Olhares do MUNDO

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Olhares do

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Olhares do Mundo Revista produzida pelos alunos do Curso de Jornalismo do Centro de Comunicações e Letras (CCL) do Instituto Presbiteriano Mackenzie Direção: Prof. Dr. Alexandre Huady Torres Guimarães Coordenação de Curso: Profa. Dra. Denise Cristine Paiero Coordenação Editorial: Edição: Profa Dra. Márcia Detoni Profa Dra. Márcia Detoni Projeto Gráfico: Cauã Taborda Diagramação: Anna Laura D’Avila Wolff Mariana Pereira Camargo Elizandra Hengles Michelle Heymann Fábio Germano Plinio Aguiar Felipe Blesa Roberta Queiroz Imani Zoghbi Victor Sartori Leonardo Almeida Vinicius Máximo Revisão: Vinicius Máximo

Rua Piauí, 143 – CEP 01241-001 Fone: (11) 2114-8320 – São Paulo – SP www.mackenzie.com.br

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Apresentação

A quarta edição da revista “Olhares do Mundo” reúne reportagens realizadas por alunos do Curso de Jornalismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie. As pautas foram desenvolvidas durante a oficina “Aprendiz de Corresponde Internacional” entre agosto de 2012 e dezembro de 2013. terceiro semestre do

O desafio para alunos ainda em início de curso foi sair da próprio zona de conforto para comFoi preciso mergulhar no noticiário internacional, encontrar pautas próprias, afiar o inglês e o espanhol para entrevistar especialistas ou ouvir pessoas comuns nas ruas de Nova York ou Barcelona. preender realidades distintas e conquistar a atenção e a confiança de fontes estrangeiras.

Na busca pela notícia internacional, alguns partiram entusiasmados para Estados Unidos e EuOutros enfrentaram o desafio na própria redação: acionaram e-mail, Facebook e Skype para ouvir fontes de lugares tão distantes quanto a Índia. E quem diz que especialistas de instituições renomadas não falam para alunos? Veja o resultado nas próximas páginas. ropa com mochila nas costas e gravador nas mãos.

Boa leitura! Prof.ª Drª. Márcia Detoni São Paulo, maio de 2014

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Estados Unidos

Minorias mantêm esperança em Obama, apesar das críticas contra o governo na economia Olhares do Mundo esteve em Nova York e Washington logo após a eleição presidencial e constatou o entusiasmo de hispânicos, imigrantes, negros e gays com a possibilidade de vitória do democrata Anna Laura D’Avila Wolff Imani Zoghbi Vinicius Máximo A recepcionista Carmen Lopez, do albergue Equity Point, localizado em Nova York, nasceu na Colômbia, mas é cidadã naturalizada americana. A latina, de 37 anos, votou em Barack Obama nas eleições presidenciais de 2008, pois acreditou que o democrata era o candidato mais preocupado com a classe média, da qual faz parte, enquanto “os republicanos só se preocupam com eles mesmos”. Essa mesma opinião ouvimos nas ruas de Nova York em conversas com negros, hispânicos, gays e descendentes de estrangeiros. Obama é visto pelas minorias como o político americano mais próximo das angústias e aspirações da população. Aliás, não só pelas minorias. Parece que a maioria na “Big Apple” compartilha o sentimento.

uma história que reflete a preferência eleitoral dos nova-iorquinos. Ele estava na frente de um museu quando ouviu pessoas em uma passeata falando sobre Mitt Romney, e logo perguntou: “Com licença, alguém aqui gosta do Romney?” Uma mulher retrucou: “Aqui é Nova York! Você é da China? Ninguém aqui gosta do Romney, e, se alguém gosta, vai ficar bem quietinho, pois aqui é Nova York!”.

O forte apoio a Obama encontra explicação na cultura cosmopolita das grandes cidades da Costa Leste, onde a população convive e sofre com as diferenças. Observase, segundo o correspondente da Globo em Nova York Rodrigo Bocardi, uma mudança no perfil do eleitor americano, que não é obrigado por lei a ir às urnas. “Os Estados Unidos O afro-americano Jack Taylor, motor- estão mais hispânico e gay do que nunca”, ista de micro-ônibus, 40 anos, contou-nos comentou o jornalista, que acompanha o

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dia a dia e a cultura do país. O professor de política norte-americana da Colby University, no estado do Maine, Sandy Maisel, autor de vários livros sobre as disputas eleitorais nos Estados Unidos, comenta que os negros também passaram a participar mais da política e que as minorias acabaram por definir o pleito contra o republicano Mitt Romney. A primeira eleição de Obama emocionou profundamente a professora universitária Sally Crimmins Vilella, representante internacional da State University of New York. “A primeira vitória do Obama eu não esqueço. Eu não conseguia acreditar, até o anúncio oficial às 23h, que um homem negro pudesse ganhar a presidência dos Estados Unidos da América,” contou a professora. “Quando ele ganhou, eu chorava, chorava e chorava, e meus filhos me perguntavam: o que foi mãe? Eu tentava explicar-lhes que aquele era um fato inédito, enquanto eles diziam coisas do tipo: “isso não faz mais diferença hoje em dia”. Imagina só se não faz diferença. “Não na idade deles, que não conheceram o preconceito racial”, disse ela. A chegada de Obama ao poder em 2009 trouxe enormes expectativas que não se concretizaram, gerando decepções e críticas, principalmente na área da economia, afetada pelo desemprego. Todavia, para o professor Maisel, “Obama só não fez mais porque o Congresso [de maioria republicana] não per-

mitiu-lhe fazer”. Segundo ele, o desemprego, que quase chegou a 10% em 2008 – uma marca histórica –, “seria consideravelmente pior sem a administração do atual presidente”. “A dificuldade é que temos o que chamamos de governo dividido”, diz Robert Shapiro, professor de Ciências Políticas da Columbia University, em Nova York. “Os dois partidos já enfrentaram grandes motivações para buscarem uma opinião comum, tiveram a oportunidade durante o último mandato e não o fizeram”, explicou ele. A reeleição de Obama, na opinião de Shapiro, mostra que o público está mais inclinado a culpar os republicanos pelos atuais problemas do país. “Os primeiros quatro anos do Obama foram ruins, mas não por causa dele, sim por causa da situação em que o país se encontrava. De maneira geral, ele foi um bom presidente”, comentou a recepcionista Carmem. Barack Obama assumiu um país em seu pior momento econômico num período de 80 anos, desde a crise da bolsa de 1929. “Naquele momento havia, também, um nível de frustração imenso do povo. O mercado financeiro estava intoxicado - uns acumulavam dívidas, e, uma pequena porcentagem, riqueza”, relembra a professora Sally. Muitos reclamaram da falta de rigor do presidente com os setores financeiros, responsáveis pelo grande rombo na economia norte-americana em 2008. “Eu acho que 9


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ele poderia ter sido [mais duro]. Mas ele não achava que possuía o mandato que precisava para agir daquela forma”, explicou Sally. Nos primeiros quatro anos, o presidente democrata enfrentou uma espécie de “pacto da oposição”, disse Sally. “A ideia era fazer o primeiro mandato dele se tornar o último, então obstáculos foram criados para esse homem não se reeleger”, conta. “E foi o que eles fizeram. Só que o povo enxergou.” A criação de um programa de subsídios para garantir planos de saúde aos mais pobres é considerada uma das grandes conquistas de Obama num país onde grande parte da população defende o individualismo e o Estado, o menor corte nos impostos possível. Com muito custo, Obama conseguiu aprovar no Congresso o aumento de gastos na área da saúde. No possível segundo mandato, as atenções tenderão a se voltar para o cumprimento de outras promessas polêmicas feitas à minoria: a aprovação do casamento gay em todo o país e a regulamentação dos mais de 18 mil imigrantes ilegais. Em relação ao desemprego, os números já revelam alguma vitória: em abril de 2013 o índice já havia caído para 7,6%.

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Estados Unidos

Pacientes de baixa renda respiram aliviados com a reeleição de Obama Sem dinheiro para os altos custos da medicina, milhares de americanos temiam retrocesso no sistema de saúde se republicano Mitt Romney chegasse ao poder Anna Laura D’Avila Wolff Imani Zoghbi Vinicius Máximo A reeleição de Obama foi um alívio para os milhares de americanos que sofrem para manter um plano de saúde em um país onde todos têm de arcar com os altos custos de consultas médicas e internações hospitalares. Se o conservador Mitt Romney, candidato republicano a presidência nas eleições de 2012, tivesse sido eleito, a reforma da saúde aprovada em 2010 poderia naufragar. O desafio de Obama, agora, é expandir o benefício, dizem especialistas. “O programa de saúde de Obama representa uma grande melhoria no sistema de saúde americano. Hoje existem 50 milhões de pessoas sem plano de saúde no país, e é um grande desafio para elas conseguirem assistência, especialmente se sofrem de doenças crônicas”, comentou James Morone, professor de Ciência Política e Estudos Urbanos da Brown University, em 12

Rhode Island. “Nossa Fundação Nacional de Ciência estima que o resultado disso seja 18 mil mortes ao ano”, relevou ele. Diferentemente do Brasil, os Estados Unidos não contam com um sistema público e universal de saúde, como o SUS, e o atendimento médico e hospitalar é pago. Quem não tem dinheiro acaba não procurando assistência médica. O grande número de mortes, como observa Morone, tornou-se um dos grandes problemas sociais americanos. Pela nova lei aprovada no governo Obama, todas as pessoas que vivem nos Estados Unidos são obrigadas a possuir um seguro de saúde. As famílias com baixa renda podem contar com a ajuda do governo para cobrir os custos. A lei gerou muitas críticas e foi logo apelidada de “obamacare” pela oposição republicana, que prega um Estado enxuto


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e é contra a cobrança de mais impostos para investimentos na área social. O subsídio aos novos planos custará ao governo US$ 1 trilhão em dez anos e representa um aumento nos impostos de quem ganha mais de US$ 250 mil por ano. Durante a campanha presidencial, Romney criticou a reforma da saúde e deixou confusa a sua postura em relação ao programa. Alguns eleitores acharam que o republicano acabaria com o auxílio do governo se chegasse ao poder. Anos antes, quando governava Massachusetts, Romney havia criado um programa chamado Universalcare, muito semelhante ao de Obama, mas preferiu criticar o democrata para capitalizar o voto dos descontentes com a ideia de novos impostos. “Romney tinha uma coisa excelente para contar para as pessoas: ‘olha o que eu fiz’. Em vez disso, os republicanos colocaram nome na reforma, “obamacare”, para criticar o presidente, uma vez que pensavam que assim ganhariam a eleição. Mas ele se distanciou do primeiro sistema de saúde universal dos Estados Unidos, algo que foi ele que conseguiu”, disse a professora Sally Crimmins Villela, representante de relações internacionais da State University of New York.

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Entenda as eleições americanas Vinicius Máximo As eleições presidências nos Estados Unidos ocorrem em duas etapas. Num primeiro momento, os eleitores vão às urnas para escolher o candidato. O mais votado ganha, por tradição, todos delegados do Estado no Colégio Eleitoral que elegerá o presidente. São 538 delegados no Colégio Eleitoral, e para vencer o candidato precisa conquistar no mínimo 270 deles. Cada Estado possui um número de delegados de acordo com o total de representantes no Congresso Nacional, ou seja, um delegado para cada deputado e outro para cada dois senadores. Os Estados com maiores números no Colégio Eleitoral são muito importantes para a decisão do candidato. Quando o candidato vence em um Colégio Eleitoral ganha consequentemente todos os delegados pertencidos a tal Estado, por exemplo: o candidato A derrotou por 52% o candidato B que obteve 48% dos votos, logo todos os votos deste Colégio vão para o candidato A. Cada Estado americano possui sua própria autonomia e é responsável por organizar as eleições do modo que desejar, ou seja, os Estados Unidos não tem um sistema eleitoral definido nacionalmente. A eleição ocorre toda segunda terça-feira do mês de novembro. Em consequência da autonomia dos estados e dos votos ainda serem manuais, o anúncio do resultado pode demorar dias. Alguns Estados votam tradicionalmente no mesmo partido. O Texas, por exemplo, tem um histórico de votos republicanos. Há também Estados que pendem em cada eleição para um partido ou outro, os chamados de Estados Pêndulos (Swing States), que, por isso, são considerados decisivos e se tornam alvo de intensa campanha por parte dos candidatos. Diferentemente do Brasil, o voto não é obrigatório. Isso exige que os candidatos façam uma campanha ainda mais intensa para convencer os americanos a comparecerem as urnas. 15


A vitória de Obama Vinicius Máximo Por volta das 3h da madrugada de quarta-feira, 7 de novembro de 2012, os Estados Unidos da América acabavam de confirmar o vencedor da corrida presidencial de 2012. O democrata Barack Hussein Obama, 51, venceu o republicano Mitt Romney, 65, com 332 votos no Colégio Eleitoral. O último Estado a ser apurado foi a Florida, que tem 29 votos no Colégio Eleitoral. Porém, antes do resultado desse Estado, o democrata já tinha atingido o número mínimo de 270 delegados e já era considerado reeleito. Barack Obama teve em seus primeiros anos difíceis barreiras com a economia e desemprego. Especialistas políticos dizem que as dificuldades enfrentadas pelo governo de Obama foram herdadas de George W. Bush e da crise imobiliária de 2008. O democrata avançou pouco na recuperação econômica, o que gerou desconfiança em parte do eleitorado e duras críticas do candidato republicano Mitt Romney durante a campanha. Apesar das promessas, Obama não conseguiu diminuir o desemprego, que, de 2009, quando assumiu a Casa Branca, até agosto de 2012 se manteve acima dos 8%. Em setembro – perto das eleições – o número caiu para 7,8%, o menor desde o início do mandato; um alívio para a campanha do presidente. Muitos eleitores afirmaram esperar mais do democrata. Mesmo assim, consideravam Obama a melhor escolha para os Estados Unidos por temer que a volta dos republicanos ao poder significasse retrocessos na politica social. Durante toda a campanha de 2012, Obama deixou claro a sua preocupação com a desigualdade social e o respeito ao direto das minorias, como negros, latinos, judeus, asiáticos, mulheres e homossexuais. O apoio de Obama entre essas minorias vem crescendo por reconhecerem os esforços do democrata para reduzir a pobreza, melhorar o sistema de saúde, facilitar a legalização dos imigrantes, promover a igualdade racial e acabar com o preconceito contra homossexuais. 16


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Estados Unidos

EUA não estão preparados para a urna eletrônica, diz especialista Para o professor Sandy Maisel, da Colby University, os americanos desconfiam da segurança do sistema eleitoral eletrônico e temem que as autoridades possam descobrir em quem eles votaram Anna Laura D’Avila Wolff Imani Zoghbi Vinicius Máximo Por que a grande potência econômica mundial, com alto desenvolvimento tecnológico, ainda utiliza as antigas cédulas de papel e apuração manual nas eleições? A questão intriga os brasileiros, que desde 1996 contam com um sistema eletrônico de votação. De acordo com Sandy Maisel, professor de política norte-americana e autor de vários livros sobre sistema eleitoral, os americanos ainda não modernizaram o sistema eleitoral porque temem a manipulação dos votos e a possibilidade do governo descobrir em quem eles votaram. Maisel, que atualmente está no Brasil para estudar de perto o sistema eleitoral, comentou acerca do sistema de votação. Abaixo, a entrevista conce18

dida pelo professor ao Olhares do Mundo: Olhares: Como o senhor avalia o sistema de votação brasileiro, com as urnas eletrônicas? Maisel: O sistema brasileiro faz mais sentido do que o americano, porém não acho que os Estados Unidos se adaptariam ao sistema do Brasil, pois os americanos sentem muito fortemente que o seu método de votação é o mais seguro. Você pode invadir o sistema eletrônico e descobrir quem votou em quem. Na Venezuela, nas ultimas eleições, muita gente estava com medo de votar contra Chavez, temendo que ele descobriria. Nos EUA, nós pe-


gamos a cédula, marcamos o candidato e co- racional, mas [o temor da identificação] está locamos na urna, não há como descobrir em marcado profundamente em nossa cultura. quem votamos, pois o nome não aparece nela. O outro fator tem a ver com a nossa Constituição. Há um artigo dispondo que a data e Olhares: Haveria uma resistên- a forma da eleição é determinada pelos Escia ainda maior, então, à identifi- tados, já que em 1789 os uns não confiavam cação por impressões digitais na nos outros. Naquela época, eles diziam que urna eletrônica, como o Brasil pre- eram de Nova York, ou de Virginia, e não dos tende adotar em eleições futuras? Estados Unidos como um todo. Isso continua no sistema eleitoral. Há 50 estados e várias Maisel: Quando fui fazer o registro como es- formas de votar. Ninguém quer abrir mão trangeiro no Brasil, por exemplo, tive minhas desta independência para o estado federal. impressões digitais recolhidas. O funcionário que me atendeu comentou que os america- Olhares: Na sua opinião, o sistenos ficam muito tensos ao fazer isso. Foi a ma americano é seguro? As pessoas primeira vez em 67 anos que tive minhas não se preocupam com a possibilidigitais apanhadas. Nos Estados Unidos so- dade de fraude na contagem manual? mente colhemos as impressões digitais de criminosos, de pessoas que representem ris- Maisel: Eu acho o sistema brasileiro mais co a segurança nacional e, nos últimos dez seguro. Os americanos não estão preoanos, de professores envolvidos com pedofil- cupados com a possibilidade de fraude. ia. As pessoas não querem ser identificadas. Eles deveriam estar, mas não estão. É claIsso é racional? Não. Eu compro na Amazon. ro que houve alguma preocupação em com usando o meu cartão de crédito, por- 2000 [quando ocorreram irregularidades tanto muitos podem me identificar, inclusive na apuração dos votos da Flórida na disdirecionar mensagens publicitárias de acor- puta entre George W. Bush e Al Gore], do com meu perfil na Internet. Então não é mas esta questão não chega a preocupar.

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Estados Unidos

Solidariedade emerge no rastro da supertempestade Sandy “Olhares do Mundo” acompanha os esforços de reconstrução de Staten Island, ilha vizinha de Manhattan fortemente atingida pela fúria do furacão Anna Laura D’Avila Wolff

Desembarco em Staten Island e a primeira impressão que tenho é de normalidade. Ainda estou em um lugar comum, casas, veículos, árvores, tudo no devido lugar. Após vinte minutos no ônibus que me leva ao litoral oposto ao que desci, os vestígios do furacão começam a aparecer. Vidros estilhaçados e muita lama mostram-me que estou chegando. Exatas duas semanas após o furacão Sandy atingir a costa leste dos Estados Unidos, o que mais me chama atenção na ilha não é a devastação - desastres existem em qualquer lugar. O grande desdobramento é que, por aqui, é diferente. O vai e vem de pessoas trabalhando para reconstruir bairros e vidas é o maior que já vi. São soldados, funcionários de empresas, pessoas que perderam tudo, vizinhos, amigos ou simplesmente gente que se mobilizou com a tragédia - a ajuda vem de todo lugar. 20

O país, antes dividido pelos estados sulistas e nortistas, agora, entre republicanos e democratas, na hora do “vamos ver” respira como um só. Não importa o dia da semana, o horário ou o mês, a comunidade americana não mede esforços ao prestar socorro aos conterrâneos. Staten Island fica a dez minutos da ilha de Manhattan, separadas pelo rio Hudson, uma guarda turistas enlouquecidos, a outra, dor e tragédia. Desço do primeiro ônibus e um casal parado no ponto pergunta o que estou fazendo ali. Convidam-me, então, para acompanhá-los até South Beach, região que, segundo eles, renderá boas fotografias. Eu vou, subimos no mesmo veículo e conversamos sobre o furacão, que depois foi rebaixado a tempestade extra-tropical, com ventos de 150km/h. Eles dizem que não abandonaram a casa em que moram, nem mesmo no pico


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da tempestade, apesar dos alertas emitidos pelo governo. Por sorte, para eles, os estragos não passaram de um pequeno alagamento e da queda de uma árvore. Nossa conversa não dura muito, pois logo chegamos. Caminhando pelo bairro indicado, avisto o primeiro grupo do Exército da Salvação. São incontáveis campos de ajuda instalados em calçadas e estacionamentos, cujas finalidades variam desde o fornecimento de suprimentos básicos até uma pequena barraca chamada de “estação de massagem”. Uma moça alivia o estresse de quem perdeu casa e mobília para a catástrofe natural, e também dos voluntários que reconstroem o local.

Obama, mudou a rotina da ilha. “Hoje, o movimento está desconcentrado aqui no campo de ajuda, não atendemos muita gente até agora porque a chegada do Obama mobilizou a todos”, salienta Servicis. Mesmo assim, há muita gente circulando no local. O ambiente, na verdade, é um pouco caótico. A correria em busca de elementos básicos para a sobrevivência e higiene pessoal é assustadora. Converso também com um grupo de mais ou menos cinco soldados que estão limpando as ruas e calçadas. “Ir de porta em porta ajudando na remoção do lixo e dos destroços, é o que fazemos aqui diariamente desde o furacão Sandy”, contam. Sigo mais adiante em direção ao mar e então conheço a jovem Cassie, moradora que quase não sofreu danos em sua casa, perdeu somente a energia elétrica por seis dias. Ela e o namorado, que montaram uma espécie de barraca com grelha, distribuem agora cachorro-quente e água para outros residentes e trabalhadores. “Comida quente é definitivamente um milagre por aqui”, diz ela, que recebe doações de uma empresa há cerca de uma semana para atender os desabrigados.

Robert Servicis, do estado de Michigan, viajou por mais de mil quilômetros para dar suporte aos moradores de Staten Island. Ele e os demais ajudantes vão de porta em porta verificar se a vizinhança precisa de algo: de comida quente a medicamentos essenciais. “Uma das coisas mais legais é perceber a comunidade toda trabalhando junta, indivíduos que vivem em áreas que não foram afetadas vindo para cá todos os dias trazer ajuda”, comenta ele, que atende, juntamente com o restante da Nas residências, algo desperta minha equipe, cerca de três mil pessoas por dia. curiosidade. É um papel da prefeitura de Nova Iorque impedindo a entrada neNão era uma segunda-feira comum las - e, pelo visto, encontra-se colado em em Staten Island, a visita do recém-reelei- quase todas as portas do bairro. “Uso resto presidente dos Estados Unidos, Barack trito”, é o alerta afixado nas moradias com23


prometidas. As autoridades temem que valetas e abandonados em terrenos baldios os destroços provoquem mais ferimentos. já fazem parte de um cenário normal. Os moradores se comovem com uma das caUm senhor convida-me para ver o sas mais prejudicadas da região. O que era que restou de sua loja. O estabelecimen- antes uma moradia virou agora um grande to foi totalmente inundado. Hoje, só sobra entulho cinza sobre o terreno. Uma bana marca da água nas paredes e a bagunça deira dos Estados Unidos e um ursinho de que a natureza fez. “Tudo se foi”, diz ele. pelúcia foram deixados na retorcida cerca, “Perdi absolutamente tudo, 30 anos de co- ainda em pé, para prestar solidariedade mércio para isso”. A sujeira domina o lo- aos antigos residentes. Eles, que perderam cal, há muita gente trabalhando para reti- seus cinco gatos no auge da ventania, volrar o entulho de dentro do estabelecimento tam ao local todos os dias na tentativa de e parece que será preciso mais do que um recuperar artefatos pessoais sob a sujeira. container para isso. “A água chegou até o teto”, ele comenta. Os computadores sobre No final da tarde, a temperatura baixa as mesas não resistiram, porém duas fotos muito e o frio se torna quase insuportável. coladas na parede continuam lá, intactas. Grupos de ajuda aconselham-me a ir embora antes do pôr do sol. “De noite não é seguro”, Entro também na casa de uma morado- diz um homem. Hora de voltar. Deixando o ra bastante indignada, que no momento está bairro de South Beach, vejo enfeites natalihospedada em outra parte da ilha com famil- nos e uma abóbora de Halloween perto de iares. Uma árvore de mais de cinco metros uma pilha de destroços. Do outro lado da de altura invadiu o que era o seu quintal. “Foi rua, avisto homens com uniformes de uma o vento, antes do furacão”, conta ela. “Todo empresa de limpeza trabalhando com másmundo está esperando para ver quem vai ti- caras para respirar. Volto a Manhattan marrar essa árvore daqui”. Os galhos destruíram cada não só pela fúria destruidora da naturea parede da residência, abandonada tam- za – que, apesar do alerta emitido, registrou bém pelo péssimo cheiro que a invasão da mais de cem mortes em todo o país -, mas água causou. Roupas, brinquedos e o que pela união existente na comunidade e pela parece um aparelho de DVD encontram- resiliência americana frente às adversidades. se espalhados no jardim, agora como lixo. Em alguns pontos, a destruição é impressionante. Carros retorcidos dentro de 24


Espanha

Espanhóis enfrentam despejo e dívidas avassaladoras em meio a maior crise econômica desde a guerra civil Com o desemprego atingindo 27% da força de trabalho, muitos têm de entregar suas casas aos bancos por não conseguirem pagar as prestações. População defende nas ruas o direito de moradia. Michelle Heymann Da janela do ônibus que faz o transporte do aeroporto ao centro de Barcelona, é possível ver amplas praças floridas, com fontes enormes e deslumbrantes, pessoas circulando aos montes, seja a pé, de bicicleta, moto ou metro. A cidade é escultural ao ar livre e ocupada pelas pessoas. Essa é, ao menos, a visão apresentada aos olhos dos turistas. Embora passe a sensação de encontrar-se em uma ótima situação econômica e social, a Espanha está sofrendo com o problema financeiro desde a crise mundial em 2008, que gerou consequências com desemprego e despejo em massa. O Estado de Bem-Estar Social que outrora era forte e garantia direitos aos cidadãos espanhois, agora aparece frequentemente nos noticiários mundiais, como enfraquecido e desprovido de atitudes perante a situação caótica enfrentada pela sociedade. Cada vez mais observando as pessoas serem expulsas de casa, os moradores de

Barcelona não toleram a indignação de viver sob o risco de perder a moradia e ainda permanecer com dívidas avassaladoras, que os envolve em problemas econômicos dificilmente passíveis de reversão. “Na Espanha tem uma lei antiga de que se você não pode pagar sua hipoteca, não apenas você deve dar sua casa, como também continua endividado com o banco”, esclarece a professora doutora em economista da Universidade de Barcelona , Patricia Garcia-Duran. Apesar dessa lei, a população tem outros recursos que a constituição e a União Europeia garantem. Segundo Xavier, responsável pela questão habitacional da Confederação Sindical de Comissões Obreiras de Catalunha (CCOO), a constituição diz que todo cidadão tem direito à moradia. “Na Espanha somente cerca de 5% das residências são de titularidade publica de aluguel, enquanto na Grã-Bretanha são 80% e na Alemanha e na Áustria, mais de 50%”, reflete ele. “Ou seja, 25


quem quer uma moradia nesse país, tem que comprá-la”, conclui. A CCOO, na realidade, defende a moradia e não a propriedade privada. Para solucionar o problema hipotecário, em 2011 seis organizações de lutas de defesa de causas sociais se juntaram e elaboraram uma proposta de lei, a Iniciativa Legislativa Popular (ILP), para o setor habitacional. A constituição espanhola permite que a população crie projetos de lei para o parlamento, desde que esteja articulado adequadamente e seja viável como ação criada pelo povo. Depois, é preciso conseguir 500 mil assinaturas durante um ano entre as pessoas que tem direito a voto para que o parlamento, por fim, decida se vai ou não discutir ILP como proposta de lei. “Essa é a terceira ILP nos 30 anos de democracia espanhola que chega ao parlamento”, relata Xavier. As duas anteriores contavam com o apoio do governo, essa não. Com quase 1,5 milhão de assinaturas conseguidas entre abril de 2012 e o mesmo mês de 2013, o povo conseguiu que o parlamento discutisse a ILP cujo nome é “Que não te hipotequem a vida” e as questões principais abordadas são: a dácion en pago e o aluguel social. Dácion en pago consiste na troca da propriedade pelo cancelamento da dívida. Nos Estados Unidos, por exemplo, a lei hipotecária é assim. Na Espanha não. O aluguel social é que haja locais para serem alugados por um preço razoável, compatível com o orçamento de quem o alugará. 26

Um caso excepcional, por exemplo, é o de Ermera Aualos Roldan que participa da Plataforma dos Afetados pela Hipoteca de Barcelona (PAH). “Fui ao banco e pus minhas condições. Exigi que cancelassem minha dívida em troca do apartamento e que eu permanecesse lá como aluguel social. E consegui.”, relata satisfeita. Ela foi demitida há um ano e fiou insistindo até que semana passada conquistou a tranquilidade de ter onde morar. Não apenas Ermera, mas o povo acredita que com essas medidas o país cumpre com sua obrigação de moradia. Contudo, a lei aprovada pelo congresso não garante justamente esses dois pontos e por isso as seis instituições declararam que não mais apoiavam o encaminhamento dessa Iniciativa. Essa nova lei ajuda a população, mas não garante a necessidade da moradia clamada pelos manifestantes. Segundo Patricia, foi a primeira vez em que houve uma manifestação popular na Espanha que conseguiu alguma reivindicação. Já Xavier esclarece que os bancos ainda podem executar a hipoteca com a diferença de que antes eles conseguiam a casa por 60% do valor dela e agora por 70%, ou seja, o cidadão ainda deve 30% do valor da moradia. “A população ainda pode evitar o despejo baseando-se nas clausulas hipotecarias que o banco impõe que foram consideradas abusivas pela União Europeia”, disse Patricia. Mas isso também, de certa forma, foi modificado com a nova lei, que permite o desconto de determinada porcentagem


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dos impostos se o indivíduo pagar as dívidas restantes corretamente durante cinco anos. Mas como pagar dívidas se não há a entrada de salário, se o desemprego ainda atinge 27% da população? “Essas são as pessoas que já estavam instaladas no mercado de trabalho e que perderam o trabalho ou alguém da família perdeu o trabalho”, explica o professor doutor em economia da Universidade de Barcelona Frances Granell sobre a população que sofre com a hipoteca. Como Carol Perez, cujo irmão perdeu trabalho e a casa. “Meu irmão me deixou a dívida, pois não pôde seguir pagando a hipoteca que aumentou de 900 euros para 1500”, conta ela. “Ficou uma dívida de aproximadamente 120 mil euros além dos outros custos, embargando a mim e ao meu marido que servimos como garantia”, completa. Agora sua casa corre risco e ela, que era teleoperadora, está desempregada, mas o marido segue trabalhando. As soluções que buscam agora são va28

riadas. O povo tentou de tudo. Foram inúmeras manifestações, reuniões de organizações para pensar o problema e, principalmente, decisões de ação para a resolução. Com assembleias, apoio, ajuda, e entradas na justiça, cada um tenta manter sua casa e seu equilíbrio psicológico com suporte das entidades. A PAH e a CCOO, por exemplo, fazem esse trabalho. Nas assembleias da PAH de Barcelona eles reúnem pessoas que já perderam a casa, que agora foram avisadas ou que sequer enfrentam o problema. Eu estive presente em uma dessas que ocorreu na sede. O galpão estava ocupado por cerca de 30 pessoas que contavam suas experiências e discutiam as próximas atitudes a serem tomadas. Com tópicos, permaneceram mais de duas horas se organizando para os eventos. Essa foi a primeira Plataforma criada em toda a Espanha. A segunda, criada em L’Hospitalet


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De Llobregat ébem menor. O idealizador Alejandro Roldan Ortega não era afetado pela hipoteca, mas um militante que achou necessário apoiar a causa. Ele já era responsável pela Associação de Vizinhos da região. Sua PAH acompanha cada caso que aparece e defende de todas as maneiras possíveis. Teve o caso de uma família que, segundo Alejandro, foram despejados tres vezes e conseguiram voltar ao apartamento com ajuda da PAH de Hospitalet. Sua mulher, com quem casou há um ano – não no civil, mas em outra cerimônia – sofre com os problemas da hipoteca (pág. Sobre a história deles). Xavier acredita que o governo deve agir. “O estado deve dedicar dinheiro a leis e políticas que façam com que nenhum cidadão, que não tem dinheiro porque não pode pagar, não tenha onde morar”, explica. Segundo a presidenta da Taula del Tercer Sector, Àngels Guteras, a quantidade de casas que o “Convênio de Fundo Social de Vivenda” disponibilizou para a Catalunha não chega nem perto de suprir a necessidade. “Das seis mil residências em toda a Espanha, 931 são para a Catalunha”, disse ela. E Rai Responsável do departamento de Comunição da Taula complementa: “Não é suficiente para as necessidades das pessoas. Necessitamos de 235 mil e nos oferecem 931.”. No entanto, as pessoas afetadas pela hipoteca não vivem na rua. Esse é o caso de Alberto. Dados fornecidos pela Taula esclarecem que não são mais de duas mil pessoas 30

que moram na rua. Tanto Xavier, Rai, Àngels e Alejandro como os economistas Patricia e Frances explicam que essas pessoas são recebidas por suas famílias ou recebem ajuda para alugar um quarto ou apartamento. Com cinquenta anos teve de buscar ajuda do pai. “Fiquei sem trabalho. Não pude pagar nem a hipoteca, nem os impostos. Se não fosse pelo meu pai de 80 anos, agora seria um indigente”, conta ele, que não quis revelar mais nada de sua identidade além do primeiro nome. A ajuda do terceiro setor e da Igreja também é muito importante. “A Espanha é um país muito religioso. A igreja deu os valores à sociedade”, conclui o economista. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatísticas (INE) e do Centro de Investigações Sociológicas (CIS), ambos da Espanha, mais de 70% dos jovens espanhois de 18 a 34 anos frequentam a missa a cada festivo. Também por esse motivo, eles afirmam que a criminalidade do país não aumentou. “O que me orgulha muito na Espanha é que não aconteceu um incremento de ataques contra imigrantes ou movimentos neonazistas. Na Grécia, por exemplo, os neonazistas aumentaram”, disse Patricia. “Pelo menos através da mídia, não sentimos que aumentou a insegurança. O que aumentou foi a raiva em relação aos políticos e aos banqueiros”, completa. Talvez por isso os turistas que vão à Espanha não sentem a situação crítica do país. O número de indigentes é baixo e a criminalidade também, apesar das circunstâncias.


Um casal na luta contra o despejo Michelle Heymann Cristina Morales Fernadez, 45 anos, trabalhava numa cozinha hospitalar havia quatro anos, mas ficou desempregada em 2008 devido a grande crise econômica que assolou o mundo e, de forma brusca, a Espanha. Alejandro Roldan Ortega, 60 anos, é militante de esquerda desde os 18 anos. Qualquer causa e suficiente para ele iniciar uma mobilização de colaboração. Ela recebeu seis mil euros ao ser demitida e sua filha, de 25 anos, seguia trabalhando. Negaram-lhe seguro desemprego por causa da renda da filha, que ainda vive na casa da mãe. Responsável pela Associação de Vizinhos de Gornal, Alejandro imediatamente ouviu falar da criação da Plataforma dos Afetados pela Hipoteca (PAH) de Barcelona. Cristina começou a preocupar-se. A filha também ficou desempregada. As duas conseguiram o seguro desemprego, cada uma ganhando 426 euros mensais. A ajuda não foi suficiente para manter o pagamento das prestações da casa própria. Alejandro rapidamente decidiu criar naquela pequena cidade da Catalunha uma outra PAH, dessa vez a de Hospitalet, cuja sede seria no mesmo local da Associação de Vizinhos de Gornal. Foi a segunda PAH de toda a Espanha a ser criada. A filha de Cristina conseguiu um novo emprego. Seu salário de cerca de 500 euros

era melhor que o seguro desemprego. Porém, Cristina foi multada. Ela não podia continuar a receber seus 426 euros com renda entrando em casa. Multa, essa, de 600 euros que não pôde pagar. As dívidas com o banco acumulavam-se: juros sobre mais juros. Desesperadas, pessoas como Cristina aproximavam-se de Alejandro. Ele entrava na Justiça em busca de uma solução legal para os despejados ou ameaçados de despejo. Primeiro, Cristina falou com a assistência social. Buscava uma ajuda de dois mil euros para pagar parte da dívida. Todos tem direito a tal ajuda. Mas Cristina não levou. Por causa de um erro da assistente. Alejandro tenta ajudar essa ruiva nervosa e irritada de todas as maneiras possíveis. Era 10 de maio de 2011, o primeiro dia em que ela apareceu na PAH de Hospitalet. O banco dá início ao processo de despejo. Cristina coloca uma denúncia para a assistente social. E começa a ir na PAH frequentemente. Alejandro apaixona-se por ela. Um ano depois, deixa sua esposa e a casa onde vivia para morar com Cristina no imóvel prestes a ser tomado. Há um ano casados em uma cerimônia espiritual - porque ele ainda não obteve o divórcio - Cristina e Alejandro trabalham juntos na PAH, tentando ajudar as vitimas da crise da mesma forma com que ele a ajudou. O casal permanece lutando contra o despejo. 31


Argentina

Kirchnerismo perde popularidade para candidato apoiado pelo grupo Clarín Vitória do oposicionista Sérgio Massa sobre candidato de Cristina Kirchner nas eleições legislativas de 2013 acirram disputa pela presidência em 2015 e demonstram fadiga do governo, dizem especialistas Roberta Queiroz Para o partido governista argentino Frente pela Vitória (FPV), as primarias do dia 11 de agosto de 2013, que definiram os cândidos ao Legislativo Federal, seriam simplesmente o primeiro passo para definir o mapa político dos próximos dois anos de governo da presidente Cristina Kirchner. Já para a maioria dos argentinos, a data marcaria o prenúncio de uma mudança política. A disputa entre dois candidatos a Câmara Federal - o aliado de Cristina Martín Inssaurralde e o opositor Sérgio Massa, do partido Frente Renovadora, apoiado pelo grupo de mídia Clarín acabou revelando a perda de popularidade da presidente, principalmente na capital. Ambos os candidatos concorriam na capital argentina e tinham vitória assegurada. No entanto, o número de votos que cada um obteve foi crucial para medir o termômetro do kirchnerismo. Segundo o cientista político argentino da Universidade Essex, Javier Zelaznik, a desaceleração do crescimento econômico, os escândalos de 32

corrupção, a personalidade confrontativa e as ofensivas dos meios de comunicação foram os principais motivos responsáveis pela queda de votos do grupo da presidente. Apesar de conquistar o maior número de votos em nível nacional, a FPV perdeu nos principais colégios eleitorais, como Córdoba e Santa Fé (terra natal de Néstor Kirchner). Contudo, a maior perda foi Buenos Aires onde vivem 38% dos 28,6 milhões de eleitores do país. Massa - ex-chefe de gabinete de Cristina e prefeito da cidade de Tigre, na Grande Buenos Aires - reafirmou-se na capital como principal líder da oposição, com 43,81% dos votos contra 31,81% do até pouco tempo desconhecido Inssaurralde. Após duas semanas das primarias, a Casa Rosada anunciou a isenção do Imposto de Renda aos trabalhadores e aposentados que ganhavam até 15 mil pesos brutos por mês. A determinação atingiu cerca de 1,5 milhões de pessoas. Foi uma cartada eleitoral em vão, porém um prato


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cheio para a crítica da oposição. “As cartas já estavam na mesa”, garante Fernando Rocchi, professor do Departamento de História da Universidad Torcuato Di Tella. Em 2013, o kirchnerismo - iniciado por Néstor e sucedido pela esposa após a morte do ex-presidente - completa dez anos. Com a perda da maioria no Congresso, Cristina não tem como alterar a lei constitucional para disputar um terceiro mandato. Os elevados índices de inflação e o sentimento de insegurança da população frustraram o projeto de permanência dela no poder. “Desde 1977, quando a ditadura incorporou o setor financeiro, o dólar domina a cabeça do argentino da classe média. Se o argentino não consegue poupar em dólar, acredita não estar poupando”, afirma Pablo Giuliano, jornalista da agência de notícia Ansa em São Paulo, sobre os motivos de descontentamento da população. Independência econômica, soberania na política externa e justiça social são os três pilares da doutrina peronista que articula toda e qualquer proposta política vigente no país vizinho, explica Giuliano. Por esta politica, “o papa é peronista, o Maradona é peronista, todo mundo é peronista”. Dissidente dessa ideologia, o sistema Kirchner é considerado pelos analistas como uma representação centroesquerdista. Ao assumir o governo, Cristina radicalizou o modelo difundido pelo marido não só por continuar a maquiar estatísticas públicas, mas principalmente por investir em sanções contra a imprensa. “O grande seg34

redo do kirchnerismo é encontrar um inimigo e fazê-lo culpado de tudo. Hoje é o Clarín, antes era (o papa) Bergoglio”, afirma Pablo. Depois do revés das eleições legislativas, a presidente criticou o enfraquecimento da militância, mesmo tendo seu filho Máximo Kirchner como criador e diretor do movimento estudantil “La Cámpora”. De acordo com o historiador argentino da Universidade de Harvard, Lucas Llach, a FPV perdeu a força atrativa que costumava ter. No caso, a mesma força que concedeu a Cristina 54% dos votos depois da última campanha presidencial, em 2011. Já para Giuliano, a militância é culpada por não ter convencido a população periférica de Buenos Aires a votar em Inssaurralde, ao invés de Massa. Com uma proposta baseada em “manter o que é bom e transformar o que estiver ruim”, ou seja, mudança sem ruptura, Sérgio Massa apareceu para os argentinos, segundo os pesquisadores, como a alternativa moderada contra o sistema atual. “Foi a imagem de Massa que influenciou o voto dos eleitores. Agora resta descobrir porque ele tem essa imagem”, explica Rocchi. O atual prefeito de Tigre é patrocinado abertamente pelo grupo Clarín que, consequentemente, investe em manchetes contra o kirchnerismo. “Ninguém na Argentina tem condições de acusar outra pessoa de autoritária”, afirma Giuliano. “Se a oposição chegar ao governo, será tão autoritária quanto Cristina. É uma falácia”, completa.


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Peru

Memorial relembra os 70 mil mortos do embate entre as forças armadas e a guerrilha peruana Homenagem busca confortar as famílias dos que sofreram durante os vinte anos de conflito interno e prevenir novos ciclos de violência Mariana Pereira Camargo Fábio Germano Entre os anos de 1980 e 2000, mais de 70 mil pessoas morreram em ataques terroristas no Peru. A organização radical de esquerda Sendero Luminoso, o grupo guerrilheiro Movimiento Revolucionário Túpac Amaru e o Governo do Peru foram os atores principais desse conflito, que só teve fim no governo de Alberto Fujimori (1990-2000), quando a guerrilha foi eliminada. Para homenagear as vítimas da violência, foi inaugurado o memorial “Ojo que Llora” na capital do país, Lima. O memorial, com nomes e fotos das vítimas, também comemora os 10 anos da Comissão da Verdade e Reconciliação (CVR), criada para investigar os abusos cometidos no combate à guerrilha. Em entrevista ao Olhares do Mundo, o primeiro presidente da CVR, Salomón Lerner, disse que a comissão nasceu no meio de uma situação única, já que Fujimori fugiu 36

do pais em meio a acusações de corrupção e não houve negociação entre o governo autoritário e a opisição democrática que impedisse as investigações. Por isso, a comissão teve um mandato amplo e pode interpretar o conflito da forma mais abrangente possível. A CVR estudou tudo que aconteceu durante os 20 anos de combates e deu a chance aos familiares dos envolvidos nos conflitos de saber tudo sobre as mortes de seus entes queridos. A comissão também teve o objetivo de acabar com a violência e tortura contra mulheres e crianças indígenas, no interior do país, perpetradas por forças de segurança no combate a guerrilha. Segundo Lerner, a população do Peru rural foi a que mais sofreu durante os conflitos, sobre tudo os moradores das zonas andinas, o que demonstra o racismo velado e as atitudes de desprezo aos indígenas na sociedade


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peruana. A CVR, de acordo com ele, também desvendou que o conflito teve impacto diferente nas mulheres, que sofreram violencia sexual de diversas formas e ainda foram acusadas das mortes de pais, irmãos e esposos. Lerner diz que, na época, a população urbana não acreditava no tamanho da violência que ocorria no interior. “Como grande parte da população peruana, eu não prestava muita atenção às notícias quase anedóticas que chegavam do interior”, conta. “Tudo mudou quando as ações terroristas e as consequentes repressões das forças de segurança chegaram a Lima: apagões, toques de recolher, desaparecimentos, carros-bomba, etc. Creio que ali, como quase todos da cidade, tive a impressão de que o problema era maior do que eu suspeitava.” Lisa Laplante, advogada americana que viveu seis anos no Peru para trabalhar na CVR, conta que seu grande desafio ao chegar ao país foi entender que alguém pudesse ser culpado de terrorismo só por estar desaparecido ou preso. “Essa inclinação cultural desafia qualquer tentativa de construir uma cultura de direitos, ou mesmo o Estado de Direito”, comentou a advogada sobre a violência que ocorria na época. Lisa publicou artigos e capítulos de livros sobre reparação, justiça de transição e justiça penal e ainda hoje trabalha com uma associação de afetados que tenta trazer a reivindicação dos peruanos ao sistema interamericano de 38

direitos humanos. A advogada acredita que a criação de memoriais como o “Ojo que Llora” é um jeito de lembrar a população e, especialmente, as novas gerações, sobre as atrocidades do passado com a esperança de que essa consciência ajude a prevenir novos ciclos de violência. Segundo ela, memoriais também são extremamente importantes para as vítimas e suas famílias, que tem a sua perda e sofrimento reconhecidos.


México

Violência no combate ao narcotráfico: torturas, execuções, ataques contra ativistas dos direitos humanos Organizações internacionais denunciam violações das Forcas Armadas na guerra contra os carteis de drogas. Mais de 55 mil pessoas foram mortas e pelos menos 160 mil sofreram com deslocamentos internos desde 2006

Elizandra Hengles, Felipe Blesa e Victor Sartori Violações dos direitos humanos por parte dos militares mexicanos no combate ao narcotráfico levaram o relator especial da ONU sobre execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, Christof Heyns, a pedir que o governo diminuísse a presença das forcas armadas no policiamento. Heyns afirmou que os níveis de violência no território mexicano são alarmantes. “Alguns Estados do México vivem uma violência sem precedentes nos últimos seis anos. É preciso que a segurança pública seja garantida por autoridades civis e não pelas forças armadas, como é atualmente”, declarou o relator. As denúncias envolvem o Estado em casos como tortura, execuções extrajudiciais, desparecimentos forçados e prisões ilegais. De acordo com documentos apresentados à ONU, os casos de tortura e maus-tratos provocaram uma severa crise na segurança pública, na qual mais de 55 mil pessoas foram mortas e pelo menos 160 mil sofreram com deslocamentos internos em decorrência da violência entre cartéis da droga e entre militares e trafican-

tes desde 2006. De acordo com a ONU, a delinquência organizada fez com que o governo do ex-presidente Felipe Calderón (2006-2012) colocasse o exército nas ruas, mas não houve o aumento dos controles, da prestação de contas e da supervisão das ações das forças armadas para garantir o respeito aos direitos humanos. Relatórios da Anistia Internacional também revelam um grande número de registros envolvendo ataques a manifestantes que buscam defender os direitos no México. Divulgado em 2012 pela Anistia Internacional, o relatório “Transformando Dor em Esperança” apresenta denúncias públicas de violações de direitos humanos e ataques contra manifestantes, como o caso da integrante do Cômite de Libertação 25 de Novembro. Alba Cruz Ramos, da cidade de Oaxaca, no sul do país, foi hostilizada por meio de mensagens de texto (SMS) que continham intimidações e ameaças de morte. Após o ocorrido, a ativista se viu forçada a deixar o México por 39


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estar em situação de risco. Apesar de denunciar as ameaças às autoridades, ninguém foi levado à Justiça. Conforme o relatório, os atentados a ativistas dos direitos humanos são assinados por grupos ilegais que muitas vezes possuem indícios de ligações com instituições do Estado. Segundo o site oficial da Anistia Internacional, o governo de Calderón utilizou-se de cerca de 50 mil soldados e de um número crescente de fuzileiros navais para enfrentar os cartéis de drogas. Em 2012, os cartéis se enfrentaram entre si e com as forças de segurança objetivando o controle territorial de regiões de alguns estados, como as de Chihuahua, Tamaulipas, Nuevo León, Coahuila, Guerrero e Veracruz. Mais de 12 mil pessoas foram mortas em consequência da onda de conflitos. Em abril do mesmo ano, a Comissão Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) informou que 8.898 corpos ainda permaneciam sem identificação nos necrotérios de todo terirritório mexicano e que, desde 2006, aqueles declarados como desaparecidos já chegavam a 5.397. Em 2011, o número de soldados mortos no combate as drogas chegou a 40 e o de policiais a mais de 500 casos. Apesar dos relatos de desaparecimentos e torturas, o governo afirmou que os abusos foram excepcionais e que os infratores haviam sido responsabilizados. Entretanto, as denúncias de abusos aos direitos humano continuaram. Em dezembro de 2012, pela primeira vez, um tribunal federal civil julgou a colaboração militar em um caso sobre direitos humanos. Até então, o sistema judiciário militar é que

estava no controle de praticamente todas as investigações sobre denúncias de violações dos direitos humanos por parte dos militares, com apurações incompletas e decisões favoráveis aos acusados. O sistema judiciário civil recusava-se, até então, a conduzir investigações preliminares de suspostos abusos. Foram apresentadas à CNDH 1.695 denúncias de abusos cometidos pelo Exército e 495 cometidos pela Marinha. A comissão dos direitos humanos emitiu 25 recomendações contra o Exército e 6 contra a Marinha. O número baixo na emissão de recomendações por parte da CNDH foi apresentado pelas autoridades como prova de que a maioria das denúncias era infundada, ignorando as limitações de muitas investigações da CNDH. A organização internacional de defesa dos direitos humanos Human Right Watch também encontrou evidências de que o Exército, a Marinha e a Polícia Federal, Estatal e Municipal participaram de algum modo de desaparecimentos. Em 60 casos, a ONG também encontrou evidências de que agentes federais colaboraram diretamente para o desaparecimento de pessoas para utilizá-las como método de extorsão contra seus familiares. “O presidente Peña Nieto herdou uma das piores crises de desaparecimentos que ocorreram na América Latina ao longo da história”, disse a ONG defensora de Direitos Humanos, Human Rights Watch, em comunicado a imprensa por seu diretor José Miguel Vivanco. O diretor da ONG afirma ainda que o governo do atual presidente, eleito em 2012, mostrou-se disposto a ajudar as vitimas e punir os responsáveis por crimes de desaparecimentos forçados e mortes. 41


Índia

Combate à pobreza na Índia exige programas sociais semelhantes aos latino-americanos, diz especialista Parikshit Ghosh, professor da Universidade de Délhi, salienta que a Índia precisa atrair mais investimentos estrangeiros para acelerar seu crescimento econômico e dar uma oportunidade a programas de redistribuição de renda como o Bolsa Família. Leonardo Almeida De acordo com projeções de economistas, a Índia será em 2050 a sexta maior economia do mundo, depois de China, EUA, Japão, Alemanha, Rússia e Brasil. O pais teve um forte crescimento econômico nas ultimas décadas graças ao setor de Tecnologia da Informação (TI), tornando-se o maior exportador de softwares do mundo.

Olhares do Mundo - Quais são as principais razões para a desaceleração econômica atual na Índia? Ghosh: A recessão global tem influencia nisso. Por exemplo, a indústria de TI (Tecnologia da Informação), que teve um papel de liderança no setor de exportação, tem sido duramente atingida por ela. Parte da culpa também pode ser atribuída a problemas domésticos. Nos últimos anos, a Índia foi atingida por grandes escândalos de corrupção. Decisões importantes não têm sido tomadas porque políticos e burocratas estão muitos cautelosos. Disputas sobre aquisição de terras e disputas entre o governo e indústria, como a tributação retroativa, tiveram um efeito desencorajador sobre o investimento.

A Índia foi, no entanto, bastante atingida pela crise econômica mundial de 2008. Para o economista Parikshit Ghosh, da Universidade de Délhi, o pais precisa atrair mais investimentos estrangeiros se quiser combater a miséria, que atinge pelo menos 450 milhões de seus 1,1 bilhão de habitantes, além de apostar em programas sociais de redistribuição de renda semelhantes aos da América Latina, como o Bolsa Família. A Olhares do Mundo - Quais setores da sociedade seguir, a entrevista concedida por e-mail ao indiana foram beneficiados com o crescimento na primeira década deste século? Olhares do Mundo. 42


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Ghosh: O crescimento da Índia na última década tem sido significativo; cidadãos bem educados das classes média e rica tiveram os maiores benefícios. Ao contrário da China , grande parte do crescimento da Índia tem sido impulsionada por industrias de serviços de alta qualificação, como as TI ou de finanças, mais do que pela produção de manufaturados de massa . No entanto, ao contrário da impressão criada por alguns comentaristas, não é verdade que os rendimentos na extremidade inferior caíram em termos absolutos. Por exemplo, os rendimentos agrícolas aumentaram significativamente nos últimos cinco anos e a proporção de pobreza mostra um declínio dramático nos relatórios mais recentes. Olhares do Mundo – O crescimento econômico acentuou a desigualdade social? Há temores de um aumento da violência ? Ghosh: Sim, o crescimento aumentou a desigualdade, mas não é verdade que os rendimentos crescentes de os setores mais influentes da sociedade indiana vieram à custa de ganhos dos grupos de renda mais baixa. Os esforços devem ter por foco aumentar o crescimento mais do que reverter algumas das medidas que tornaram isso possível. Violência e conflitos sociais emergiram como uma ameaça em áreas específicas, como nas regiões tribais do país e nas periferias urbanas, onde a expansão das populações das cidades e estilos de vida 44

entram em contato com as populações rurais tradicionais. O choque de subculturas e as disparidades econômicas claramente visíveis, por vezes, tem levado ao crime e à violência. Olhares do Mundo - Qual é a sua opinião sobre as políticas do governo para estimular a economia e combater a pobreza? Ghosh: Em primeiro lugar, muitas barreiras regulatórias improdutivas que ainda existem devem ser desmontadas, por exemplo, restrições ao investimento estrangeiro direto em vários setores como varejo e educação. Isso desencoraja o investimento e também gera corrupções e nepotismo. Há também leis complicadas e ineficientes em muitas áreas críticas, como a aquisição de terras e contratação de trabalho. Elas precisam de reforma. Em segundo lugar, devem haver mais gastos sociais em setores como saúde, educação e saneamento básico. O Estado tem um papel importante a desempenhar na expansão das capacidades humanas e produtivas. Em terceiro lugar, há bastante de espaço disponível para fazer os programas sociais existentes mais eficazes. Por exemplo, o programa de distribuição de alimentos que fornece diretamente grãos baratos para maior parte da população é um desperdício e tem muitos furos. Programas de transferência da renda semelhantes aos que muitos países latino-americanos implementaram com sucesso nos últimos tempos devem ter uma oportunidade.


Portugal

Até os dedos estão a desparecer... de fome Especialistas ouvidos por “Olhares do Mundo” lamentam a pobreza provocada pela crise econômica e criticam a austeridade implantada pelo governo português, que privilegia o capital em detrimento do trabalho. Plínio Aguiar Isabel Branco é professora do Departamento de Letras, Literaturas e Culturas Modernas da Universidade Nova de Lisboa. Procurada por “Olhares do Mundo”, demorou algumas semanas para responder nosso e-mail. “Com os cortes salariais, tive de reduzir as despesas ao essencial e cancelei a internet e o telefone fixo”, contou Isabel. A professora universitária é um exemplo de como a crise econômica tem afetado a vida dos portugueses, até daqueles que sempre tiveram uma boa qualidade de vida. Para enfrentar o déficit fiscal acentuado pela crise mundial de 2008, o governo português implantou um pacote de austeridades, com demissões e cortes drásticos nos salários e aposentadorias dos funcionários públicos, além de reduções nos investimentos sociais, fechando centros de saúde, hospitais, escolas, tribunais, delegacias de polícia e agências de correios, em especial fora das grandes cidades.

“A dívida (pública) era de tal forma grande que arrastou consigo todo o país”, afirma Isabel. “Tudo que é público parece estar na mira do governo”. A professora da Universidade Nova de Lisboa diz que o governo está aproveitando a crise para retirar direitos consagrados na Constituição e na legislação portuguesas, aumentando a precariedade no emprego e os horários de trabalho e ameaçando os sistemas de defesa trabalhista face à entidade patronal. O sociólogo da Universidade de Minho, Antônio Brito, afirma, por sua vez, que a escola pública esta degringolando e que a saúde pública vai pelo mesmo caminho. Os dois especialistas também lamentam a decisão do governo de privatizar as empresas do Estado que sempre deram lucro. Isso implica, a médio e longo prazos, na redução dos rendimentos do Estado. As privatizações revoltam o sociólogo da Universidade do Minho: “Não me admiraria se, um dia destes, 45


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alguém propusesse a privatização do Tribunal Constitucional”. A política de austeridade anunciada pelo primeiro-ministro português, Pedro Passos Coelho, visava, inicialmente, corrigir os desequilíbrios de consumo externo e de dinâmica orçamental da econômica portuguesa. Mas, para o economista da Universidade de Minho, Paulo Reis Mourão, a fórmula levou a “uma redução do poder de compra e do rendimento nacional e ao aumento do desemprego”. Na opinião dele, haveria outros modelos de equilíbrio fiscal menos dolorosos para a população, como uma progressividade no aumento dos impostos e uma diminuição nos gastos associados aos detentores de cargos públicos. Isso poderia aliviar a classe média, os aposentados e os funcionários públicos que, de acordo com o economista, suportam demasiadamente a austeridade. Milhares de pessoas tem saído às ruas para protestar contra as novas políticas. “Os portugueses estão preocupados, pois a grande maioria sabe que a visão de uma luz no final do túnel não deve vir tão cedo”, afirma o jornalista brasileiro Alcides Goncalves, que morou durante muitos anos em Portugal e voltou recentemente ao Brasil. “Mas a vingança do povo foi dada nas recentes eleições municipais”, diz ele, sobre a derrota nas urnas dos políticos que precipitaram a crise e optaram por soluções duras. “O momento é de poupança pessoal e familiar, o que, numa lógica

perversa, também não ajuda a economia do país”, comenta o jornalista. Todos os dias são enviados para o desemprego mais trabalhadores. Para muitos, a única saída é procurar oportunidades em outros países europeus, no Brasil e até mesmo em alguns países africanos. “Segundo um velho ditado, mais importante que os anéis, são os dedos. O problema é que, no caso português, até os dedos estão a desaparecer... de fome”, lamenta a professora Isabel. O português Matt Eurico mora no Brasil há seis anos, mas esteve presente no início da crise e diz que ela deve ser superada de forma criativa, só que quando não se encontram soluções, o meio é fazer cortes em investimentos que não são rentáveis à população. “É uma situação onde nós, o povo, não temos por onde correr, e o dinheiro que circula deve ser bem investido pelos políticos, caso contrário acabamos por ser submetidos a essas medidas de austeridade”. Segundo os especialistas ouvidos pelo “Olhares do Mundo”, a austeridade em Portugal segue a tendência global das últimas décadas: crescente desigualdade na distribuição dos rendimentos entre capital e trabalho. Isabel, da Universidade Nova de Lisboa, observa que o dinheiro dos empréstimos obtidos por Portugal nos últimos dois anos para a superação da crise foi entregue quase na sua totalidade a entidades bancárias e não reverteu a favor da população que o está a pagar. 47


Anna Laura D’Avila Wolff Staten Island

Imani Zoghbi - New York

Anna Laura D’Avila Wolff Washongton D.C 48

Anna Laura D’Avila Wolff - New York

Imani Zoghbi - New York

Anna Laura D’Avila Wolff Washington D.C


Anna Laura D’Avila Wolff - New York

Frances Torres - Espanha

Frances Torres - Espanha

Anna Laura D’Avila Wolff Staten Island

Michelle Heymann - Espanha

Michelle Heymann - Espanha

Anna Laura D’Avila Wolff Staten Island

Frances Torres - Espanha

Luanda Vieira - Estados Unidos

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Agência Brasil - Argentina

“Museo de la Nacion” - Peru

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Panos Institute - Índia

Agência Brasil - Argentina

Humans Right Watch - México

Mario Cruz - EFE


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