Nas redes, mais do que baleias.
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OLHAR GRAFICO
Primavera 2021 Texto, imagens, design Claudio Ferlauto Capa Beppe Fumagalli dalla serie ‘Nuda e Viva ‘ Gamboa SC Contato clauf4455@gmail.com
Manchas escuras na água do mar uma grande outra pequena o dorso imenso e a prancha da surfista
A
¶ Caminhando na areia mole da beira do mar, decidimos escrever um diário de vinte dias. As baleias fazem seu show, ao amamentar os filhotes, no início da primavera ventosa. Escrever sob a emoção de ver estes imensos seres se movimentarem com elegância e, paralelamente, com lembranças e impressões de uma leitura onde os tempos são medidos em séculos (como fossem nossas prosaicas semanas), num mundo inter-galático onde habitam quase um quintilhão de seres humanos. A escala deste nosso universo imaginário, é de no máximo 500 horas, que nem cobririam o período de repouso longe da cidade grande.
Andar na areia não inclui entrar no mar e fazer companhia às baleias. ¶ Elas sumiram ou estão em excursão até a ilha ali em frente ou em outra pequena baía, saciadas de suas curiosidades geográficas voltarão mais tarde. O visor dos binóculos não identifica nenhuma mancha escura que lembre cetáceos. “A baleia franca-austral (Eubalaena australis) é uma das três espécies de baleia franca pertencente ao gênero Eubalaena e uma das baleias de barba. Habitam oceanos ao sul do equador entre as latitudes de 20° e 60° S. Em 2009 a população global foi estimada em aproximadamente 13 611 indivíduos.”
L
¶ É hora de preparar o almoço, embalado por algumas frases de efeito como esta: “O silêncio que o seguiu até a porta foi quase triunfal”, que pode significar muitas coisas mesmo quando retirada do contexto… O prato principal será um peixe ao forno. Faz vento, o que torna o repouso sob o sol menos quente, menos tranquilo. Em pouco tempo o vento mexe com a paciência, deixa a memória desconfortável e quase histérica; as ideias que pareciam promissoras, cami nham para baixo dos ramos das árvores, embrenham-se na mata baixa e desaparecem como assustados lagartos, surpreendidos ao fazer a refeição em meio ao lixo orgânico. Os pássaros desaparecem, somem sons e voos, imaginamos que saíram para almoçar ou para uma sesta. Aquietados, também
o : e … . l o a ; i m o . e r m
E
¶ Elas voltaram. Ficamos quase congelados na beira da praia tentando vê-las de perto usando um binóculo. bi.nó.cu.lo bi’nckulu, nome masculino, mais usado no plural, instrumento de punho composto por duas lentes, usado principalmente para observação à distância. Faceiras, nadam, subindo e descendo, prá lá e prá cá. As lentes não mostram muito mais do que vemos só com os olhos. Voltamos apressados para casa úmidos e gelados.
IA
A
¶ Hoje não vamos escrever. Esquecemos o diário embaixo do travesseiro e travessos andamos a caminhar nas areias e nos corredores de um supermercado. A vida prossegue, a louça cresce na pia e os boletos não param de vencer: aos vencedores, as batatas e o guichê da lotérica. Pronto, agora já estamos aqui a escrever notas mínimas como as duas cédulas de dois reais que estão no bolso: no mercadinho o caixa não arredonda os sete centavos, não concede o desconto, e diz que é preciso falar com o proprietário, um conhecido colecionador de centavos. A paisagem está cinza azulada e nada se vê além de neblina, névoa, chuvisco.
Mas nos redes, além de peixes e siris, vemos pessoas sorridentes na Croácia, na Itália, na Irlanda, no Rio de Janeiro, parecem amigáveis ou amigos, e podem ser apenas alienígenas invadindoa praia de virtuais virtudes intelectuais. Corremos ao dicionário, que o avô chamava de Amansa Burro: “Do latim virtus (“força” ou “virtude”), virtual é um adjetivo que, no seu sentido original, faz referência àquilo que tem a virtude de produzir um efeito apesar de não o produzir verdadeiramente.” ¶ Deu sono. O edredon sobe até as orelhas e nos embrenhamos na bruma dos sonhos.
¶ Elas já não arrastam meus passos até a praia. Não surpreendem mais, estão lá o dia inteiro, faz semanas. Continuam encantadoras e surpreendentes pelo tamanho, pela agilidade, pelo fato de nadarem distâncias imensas para parir e alimentar seus filhotes, “as baleias são animais migratórios e estabelecem lugares diferentes para alimentação e reprodução. Entre julho e novembro, elas fogem do inverno rigoroso da Antártida, e migram para águas tropicais, que são mais quentes, para poderem se reproduzir.”
S
¶ O vento sumiu depois de dois dias de chuvas constantes e frio. Acendemos o fogo, com a lenha da árvore morta e podre que caiu sobre os fios elétricos e da internet, que molhada se recusa a queimar. ¶ Venta forte marcando as areias com sutis veios pontilhados de cacos de conchas. Nenhuma pegada humana, são horas matinais e o céu ainda não se abriu para os raios solares. Nenhuma baleia. Faz frio ao vento, mas em meio ao jundu, o dia parece quente. Cruzamos com um cachorro acompanhado do dono. Seu rosto, do dono, todo crispado defendendo-se da ventania. — Bom dia. Passeando? Embaralhamos alguns sons curtos por trás da máscara como resposta cortês, mas sem vontade e seguimos adiante. Voltamos às areias e elas ainda estão desertas. ¶ Dá para ouvir a respiração, o sopro de ar o esforço do mergulho. E estamos longe, sobre o morro do costão. Ouvimos também um chamado, uma cantoria, um alerta do macho um pouco distante enquanto o filhote salta para fora dágua mostrando-se para os fotógrafos. O drone dá um rasante sobre elas, erra nos cálculos e se espatifa nas pedras em meio aos mexilhões. ¶ Bandos de pássaros brancos voam dos arrozais para o Sul, organizados geométricamenteno no céu escuro. Hora de voltar para casa. Set2021
OLHARGRAFICO
o vento ondula, risca, delineia a superfície cor de areia marca em ondas estrias, nimbos, véus a atmosfera cor de céu não param de quebrar, mexer, voltar ao horizonte cor de mar
Nas redes, mais do que baleias.
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