Cadernos do Olhar #05 A ilha

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Cadernos

Passei o verão entre tonalidades suaves: delicadezas do lugar. Olhar pela janela ja me bastava, dispensando as novidades. Os homens tem sempre novidades. Fico nostálgica dos tempos em que os veranistas eram minoria e tenho medo que a magia desapareça, Mas isso são os medos, não os fatos: na verdade olhar pela janela já me bastava. Cristina Burger, 2000.

CADERNOS DO OLHAR #5 A ILHA


Foto Maialu Burger Ferlauto

Acima: a ilha e a praia. Abaixo: O teste do Flamboyant e o vento, por Marina Sabatino


Lá está ela paradona e sempre presente. As vezes fica tão próxima que dá para observar sua superfície irregular, tanto a da mata como a do costão. Ela parece nos observar dia e noite. Mas tem momentos, nas tempestades e trovoadas, que ela desaparece. Se esconde, submerge, fica invisível como nos truques de mágicos. Não dá para saber com clareza onde ela se meteu. Chega a ficar mais de uma hora invisível —ou submersa?— mergulhando como as jubartes, para reaparecer ali adiante engolfando um pouco de ar. E de repente, lá está ela, sólida e sombria, se recuperando da ventania, das nuvens negras e do inesperado temporal. Nestas horas ninguém se atreve a se aproximar dela, a não ser pela imaginação ou pensamento. Aqui de longe parece calma, normal. Mas suas praias e pedras suportam ondas valentes e fortes sem um minuto de descanso, é o que fico imaginando e conversando com minhas havaianas. Não é grande como Manhattan, Londres ou Florianópolis. Nem como Mallorca, Menorca ou Ibiza. Tampouco é uma Sardenha, Córsega ou Sicília. É pequena, mas não minúscula ou desprezível. Não é encrencada como as Malvinas ou Cuba. Nem misteriosa como Guane Tonga, no Pacífico; exótica como as Aleutas; deserta como as ilhas Senkaku. Apenas é uma ilha que domina meu imaginário, e ponto. Sonho com ela de vez em quando, como o lugar solitário onde vive o faroleiro suas galinhas e cabras, e que recebe suprimentos —e visitas— só a cada dois meses. Outrora imaginei que ela poderia ser o lugar de um cassino charmoso, como em Mr. Lucky, a série de TV dos anos 1950, que funcionava num navio ancorado além dos limites do mar territorial dos EUA. Mas sempre acordo encantado com as nuances e personalidades de suas inúmeras apresentações camaleônicas, de cores e corais, que se encerram, ao final do dia, com o sol iluminando seu dorso antes que desapareça no negror da noite sem lua. Claudio Ferlauto

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Passando a reserva do Tabuleiro, lá na frente

Óleo sobre tela Suiá Burger Ferlauto

e ainda bem distante está a Guarda. Logo ali o rio que deve ser atravessado com água até a altura do peito, num trecho perto dos ranchos que os pescadores usam nas noite em que vão matar camarão. No lado de lá, mais um trecho das areias antes de chegar. Olhando para o oeste, uma longa linha de maciços da Serra do Mar se destaca com sua imponência. Quando iluminada pelo sol do amanhecer mostra exuberantes tons de verde associados com os cinzas escuros das pedras e de montanhas mais distantes. Mas quando o sol desce até o poente, forma um espetáculo de cinzas em muitos tons, que vão dos azulados como o céu, aos escuros das nuvens de chuva. CF


Passei um bombril na memória Claudio Ferlauto

1945 Porto Alegre. Todos estão comemorando o fim da guerra. Me apóio nas grades de ferro para ver as luzes no céu através da pequena janela. Vejo as faíscas dos fogos de artifício e de tiros de revólver para o alto, como fazem também nas festas de fim de ano. Só que agora são inúmeros estrondos, muito mais que no reveillon. Ouço passos vindo do final do corredor, são muitas pessoas. Temos visitas. Certamente parentes. A família é grande e pelo barulho e pelos sons musicais já dá para saber que são os do lado de minha mãe. A parentella paterna é diferente. Ainda no domingo passado, na casa de um dos tios, estávamos todos —primos, tios, empregados— recolhidos dentro de casa, com todas as luzes apagadas, mas com algumas velas acesas, participando de um exercício de black out na cidade. Os americanos tinham gente aquartelada em uma base aérea depois dos subúrbios da cidade, e de vez em quando patrulhas, com militares brasileiros e americanos, rodavam pelos bairros controlando —não imagino bem o quê— e ver quem não havia apagado as luzes. Meu tio, dono da casa, ridicularizando a situação espiava pela janela da sala, abrindo uma fresta na cortina pesada, enquanto ouvia broncas, bem italianas, de sua mulher, temerosa por ter casado com este filho de imigrantes. Estamos no sul do Brasil, muito longe das colinas italianas de Pistóia onde

nossos soldados lutaram contra as forças de Mussolini. Mas os americanos que operam a base aérea em Canoas insistem em fazer uma guerra de bobagens, a milhares de quilometros dos campos de batalha europeus.

Saindo Dívidas A partir deste momento me deves mais uma carta. Estamos conversados? Como estás nesta cidade vazia? Nesse lugar de magias e sonhos? Cá, vou correndo pela cidade, de carro ou a pé, mas sempre de saco cheio. Sabes lá o que é isso? Estou sem trabalho, mal dá para justificar o fato de sair de casa todo santo dia para batalhar dinheiro. É só isso: poluição. Mental, ambiental, sonora. Só agora sei, diz o poeta. Só agora serei, diz o profeta baiano. (Peguei essa mania de escrever frases muito curtas). Quem sabe o que sabe. Não é o que pensa ser. Logo: existe. [Aqui existia um longo parágrafo sobre medicina e remédios e a loucura dos processos químicos modernos, que elimino para o sossego do leitor]. No entanto sou incorrigível. Já tenho novos planos. Novos projetos para a vida. Estou pensando numas transas rurais, ou melhor, semi-urbanas. Mas isso é ainda sonho, guardado. Bem guardado, pois o que temo é que depois de divulgados, conversados acabem ficando no papel ou esquecidosem algum canto da memória. Ou ficando na saudade. Neste próximo fim de ano penso ir a PA. Mas já sei que será muito difícil. Ou ficarei comigo mesmo, recolhido em retiro no meio do mato. Estás prestando a atenção? Vai ser um final de

ano muito diferente. Para todos. Acabo indo mesmo para Paris, Amsterdã ou Nova York. Beijos desencantados de A Carta comercial I Porto Alegre, 13 de março, 1974 A. A demora se deve, única e envergonhadamente, à minha irresponsabilidade. Entusiasmado pela perspectiva de uma semana na praia, larguei tudo e me mandei. E foi numa manhã ensolarada, a meio caminho entre o hotel e a praia que dei um tapa na testa: Puta Merda —assustando peixes e siris— que me lembrei de teu trabalho. Claro que não voltei correndo para a Porto Alegre para fazer —nem um A. merece tanto— mas assim que voltei foi a primeira coisa que fiz depois de beijar minha mãe e dar comida para os cachorros. Aqui está o resultado. Espero que gostes e, gostando me perdoes a demora. Grande abraço etc. Assinado L.V. Léo Aqui é São Paulo de frio e poucas chuvas e de noites de jazz que não tivemos tempo de curtir pois o escritório anda a mil por hora e a todo momento aparece cliente querendo coisas para ontem. E esta máquina de escrever antiga está suja e emperrada. A cada batida tenho que limpar uma peça para que ela ffffffffffffffffffff funcione. Está um saco escrever. As criançççççç çççççççççças estão bem. Agora batem boca por causa de um brinqqqqqqquedo qqqqqualquuer. Então vou parar um pouco para exercitar minha paciência com a máqqqqqqqqquuuina que não


quer fuuuuncionar e portanto vai fazer minha cabeça pifar. Estamos editando um portfólio com o dinheiro que teremos que pagar de imposto de renda no ano que vem. Estamos com material saindo na revista Print e fomos convidados para enviar 30 trabalhos para uma outra revista do EUA. No mais vou ficando por aqui, já que tu não apareces, e a máquina está me deixxxxxxxxxando maluuuco. Agora botei um pouuco de óleo Singer para ver se consigo escrever alguuuuuuuuma coisa decente. Fico por aqui pois está na hora de ir para a feira comprar fruuuutas e leguuuuumes Um abração A. Carta comercial II Porto Alegre, fevereiro, 1975 Respondendo à tua missiva, como diria um velho amigo, item por item, lá vai: — Topo colaborar quando e como quiserem. Peço ao editor, notoriamente um homem metódico e organizado, que me mande detalhes sobre o tipo de coisa que voces querem. Não, não me oponho a que usem coisas antigas da minha lavra. — Incrivelmente encontrei C., não uma, mas duas vezes na Europa. Ninguém disse “Como este mundo é pequeno!”, mas ficou subentendido. — A tua frase sobre voltar para criar gado, galinha e úlceras é literatura ou é verdade? A cidade esta cheia de gente que foi e voltou. Vocês também, pô! Mas seria uma festa para os amigos. Grande abraço. L.V. PS 1 – Estivemos, há dias, aí perto de São Paulo. Na volta da viagem descemos em Viracopos (quando eu morrer e quiserem me mandar para o Inferno,

protestarei: Mas eu já estive em Viracopos!) e fomos de ônibus até Congonhas. Na próxima vez paramos para tomar um guaraná. PS 2 – Isso aí em cima já estava batido quando recebi a tua outra carta com considerações socio-musicais, que foi arquivada (na letra “I” de “Inteligentes”) para consulta futura. Pela minha contagem estou agora te devendo 17 cartas.

Mato I Para A. Já não sei quanto tempo faz que voces não aparecem aqui no matão. Para meu gosto tudo aqui já funciona muito bem. Temos sido seguidamente contemplados com a visão de micos e bugios. De aracuãs, saracuras, inhambus, jacus, tatus, sabiás, pintassilgos, gaviões e periquitos. E as vezes uma que outra cobra. Apesar dos borrachudos e das ventanias, morar assim no meio do mato é antes de tudo um privilégio. Todos estamos cada vez mais naturalistas se aprofundando no vegetarianismo e nas macrôs da vida. A carne bailou mesmo aqui na nossa mesa. Quando eu falo, para alguém na cidade, que onde moro tem bugiu todos se surpreendem e ainda perguntam: ainda? Muitos acham que tudo já acabou, poucos acreditam em recuperar o natural. O matão em volta apesar de ter sido sempre desmatado e lugar de caçadores, está vivo. O mato está renascendo naturalmente e também com nossa ajuda e muitos bichos procriando, inclusive bugios. Agora estou reproduzindo duas fotos do início da cidade de São Leopoldo com aerógrafo e lápis de cor que serão usadas num calendário. Uma já está quase pronta e a segunda com as máscaras

esperando para ser aerografadas, mas sem energia elétrica, só assoprando como fazia o homem préhistórico: enchendo a boca com a tinta e assoprando com um canudo vegetal. Um abraço G. Mato II. São Paulo, Cantareira, março, 1988. Cá estamos entre fumaças, discos e conversas telefônicas. Olho um rosto de brilho fluorescente no meio do grupo de colegiais. Olho para compreender, também, alguns pedaços do meu coração que vão ficando pelo caminho: a criança, o adolescente, o jovem que fomos. Não dá para esquecer que todos brincam e sofrem dentro de nós. Olho essas fotos antigas para não esquecer e para poder dizer ao espelho que aquele sou eu e não um outro. Sou eu olhando para mim mesmo, uma forma de um momento circunstancial. Olho para poder escrever, desenhar, para compreender quão rápido gira esse mundo imóvel, quão pequenos e insignificantes somos nesse mundo enorme. Ando com esse rosto tranquilo entre tantos outros no Viaduto do Chá. Caminhos e desvios da cidade, rápidos e lentos. Mas não é isso que vejo. São pedaços de tempo descontínuo. Sempre pedaços. Águas nas ruas, nas calhas, nas goteiras. O telefone mudo. Pingos, respingos, roupa molhada, umidade, goteiras, córregos, charcos, marcas de pneus na lama, o carro manchado de barro vermelho. São as águas de março lembrando que ainda é verão. A cidade nebulosa e cinza me enlouquece. Estou cansado. Vou fumar, tomar banho em água bem quente e escrever outras abobrinhas como estas. Boa noite. Assinado A.


Cadernos do Olhar #5 Janeiro/Fevereiro/Março 2014 Texto, edição & design

Claudio Ferlauto Colaboração

Cristina Burger, Marina Sabatino, Maialu Burger Ferlauto

UMAILHA UMAILHA

Aquarela Cristina Burger

Tipografias Bodoni, Chatype, DIN, EHU, OCRA, Ubuntu


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