Cadernos do olhar#12

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Cadernos do

Primavera 2015

OLHAR#12

Um dia, um sĂŠculo.

Pic Nic, Porto Alegre, 1936


Nicosia, Provincia di Enna, Sicilia.

Filippo Francesco Ferlauto nato in Nicosia da Graziano e da Maria de Luca, Maggio, 1881.

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[…] Vênus brilhava; já parecia ouvir-se o intrépito do carro solar subindo as escarpas do

horizonte. Em breve encontravam os primeiros rebanhos que, entorpecidos, avançavam como uma maré, guiados a pedradas por pastores de safões de peles; aos primeiros alvores do sol a lã dos carneiros havia se tornado macia e rosada. Era preciso, depois, dirimir obscuros litígios de precedência entre os cães dos rebanhos e os perdigueiros briguentos. Após este intermédio atordoante, subia-se uma ladeira e penetrava-se no imemorial silêncio da Sicília pastoril; ficava-se longe de tudo, no espaço e mais ainda no tempo. […] Quando chegaram ao cimo da montanha, apareceu entre as tamargueiras e os raros sobreiros, o verdadeiro rosto da Sicília, perante a qual as cidades barrocas e os laranjais não são mais que ninharias desprezíveis: uma paisagem ondulante aridamente até o infinito, colina após colina, desolada e irracional. Nela o espírito não podia pegar as linhas principais, concebidas num momento delirante da criação: como um mar que, de repente, tivesse sido petrificado no momento em que uma mudança de vento tivesse enlouquecido as ondas. A cidade, agachada, escondia-se numa dobra anônima do terreno, não se via vivalma: só filas de videiras secas indicavam a presença de homens. Giuseppe Tomasi, príncipe de Lampedusa, O Leopardo, Sicilia, 1958.

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Por esse tempo muito povo descia para o Continente, cujas terras e gados seriam de quem primeiro chegasse. Homens da Laguna. de São Paulo, das Minas Gerais e do planalto curitibano desciam pelos caminhos das tropas. Muitos navegavam os rios em busca de ouro e prata. […] Muitos requeriam sesmarias. Outros roubavam terras. Ladrões de gado aos poucos iam virando estancieiros. Nasciam povoados nos vales e nas margens daqueles muitos rios. […] Quais são teus inimigos? Os bugres, as feras, as cobras, os castelhanos, e os Regimentos de Dragões. E teus amigos? Meu cavalo, meu mosquete, minhas garruchas, meu facão. As patas de seus cavalos, suas armas e seus peitos iam empurrando as linhas divisórias do Continente do Rio Grande de São Pedro. Queremos as ricas campinas do oeste e as grandes planícies do sul! Só caranguejo é que fica na beira da praia papando areia. […] E em todas as direções penetravam na terra dos minuanos, tapes, charruas, guenoas, arachanes, caaguaás, graranis e guaranás. A fronteira marchava com eles. Eles eram a fronteira. Érico Veríssimo, O tempo e o vento. O Continente, Porto Alegre, 1949.

Modesto Garcia da Rosa com Ilme Italino Ferlauto.

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Quaraí, Província de São Pedro, quase Argentina. Las aventuras interminables […] que parecen sucederse en cualquier parte —más al oeste, más al sul, al filo de ese entregado camino, detrás de aquella polvereda— y hasta mutuamente se ignoran con la soltura de las incidencias de un sueño. Su ritmo es indolentísimo y descansado: ritmo de días haraganes en cuyo medimiento son inútiles los relojes y que mejor

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se aviene con el decurso cuádruple de las estaciones prolijas y con el tiempo casi inmóvil que rige el manso perdurar de los árboles. […] Un tono de caballero unitario en quien persisten conmovedoras palabras del fenecido léxico criollo: mandinga, godo, mequetrefe, guayaba, negro trompeta, poderosos y essas tiesas figuras del pan amargo del destierro y del altar de la pátria. Jorge Luis Borges, Inquisiciones/Otras inquisiciones, 1925.


Porto Alegre uma noite qualquer de 1945. Estão comemorando o final da II Guerra Mundial. No colo de alguém me seguro nas grades de ferro para ver as luzes no céu através da pequena portinhola. São as luzes efêmeras dos fogos de artifício e dos tiros de revolver para o alto, como eles fazem também nas festas de fim de ano. Só que nessa noite são muito estrondos, muito mais do que no reveillon. Ouço passos vindo do final do corredor, são muitas pessoas. Temos visitas. Certamente alguns parentes. A família é grande e pelo barulho e pelos sons musicais já dá para saber que são aqueles do lado de minha mãe. Essa é das poucas lembranças que tenho da primeira infância porque essas reuniões com cantorias se repetiriam anos a fio. Nessa época uma de minhas tias namorava um militar norte-americano que, literalmente, rasgava dinheiro: todas as notas amarrotadas ou rasgadas ele jogava fora, atrás do sofá onde namorava, na casa de meus avós. A parentella paterna era diferente. Menor, reservada e de encontros mais formais e regulares em aniversários e no ano novo. Numa dessas ocasiões, em um domingo, na casa de um dos tios, estávamos todos —primos, tios, empregados— recolhidos dentro de casa, com as luzes apagadas, e com algumas velas acesas, participando de um exercício de black out na cidade. A guerra, pelo visto, acabara na Europa, mas não na nossa cidade. Os norte-americanos tinham gente aquartelada em uma base aérea, depois dos subúrbios, numa cidade vizinha, e de vez em quando patrulhas, com militares brasileiros e americanos, rodavam pelos bairros controlando —não imagino bem o porquê— quem não apagava as luzes. Meu tio, rindo e se divertindo da situação, espiava pela janela da sala, abrindo uma fresta na cortina pesada, enquanto ouvia broncas, bem italianas, de sua mulher, temerosa por ter casado com este filho de imigrantes. Estamos no sul do Brasil, muito longe das colinas italianas de Pistóia onde nossos soldados lutaram contra as forças de Mussolini. Mas os gringos que operam a base aérea insistiam com essas bobagens, em manter a guerra perto de nós. Não lembro quanto tempo os jeeps militares continuaram a circular pela cidade. De um dia para o outro, os jeeps e o namorado de minha tia sumiram, e ao contrário da Itália, que perdeu a guerra, não tivemos que aturar por muito tempo esta estranha ocupação militar. 6


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O ferro agudo e as flores com espinhos de imigrantes aventureiros e guerreiros.

Raro cognome siciliano Ferlauto è diffuso soprattutto nell’ennese (Cerami, Nissoria, Troina, Gagliano Castelferrato, ecc.), nel catanese (Catania, Mascalucia, Adrano), ma anche nel palermitano (Palermo, Bagheria), nel messinese (Capizzi), nel siracusano (Augusta); qualche piccolo nucleo si trova anche in Piemonte, Emilia-Romagna, Lombardia, Puglia, Veneto. Ferlauto deriva dalla italianizzazione del... nome di origine spagnola Ferragut (da cui Farrauto, Ferraguto), tradotto con “ferro acuto” (V. Biunda), probabilmente soprannome dei capostipiti.

O sobrenome Da Rosa tem duas origens no Brasil: a portuguesa continental e a açoriana, que se propagaram sobre o litoral de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul. Algumas famílias dos Açores tem origem flamenga e outras tem traços belgas, como cabelos e olhos claros. A verdadeira grafia do sobrenome Da Rosa dos Açores é De Rouzé ou Roose que vem do colonizador flamengo Pieter Roose, aportuguesado para Pedro Rosa. Algumas famílias Rosa, de origem européias, são conhecidos como judeus novos, que vieram da Península Ibérica para o Brasil durante os séculos XVI e XVII.


Os Guimarães Ferlauto.

Filippo Francesco Ferlauto, Nicosia, 1881–Porto Alegre, 1956. Accendina Guimarães Ferlauto, a vó Florzinha, Porto Alegre, 1889– ? e os cinco filhos.

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Meu avô era siciliano, e como disse-me uma vez um romano, siciliano não é italiano. Fechado e de poucas palavras em meio a grandes tormentas dizia apenas: coraggio. Não deixou em mim muitas marcas, nem tivemos oportunidades de grandes vivências pois eu tinha doze anos quando faleceu aos 75 anos de idade em 1956. Da vó Florzinha, com quem casou em 1906, mãe de meu pai, só conhecia uma foto que ficava na sala de casa. Com a segunda mulher, Maria Magdalena Massini Ferlauto também não tivemos convívio nem afinidades e dela não tenho lembranças claras, nem sequer uma fotografia. ¶ No Rio Grande do Sul, por causa da II Guerra Mundial, os imigrantes eram cerceados e controlados, mas rapidamente meu avô aprendeu a falar português corretamente e sem sotaque, pois como comerciante tratava diariamente com muitos brasileiros. Em casa não se falava italiano, tampouco com o nonno. A grande maioria dos italianos vieram para Praça da Alfândega, Porto Alegre, anos 1930.

as colônias da serra gaúcha, o vô Filippo curiosamente se fixou na cidade e tinha uma lavanderia. Imigrou provavelmente por causa da crise econômica da Italia no final do século XIX. Mas um amigo italiano comentou que sua cidade natal Nicosia, no centro da Sicília, é conhecida como berço da Cosa Nostra. ¶ Lembro-me muito pouco desse tempo. Mas não esqueço dos domingos na Praça da Alfândega quando meu pai encontravam-se com ele após a missa no Colégio das Dores, antes irmos para a Cidade Baixa almoçar alguma pasta bem italiana. Ao encontrá-lo, pedíamos a benção, beijávamos sua mão, ele mal sorria, tirava do bolso de seu paletó de linho branco uma bala e dizia bon giorno, e essa era toda conversa entre ele e os netos. ¶ Não lembro de diálogos maiores ou mais interessantes, mas recordo de momentos em que convivemos, já na final da vida em seu leito de doente, numa a avenida a caminho da Zona Sul. Também aos domingos.


Modesto era barbeiro e tocava violino; Dininha, Geraldina Vasconcellos da Rosa, cozinhava e costurava para dez filhos. Naturais de Quaraí, fronteira com a argentina, eram descendentes de gaúchos guerreiros, que não hesitavam em entrar em qualquer batalha ou entrevero. Nosso bisavô lutou na Guerra do Paraguai e voltou para casa com duas crianças que encontrou abandonadas, sob um pelego de ovelha, na beira de uma estrada. Dele lembro-me de ter visto uma ou duas vezes, pela janela, na casa de um tio avô, perto de Canoas, já bem velhinho. ¶ Cortávamos o cabelo regularmente com o avô, ora no almoço de domingo em sua casa, ora nos churrascos no páteo da Gaspar Martins, em Porto Alegre, o que nos propiciou um convívio efetivo e afetivo. Os domingos terminavam sempre em música e cantoria. Modesto tocava peças de Ernesto Lecuona, músico erudito–popular, cubano. Os tios, tocavam violão, alguns violino e meu pai acompanhava-os com

o pandeiro. Lembro da Dininha cantando El día que me quieras, com Léo ao piano, tempos depois, na casa da Gaspar Martins. ¶ Os avós abandonaram Quaraí na década de 1930 em função da crise resultante do crack da Bolsa de Nova York. Endividados para manter o armazém que tinham na fronteira, acabaram perdendo tudo e foram viver em Porto Alegre, para sobreviver. ¶ Nos últimos tempos moravam no Bom Fim, na rua Santo Antonio, quase esquina da avenida Oswaldo Aranha, perto de um buteco chamado Fedor, que tio José frequentava para jogar sinuca com os irmãos Sebastião e Carlos. que eram boêmios chegados a um carteado e vida noturna. As filhas mulheres, começando pela Clara, que trabalhou desde os quinze anos de idade, eram mais responsáveis e trabalhavam para ajudar a família. No final da vida os avós moraram na casa de meus pais, num arranjo que transformou a sala em quarto, também ocupado pela Clara em seus últimos dias.

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Os Vasconcellos da Rosa.

Geraldina Vasconcellos da Rosa e Modesto Garcia da Rosa. 11

1890–1976

1890–1968


El día que me quieras Luiz Miguel

No horizonte surgiu um grupo a cavalo. Quero-queros faziam curvas, dando gritos espaçados. Os cavaleiros desceram a lomba da coxilha e pouco a pouco desapareceram dos olhos da sentinela. A manhã estava quente, ruidosa. Cigarras faziam ruído do capão próximo, uma garça se elevou no ar batendo suavemente as amplas asas. O grupo apareceu. Galgava a coxilha seguinte no mesmo trote sem pressa. Começaram a descer a curva e suavemente desapareceram […] Despencaram pelo declive da coxilha, cortando a grama com os cascos afiados, espantaram um bando de perdizes escondidas nas guanxumas, entraram no acampamento dando gritos e fustigando o lombo dos animais com os palas de seda, precipitaram-se em direção ao rio assustando as lavadeiras e mergulharam na barranca, levantando cachos de água transparente. […] Os dois cavalos nadavam cabeças erguidas, olhos em pânico. Tabjara Ruas, Os varões assinalados, 1985.

Acaríciame en sueño El suave murmullo de tu suspirar. Como ríe la vida Si tus ojos negros me quieren mirar. Y si es mío el amparo, De tu risa alegre que es como un cantar Es que aquietas mi vida Todo se me olvida. El día que me quieras Las rosas que engalanan Se vestirán de fiesta Con su mejor color. Y al viento las campanas Le dirán que ya eres mía Y locas las fontanas Se contarán su amor. La noche que me quieras Desde el azul del cielo Las estrellas celosas Nos miraran pasar. Y un rayo misterioso Hará nido en tu pelo Luciérnaga curiosa Que verá que eres mi consuelo.

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Clara da Rosa Ferlauto Quaraí 1918–2006 Ilme Italino Ferlauto Porto Alegre 1912–1973

Io credo nei siciliani che parlono poco, che non si agitano, che si rodono dentro e soffrono: i poveri che si salutando con un gesto stanco, come da una lontananza di secoli… Questo popolo ha bisogno di essere consciuto ed amato in ciò che tace, nelle parole che nutre nel cuore e non dice… Leonardo Sciascia, Gli zii di Sicilia, 1938.


Era um dia de inverno em 2009. Um dia claro, ensolarado como só faz acontecer nas terras do Rio Grande. Sebastião Serpentina está a caminho da serra, de carona em um grande sedan francês. Dentro do automóvel mal dá para perceber que já está a mais de 140 km por hora. Mas isso não lhe interessa e nem lhe atemoriza mais. Foi-se o medo de andar de carro. Os pensamentos andam lá atrás, nas viagens da infância, quandoviajar para o interior era demorado, parecia que nunca iria chegar, tal era a ansiedade. Mas a volta era muito aborrecida: uma paisagem de ondulações repetidas, coxilhas e coxilhas, lá adiante o Morro do Chapéu, que demora para ser ultrapassado, mais coxilhas e os fios elétricos na lateral da estrada formando intrigantes ondas oque passam velozmente pelas retinas. Mais coxilhas. Verdejantes, luminosas, algumas desbotadas. Era chato, deprimente. Mas agora, anos depois, não tinha pressa nem de ir, nem de voltar. Sabia que voltaria sem muitas delongas. Chato será quando estiver voando para casa vendo apenas as partes de cima das nuvens que normalmente cobrem o trajeto. O dia está acabando. Ao lado da estrada operários estão a caminho de casa em carros, bicicletas, a pé. A temperatura fica mais baixa e já há sinais que vai anoitecer rapidamente. Nos pensamentos o tempo anda célere e por eles desfilam lembranças e saudades. Agora a medida de tempo são as décadas: a da inocência, a das descobertas, a das aventuras. O início das décadas profissionais, dos sucessos e fracassos, finalmente da acomodação. Como dizia para si mesmo, parodiando o amigo do passado: — minha vocação é para aposentado. Mas nem ele acreditava nesse devaneio.

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[…] Vênus brilhava; já parecia ouvir-se o intrépito do carro solar subindo as escarpas do

horizonte. Em breve encontravam os primeiros rebanhos que, entorpecidos, avançavam como uma maré, guiados a pedradas por pastores de safões de peles; aos primeiros alvores do sol a lã dos carneiros havia se tornado macia e rosada. Era preciso, depois, dirimir obscuros litígios de precedência entre os cães dos rebanhos e os perdigueiros briguentos. Após este intermédio atordoante, subia-se uma ladeira e penetrava-se no imemorial silêncio da Sicília pastoril; ficava-se longe de tudo, no espaço e mais ainda no tempo. […] Quando chegaram ao cimo da montanha, apareceu entre as tamargueiras e os raros sobreiros, o verdadeiro rosto da Sicília, perante a qual as cidades barrocas e os laranjais não são mais que ninharias desprezíveis: uma paisagem ondulante aridamente até o infinito, colina após colina, desolada e irracional. Nela o espírito não podia pegar as linhas principais, concebidas num momento delirante da criação: como um mar que, de repente, tivesse sido petrificado no momento em que uma mudança de vento tivesse enlouquecido as ondas. A cidade, agachada, escondia-se numa dobra anônima do terreno, não se via vivalma: só filas de videiras secas indicavam a presença de homens. Giuseppe Tomasi, príncipe de Lampedusa, O Leopardo, Sicilia, 1958.

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ANCESTR

ALIDADE

Filippo Francesco Ferlauto

#12 30 outubro 2015 Edição & design Claudio Ferlauto Fotos Ilme Italino Ferlauto Textos Giuseppe Tomasi Lampedusa, Érico Verissimo, Jorge Luis Borges, Leonardo Sciascia, Tabajara Ruas, Claudio Ferlauto. Contatos qu4tro.com.br/blog claudio@qu4tro.com.br Desenhado em outubro 2015. Composto com as famílias tipográficas Univers, Bodoni, Infini.

Gli uomini e le donne, 1936. Accendina Guimarães Ferlauto


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Um dia, um sĂŠculo.

Pic Nic, Porto Alegre, 1936


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