mulher The International Women’s Strike (IWS). O ativismo, segundo ela, é uma forma de denunciar e combater a violência. “Nós vivemos em um país estuprador, em uma sociedade abusiva e em um Estado sem coração”, desabafa. Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), no ano de 2016, cerca de 2 mil casos de feminicídio foram registrados em 17 países da América Latina e Caribe. No Peru, nesse mesmo ano, ocorreram 124 assassinatos e 258 atentados contra a vida de mulheres. Em 2017, 33
o país ocupou o 8º lugar no índice de feminicídio entre as nações da América Latina. Honduras figura em primeiro lugar. O Brasil, assim como Colômbia e México, não foi incluído na pesquisa por falta de dados oficiais, mesmo ocupando a posição de quinto país mais violento do mundo, segundo informações da Organização das Nações Unidas (ONU). Um dos casos que mais chamou a atenção do país para o problema foi o ataque, no ano passado, contra Micaela de Osma, 23 anos, arrastada pela rua por seu namorado, em Lima, após uma crise de ciúme. Os vizinhos filmaram as cenas e divulgaram nas redes sociais, causando comoção e fortalecendo o debate acerca da crescente violência contra a mulher. As maiores causas do feminicídio e violência sexual, segundo avaliação da ONU, são as falhas de segurança social, a cultura machista e a impunidade. As mulheres, no entanto, decidiram reagir de forma organizada. Vários movimentos pelo fim da violência de gênero surgiram nos últimos anos, como o Ni Una Menos, criado em 2017 com o lema “mexeu com uma, mexeu com todas”. A questão também ganhou visibilidade no concurso Miss Peru 2017. “Minhas medidas são: 2202 casos de feminicídio reportados 34
nos últimos nove anos em meu país”, denunciou a miss Camila Canicoba Llaro, de Lima, em uma iniciativa repetida por todas as candidatas no momento da apresentação. “Senti que demos um grande passo para acabar com as injustiças. O mundo inteiro denunciou a realidade do Peru”, comentou Camila em entrevista à “Olhares do Mundo”. Segundo a Miss, a imprensa noticia alguns casos de feminicídio, porém não se mostra interessada em questionar e a causar pressão por mudanças. Só nos primeiros dois meses de 2018, 13 peruanas foram mortas por companheiros e 44 sofreram tentativas de assassinato. A violência dos ataques tem alarmado o país. No início do ano, uma garota de 11 anos estava voltando da aula de artesanato quando foi atropelada por um homem em uma bicicleta. Ele a convenceu de que poderia levá-la para casa. O homem sequestrou a garota, estuprou, matou, tirou fotos de seu corpo nu, ateou fogo e depois jogou no lixo. O corpo foi encontrado por um trabalhador, na manhã seguinte ao crime, em uma lixeira. “É isso que somos para a misoginia: lixo. Não se importam com nossas dores”, protesta Eva. O Congresso peruano aprovou uma nova lei que inclui e classifica o feminicídio como crime, com pena de até 25 anos de prisão; de-
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fine-se o feminicídio como o assassinato da mulher por alguém ligado amorosamente a ela. Antes, a prisão por esse crime era de seis anos, com a possibilidade de liberdade após dois anos, por meio de benefícios penitenciários. A professora da Universidade de Sevilla, na Espanha, Katjia Torres Calzada, de 46 anos, diz, no entanto, que para acabar com tantos casos de violência contra a mulher é necessário mais do que boas leis e boa vontade. “É crucial um desejo político real e compromissado para conscientizar as gerações mais jovens”, afirma. Segundo a especialista em feminicídio, a desigualdade de gênero no Peru ocorre em diversas áreas, como saúde, educação, trabalho e participação política. Para ela, a solução está na educação. “Uma medida educativa irá gerar frutos a longo prazo, não acabará com o problema imediatamente, mas é uma semente que será muito bem lançada”, diz. Para María José del Pino Espejo, especialista da Universidade Pablo de Olavide (UPO), de Sevilla, que estuda o problema no Peru, a maior necessidade é criar um corpo policial especializado em violência de gênero, acessível às vítimas. Ela também defende mais apoio ao Ministério da Mulher e Populações 36
Vulneráveis para consolidar uma rede de abrigos em todo o país. A vítima precisa de um lugar para ir, geralmente com seus filhos e filhas. “Na selva peruana há apenas um abrigo em Tingo María, sem qualquer tipo de apoio financeiro e com muitas necessidades de todos os tipos”, lamenta María José. As mulheres ouvidas por nossa reportagem não acreditam, no entanto, em mudanças a curto prazo. O Peru passa por uma grave crise política desde a renúncia do presidente Pedro Pablo Kuczynski, em março deste ano, em meio a um grande escândalo de corrupção. O temor das feministas é o possível crescimento do fujimorismo, movimento de extrema direita, conservador e autoritário. Fujimori comandou o Peru por três mandatos, mas perdeu força política após ser preso em 2005 por crimes contra a humanidade. Ele foi condenado por envolvimento em sequestros, torturas, mortes e censuras. Atualmente, o movimento é liderado por sua filha mais velha, Keiko Fujimori, que perdeu a final da eleição presidencial de 2016 para Kuczynski por apenas 0,12% de votos. “O fujimorismo tem força há vinte anos e representa a maioria do Congresso. As pautas femininas não são relevantes para esses governantes”, diz Eva.
Combate ao sacrifício de crianças mobiliza ONGs em Uganda Mortes infantis em rituais macabros por curandeiros que prometem prosperidade é uma prática comum no país. Organizações não governamentais intensificam campanhas para desconstruir crenças e atender vítimas
Por Beatriz de Aquino e Rebeca Dias
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esmistificar tradições não é fácil. Esse sentimento de impotência perante as crenças que se perpetuou na Uganda é sentido pelas várias ONGs que atuam diariamente no combate de uma das práticas mais cruéis do país. “O sacrifício de crianças contribui com 62% de todos os casos de abuso infantil, segundo o relatório policial ugandense de fevereiro de 2018”, aponta a Children’s Vision Uganda, entidade protetora da criança que presta auxílio a famílias e sobreviventes, em entrevista à “Olhares do Mundo”. Realizado por curandeiros contratados, o
crime carrega o forte credo de trazer prosperidade e fortuna a seus praticantes. Dos 41 milhões de habitantes do país, de acordo com a KidsRights, 650 mil são curandeiros tradicionais regulamentados, o que não seria um motivo de preocupação se o número de não registrados não fosse cinco vezes maior: cerca de três milhões. Apesar disso, há muitas divergências quanto às reais mortes ocorridas por meio dos rituais. Investigações realizadas em 2016 concluíram que o assassinato de sete crianças foi motivado por sacrifício, conforme atesta Moses Binoga, coordenador da
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Força Nacional contra Tráfico Humano. Entretanto, o número de corpos encontrados mutilados é muito maior e, ainda que não seja uma informação confirmada pela polícia, ONGs e especialistas especulam que grande parte é destinada às cerimônias. “A sociedade civil tende a alegar que todo corpo mutilado é vítima do sacrifício humano. Porém, após análise, a polícia identifica que mutilações feitas depois da morte natural não se qualificam como sacrifício”, disse Binoga, em entrevista por e-mail. Diante desse clima de instabilidade, a luta contra o sacrifício de crianças é feita tanto pelo Estado quanto por ONGs, como a Kyampsi Childcare Ministries (KCM), uma instituição cristã que viabiliza medidas para evitar a prática e proteger as vítimas. Entretanto, algumas percepções da organização colocam em xeque a eficiência do Estado para enfrentar o problema. De acordo com a KCM, o ano de 2015, próximo à época em que ocorreram as últimas eleições, sofreu com um grande aumento no número de sacrifícios. Essa relação representaria, supostamente, o envolvimento dos candidatos nos crimes e, por isso, planos já estariam sendo traçados para evitar a repetição do quadro nas
próximas eleições, em 2021. “É importante intensificar a sensibilização entre as comunidades, buscar parceria com grupos internacionais para divulgar os casos e criar uma equipe de especialistas para negociar com o governo políticas que visam regular o trabalho de feiticeiros”, salientou, em entrevista por e-mail, Shelin Kasozi, assistente social da KCM. Apesar da preocupação que gira em torno da possível conduta de políticos, Binoga ressalta que essa relação não é confirmada pelo governo e que o sacrifício de crianças é um crime como qualquer outro enfrentado pelo país. Ainda assim, frisa que fechar os olhos para os acontecimentos não é uma opção. “Algumas ações estão sendo realizadas continuamente, como reforçar a implementação das legislações existentes, dar dicas de segurança para as crianças e outros indivíduos vulneráveis, desencorajar a população a acreditar em bruxaria.” Além do âmbito social, o policial lembra da importância dos ministérios e reforça a necessidade de elaborar outras leis e campanhas. “Dentre as ações que estão sendo tomadas, encontram-se planos para desenvolver uma Política Nacional sobre Cura e Práticas Tradicionais pelo Ministério do
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Gênero, Trabalho e Desenvolvimento Social, aumentar a função de acusação pela Polícia, Ministério Público e Judiciário e mobilizar curandeiros tradicionais para monitorarem uns aos outros.” Rituais cruéis “Eu ouvi meu tio dizendo que queria 4,5 milhões de xelins (R$ 9.450), mas os traficantes insistiram em pagar apenas 4 milhões. Depois que eles concordaram com o preço, meu tio me agarrou pelo pescoço e, com a ajuda da mulher, me empurrou para dentro do carro pela janela. Eu estava sedado e, quando ganhei consciência, me encontrei dentro do santuário do curandeiro.” O caso narrado pela criança DM foi exposto por Paul Bukuluki, professor e pesquisador social da Makerere University. Por conta da preferência em sacrificar crianças puras – sem piercings ou outros tipos de modificações corporais – as cicatrizes do menino impediram que ele fosse morto e os traficantes desacreditaram da eficiência dele no ritual. É esse tipo de situação que habita o imaginário de muitas crianças e as deixa temerosas em passar pelos mesmos momentos aterrorizantes que DM enfrentou. “Os pais estão colocando medidas restritivas de proteção para seus filhos em casa, na comunidade, nas igrejas e também nos 40
níveis escolares, o que atrofia vários direitos, entre eles o de se relacionar com outras crianças”, aponta a Children’s Vision. Shelin concorda: “Eles têm medo de se locomover sozinhos à noite e bem cedo para a escola, porque é normalmente o horário que os sequestradores se apossam deles. Isso está afetando a concentração nos estudos e também a liberdade para brincar livremente lá fora.” Apesar da KCM fornecer apoio psicossocial às famílias que perderam suas crianças e abrigar seis sobreviventes – auxiliados pela organização durante a fase escolar -, os traumas são difíceis de ser superados devido à brutalidade dos procedimentos. Basicamente, os rituais consistem em sacrificar a criança e retirar seus órgãos enquanto vivas. Muitos foram os casos em que meninos e meninas apareceram sem dentes, genitais, lábios e até mesmo com a cabeça decepada. Para que a oferenda seja aceita pelos deuses, é necessária a ajuda de um curandeiro, mas Bukuluki afirma que, na maioria das vezes, há outros personagens envolvidos. “O sacrifício de crianças geralmente envolve a colaboração entre duas ou mais partes. Elas são informais e acontecem entre quem tem o desejo de sacrificar, agentes contratados
para identificar a criança e os curandeiros, que procedem com o ritual”, explica. Embora as soluções atuais sejam paliativas e haja a necessidade real de modificar as crenças da população, tanto as ONGs quanto o Estado apoiam medidas como a ampliação da mobilização social e a criação de leis mais rigorosas. Segundo a Children’s Vision, o sacrifício só continua acontecendo porque “falta informação, educação, capacitação e treinamento de pessoas e comunidades sobre os Direitos da Criança. Os órgãos
de proteção, além de poucos, são mal equipados.” Como solução para acabar com a tradição ainda presente em diversas comunidades, a questão da necessidade de se obter apoio internacional é colocada em debate, mas sua real importância levanta discussões e nem sempre é apoiada. “Isso tem que partir do país”, afirma Bukuluki, em entrevista por telefone. “Tem que acabar com a pobreza, começar mudanças sociais e usar os nossos recursos, não recursos internacionais.”
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Estrangeiros inflacionam preço de casas e deixam jovens portugueses sem moradia Valor dos imóveis cresceu 30% no último ano. Estudantes e recém-formados perderam moradia nas áreas centrais; o desemprego na faixa etária dos 15 aos 24 anos já chega a 25,6%
Por Amanda Cutolo, Ana Lygia Costa e Nathália Sodré
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na João Serrano, 23, reside na Vila do Conde, distrito do Porto, em Portugal. É estudante do curso de acompanhamento de crianças e jovens na Escola Superior de Educação. Seu sonho é conseguir um emprego e ter uma casa própria, mas essa parece ser uma possibilidade distante. Como grande parte dos jovens de sua geração, ela mora com os pais. O crescimento econômico e a estabilidade política de Portugal na última década atraíram estrangeiros da Europa e outros continentes, provocando um boom imobiliário no país. O aumento de aluguéis provocou a expulsão de muitos jovens das áreas centrais.
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O problema foi agravado pelo crescente desemprego na faixa etária de 15 a 24 anos, que já chegou a 25,6%. De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatística, em grandes cidades, como Lisboa e Porto, o valor médio das vendas de casas aumentou mais de 30% no último ano. A mega inflação nos preços se deve, segundo especialistas ouvidos pela “Olhares do Mundo”, à grande especulação imobiliária gerada pelo aumento de turistas que compram imóveis em Portugal. Antonio Manuel Alinho Covas, professor de Economia na Universidade de Algarve, diz que os estrangeiros, em especial os brasileiros, começam a ir para Portugal para fugir
da crise. Com isso, acabam afetando os cidadãos portugueses. “Há um boom no mercado imobiliário provocado pelo turismo e pelo aluguel do tipo Airbnb. Assiste-se a alguma “gentrificação” nos centros das grandes cidades, a população idosa é pressionada a sair e há muitas dificuldades para arrendar casas a casais jovens e estudantes. Além disso, os aluguéis a estrangeiros estão a funcionar como um pré-mercado para uma futura aquisição de casa própria. O investimento estrangeiro está, por isso, em alta.” Carlos Pedro Dias, especialista em Sociologia do Trabalho e das Organizações da Universidade Autónoma de Lisboa, diz que uma geração inteira, pela primeira vez, não tem grandes expectativas de viver melhor que os seus pais. “Por um lado enfrentam uma situação de emprego mais frágil e complicada, com poucas garantias de estabilidade a médio prazo, e por outro são “forçados” a investir na compra de uma casa para contornar o grave problema do arrendamento. Resultado: dependem cada vez mais dos pais e tendem a viver com eles até muito mais tarde”, salienta. O professor acrescenta que o desemprego
é maior entre os jovens porque a retomada econômica do país, muito ligada ao setor do turismo, origina um estrangulamento do mercado de trabalho. Também pode-se identificar, segundo ele, alguma inadequação da oferta de formação profissional, bem como do ensino universitário que ainda não reagiu com a necessária rapidez às alterações da procura de mão de obra especializada. Para Pedro Martins, professor de Economia Aplicada na Universidade de Londres, algumas alterações recentes no valor do salário mínimo e na contratação coletiva, bem como uma redução expressiva das políticas ativas de emprego, aumentaram as dificuldades para os jovens que procuram seu primeiro emprego ou novo emprego. Segundo ele, a segmentação e a rigidez do mercado de trabalho também contribuíram. A brasileira Eulalia Felix, 19, estudante de turismo, acompanha a dificuldade dos jovens portugueses em encontrar emprego e moradia. “Com a vinda dos brasileiros, os preços vão subindo, sinto que há um grande aumento, principalmente nos imóveis e no aluguel também, além de muita especulação
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imobiliária, especialmente aqui em Coimbra, que é uma cidade universitária. Por isso dizem que Coimbra é a segunda universidade brasileira fora do Brasil.” Enquanto os brasileiros chegam em grandes números, muitos portugueses têm deixado o país. A imigração, segundo Eulalia, é necessariamente uma das consequências do desemprego e a única forma de contornar a situação. “Portugal tem muita fuga. Pessoas se formam aqui e vão pra Itália ou países do leste europeu, porque o salário mínimo é mais alto e o custo, mais baixo.” O professor Martins, da Universidade de Londres, observa que o governo português adotou importantes medidas para a recuperação econômica. “Estas medidas incluíram reformas no sentido da descentralização da contratação coletiva, redução da segmentação do mercado de trabalho, a modernização dos serviços públicos de emprego e o lançamento de novas medidas ativas de emprego. Uma avaliação recente da OCDE sublinhou a importância destas reformas para a recuperação rápida do mercado de trabalho, apesar das grandes incertezas econômicas na altura em que foram implementadas.”
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A principal medida foi a criação de estágios remunerados para recém-formados que buscam sua primeira experiência no mercado de trabalho. “O Estado banca quase integralmente o salário destes”, conta Carlos Dias. Mas Alinho Covas é contido ao avaliar as medidas tomadas pelo país. “Não creio que se possa elogiar a política pública face aos jovens, pois em bom rigor não há um ‘pacote de medidas jovem’, bem estruturado. Em geral, respira-se mais confiança na economia, que cresceu 2,8% em 2017, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística”, afirma. “Foi o melhor ano dos últimos anos, o país está na moda e mais cosmopolita, há mais oferta de contratos a prazo, há mais iniciativa empresarial em pequenos negócios, a formação profissional é mais diversificada, e tudo este ambiente tem favorecido a ‘política jovem’, embora os rendimentos salariais continuem muito baixos.” Mesmo diante das dificuldades para os jovens lusitanos, Eulalia aposta em um futuro promissor em Portugal. “Com o salário mínimo daqui, que gira em torno de €600,00 e €700,00 euros, você consegue ter uma vida digna, sem luxo, mas consegue, enquanto no Brasil com o salário mínimo você não consegue ter o básico, o mínimo, o digno.”
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Jovens da Caxemira contestam soberania hindu e sonham com independência Há 71 anos sob domínio da Índia, o Estado de Jammu e Caxemira, de maioria muçulmana, pede mais autonomia; o território também é reivindicado pelo Paquistão, que insufla movimentos separatistas islâmicos
Por Emily Nery, Carolina Costa, Bárbara Reibel, Isabella Morais e Paola Churchill
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ammu e Caxemira é um pequeno paraíso na região dos Himalaias, disputado pela Índia e pelo Paquistão desde que os dois países deixaram o império britânico, em 1947. A parte sob domínio hindu, no norte da Índia, é majoritariamente muçulmana e há 71 anos reivindica a independência. A tensão na área tem crescido nos últimos anos, principalmente entre jovens desiludidos com o desemprego e as promessas não cumpridas de autodeterminação. Muitos têm seguido o apelo pela militância armada, sendo fortemente combatidos pelo governo, que além
das políticas de repressão, controla toda a mídia e o acesso à informação. Para manter o domínio da região, a Índia mobiliza uma força armada de 600 mil homens e esse número vem crescendo nos últimos anos com a insurgência de grupos muçulmanos. “Alguns estimam que por volta de um milhão de soldados indianos estejam posicionados apenas na parte da Caxemira”, relata Yasir Qureshi, 42, assistente social na capital Srinagar. Em entrevista por e-mail à “Olhares do Mundo”, Qureshi salienta que as tropas hindus se dedicam praticamente ao patrulha-
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mento e combate aos separatistas. A tensão entre os exércitos indiano e paquistanês é verificada apenas em pequenos conflitos diários na Linha de Controle, localizada na fronteira entre os dois países. Ele critica os enormes gastos em defesa, “enquanto os países continuam infestados com pobreza, o que resulta muitas vezes em cortes nos serviços sociais.” O desemprego crescente e a falta de perspectivas para os jovens têm levado ao crescimento da militância islâmica, que ganha a simpatia da população local e já controla partes do Vale da Caxemira. “As opções para um jovem caxemire parecem limitadas em uma atmosfera de medo extremo, o que está forçando uma seção da população a pegar em armas”, explica o jornalista caxemire Gowhar Geelani, editor da empresa de rádio e TV alemã Deutsche Welle, em entrevista por e-mail. Qureshi observa que a comunidade local não tem voz nas decisões administrativas da região; é incapaz de exercer qualquer influência e de pensar construtivamente sobre mudanças estruturais. “A política é uma noção abstrata para os jovens no nosso esta-
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do, e não um método concreto para promover reformas a longo prazo, as quais acreditamos que gerações mais jovens pudessem construir.” Nyla Ali Khan, 46 anos, autora do livro “Islã, Mulheres e Violência na Caxemira: Entre Índia e Paquistão”, comenta que a incerteza criada por cerca de duas décadas de insurgência e contra-insurgência armada “invadiu o tecido social por dentro, criando toda uma geração de jovens descontentes e desiludidos”. Uma pesquisa da organização Médicos sem Fronteiras mostrou que, em 2016, pelo menos 45% da população caxemire passava por sérios problemas de saúde mental, além de físicos. Violento, o confronto sempre é citado por especialistas como um fator que aumenta as taxas de suicídio de jovens na Caxemira. Nyla afirma que o governo paquistanês vem usando a força dos mais jovens da região para potencializar seus movimentos militantes, o que tem aumentado a tensão local. “A desilusão e o senso de alienação da população mais jovem, em particular, tem piorado pelo governo do Paquistão, que ajudou e incentivou a resistência militante moralmente, psicologicamente e economicamente, cedendo armas e mu-
nição.” A população de Jammu e Caxemira se mostra pessimista em relação à resolução dos confrontos, principalmente depois que a Índia se tornou uma potência econômica emergente, com intensas relações comerciais com o Ocidente. “Enquanto não houver uma mudança de paradigma na política mundial, a solução para a disputa parece um sonho distante”, diz Geelani. De acordo com ele, a porção da população que poderia modificar a situação atual está sem esperanças e com visão violenta da realidade. “O conflito deu aos jovens da Caxemira um novo vocabulário: luta, toque de recolher, operações de busca e guarda, mortes por custódia, independência, balas, armas, fragmentos de bala, segurança pública, etc.” Para Nyla, em vez de deter o crescimento da democracia e da politização, o governo indiano deveria investir em capacitar a população da região politicamente, para que a parcela desmotivada não sucumbisse a políticas destrutivas. “Acredito que as pessoas no governo devem liderar o caminho para uma democracia pluralista e pacífica e apoiar as negociações internacionais para uma paz sustentável
na região”. A escritora lamenta que, apesar de diálogos esporádicos entre o Paquistão e a Índia para a solução do conflito, as negociações não avancem. “Existe uma falta de sinceridade, falta de vontade política dos dois lados da fronteira para resolver o conflito”, diz. Além disso, segundo Geelani, outro fator que agrava a situação é o governo indiano não aceitar um terceiro lado mediando o conflito. “Não temos nenhum Gerry Adams na Caxemira”, diz o jornalista, referindo-se ao líder político do grupo separatista IRA, que abandonou as armas e articulou a paz entre a Irlanda do Norte e o Reino Unido. Nyla queixa-se da falta de mediação por parte da comunidade internacional, que teme a ação de grupos fundamentalistas islâmicos na Caxemira. “Em tempos de crescimento do Estado Islâmico e do Taliban, a comunidade mundial fecha os olhos para esses movimentos de autodeterminação religiosa”. Ela também critica a mídia por não tratar cuidadosamente do assunto e não saber distinguir religião e política, especificamente nesse caso. Nyla destaca a importância da atuação de ativistas da paz para denunciar mundialmente a violação dos direitos humanos em ambos os lados da região.
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Contrários à unificação, taiwaneses dizem não à China População pressiona Taipei a declarar a independência formal, mas especialistas ouvidos pela Olhares do Mundo dizem que a medida pode levar a uma interferência chinesa
Por Andrew Santos, Fernando Mazzi, Renan Dantas, Renata Garre e Giovanna Paternostro
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pretensão da China de unificar a chamada “pátria mãe” incorporando o território de Taiwan vem gerando forte tensão política na ilha. Manifestantes têm saído às ruas da capital Taipei para pressionar o governo a realizar um referendo sobre a independência. A ilha, ocupada pelos nacionalistas de Chiang Kai-Shek em 1949, após a derrota para o comunista Mao Tse Tung, tornou-se um território autônomo e capitalista, mas não declarou formalmente a independência. A China, por sua vez, nunca aceitou a sepa-
ração e considera a ilha uma província rebelde. Em outubro, cem mil pessoas protestaram na capital, na maior manifestação já realizada contra uma possível reunificação. O ato foi organizado pela Aliança Formosa, que luta pelo reconhecimento de Taiwan como país. Por pressão de Pequim, organizações internacionais, como a ONU, não consideram a ilha uma nação independente. Nos anos 1990, Taiwan tinha 30 aliados. Atualmente, com a ascensão econômica da China, possui apenas dezessete.
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Apesar da pressão popular, a presidente Tsai Ing-wen tenta controlar os ânimos por temer possíveis retaliações militares. O jornalista alemão Klauss Bardenhagen, que acompanha os acontecimentos em Taipei para a mídia internacional, alerta para os riscos de um referendo. “A China tem uma lei anti-secessão, isto é, caso Taiwan se declare independente, os militares chineses vão interferir”. Para Klauss, tanto China quanto Taiwan desejam deixar o status quo como está. “O único problema disso é que uma parte da população é rebelde e quer a independência”, disse Bardenhagen em entrevista à “Olhares do Mundo”. A especialista americana Bonnie S. Glasses, assessora sênior para a Ásia do Centro de Assuntos Estratégicos e Internacionais, com sede em Washington, observa que apenas 7% dos taiwaneses são favoráveis à unificação. “A maioria diz preferir o status quo porque receia um ataque se Taiwan declarar independência. Cerca de 20% dizem querer a independência”,
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salienta. No entanto, esse número, segundo ela, tende a aumentar com a atuação da China para isolar internacionalmente a ilha. Em agosto deste ano, o governo chinês, cada vez mais forte na economia da América Central, pressionou para que El Salvador retirasse o apoio diplomático à ilha. Em 2017, já havia feito o Panamá romper com Taiwan. Além disso, Pequim atuou nos fóruns mundiais para boicotar a presença taiwanesa. A pressão de Pequim fez subir o tom dos dois lados, levando Taipei a aderir a um programa militar, com o desenvolvimento de mísseis capazes de atingir o território chinês. Mas os especialistas ouvidos por nossa reportagem veem com ceticismo um possível confronto armado. O sociólogo americano Salvatore Babones, professor da Universidade de Sidney e especializado em economia e sociedade chinesa, salienta que a China simplesmente não tem o poder naval e aéreo para montar um assalto anfíbio de longa distância em Taiwan.
“O status quo deve persistir até o ponto em que toda a ideia de unificação torna-se ridícula, como a ideia de reunificação entre a Normandia (atual região da França) e a Inglaterra”, comenta. Bardenhagen também não acredita na possibilidade de um conflito. “Uma guerra entre os dois, hoje, está descartada.” Taiwan figura entre os países mais desenvolvidos da Ásia e integra o grupo dos Tigres Asiáticos, junto a outras potências emergentes como Coreia do Sul e Hong Kong. “Taiwan é uma democracia vibrante, com vastas liberdades, Estado de Direito, competição política e livre acesso à informação. A renda per capita é quase US$ 25.000, enquanto a da China é menos de US$ 10.000”, esclarece Bonnie. Esse é um dos motivos, segundo Klauss, do interesse chinês na ilha. “Você acha que se San Marino fosse 20º economia do mundo ou o Vaticano fosse uma potência tecnológica, a Itália iria os deixar serem independentes?”, indaga.
Além disso, a relação de trocas econômicas entre os países é forte. “A China se beneficia enormemente do investimento de Taiwan e, especialmente, do know-how. Muitos dos maiores empregadores da China do setor privado são empresas de Taiwan. Tão importante quanto isso, as pessoas de Taiwan desempenham funções gerenciais chave em muitas empresas chinesas”, destaca Babones. Mesmo com todas as vantagens econômicas, a reunificação entre China e Taiwan é, na opinião dos analistas, quase impossível e a principal causa continua sendo a mesma que deu início a separação da província: o regime comunista. “A unificação não irá ocorrer enquanto a China for um estado totalitário de partido único, e se a China se tornar uma democracia, ela provavelmente irá desistir da sua demanda”, pontua Babones.
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